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Revista Tur smo & Desenvolvimento | n.

o 25 | 2016 | [ 9 - 30 ]
e-ISSN 2182-1453

Do discurso da Ciência do Turismo para a


Ciência do Turismo1

MARIO CARLOS BENI * [beni@usp.com]

MARUTSCKA MOESCH ** [marumoesch@gmail.com]

Resumo | O artigo pretende avaliar a pertinência da ciência do turismo, através da apropriação dos
conceitos, das teorias, dos métodos e modelos. A visão tradicional do estudo do turismo, influenciada
pela propositura epistemológica, constitui um objeto interdisciplinar, pelo conjunto de fatores culturais,
sociais, econômicos, políticos e antropológicos. O artigo apresenta três eixos primordiais. O primeiro
eixo centra-se numa discussão sobre a possibilidade de o turismo ser uma disciplina tecida nos anos 1980,
e os modelos explicativos pela teoria sistêmica como o SISTUR. O segundo aborda a teoria da comple-
xidade, com a concepção epistêmica da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade pelas mãos de Edgar
Morin (2000) e E. Jantsch (1980). O objetivo deste eixo é mostrar que o saber de turismo não é linear,
que o turismo é inter e transdisciplinar e o princípio de auto-eco-organização tem valor hologramático,
a fim de libertar o turismo das amarras disciplinares. Isso explica o terceiro eixo, que incide sobre os
esforços feitos sob a teoria da complexidade como o sistema orgânico do turismo: ecossistema turístico
e a reconstrução das categorias do objeto do turismo cuja totalidade se expressa como fenômeno humano.

Palavra-chave | Turismo, epistemologia, ciência, transdisciplinaridade, teoria da complexidade

1 Esteartigo encontra-se parcialmente reproduzido no congresso da ANPTUR realizado em 2015 na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Brasil
* Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Livre Docente em Turismo pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Docente no curso da pós-graduação em Turismo na Universidade
de Brasília. Coordenador do Projeto de Pesquisa – Desenvolvimento Territorial, endogenia e redes de cooperação a partir
do Programa de Regionalização do Turismo – Roteiros do Brasil do Ministério do Turismo
** Doutora em Comunicação e Turismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Professora
Adjunta da Universidade de Brasília, na graduação em Turismo e no Programa de Mestrado em Turismo e coordenadora
do Mestrado Profissional em Turismo da Universidade de Brasília e líder do Núcleo de Políticas Públicas em Turismo do
Programa de Mestrado em Turismo (NPPTUR).
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1. Introdução da lógica mecânica, como uma máquina artificial


aos problemas dos seres vivos da sociedade. Bacon
A reflexão epistemológica impõe aos próprios (1933) afirma a plasticidade da natureza humana
pesquisadores os instrumentos de conhecimento e, portanto, a sua perfetibilidade, dadas as condi-
dos quais as ciências dispõem, reflexão com vista ções sociais, jurídicas e políticas adequadas de as
a superar as crises revendo a pertinência dos con- determinar com rigor.
ceitos, das teorias e dos métodos diante das pro- Sem dúvida o conhecimento deve utilizar a abs-
blemáticas que são objeto de suas investigações tração, mas também deve tentar construir-se em
razão desse artigo. Esse processo de produzir ci- relação com o contexto e, portanto, mobilizar o
ência tem por princípio à universalidade que deve que o sujeito sabe sobre o mundo. A compreensão
conter cada conceito, pois sua validade não pode de dados particulares só pode ser pertinente para
ser generalista e nem ocasional, mas sim, produto quem exercita e cultiva a sua inteligência geral,
do movimento da história, em que: “[...] Em pri- utilizando os seus conhecimentos gerais em cada
meiro lugar, o ser em seu conjunto é visto como caso particular. Marcel Mauss afirmava: “É preciso
um processo histórico; em segundo, as categorias recompor o todo”.
não são tidas como enunciados sobre algo que é A tradição cartesiana, predominante no saber
ou que se torna, mas sim como formas moventes científico do turismo, fundamenta a análise na se-
e movidas da própria matéria: “formas do existir, paração do todo em categorias, pressupondo que
determinações da existência” (Luckás,1978). um campo de saber é suficiente para analisar e
A Ciência não é uma leitura da experiência a organizar as partes constituintes desse todo. A
partir do concreto. Fundamentalmente, consiste interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, aqui
em produzir, com a ajuda de abstrações e de con- proposta como atitude científica, é fundamental
ceitos, o objeto a ser conhecido. Ela constrói o à análise do Turismo enquanto fenómeno social,
seu objeto próprio pela destruição dos objetos da cultural, comunicacional, económico, possuidor de
perceção comum. Seu progresso não se faz por uma prática social e, por isso, também subjetivo,
acumulações ou novas verdades que vêm justapor- o que para seu entendimento coloca o pesquisador
se ou sobrepor-se às já estabelecidas. O saber de avançando as fronteiras de uma única disciplina ou
Turismo não é linear. Não há evolução, mas “re- de um único campo do saber.
volução”, progredindo por reformulações, por refu- Uma epistemologia do Turismo envolve cuida-
sões no seu corpo teórico, por retificações dos seus dos teóricos, advindos de um entendimento com-
princípios básicos. É assim que ela marcha em di- plexo sobre uma prática social que se dissemina
reção a um saber sempre mais objetivável, jamais de formas diferenciadas, a partir de subjetividades
inteiramente objetivo. infinitamente diversas e de vivências múltiplas dos
Até metade do séc. XX, a maioria das ciências sujeitos que as praticam, em territórios globaliza-
tinha como método de conhecimento a especiali- dos o que se possibilita por uma visão ecossisté-
zação e a abstração, ou seja, a redução do conheci- mica e hologramática.
mento de um todo ao conhecimento das partes que A conceção interdisciplinar vem ao encontro do
o compõem (como se a organização de um todo método investigativo. Impõe um exercício fecundo
não produzisse qualidades novas em relação às par- sob o ponto de vista epistemológico, não deixando
tes consideradas isoladamente). Sob a matriz de de salientar a sua demasiada ousadia, diante dos
Bacon, Vico e Montesquieu, o seu conceito básico nichos particularistas existentes na academia, onde
era o determinismo, por outras palavras, a ocul- os clássicos campos do saber são criteriosamente
tação da alteralidade, da novidade e a aplicação delimitados. O turismo é bem mais que estas con-
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ceituações reducionistas sob olhar disciplinar que dade. Hoje, dentro dos desafios do mundo con-
o caracterizam como setor/atividade dos estudos temporâneo, urge desvelar as relações ecossociais
de econometria. dos sistemas complexos em que se constitui o Tu-
Os estudos de uma episteme do turismo de- rismo.
monstram que o seu epicentro é de caráter hu- Compreender a problemática do desenvolvi-
mano, pois são os turistas que se deslocam e não mento crescente do turismo é relevante não só
as mercadorias. Isso implica, posteriormente, o es- à medida que seus produtores, vendedores, inter-
forço de uma argumentação sistemática desta re- mediários e consumidores continuam produzindo,
alidade no que tange ao seu conhecimento. Basta vendendo e consumindo sem limites ou critérios,
que se pense na série importante de inter-relações sem outro fim que o próprio benefício do primeiro e
sociais que derivam do comportamento “consumi- a satisfação egoísta do consumidor, mas pela per-
dor–turista”, com as comunidades dos destinos tu- sistência do problema, disfarçado nas conceções
rísticos e todo o complicado processo de identifi- implícitas do seu conceito como negócio, que in-
cação do turista com o grupo ideal (a exemplo da vade o tratamento das localidades e culturas, como
segmentação turística), ou efetivo, que determina as demarcam as ações das políticas publicas.
a escolha da localidade de destino. Essa postura, de uma cultura de mercado ca-
O que leva a busca de novas trilhas teórico- pitalística, desconhece e desconsidera a essência
metodológicas na construção de uma epistemo- do fenómeno turístico, o qual exerce uma pressão
logia do turismo, as quais já foram desbravadas crescente sobre a produção da subjetividade so-
desde os anos de 1980, quando pesquisadores bra- cial, o ecossistema, o modo estético e a herança
sileiros, preocupados com a apreensão científica do cultural, existentes nas localidades, gerando agen-
objeto do turismo e seus modelos interpretativos, ciamentos possíveis de ressignificação junto à reali-
construíram, para além de uma visão disciplinar dade, através da relação entre visitantes e visitados
e restrita, modelos sistémicos e categorias analíti- cada vez mais fugaz. Turismo é processo humano,
cas. Essas teorias foram publicadas em obras como ultrapassa o entendimento enquanto função de um
Análise Estrutural do Turismo (1988) e A Produ- sistema económico. Como um processo singular,
ção do Saber do Turismo (2000), entre outras. necessita de ressignificação às relações impositivas,
O artigo proposto trata-se de uma análise teó- aos códigos capitalísticos e aos valores colocados
rica com pressupostos da sociologia compreensiva como patrimonialização cultural.
e da teoria da complexidade (Morin), por auxi-
liar no desvelamento deste caminho epistemológico
contribuindo, de forma tangencial ou direta, para a
compreensão da complexidade do Turismo: um fe- 2. As bases epistemológicas do Turismo
nómeno marcadamente multissetorial na sua pro-
dução objetiva, subjetivo na sua prática social e Cabe colocar a compreensão de epistemolo-
transdisciplinar na sua teoria. gia, a qual tratar-se-á nesse artigo, em como e
Construir um novo campo teórico para o Tu- sob que condições de objetividade do conheci-
rismo requer um método que avance na conceção mento científico, dos modos de observação e de
do que seria conhecimento, ciência e teoria. O experimentação que examinam as relações que as
tratamento disciplinar que vem sendo dado ao es- ciências estabelecem entre os fatos. Proporciona
tudo do Turismo tem dificultado em sua superação os pressupostos gerais em que se apoiaria a criação
como setor económico e fez parte do contexto da de uma teoria particular –teorias do turismo.
produção do conhecimento científico na moderni- As doutrinas que fundamentam a elaboração
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da teoria, determinarão o conteúdo e o método da que permitem a explicação de certos aspetos da


