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Victor De Carli Lopes

Flavi Ferreira Lisboa Filho (orgs.)

OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS DA


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
identidades, trajetórias e perspectivas

1.ª Edição

Santa Maria
Pró-Reitoria de Extensão | PRE
2022
O14 Observatório de direitos humanos da Universidade Federal de Santa Maria
[recurso eletrônico] : identidades, trajetórias e perspectivas / Victor de
Carli Lopes, Flavi Ferreira Lisboa Filho (orgs.). – Santa Maria, RS :
UFSM, Pró-Reitoria de Extensão, 2022.
1 e-book : il. – (Série Extensão)

ISBN 978-85-67104-69-0

1. Direitos humanos 2. Igualdade 3. Extensão 4. Identidade I. Lopes,


Victor de Carli II. Lisboa Filho, Flavi Ferreira

CDU 342.7(066)

Ficha catalográfica elaborada por Lizandra Veleda Arabidian - CRB-10/1492


Biblioteca Central - UFSM
EXPEDIENTE

Reitor
Luciano Schuch

Vice-Reitora
Martha Bohrer Adaime

Pró-Reitor de Extensão
Flavi Ferreira Lisbôa Filho

Pró-Reitora de Extensão Substituta


Cultura e Arte
Vera Lucia Portinho Vianna

Articulação e Fomento à Extensão


Rudiney Soares Pereira

Desenvolvimento Regional e Cidadania


Jaciele Carine Sell

Observatório de Direitos Humanos


Victor De Carli Lopes

Subdivisão de Divulgação e Eventos


Aline Berneira Saldanha

Revisão Textual
Camila Steinhorst
Erica Duarte Medeiros

Projeto Gráfico e Diagramação


Vitor Bitencourt
CONSELHO EDITORIAL

Profª. Adriana dos Santos Marmori Lima


Universidade do Estado da Bahia - UNEB

Profª. Olgamir Amancia Ferreira


Universidade de Brasília - UnB

Profª. Lucilene Maria de Sousa


Universidade Federal de Goiás - UFG

Prof. José Pereira da Silva


Universidade Estadual da Paraíba - UEPB

Profª. Maria Santana Ferreira dos Santos Milhomem


Universidade Federal do Tocantins - UFT

Prof. Olney Vieira da Motta


Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF

Prof. Leonardo José Steil


Universidade Federal do ABC - UFABC

Profª. Simone Cristina Castanho Sabaini de Melo


Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP

Profª. Tatiana Ribeiro Velloso


Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB

Prof. Odair França de Carvalho


Universidade de Pernambuco - UPE
APRESENTAÇÃO

No ano de 2018, a ideia da criação de um local difusor das temáticas de Direitos


Humanos na universidade, já nutrida há alguns anos, finalmente toma forma e se ma-
terializa no Observatório de Direitos Humanos (ODH) da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM). Vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da instituição, o ODH
tem, desde seu embrião, um caráter eminentemente extensionista. A importância
desse fato é atestada pelos capítulos que se encontram nesta obra, frutos de ações de
extensão que, mais do que formulações teóricas ou anseios de gabinete, promoveram
práticas e conexões capilarizadas nas comunidades, interligando de maneira concre-
ta o tripé universitário de Ensino, Pesquisa e Extensão.
É graças a essas ações integradas nos bairros, nas associações comunitárias, nos
colégios e em outras instituições da região que o Observatório ganhou cada vez mais
notoriedade e relevância, ao passo que durante uma sessão solene na Câmara de
Vereadores de Santa Maria, em 2019, o ODH recebe a Comenda Renato Russo,
honraria destinada ao reconhecimento público de pessoas ou instituições que atuam
na promoção dos Direitos Humanos, da cultura e da cidadania dos grupos popula-
cionais da cidade.
No ano de 2020, o Observatório é alavancado de Projeto Estratégico para uma
Subdivisão da Universidade, permitindo que ele tenha um caráter permanente na
instituição e não à mercê das eventuais gestões que assumirem a Reitoria, isto é, ele
passa a ser incorporado no organograma da Universidade e deixa de ser apenas uma
ação da Gestão. Dentro da PRE, o ODH está inserido na Coordenadoria de Desen-
volvimento Regional e Cidadania (CODERC), pois trabalhar com Direitos Huma-
nos é se voltar para a promoção da cidadania, principalmente daqueles indivíduos e
grupos populacionais que têm esses direitos mais negligenciados e/ou negados. De
forma semelhante, torna-se falho pensar em um desenvolvimento regional que não
compreenda todas as populações inseridas no território, principalmente àquelas que
tradicionalmente estiveram à sua margem. Sob o guarda-chuva da mesma Coorde-
nadoria, estão outras subdivisões que comungam desses princípios e somam esforços
na operacionalização dessas ideias, como a Incubadora Social, os Geoparques Ca-
çapava do Sul e Quarta Colônia, e as Ações Comunitárias, que buscam promover “o
desenvolvimento humano, cidadão e territorial, a conservação do patrimônio natural
e cultural, as tecnologias sociais e a extensão tecnológica, em prol de uma universi-
dade socialmente referenciada” (UFSM, 2020).
A UFSM, cuja sede se encontra no coração do Rio Grande do Sul, possui campi
espalhados em outros pontos do Estado, permitindo que esses diálogos sobre Direi-
tos Humanos, inclusão e cidadania ganhem novos contornos e se espraiem em diver-
sas localidades por meio dos extensionistas de nossa universidade. Essa atuação se
dá por meio de editais anuais que o ODH lança para fomentar ações que englobem
grupos populacionais em situação de vulnerabilidade social organizados em onze
eixos: i) infância e adolescência; ii) população negra; iii) população indígena; iv) pes-
soa idosa; v) pessoa com deficiência; vi) LGBTTQI+; vii) mulheres; viii) refugiados; ix)
população em situação de rua; x) população em privação de liberdade; e xi) Associação
dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (ATVSM).
No ano de 2020, a partir da demanda dos próprios projetos vinculados ao ODH, foi en-
viada uma carta convite a todas as ações para participar do livro Observatório de Direitos
Humanos da Universidade Federal de Santa Maria: identidades, trajetórias e perspectivas.
Por meio desse documento, pretendemos dar visibilidade a todos esses esforços despendi-
dos, valorizar os extensionistas, agradecer as comunidades parceiras que abriram suas portas
acreditando no mérito dessas ações e permitir que nossos acúmulos percorridos possam ser-
vir de desdobramento para novas práticas.
Esperamos que a leitura dos capítulos apresentados a seguir seja tão enriquecedora para
vocês quanto foi a execução dessas atividades para nossa comunidade universitária.

Com estima,
Flavi Ferreira Lisboa Filho e Victor De Carli Lopes

Referência
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA. Resolução n. 016/2020.
Estabelece a nova estrutura organizacional da Pró-Reitoria de Extensão (PRE)
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), suas competências e atri-
buições e altera o Regimento Geral da UFSM. Disponível em: https://www.
ufsm.br/pro-reitorias/proplan/resolucao-n-016-2020/. Acesso em: 6 set. 2022.
Sumário
PARTE I

PROJETO ESPERANÇANDO E O DESENVOLVIMENTO DE AÇÕES


12 VOLTADAS A ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL EM SANTA MARIA
Alice Lameira Farias, Raquel Bevilaqua, Stéfany dos Santos do Amaral,
Ana Luiza Lopes Koech, Daniela Porto Giacomelli, Luciana Davi Traverso,
Elisete Kronbauer, Karine Almeida Pacheco

APOIO PEDAGÓGICO E AULAS EXTRACURRICULARES – CIÊNCIAS EXATAS


28 PARA DISCENTES DO ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO
Gustavo Lenhardt Steffen, César Teixeira Pacheco, Ana Luisa Soubhia

O CINE DIREITOS HUMANOS NA FORMAÇÃO DO INTERNACIONALISTA


40 CRÍTICO-SENSÍVEL: EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO POSSIBILIDADES DE
NEGOCIAÇÃO ENTRE ESTRUTURA E AGÊNCIA
Ademar Pozzatti

CINEGRAFANDO TRAJETOS E AÇÕES EM DIREITOS HUMANOS:


54 A PARTILHA DE SABERES E IMAGINÁRIOS NA LINGUAGEM AUDIOVISUAL
Valeska Maria Fortes de Oliveira, Sabrina Copetti da Costa,
Jéssica Dalcin da Silva, Tania Micheline Miorando

PROJETO “AÇÕES DO NÚCLEO DE IMPLEMENTAÇÃO


64 DA EXCELÊNCIA ESPORTIVA E MANUTENÇÃO DA SAÚDE”
JUNTO AO OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS
Luiz Fernando Cuozzo Lemos, Igor Martins Barbosa,
Samuel Klippel Prusch, Aline Pacheco Posser

ATENDIMENTO PSICOLÓGICO ONLINE DE MÃES ADOTIVAS:


83 RELATO DE EXPERIÊNCIA DE AÇÃO EXTENSIONISTA
Catiane da Silva Marques, Suane Pastoriza Faraj,
Aline Cardoso Siqueira
A GARANTIA DE DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO SOCIOEDUCATIVO:
96 UMA HISTÓRIA DE POESIAS, SONHOS, RESISTÊNCIAS
E INVESTIMENTOS COLETIVOS
Renata dos Santos da Costa, Felipe Bueno da Silva, Marília de Araújo Barcellos,
Sara Peres Dornelles Almeida, Juliana da Rosa Marinho, Jana Gonçalves Zappe
INTERVENÇÃO PSICOSSOCIAL COM ADOLESCENTES PRIVADOS DE
111 LIBERDADE: ESTABELECENDO LAÇOS ENTRE SOCIOEDUCAÇÃO E
UNIVERSIDADE PARA PROMOVER INCLUSÃO SOCIAL
André Morgental Weber, Sara Peres Dornelles Almeida, Juliana da Rosa Marinho
Renata dos Santos da Costa, Luana da Costa Izolan, Jana Gonçalves Zappe

ESCOLA E SOCIOEDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE:


126 DESAFIOS E POTENCIALIDADES EM UM GRUPO COM PROFESSORES
Dorian Mônica Arpini, Joana Missio

137 ESCapando do ECA: no bom sentido


José Luiz de Moura Filh, Dione Raquel Zoch Viñas

151 CORREDORES CULTURAIS


José Luiz de Moura Filho, Gabriel de Oliveira Soares

168 MEDITAÇÃO NO CUIDADO A ADOLESCENTES EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE


Marcio Rossato Badke, Gabriel Lautenschleger, Elisa Vanessa Heisler, Raquel Mortari,
Pamella Giovanella Scalcon Keller, Jana Rossato Gonçalves

PARTE II
PROJETO “DNA AFETIVO KAMÊ E KANHRU” NO CONTEXTO DA ARTE
181 COLABORATIVA COM COMUNIDADE INDÍGENA KAINGÁNG
Andreia Machado Oliveira, Kalinka Lorenci Mallmann, Eliseu Balduino

DANÇAR A MISSA DA TERRA SEM MALES:


191 UM FAZER-DIZER DO CORPO QUE PRONUNCIA O MUNDO
Odailso Berté, Crystian Castro , Mônica Correa de Borba Barboza

RECUPERANDO NASCENTES E SABERES TRADICIONAIS:


205 ESTUDO DE CASO NA TERRA INDÍGENA DO GUARITA
Suzane B. Marcuzzo, Kessia Abich Rodrigues, Andre Luis Soares,
Alexssandro de Freitas de Morais, Lucas Gavioli Ganciné

DIREITOS DAS PESSOAS INDÍGENAS:


218 PLURALIDADE LINGUÍSTICA E ACESSO À JUSTIÇA
Vítor Jochims Schneider, Jafé Emanuel Chaves Ribeiro
Gilnei Candinho, Rodrigo Mariano

COMUNICAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E PROTAGONISMO DOS REFUGIADOS


231 POR MEIO DO DOCUMENTÁRIO “5.000KM: UMA JORNADA DE ESPERANÇA”
Anna Julia Carlos, Bruna Bonadeo, Gabriel Masarro de Araujo, Rafael Foletto

