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O ESTADO ROMANO COMO MOMENTO DO ESTADO ÉTICO EM HEGEL: ENSAIO EM

HOMENAGEM AOS SETENTA ANOS DE JOAQUIM CARLOS SALGADO

THE ROMAN STATE AS A DIALETIC MOMENT OF CONTEMPORARY ETHICAL STATE IN


HEGEL: IN HONNOR OF THE SEVENTH ANNIVERSARY OF JOAQUIM CARLOS SALGADO

Saulo de oliveira Pinto Coelho

RESUMO
Busca-se elucidar e revisar o papel do mundo romano como figura-chave para a compreensão do Estado
contemporâneo em sua leitura hegeliana e, nesse propósito, evidenciar o valor do Direito (que aparece em
seus traços centrais na experiência romana) como elemento indispensável para compreender a eticidade
contemporânea (e o Estado de Direitos Fundamentais a ela correlata) como superação do embate histórico
entre Liberdade e Poder, no ocidente. A obra do hegeliano Joaquim Carlos Salgado, aparece como ponto
central de diálogo acerca desse temário, possibilitando um aprofundamento reflexivo em busca da
explicitação da questão do valor da juridicidade romana no seio de uma Ética e de uma Teoria da Justiça de
matriz neo-hegeliana.
PALAVRAS-CHAVES: 1. Teoria da Justiça; 2. Hegel; 3. Estado de Direito; 4. Roma.

ABSTRACT
We try to shed light over the role played by the ancient roman world, considered as a master key, at the
comprehension of the contemporary State, taking into consideration the hegelian perception. In this purpose,
the paper makes it clear that Law (which shows its main traits in the roman law experience) is an
indispensable element of comprehension of the contemporary ethic (and the Rule of Law which relates itself
to this ethic) as an overcoming of the historic querelle between Freedom and Power in the western culture.
The opera of the hegelian scholar Joaquim Carlos Salgado emerges as the center of the dialog, making
possible a deeper reflection, in order to point out the value of comprehending Roman law under the light of
both Ethics and a neo-hegelian Theory of Justice
KEYWORDS: 1. Theory of Justice; 2. Hegel; 3. State; 4. Rome.

1. Considerações Iniciais.

O Presente artigo visa a promover uma reflexão sobre o papel de Roma no devir fenomenológico do
Espírito, e mais especificamente do Estado de Direito como momento de chegada do Espírito Objetivo,
segundo o pensamento de Hegel, precisamente na obra em que tal narrativa do embate dialético entre
liberdade e poder é tratada como mote fundamental, a Fenomenologia do Espírito. Partindo das reflexões do
abalizado interprete do pensamento hegeliano no plano da Ética e do Direito, Joaquim Carlos Salgado[1],
pretendemos empreender uma demonstração da importância do mundo romano para o afloramento do
conceito de Estado Ético Mediato dentro da obra de Hegel, resgatando, no seio do pensamento hegeliano, o
valor do legado romano na configuração histórica da eticidade ocidental; valor este muitas vezes desprezado
pelo próprio Hegel, mas paradoxalmente fundamental como para a construção da estrutura contemporânea
do Estado Constitucional de Direitos Fundamentais, uma vez que a experiência jurídica romana constitui o
momento do aparecimento de uma Idéia jurídica de Justiça, ou seja, da Justiça em seu conceito jurídico-
político e não apenas ético-moral.

No pensamento hegeliano o momento da juridicidade romana foi em variadas leituras entendido como
momento de pura negatividade; momento em que Hegel expressa sua crítica à ausência de substancialidade
ética que vai a partir dali caracterizar o devir do ocidente e que iria, inclusive, justificar a procurar hegeliana
por tratar como questão fundamental o resgate da bela totalidade da Polis grega. Essa leitura imediatista da
visão hegeliana do devir histórico do Espírito objetivo, parece estar embasada num certo desprezo pela
tradição romanística que Hegel esboça na Fenomenologia. Tal desprezo é fruto de uma situação histórica do
filósofo, que em sua época se opunha e rivalizava no seio do romantismo, com a Escola Histórica. Esse
caráter situacional[2] e circunstancial[3] do desprezo hegeliano pela tradição romanística é o ponto de
partida para uma necessária reflexão sobre o papel de Roma e o papel do Direito Romano na construção
dialética do Estado Ético Mediato - o Estado de Direito.

Ao se buscar, aqui, uma leitura sistêmica e situada da filosofia especulativa de Hegel, um dos importantes
desafios em busca da correta compreensão da Ética hegeliana consiste justamente em assimilar, fora de um
mecanicismo abstrativo, o mote da interação dialética entre a Religião, a Moral e o Direito no devir da
cultura ocidental, rumo ao Estado Ético novecentista. Assim, o momento do Direito (ou seja, o Direito como
momento lógico-ontológico) aparecerá como importante chave de compreensão do Estado Racional
Hegeliano, visto que possibilita, em interação dialética com os demais momentos da vida ética, assimilar a
riqueza e a complexidade da unidade dialética entre a objetividade (liberdade objetiva, poder político) e
subjetividade (liberdade subjetiva, moralidade), na totalidade (não totalitária) da complexa unidade entre
Estado, Sociedade Civil e Individuo livre, guiada justamente pelo conceito de Direitos Fundamentais.[4]

Nesse diapasão, entendemos que um dos principais méritos da visão de Salgado acerca da atualidade
instrumental do pensamento de Hegel como base fundamental para a compreensão do Estado
Contemporâneo consiste justamente no resgate que o pensador brasileiro faz da tradição e do legado
jurisprudencial romano como um momento fundamental de construção do Estado Ético Mediato (o Estado
de Direito). Dentre as várias contribuições que ofertou à jusfilosofia, Salgado tem o mérito, ainda pouco
evidenciado e reconhecido, de reposicionar os momentos histórico-dialéticos do Espírito ocidental,

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 5598
recuperando, dentro da fenomenologia hegeliana, o papel de Roma no devir do ocidente, como importante
momento da subjetividade no processo ético que culmina no mundo contemporâneo, com a figura do Sujeito
Universal de Direitos Universais e com a estrutura de um Estado que tem como seu princípio e seu fim, sua
razão de ser, a concretização desse conceito de sujeito de direitos fundamentais como realidade presente na
vida de todo ser humano. Esse resgate da experiência romana para o debate ético-político contemporâneo
possui importantes desdobramentos que dão à preocupação de Salgado um caráter atual.

2. Intróito sobre o papel do momento do Direito na construção do Estado Ético Mediato

No plano da Ética, o devir da consciência à Razão e ao Espírito, se revela na práxis dos momentos da
consciência moral[5], que passa, por meio da consciência política, à instância dialética da consciência
jurídica e da razão jurídica[6], em que o Direito revela-se como a comunicação racional do Espírito de uma
comunidade ética na qual a coesão dada pelo poder organizador da vida em comum efetiva-se sem esvaziar,
com isso, o plano da subjetividade, do exercício, por todos, da singularidade da condição de ser humano,
numa sociedade eticamente organizada[7]. Isso se dá porque, pelo Direito, um Estado se estrutura como
Estado de Direitos Fundamentais, fazendo deles (dos direitos fundamentais) seu fundamento e seu fim[8].

Se o direito (e, contemporaneamente, o conceito de Direitos Fundamentais) representa a chave para a


compreensão da unidade dialética entre a objetividade e a subjetivade no plano da vida ética; deve-se
reconhecer que é em Roma que a noção do jurídico surge com todos os seus elementos conceituais, ou seja,
é na experiência jurídica romana que o Direito aparece em sua nota própria como criação cultural por meio
da qual os homens livres, tornando-se sujeitos de direitos, organizam a vida no seio do Império[9].

Na Fenomenologia do Espírito, o mundo romano aparece em dois distintos momentos do texto.


