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Est udo sobre a adapt ação de rit mos nordest inos à bat eria na performance de Airt o Moreira
Guilherme Marques
A BAT ERIA DE CLEBER ALMEIDA: ADAPTAÇÃO DE GÊNEROS MUSICAIS NORDEST INOS PARA O CONT EX…
Carlos Eduardo Sueit t Garanhão
XXII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - 2012
Guilherme Marques
Universidade Estadual de Campinas – gmdias@hotmail.com
Fernando Hashimoto
Universidade Estadual de Campinas – fernando@fernandohashimoto.com
Resumo: O artigo discute o caráter inovador da atuação do baterista Airto Moreira na música
Misturada gravada pelo Quarteto Novo em 1967. São colocados em perspectiva três procedimentos
musicais adotados pelo baterista na realização de um solo de bateria, que podem ser tomados como
elementos distintivos do seu estilo. A discussão destes procedimentos é desenvolvida a partir da análise
de fragmentos do solo, complementados por depoimentos de outros bateristas sobre a atuação de Airto
Moreira em fins dos anos 60.
Abstract: This article discusses the innovative musical characteristics of the drummer Airto Moreira on
the music Misturada, recorded by Quarteto Novo in 1967. Three procedures adopted by the drummer in
his drumset solo, which can be taken as distinctive of his style, are placed in perspective. The
discussion of these procedures is developed from the analysis of fragments from the solo, supplemented
by testimony from other drummers, on Airto’s performance in the late '60s.
Introdução
Airto Moreira tornou-se mundialmente reconhecido por seu trabalho no conjunto
de Miles Davis no final dos anos 60 e princípio dos anos 70, mais especificamente após a
gravação do LP Bitches Brew (1970). Entretanto, esta alavanca, que impulsionou a carreira do
baterista nos EUA e consequentemente o tornou reconhecido, não representa, segundo a visão
próprio do artista, seu trabalho mais importante:
...muitas vezes eu falei isso em entrevistas na Europa e nos EUA, quando me
perguntavam: “Qual é o ponto da sua carreira onde você tocou num conjunto que
você acha que foi uma das melhores coisas que você fez?” Eu digo: Quarteto Novo.
Não é Miles Davis. (MOREIRA, 2011).
Em meados dos anos 60 Airto Moreira tornou-se mais popular por sua atuação no
Quarteto Novo, conjunto que inicialmente funcionou como plataforma de apoio para
acompanhar artistas como Geraldo Vandré e Edu Lobo nos festivais da canção da TV Record
nos anos de 1966 e 1967 (MELLO, 2003).
O Quarteto Novo, formado por Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, Théo de
Barros e Airto Moreira, destacou-se ao gravar seu primeiro e único LP, Quarteto Novo
(1967), onde estão presentes releituras para canções de Geraldo Vandré, Edu Lobo e Luiz
Gonzaga além de composições dos integrantes do grupo.
XXII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - 2012
Misturada
Misturada, é um samba em compasso 7/8. Existem duas gravações desta música.
A primeira aparece no disco Quarteto Novo (1967) e é o objeto de estudo deste artigo. A
segunda está no primeiro disco de Airto nos EUA, Natural Feelings (1970).
Em sua versão original a instrumentação varia no decorrer da música. Nas duas
exposições do tema a instrumentação é flauta, guitarra, violão e bateria. Em ambas a flauta
dobra a melodia com a guitarra. Durante o solo de bateria não há acompanhamento, o que
possibilita a mudança do violão para o contrabaixo. O solo de flauta, que ocorre na sequência,
é acompanhado por guitarra, contrabaixo e bateria.
Quanto à forma, Misturada é organizada em três seções, e representa o que Aaron
Copland (1974) denomina forma seccionada. A música é dividida em uma seção A de 4
compassos, uma seção B de 8 compassos e uma seção C de 6 compassos. As duas exposições
do tema possuem a mesma sequência de seções – “A(4) A(4) B(8) A(4) C(6)” – e são
intercaladas pelos solos de bateria e flauta.
gravado no Brasil, estão presentes alguns elementos que apontam uma postura inovadora de
Airto em relação a três fatores principais: (1) a utilização de outros ritmos nordestinos para a
bateria, além do samba; (2) a adaptação destes ritmos e do samba para a métrica ímpar 7/8; e
(3) solo melódico na forma da música.