INTERFACES TEÓRICO-PRÁTICAS DO MIGRAIDH E CÁTEDRA SÉRGIO VIEIRA


241 DE MELLO DA UFSM PARA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
Giuliana Redin , Amanda Schreiner Pereira, Maria Clara Mocellin,
Maria Catarina Chitolina Zanini, Liliane Dutra Brignol, Eliana Rosa Sturza
UFSM NAS RUAS: ITINERÁRIOS DE AÇÕES EXTENSIONISTAS COM PESSOAS
257 EM SITUAÇÃO DE RUA EM SANTA MARIA/RS
Amara Lúcia Holanda Tavares Battistel, Josiane Bertoldo Piovesan,
Mariana Mozzaquatro

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE


COVID-19: RELATOS DAS AÇÕES DESENVOLVIDAS PELO CENTRO DE
268 REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
NO MUNICÍPIO DE SANTA MARIA/RS
Annie Caroline Ebani Jacques, Maria Ramires Conrado

MÃES, CRIANÇAS E A QUESTÃO PRISIONAL:


278 REFLEXÕES ACERCA DAS EXPERIÊNCIAS DO PROJETO INSPIRA
Graziela Escandiel de Lima, Marcia Eliane Leindcker da Paixão, Jéssica Pereira Righi

REFLEXÕES SOBRE O PROJETO DIREITO E GÊNERO:


295 ANÁLISE DE UM ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO TEÓRICA SOBRE
OS ESTUDOS DE GÊNERO E SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO
Andrea Nárriman Cezne, Íngrid Schmidt Visentini

AÇÕES DE ENFRENTAMENTO DA VULNERABILIDADE SOCIAL:


307 TRABALHO E RENDA PARA AS MULHERES DA VILA MARINGÁ/RS
Talita Gonçalves Posser, Bruna de Vargas Bianchim, Paula Balardin Ribeiro Aragão,
Pedro Henrique Silva dos Santos, Vânia Medianeira Flores Costa

TRABALHO E VIDA DIGNA:


316 AÇÕES COM AS MULHERES RECICLADORAS E CATADORAS DE LIXO
(DESCARTE) NO MUNICÍPIO DE SANTA MARIA/RS
Sirlei Glasenapp, Solange Regina Marin,
Fernando da Rocha Bellé, Mariana Mozzaquatro
LGBTCHÊ:
327 FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS EM GÊNERO E SEXUALIDADE
Gustavo de Oliveira Duarte, Felipe Barroso de Castro, Aline de Souza Caramê,
Thaiane Bonaldo do Nascimento, Felipe Machado

O PROGRAMA DE EXTENSÃO GIDH: GÊNERO, INTERSECCIONALIDADE E


341 DIREITOS HUMANOS ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA
Gabriela Schneider, Mariana Selister Gomes, Núncia Guimarães Escobar

OFICINAS DE TEATRO PARA PESSOAS COM E SEM DEFICIÊNCIA:


356 PRÁTICAS E PROCEDIMENTOS DE CRIAÇÃO EM BUSCA DA AMPLIAÇÃO DA
ACESSIBILIDADE ÀS ARTES CÊNICAS
Marcia Berselli, Vanessa Corso Bressan, Flavia Grützmacher dos Santos

372 UM MEMORIAL EM HOMENAGEM ÀS VÍTIMAS DA TRAGÉDIA DA BOATE KISS


Virgínia Vecchioli, Laura Lucca
PARTE
I

11
PROJETO ESPERANÇANDO E O
DESENVOLVIMENTO DE AÇÕES
VOLTADAS A ADOLESCENTES
EM SITUAÇÃO DE ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL EM SANTA MARIA

Alice Lameira Farias


Raquel Bevilaqua
Stéfany dos Santos do Amaral
Ana Luiza Lopes Koech
Daniela Porto Giacomelli
Luciana Davi Traverso
Elisete Kronbauer
Karine Almeida Pacheco
Das utopias
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!

Mario Quintana
INTRODUÇÃO

Desde a época do Brasil Colônia até o período recente, de redemocratização do país,


houve políticas (públicas e privadas) destinadas a atender crianças e adolescentes em si-
tuação de vulnerabilidade social. Essas políticas são caracterizadas, essencialmente, pela
descontinuidade, e sua implementação ocorria de acordo com as demandas sociais que,
em cada época, entendia-se como prioritárias, tendo, ao longo da história, um caráter ca-
ritativo e assistencialista, higienista e controlador (RIZZINI; PILLOTI, 2011). Entretanto,
após diversas lutas e reivindicações de movimentos sociais da sociedade civil e com o
processo de redemocratização do país, período em que houve a promulgação da Constitui-
ção Federal de 1988, passou-se a reconhecer, oficialmente, que a assistência social é uma
política pública de responsabilidade do Estado (BRASIL, 1988), garantindo um efeito de
continuidade e permanência às ações dela decorrentes. Sob essa nova perspectiva, no ano
de 1990, é promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei Federal n. °
8069/1990), um marco histórico nas políticas de assistência social destinadas a crianças e
adolescentes, os quais passam a ser concebidos como sujeitos de direito em situação pecu-
liar de desenvolvimento (BRASIL, 1990).
O ECA preconiza diretrizes e ações que devem orientar a elaboração de políticas públi-
cas para crianças e adolescentes, priorizando seu desenvolvimento saudável. Nessa dire-
ção, em conjunto com as políticas públicas orientadas pelo Sistema Único de Assistência
Social (SUAS), criado em 2005, são reorganizados os serviços destinados a acolher e pres-
tar assistência a crianças e adolescentes que tiveram seus direitos fundamentais ameaça-
dos, negligenciados e/ou violados. Dessa forma, o serviço de acolhimento institucional,
o qual faz parte da alta complexidade da proteção social e integra as políticas do SUAS, é
regulamentado (BRASIL, 2009).
O serviço de acolhimento institucional é responsável por abrigar crianças e adolescentes
que sofreram ameaça ou violação grave de direitos por parte de seus cuidadores, necessi-
tando de medida protetiva de afastamento familiar. Salienta-se que, conforme consta no
ECA, em seu Artigo 101 (BRASIL, 1990), essa medida foi planejada para ter um caráter
excepcional e provisório, pois, conforme Artigo 19 do mesmo estatuto, deve ser assegurado
o direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária, prioritariamente
na família de origem. Apenas quando esgotados todos os recursos para sua manutenção
nessa família é que deverá ocorrer o encaminhamento de criança ou adolescente para ser-
viços de acolhimento institucional (BRASIL, 2009).
Atualmente organizado em quatro modalidades de atendimento a crianças e adoles-
centes, o serviço de acolhimento caracteriza-se por: abrigo institucional (0 a 18 anos),
casa-lar (0 a 18 anos), família acolhedora (0 a 18 anos) e república (18 a 21 anos), este
último é indicado para jovens que estão em processo de desligamento do serviço (BRA-
SIL, 2009, p. 66). No Município de Santa Maria, local em que a ação de Extensão re-
latada neste texto tem sido desenvolvida desde 2019, as duas primeiras modalidades

14
de atendimento (abrigo institucional e casa-lar) têm sido tradicionalmente oferecidas
pela Instituição Beneficente Lar de Miriam e Mãe Celita, na primeira modalidade, e pelo
Aldeias Infantis SOS, na segunda modalidade.
Tanto o abrigo institucional quanto a casa-lar são descritos como um serviço de acolhi-
mento provisório para crianças e adolescentes afastados do convívio familiar em razão de
medida protetiva. No caso do abrigo institucional, este deve apresentar:
[...] aspecto semelhante ao de uma residência e estar inserido na comunidade,
em áreas residenciais, oferecendo ambiente acolhedor e condições institucionais
para o atendimento com padrões de dignidade. Deve ofertar atendimento perso-
nalizado e em pequenos grupos e favorecer o convívio familiar e comunitário das
crianças e adolescentes atendidos, bem como a utilização dos equipamentos e
serviços disponíveis na comunidade local (BRASIL, 2009, p. 67).

Já o serviço de acolhimento na modalidade casa-lar é descrito como:

Serviço de Acolhimento provisório oferecido em unidades residenciais, nas quais


pelo menos uma pessoa ou casal trabalha como educador/cuidador residente –
em uma casa que não é a sua – prestando cuidados a um grupo de crianças e ado-
lescentes afastados do convívio familiar por meio de medida protetiva de abrigo
[...] (BRASIL, 2009, p. 74) (Ênfase adicionada).

A principal diferença entre ambas as modalidades de acolhimento está na presença do


educador/cuidador residente, isto é, pessoa ou casal que reside na casa-lar com as crianças
e adolescentes atendidos. Esta pessoa ou casal é responsável pelos cuidados e pela organi-
zação da rotina da casa. Além disso, na casa-lar, deve haver um menor número de crianças
e adolescentes atendidos quando comparados à primeira modalidade de serviço de acolhi-
mento (BRASIL, 2009, p. 75).
Independentemente da modalidade, o tempo indicado para a permanência da criança
ou do adolescente no serviço de acolhimento deve ser inferior a dois anos (BRASIL, 1990;
BRASIL, 2009). No entanto a instituição de acolhimento institucional pode acabar tor-
nando-se um lugar de longa permanência para crianças e adolescentes impossibilitados de
retornar à família de origem em razão da violação de seus direitos fundamentais - quando
este é o caso, a adoção pode ser uma possibilidade para que eles encontrem uma nova
família. Entretanto há um descompasso entre o perfil de crianças e adolescentes aptos à
adoção e aquele desejado pelos pretendentes a pais e mães. De acordo com estudos, cerca
de 92% das crianças e adolescentes aptos no Conselho Nacional de Adoção têm entre seis
e 17 anos de idade, ao passo que 90% dos pretendentes desejam crianças abaixo desta faixa
etária (SANTANA; BRITO; CHAGAS, 2018). Infelizmente, não é incomum encontrar
crianças e adolescentes que passam anos no serviço de acolhimento, o qual acaba caracte-
rizando-se “menos como espaço de passagem”, como deveria ser, e “mais como lugar de
moradia, território de referência para o cotidiano de suas vidas e para a construção de suas
identidades” (MARTINEZ, SOARES-SILVA, 2008, p. 116).

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Além de todos os desafios inerentes à convivência em um serviço dessa natureza, os
jovens adolescentes que estão prestes a completar 18 anos precisam enfrentar um outro
em especial: a chegada da maioridade e, com ela, a necessidade de sair das instituições e
enfrentar a vida adulta por conta própria. Embora uma das atribuições da equipe técnica
que trabalha nessas instituições seja a de preparar gradualmente esses jovens para o des-
ligamento dos serviços de acolhimento, buscando ajudá-los a desenvolver sua autonomia
(BRASIL, 1990, Art. 92), a realidade mostra que tem havido uma preparação insuficiente
ou mesmo inexistente desses jovens para a vida fora desse serviço (MARTINEZ, SOA-
RES-SILVA, 2008, p. 117).
Foi com base nessas questões que, em 2019, servidoras da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM) criaram o Projeto de Extensão Esperançando, voltado a jovens que
estejam na iminência de completar 18 anos e deixar o serviço de acolhimento. O Esperan-
çando busca constituir, ampliar e fortalecer uma ampla rede de apoio e cooperação forma-
da por meio de parcerias com instituições públicas e privadas, bem como com profissionais
liberais e demais pessoas da sociedade civil, para auxiliar esses jovens na difícil transição
para a vida pós-acolhimento institucional. A ajuda na construção de um projeto de vida, a
capacitação profissional e a inserção desses jovens no mundo de trabalho são algumas das
ações nas quais o Esperançando tem atuado, com a finalidade de fortalecê-los na transição
para a vida adulta, para que se tornem protagonistas de sua própria história.
Neste texto, objetivamos apresentar e discutir as ações de Extensão realizadas pelo pro-
jeto Esperançando entre os anos de 2019 e 2021, o que faremos na seção seguinte.