Primeiramente, surge na descrição da experiência da consciência - no movimento desta à auto-consciência,
ou consciência de si. Nessa primeira passagem[10] - normalmente utilizada pelos estudiosos de Hegel para
descrever sua visão do mundo romano, a cultura do Lácio é identificada com o pensamento estóico e, então,
pensada como um momento de alienação da consciência incapaz de, enquanto consciência de si, realizar-se
como livre na sua efetividade (ou externalidade), posto que, apesar de capaz de pensar-se como livre (ou
seja, ter ciência da sua liberdade), a consciência estóica é incapaz de se reconhecer como objetivamente livre,
haja vista que é incapaz de dar conteúdo à sua liberdade.[11]

Já em um outro momento da Fenomenologia[12], Roma surge mais detidamente, como uma figura do
Espírito Objetivo, sendo necessário, desde já, advertir que é sobretudo em relação a essa passagem que
dialoga-se na presente reflexão.

No devir fenomenológico do Espírito, o mundo romano aparece como o primeiro momento após a cisão da
bela totalidade da Polis Grega. Em regra, portanto, tal passagem do texto hegeliano é tomada pelos
estudiosos enquanto narrativa da alienação do Espírito, quando este perde sua dimensão de totalidade.
Ocorre, todavia, que a intenção de Hegel, manifesta desde seus escritos de juventude, de resgatar a
totalidade ética da Polis Grega, não pode nunca ser entendida como mero retorno a tal momento[13]. A
totalidade perdida com a cisão do mundo ético grego somente pode ser resgatada pela mediação da
subjetividade, elemento fundamental que aparece nessa cisão. Assim sendo, o mundo romano faz surgir na
cultura ocidental um dos conceitos primordiais da subjetividade: o conceito de sujeito de direito, que aparece
em Roma não ainda em sua forma completa e refletida[14], mas que lá se apresenta, na experiência da
juridicidade, à razão história ocidental, como estrutura sem a qual a Liberdade objetiva e a Liberdade
subjetiva não poderiam encontrar, no mundo contemporâneo, a sua unidade conceitual no Estado de Direito.

3. A Revolução como Momento-Chave para a compreensão do Estado Ético Hegeliano

A descrição do devir do Espírito Objetivo em Hegel visa, sobretudo,à explicitação de seu resultado enquanto
conceito: O Estado Constitucional Contemporâneo. Joaquim Carlos Salgado é o jusfilósofo que vem se
dedicando a trabalhar as categorias hegelianas na apresentação de uma Teoria da Justiça adequada aos dias
atuais. Foi ele o pensador capaz de perceber este importante momento que Roma representa para o auto-
desenvolvimento histórico do Estado Ético. Em suas recentes pesquisas, vem se dedicando a evidenciar a
experiência romana como elemento suprassumido da Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo.[15]

Também em sua tese de cátedra, A Idéia de justiça em Hegel, podemos encontrar a indicação da relevância
que Salgado dá a Roma na atualização do pensamento hegeliano. Antes, porém, é importante evidenciar que,
na tese, Salgado encara a estrutura da Revolução (que, segundo ele, é a figura do Espírito que quer a si, ao
pensado, como real), como figura capaz de revelar que a Liberdade é, pois, a idéia determinante do Espírito.
Por isso, o jusfilósofo identifica-a, em lapidada digressão lógica, como um elemento central na filosofia
hegeliana:

"O pensamento de Hegel seria vazio e nem poderia ser formulado sem a história; a matéria da história tem
seu ponto mais alto na vida política, no Estado. Sem o Estado é abstrato o pensamento de Hegel, vale dizer,
não dialético; isso o faria apenas mais uma filosofia, sem contudo oferecer à humanidade a grandeza de sua
criação. Ora, sem a Revolução Francesa não poderia Hegel desenvolver a teoria política do Estado
Contemporâneo tal como a concebeu: sistema convencional de realização da liberdade. Eis porque Hegel
reconhece na Revolução Francesa o momento histórico da realização da liberdade objetiva e subjetiva, bem
como do direito nela fundado, pois uma constituição foi elaborada segundo o conceito do direito, nela tudo
encontra seu fundamento. Pela primeira vez 'desde que o sol está no firmamento' o homem constrói a
realidade segundo o modelo do pensamento".[16]

A organização do capítulo nono de sua tese de cátedra parece nos indicar que Salgado vê no conceito de

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Revolução a chave para a explicitação do devir do Espírito em Hegel, até o atingir de sua meta: a Liberdade
no seu conceito concreto, O Estado Constitucional Contemporâneo. Tal leitura nos parece adequada, haja
vista que devemos considerar que a verdade consiste não somente no resultado, mas na totalidade (unidade
dialética) do devir e do resultado. Assim sendo, é com os olhos no seu pleno efetivar que Hegel põe em devir
o Espírito e, após percorrer as figuras da consciência, o faz percorrer novas figuras, justamente as do
Espírito (agora, não como figurações lógicas exigidas pela consciência, mas como efetividades históricas) em
direção à sua Verdade. Se o conceito de Revolução (e, mais especificamente, a Revolução Francesa) é a
chave para compreender o sentido da Liberdade efetivada (do Espírito em sua Verdade), o próprio Espírito é
posto no viés de sua formação, portanto, na perspectiva de suas figuras. Estas, ao se negarem, representam o
próprio Espírito negando dialeticamente a si e, ao assim proceder, apresentado os elementos (momentos)
indispensáveis ao revelar de seu conceito pleno.

Nessa perspectiva é que devemos entender a apresentação (a negação) das figuras da bela totalidade ética
grega (o Espírito Imediato) e do mundo romano (o Estado de Direito), como componentes do momento por
Hegel identificado como Espírito Verdadeiro, em que aparecem, respectivamente, tanto a objetividade da
substancia ética imediata, quanto a subjetividade da consciência da liberdade, porém, em ambos os casos,
num aparecer precário, sobretudo porque ainda inconciliável.

3. Da Consciência à Razão, Da Razão ao Espírito

A chave para a compreensão da Revolução e de seu papel na filosofia hegeliana é a passagem de uma
reflexão, até então dada apenas no plano da consciência (e, no máximo das consciências de si, na luta pelo
reconhecimento), para uma reflexão também no plano do Espírito e de seu auto-movimento histórico. Não
que sejam duas realidades separadas, pelo contrário. A luta das consciências de si pelo seu reconhecimento
(senhor e escravo), p. ex., é já movimento do Espírito. Porém, somente agora, entendido e desenvolvido esse
processo, é que o Espírito (e sua formação) ganham o primeiro plano.

Para uma correta compreensão dessa questão, bem como para uma necessária recapitulação de conceitos
essenciais a essa exposição, optamos por trazer à colação exposição feita por Salgado, em artigo publicado
em 1976, em que o autor procede a uma elaborada apresentação dos momentos da consciência e do
Espírito, correlacionando-os com o Aparecimento do Estado na 'Fenomenologia do Espírito' de Hegel[17].
Nesse artigo, o conceito de reconhecimento é considerado como elemento fundamental na fenomenologia e
por meio dele correlaciona-se consciência e consciência de si, para então identificar a razão e, por meio
dela, a passagem para o Espírito, que, por sua vez, se desenvolve em três momentos. Vejamos.

Começa o autor pela consciência, afirmando que somente ela pode ser efetivamente concreta, ou seja, "uma
realidade dialética da individualidade que é a realização do particular no universal e do universal no
particular", pois:

"sendo consciência do indivíduo, possui ao mesmo tempo a universalidade. Ela é a interiorização de si e de


toda a realidade ao mesmo tempo. Cada consciência é ela em particular ao mesmo tempo em que é toda a
realidade interiorizada.(...) Os animais e os outros seres em geral não possuem uma universalidade senão
externa. É o homem que lhes concede universalidade".[18]

Essa universalidade é dada pelo instrumento da palavra e por ser o homem universalidade interior, pois,
"envolvendo a dialética o conceito de negatividade, a consciência está capacitada para negar-se como
singular para alcançar o universal concretamente". Assim sendo:

"A Fenomenologia quer mostrar que a consciência, conhecendo-se, conhece toda a realidade. Disto a
consciência se dá conta pela experiência que faz no seu evoluir histórico, passando pela superação dialética
dos momentos mais abstratos aos mais concretos, até encontrar sua realidade completa, sua plena
concretude, na forma do Espírito, em que ela aparece como um 'eu que é um nós e um nós que é um eu'".
Ou seja, a consciência precisa deixar de ser universalidade apenas em si e revelar-se como tal para si mesma,
tornando-se universalidade concreta em si e para si. Mas, primeiramente, nessa caminhada é preciso desfazer
o dualismo sujeito-objeto, por isso nela "há um constante evoluir da natureza do objeto até que ele assuma a
forma do eu. Ao atingir o estádio em que a consciência se sabe como objeto de si mesma, assume ela a
categoria da consciência de si".[19]

Quanto à consciência de si, prossegue Salgado: "Consciência de si é a expressão que usa Hegel para
designar um momento da dialética descrita na Fenomenologia, em que a consciência sabe ser ela o seu
próprio objeto".[20]

Aqui, pelo conceito de ação, a consciência de si passa ao movimento da história na busca pela liberdade,
pois, sendo um eu, o homem pode negar-se como dado e empreender a criação em si e, no mundo, de um
novo ser; só por essa condição de saber-se como um eu é que pode empreender a luta pelo seu
reconhecimento como tal (livre) na dialética do senhor e do escravo e na dialética do trabalho, dela
decorrente, na qual o homem passa a constituir o mundo racional da cultura como resultado da ação do
trabalho, a obra humana. Porém o reconhecimento dado nessa dialética não será ainda reconhecimento
concreto. Para tal, não pode ficar a dialética apenas no plano da consciência de si. Vejamos com Salgado

"Até aqui a consciência se mostrou como consciência de si, isto é, como consciência particular. Ela agora
vai se mostrar como consciência universal. Vai passar pelo momento da Razão, em que ela sabe ser toda a
realidade (...) O aparecimento da razão é propiciado pela dialética do senhor e do escravo, exposta no
momento da consciência de si. A razão, como momento da consciência na sua experiência histórica, só é
possível porque o trabalho, ou o fazer do escravo, propiciou o aparecimento da obra. Na razão, a obra, a
criação humana, é posta como objeto da consciência. A consciência tem, pois, como seu objeto o seu
mundo. (...) Ela se busca, pois, no mundo que é obra dela, que é racional (...). A obra remete ao outro, o
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individuo que pense ter feito algo só para si na realidade realizou uma obra para todos os outros, como a dos
outros é também para ele. (...) A consciência, porém, experimenta que, como consciência individual, não
pode ela ser conteúdo do mundo e que só o coletivo pode operar a síntese concreta da consciência e do seu
mundo. A operação da Razão é, pois, afastar o individualismo. (...) O concreto é a totalidade dos indivíduos
integrados (...) Como consciência coletiva, a Razão compreende o seu mundo e se torna substância
espiritual. Se a substância espiritual pode ser a consciência de si do individuo, deve ser a consciência de si da
pluralidade dos indivíduos. Deve constituir-se não como 'cogito', mas como 'cogitamus'. (...) O cogito
cartesiano é abstração porque o 'eu existo' de uma consciência de si só é possível por um outro 'eu existo'.
Isto, porém, não significa que a consciência de si universal é um penso em geral. Ela é o 'nós' que unifica os
'eus', é a intersubjetividade pela qual os 'eus' se enviam através da obra humana."[21]

É assim que a razão sabe-se como mundo da história humana, o qual é sabido por ela como a substância
espiritual. Para Salgado, esse mundo, que é o Espírito, se desenvolve através de três momentos:

"A) O Espírito Imediato, cujas figuras históricas são a Grécia e Roma.

B) O Espírito estranho a si mesmo, figurado na Idade Média.

C) O Espírito certo de si mesmo, caracterizado pelo período de Napoleão, isto é, após a Revolução
Francesa".[22]

Interessa justamente a exposição da visão hegeliana acerca desse momento inicial do Espírito Imediato,
resultado do devir lógico da consciência, mas que agora precisa operar o seu próprio devir formador,
negando a si (dialeticamente) em direção ao Espírito Certo de Si Mesmo.

O homem livre, "ser para si independente que se constitui pelo agir transformador do mundo"[23], na
unidade do Senhor (independência) e do Escravo (trabalho), pode ser revelado em sua essência na dialética
da consciência, mas somente pode ser afirmado em seu conceito, enquanto efetividade, na dialética do
Espírito. É que, segundo Salgado ressalta posteriormente em sua tese de cátedra:

"Ao tratar Hegel da consciência, da consciência de si e da razão, (...) Trata-se de uma fenomenologia em que
o pensar aparece nos seus diferentes graus de relação com o objeto, do mais pobre ao mais rico e complexo,
considerando-se sempre que, em todos esses momentos e nas diversas figuras que o Espírito se manifesta na
história, se manifesta na sua totalidade. O Espírito é considerado, nos seus diversos aspectos, um processo
global que vai da consciência ao saber absoluto. Na verdade, é o próprio Espírito que faz a experiência de si
como consciência, consciência de si e razão".[24]

No plano da razão, a consciência sabe ser toda a realidade, posto que, tendo entrado no plano da
universalidade, sabe ser ela a "coisa mesma", o mundo por ela pensado e constituído, mundo que é obra sua
e que, portanto, é identidade consigo mesma na medida em que é realidade por ela objetivada, na negação do
mundo natural em sua imediatidade, operada pelo trabalho.

"Eis porque a Razão é, a um só tempo, pensar o mundo e o seu próprio mundo, incorporado ao processo de
humanização pelo trabalho que o escravo desenvolve sobre a natureza, conhecendo-a e conhecendo a si
mesmo, embora como consciência infeliz que se esvaziou da essência".[25]

Como vimos, no nível da razão o objeto da consciência é a própria obra humana, pensada
dialeticamente como obra de todos. Salgado afirma, nesse ponto, que "a consciência não é mais isolada,
remetendo-se para toda a obra humana comum, remete-se para a outra consciência". A "coisa mesma", a
obra humana, diversa da coisa natural, está impregnada de razão, é cultura. Na cultura, a obra, por mais que
produzida individualmente, por fazer com que a consciência individual se conheça como consciência no seu
mundo, abre caminho para a inter-relação das consciências de si. A consciência individual pode pensar a si
na sua relação com a sua obra, que é obra coletiva ao mesmo tempo, e como isso passa a ser consciência da
"pluralidade" das consciências de si. Isso opera a passagem do cogito ao cogitamus, advertindo Salgado que
"não se trata de um cogitamus em geral, análogo a uma vontade geral de um ente coletivo, mas do cogito de
cada um que é o cogitamus de todos". Para Salgado, esse momento da razão já é o próprio Espírito. Termina
o raciocínio citando Hegel:

"Com isso o conceito de Espírito já está presente para nós. O que para a consciência continua a se processar
é a experiência do que o Espírito é: essa substância absoluta que na completa liberdade e independência de
sua oposição, vale dizer, das diferentes consciências de si que são para si, é delas unidade: Eu que é nós, Nós
que é Eu".[26]

Por isso é que o Espírito, para Hegel, somente no ocidente poderá realizar sua auto-revelação, poderá saber
de si, em sua formação rumo ao seu em si e para si. Por isso é que o início dessa formação, o início das
figurações do Espírito Verdadeiro, dá-se no mundo grego, porque somente lá a consciência sabe de si como
consciência de si, somente lá a consciência pode começar o longo caminho da filosofia enquanto reflexão da
consciência de si sobre si mesma e, a partir daí, pensar a interação das consciências de si no mundo que é
obra delas e de cada uma ao mesmo tempo e, com isso, pensar-se como consciência de si universal. O
Espírito exige, por isso, o Estado como momento de sua efetividade, exige a História, como momento de sua
processualidade e exige a Filosofia, como momento de sua pensabilidade, pela qual pode saber de sua
universalidade e do processo histórico de seu vir a ser como tal. Por fim, conclui Salgado:

"A Fenomenologia desenvolve a tese segundo a qual a consciência, por meio de sua experiência com o
mundo e consigo mesma, se eleva à consciência de si, não isolada, mas universal, ou seja, ao Espírito que é o
absoluto. A Fenomenologia deve provar que o 'Absoluto é o sujeito'. Para provar isso, o idealismo hegeliano
desenvolve um conceito de Espírito que envolve três aspectos: um político, um histórico e um filosófico. O
Espírito é um nós, uma consciência de si universal, cujo momento de efetividade é o Estado; o Espírito é
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ainda, história, pela qual a sua essência é um tornar-se o que é; finalmente, o Espírito é o saber desse tornar-
se universal e do processo pelo qual ele se torna saber se si mesmo: é sujeito universal."[27]