mesma. Mas nessa construção há uma intencio- realidade, por serem pertinentes a uma época são
nalidade, a do sujeito (pesquisador), a do objeto biodegradáveis. Para estruturar novas teorias so-
como expressão da realidade a que pertence e da bre “o que é o turismo” requer uma discussão lógica
concepção de ciência (estrutura do conhecimento) entre um conjunto de conceitos-mestres do campo
que o apreenderá conforme o método utilizado. do turismo que permearam as suas explicações ao
Relações determinadas e determinantes do pro- longo desses anos. O que seria uma discussão nu-
cesso de construção do objeto turismo, conforme clear ao mesmo tempo linguística, lógica e ideo-
mostra a figura 1, abaixo: lógica (Morin, 2000) sobre o paradigma de abor-
dagem não fragmentada e racionalista, reafirma
uma visão do mundo em que há perfeita concor-
dância entre as formas de explicação racional e a
realidade do universo, excluindo, dessa forma, ou-
tras possibilidades de explicação, ou seja, “a ver-
dade é que a ordem e a estabilidade do mundo
são pré-condição da transformação tecnológica do
real” (Santos, 2002, p.64). Paradigma instaurado
sob o método hipotético-dedutivo que banha os
estudos sobre o que é turismo.
Sem dúvida o conhecimento deve utilizar a abs-
tração, mas também deve tentar se construir em
relação ao contexto e, portanto, mobilizar o que o
sujeito sabe sobre o mundo. A compreensão de da-
dos particulares só pode ser pertinente para quem
Figura 1 | Relações do processo de construção do objeto turismo exercita e cultiva sua inteligência geral, utilizando
seus conhecimentos gerais em cada caso particu-
Dentro do campo paradigmático interdiscipli- lar.
nar o modelo é uma construção metodológica que A forma como os estudos sobre o turismo vem
se operacionaliza em dois momentos: o da cons- sendo propostos em diferentes territórios na con-
trução e reconstrução da estrutura do objeto, e temporaneidade coloca a urgente questão sobre as
o momento da construção e reconstrução do pro- teorias interpretativas que o formatam, pois tra-
cesso de conhecimento. Para construir uma ciência duz as conceções de conhecimento monodiscipli-
do Turismo deve-se ir muito além da construção de nar, multidisciplinar, quiçá interdisciplinares, im-
uma metodologia, já que esta não deve ter um fim plícitas e subjacentes às propostas dos seus mode-
em si mesma, mas ser um meio para se atingir los ocasionando sérias implicações éticas, sociais e
o fim cognitivo. O que se deduz ser necessário, políticas, impactadas pelas suas práticas turísticas.
mas não ser suficiente, a construção de modelos Pois é no bojo da complexidade dessas práticas e
explicativos, a exemplo dos modelos sistêmicos do seus impactos às comunidades que este artigo sus-
turismo. cita reflexão.
Compreendendo paradigmas como constela-
ções de crenças e valores e técnicas partilhadas
por membros de uma comunidade científica, que
se referem aos modelos, padrões compartilhados
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3. A Teoria sistémica na construção da epis- aborda seu objeto sob a forma coerente e globali-
temologia do turismo zante de uma rede de relações. Tal quadro tende a
prestar contas da totalidade das realidades sociais
A Teoria Geral dos Sistemas preconizada por estudadas, privilegiando seus aspectos estruturais,
Von Bertalanffy busca entender a parte a partir do querendo aprende-los através do conjunto e das re-
todo, e aceita que o universo só é conhecido pelas lações mútuas entre estes últimos. O todo social
relações entre suas partes, sempre em mudança, é visto como sistemas de indivíduos relacionados
inter-relacionadas, organizadas em sistemas. Iden- entre si.
tifica propriedades estruturais que se manifestam Para o quadro interpretativo sistémico toda
em sistemas de diferentes campos científicos. Par- coisa é um sistema, ou um componente de algum
tindo do princípio de que as partes não podem ser sistema, onde um sistema é desde sua génese um
conhecidas de forma isolada, mas sim dentro do objeto complexo cujas partes se mantêm unidas
sistema aberto a que pertencem, que as relações por vínculos de uma ou mais classes. Em particu-
não são causais e unidirecionadas, mas circulares, lar, todas as características da sociedade –econó-
e que o todo é diferente da soma entre as partes. micas, culturais, e políticas – formam uma peça
A Teoria Geral dos Sistemas foi uma concep- única. Mesmo distintas, são inseparáveis. O sis-
ção básica para o estudo das organizações. Os temismo claramente engloba tanto ao individua-
sistemas penetram em diversos campos científicos lismo, pois tem em conta a composição, com ao
e tecnológicos. Thomas Kuhn (1975) afirma que holismo, dado que enfatiza a estrutura da organi-
representou uma revolução científica, um novo pa- zação.
radigma no pensamento científico, um novo modo Os funcionalistas sistémicos, a exemplo de
de pensar. “Um sistema é um conjunto do qual Parsons, entendem que a sociedade forma um
nenhum dos elementos pode ser modificado sem todo funcional, sistémico; consequentemente, o
provocar uma modificação nos demais” (Abbate, Turismo passa a ser um subsistema económico
1978, p.). dentro do mercado produtivo internacional. A
Já o método analítico consiste em dar um mesma conceção metodológica é proposta por Lei-
modelo que mostre o real como construído, per (1979) o qual propõem uma abordagem de sis-
considerando-se seus elementos e base. Para en- temas ao estudo académico do turismo por ter im-
contrar um modelo adequado, os pesquisadores plicações potenciais em diversas áreas e em muitos
tentam determinar todos os componentes de um níveis de análise. Para o autor na pesquisa aca-
sistema para reconstruí-lo. Costuma-se opor esse démica o sistemismo pode servir como ponto de
método ao “método sistémico”, que se interessa referência para estudos gerais e específicos, permi-
menos pela reconstrução de um sistema de base tindo estudar sua estrutura e a ênfase em cone-
em seus componentes, mas privilegia a compre- xões existentes entre, e dentro de vários elemen-
ensão do sistema como um todo. Segundo esse tos do sistema: como impactos comerciais, apli-
método, consideram-se como primordiais as inte- cações potencias em diversas áreas da indústria
rações entre os componentes, a ponto de conside- turística, principalmente em empresas multisetori-
rar o sistema como uma caixa preta sobre a qual ais que operam em diversas locações. Pode ser
se vai avaliar o efeito dos diferentes inputs sobre particularmente útil para o planejamento do mar-
os outputs. keting, assim como um governo pode usar a es-
O quadro sistémico de análise reconhece numa trutura para reconhecer relações de sua unidade
problemática qualquer de pesquisa a predominân- eleitoral geográfica no sistema turístico completa
cia do todo sobre as partes e, por conseguinte, Leiper (1979).
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Lanquar (1984) aplica a teoria dos sistemas à organismo, ecossistemas, rede de comunicações, e
gestão dos recursos humanos na organização tu- sistemas sociais: como empresas, escolas, organi-
rística, pois para ele é uma abordagem moderna zações religiosas, governos ou ONGs.
que trata a empresa como um conjunto ou sistema O conceito de sistema é central na sociologia
de partes e subsistemas (estes subdivisíveis) e de porque toda a pessoa forma parte de vários círcu-
variáveis mutuamente independentes, onde a em- los (sistemas), e se comporta de modo diferente
presa turística é uma parte do sistema econômico, quando atuam em diferentes sistemas. Estes por
e social, que pode ser considerada como um con- sua vez estão influenciados por seus componentes.
junto de organizações decorrentes e cooperantes, Em resumo, não existe nenhuma atuação fora de
assim a empresa é o repartidor último dos recursos um sistema e não existe um sistema sem atuação
ou a célula última do sistema de inputs-outputs. e, por consequência, sem mudanças. Não existem
Com frequência o sistemismo se confunde com o redes sem pessoas e não existem pessoas fora de
holismo, em particular com o conceito de sistemas todas as redes.
de ação de Talcott Parsons (1951). Sua versão ho- Sob o ângulo metodológico um sistema com-
lista e idealista do conceito de sistema, além de sua porta pelo menos, segundo Bruyne (1977) a iden-
obscura teoria, produziu o descrédito da própria tificação dos elementos que o compõem (conjunto
palavra sistema entre os estudiosos da sociedade. de unidades e objetos), a especificação das carac-
Parsons coloca que a sociedade pode ser com- terísticas ou das propriedades dos elementos, em
parada a um sistema autorregulável. Sentencia relação às quais os estados dos sistemas podem
um otimismo quanto à estabilização das econo- ser descritos, a especificação das regras ou das leis
mias em crescimento e o progresso social. Todas que regem as interações dos elementos ou de suas
as crises, revoluções, são vistas como rearranjos in- propriedades assim como a sucessão dos estados
ternos tendo como horizonte a otimização do de- dos sistemas.
sempenho da sociedade. Para sua teoria a soci- As sociedades tem necessidades e enfrentam
edade é una, um todo consistente, um sistema, problemas para manter sua estrutura (institucio-
um conjunto de elementos ordenados pela razão, nalizada), problemas que são resolvidos graças a
organizada através da imposição dos limites sobre ação de certos mecanismos “homeostáticos” intrín-
as partes. Estes limites demarcam os campos do secos, capazes de operar de maneira automática;
saber e do poder, como espaços sociais diferenci- ou as classes sociais equivalem a uma seleção na-
ados, construindo uma visão reducionista e unidi- tural, fruto da luta competitiva, que impele mais
mensional da relação existente entre saber-poder. ou menos automaticamente aos mais aptos ou me-
Tal visão impõe uma mutilação do real, na qual o lhor classificados, e assim ocupam as posições es-
outro é uma parte do todo, una e, portanto, tra- senciais, desde o ponto de vista funcional, para a
duzível em produto mercantilizável. sobrevivência da sociedade.
O conceito de sistema está tão vivo nas ci- Os elementos constitutivos de um sistema po-
ências sociais como na matemática, nas ciências dem ser qualquer coisa, desde que haja entre eles