O PROJETO ESPERANÇANDO

Esperançando é um Projeto de Extensão da UFSM, criado em 2019, que tem a sua origem no
trabalho do Grupo de Apoio e Incentivo à Adoção de Santa Maria (GAIA-SM). Foi por meio
de um Protocolo de Intenções firmado entre o GAIA-SM e a UFSM que o projeto surgiu e pôde
concorrer, naquele ano, a duas chamadas públicas da UFSM, sendo contemplado em dois editais
, o que possibilitou ao Esperançando alavancar suas ações por meio da oferta de bolsas
para duas estudantes da instituição atuarem no projeto. Inicialmente intitulado “Cons-
truindo um novo fim: uma proposta para adolescentes que estão saindo do Acolhimen-
to Institucional em razão da maioridade”, o projeto foi batizado de Esperançando pelos
primeiros adolescentes participantes, durante um dos vários encontros promovidos em
2019. O nome Esperançando faz referência ao verbo “esperançar”, cunhado pelo educa-
dor brasileiro Paulo Freire, o qual afirmava que não era “esperançoso por pura teimosia,
mas por imperativo existencial e histórico” (FREIRE, 1992, p. 05). Nesse sentido, o verbo
“esperançar” tem sua definição conforme segue:

16
É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente
que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é espe-
rança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é
construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é
juntar-se com outros para fazer de outro modo (CORTELLA, 2015, p. 22) (Ên-
fase adicionada).

Atualmente, integram a equipe do Esperançando servidoras da UFSM, profissionais


liberais e estudantes universitários que atuam como participantes voluntários no projeto.
O Esperançando atende adolescentes entre 14 e 18 anos que tiveram seus direitos funda-
mentais ameaçados ou violados e, por essa razão, moram em uma das duas instituições de
acolhimento institucional de Santa Maria: 1) Instituição Beneficente Lar de Mirian e Mãe
Celita e 2) Aldeias Infantis SOS. O projeto também atende jovens de 19 e 20 anos que já
deixaram o serviço de acolhimento, mas desejam continuar participando do projeto. As
equipes técnicas das duas instituições mantêm, com o Esperançando, uma relação de par-
ceria por meio de trocas constantes sobre os adolescentes, algumas de suas demandas, seu
preparo para participar de programas de primeiro emprego, e sobre os impactos das ações
do projeto sobre suas vidas. Outra parceria fundamental do projeto é a equipe do Juizado
da Infância e Juventude (JIJ) de Santa Maria, que auxilia em várias demandas apresenta-
das pelo Esperançando.
A Figura 1 representa a atual organização do Esperançando: equipe que compõe o proje-
to, público atendido, relação com as duas instituições de acolhimento da cidade, o Plano de
Atendimento Individual (PAIn) e os quatro eixos que norteiam as ações do projeto.
Figura 1 – Estrutura organizacional do Projeto Esperançando

Fonte: autoras.

17
Ao longo da próxima seção, apresentaremos os eixos de atuação do projeto, bem como
o PAIn. Além desses, apresentamos as três edições do Seminário Esperançando, que tem,
como um dos objetivos, divulgar as ações realizadas pelo projeto.

EIXOS DE ATUAÇÃO DO PROJETO, PAIN E O SEMINÁRIO ESPERANÇANDO

Desde o seu início, o Esperançando tem realizado inúmeras ações voltadas aos adolescen-
tes em situação de acolhimento institucional. Essas ações são organizadas em quatro eixos
norteadores: Renda, Educação, Cidadania e Moradia. Esses eixos têm por objetivo identifi-
car, sistematizar e planejar ações para atender as demandas dos adolescentes em transição
para a vida pós-acolhimento. No ano de 2020, todos os eixos ficaram seriamente compro-
metidos em razão da pandemia de Corona Virus Disease-19 (COVID-19) e das medidas de dis-
tanciamento social necessariamente impostas. Entretanto o Esperançando buscou contornar
essas limitações da melhor forma que foi possível, conforme apresentamos a seguir.
O eixo Renda é voltado a ações que possam auxiliar os jovens a serem capazes de
gerar recursos que lhes permitam conquistar a autonomia financeira. Para isso, uma das
principais ações tem sido a inserção dos jovens no mundo do trabalho, o que tem ocorrido
especialmente por meio do Programa Jovem Aprendiz, fruto da Lei Federal 10.097/2000,
conhecida como Lei da Aprendizagem. O Programa diz respeito a uma forma de contra-
tação profissional que visa a estimular o primeiro emprego e a formação profissional de
jovens entre 14 e 24 anos de idade, e lhes garante os mesmos direitos dos demais trabalha-
dores contratados como celetistas. Empresas de médio e grande porte são obrigadas por lei
a contratarem jovens na condição de aprendizes, proporcionalmente ao número de funcio-
nários que possuem. Além disso, uma vez contratados, os jovens devem ser matriculados
em curso de aprendizagem que, ao final, gerará certificado de qualificação profissional.
Esses cursos são geralmente ofertados por algum dos entes que integram o Serviço Nacio-
nal de Aprendizagem (BRASIL, 2018).
Os adolescentes que participam do Esperançando têm tido a oportunidade de atuar
como aprendizes em empresas que ofertam vagas nesse programa, firmando contrato de
trabalho que tem duração máxima de dois anos, conforme preconiza a lei (BRASIL, 2018).
Após esse período, o jovem pode ou não ser efetivado pela empresa.
Para poder participar do programa, as equipes técnicas das duas instituições de acolhi-
mento indicam jovens que estão aptos a essa oportunidade, e os jovens indicados também
precisam demonstrar interesse em participar. Além disso, a obrigatoriedade da frequência
escolar é uma exigência para sua participação no programa - isso tem sido positivo, con-
siderando que muitos jovens que estavam evadidos da escola retornaram. Com a ajuda
da equipe do Esperançando, o jovem produz um currículo profissional para poder candi-
datar-se a uma vaga como jovem aprendiz. Além de ajudá-lo na confecção de currículo
e encaminhá-lo à vaga, o Esperançando realiza o acompanhamento desse jovem em sua
experiência profissional. Desde o início do projeto, foram formadas duas turmas de jovens
aprendizes. A primeira, em 2019, contou com 13 adolescentes indicados pelas instituições

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de acolhimento. Desses, permanecem até a data de produção deste texto sete contratados
na condição de jovem aprendiz. Já na segunda turma, de 2020, foram nove jovens indi-
cados, permanecendo seis contratados na mesma condição. No total, são 13 adolescentes
que permanecem trabalhando no Programa Jovem Aprendiz. No entanto, o número de
jovens atendidos pelo Esperançando é superior a esse; a desistência de alguns deles não os
impossibilita de retornar ao projeto quando desejarem. Em 2021, é esperada a formação
de uma terceira turma de Jovem Aprendiz.
Além da busca de vagas nesse programa, em 2020, buscamos parceria com outras em-
presas da cidade, para as quais apresentamos o projeto e tentamos conquistar novas ofertas
de trabalho. No entanto, a pandemia foi um grande impeditivo para que isso ocorresse.
O eixo Educação é responsável por planejar e fomentar ações voltadas à formação es-
colar e ao mundo do trabalho. Entre suas ações, destacamos a oferta de reforço escolar.
Segundo Martinez e Soares-Silva (2008, p. 116), o índice de escolarização de adolescentes
em serviços de acolhimento tem sido geralmente inferior ao daqueles que não estão nesse
serviço. Esse dado é preocupante, uma vez que a educação tem sido uma importante ferra-
menta para a qualificação de sua força de trabalho quando na idade adulta. Por essa razão,
neste eixo, buscamos selecionar voluntários qualificados para atuarem com reforço escolar
e ajudar os adolescentes em seu processo de escolarização. Em 2019, contamos com a
colaboração de uma estudante da UFSM, que auxiliou com aulas de reforço de Espanhol
para duas adolescentes. No entanto, em 2020, esta ação não pode ser plenamente realizada
em razão da pandemia.
Nesse eixo, também buscamos oportunidades de cursos de capacitação profissional
para os jovens, levando em consideração seus interesses sempre que estes são manifestados
por eles. Nesse sentido, em 2020, um curso de estética foi custeado, por uma pessoa que
desejava colaborar com o projeto, a uma das jovens que manifestou interesse nessa área
profissional. Além deste, em 2019, antes das medidas de distanciamento social, portanto,
foram ofertados dois cursos presenciais nas dependências da UFSM: um curso de Informá-
tica, ministrado por um estudante do Curso Técnico em Informática para Internet (Figura
2), e um curso de Educação Financeira, ministrado por um professor da UFSM (Figura 3).
Aprender a gerenciar sua renda é fundamental para que o jovem possa fazer bom uso de
seu recurso financeiro, definindo suas prioridades, aprendendo a avaliar e dimensionar o
custo de serviços e produtos e evitando endividar-se.

19
Figura 2 – Participação de adolescentes do projeto no curso de Informática, minis-
trado pelo estudante Gabriel Sebastiano da Silva, do Curso Técnico em Informáti-
ca para Internet (UFSM) em 2019

Fonte: autoras.

Figura 3 – Participação de adolescentes do projeto no curso de Educação Financei-


ra, ministrado pelo professor Robson Machado da Rosa (UFSM) em 2019

Fonte: autoras.

O eixo Cidadania é responsável por realizar atividades que fomentem o desenvolvimen-


to de uma cidadania plena e participativa dos jovens. Nesse eixo, buscamos esclarecer os
jovens sobre seus direitos fundamentais, como acesso à saúde, à educação, ao esporte e
ao lazer, entre outros. No ano de 2020, por conta da pandemia, as ações desse eixo foram
adaptadas para ocorrerem exclusivamente de forma online. Os jovens do projeto partici-
param de rodas de conversa e oficinas (Figura 4) realizadas por meio de um computador e
conexão à Internet disponibilizados pela instituição de acolhimento da qual fazem parte.

20
Nesse formato, foram realizadas 19 rodas de conversa e quatro oficinas, que contaram com
a participação de convidados que conversaram e orientaram sobre diferentes temas, tais
como: relacionamentos abusivos; alimentação saudável; história da capoeira; sistema de
cotas para acesso ao ensino superior e ao ensino técnico de nível médio em escolas federais
da cidade; felicidade e bem-estar; reciclagem; estratégias para melhorar a aprendizagem;
entre outros. Com a mão na massa, ocorreram, também de forma online, oficinas de zine,
de dança, de fotografia, e de reaproveitamento de roupas, além de um bate-papo sobre os
espaços públicos da cidade de Santa Maria e como acessá-los. Tanto as rodas de conversa
quanto as oficinas eram iniciadas com uma sessão de meditação, ministrada por um cola-
borador do projeto, a fim de ajudar os adolescentes em questões como controle emocional
e concentração. Também participaram desses eventos membros das equipes das duas ins-
tituições de acolhimento.

Figura 4 – Cartazes de algumas rodas de conversa e oficinas realizadas de forma


online em 2020

Fonte: autoras.

Os temas para as rodas de conversa e oficinas foram, em grande parte, propostos a


partir de um levantamento realizado junto aos adolescentes, o que busca priorizar a cons-
trução de um espaço de compartilhamento de saberes de forma horizontal e direcionada
às suas expectativas e aos seus desejos. Para isso, foi desenvolvido um questionário online,
composto por questões norteadoras dos possíveis temas de interesse. Desenvolvido como
espaço de escuta ativa, o questionário foi respondido de forma anônima para preservar a
identidade dos adolescentes e deixá-los mais à vontade para sugerir temas de seus inte-
resses. Alguns dos assuntos e temáticas propostos foram: preparação para o mercado de
trabalho, educação financeira, alimentação saudável, drogas, violência, e dança. Tanto as

21
rodas de conversa quanto as oficinas buscaram promover o envolvimento dos adolescentes
e jovens com atividades informativas e lúdicas de diversas áreas do conhecimento, com o
foco especial na oferta de espaços de acolhimento, escuta e aprendizados coletivos.
Neste eixo, estão previstas, também, a realização de rodas de leitura, passeios pela cida-
de de Santa Maria, visita a museus e parques da cidade, incentivo e práticas de diferentes
esportes e a oportunidade de participação em grupos de Escotismo. No entanto, para que
isso ocorra, é necessária a superação da situação de pandemia.
As ações desse eixo em especial levam em conta a necessidade de promover a participa-
ção desses jovens em diferentes espaços comunitários, a fim de fomentar o desenvolvimen-
to de sua autonomia:

É evidente que quanto mais rica a experiência comunitária do adolescente duran-


te o acolhimento, maior a chance de ele continuar sua vida de forma autônoma,
responsável e participativa. Conhecer e fazer parte de grupos de pertencimento
que favorecem a construção de seus projetos e a formação de sua identidade, se
apropriar do uso dos recursos da cidade e ter vínculos estáveis e duradouros com
adultos de referência são direitos que contribuem para o fortalecimento da auto-
nomia (INSTITUTO FAZENDO HISTÓRIA, 2016, p. 14).