4. O Espírito e o Estado

O Espírito é o reconhecimento concreto, não abstrato, da consciência de si como sabendo-se de si enquanto


sendo toda a realidade, somente possível porque pensa a si como sujeito universal, como um eu que é um
nós. É no Estado que se dá esse reconhecimento universal e concreto, que efetiva a consciência de si como
um nós (que tem o eu como elemento suprassumido, nunca eliminado). Salgado observa, em O
aparecimento do Estado na Fenomenologia do Espírito, que, no Estado, pensado em seu conceito, "o
indivíduo existe para o Estado e o Estado para o indivíduo". O Estado "realiza a plena concreção dos
indivíduos [das consciências], através do seu reconhecimento que por ser universal, isto é, um
reconhecimento de todos, não é um reconhecimento abstrato". Nesse mundo conceitual em que "o ser-para-
si do indivíduo comunga com o ser em-si da coletividade, em que se afastaram todas as diferenças ou
oposições, em que o Estado Universal se volta para o particular e o particular tem o seu ideal e o seu
trabalho dirigidos para o Estado, nesse mundo é que se mostra o Espírito como um nós que é um eu e um eu
que é um nós"[28]. Só no Estado, portanto, se dá o pleno reconhecimento, tanto da subjetividade, quanto da
unidade da coletividade.

Tal plenitude do Espírito no Estado somente ocorre após todo o processar histórico que se dá no ocidente
até à Revolução e ao Terror e sua superação na obra filosófica do idealismo alemão. Novamente, o Espírito é
afirmado na interação entre o político, o histórico, e o filosófico. De modo que é a história do Estado, ou o
Estado pensado em seu devir e resultado histórico, é que revela o Espírito em sua verdade enquanto sujeito
universal: realidade que pensa a si mesma na subjetividade do saber filosófico "que, entretanto, não seria
possível sem a realidade política da Revolução". Assim, para Salgado:

"Hegel, na Fenomenologia, continua colocando no Estado o momento de maior realização do Espírito no


mundo objetivo. Com efeito, esse mundo objetivo, por meio da experiência da consciência, passou da
natureza para a história, que traz na sua interioridade a própria natureza superada na experiência da
consciência. Uma vez que a história é o seu objeto e é ao mesmo tempo sua obra ou a consciência, não na
singularidade, mas na forma da razão objetivada, é na história que se dá a forma mais racional da expressão
objetiva do Espírito, o Estado".[29]

5. A História do Estado como História do Espírito Ocidental

Como visto, o estudo do devir do Espírito rumo ao saber de si mesmo em sua dialeticidade totalizante,
inicia-se em Hegel, a partir do Espírito Imediato correspondente à Cidade Antiga do mundo greco-romano.
Seu destino realiza-se igualmente nas figuras ocidentais do Império Romano, da organização política da
Idade Média (marcada pela consciência infeliz do cristianismo), Espírito Alienado de Si Mesmo. Daí, segue o
Espírito em direção à figura do Iluminismo, da Revolução, e da experiência do Terror, até alçar a forma do
Estado Constitucional Pós-Revolucionário, Espírito Certo de Si Mesmo. Assim, a história do Espírito
confunde-se com a história do Ocidente e a razão disso está justamente na já mencionada condição de a
cultura ocidental ser o lugar da experiência da consciência rumo à reflexão sobre si mesma: a Filosofia.

Em A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, Salgado define a noção de experiência da consciência


nos seguintes termos: "processo pelo qual a consciência conhece ou faz a experiência do conhecimento,
primeiro do objeto fora de si e depois do conhecimento de si mesma, até alcançar o momento em que se
revela como um nós ou razão".[30]

Ora, acreditamos que essa é a expressão madura do que se convencionou chamar de passagem do mito ao
logos, operada pelos gregos.

Essa forma de pensar, que não opera mais na forma de "representações religiosas, mas na esfera do pensar"
conceitual, faz do mundo greco-romano "o começo próprio da história do Espírito e o fim que o seu esforço
e trabalho alcançou no longo período de sua pré-história, que constitui o tempo anterior ao nascimento da
civilização ocidental"[31], pois não há história, sobretudo história do Espírito, sem a capacidade reflexiva da
consciência de si. Por isso, Salgado afirma que, para Hegel, somente com a razão é possível:

"falar numa continuidade histórica dentro das diferenças que ela produz e de uma unidade do Espírito. Toda
a vida da cultura ocidental é para Hegel, vida do Espírito, é uma unidade idêntica a si mesma e que se
desenvolve a partir do seu interior, pondo as suas próprias diferenças. O mundo ético antigo é já o Espírito
na sua totalidade e unidade, preparado para a inflexão do conhecer de si mesmo, pondo-se como seu próprio
objeto na história do Ocidente. Somente essa história pôde mostrar-se como unidade do Espírito e como
elemento do seu próprio conhecer, impondo-se por isso mesmo como civilização planetária".[32]

Se a razão já põe o próprio Espírito, "embora como em si apenas"[33], é, no mundo grego, onde aparece a
razão, que se inicia também a trajetória da passagem do Espírito Imediato (que, apesar de saber de si como
sendo toda a realidade efetiva, não consegue tratar e reconhecer a individualidade inerente a si, porque
mergulhado na unidade imediata da substancia ética efetiva) ao Espírito Certo de Si Mesmo (onde a unidade
da objetividade e da subjetividade dá-se na dialeticidade do reconhecimento tanto do eu quanto do nós). Tal
trajetória inicia-se, justamente, pela introdução da individualidade na totalidade harmônica da vida ética
antiga, o que opera, nela, a sua divisão. A partir daí, as figuras do Espírito suceder-se-ão até o retorno
(suprassumido) à idéia de harmônica totalidade ética, que se dá no conceito acabado de Estado (como
Estado Ético Mediato).

Em Hegel, o Estado é o seu vir-a-ser, seu devir e seu resultado; é o caminhar do Espírito. O Estado
Hegeliano é, portanto - explicado o movimento do seu caminhar e os modos desse movimento (negação,

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exteriorização, alienação, luta, reconhecimento) - o reencontro com o ideal ético grego e sua unidade. Mas é
reencontro com esse passado não enquanto volta, retorno a ele, nem enquanto "simples translação"[34] de
suas características ao presente; mas enquanto elevação, suprassunção, do mesmo no movimento desse
reencontrar. Sabemos também que o reencontro com essa totalidade só se dá pela mediação, na histórica, da
individualidade, que aparece primeiro na negação imediata dessa totalidade imediata, na dilaceração que dela
opera o Império Romano[35], iniciando-se, assim, o movimento que vai dos gregos ao período
contemporâneo.

O devir do Estado seria, então, a história do aparecer da individualidade livre e da luta pelo seu
reconhecimento, não mais abstrato, mas concreto (universal e efetivo), o que implica numa sua harmonização
mediata (e não pertencimento imediato) com a ordem objetiva (substancialidade ética).