naturais e na tecnologia, segundo Bunge (2000). uma ordem, uma interdependência, um caráter re-
A razão do descrédito do conceito sistema é que lacional. A noção de sistema não remete a uma
toda a ciência e toda a tecnologia trata de sistemas coisa, mas a uma ordem de coisas entre aconteci-
de um tipo ou outro, sejam conceituais ou mate- mentos, fenômenos, variáveis. Por constituir um
riais: sistemas de números, famílias de funções, conjunto o sistema implica que seus elementos te-
multiplicidades ou sistemas hipotéticos dedutivos nham propriedades comuns em vez de únicas. A
(teorias), sistemas físicos como os átomos: células, ordem que caracteriza o sistema concerne antes
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de tudo às relações entre as propriedades de seus soma de suas partes (indivíduos), existem propri-
elementos, suas qualidades ou seus estados, não edades de grupos que se repetem, e os resultados
entre unidades concretas como tais. da análise dos segmentos isolados não pode se
O paradigma teórico sistêmico embasa as análi- aplicar ao conjunto como um todo.
ses das organizações, ambos compreendidos como O paradigma funcionalista aplicado na análise
sistemas abertos que se influenciam mutuamente, de sistemas traz em si um conteúdo altamente
permitindo cotidianamente a existência da prática conservador em termos de valores, concebendo o
do poder enquanto relação mencionada por Fou- sujeito como simples detentor de status e desem-
cault. penhador de papéis, em função da manutenção do
Um sistema ou complexidade organizada pode sistema vigente.
ser definido pela existência de fortes interações ou A viagem, o tempo livre, o lazer, o fazer tu-
de interações não triviais, isto é, não lineares. Des- rismo, para os teóricos desse paradigma, têm a
tas considerações decorre a necessidade de estudar função reparadora do trabalho, como analisado
não somente partes e processos isoladamente, mas por Moesch (2004). Sua finalidade única é a
também resolver os decisivos problemas encontra- de melhorar o desempenho dos papéis individuais
dos na organização e na ordem que os unifica, produtivos, visando assim a otimização da relação
resultante da interação dinâmica das partes, tor- global entre os seus input e output. Compartimen-
nando o comportamento destas diferentes quando taliza o campo do trabalho e o campo do tempo
estudado isoladamente e quando tratado no todo. livre como se fossem duas partes estanques de um
A análise dos sistemas trata a organização todo, com funções determinadas.
como um sistema de variáveis mutuamente depen- A relação trabalho-tempo livre - turismo, na
dentes. São características da organização, quer visão funcionalista sistêmica, não considera a or-
de organismos vivos, quer de uma sociedade, no- dem causal do tempo - a não ser no sentido da
ções como as de crescimento, diferenciação, or- recuperação das forças - em que o tempo anterior
dem hierárquica, dominância, controle, competi- determina o seguinte, não levando em conta que
ção, etc., noções que não aparecem na física con- a alienação em um dos campos vem gerar atitudes
vencional, paradigma da metodologia analítica. de evasão ou compensação do outro. Apresenta-
O paradigma sistêmico, ao propor a ideia de se aqui um metadiscurso impondo uma verdade
que efeitos podem ser retroalimentadores de suas injusta: a vida e seus prazeres são reduzidos ao
supostas causas dentro de um sistema e que obser- império da racionalização econômica. A compre-
vadores podem modificar pela via interativa o que ensão do objeto turístico é una. O Turismo passa
estão a observar, criou um novo marco epistemo- a ser uma parte de um todo: o sistema econômico,
lógico, nos anos 1950, para referenciar os estudos, tomado como subsistema produtivo. Essa abor-
para pensar fenômenos tanto na física quanto na dagem diminui sua complexidade, ocasionando
química, na biologia e nas ciências humanas em enquanto objeto de conhecimento, uma derivação
geral, através de conceitos de integralidade e circu- simplificada como ’atividade’ do campo produtivo.
laridade, ou seja, partes em interação, e do homem A falta de uma preocupação epistemológica por
tratado não como um autômato ou robô reagente parte dos autores que estudam o turismo como
,mas como um sistema de personalidade ativa. sistema não os permitiu romper com a comparti-
A Teoria Geral dos Sistemas também é um mentação analítica em seus estudos.
marco referencial que sustenta o estudo da dinâ- Como síntese, desse limite epistemológico,
mica dos grupos sociais, baseada na noção de que onde o método sistêmico se sobrepôs ao objeto,
um grupo não pode ser entendido como a mera estão as teses elaboradas a partir da Teoria Geral
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dos Sistemas quanto a metodologia de apreensão "Em cada um desses casos, uma disciplina científica
do objeto turístico pelos autores Alberto Sessa, nasce como uma nova maneira de considerar o mundo e
Pierre Lainé, Sérgio Molina, Boullón, Martinez, essa nova maneira se estrutura em ressonância com as
entre outros. Suas contribuições teóricas repre- condições culturais, econômicas e sociais de uma época.”
sentam o momento pré - paradigmático na teoria (Fourez:1995, p.105)
do Turismo.
As razões que balizam esse enquadramento Para a construção de uma disciplina científica
epistemológico aos modelos dos pesquisadores ci- existe um certo número de regras, princípios, es-
tados, estão sustentadas pela concepção desenvol- truturas mentais, instrumentos, normas culturais
vida por Gerard Fourez (1995) sobre a construção e/ ou práticas, que organizam o mundo antes de
de uma matriz disciplinar ou um paradigma, o qual seu estudo aprofundado.
define como uma estrutura mental, consciente ou
não, que serve para classificar o mundo e poder “O objeto de uma disciplina não existe, portanto antes
abordá-lo. Assim, para efetuar uma pesquisa no da existência dessa própria disciplina; ele é construído por
domínio do Turismo, é preciso possuir algumas ela...uma disciplina científica não é definida pelo objeto que
ideias a respeito da questão, o que foi acessado estuda, mas é ela que o determina... e na evolução de uma
pelo empirismo e pelas análises sistêmicas. A disci- disciplina esse objeto pode variar.” (Fourez:1995, p.106)
plina que nascer dessas pesquisas sobre o Turismo
estruturar-se-á em torno dessas ideias prévias. O Os pesquisadores que utilizaram a Teoria Geral
conceito de Turismo não é algo dado, mas provém de Sistemas contribuíram na estruturação de um
de uma certa maneira de contar o que é vivenci- método de abordagem do fenômeno turístico nas
ado por meio de relatos, da experiência do sujeito suas diferentes facetas. Permitiram assim operar
turista sobre o Turismo e seu desenvolvimento. distinções, que produziram novas classificações so-
O Turismo será influenciado por uma certa bre o Turismo a ponto de servirem de base e de
ideia, partilhada por um dado conjunto cultural, referência ao pensamento subsequente sobre ecos-
da diferença entre o sujeito (turista) que se des- sistema e turismo. Essas evidências são um efeito
loca no tempo (nomadismo), que vai ao encontro que sobrevém somente após o estabelecimento de
de um determinado espaço e retorna ao local de uma disciplina científica.
origem (sedentarismo), essas categorias sociais e
culturais estão na base da disciplina que se deno-
mina turismologia; fazem parte de seu paradigma,
pois são constituintes, formatadoras do seu objeto. 4. A apreensão do Turismo como sistema
É importante entendermos que há objetos de complexo
estudos que só aparecem num dado momento his-
tórico. Segundo Fourez (1995) a psicologia urge O tratamento disciplinar que vem sendo dado
quando se concebe o ser humano como indivíduo, ao estudo do Turismo – e daí a dificuldade em
a informática estrutura-se em torno de uma téc- sua compreensão como uma totalidade fenomê-
nica determinada o computador, possibilitando a nica – faz parte do contexto da produção do co-
criação de uma tecnologia intelectual, que permite nhecimento científico moderno. Entende-se aqui
pensar os problemas da comunicação e da infor- totalidade fenomênica como a atualidade ime-
mação, redefinindo para ela a comunicação e a diatamente dada à observação empírica efetiva,
informação. E o Turismo? positivamente efetuada, manifestando-se numa
constatação (Japiassu, 2002, p.21). A disciplinari-
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dade é consequência do uso do paradigma analítico afirma Morin (1998), a racionalização originada
na construção dos saberes; até bem pouco tempo, na trindade: técnica, ciência e razão – as quais já
este paradigma era tido como único e incontestá- forneceram a luz para esclarecer os caminhos do
vel. futuro – estão equivocadas, mutiladas, por conter
O método analítico divide problemas grandes rupturas internas. Hoje sabemos que a ciência
ou complexos em partes, acreditando, assim, di- produziu coisas boas e fecundas, mas também
minuir sua complexidade ao diminuir a intensidade permitiu que, pela primeira vez, a humanidade
das informações e relações. O problema maior é vislumbrasse a possibilidade da destruição total do
dividido em questões menores; repartindo-o em planeta, pelo excessivo consumo de todos bens
partes independentes, para alcançar uma maior que essa mesma tecnologia produz. Quer dizer,
compreensão. Por quê? Para resolver problemas, há problemas dentro da razão, como afirma Morin
nesta lógica, seria separar, solucionar os proble- (1998).
mas de cada uma das partes ou setores e, assim, A tradição dos estudos monodisciplinares
capacitar pelo conhecimento científico, ao enfren- trouxe ao turismo um reducionismo na compre-
tamento a um problema maior. ensão de sua episteme, como uma banalização em
Não podemos negar que a ciência moderna per- suas conceituações e consequentemente sua deno-
mitiu grandes avanços ao pensamento humano, minação ora como indústria, negócio, atividade,
devido a essa abordagem analítica, chamada de setor, entre outras, devido a falta diálogo entre
cartesiana, por ter em Descartes um dos seus prin- as disciplinas e apropriação metodológica de cada
cipais teóricos. Mas hoje, o cartesianismo não dá campo disciplinar de forma interdisciplinar ao de-
conta, quanto se trata de uma maior aproxima- linear seu objeto e método.
ção dos problemas sociais contemporâneos. Como