O quarto e último eixo de trabalho, eixo Moradia, é responsável pelo auxílio na busca de
um lugar para viver após o jovem deixar o abrigo, como moradia popular e/ou aluguel social
e apoio da sociedade por cedência de moradia. Além disso, são organizadas campanhas en-
tre amigos e parceiros do Projeto, junto com o uso de suas mídias sociais, para arrecadação
de móveis e utensílios domésticos, a fim de ajudar no mobiliamento do novo lar. Nem sem-
pre o jovem que deixa o abrigo deseja voltar a conviver com sua família de origem. Alguns
deles buscam uma nova residência para sua moradia. Em 2019, as ações desse eixo foram
realizadas para ajudar a mobiliar uma residência de um dos jovens do projeto.
O Esperançando também desenvolve uma ação transversal que prevê o desenvolvimen-
to e a aplicação de um instrumento denominado PAIn, o qual ajuda a nortear as demais
ações do projeto. Por meio desse instrumento, profissionais voluntários da área de psico-
logia buscam prestar um atendimento individual aos adolescentes, auxiliando-os na iden-
tificação de seus desejos, sonhos, expectativas para suas vidas e no reconhecimento de
suas habilidades pessoais. O objetivo é auxiliar os jovens na construção de estratégias que
possam contribuir para sua independência e autonomia em relação à tomada de decisões
referentes ao seu futuro dentro e fora do serviço de acolhimento. O PAIn permite conhecer
o jovem, ouvir sua voz e entender suas particularidades, suas expectativas e seus desejos,
estando pautado na valorização dos aspectos singulares de cada adolescente, e possibilitan-
do que o projeto e suas ações sejam baseados nos aspectos e nas possibilidades de vida de
cada um. Com isso, busca-se fomentar uma atitude de protagonismo do jovem em relação
à sua própria história.
O PAIn tem o potencial de auxiliar a equipe do projeto no direcionamento de suas
ações, pois permite identificar questões pessoais e interesses profissionais dos jovens, os

22
quais podem tornar-se alvo de ações de um ou mais eixos do projeto. Por exemplo, uma
vez identificado o interesse de um dos jovens em uma determinada área profissional, a
equipe pode dedicar-se a buscar cursos e até vagas de estágio ou emprego nessa área. Em
2020, com a atuação de uma psicóloga voluntária do projeto, que atualmente coordena
essa ação, o PAIn foi reformulado para melhor atender aos objetivos do Esperançando, e
será aplicado no ano de 2021.
Por fim, com o intuito de chamar a atenção da sociedade para a situação desses jovens,
decidimos realizar Seminários (Figura 5) com o objetivo de formar uma rede de cola-
boração para auxiliar o desenvolvimento da vida autônoma dos adolescentes que vivem
nas instituições de acolhimento de Santa Maria. Em setembro de 2019, foi realizado o I
Seminário Esperançando, que contou com a presença de Rosi Prigol, Coordenadora do
Instituto Salesiano de Apoio aos Acolhidos – INSABRIGO - de Porto Alegre, para falar
sobre o trabalho de preparação para a vida autônoma fora das instituições de acolhimento.
Na sequência, Beatriz Borges, ex-acolhida, apresentou o seu relato de vida, e contou sua
trajetória para driblar as dificuldades e adversidades enfrentadas, até chegar a cursar uma
graduação na UFSM. Esse evento contou com a presença de várias pessoas da comuni-
dade santa-mariense, das quais uma participa ativamente como voluntária nas atividades
do projeto desde 2020. O interesse pelo seminário foi grande e decidimos, naquele mesmo
ano, realizar uma segunda edição com o mesmo objetivo, mas tendo como foco alunos dos
cursos de graduação das instituições de ensino superior de Santa Maria, pois sabemos do
potencial que esse público possui para auxiliar no projeto. Então, em novembro do mesmo
ano, foi realizado o II Seminário Esperançando, que contou com a presença de inúmeros
acadêmicos de diferentes instituições de ensino de Santa Maria.
Em novembro de 2020, realizado de forma remota1 e transmitido pela página do Espe-
rançando no Facebook2, a terceira edição do seminário contou com a participação especial
da Juíza titular do Juizado da Infância e Juventude de Santa Maria, Doutora Gabriela
Bobsin, que explicou, entre outras questões, a situação desses jovens a partir da perspectiva
da justiça. Tendo um enfoque no trabalho desenvolvido por um projeto semelhante em São
Paulo, outro convidado especial dessa terceira edição foi o Grupo nÓs, do Instituto Fazen-
do História. Sua participação no evento foi bastante importante, uma vez que os desafios
e percalços com os quais temos nos deparado em nosso próprio percurso enquanto projeto
foram abordados pela arte educadora e técnica do Grupo nÓs, Fernanda S. Guimarães, e
por dois jovens ex-integrantes do Grupo, os quais puderam dar depoimentos extremamen-
te relevantes sobre os impactos do trabalho do nÓs em suas transições para a vida pós-aco-
lhimento. Nesse evento, pela primeira vez, decidimos realizar uma atividade especial com
os adolescentes do Esperançando, a fim de ampliar seu engajamento no projeto. Sendo
assim, em uma tarde de novembro de 2020, os adolescentes puderam conversar com os

1 O evento completo pode ser conferido neste link: https://www.facebook.com/esperancando/vide-


os/695353891376134.
2 A página de Facebook do Esperançando pode ser acessada por este link: https://www.facebook.com/
esperancando.

23
dois jovens ex-integrantes do grupo nÓs sobre como estes têm lidado com a transição para
a vida pós-acolhimento, os desafios que enfrentaram e como o grupo nÓs os ajudou. Foi,
certamente, uma tarde de intensas e significativas trocas de experiências de vida.

Figura 5 – Edições do Seminário Esperançando, realizadas em 2019 e, de forma vir-


tual, em 2020

Fonte: autoras.

Na próxima seção, discutimos brevemente a importância do trabalho voluntário


para o Esperançando.

UM TRABALHO QUE REQUER MUITAS MÃOS

Um dos pilares fundamentais para a organização e o funcionamento do Esperançando


é o trabalho de pessoas voluntárias e parceiras do projeto. No primeiro caso, são pessoas
das mais variadas idades e áreas profissionais que desejam oferecer seu tempo e sua força
de trabalho para auxiliar os jovens na difícil transição para a vida pós-acolhimento. São
voluntários que têm se dedicado a ajudar com sessões de terapia, reforço escolar, cursos de
capacitação profissional, revisão de currículos dos adolescentes que concorrem a uma vaga
de trabalho, oferta de sessões de meditação, entre outros. Além disso, há voluntários que
auxiliam o Esperançando com a produção de conteúdo sobre o projeto para sua divulgação
em nossas mídias sociais, a fim de levá-lo ao conhecimento de um maior número de pessoas
possível, para que, dessa forma, ampliem-se as oportunidades de apoio aos jovens com oferta
de estágios, de emprego, de cursos profissionalizantes, de lazer, entre outros.

24
No segundo caso, temos podido contar com doações eventuais de livros, mobília, cus-
teio de exames médicos e até custeio de créditos para celular, possibilitando a conexão de
Internet para alguns dos adolescentes participantes do projeto. Também temos parceria fixa
com uma empresa de ferragens de Santa Maria, que tem ajudado a custear kits de material
escolar e outras eventuais despesas, como cestas básicas, por exemplo, a jovens atendidos
pelo projeto, mas que não estão mais em situação de acolhimento em razão da maioridade.
Mais recentemente, essa parceria tem ajudado a custear uma conexão de Internet fixa para
as casas que compõem a instituição Lar de Mirian e Mãe Celita, a fim de que os jovens
possam participar não só das atividades online do projeto, mas também das aulas remotas.
Nessa mesma linha, temos contado com o apoio fundamental do Observatório de Direitos
Humanos da UFSM, que, além de custear um bolsista para o projeto, tem ajudado com
doações de itens de material escolar.
O trabalho de voluntários é sempre muito bem-vindo, e geralmente utilizamos nossas mí-
dias sociais e o seminário anual que o Esperançando realiza para chamar novos voluntários.
Na próxima seção, apresentamos nossas considerações finais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento do projeto Esperançando tornou possível o início da constru-


ção de uma rede de apoio na cidade de Santa Maria – RS, que objetiva a ampliação do
atendimento aos jovens que estão saindo dos acolhimentos em razão de atingirem a maio-
ridade. O fato de haver lacunas quanto a políticas públicas e ações concretas voltadas espe-
cificamente para esse público e para sua preparação para deixar os serviços de acolhimento
deu origem ao Esperançando.
Acreditamos que este projeto possa ter grande importância na vida e no desenvolvi-
mento dos adolescentes em acolhimento e pós-acolhimento institucional. Nossas ações
têm buscado partir das limitações e dificuldades de diversas ordens que estão hoje postas
como obstáculos aparentemente intransponíveis para esses jovens. Conhecer essas limita-
ções, bem como a falta de políticas públicas que busquem ajudá-los a superar desafios e
desenvolver sua autonomia com dignidade, levam-nos a refletir sobre o presente, a fim de
vislumbrar e contribuir para a criação de novas oportunidades de trajetórias de vida, prio-
rizando o protagonismo desses jovens em relação a sua história de vida e às escolhas que
desejam fazer em relação ao seu futuro.
Como o poema que abriu este texto, acreditamos que as dificuldades e os obstáculos hoje
postos não podem ser razão suficiente para impedir-nos de agir em direção ao que Paulo
Freire denominou inédito viável. A esperança traduzida em ação (esperançar) é a força que nos
tem movido no caminho para construir uma sociedade mais justa. Afinal, não é para isso que
servem as utopias, para fazer-nos caminhar em direção a um mundo melhor?

25
REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do


Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 13 jul. 1990.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Orientações técnicas: serviços de aco-


lhimento para crianças e adolescentes. Brasília, DF, 2009.

BRASIL. Decreto n. 9.579, de 22 de novembro de 2018. Consolida atos normativos edi-


tados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a temática do lactente, da criança e
do adolescente e do aprendiz, e sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente e os programas federais
da criança e do adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília,
DF: 23 nov. 2018.
CORTELLA, M. S. Educação, Convivência e Ética. São Paulo: Cortez, 2015.

FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Disponível em: https://cpers.com.br/wp-content/uplo-
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INSTITUTO FAZENDO HISTÓRIA. Adolescentes em transição: o trabalho de pre-


paração para a vida autônoma, fora das instituições de acolhimento. São Paulo, SP:
Instituto Fazendo História. Disponível em: https://static1.squarespace.com/static/56b-
10ce8746fb97c2d267b79/t/5d36225a42b5000001a7fffc/1563828834492/Sistematiza%-
C3%A7%C3%A3o_WEB.pdf. Acesso em: 5 maio 2021.

MARTINEZ, A. L. M.; SOARES-SILVA, A. P. O momento da saída do abrigo por causa


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2, p. 113-132, dez. 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S1677-11682008000200008&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 7 out. 2020.

RIZZINI, I.; PILLOTI, F. (org). A arte de governar crianças: a história das políticas
sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 3d. São Paulo: Cortez Editora,
2011.