6. O Espírito Imediato - O Mundo Ético Grego.

Recapitulando o exposto até agora, cabe ressaltar que:

"Desenvolvidos e ultrapassados os momentos de separação da consciência de si e da substância, a


consciência vai alcançar a posição do espírito, isto é, 'a essência que é em-si e para si'. A categoria (unidade
do ser e do eu), que se tornou substância, após desenvolvida pela razão, torna-se então sujeito. A substância
que é sujeito é o espírito".[36]

Salgado afirma que "a primeira manifestação do Espírito como mundo ético é a da harmonia da consciência
de si e da substância, a essência que se manifesta na organização política da Cidade Estado grega", em que se
realiza a unidade do eu e do nós de modo imediato, haja vista que o cidadão, totalmente integrado na
comunidade, tinha sua vida privada identificada com a vida pública, "fim último e objeto mais valioso da vida
do cidadão"[37]. Nesse momento, a consciência que está certa de si como sendo toda a realidade, tem um
conhecimento imediato disto. Nesse momento, "o indivíduo sente que o seu eu é aquela totalidade do mundo
humano e que este mundo humano é todo voltado para ele. O cidadão na cidade grega era um ser livre. Livre
porque a sua vontade se confundia com a da sua cidade".[38]

Originariamente, há "uma unidade de fins e uma harmonia interna na substancia ética pela qual Estado e
família não se opõem, ao contrário, a família realiza a integração dos seus membros nos fins do Estado", por
meio da religião. A substância ética é, ao mesmo tempo, harmonia de todos da comunidade e é cuidado dos
mortos e zelo pelo seus membros, pela individualidade. Essa substância ética que é una traz, porém, as
diferenças da lei humana (identificada com o Estado) e da lei divina (identificada com a Família), que
subsistiam em convivência harmônica, mas que já estão postas como diferença (em potencial). Instalada está
uma oposição necessária no seio da substância ética que se revelará como cisão não só na própria substância,
mas também como cisão entre ela e a consciência de si. Isto se dá porque a consciência de si adere a uma das
leis e pensa ser ela a única substância ética. Reconhece-se validade apenas a uma das leis que representam a
divisão da substância (lei humana ou divina). Cada uma dessas esferas passa a reivindicar, com exclusividade,
"a verdade da totalidade da substância ética"[39]:

"O conflito se instaura, propriamente, no momento em que uma das leis é desconhecida em benefício da
outra. Para representar esse conflito Hegel tira da Antígone de Sófocles uma das mais belas imagens da
Fenomenologia. (...) A substância ética entretanto é tanto a família a quem incumbia zelar pelo morto, (...)
como o Estado. O conflito é pois uma invasão do Estado no âmbito privado de competência da Família e
uma invasão da Potência da Família no âmbito do Estado.(...) A origem do conflito coloca-se da mesma
forma que se originou a dialética do senhor e do escravo, na luta, ou seja, na ação, que é o elemento que
introduz a divisão, a diferença, nesse mundo homogêneo. A ação nega o dado originário do mundo ético [a
unidade imediata], o seu em-si, determinando o processo da sua dissolução.".[40]

Quanto à dualidade representada por Antígona e Creonte, Salgado afirma que "num e noutro caso, é o
indivíduo que age em nome da substância ética total", não consciente da divisão operada e, portanto, da
parcialidade inevitável de sua ação, não consciente, portanto, "de ser essa reivindicação da totalidade da
substância para a sua esfera ética uma invasão na outra esfera", posto que não reconhece a outra como válida
na sua respectiva esfera de competência[41]. Daí, a negação recíproca de validade. Daí, o destino da culpa
objetiva, posto que a ação que atende a uma lei necessariamente gerará a incidência (reação) da outra lei, por
ser ela também a substância ética, mesmo que não reconhecida.

Cabe evidenciar o papel do elemento ação nesse processo de dissolução:

"A ação é pois a responsável pela dissolução do mundo ético. Ela introduz a divisão nesse mundo e suprime
a imediatidade do Espírito. Agindo, o ser humano responde pelo resultado da sua obra. Ao negar valor ético
à outra lei, a consciência de si não consegue eliminá-la, posto que ela é também a essência ética. Assim, ao
operar e realizar uma lei a razão suscita o aparecimento de outra lei, pois, as duas leis é que são a
essência.".[42]

Ocorre que também "a tentativa de superação do conflito encontra-se em um outro tipo de ação", do Estado,
que procura restaurar a unidade da substância pela ação da guerra, por meio do que o Estado submete
novamente o membro da família à sua lei (à comunidade) e, assim, dá nova unidade à substância ética.
Ressalta Salgado que, porém, essa unidade "é sua própria desintegração como mundo ético homogêneo",
haja vista que, "ao tirar o indivíduo da família", o Estado desintegra-a "e, ao desintegrá-la, dissolve a própria
base de sua essência como mundo ético harmônico", pois sem a mediação do indivíduo com o Estado
operada pela Família, sem a função formadora, educativa, integradora, cívica da família, a unidade imediata
da vida ética grega se dissolve, "o próprio Estado desintegra-se"[43]. Com isso, a ação da guerra "determina
o aparecimento do cidadão do império como um simples indivíduo isolado". Resumindo:

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 5603
"O fim do movimento das potências éticas em que se embatem uma contra a outra será o declínio de ambos
os lados, Família e Estado, pois que nenhum é mais essencial do que o outro. O resultado final será a
destruição da família como essência ética pelo Estado que busca com a guerra unir as individualidades num
todo. Destruindo, porém, a sua base, isto é, a família, o Estado destrói a sua própria essência; destrói-se a si
mesmo".[44]

Assim, "o espírito aparece como uma multidão de pontos de indivíduos isolados", que surgem como
"substâncias na qualidade de ser-para-si singular", como "essências autônomas e atomizadas" a suscitar "uma
ligação por uma universalidade formal (o direito abstrato)", surgindo uma homogeneidade identificada na
noção de pessoa, que, sem identificação orgânica, produz uma vinculação meramente abstrata. Então:

"Uma igualdade formal dos indivíduos se estabelece pela lei, agora algo abstrato. No mundo ético, o
universal positivo, a essência, é a Família e o Estado. Com a dissolução do mundo ético o indivíduo tem a
certeza que de ele é o universal e não a comunidade que é negada como o mundo ético. O que fica no lugar
do mundo ético é o individualismo, cuja própria dialética provoca o aparecimento do imperialismo".[45]

7. Dissolução do Espírito Imediato - O Estado de Direito; A Pessoa

Posto, então, está o Estado de Direito, que deve ser entendido nesse momento do Espírito como Estado de
legalidade atributiva abstrata[46], ou Estado de Juridicidade.

No mundo ético grego "não havia a independência da consciência de si com relação à comunidade". Havia a
unidade imediata desses elementos. Dissolvida a comunidade, a essência se concentra no eu, renunciando a
realidade efetiva e possuindo apenas "o pensamento de sua independência da comunidade"[47]. Assim:

"Com a dissolução do mundo ético o eu concentra em si toda a essência que pertencera à comunidade e se
afirma essência em si e para si. Com essa afirmação individual de cada consciência de si tem-se que cada
indivíduo, como se resumisse todo o Estado, é pessoa de direito, ou seja, indivíduo a que se reconhece todos
os direitos; por isso é reconhecido como uma universalidade formal, como igual perante a lei".[48]

O direito abstrato promove uma unidade puramente externa dessa pluralidade de pessoas com
"reconhecimento sem conteúdo". Assim, "a independência puramente abstrata" do direito "gera dependência
real". Se todos são iguais perante a lei, todos são iguais abstratamente. Portanto, sendo igualdade perante a
lei "é em última instância igualdade de acesso à propriedade, mas não igualdade do direito de
propriedade".[49]

A igualdade universal desfaz-se na contingência, haja vista não haver nenhuma vinculação orgânica dos
indivíduos. "Com efeito, a propriedade tem sua origem nos fatos contingentes da ocupação, da herança, etc."
Assim, "a liberdade no Estado de Direito traduz-se in concreto na posse, que tem como forma abstrata,
como forma jurídica, a propriedade privada"[50]. A contingencialidade da posse traduz a efetividade da
consciência de si individual, por meio do que o eu se manifesta efetivamente como o meu. Essa
contigencialidade permite que, no uso de sua liberdade, os indivíduos se distingam. Por isso, "a igualdade é
de pessoas abstratas, pois o território da propriedade [no qual ela se manifesta] é o território da
desigualdade".[51]

Ocorre que, "desse caos individualista [decorrente da ausência da unidade orgânica e do fato de que cada
indivíduo reivindica para si toda a substância ética] resulta a alienação dessa substância ou o refluxo dessa
essência ética num único indivíduo" capaz de dar unidade à pluralidade de todos, mas que, ao fazê-lo,
resume, em si, o Estado, restando todos os demais indivíduos apenas como pessoas de direito, vazias de
essência ética, porque vazias de participação na vida do Estado. "O Estado é assim personificado na figura
do Imperador, ao passo que os indivíduos são apenas súditos e sujeitos de direitos meramente privados".[52]