Figura 2 | Contribuições disciplinares para o campo do turismo


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Concepções disciplinares restritas que não fo- Molina, a comunidade local.


ram superadas nem mesmo com o modelo pro- Na trilha da construção teórico-metodológica,
posto por Jafar Jafari, em 1983, pois ao avan- em 1998, sob o quadro teórico sistêmico, produzi
çar em seu dispositivo cognitivo multidisciplinar: um modelo interpretativo do turismo, na qual as
onde as formas de conhecimento do objeto em es- partes do objeto são estudadas profundamente em
tudo advêm de áreas do conhecimento distintas: suas interações.
geografia, economia, administração, antropologia, O problema do desenvolvimento do turismo é
etc., essas mesmo que dispostas em forma de uma estudado em sistemas resultando em um modelo o
teia, não são suficientes para romper suas frontei- SISTUR- Sistema de Turismo. Para solucionar um
ras disciplinares metodológicas na compreensão do problema no subsistema ecológico, por exemplo,
objeto do turismo. Mesmo que a multidisciplinari- procura-se equacioná-lo nas suas muitas interações
dade admita vasos comunicantes, conforme figura com os subsistemas econômico, social e cultural,
1, visando uma compreensão mais holística, essa demonstrando sua complexidade. Há uma preocu-
organização curricular não é suficiente para a cons- pação em resolver problemas maiores, através do
trução de uma base teórico-metodológica própria estudo das interações entre as partes. Mas, cons-
à epistemologia do turismo. O exercício epistemo- truir uma teoria que dê conta das práticas turís-
lógico aqui não se estabeleceu por completo, pois ticas deve ser uma conquista transdisciplinar, em
o objeto –turismo- não foi reconstruído por suas que a cada momento é, simultaneamente, produ-
categorias fundantes, e sim tomado como objeto zida e produtora, numa recursão organizacional, na
dado, a coisa em si. qual a parte está no todo e o todo está na parte.
O que foi observado é o “fenômeno-invólucro Ao desenvolver o SISTUR (1998) pretendia-se
ocultando sua realidade mesma, que se mantém retratar o turismo, em toda sua multicausalidade
fora do campo da percepção empírica”, (Japiassu, até seu limite máximo, em um esquema sinteti-
2002, p.21) zador dinâmico que demonstrasse as combinações
Os modelos sistêmicos, a partir da década de multifacetadas de forças e energias sempre em mo-
1980, foram adotados em muitos estudos sobre o vimento. Assim adotou-se a conceituação de sis-
turismo, principalmente com a preocupação de es- tema, como o conjunto de procedimentos, dou-
tabelecer maior transferência de renda entre re- trinas, ideias ou princípios logicamente ordenados
giões, ou o chamado desenvolvimento regional pelo e coesos, com intenção de descrever, explicar ou
turismo. Alberto Sessa apresenta uma análise sis- dirigir o funcionamento de um todo, de modo a
têmica cujo modelo é representado por elementos produzir um modelo.
que são: o turista, que é definido por fluxo tu- O modelo construído, deveria ter a capacidade
rístico, a indústria turística, serviços turísticos, a de retratar, até seus limites máximos, a configura-
oferta dos recursos, a infraestrutura e superestru- ção que tentava assumir um fenômeno como o do
tura turística entendida como sistema econômico turismo, tão sujeito a variáveis interna e externa
turístico em relação ao sistema ecológico, educa- que escapavam, no momento de análise científica,
cional, sócio familiar, da ciência, da cultura. a praticamente todo o esforço de cristalização para
A similaridade entre os autores que criaram se poder estudá-las, determiná-las e avaliá-las.
seus modelos sistêmicos para o turismo se registra A partir dessa base conceitual pode-se configu-
na aproximação quanto à definição dos elemen- rar o diagrama de contexto do sistema de turismo,
tos que compõem o sistema: a superestrutura, a que permite visualizar três grandes conjuntos: o
demanda, os atrativos, a infraestrutura, equipa- das relações ambientais, o da organização estru-
mentos e instalações, e para poucos, como Sergio tural e o das ações operacionais, bem como seus
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componentes básicos e as funções primárias atu- que parcelas de massa e de energia fiquem armaze-
antes em cada um dos conjuntos e em interação nadas em diversos setores, por lapsos de tempo das
constante no sistema total. mais diversas escalas, constituindo reservas para o
Como a energia desse sistema é vinda da rela- funcionamento do sistema. Dessa forma, no con-
ção entre oferta-demanda estabelecida pelo mer- junto há quantidades de massa e de energia que es-
cado, o fluxo de massa e de energia no interior do tão constantemente circulando, se transformando
sistema processa-se através de “canais de comuni- ou temporariamente retidas, conforme o modelo
cação” que, muitas vezes, não são claramente de- de Beni (1998), expressa na figura 3:
lineados. No transcorrer desse fluxo, pode ocorrer