O caráter inovador de sua execução nesta música está intrinsecamente ligado à
métrica dela e sua utilização dos ritmos nordestinos. A esse respeito manifestou-se o baterista
Nenê, substituto de Airto Moreira no Quarteto Novo:
As coisas que ele (Airto) fazia nesse solo me influenciaram por que eu tinha que
fazer esse solo. Você não conseguia um solo dentro desse ritmo, dentro do baião.
Ninguém tocava os outros ritmos. Ninguém tocava. O Airto foi uma grande
influência por causa disso. (NENÊ, 2011).
Outro aspecto importante da abordagem de Airto para este solo é a relação que o
baterista estabelece entre suas ideias e a melodia da música. Esta pode ser vista como uma das
características distintivas de seu estilo enquanto solista, como atesta o baterista Pascoal
Meirelles, cujo contato mais próximo com Airto ocorreu nos anos 70.
...o caminho do Airto pra solo sempre foi musical. Musical que eu quero dizer, ele
pegava um tema e improvisava sobre o tema, se o tema tinha primeira e segunda
parte [...] Eu cheguei a essa conclusão depois que eu comecei a ver show dele ao
vivo nos EUA. Tinha um show em que ele improvisava o solo de bateria, cantando
junto. Exatamente dentro da forma do tema (MEIRELLES, 2011).
O solo de Airto possui conexão com a melodia da música, mas não é fiel a sua
estrutura – AABAC. Airto extrapola os 26 compassos que compõem tal estrutura, o que
sugere um estágio ainda embrionário para a abordagem descrita por Meirelles.
Os primeiros compassos do solo apresentam um sentido de desenvolvimento das
ideias que em parte se explica na alternância da marcação rítmica executada pelo bumbo.
Airto delimita suas ideias em grupos de quatro compassos, onde ele alterna a marcação do
bumbo a partir das matrizes rítmicas do samba, do xaxado e do baião (GOMES, 2008),
adaptados para a métrica ímpar, como mostra a Figura 1.1
Figura 1: Matrizes rítmicas de samba, xaxado e baião adaptadas para a métrica 7/8
denominado por Oscar Bolão como “Samba Cruzado Tradicional” é realizado, “conduzindo-
se a caixa com uma das mãos e variando nos tambores com a outra” (PELLON, 2003).
Airto adapta esta idéia para duas situações neste solo. A primeira se refere a
acomodação deste ritmo, o samba cruzado, empregado na métrica ímpar de 7/8; e a segunda
diz respeito ao uso desta mesma idéia aplicada a outro tipo de marcação rítmica executada
pelo bumbo, neste caso, as marcações dos ritmos nordestinos baião e xaxado. Tais ideias estão
descritas abaixo nos primeiros 8 compassos pelo Exemplo 1.
Exemplo1: oito primeiros compassos do solo de bateria. A letra D se refere a mão direita e a letra E a mão
esquerda (00’50” até 01’03”). Todas as transcrições neste artigo foram realizadas pelo autor.
Este trecho possui dois compassos que sugerem estados rítmicos transitórios
(LARUE, 1992), e que reforçam o caráter organizacional do solo. No quarto compasso desta
seção Moreira suspende momentaneamente a marcação fixa do bumbo para realizar uma frase
que é resultado da interação direta entre os pés e as mãos. Esta ação pode ser relacionada com
a reapresentação do material melódico que caracteriza a seção “B” da música.
No contexto do solo esta transição delimita a mudança no tipo de marcação
executada no bumbo, que nos primeiros três compassos pode ser associada à marcação típica
do xaxado e a partir do quinto compasso passa a ser associada à matriz do samba.
Outro momento transitório nesta seção é o oitavo compasso, que na melodia
corresponde a uma preparação para a retomada do motivo rítmico que caracteriza a seção “A”
da música. No solo esta preparação pode ser associada ao início da condução em
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semicolcheias contínuas realizada pela mão direita no prato de condução, como mostra a
Figura 5.
Exemplo 3: solo de bateria no trecho equivalente a reexposição da seção A da música. (01’18” até 01’24”)
Exemplo 4: solo de bateria no trecho equivalente a exposição da seção C da música. (01’25” até 01’34”)
Figura 6: fragmento da parte C da música, trecho equivalente aos compassos 22, 23 e 24 do solo de bateria.