Assim, a igualdade e a liberdade interior do estoicismo, posto que "liberdade do pensamento pura e
simplesmente, sem efetividade", é abstrata e, como tal, manifestou-se na esfera do Espírito, na forma externa
da pessoa de direitos que, ao pôr a liberdade como conteúdo externo na igualdade abstrata perante a lei e na
proteção de uma propriedade contingencial, realiza de modo também abstrato a liberdade. Então, nesse
primeiro momento de seu aparecer:

"O mundo do direito é um mundo contraditório entre o uno e a multiplicidade, entre a igualdade dos
particulares no plano do direito privado, e sua desigualdade no plano do direito público ou político. Esse é o
mundo dividido do direito, decorrente da dissolução da polis, dissolução da harmonia ética entre os
indivíduos da área privada e o poder político".[53]

Salgado explica que, para Hegel, "o Estado de direito romano trouxe de positivo o reconhecimento do
homem como pessoa", porém o filósofo alemão vê nessa afirmação inicial da individualidade um paradoxal
esvaziamento do indivíduo, posto que "no direito privado realiza seu conteúdo, mas externamente; no direito
público, nem sequer tem um conteúdo, por ter sido alienada a sua essência na pessoa do imperador". E
conclui:

"O orgulho do Direito Romano está em ter criado o conceito de pessoa de direito e dado aos indivíduos a
igualdade, segundo a qual cada um pode ter uma propriedade e por ela realizar sua liberdade, embora o
conteúdo real dessa liberdade fosse exterior. Entretanto, no Império, o conteúdo real da individualidade
aliena-se no Imperador. Essa perda da essência da vida política do indivíduo determina uma nova dialética: a
conquista da individualidade plena".[54]

8. Considerações Finais: O papel do Estado de Direito Romano na Formação do Espírito

O papel do Estado de Direito em Roma pode parecer, aos olhos de quem faz uma leitura apressada
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 5604
da Fenomenologia do Espírito, de menor valor na formação do Espírito rumo ao Estado Constitucional
Contemporâneo. A ênfase dos interpretes de Hegel sobre a questão do intento de resgate da totalidade
helênica que esse pensador empreendia acabou por deixar, por vezes, nublada na literatura a esse respeito a
importância fundamental de Roma no processo ético-político ocidental. Essa importância consiste
basicamente em introduzir o momento dialético do Direito (em suas estruturas fundamentais pautadas na
bilateralidade universal-atributiva, na exigibilidade e na procedimentalidade), revelado na experiência jurídica
romana, como momento de chegada, no processo de interação dialética da consciência moral e da
consciência política. Isto se dá porque a veiculação da essência ético-política na forma de direito subjetivo,
marca, no aparecimento da pessoa de direito em Roma, o aparecimento da estrutura de realização plena da
liberdade como consciência livre e independência exigível, que irá nortear, após toda a dialeticidade
processual dessa questão desencadeada na história do ocidente, o conceito do Estado Constitucional (Estado
Ético pleno, mediatizado pelo conceito de direito; Estado em que, portanto, o bem-comum e o bem de cada
um são postos como direitos exigíveis e oponíveis).

Em O Estado Ético e Estado Poiético, Salgado, manifesta sua plena ciência da indispensabilidade do
conceito de juridicidade, para a realização plena da tarefa do Espírito rumo à Liberdade concreta:

"É na constituição que se dá o encontro do político (poder) e do jurídico (norma) e é na constituição


democrática contemporânea que se dá a superação da oposição entre poder e liberdade. E isso na forma de
uma organização do poder e de uma ordenação da liberdade, qual se mostra como ordem jurídica ou
liberdade objetivada".[55]

Salgado afirma que o direito manifesta uma das faces da realidade ética, que na Grécia era pura unidade
imediata, a unir tudo na imediatidade do político. Assim:

"O Estado Romano não perde a característica ética. Entretanto, o ethos grego, que configurava todo um
comportamento da comunidade por regras e princípios, assume uma característica específica. O Estado não
tem apenas de formar o indivíduo para a felicidade, mas para a comunidade, para servi-la. A dimensão ética
do Estado concentra-se em função de uma técnica específica: o Estado garante aos indivíduos o justo, e o
justo é o direito de cada um. Garantir o direito de cada um, essa era a tarefa do Estado ou sua finalidade
mais importante com relação ao indivíduo.

Isso mostra que, analogicamente à resposta dada pelos gregos à crise do ethos com a ética (Lima Vaz), o
romano responde com o direito a essa crise ou ruptura. O justo, que tinha no sujeito virtuoso o seu pólo,
passa para o pólo oposto, o sujeito de direito e não apenas de dever moral".[56]

A relevância do papel do Estado de Direito Romano na formação do Espírito, pode muito bem, apenas pelo
já exposto aqui, ser inferida da obra do próprio Hegel em boa parte de sua significação. Porém, já tivemos a
oportunidade de expressar que é em Salgado que o legado de Roma pode ser explicitado na cultura ética
ocidental. Ao comentarmos sobre a mais recente obra de Joaquim Carlos Salgado, A idéia de Justiça no
Mundo Contemporâneo, já tivemos a oportunidade de afirmar que:

"A obra é nitidamente legatária do instrumental teórico hegeliano, mas vai além do pensamento de Hegel.
Em nosso entender, já comungado com o autor, o que Salgado faz é uma atualização do pensamento ético
hegeliano, operando três grandes avanços: primeiro, a atualização estrito senso da filosofia ética de Hegel,
fazendo essa interagir com os acontecimentos históricos fundamentais de nossa época; segundo, um resgate
do direito como momento máximo do ético, feito por meio de um aprofundamento da própria filosofia ética
hegelina em torno do fenômeno jurídico, possível por ser Salgado, além de filósofo, um jurista, qualidade que
Hegel não podia sustentar; e em terceiro lugar, um resgate do papel de Roma da Construção do Espírito
Ético Ocidental. Salgado faz 'justiça' à jurisprudência romana e a seu legado para o ocidente, retificando o
papel dado por Hegel a ela. Em verdade, o resgate da jurística romana e sua contribuição para o apresentar
da racionalidade da justiça é o grande trunfo do autor, aquilo que possibilita explicitar o Direito como
máximo ético".[57]

Necessário se faz explicitar o caráter radical, determinante, inovador e profundo da postura salgadiana acerca
o papel de Roma no ethos ocidental e na construção o pensamento político contemporâneo, em que o
Direito assume um papel de destaque. Em A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, Salgado evidencia
a importância para a processualidade ético-política ocidental da realização que os romanos alcançaram no
plano jurídico, bem como resgata a relevância e imprescindibilidade dessa realização como componente
suprassumido do Estado Ético Mediato Contemporâneo:

"O Estado de Direito contemporâneo é o resultado do processo ético que dá primazia ao direito, ao por
como seu fim a sua realização. O direito é o momento da verdade ética, em que o processo se conclui, a
partir do momento da moralidade, mediante o momento do político. Recupera-se, assim, a estrutura ética da
cultura romana, que dá primazia ao direito, à pessoa de direito, e não a grega, que releva a política e realiza o
cidadão como o que tem função, não direito, na polis".[58]

A universalidade do Direito como elemento possibilitador da unidade entre liberdade e poder revela-se já em
Roma, apesar de não poder lá atingir sua plenitude. É que, na experiência jurídica romana:

"A universalidade do direito ganha a dimensão formal da regra objetiva, enquanto lex, posta pela voluntas da
autoridade, a dimensão material ou axiológica do ius, revelada pela reflexão do prudens (sábio) e a dimensão
dinâmica da actio, enquanto direito do sujeito. Falta-lhe ultrapassar o plano do conteúdo do direito, ainda
privado, para alcançar a universalidade desse conteúdo, como tributividade universal, na forma dos direitos
fundamentais. Desse modo, na jurística romana surge a noção e a institucionalização do sujeito de direito
universal, cujo trajeto histórico é demarcado no rumo da consciência jurídica dos direitos fundamentais e sua
tributividade universal, pela qual se revela o sujeito de direito universal como sujeito universal de direitos
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 5605
universais, isto é, a todos reconhecidos, na Revolução Francesa, e a todos garantidos, não só pela
instrumentalização da actio, mas também pela dos direito políticos".[59]