Figura 3 | Modelo SISTUR

O sistema turístico, assim entendido, é um sis- uma finalidade, uma complexidade estável.
tema aberto, contrapondo-se a concepção histó- Na visão sistêmica adotada no modelo do SIS-
rica sobre sistemas fechados, utilizados pelos fí- TUR desenhado, em 1998, as relações internas e
sicos e biólogos. Para os físicos, tudo iniciou externas a um sistema podem depender do sistema
muito certo, simplificado, em um mundo que ca- em si ou de seu ambiente. Se um sistema é sub-
minha para a desordem (máxima entropia). Já metido inevitavelmente a diversos determinismos
para a Biologia, os organismos se formam organi- de seu ambiente, esses determinismos terão sobre
zadamente, dando a impressão de caminham rumo ele várias influências diferentes em função de suas
a uma crescente organização. Tanto na concep- capacidades próprias de reação. Essas capacida-
ção física como a biologia dos sistemas abertos des do sistema introduzem as noções de regulação
há necessidade de muita energia: eles interagem, e de controle, que podem ser nulas ou, ao contrá-
eles consomem energia, até atingir certo equilíbrio, rio, extremamente desenvolvidas. Convém tam-
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bém salientar a noção de hierarquia necessária nas teórico (formulação teórica do objeto, explicitação
estruturas e nas finalidades; sendo assim as unida- conceitual), pois não foram suficientes para além
des de regulação, de reação e de colocação devem de uma idealidade irrealizável, no sentido kanti-
estar em coerência. ano. Razão da escolha do paradigma holístico da
Como todo modelo, o SISTUR foi se mos- interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade, ex-
trando insuficiente para o objetivo proposto de se pressa por essa discussão, como necessidade para
compreender o turismo em sua complexidade nos uma ação na construção da epistemologia do tu-
diferentes territórios e em suas diferentes formas de rismo.
desenvolvimento. A exemplo da análise dos dados A prática científica não se reduz a uma sequên-
a partir das suas categorias, descrevendo como se cia de operações, de procedimentos necessários e
configurava cada um dos subsistemas, objetivava- imutáveis, de protocolos codificados, o que faz da
se com a soma das partes obter o diagnóstico do metodologia científica uma simples tecnologia. As
todo o sistema turístico, o que diante da conce- "pesquisas"em turismo, assim, apreendidas, fre-
ção complexa do conhecimento (transdisciplinar) quentemente se convertem em estudos descriti-
não foi possível, pois a simples soma das partes vos estatísticos preocupados em responder ao mer-
não revela a complexidade de suas conexões e a cado( uma das facetas do fenômeno) sem com-
dinâmica das relações. promisso com a realidade das comunidades onde
A própria concepção do objeto turístico tra- atuam e seus ambiente socioculturais, colocando
tado como fenômeno necessita inserir o sujeito em segundo plano as concepções utilizadas, e de
produtor-reprodutor do processo turístico tendo forma quase “desnecessária”, ou protocolar, explici-
que ir além do resultado do somatório de recur- tam suas metodologias,(entenda-se aqui por meto-
sos naturais do meio ambiente, culturais, sociais e dologias o conjunto de relações entre sujeito e ob-
econômicos, tem campo de estudo super abran- jeto de conhecimento e de intervenção, admitindo-
gente, complexo e pluricausal (Beni 1998). Se se a distinção entre o processo de produção de co-
por um lado a divisão do SISTUR em conjuntos nhecimento e o processo da prática interventiva),
e subsistemas facilita a coleta de dados, pois os raros são os estudos que apresentam noções ope-
indicadores e componentes que caracterizam cada ratórias ou categorias como forma de suas inter-
um dos subsistemas pode ser utilizado como um pretações.
roteiro de pesquisa, não é suficiente para enten- Certamente, não é possível conhecer tudo so-
der sua trama no tecido social onde as relações bre o fenômeno do turismo, nem aprender suas
de poder se fazem presentes e contextualizam sua multiformes transformações. Mas, por difícil que
historicidade. seja o conhecimento dos problemas chaves do tu-
Ao olhar da complexidade é importante notar rismo este deve ser tentado, para não cairmos na
que o todo é mais do que a soma das partes, não imbecilidade cognitiva. Tanto mais que hoje o con-
como um produto de adição, mas como um pro- texto de todo conhecimento político, econômico,
duto de uma dinâmica interna auto-organizacional, social, antropológico e ecológico é o próprio conhe-
uma dinâmica conjunta envolvendo as diversas cimento do mundo. A era planetária necessita si-
partes (Morin 2002). tuar tudo no contexto planetário. O conhecimento
A limitação dos modelos sistêmicos diante da do mundo como tal tornou-se uma necessidade ao
dinâmica das práticas do turismo (a coisa em si) mesmo tempo intelectual e vital. Trata-se de um
se transformou numa necessidade de ampliação problema que se apresenta a todo o cidadão: como
do seu conhecimento, cobrando seu pleno sentido ter acesso ás informações sobre o mundo, e como
epistemológico (construção do objeto científico) e ter a possibilidade de articulá-las. Faz-se neces-
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sário uma reforma do pensamento (Morin, 2000) onais que abordam desde questões de ciências já
razão pela qual acredita-se que objetos interdisci- consolidadas como a Sociologia, Economia, Geo-
plinares estão no turbilhão dessa reforma. grafia como também em outros campos do conhe-
O estudo do Turismo requer um questiona- cimento: questões ambientais, internacionalização
mento sistemático de tudo que envolve o fazer- de fluxos de capitais, antropologia, segurança, ter-
saber turístico, e do que se quer fazer; o saber rorismo, religião, saúde pública, entre outras. Mui-
turístico é e será objeto de desconstrução perma- tas dessas novas discussões se pautam em concei-
nente. Esse pressuposto aponta uma virtude, tipi- tos e categorias de análise alternativas àqueles em-
camente metodológica do conhecimento dialético, pregados tradicionalmente nos debates de mains-
diante da análise da realidade turística, entendê-la tream.
como dinâmica, viva, orgânica, sempre em muta- A interdisciplinaridade trata da síntese de duas
ção. Construir uma teoria que dê conta das práti- ou várias disciplinas, instaurando um novo nível do
cas turísticas deve ser uma conquista transdiscipli- discurso (metanível), caracterizado por uma nova
nar, em que a cada momento é, simultaneamente, linguagem descritiva e novas relações estruturais.
produzido o conhecimento e o produtor da ação Diferente da multi ou pluridiciplinaridade, a in-
desse conhecimento, numa recursão organizacio- terdisciplinaridade possibilita geração de novas dis-
nal, na qual a parte está no todo e o todo está na ciplinas o surgimento de novos conceitos e catego-
parte. rias de análise, o emprego de variáveis de ciên-
cias consolidadas como instrumentalização teórica
para novas abordagens científicas, ocorrendo nesse
5. A transdisciplinaridade como possibilidade caso, a transdiciplinaridade, ou seja, aquilo que
de construção de um objeto as teorias do tu- está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através
rismo das diferentes disciplinas e além das disciplinas.
O exemplo apresenta-se no campo das concei-
Para Jantsch (1980) há equívocos e interpreta- tuações tomando o turismo como um elaborado e
ções confusas entre os conceitos de pluri ou mul- complexo processo de decisão sobre o que visitar,
tidisciplinaridade, esta é a justaposição de várias onde, como e a que preço. Nesse intervém inúme-
disciplinas sem nenhuma tentativa de síntese. Elas ros fatores de realização pessoal e social, de natu-
dizem respeito à transferência de métodos de uma reza motivacional, econômica, cultural, ecológica e
disciplina para outra. científica que ditam a escolha dos destinos, a per-
Exemplos de multidisciplinaridade já exercita- manência, os meios de transporte e o alojamento,
dos nos estudos do turismo, por exemplo, em rela- bem como o objetivo da viagem em si, para fruição
ção aos métodos quali-quantitativos matemáticos tanto material como subjetiva dos conteúdos de
transferidos para o desempenho de gestão pública sonhos, desejos, de imaginação projetiva, de enri-
ou privados para análise de desempenho de redu- quecimento existencial histórico-humanístico, pro-
ção de custo, definição de prioridades, alcance e fissional e de expansão de negócios.
cobrança de resultados. Ou ainda instrumentos Entender o Turismo como um campo de prá-
de gestão como “Balanced Score Card”, que trans- ticas histórico-sociais, que pressupõem o desloca-
forma a gestão em princípios estratégicos focando mento do(s) sujeito(s), em tempos e espaços pro-
as ações na implementação de políticas mais efi- duzidos de forma objetiva, mas possibilitador de
cazes. Ou nas Relações Internacionais que sur- afastamentos simbólicos do cotidiano, coberto de
gem com domínio teórico na Ciência Política, as subjetividades, e explicitador de uma estética di-
novas exigências temáticas nos estudos internaci- ante da busca do prazer é posicionar-se a partir de
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sua complexidade, numa atitude interdisciplinar. epistemológica adotada por Moesch (2000, 2004)
A preocupação de construir uma Ciência do Tu- quando da construção de uma teoria do Turismo
rismo para fundamentar um corpo de conhecimen- como ciência.
tos com entidade teórico-metodológica particular, Jantsch (1980) ao explicar o porquê da trans-
dentro da complexidade de suas relações práticas, disciplinaridade, partiu da fragmentação do saber
impõe uma rutura epistemológica, onde o modo de em setores distintos e fechados, que para ele são
produção dos conhecimentos turísticos de forma características de um enfoque particular real e de
disciplinar, até então utilizado, que considera só um sistema específico de relações dos seres hu-
interesses setorializados permanecendo sempre no manos com seu entorno, ao contestar essa visão
domínio da linguagem restrita: marketing turís- parcial que corresponde a uma visão racional de
tico, economia do turismo, geografia do turismo, um mundo estável e estático, que foi imposta
gestão de negócios turísticos, entre outras; muito como última verdade da ciência moderna. Essa
aquém de uma conceção sistêmica de um fenô- conceção tendeu a abafar e rechaçar outra espécie
meno cujo objeto é interdisciplinar e complexo. de enfoque devido ao sucesso tecnológico e econô-
A reflexão epistemológica impõe aos próprios mico que reforçou a visão segundo a qual ciência
pesquisadores, sobre os instrumentos de conheci- seria uma abordagem mais verdadeira que aquela
mento dos quais as ciências dispõem, reflexão com desenvolvida por outras culturas que enfatizam a
vista a superar as crises revendo a pertinência dos inter-relação de tudo com tudo, ou outra cosmo-
conceitos, das teorias e dos métodos diante das visão.
problemáticas que são objeto de suas investiga- A realidade é mais complexa, depende de uma
ções. A visão sistêmica complexa, onde o todo é infraestrutura fisiológica, orgânica, que vai além
mais que a soma das partes, isto é, no nível do todo do fenômeno dado empiricamente, a atualidade
organizado há emergências em qualidades que não da vida psíquica subjacente. Essa complexidade
existem no nível das partes quando isoladas, o ob- só pode ser abordada pela interdisciplinaridade.
jeto da ciência se transforma: não é mais algo De uma parte, é preciso complementar o pen-
isolado, é um sistema complexo, pode ser uma das samento que separa por um pensamento que une.
pegadas metodológicas a ser reconstruída. Complexus significa “o que está tecido junto”. O
Impõem-se o paradigma da interdisciplinari- pensamento complexo é um pensamento que busca
dade, esse nasceu da tomada de consciência cujas ao mesmo tempo distinguir – mas sem separar –
“lunetas” disciplinares (de cada disciplina social e e unir. De outra parte, é preciso lidar com a in-
humana) tornam-se impotentes para estudar pro- certeza. O dogma de um determinismo universal
blemas cada vez mais complexos (Japiassu, 2002). deve ser superado. O universo não está submetido
Destina a criar um novo discurso que seria trans- à soberania absoluta da ordem, ele é o campo de
cendente às disciplinas particulares, isto quer dizer, uma relação dialógica (ao mesmo tempo antagô-
não é criar uma nova disciplina não científica, mas nica, concorrente e complementar) entre a ordem,
sim desenvolver práticas que podem ser negocia- a desordem e a organização. (Morin, 2000).
das entre diferentes pontos de vista ou interesses Como essa atitude interdisciplinar permite co-
disciplinares sob um fenômeno ou objeto propondo locar o turismo como um fenômeno contemporâ-
práticas políticas novas no campo de ação daquele neo, de uma sociedade plugada em redes, convive
conhecimento aplicado. com formas de uso do tempo liberado, das fé-
A interdisciplinaridade é para a elaboração rias familiares/individuais – garantidas pelas leis
de melhores representações do objeto em estudo trabalhistas aos cidadãos ainda empregados –, ao
sendo capaz, assim, de passar a ação, atitude mochileiro, às novas experiências permitidas pela
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tecnologia, onde deslocamentos no espaço e no fenômeno social contemporâneo, em que o prota-