ROSA, E. M. et al. O processo de desligamento de adolescentes em acolhi-


mento institucional. Estudos de Psicologia, Natal, v. 17, n. 3, p. 361-368, dez.
2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1413-294X2012000300003&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 8 out. 2020.

26
SANTANA, A. C. A.; BRITO, A. C. R.; CHAGAS, É. M. A campanha ‘Esperando por
você’ como instrumento pedagógico de inclusão social e garantia à convivência familiar.
In: I Congresso Internacional do Direito Público dos Direitos Humanos e Políticas de
Igualdade. 1, 2018, Maceió/AL. Anais... Maceió/AL: Universidade Federal de Alagoas,
2018. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/dphpi/index. Acesso em: 4
maio 2021.

27
APOIO PEDAGÓGICO E AULAS
EXTRACURRICULARES – CIÊNCIAS
EXATAS PARA DISCENTES DO ENSINO
FUNDAMENTAL E MÉDIO

Gustavo Lenhardt Steffen


César Teixeira Pacheco
Ana Luisa Soubhia
INTRODUÇÃO

As matérias de ciências exatas são o calcanhar de Aquiles de muitos estudantes, principal-


mente nas fases iniciais do estudo. De acordo com o levantamento realizado pelo Movimen-
to Todos pela Educação (HONORATO, 2018), baseado nos índices do Sistema de Avaliação
de Educação Básica (SAEB), na Figura 01, é possível observar o panorama no Brasil.

Figura 1 – Índice de desempenho satisfatório em Matemática

Fonte: Todos Pela Educação (2017).

O gráfico aponta a porcentagem de alunos que concluíram determinado ciclo do ensino


com um índice satisfatório de aprendizagem na matemática. A linha vermelha diz respeito
ao 5.° ano, a linha amarela ao 9.° ano, e a azul ao 3.° ano do ensino médio. É possível ve-
rificar, através do gráfico, que o índice de aprendizado insatisfatório aumenta a cada ano.
Um dado preocupante mostra que apenas 7,3% dos alunos do 3.° ano do ensino médio
concluíram este ciclo educacional com um desempenho satisfatório em matemática.
Além desses dados preocupantes, o ano de 2020 foi marcado pelo início da pandemia de
COVID-19, que alterou bruscamente o modelo estudantil mundial. Com a grande maioria
das instituições de ensino fechadas, os alunos e professores recorreram as aulas através da
Internet, o que gerou ainda mais dificuldades. Segundo o Instituto Brasileiro de Geogra-
fia e Estatística (IBGE), “46 milhões de brasileiros não possuem internet” (TOKARNIA,
2020). A união desses fatores fez com que os índices de evasão escolar aumentassem no
Brasil, sendo essa alta apresentada através de uma pesquisa realizada pelo Instituto Data-
folha, mostrando que “cerca de 4 milhões de estudantes brasileiros, com idade entre 6 e
34 anos, abandonaram os estudos em 2020, o que representa uma taxa de 8,4% de evasão
escolar” (BOHRER, 2021).
Apesar de todos os desafios, a matemática apresenta também muitas oportunidades,
como, por exemplo, a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OB-
MEP). A avaliação estimula o estudo da matemática, identificando talentos na área, sendo

29
um indicador da qualidade do ensino brasileiro, premiando alunos, professores e esco-
las de destaque. “No ano de 2019, cerca de 18 milhões de estudantes participaram da
OBMEP” (IMPA, 2019). “Um bom desempenho nas avaliações gera diversos benefícios
futuros, como o salarial, ainda sem considerar possíveis externalidades positivas para a so-
ciedade e para o país, como redução da criminalidade, aumento do bem-estar social, entre
outros resultantes da melhoria da qualidade da educação pública” (LOBODA;VASCON-
CELLOS; MENEZES, 2012).
Partindo das problemáticas e das oportunidades expostas, o projeto foi idealizado com
o objetivo de auxiliar a aprendizagem dos alunos do ensino fundamental e médio, comple-
mentando a preparação dos mesmos com relação às olimpíadas ofertadas na rede pública.
Inicialmente, o projeto foi idealizado para ocorrer presencialmente, utilizando o ano de
2020 para o planejamento e a elaboração das aulas e atividades. Depois, no ano de 2021,
haveria a aplicação prática em sala de aula, tendo inclusive uma parceria firmada com a
Escola Estadual de Ensino Fundamental Rio Jacuí, localizada na cidade de Cachoeira do
Sul, Rio Grande do Sul. Entretanto, com o agravamento da pandemia, o projeto teve que
ser remanejado para o ensino remoto, assim, ao invés de oferecer aulas presencialmente,
foram gravadas videoaulas curtas e dinâmicas, que estarão disponíveis a todos os alunos
através da plataforma YouTube, expandindo ainda mais o alcance do projeto.

DESENVOLVIMENTO

Desde sua fase inicial de concepção, o projeto teve o objetivo de ser assertivo quanto aos
conteúdos que seriam abordados juntos aos estudantes, para, desta forma, tornar o ensino
mais simples, prático e que fosse de interesse dos alunos. Para isso, foi desenvolvido um
fluxograma com as etapas a serem executadas pelo projeto, esquematizado na Figura 2.

Figura 2 – Etapas do Projeto

Fonte: os autores (2021).

30
O projeto foi dividido em seis etapas, onde cinco foram desenvolvidas e uma teve que
ser cancelada. A partir de agora, serão discorridas as etapas do projeto.
Etapa 1 – O projeto, iniciado em maio de 2020, foi idealizado a partir das percepções
de alunos e professores da Universidade Federal de Santa Maria do campus de Cachoeira
do Sul sobre o ensino de matemática a nível Brasil. Chegou-se ao consenso que o ensino
público brasileiro possui muitas deficiências com relação ao ensino da matemática - e
seria necessário o desenvolvimento de um projeto de extensão a fim de minimizar essas
carências. Assim, dois alunos de graduação de engenharia elétrica e uma pós-doutora espe-
cialista na área de matemática criaram o projeto intitulado “Apoio Pedagógico e Aulas Ex-
tracurriculares – Ciências Exatas para Discentes do Ensino Fundamental e Médio”3. Para
este registro, os participantes desenvolveram um documento com resumo, identificação,
introdução, objetivos gerais e específicos, justificativa, referenciais teóricos e conceituais,
metodologia da ação, orçamento, cronograma de atividades, resultados esperados, indica-
dores de avaliação e referências.
Seu público alvo, expresso no portal de projetos, possui uma projeção de 150 alunos
do gênero masculino e feminino, do ensino fundamental e médio, de baixa e alta vulne-
rabilidade social, possuindo faixa etária: criança, adolescente e adultos, com domicílio/
residência urbanos.
O plano de trabalho, com metas, indicadores e fases, possui cinco descrições centrais:
• pesquisar e organizar atividades que envolvam conteúdos presentes nas
provas das olimpíadas;
• fornecer apoio pedagógico para discentes da Escola Estadual de Ensino
Fundamental Rio Jacuí;
• reunir os participantes desse projeto regularmente, com o objetivo de
aperfeiçoar os auxílios fornecidos e definir os conteúdos que serão minis-
trados em sala de aula;
• ministrar aulas de reforço para preparação dos discentes que participarão
das olimpíadas de Matemática;
• elaborar relatório final.
Com o desenvolvimento do projeto, alguns pontos foram remodelados, a fim de garantir
o prosseguimento do mesmo durante a pandemia.
Etapa 2 – Para que fossem desenvolvidas videoaulas assertivas e dinâmicas, um dos
objetivos do projeto, foi necessário conhecer os conteúdos matemáticos do ensino funda-
mental e médio, bem como verificar suas maiores incidências em olimpíadas.
Conforme definido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei n.º
9.394/1996), a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) define os conhecimentos, as
competências e as habilidades que se espera que os estudantes desenvolvam ao longo da es-

3 Projeto registrado no portal de projetos da UFSM com o número 054220. O projeto possui classificação
CNPQ: 7.08.04.00-1 ENSINO-APRENDIZAGEM, Caracterização das ações de extensão: 02 PROJETO DE
EXTENSÃO, Áreas temáticas (Política de extensão/2019): 03 DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA, Linhas
de extensão (Política de extensãpo/2019): 03.00 DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA. O seu plano de gestão
é de: PDI 2016-2026-Desafios, e seu objetivo estratégico é: Desenvolvimento local, regional e nacional.

31
colaridade básica (BRASIL, 2018). Para realizar o levantamento dos conteúdos de acordo
com a BNCC, o mesmo foi dividido em anos, desde o 6.° ano do Ensino Fundamental, até
o 3.° ano do Ensino Médio. Em cada um dos anos, foram inseridos conteúdo da matemá-
tica, classificados de acordo com cinco grandes áreas temáticas:

• números: desenvolver o pensamento numérico, implicando no conheci-


mento de maneiras de quantificar atributos de objetos, julgando e inter-
pretando argumentos baseados em quantidades. Os alunos devem desen-
volver ideias de aproximação, proporcionalidade, equivalência e ordem
(BNCC).
• álgebra: tem como finalidade desenvolver o pensamento algébrico, essen-
cial para utilizar modelos matemáticos na compreensão, representação e
análise de relações quantitativas de grandezas e, também, fazendo uso de
letras e outros símbolos (BNCC).
• geometria: tem como finalidade desenvolver um amplo conjunto de con-
ceitos e procedimentos necessários para resolver problemas do mundo
físico e de diferentes áreas do conhecimento. Envolve o estudo de posição
e deslocamentos no espaço, formas e relações entre elementos de figuras
planas e espaciais (BRASIL, 2018).
• grandezas e medidas: as medidas quantificam grandezas do mundo físico
e são fundamentais para a compreensão da realidade. Assim, esta unida-
de busca propor o estudo das medidas e das relações entre elas, favorece
a integração da Matemática a outras áreas de conhecimento, como Ciên-
cias ou Geografia (BRASIL, 2018).
• probabilidade: esta unidade propõe a abordagem de conceitos, fatos e pro-
cedimentos presentes em situações problema do cotidiano, das ciências e
da tecnologia, tratando incertezas e a análise de dados (BRASIL, 2018).

O outro conteúdo de estudo abordado é a Olimpíada Brasileira de Matemática das


Escolas Públicas (OBMEP), que é dividida em três níveis: i) o nível 1 engloba o 6.° e o 7.°
anos do Ensino Fundamental; ii) o nível 2 engloba o 8.° e o 9.° anos do Ensino Fundamen-
tal; iii) o nível 3 engloba todo o Ensino Médio.
Cada um dos níveis possui duas fases, sendo a primeira fase de múltipla escolha, onde
cada prova contém 20 questões, em que cada questão conta com 5 alternativas de resposta.
Já a segunda fase é constituída por uma prova com 6 questões dissertativas. Para o estudo
realizado, foram consideradas somente provas da primeira fase, entre os anos de 2015 e
2019, totalizando, assim, 100 questões por nível.
Para a realização do levantamento dos conteúdos mais incidentes na OBMEP, as questões
foram organizadas de acordo com as áreas temáticas da BNCC. Os resultados obtidos estão
representados através de um gráfico com as maiores incidências, apresentados na Figura 3.

32
Figura 3 – Conteúdos mais incidentes por nível

Fonte: os autores (2021).