O pensador mineiro inova a leitura do caráter e do papel do Estado Romano no devir ocidental, dando-lhe
um viés essencialmente ético. Mas um viés ético dado pela forma do direito. Para Salgado o direito é o
critério do exercício do poder em Roma. Nem a existência histórico-cultural da escravidão[60], nem a
presença culminante da figura concentradora do Imperador, eliminam o papel do direito como critério último
do exercício do poder e do juízo sobre o agir político e social em Roma. Salgado evidencia tal assertiva,
primeiro considerando que, em Roma, "o poder não vem da divindade, mas do povo, e por um ato jurídico
específico: a Lex regia, na Monarquia, e a Lex de imperium, no Império". Afirma, então, que de ínício,
"nesse sentido [formal], o poder em Roma é juridicamente legítimo".[61]

A limitação de poder, na descrição de funções e competências constitucionais também é um elemento


presente na experiência político-jurídica de Roma. Salgado evidencia tal característica ao afirmar que, para
Cícero, a República modelar dentre os Estados de sua época era a romana, visto que encerrava uma espécie
de organização tripartite do poder: de um lado "o senado, que representa a nobilitas romana, cujo poder é
representado pela tradição e fundado na liberdade", visto que era a autoridade advinda da experiência, e não
a mera violência, que validava e efetivava a adesão às determinações senatoriais, representando "uma
dimensão qualitativa do poder"; de outro lado "o povo, cuja dimensão se legitima quantitativamente" nos
comícios e assembléias romanas; e de outro ainda "o magistrado, cujo poder se legitima
representativamente". Assim sendo, "há um conserto dos três pilares da República: o populus (potestas), o
senatus (autorictas), e o magistratus (imperium)", por meio do qual o poder é exercido em Roma de formal
compartilhada e procedimentalizada, posto que juridicamente organizada.[62]

Estas características da estrutura política de Roma evidenciam o papel fundamental que o direito possui
enquanto meio de exercício e organização do poder. Em Roma a legalidade constitui o elemento lógico-
processual do exercício do governo. Esse é um ponto de partida fundamental da idéia de Estado de Direito.

Mas em Roma também a dimensão teleológica do Estado terá o direito como o seu critério. Para Salgado, o
fim do Estado em Roma é o Direito, vez que é justamente a efetivação, garantia e fruição dos direitos
atribuídos aos sujeito o critério máximo do agir em Roma. Em Roma, o bem comum se afirma como bem
jurídico:

"A pessoa de direito, como universalidade abstrata, universaliza-se concretamente pelo bem jurídico que lhe
é atribuível; o bem jurídico por sua vez, superando a particularidade do interesse, encontra sua dimensão
universal na positivação e na universalidade material, esta reconhecida como valor por todos reconhecido e
por todos atribuído ou atribuível. A pessoa nesse momento é, então, sujeito de direito universal, e assim,
singularidade ou universalidade concreta. Com efeito, a dialética da pessoa processa-se com o bem jurídico
até que este se revele como universalidade material e formal (valor universalmente revelado e declarado) e
aquela pela mesma forma até alcançar a universalidade concreta como sujeito universal de direito universal,
que conclui o estágio último do tempo do espírito do Ocidente, na forma de tribuição e fruição de direitos
fundamentais.

Essa dignidade que traz ao indivíduo a noção de sujeito de direito, construída a partir do direito romano, só
foi possível, no seu pleno desenvolvimento, com o advento do Império, cuja natureza universal fez com que
se consolidasse no indivíduo, embora não partícipe do exercício do poder, a sua personalidade jurídica
mediante a dimensão ética do Estado, vista claramente na preocupação com administrar a justiça"[63]

Note-s e que o sentido de "administrar a justiça" nesses dizeres de Salgado é no sentido de prover, garantir,
dar a cada um o seu direito. Ademais, a compreensão do Direito como fim do Estado em Roma passa pela
compreensão de que para o romano o ius é mais do que a lex:

"O Ius e: a) o que deve ser determinado pela razão e eleito pela vontade; b) o que é determinado
efetivamente pela vontade; c) o que deve ser feito pelo devedor ou sujeito passivo da relação jurídica. Ou,
ainda, ius é: a) o que deve ser atribuído pela razão; b) o que é atribuído pela vontade; c) o que pode ser feito,
reivindicado ou exigido pelo titular do direito. Ius é enfim o que dá o conteúdo de racionalidade à Lex, ao
senatusconsultum, ao plebiscitum, às constituitiones, ao edictum, aos responsa prudentium e mesmo aos
mores. [...] A prescrição normativa tem em vista estabelecer um dever de praticar ao omitir um ato, mas com
fundamento em uma ratio, o bem jurídico do outro. É o direito como bem jurídico a resguardar que faz a
regra, não o contrário"[64].

Em Roma, ao contrário do que muitas leituras apressadas desse importante momento do ethos ocidental
poderiam sugerir, "o Direito não era subordinado à política", a norma jurídica posta pela voluntas do poder,
deveria corresponder e adequar-se à ratio jurisprudencial. Assim, o sujeito político punha a norma em Roma,
mas não o fazia detendo um arbítrio ilimitado sobre o conteúdo da norma. Era antes limitado no ato de
determinar o conteúdo das leis, a partir de uma exigência de racionalidade advinda no direito pensado e
descrito conceitualmente, a partir da experiência social, em discursos jurisprudenciais[65].

Tanto na elaboração da norma, quanto na aplicação, a idéia de respeito aos parâmetros juridicamente
estabelecidos norteia a atividade essencialmente prática da jurisdição romana. Daí que o Estado romano é
também pautado no elemento da segurança jurídica, outra componente fundamental do conceito
contemporâneo de Estado de Direito. Mais que isso, em Roma a segurança jurídica não é pensada apenas em
seu aspecto formal, mas como um valor material do Direito. É justamente em razão desse elemento que
Salgado afirma que Roma é o primeiro modelo de Estado de Direito. Vejamos:

"A segurança jurídica pressupõe a estrutura do Estado de Direito. O primeiro modelo de Estado de Direito é
por isso o romano. E Estado romano é ético por excelência no sentido de realizar e proteger o direito. Desse
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modo, em Roma, o direito é a medida da política, a lei o limite do poder, a razão a ordenação da vontade. O
Estado de Direito moderno, na concepção positivista, é o que se limita pelo seu direito. É apenas formal,
porque a vontade soberana do Estado não tem limite, já que é Estado criador do direito e a sua limitação
decorre da sua boa vontade à autolimitação.

O Estado romano é Estado de direito material, pois o direito é preexistente ao poder, à regra posta pelo
poder".[66]

Por esses motivos é que afirma conscientemente Salgado que:

"Tanto a soberania como poder supremo (de certa forma), mas que se divide na forma de competência para o
seu exercício, quanto o conceito de Estado de Direito material, este entendido como o Estado que declara e
realiza os direitos fundamentais, após a Revolução, estão presentes no Estado de Direito romano, na medida
em que este tem como finalidade efetivar o direito, que é limite de todo o poder"[67]

Assim, conclui o pensador mineiro que:

"O Estado romano, sendo um Estado de Direito por ter o direito como medida, atinge um momento de
racionalidade que os outros povos não alcançaram. [...] A primeira forma de racionalização dessa vontade
formal, abstratamente racionalizada porque universal, é a fundamentação objetiva da decisão na norma
externa; em Roma, na lei; fundamentação objetiva no sentido de não arbitrária ou subjetiva e de
previsibilidade das conseqüências de direito. [...] A racionalização é, ainda, a busca da fundamentação das
decisões jurídicas em elementos objetivos, como a lei e os fatos e, finalmente, a valoração racional dos fatos
e da conseqüência que o direito lhes atribui, estabelecendo um critério reflexivo de construção do conteúdo
da lei, que se põe por um ato de vontade, mas não se justifica (portanto não encontra seu valor) no próprio
ato de vontade".[68]