tempo podem ser reais, mas também virtuais. A gonista é o sujeito, seja como produtor ou con-
conjugação dos tempos vivenciais diferenciados, a sumidor dessa prática social. Não é negada a
espaços cada vez mais unos, favorecendo a convi- contingência material do turismo em sua expres-
vência material entre os sujeitos e a vivência com são econômica, mas ela ocorre historicamente, em
intensidade das inter-relações, em praias massifi- espaços e tempos diferenciados, cultural e tec-
cadas, destinos urbanos patrimonializados, ou em nologicamente construídos, a ser irrigado com o
bucólicos recantos rurais, requer novas reflexões desejo de um sujeito biológico, nômade em sua
e teorias explicativas, para compreensão sistêmica essência. Sujeito objetivado, fundamental para a
orgânica nos processos de planeamento do tu- compreensão do fenômeno turístico como prática
rismo. As novas práticas turísticas requerem uma social, e subjetivado em ideologias, imaginários e
nova praxis turísticas. necessidade de diversão e encontro, na busca do
Ao estudar o turismo como realidade humana elo perdido entre prosa e poesia, conforme figura 3
o compreendemos como uma amálgama na qual das categorias estruturantes do fenômeno turístico
tempo, espaço, diversão, economia, tecnologia, abaixo representado:
imaginário, comunicação, diversão, ideologia, hos-
pitalidade que são categorias fundantes de um

Figura 4 | Categorias estruturantes do fenômeno turístico

Ao partilhar as conceções de Morin (2000b), de esquemas cognitivos que podem atravessar as


quando define que interdisciplinaridade pode sig- disciplinas, às vezes com tal virulência, que as
nificar também a troca e cooperação, o que faz deixam em transe. De fato, são os complexos de
com que possa vir ser alguma coisa orgânica. Na inter-multi-trans-disciplinaridade que realizam e
transdisciplinaridade tratam-se, frequentemente, desempenham um fecundo papel na história das
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ciências. Transdisciplinaridade, segundo Jantsch da confrontação das disciplinas dados novos que
(1980) é o reconhecimento da interdependência as articulam entre si, oferecendo uma nova visão
de todos os aspetos da realidade, a consequência da natureza e da realidade. Ela não procura o
normal da síntese dialética provocada pela inter- domínio sobre as disciplinas, mas o caminho de
disciplinaridade, quando esta for bem-sucedida. abertura de todas elas àquilo que as atravessa e
Um novo tipo de ciência está nascendo, não as ultrapassa. É preciso viver efetivamente a ex-
mecanicista, holística, a partir de Smuts (1986), periência do transmitir e aprender em união total,
e orienta-se em primeiro lugar pelos modelos vi- onde a herança acumulada do passado é reinter-
vos, levando em consideração a mudança e se pretada e visualizada apenas no que permanece
resumindo a noções tais como autodetermina- de universal e para todos, que se erigiu a par-
ção, auto-organização e autorrenovação, reco- tir do princípio dialógico-hologramático de Morin
nhecimento de uma interdependência sistêmica e (2000b) a reconstrução do sistema turístico. Onde
muitos outros aspetos. Há um sentido que é o a dinâmica da realidade impôs uma revisão de seus
sentido da vida, o que, junto com a alegria, são conjuntos de sistemas e subsistemas como partes
inerentes a essa nova visão transdisciplinar. Por- de um todo, de um “modelo explicativo”, em uma
que não caberia nesse movimento epistêmico das totalidade/partes do todo, representadas pela fi-
ciências em geral propor a continuidade da trilha gura 4 como objetos de um “eixo epistemológico
na construção de uma ciência do turismo? complexo”.
A inter e a transdisciplinaridade faz emergir

Figura 5 | SISTUR e a noção de complexidade

O SISTUR reconstruído a partir da teoria da pesquisa e a um debate em uma linguagem ela-


complexidade representa sair do modelo explica- borada, iniciando uma busca de sentido, o que
tivo da ciência rigorosa, ou eixo ou modelo da vem a ser estruturante no fenômeno turístico. Ou
biologia e passar a reconstruir o turismo por um seja, seus objetos constituintes do todo: objeto
modelo histórico-cultural, aceitando a questão glo- da infraestrutura, objeto superestrutura, objeto
bal da existência do fenômeno e abrindo-se a uma social, objeto cultural, objeto ecológico, objeto
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econômico e objeto do mercado. paráveis, surgiram no início dos anos 40 e com