No gráfico do Nível 1, destacam-se, com maior incidência, o raciocínio lógico (30%), a


geometria (14%), a proporção (11%), as equações de 1.° grau (10%) e a Multiplicação (7%).
O raciocínio lógico exige do aluno uma leitura e uma interpretação eficientes para a resolu-
ção da questão. No gráfico do Nível 2, destacam-se o raciocínio lógico (24%), a visão espa-
cial (11%), a geometria (10%), a proporção (8%) e a sequência numérica (6%). Um conceito
introduzido nesse nível é o de visão espacial, onde visualizar tridimensionalmente o objeto
facilita a resolução do problema. Além disso, é notório que as avaliações do Nível 2 apresen-
tam maior complexidade, proporcional ao avanço escolar. No gráfico do Nível 3, nota-se que
o nível abrange a maior diversidade de assuntos da matemática, devido ao fato de englobar
todo o ensino médio, assim, há uma grande distribuição dos conteúdos abordados pelas
provas, mas destacam-se os conteúdos raciocínio lógico (15%), sistemas de equações lineares
(10%), visão espacial (10%), área e perímetro (9%) e probabilidade (6%).
Etapa 3 – Realizado o estudo das áreas temáticas mais presentes nas provas da OBMEP,
foi possível realizar a lista de aulas a serem desenvolvidas. As aulas buscam manter um
padrão, começando com explicações simples e teóricas, avançando lentamente a sua com-
plexidade, buscando sempre trazer exemplos pertinentes, para que o aluno possa absorver
o conteúdo de uma forma mais prática, facilitando seu aprendizado. Sempre que possível,
os exemplos tentam abordar problemáticas do cotidiano, mostrando, assim, o quão presen-
te a matemática está na vida das pessoas. Na Figura 4, é exposto um exemplo de uma aula
de geometria e uma atividade relacionada ao conteúdo citado.

33
Figura 4 – Exemplo de aula e de Exercício

Fonte: os autores (2021).

Foram realizadas, ao total, 32 aulas teóricas, acompanhadas, cada uma delas, com uma
lista de exercícios correspondente. A relação das aulas é a seguinte:

Quadro 1 – Relação das aulas


1 - Multiplicação 2- Divisão
3 - Equação de 1.° grau 4 - Equação de 2.° grau
5 - Plano Cartesiano 6 - Probabilidade
7 - Geometria 1 8 - Geometria 2
9 - Sequência Numérica 10 - Porcentagem
11 - Números pares e ímpares 12 - Conjuntos numéricos
13 - Análise Gráfica 14 - Média, Moda e Mediana
15 - Potenciação e Radiciação 16 - Sistemas de 1.° grau
17 - Produto Notável 18 - Conversão de unidades
19 - Números Primos 20 - MMC e MDC
21 - Inequações 22 - Análise Combinatória
23 - Regra de três 24 - Números decimais e fracionários
25 - Dízima Periódica e Fração Geratriz 26 -Notação Científica
27 - Frações Equivalentes 28 - Racionalização de Denominadores
29 - Fatoração de Polinômios 30 - Teorema de Pitágoras
31 - Distância entre 2 Pontos 32 - Escala

Fonte: autores (2021).

34
Com a elaboração destas aulas, a grande maioria dos conteúdos incidentes na OBMEP
foi abordada, tornando os alunos aptos a realizarem as provas.
Etapa 4 – Esta etapa preza pelo desenvolvimento do projeto de maneira presencial, mas,
por conta do agravamento e prolongamento da pandemia, o mesmo, como pôde ser visto
no fluxograma inicialmente apresentado, teve que ser cancelado, fazendo com que o pla-
nejamento do projeto fosse remanejado, trazendo o mesmo para o ambiente virtual, único
meio possível para desenvolver o projeto durante o período pandêmico.
Etapa 5 – O meio virtual de aprendizagem ganhou imenso destaque no ano de 2020.
Com o ambiente remoto, muitos prós e contras surgiram, então o projeto necessitou se
adaptar ao mesmo.
A primeira grande adaptação foi com relação ao tempo proposto para cada aula. Se, em
uma escola, haveria o tempo de 2 horas para trabalhar sobre determinado assunto, no meio
virtual, as aulas precisam ser muito mais dinâmicas e objetivas, pois o poder de concen-
tração dos alunos diminui quando estão frente ao ambiente virtual. Em estudo divulgado
pela Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED), “67% dos alunos têm difi-
culdades em estabelecer e organizar uma rotina de estudos” (CONTEÚDO, 2020). Dessa
forma, buscou-se comprimir ao máximo a duração das aulas, sem perder a qualidade, a
fim de que os alunos consigam manter a sua concentração. As aulas gravadas têm entre 10
e 20 minutos de duração.
Para a exposição das aulas, foi necessário adaptar o material desenvolvido na etapa 3,
trazendo o conteúdo de forma mais visual, com esquemas, fluxogramas e imagens, utili-
zando a ferramenta de slides para sua exposição. Os dois alunos participantes do projeto
apresentam as aulas com tempos similares, a partir do aplicativo Open Broadcaster Software
(OBS) para fazer a gravação dos conteúdos. Após essa etapa, os vídeos foram editados e,
posteriormente, publicados semanalmente no canal do projeto na plataforma YouTube,
intitulado “Apoio Pedagógico e Aulas Extracurriculares”4 (Figura 5).

Figura 5 – Canal “Apoio Pedagógico E Aulas Extracurriculares”

Fonte: os autores (2021).

Cada aula começa com a apresentação do conteúdo que será abordado, contendo uma ima-
gem de capa do vídeo, sendo a mesma que aparece quando algum usuário procura pelo tema
no buscador do YouTube. A Figura 6 demonstra o exemplo da aula sobre o Plano Cartesiano.
4 Link de acesso: https://www.youtube.com/channel/UCXwFXZvf0H4XK7kMXYuN_MA.

35
Figura 6 – Capa Introdutória para Aula 6

Fonte: os autores (2021).

Para gravação da aula, os autores se reúnem em uma sala criada no Google Meet, e a tela
é capturada pelo aplicativo OBS, que posteriormente é editada em um editor de vídeo e
postada no canal do YouTube, como exposto através da Figura 7.

Figura 7 – Desenvolvimento da aula 6

Fonte: os autores (2021).

O número total de vídeos do canal é superior ao número de aulas desenvolvidas,


e isso se deve ao fato de que alguns conteúdos são extensos, assim, sendo necessário
dividi-los em mais aulas.
Etapa 6 – O projeto se finda com a concepção do presente artigo, com todas as experi-
ências vivenciadas para a execução deste projeto, com resultados e impactos socioculturais
proporcionados.
Com a remodelação do projeto, devido ao momento sanitário vivido, a ação de exten-
são conseguiu alcançar um maior número de pessoas, pelo fato de que, ao sair da sala de
aula e entrar no mundo digital da produção de vídeos, a área de abrangência do projeto se
expandiu. Agora, qualquer pessoa que digite multiplicação na barra de pesquisa do encon-
trará o vídeo criado pelos autores referente a este tema.

36
Até o presente momento, o canal do projeto no YouTube já contabiliza mais de 60 inscri-
ções, ou seja, pessoas que se identificaram com o conteúdo apresentado e que desejam ser
informadas sempre que um novo vídeo for inserido no canal. Além disso, já foram compu-
tadas mais de 370 visualizações nos vídeos postados, sendo a Aula11 - Sequência Numéri-
ca a que possui o maior número de visualizações, com aproximadamente 60. A tendência
é o aumento no número de visualizações dos vídeos, visto que este conteúdo permanecerá
disponível a todos que desejam assistir, por tempo indeterminado, tornando-se esta outra
vantagem do projeto no modo digital.
Outro resultado importante alcançado foi a divulgação do projeto em diversos eventos,
como o CONEXÃO UFABC em 2020 (Figura 8), na 35.ª JAI UFSM em 2020 e no CEC
UFPEL em 2020, incentivando, assim, a criação de mais projetos voltados para a área
educacional. Esta visibilidade impacta, também, o ODH/UFSM, mostrando os trabalhos
que são desenvolvidos pelo órgão mesmo em tempos de pandemia.

Figura 8 – Participação no evento CONEXÃO UFABC 2020

Fonte: os autores (2021).

Além disso, todo o material desenvolvido, como aulas e atividades, poderá ser utilizado
em momentos futuros, quando as condições sanitárias estiverem favoráveis para o retorno
seguro presencial das atividades educacionais.

CONCLUSÃO

A educação brasileira enfrentou um dos seus maiores desafios: como levar o ensino
até as pessoas em um período de pandemia, já que, “diante do período pandêmico, a
crescente evasão escolar torna o futuro da educação brasileira muito preocupante” (BAP-
TISTA, 2020), pois uma educação pública já deficitária tende a se agravar. Porém, além
de levar o ensino em um período de pandemia, é importante atrair os estudantes para o

37
ensino virtual. Nesse contexto, o presente projeto demonstra sua importância tanto para o
momento atual como para o futuro, podendo ser fundamental para diminuir os índices de
evasão escolar. Com aulas dinâmicas, repletas de exemplos e ilustrações, buscamos pren-
der a atenção do estudante, fomentando seu interesse pela matemática. Ao acompanhar
as aulas, o aluno reforça os conteúdos ministrados em sala de aula, além de intensificar
sua preparação para a realização das provas da OBMEP, colocando-os frente a frente com
problemas da matemática do cotidiano, pois “se durante a vida escolar forem dadas opor-
tunidades ao aluno de se envolver com diferentes situações problemas, quando adulto agirá
com inteligência e naturalidade ao ter que enfrentar seus problemas da vida diária, sejam
eles de ordem econômica, política e social” (DANTE, 1988).
Mesmo com o desenvolvimento do projeto remotamente, o processo de ensino e apren-
dizagem não substitui a presencialidade, entretanto promove mudanças na orientação pe-
dagógica dos educadores. As videoaulas podem ser de grande importância aos alunos,
mostrando aos mesmos uma diferente visão/explicação sobre um tema da matemática
visto em sala de aula.
A partir da preparação adequada dos alunos para a OBMEP, criam-se chances reais
para que os alunos obtenham um bom desempenho, conquistando prêmios e diversos re-
conhecimentos, estimulando seu interesse pelas ciências exatas, melhorando os índices
educacionais da matemática em todo o país.
Como estudo futuro, sugere-se a aplicação dos materiais produzidos (aulas, exercícios,
slides) de modo presencial, quando a situação sanitária for favorável, para posterior com-
paração da avaliação e percepção dos alunos quanto a sua participação na OBMEP, com-
parando resultados esperados e os atingidos.

38
REFERÊNCIAS

BAPTISTA, R. Evasão escolar pode aumentar com pandemia, alertam debatedores.


Agência Senado, 9 set. 2020. [Online]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/
noticias/materias/2020/07/09/evasao-escolar-pode-aumentar-com-pandemia-alertam-
-debatedores. Acesso em: 17 set. 2020.

BOHRER, L. Evasão escolar: Brasil pode levar três anos para recuperar déficit no proces-
so educativo. Rádio Brasil Atual, 18 fev. 2021. [Online]. Disponível em: https://www.
redebrasilatual.com.br/educacao/2021/02/evasao-escolar-brasil-pandemia/. Acesso em:
1 maio 2021.

BRASIL. Ministério da educação. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em:


http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 23 fev. 2020.

ESTADÃO CONTEÚDO. Durante a pandemia, 67% dos alunos têm dificuldade para
organizar estudos online. Isto é Dinheiro, 30 out. 2020. [Online]. Disponível em: ht-
tps://www.istoedinheiro.com.br/durante-a-pandemia-67-dos-alunos-tem-dificuldade-pa-
ra-organizar-estudos-online/. Acesso em: 24 jan. 2021.

DANTE, L. Criatividade e resolução de problemas na prática educativa matemáti-


ca. Rio Claro: Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Tese de Livre Docência, 1988.

HONORATO, P. Saeb 2017: o que diz a última avaliação de aprendizagem do país.


Todos pela educação, 30 ago. 2018. Online. Disponível em: https://www.todospelaedu-
cacao.org.br/conteudo/saeb-2017-o-que-diz-aultima-avaliacao sobre-a-educacao-do-pais.
Acesso em: 1 maio 2021.

INSTITUTO DE MATEMÁTICA PURA E APLICADA. OBMEP divulga premiados


entre 18 milhões de participantes. IMPA - Instituto de Matemática Pura e Aplicada, 03
dez. 2019. [Online]. Disponível em: https://impa.br/noticias/obmep-2019-divulga-lista-
-de-premiados/. Acesso em: 20 fev. 2021.

LOBODA, R. B.; VASCONCELLOS, L.; MENEZES, N. The Impact of the Brazilian


Public School Math Olympic son the Quality of Education. Revista Economia do LA-
CEA, v. 12, n. 2, “Spring2012”, p.143-170, 2012.