Pode-se concluir que no pensamento salgadiano temos em Roma um Estado de Direito, enquanto Estado de
Juridicidade, no qual o exercício do poder se dá na forma da lei e o fim do poder é a atribuição e garantia dos
direitos. O que faltou a Roma, , é o conceito do Estado Constitucional de Direitos Fundamentais, pois este
dependeria de outros momentos que dali vieram, conceito esse que apareceria no ocidente justamente a partir
do devir da história europeia, posto em processo dialético de construção rumo aos direitos fundamentais pelo
contributo central dado por Roma. Sabemos, portanto, que a estrutura do Direito permite a construção do
Estado Ético Contemporâneo e que tal estrutura surge em suas categorias fundamentais de existência e de
essência no mundo romano. O movimento de negação do Espírito imediatamente certo de si na Polis Grega
encontra, em Roma, uma passagem fundamental para a compreensão plena do conceito de Estado, de
Liberdade e de Justiça. No mundo contemporâneo, a realização de uma Idéia de Justiça passa
necessariamente pela declaração daquilo que se entende objetivamente como justo no plano de sua
positivação como Direito Fundamental e, após isso, pela efetivação dessa justiça por meio da fruição desses
direitos por todos os seres humanos. A estrutura do Direito é a forma de objetivar e garantir essas medidas
de justiça que se revelam no ocidente na forma de direitos humanos e o aparecimento dessa forma de
compreender juridicamente a Idéia de justiça se dá justamente em Roma, momento indispensável à
compreensão do conceito de Estado Ético ocidental, pautado na liberdade em seu sentido concreto.

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[1] Cf. SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996, passim,

[2] No sentido atribuído por Heidegger. INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Trad. Luísa Buarque de
Holanda. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

[3] No sentido atribuído por Ortega e Gasset. Cf. ORTEGA Y GASSET, José. História e Espírito. In: Kant,
Hegel, Dilthey. Madrid: Revista de Occidente, 1958, p. 95-109.

[4] A compreensão e explicitação do Direito como momento privilegiado do Espírito e da vida ética
ocidental é uma das importantes contribuições de Joaquim Carlos Salgado. Cf. SALGADO, Joaquim Carlos.
A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo: fundamentação e aplicação do direito como maximum ético.
Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 1-19.

[5] Cf. FERREIRA, Mariá Brochado. Consciência Moral e Consciência Jurídica. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002, p. 43-81.

[6] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 37-40.

[7] Cf. FERREIRA, Mariá Brochado. Ética e Direito: a eticidade do fenômeno jurídico. São Paulo: Landy,
2006, p. 119-95.

[8] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 50-67.

[9] Cf. PINTO COELHO, Saulo de Oliveira. Introdução ao Direito Romano: constituição, categorização e
concreção do direito em Roma. Belo Horizonte: Atualizar, 2009, p. 22 et seq.

[10] Estamos nos referindo especificamente à passagem correspondente aos parágrafos 192 a 230 da
Fenomenologia do Espírito, em que está em comento a questão da liberdade da consciência de si nas figuras
do estoicismo, do cepticismo e da consciência infeliz. Trata-se de uma referência à consciência estóica que
pode ser identificada com o pensar romano.

[11] Veja-se, a esse respeito, por exemplo, a leitura de Kojève, na qual o mundo romano aparece como pano
de fundo dos momentos da consciência estóica, da consciência céptica e da consciência infeliz [cf. KOJÈVE.
Introdução à Leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002, passim]. Nossa leitura distancia-se da
posição de Kojève, pois tentamos reconhecer, no mundo romano, um momento importante do devir
fenomenológico do Espírito, fato para o qual Kojève não se ateve. Ao nosso ver, no mesmo erro incorre
Timmermans [cf. TIMMERMANS. Hegel. São Paulo: Estação Liberdade, 2005, passim].

[12] Parágrafos 477 a 483, referentes à exposição do "estado de legalidade".

[13] Sobre a importância do ideal da Polis Grega na obra de Hegel e sobre a sua tomada de consciência do
acerca da irredutibilidade do mundo moderno ao mundo antigo, ver a obra da Bernard Bourgeois. Cf.
BORGEOIS. O pensamento político de Hegel. São Leopoldo: UNISINOS, 2000, p. 38-63.

[14] Sobre o aparecimento da noção de sujeito de Direito em Roma, veja-se Salgado. Cf. SALGADO. A
Experiência da Consciência Jurídica em Roma. Belo Horizonte: Movimento Editorial da FDUFMG, 2001,
passim.

[15] As reflexões encontradas no artigo referenciado na nota anterior encontram-se exponencialmente


aprofundadas no livro A Idéia de Justiça no Mundo contemporâneo. Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça no
Mundo Contemporâneo, cit., passim.

[16] SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 307.

[17] Cf. SALGADO, Joaquim Carlos. O Aparecimento do Estado na 'Fenomenologia do Espírito de Hegel'.
Revista da Faculdade de Direito da UFMG. n. 17, 1976, p. 178-193.

[18] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 179-180.

[19] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 180.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 5608
[20] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 181.

[21] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 182-4.

[22] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 185.

[23] LIMA VAZ, Henrique Cláudio. O destino da revolução. Revista Síntese. Nova Fase. n. 45; vol. XVII,
p. 5-12, jan.-abr. 1989, p. 6.

[24] SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 272.

[25] SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 273.

[26] HEGEL. Apud. SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 274

[27] SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 274. "A razão é Espírito quando a
certeza de ser toda a realidade se eleva à verdade, e quando ela é consciente de si mesma como do seu
mundo e consciente do seu mundo como de si mesma". HEGEL Apud. SALDAGO. Idem, p. 275.

[28] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 191-2.

[29] SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 276.

[30] SALGADO. A idéia de justiça no Mundo Contemporâneo, cit.. p, 22

[31] SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 277.

[32] Ibidem.

[33] SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 274.

[34] LABARRIÈRE. Hegel 150 anos depois. Síntese. nº 24; vol. IX, 1982, jan-abr., p. 11

[35] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 278.

[36] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 185.

[37] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 279.

[38] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 186.

[39] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 280.

[40] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 187.

[41] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 281.

[42] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 188.

[43] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 282.

[44] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 188.

[45] SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 189.

[46] Expressão por nós cunhada a partir dos significados que Reale dá a tais termos. Cf. REALE, Concreção
de Fato, Norma e Valor no Direito Romano Clássico. In: Horizontes do Direito e da História. São Paulo:
Saraiva, 1977, p. 55-74.

[47] Cf. SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 189.

[48] SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 281.

[49] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 282.

[50] Cf. SALGADO. O Aparecimento do Estado..., cit., p. 190.

[51] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 282.

[52] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 283.

[53] SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 284.

[54] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 285.

[55] SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. Revista do Tribunal de Contas, Belo
Horizonte, v. 27, n. 2, p. 37-68, abr.-jun. 1998, p. 41.

[56] SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. Revista do Tribunal de Contas, cit.,
p. 51-2.

[57] PINTO COELHO, Saulo de Oliveira. O Direito Romano na Filosofia do Direito: permanência e
atualidade da jurisprudência romana como elemento suprassumido na jusfilosofia brasileira contemporânea.
Belo Horizonte: UFMG, 2008 [Dissertação de Mestrado em Direito], p. 292.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 5609
[58] SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 15.

[59] SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 58-9.

[60] "Em Roma, a forma jurídica era fundamental, não mera aparência. Em razão disso, o conceito de
democracia em Roma era específico, pois este direito tem de ser situado, isto é, compreendido, no seu tempo
e segundo as características da formação de cada povo. Negar o elemento essencial da democracia em Roma
é tão possível quanto negá-lo em qualquer Estado em que haja escravidão, como na Grécia, ou mesmo no
Estado em que a democracia é representativa, pois a representação outra coisa não é senão uma forma
mitigada de alienação do poder, porém necessária". SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo
Contemporâneo, cit., p. 157.

[61] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 156.

[62] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 154.

[63] SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 148-9.

[64] SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 104-5.

[65] Cf. SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 106-7.

[66] SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 108-9.

[67] SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 110.

[68] SALGADO. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 112-3.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 5610

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