A reconstrução do modelo do SISTUR pela grande intensidade se enriqueceram mutuamente.
teoria da complexidade, proposta nesse artigo, A teoria da informação permite entrar em um
o apreende como sistema vivo, que se auto- universo onde ao mesmo tempo existe ordem (re-
organiza, e realiza sua auto produção, ao mesmo dundância) e desordem (ruído) – e desse universo
tempo em que realiza a auto-eco-organização e se extrai algo novo, ou seja, a informação em si,
a sua auto-eco-produção, pois ele está envolvido que se torna então organizadora (programadora)
em um ambiente externo que se encontra, ele de uma máquina cibernética. A informação que
mesmo, integrado a um sistema eco-organizador, indica, por exemplo, o vencedor de uma batalha
o ecossistema. Conforme o princípio da auto-eco- dissipa uma incerteza, a que anuncia a morte sú-
organização tem valor hologramático, assim como bita de um tirano traz o inesperado e, ao mesmo,
a qualidade da imagem hologramática está ligada tempo, a novidade.
ao fato de que cada ponto possui a quase tota- A cibernética é uma teoria das máquinas autô-
lidade de informação do todo, do mesmo modo, nomas. A ideia de retroação, introduzida por
de certa maneira o todo é o todo que nós somos Norbert Weiner (1989), rompe com o princípio de
parte, está presente em nosso espírito. (Morin, causalidade linear e o substituí pelo da curva cau-
2001). sal. A causa atua sobre o efeito, e o efeito sobre
a causa, em um sistema de aquecimento em que
o termostato regula a marcha da caldeira. Esse
mecanismo, dito de “regulação”, é que permite a
autonomia de um sistema, nesse caso a autono-
mia térmica de um departamento em relação ao
frio exterior. A curva de retroação (denominada
feedback) desempenha o papel de um mecanismo
amplificador, por exemplo, na exacerbação de um
conflito armado. A violência de um protagonista
gera uma reação violenta que, por sua vez, gera
outra reação violenta. Tais retroações, inflacioná-
rias ou estabilizadoras, existem em profusão nos
fenômenos econômicos, sociais, políticos ou psico-
lógicos.
A teoria dos sistemas lança as bases de um
pensamento da organização. A primeira lição sistê-
mica é que “o todo é mais que a soma das partes”.
Isso significa que existem qualidades emergentes,
ou seja, que nascem da organização de um todo
e que podem retroagir sobre as partes. A água,
Figura 6 | Reconstrução do SISTUR por exemplo, tem qualidades emergentes em rela-
ção ao hidrogênio e ao oxigênio que a compõem.
Uma primeira via de acesso é fornecida pelas Aliás, o todo também é menos que a soma das
“três teorias” que constituem a teoria da comple- partes, pois as partes podem ter quantidades que
xidade – a da informação, da cibernética e dos são inibidas pela organização do conjunto.
sistemas. Essas três teorias, aparentadas e inse- A essas teorias deve ser acrescentado o desen-
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volvimento conceitual proporcionado pela ideia de dem, desordem e organização, mediante inume-
auto-organização. ráveis inter-retroacções, está constantemente em
Em sua teoria dos autômatos auto- ação nos mundos físico, biológicos e humano.
organizadores, Von Neumann (apud Morin, 2000) De outra forma, Prigogine (apud Morin, 2000)
questiona a diferença entre as máquinas artificiais introduziu a ideia de organização a partir da de-
e “máquinas viventes”. E assinala esse paradoxo: sordem. No exemplo dos turbilhões de Bernard,
os elementos das máquinas artificiais são muito podemos observar como estruturas coerentes se
bem fabricados, super afeiçoados, mas se degra- constituem e se auto mantem, a partir de certo li-
dam desde que a máquina começa a funcionar. miar de agitação e abaixo de outro limiar. “Para se
Por outro lado, as máquinas viventes são compos- manter, essas organizações necessitam alimentar-
tas de elementos pouquíssimos confiáveis, como se de energia, consumi-la e “dissipá-la”. No caso
as proteínas, que se degradam sem cessar; mas do ser vivo, este tem suficiente autonomia para ex-
essas máquinas possuem a estranha propriedade trair energia de seu meio ambiente, e inclusive dele
de se desenvolver, de se reproduzir, de se autor- colher informações e absorver sua organização –,
regenerar, substituindo por novas as moléculas processo que Morin (2000b) denominou auto eco
degradadas e as células mortas. A máquina artifi- organização.
cial não pode consertar a si mesma, enquanto que Portanto, a teoria da complexidade de Morin
a máquina vivente está sempre se regenerando, a (1986) se apresenta como um edifício de vários
partir da morte de suas células, segundo a fórmula andares. A base é formada a partir das três teo-
de Heráclito: “Viver de morte, morrer de vida”. rias (informação, cibernética e sistemas) e contém
“A contribuição de Von Foerster consiste na elementos necessários para uma teoria da organi-
descoberta do princípio da ordem a partir do ruído” zação. Em seguida vem o segundo andar com as
(apud Morin,1986). Se agitarmos uma caixa con- ideias de Von Neumann, Von Foerster, Atlan e Pri-
tendo cubos com duas faces montadas e dispostas gogine sobre à auto-organização. A esse edifício
desordenadamente, constataremos que esses cu- ele acrescentou elementos suplementares como os
bos irão formar espontaneamente um conjunto três princípios: o dialógico, o da recursão e o ho-
coerente. Assim, basta um princípio de ordem logramático.
(a imantação) e uma energia desordenada para O princípio dialógico une dois princípios ou no-
compor uma organização ordenada. Trata-se, ções antagônicas, que aparentemente deveriam re-
portanto, da criação de uma ordem a partir da pelir uma à outra, mas que são indissociáveis e
desordem. imprescindíveis para compreender uma mesma re-
Atlan (apud Morin, 2000) concebeu a teoria alidade. Pascal afirmava: “O contrário de uma
do “acaso organizador”. Observa-se uma relação verdade não é o erro, mas uma verdade contrá-
dialógica ordem/desordem/organização no nasci- ria.”
mento do universo a partir de uma agitação ca- Morin traduziu-o a sua maneira. “O contrário
lorífica (encontros por casualidade), princípios de de uma verdade trivial é um erro estúpido, mas o
ordem permitem a formação de núcleos, átomos, contrário de uma verdade profunda é sempre outra
galáxias e estrelas. Observa-se essa relação di- verdade profunda.” (apud Bohr, 2000a , p. 204). O
alógica também na emergência da vida, por en- problema é unir noções antagônicas para analisar
contros entre macromoléculas dentro de uma es- os processos organizadores e criadores no mundo
pécie de curva autoprodutora que terminará por complexo da vida e da história humana.
se tornar auto-organizadora vivente. Sob as for- O princípio da recursão organizacional vai além
mas mais diversas, a relação dialógica entre or- do princípio da retroação (feedback), ultrapassa a
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noção de regulação pela autoprodução e da auto- simplesmente quanto o da simplicidade; enquanto