TOKARNIA, M. Um em cada quatro brasileiros não tem acesso à internet, mostra


pesquisa. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 29 abr. 2020. [Online].Disponível em: https://
agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-
-nao-tem-acesso-internet. Acesso em: 15 fev. 2021.

39
O CINE DIREITOS HUMANOS NA FORMAÇÃO
DO INTERNACIONALISTA CRÍTICO-SENSÍVEL:
EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO POSSIBILIDADES
DE NEGOCIAÇÃO ENTRE ESTRUTURA E AGÊNCIA

Ademar Pozzatti
A ação de extensão Cine Direitos Humanos parte da constatação de que a consciência
popular do direito internacional dos direitos humanos apresenta sérias deficiências. Mesmo
na universidade, o ensino ainda fortemente descritivo e focado na transmissão de conteúdo
é espelho de tantas mazelas que o egresso confronta no cotidiano da atividade profissional,
não conseguindo vislumbrar, na realidade, aquilo que lhe foi ensinado na academia por
longos anos e encontrar, no conhecimento universitário, agência para as mudanças sociais
que pretende. Da mesma forma, a consciência popular do direito e das relações internacio-
nais está frequentemente vinculada aos privilégios das elites globais, que transitam entre
diferentes línguas e culturas, tendo pouca relação com a sua realidade “local”. Assim, para
que a universidade possa veicular as transformações pretendidas, o abismo entre o fato e
a “ficção” deve ser repensado por meio de novas concepções de popularização dos temas
globais, e se abrir a novas formas de negociação entre estruturas e agência - e a proposta do
Cine Direitos Humanos é fazê-lo por meio do sessões populares de cinema.
No Cine Direitos Humanos, o uso pedagógico do cinema é instrumento para construir
novas narrativas críticas acerca da posicionalidade estrutural da/os participantes – tanto
a/os extensionistas quanto o público alvo das ações – e, a partir do redesenho das suas
compreensões sobre os campos do direito e das relações internacionais a partir de um
conhecimento crítico e reflexivo, rediscutir as suas possibilidades de agência. Para socia-
lizar um pouco das motivações e dos resultados desta ação de extensão, a primeira parte
deste texto apresenta as razões que motivam a ação e a sua articulação com o ensino e a
pesquisa na área do direito internacional dos direitos humanos. A segunda parte descreve
brevemente as diversas edições dessa ação, contextualizando os seus objetivos e as meto-
dologias utilizadas. Por fim, são discutidos alguns resultados dos cinco anos de existência
dessa ação, bem como o seu impacto na formação do internacionalista crítico-sensível e os
desdobramentos possíveis.

JUSTIFICATIVA E ARTICULAÇÃO
DA EXTENSÃO COM O ENSINO E A PESQUISA

Se a universidade pode ser entendida como um local de produção de conhecimentos


e interlocução de saberes que devem servir ao desenvolvimento humano e social do país
e das regiões de seu entorno, ela tem um compromisso fundamental com a sociedade lo-
cal e com o meio que a cerca. Assim, o conhecimento gerado pela pesquisa acadêmica e
difundido pelo ensino pode, por um lado, ser compartilhado com atores sociais de modo
a contribuir para a vulgarização de temas como o direito internacional dos direitos hu-
manos, e, por outro lado, também para receber as contribuições e as interpretações desses
atores sobre esse saber. Neste contexto, o Cine Direitos Humanos tem por objetivo ser um
instrumento de interação da universidade com a comunidade, os movimentos sociais, asso-
ciações civis, sindicatos, cooperativas, lideranças e militantes comunitários, grupos sociais
e pessoas em situação de potencial ou efetiva violação de direitos humanos, entre outras
organizações populares de Santa Maria e região.

41
Se é verdade que se vive, no mundo de hoje, uma dissolução das referências através
das quais os indivíduos percebiam a si mesmos, culminando numa dessimbolização das
relações sociais, o direito internacional dos direitos humanos não escapa a tal premissa.
Por um lado, os direitos humanos, conforme representado em difusões teóricas mainstream,
são vistos como receitas universais e pouco abertas a nuances, formas, movimentos, meca-
nismos, processos, padrões e limitações que se desenvolvem na prática de compatibilizar
preceitos universais com dinâmicas locais. Por isso, todo o processo preparatório e de exe-
cução do Cine Direitos Humanos tenta estabelecer formas de renegociar a relação entre
estrutura e agência, questionando se as lacunas entre os preceitos normativos universais e
algumas difusões teóricas mainstream, de um lado, e as dificuldades de toda a ordem na
implementação dos direitos humanos, de outro, decorrem de limitações na tradução de
normativas universais para contextos locais ou, em uma visão invertida, a necessidade de
adaptação é tão severa que torna as normativas universais virtualmente incompatíveis com
as realidades locais.
É nesse sentido que a preparação da/os estudantes extensionistas e as execuções das
sessões populares de cinema – e a relação com o público alvo – são pautadas por uma
abordagem crítico-realista do direito internacional dos direitos humanos, objetivando a
formação de internacionalistas e juristas – e cidadãos – crítico-sensíveis. A abordagem é
realista, porque coloca ênfase na compreensão da estrutura jurídico-institucional de de-
fesa dos direitos humanos, acreditando que a consciência da dimensão estrutural ajuda
a desnaturalizar a realidade social e estimula os participantes a permanecerem atentos às
formas como os arranjos e as ordenações estruturais conformam o mundo material e a sua
própria posicionalidade estrutural. A abordagem é crítica porque, a partir da identificação
da estrutura, são estimuladas as reflexões sobre estratégias de mobilização jurídico-ins-
titucional com vistas à emancipação social e à melhoria das condições de vida a partir
do nosso próprio local. Tal agência é explorada a partir dos contextos socioeconômicos,
geográficos e culturais da/os participantes - extensionista e do público alvo -, porque esses
pontos de vista informam e moldam seu senso de agência e, portanto, a natureza de suas
interações com o mundo.
A ação de extensão Cine Direitos Humanos faz parte do Programa de Extensão “As
fronteiras do direito: a permeabilidade das fontes normativas internacionais na esfera lo-
cal” e relaciona-se teórico-conceitualmente com os diversos projetos de pesquisa desen-
volvidos no âmbito do NPPDI – Núcleo de Pesquisa e Práticas em Direito Internacional
(CNPq/UFSM), como o “Direito Internacional e Políticas Públicas Estaduais: o papel da
cooperação sul-americana na efetivação de direitos humanos no RS”. De forma ampla,
o programa propõe uma compreensão plural das dinâmicas da interação entre o direito
internacional dos direitos humanos e os processos políticos domésticos, por meio de uma
abordagem interdisciplinar, comprometida com a democratização do debate público sobre
essa temática. A missão principal é construir pontes entre a academia, a sociedade civil e
o governo/setor público, de modo a contribuir para a compreensão conjunta de desafios
e possibilidades, em Santa Maria, no RS, no Brasil e no mundo, da operacionalização do

42
direito internacional dos direitos humanos no âmbito doméstico através, por exemplo, da
construção de políticas públicas locais. As ações estão adequadas às demandas nas comu-
nidades-alvo dentro da área temática Direitos Humanos e Justiça, definida como priori-
tária pela Política de Extensão da UFSM, e já foram realizadas Edições do Cine Direitos
Humanos sobre Direitos das Mulheres e Direitos LGBT, por exemplo. Se o Cine Direitos
Humanos é atividade que mais ganha visibilidade externa, esta ação é precedida por ou-
tras ações de extensão preparatórias, como as Oficinas de Direitos Humanos, o Ciclo de
Debates em Direito Internacional e o Ateliê de Pesquisa em Direito Internacional, todas
as ações vinculadas ao Programa acima referido, e que operam a partir da necessária indis-
sociabilidade ensino-pesquisa-extensão.
Idealmente, o Programa poderá ajudar da redução o abismo entre aquilo que é ensinado
e investigado na pesquisa acadêmica e aquilo que acontece na realidade social ao redor da
universidade, de modo a formar internacionalistas e juristas mais conscientes das deman-
das locais e das possibilidades de uso das relações internacionais e do direito internacional
dos direitos humanos como instrumento que permita aumento da qualidade de vida dos
indivíduos ao seu redor. Um trabalho conjunto com essas comunidades poderia contribuir
para uma maior integração dos cursos de Relações Internacionais e Direito com a realida-
de social e para a melhor compreensão de um fenômeno internacional que tem impacto
significativo no nível local.
Direitos humanos e o cinema são produtos culturais, e devem ser percebidos como
tal para tentar extrair deles elementos para uma perturbação discursiva através da qual o
cinema possa abrir pontes para as mudanças que se pretende. Assim, sendo o direito inter-
nacional dos direitos humanos um instrumento da política internacional, ele se configura
em um conjunto de regras, de discursos e de técnicas que os atores internacionais utilizam
para regrar as suas relações e perseguir certas finalidades sociais. Longe de ser uma sim-
ples técnica jurídica neutra, ele é, e sempre foi, a projeção internacional dos valores e dos
interesses dos atores dominantes da sociedade internacional (KOSKENNIEMI, 1990). Se
o modelo clássico do direito internacional o concebia como sendo separado da esfera da
política doméstica, e, portanto, refletia os problemas que o sistema jurídico internacional
queria tratar, notadamente a coexistência entre soberanias, o direito internacional contem-
porâneo, impulsionado pela universalização dos direitos humanos, tem pronunciada di-
mensão intra-estatais (SLAUGHTER; BURKE-WHITE, 2006). Para oferecer uma efetiva
resposta para os novos desafios da globalização, o direito internacional deve ser capaz de
influenciar a política doméstica, moldar as políticas públicas locais e aparelhar as institui-
ções nacionais para atingir esses objetivos globais. Assim, para criar as condições desejá-
veis no sistema internacional/local, o direito internacional deve promover a capacidade e
a vontade dos governos domésticos para responder às questões globais, com as suas ferra-
mentas. Dessa forma, o papel do direito internacional passa por severas transformações,
deixando de ser uma mera regulação independente, acima do Estado, para promover o
engajamento direto das instituições públicas cada vez mais locais, ou seja, cada vez mais
próximas da/os participantes do Cine Direitos Humanos (SIMMONS, 2009).

43
Dentro dessa perspectiva de articulação entre as esferas normativas internacional e do-
méstica, a cooperação internacional parece ser um privilegiado instrumento para a per-
secução de objetivos globais em nível local, sendo importante capturar essa dimensão da
governança contemporânea e evidenciar o seu papel de tratar direitos humanos contextual-
mente. O objetivo do Cine Direitos Humanos (Figura 1) é, justamente, estabelecer diálogos
transdisciplinares capazes de aproximar os discursos dos direitos humanos e cinematográ-
fico, delineando uma gramática comum entre ambos, apta a fortalecer a tradução entre
saberes e culturas. A reflexão acerca da composição das paisagens jurídicas nacionais e
internacionais, desfiguradas ou enriquecidas pelo processo de globalização econômica e
pela universalização dos direitos humanos, objetiva vulgarizar essas relações a ponto de
conscientizar, aos atores locais, do repertório de instrumentos internacionais para a imple-
mentação de diversos de direitos humanos.

Figura 1 – Alguns cartazes do Cine Direitos Humanos

Fonte: NPPDI (2021).

Para construir essas pontes, o Cine Direitos Humanos tem promovido sessões públicas
de cinema seguidas de debates horizontais sobre direitos humanos, para estimular a per-
cepção das consequências locais do direito internacional (estrutura) e as possibilidades do
seu instrumental para as mudanças que se pretende (agência). Por ser uma atividade refle-
xiva, a/os estudantes extensionistas, enquanto ensinam, aprendem mais sobre a própria
estrutura e os desafios da agência.

44
CINE DIREITOS HUMANOS EM AÇÃO

Segundo o Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras,

a extensão universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula


o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora
entre universidade e sociedade. A extensão é uma via de mão-dupla, com trânsito
assegurado à comunidade acadêmica, que encontrará, na sociedade, a oportu-
nidade de elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à
Universidade, docentes e discentes trarão um aprendizado que, submetido à re-
flexão teórica, será acrescido àquele conhecimento. Esse fluxo, que estabelece a
troca de saberes sistematizados, acadêmico e popular, terá como consequências a
produção do conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira e
regional, a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva
da comunidade na atuação da universidade. Além de instrumentalizadora deste
processo dialético de teoria/prática, a extensão é um trabalho interdisciplinar que
favorece a visão integrada do social (RENEX, 1998).