(00’39” até 00’44”)
Considerações finais
A execução de Airto possui três componentes essenciais tratados neste artigo: (1)
a utilização de outras matrizes rítmicas brasileiras distintas do samba, cujas adaptações para a
bateria, no contexto da música instrumental, representava uma inovação; (2) a adaptação tanto
destas matrizes como do samba para a métrica ímpar 7/8; e (3) a organização melódica do
solo que faz conexões recorrentes entre as ideias musicais de Airto e a melodia da música.
Em relação ao uso dos ritmos nordestinos, a novidade não estava na simples
adaptação destes para a bateria e sim na maneira como Airto o fazia. Segundo Robertinho
Silva, a abordagem de Airto representava uma forma moderna de tocar, “o Airto, ele tocava
um baião moderno. Aliás, foi uma coisa que me influenciou muito – tocar baião na bateria. Eu
peguei aquele lance todinho do Airto, aí comecei a pesquisar e fui explorando do meu jeito.”
(SILVA, 2011)
Os bateristas anteriores ao período da bossa nova, mais próximos da geração de
Luciano Perrone, já tocavam estes ritmos, mas de uma forma mais elementar, menos
interativa, segundo depoimento do baterista Nenê:
...eles tocavam da maneira que eles ouviam na zabumba, por exemplo. Ninguém
botava prato, ninguém fazia nada. O cara fazia aquilo para acompanhar.
Acompanhar cantor. Isso só mudou a partir do Hermeto. Aí a gente começou a
aprender aqueles ritmos e transformar aquilo, tocar de outra maneira, guardando só o
acento (Nenê, 2011)
Os dois primeiros aspectos podem ser associados à relação que Airto desenvolveu
com Hermeto, como atesta o baterista Tutty Moreno:
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...ritmos nordestinos, isso é Hermeto. Ele entrou nessa por causa do Hermeto e
acabou que ficou fazendo isso muito bem. E vou te dizer mais: ele foi o primeiro
baterista brasileiro a tocar esses ritmos [...] só a partir dele (Airto) é que outras
gerações futuras começaram a mexer com estes ritmos (MORENO, 2011)
A importância de Hermeto Pascoal para a carreira de Airto Moreira é muito ampla
e passa por outras áreas. Dois dos aspectos tratados neste artigo são procedimentos que se
consolidaram na experiência musical do Quarteto Novo.
Estas ideias representam parte das contribuições de Airto para a formação da
geração dos bateristas surgidos a partir do início dos anos 70, fato ainda pouco estudado na
história recente da música popular. O estudo aprofundado destas contribuições pode revelar
de forma mais precisa a importância fundamental de Airto Moreira para a bateria
contemporânea brasileira.
Referências
COOPER, Grosvenor, MEYER, Leonard. The rhythmic structure of music. Chicago:
University of Chicago, 1960
COPLAND, Aaron. Como ouvir e entender música. Rio de Janeiro: Ed. Artenova, 1974.
GOMES, Sergio. Novos caminhos da bateria brasileira. São Paulo: Irmãos Vitale, 2008
MEIRELLES, Pascoal. Entrevista realizada pelo autor em 15/09/2011. Rio de Janeiro.
Registro em áudio transcrito.
MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2010.
MOREIRA, Airto. Entrevista realizada pelo autor em 26/10/2011. Curitiba. Registro em
áudio transcrito.
MORENO, Tutty. Entrevista realizada pelo autor 20/12/2011. Rio de Janeiro. Registro em
áudio transcrito.
LARUE, Jan. Guidelines for style analyses. Segunda edição. Michigan: Harmonie Park Press,
1992.
LIMA, Realcino (Nenê). Entrevista realizada pelo autor em 21/09/2011. São Paulo. Registro
em áudio transcrito.
PELLON, Oscar Luiz Werneck (Bolão). Batuque é um privilégio. Rio de Janeiro: Ed. Lumiar,
2003
SILVA, Robertinho. Entrevista realizada pelo autor em 20/12/2011. Rio de Janeiro. Registro
em áudio transcrito.
VISCONTI, Eduardo de Lima. A guitarra elétrica na música popular brasileira: os estilos
dos músicos José Menezes e Olmir Stocker. Campinas, 2010. [284f]. [Tese (Doutorado em
música)]. Universidade Estadual de Campinas.
1
A notação musical adotada tem como referência o artigo Guidelines for Drumset Notation de Norman Weiberg
publicado em junho de 1994 na revista da Percussive Art Society (PAS), Percussive Notes.