organização. É uma curva geradora na qual os este último impõe separar e reduzir o paradigma da
produtos e os efeitos são eles próprios produtores complexidade preconiza reunir e ao mesmo tempo
e causadores daquilo que produz. Assim nós, in- distinguir.
divíduos, somos produtos de um sistema de repro- O pensamento complexo é, essencialmente, o
dução que retoma ao fundo dos tempos, mas esse pensamento que integra a incerteza e que é capaz
sistema só pode se reproduzir se nós mesmos nos de conceber á organização. Que é capaz de unir,
tornarmos seus produtores nos acasalando. Os in- contextualiza, globalizar, mas ao mesmo tempo re-
divíduos humanos produzem a sociedade em e por conhecer o singular e o concreto.
suas interações, mas a sociedade, como um todo A epistemologia do Turismo proposta tem sig-
emergente, produz a humanidade desses indivíduos nificação apenas para aqueles a quem a história
ao proporcionar-lhes a linguagem e a cultura. e as decisões humanas colocam uma questão sem
O princípio “hologramático”, por fim, destaca querer impor esta questão a todos, sem absolutizar
o aparente paradoxo de certos sistemas em que um novo discurso, dominando os anteriores.
não somente a parte está no topo, como também O objeto de estudo do Turismo é um objeto
o todo está na parte: a totalidade do patrimônio em construção, não é um objeto construído, pois
genético está presente em cada célula individual. o fenômeno turístico é um acontecimento insti-
Da mesma forma, o indivíduo é uma parte da so- tuinte, pois tem como motor as práticas sociais
ciedade, mas a sociedade está presente em cada em seu tempo sócio-histórico.
indivíduo como um todo, por intermédio de sua Todo o progresso importante do conhecimento,
linguagem, sua cultura, suas normais. como assinala Kuhn (1970), se opera necessaria-
Como se vê, o pensamento complexo de forma mente pela quebra e rutura de sistemas fechados,
alguma é um pensamento que exclui a certeza para que não possuem dentro deles a mesma a atitude
inserir a incerteza, que exclui a separação para in- de transcendência que o próprio fenômeno carrega.
serir a inseparabilidade, que exclui a lógica para Quando uma teoria se mostra incapaz de integrar
autorizar todas as transgressões. O processo con- observações cada vez mais centrais, quebrando o
siste, pelo contrário, numa incessante ida e volta próprio sistema que lhe deu sua coerência com seu
entre certezas e incertezas, entre o elementar e o fechamento, é substituído, por vezes relativizando
global, entre o separável e o inseparável. Não se os princípios anteriormente aceitos, o que se deno-
trata de abandonar os princípios da ciência clássica mina de quebra de paradigmas.
– ordem, separabilidade e lógica – mas de integrá- Segundo Morin (2000, p. 115) “é preciso eco-
los em um esquema ao mesmo tempo mais amplo e logizar as disciplinas, isso é, levar em conta o que
mais rico. Não se trata de opor um holismo global lhes é contextual, inclusive as condições culturais e
e vazio a um reducionismo sistemático; trata-se de sociais, ou seja, ver em que meio nascem levantam
vincular o concreto das partes á totalidade. É pre- problemas, ficam esclerosadas e transformam-se”.
ciso articular os princípios de ordem e desordem, Quanto mais é desenvolvida a inteligência geral,
separação e junção, autonomia e dependência, que maior é a sua capacidade de tratar os problemas
são ao mesmo tempo complementares, competido- especiais.
res e antagônicos, ao seio do universo. A razão da não construção de uma Ciência do
Em resumo, o pensamento complexo não é o Turismo está na má compreensão do domínio do
contrário do pensamento simplificante – ele o in- objeto turístico, objeto de investigação mal defi-
tegra. Como diria Hegel, opera a união da simpli- nido, e consequente assimilação insuficiente dos
cidade e da complexidade pode ser enunciado tão conhecimentos adquiridos.
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A falta de reflexão sobre o que desvelar, está mercado capitalística, desconhece a essência do fe-
na intencionalidade dos pesquisadores em indagar. nómeno turístico, o qual exerce uma pressão cres-
Trata-se do ponto de partida do ato completo do cente sobre a produção da subjetividade social, o
pensamento. ecossistema, o modo estético e a herança cultu-
A amplitude do objeto desafia o entendimento ral, existentes nas localidades visitadas, gerando
humano simplificador; esse objeto que, simultane- agenciamentos possíveis de ressignificação junto à
amente, é exterior a nós. Está em nós e interage realidade, através da relação entre visitantes e vi-
connosco, suporta mal o isolamento do sujeito em sitados.
relação ao seu objeto, o que nos leva a busca de Turismo é processo humano, ultrapassa o en-
um método transdisciplinar para a compreensão do tendimento enquanto função de um sistema eco-
objeto do turismo. nómico. Como um processo singular, necessita de
ressignificação às relações impositivas, aos códigos
capitalísticos e aos valores colocados como bens
culturais. Ainda, considerando o imbricamento ou
6. A teoria da Complexidade e o Ecossistema sobreposição de sistemas, bem como a visualiza-
do turismo ção hologramática, percebemos trocas energéti-
cas, materiais e informacionais que ocorrem entre
Construir um novo campo teórico para o Tu- o sistema e o ambiente, permitindo que ele inter-
rismo requer um método que avance na conceção nalize tudo o que necessita para que possa manter
do que seria conhecimento, ciência e teoria. O tra- a sua organização e estrutura em funcionamento.
tamento disciplinar que vem sendo dado ao estudo Na contemporaneidade, para melhor compre-
do Turismo – e daí a dificuldade na sua superação ender o conceito de sistema, é preciso reconhe-
como setor económico e/ou atividade mercadoló- cer os parâmetros: ambiente em rede, conectivi-
gica – faz parte do contexto da produção do co- dade, interatividade, auto-eco-organização, recur-
nhecimento científico contemporâneo, que desvela sividade, autonomia, complexidade, entre outros.
as relações ecosociais dos sistemas complexos. A complexidade para Morin constituiria, assim,
A ciência moderna com seu paradigma raciona- o tecido, o pano de fundo, a trama, as interações
lista produziu coisas boas e fecundas, mas também que por acaso ocorrem, se no tecido é onde ocor-
permitiu que, pela primeira vez, a humanidade vis- rem os acontecimentos, podemos então considerar
lumbrasse a possibilidade da destruição total do que a complexidade é um fator constitutivo da vida
planeta, com a bomba atómica. Quer dizer, há correspondente a esse entrelaçamento de fenóme-
problemas dentro da razão, como afirma Morin nos e processos que constituem a sua dinâmica na-
(1996). tural em diferentes níveis de ascenso e descenso.
Compreender a problemática do desenvolvi- O princípio do círculo recursivo ultrapassa a
mento crescente do turismo é relevante não só noção de regulagem para a de auto produção e de
à medida que seus produtores, vendedores, inter- autorregulação. Os produtos e os efeitos são, eles
mediários e consumidores continuam produzindo, próprios, vistos como os produtores e causadores
vendendo e consumindo sem limites ou critérios, daquilo que os produz. Na construção dos mode-
sem outro fim que o próprio benefício do primeiro e los de apreensão do fenómeno turístico de forma
a satisfação egoísta do consumidor, mas pela per- sistémica, explicita-se a necessidade da existência
sistência do problema, disfarçado nas conceções de uma estrutura, como um feixe de relações en-
implícitas destes conceitos. tre elementos que o compõem. Esses elementos
Essa postura, emergente de uma cultura de são complementares na sua distribuição, o todo
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em que se constituem é cabal e suficiente, há uma encontro possibilitado pela hospitalidade.


forte inter-relação entre as partes. É uma estru- Relações sociais que conferem a esse ecossis-
tura de partes satisfatoriamente distribuídas, que tema turístico a sua energia, a sua força dinami-
se associam e complementam. Toda a estrutura zadora como humana. O sujeito turístico é que
pressupõe um sistema, pelo menos implícito e rea- permite a existência deste sistema e não o inverso.
lizável, sendo sua condição prévia e necessária para Essa mesma energia que mantém a dinâmica do
ele existir. De um lado temos o contorno geral do sistema turístico é produtora de necessidades ob-
todo; de outro, a possibilidade de redução da com- jetivas, que de forma espiralada, gera uma repro-
plexidade do todo a nível explicativo da estrutura, dução ampliada de processos económicos e cul-
que repetiria dentro de si o retrato em miniatura turais, que atendem ao desejo de transumância e
do todo, dando, ao mesmo tempo, a razão porque permanência transitória do sujeito turístico, no seu
o todo se mantem. movimento de ir-vir, seu fluxo nómada.
O Turismo é um sistema aberto, orgânico, que A energia humana causada pelo desejo de tran-
não pode ser estudado como uma entidade radi- sumância, o nomadismo na contemporaneidade
calmente isolada. Daí seu conteúdo interdiscipli- gera um sistema auto-eco-organizador, assim, o
nar e transdisciplinar. Teórica e empiricamente o turista é produtor do objeto turístico, mas também
conceito de sistema aberto complexo abre a porta numa dinâmica sistêmica auto recursiva, é repro-
a uma teoria da evolução, que não pode derivar dutor do próprio sistema turístico ao consumir os
mais que de interações entre sistema e ecossis- objetos produzidos nos territórios visitados.
tema e que, em seus laços mais notáveis, pode ser Tendo como paradigma a complexidade, a aná-
concebido como um transbordo do sistema num lise de sistemas constrói modelos que buscam
metassistema, ou, ecossistema turístico, e aqui explicar o fenómeno turístico na sua totalidade,
estabelece-se o desafio da trilha. transpondo as suas preocupações com a eficácia
Finalmente, sendo a relação fundamental entre dos planos turísticos e o papel do estado no con-
os sistemas abertos e o ecossistema de ordem ma- trole normativo desse desenvolvimento. A ideia
terial energético e, organizacional/informacional, de que os efeitos podem ser auto-eco-reguladores
poderíamos tratar de compreender o caráter ao das suas supostas causas dentro de um sistema
mesmo tempo determinado e aleatório da relação complexo e de que os observadores podem modi-
ecossistémica. Seu objeto no formato de sua com- ficar, pela via interativa, o que estão a observar,
plexidade desafia uma epistemologia social para o criou um novo marco epistemológico para apreen-
entendimento de sua génese. Assim, as catego- der o fenómeno turístico como um campo cientí-
rias como tempo, espaço, tecnologia, economia, fico cujo objeto interdisciplinar é composto pela
comunicação, ideologia, imaginário, hospitalidade integralidade e circularidade presente no ecossis-
e diversão, entre outras, constituem-se na sua prá- tema turístico.
xis. Práxis turística não disjuntiva, nem linear,
mas sim, uma construção dinâmica, permanente,
onde o sujeito turístico na sua transumância se Referências
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