A extensão baseia-se, portanto, na ideia de educação popular, que destaca a necessária


troca de saberes e experiências entre os vários atores envolvidos, todos considerados agen-
tes e sujeitos do processo. Segundo Paulo Freire: “educar e educar-se, na prática da liber-
dade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – por isso sabem que sabem algo e que
assim podem chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam
que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que
pouco sabem, possam igualmente saber mais” (FREIRE, 1977). Nesse sentido, a metodo-
logia libertadora de Paulo Freire inspira a construção conjunta do conhecimento em todo
o processo de preparação da/os estudantes extensionistas e execução das ações junto ao
público alvo, opondo-se à hierarquia de saberes e contrariando a reificação do sujeito que
dela participa. Portanto, vivencia-se o processo educativo como um processo democrático,
“na convicção de que sei algo e de que ignoro algo a que se junta a certeza de que posso
saber melhor o que já sei e conhecer o que ainda não sei” (FREIRE, 1996).
Para contribuir para a formação de internacionalistas e juristas crítico-sensíveis, com co-
nhecimento na realidade social local, a realização das diversas ações do Cine Direitos Hu-
manos envolve a/os estudantes extensionistas em todo o processo, desde a aproximação
com as escolas parceiras, o contato com os professores da escola, a preparação das sessões
de cinema a partir dos recursos – humanos e técnicos – disponíveis, e execução das sessões
de cinema e debates em escolas públicas, sendo que o contato com a realidade material
de muitas escolas e o seu entorno social agregam outros elementos ao repertório cognitivo
da/os estudantes universitários. Dessa forma, em que pese a/os estudantes extensionistas
sejam protagonistas da discussão do impacto social das suas pesquisas e daquilo que é
aprendido em sala de aula, elas e eles expandem os seus horizontes e trazem para a univer-
sidade outras variáveis – e sensibilidades - até então não percebidas. É nesse sentido que o
Cine Direitos Humanos ajuda na formação de estudantes crítico-sensíveis à diversidade e à

45
pluralidade que caracteriza o mundo contemporâneo. Há que se considerar que a extensão
universitária é um instrumento importante no processo de aprendizagem, porque ela de-
safia estudantes e professora/es a levar em conta aplicações práticas e cotidianas possíveis
dos conteúdos trabalhados e contribui para a formação de profissionais com consciência
coletiva e comprometimento com a realidade social.
Toda a metodologia de desenvolvimento do Cine Direitos Humanos adota uma perspec-
tiva crítico-realista de ensino/aprendizagem dos direitos humanos, dando especial atenção
à estreita relação entre a estrutura institucional global, agência e o contexto de Santa Ma-
ria e região. Nesse sentido, o uso pedagógico do cinema tem sido instrumento capaz de
ampliar a compreensão dos impactos que a estrutura institucional global/regional tem na
vida quotidiana da/os participantes em nível local, e o debate horizontal que o cinema
suscita tem servido de base para catalisar a construção de conhecimento crítico e reflexivo.
A 1ª edição do Cine Direitos Humanos ocorreu em 2016, em parceria com a Coope-
rativa dos Estudantes de Santa Maria (CESMA), e convidou estudantes secundaristas de
escolas públicas de Santa Maria para irem até a CESMA para as sessões de cinema e o
debate. A 2ª edição aconteceu também em 2016, em parceria com o coletivo Manas de RI,
e convidou estudantes secundaristas de escolas públicas de Santa Maria para virem até a
UFSM, razão pela qual as sessões de cinema aconteceram no auditório da Antiga Reitoria.
Essa tentativa de trazer o público alvo para dentro da universidade fez parte da estratégia
de encurtar distâncias e favorecer a aproximação deles com a UFSM, e vice-versa. Muita/
os estudantes relataram que era a primeira vez que pisavam na UFSM e que eram os pri-
meiros de suas famílias a fazê-lo. Por outro lado, muitas dificuldades de transporte desses
estudantes inviabilizou a participação inicialmente prevista, visto que escolas parceiras
não dispunham de ônibus para tal transporte e o ônibus da UFSM não conseguiu agenda
para este fim. Daí a necessidade de ir até as escolas, ao invés de trazer a sua comunidade
para a UFSM. No ano de 2017, foi realizada a 3ª edição do Cine Direitos Humanos, na
Escola Cilon Rosa. As 4ª e 5ª edições aconteceram, respectivamente, nos anos 2018 e 2019,
na Escola Walter Jobim. Nestas edições, as escolas parceiras disponibilizaram material téc-
nico – aparelhos de som e reprodução de imagem – e permitiram o acesso às suas depen-
dências, onde as/os extensionistas realizaram as atividades preparatórias com professora/
es e executaram as sessões públicas de cinema seguidas de debate.
Algumas dessas edições foram temáticas, como o caso da 3ª edição, sobre temáticas
diretamente relacionadas à população Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti e Transsexual
(LGBTT). As atividades preparatórias envolveram duas Oficinas de Direitos Humanos
para a/os professora/es da Escola Cilon Rosa, mas abertas para a comunidade externa em
geral. Uma das oficinas foi realizada em parceria com o Coletivo Voe, de Santa Maria, vis-
to que ele tem, em seu histórico, diversas atividades socioeducativas em ambiente escolar,
assim como tem, entre seus membros, profissionais capacitados, tais como professores e
psicólogos. A segunda Oficina aconteceu com um membro do Ministério Público Federal,
nas dependências da UFSM. Estas Oficinas preparatórias geraram a aproximação entre a/
os estudantes extensionistas e a/os professora/es da escola parceira, de modo que pude-

46
ram traçar estratégias para que toda a escola, através das suas diversas disciplinas, “vives-
se” integralmente a semana do Cine Direitos Humanos.
Outra etapa da construção da 3ª edição do Cine Direitos Humanos foram as reuniões
realizadas com a coordenação da escola, a direção pedagógica e a/os professora/es da Es-
cola Cilon Rosa. Nesses encontros, a/os professora/es apresentaram a estrutura de ensino
da escola e a realidade da/os estudantes secundaristas quanto ao assunto abordado. Em
contraponto, a/os estudantes extensionistas do NPPDI apresentaram a proposta do projeto
e o plano de execução. Nessas reuniões foram discutidas as demandas da escola por temas,
abordagens e enfoques de Direitos Humanos, visto que a Escola vivenciava muitos casos de
homofobia e misoginia entre a/os estudantes. No ano de 2017, foram 15 a/os estudantes
extensionistas que atuaram em todo o processo do Cine Direitos Humanos, e aproximada-
mente 150 pessoas foram atingidas pelas oficinas e pelas sessões de cinema e debates.
As sessões de cinema ocorreram entre os dias 19 e 22 de junho de 2017, com apresen-
tação diária de um filme relacionado à temática abordada. Durante essa edição, mais de
um grupo de estudantes foi atingido: os alunos de três turmas da Educação de Jovens e
Adultos (EJA) e toda/os a/os estudantes do terceiro ano do ensino médio do período no-
turno. Também estiveram presentes nas sessões públicas e atividades preparatórias alguns
membros do Coletivo Voe – coletivo de defesa dos direitos LGBTT de Santa Maria –, que
auxiliaram na preparação e no desenvolvimento do evento. Em cada uma das sessões,
foi trabalhado um filme que abordou as diferentes vivências existentes na comunidade
LGBTT, o que permitiu o desenvolvimento de debates variados. A/os estudantes extensio-
nistas foram divididos em grupos de preparação e apresentação, e levaram, diariamente,
slides, falas explicativas e dinâmicas sobre o que seria trabalhado em cada filme. Esses gru-
pos de facilitadores também estiveram presentes nas Oficinas de Direitos Humanos, para
serem capacitados a trabalhar os temas propostos no ambiente escolar.
Em cada sessão, o grupo de extensionista que mediou o debate apresentou, por meio de
apresentações de slides em PowerPoint, as definições dos conceitos de identidade de gê-
nero (cisgeneridade, transgeneridade, não-binariedade), orientação sexual (homossexuali-
dade, heterossexualidade, bissexualidade, assexualidade, pansexualidade) e sexo biológico
(masculino e feminino). Com essa apresentação introdutória, em que o público pode se
localizar e avaliar seus conhecimentos, abriu-se espaço para dúvidas e debates. A recepti-
vidade da temática, devido à novidade de sua abordagem naquele ambiente e para aquele
público, foi baixa, contando com o acanhamento de grande parte da/os estudantes. Ainda
assim, algumas pessoas se pronunciaram e socializaram relatos de suas vivências, tanto
em ambiente familiar, escolar ou mesmo na rua, denunciando atos de preconceito nesses
múltiplos espaços de convivência. Mesmo que poucas, essas manifestações legitimaram o
argumento do grupo de extensionistas, pois, adiante aos conceitos, nas seguintes sessões,
seriam abordados mais desdobramentos da temática, como o preconceito e os direitos hu-
manos da comunidade LGBTT. Nas diversas sessões, os grupos de extensionistas puderam
aprofundar os conceitos de transsexualidade e transgeneridade, assim como identidade de
gênero, sexualidade e as variações existentes dentro da temática. Com isso apresentado, o

47
principal debate que surgiu na relação grupo-público foi o dos processos de autoaceitação
e de respeito às diversidades sexuais e de gênero. Foram apontadas, por parte do público,
algumas questões não planejadas pelo grupo – por se acreditar que não haveria preparo ou
receptividade –, o que gerou surpresa e até mesmo enriqueceu o debate.
Devido ao fato de o ambiente escolar estar no centro do debate de alguns filmes, alguns/
mas do/as professora/es presentes expuseram situações vividas em sala de aula, em que
abordaram a temática da diversidade sexual e de gênero, bem como suas vivências enquan-
to professora/es de escola pública em Santa Maria. Esse diálogo com participação da/
es professora/es fez com que a/os estudantes se sentissem confortáveis para, novamente,
exporem suas experiências. Alguns estudantes também relataram vivências familiares e
escolares, em que tiveram contato com situações de bullying, tanto de uma maneira geral
quanto relacionado às temáticas da sexualidade, do gênero e da raça. A Figura 2 apresenta
alguns cartazes das Oficinas de Direitos Humanos a seguir:

Figura 2 – Alguns cartazes das Oficinas de Direitos Humanos

Fonte: NPPDI (2021).

A partir de 2018, o Cine Direitos Humanos inovou em termos de abrangência geográ-


fica e de especialização: afastou-se da região central da cidade para adentrar em regiões
mais periféricas, além de considerar novos métodos, como questionários para melhora-
mento dos resultados futuros, além de novas empreitadas científicas derivadas da ação de
extensão. Neste ano, a 4ª edição do Cine Direitos Humanos teve duração de 3 noites, de
10 a 12 de setembro, na Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Walter Jobim, e seu público
foram os estudantes de Ensino Médio e Educação para Jovens e Adultos (EJA) do período
noturno da escola. A aproximação e os contatos com a escola parceira foram realizados
pela/os própria/os estudantes extensionistas. A escolha das temáticas de educação, meio
ambiente e saúde para esta edição do Cine Direitos Humanos foi debatida com a escola e
refletia as suas demandas em termos de direitos humanos e os interesses mais imediatos
da/os extensionistas, que aproveitaram para difundir os conhecimentos setoriais em Di-

48
reitos Humanos e Relações Internacionais que estavam desenvolvendo mediante pesquisas
empíricas no âmbito do NPPDI, nessas três áreas.
Um grupo de estudantes voluntária/os para organizar a 4ª edição do Cine Direitos Hu-
manos foi formado no início do ano e contou com 9 estudantes extensionistas. No decorrer
do ano, foram realizadas Oficinas de Direitos Humanos preparatórias e encontros prepara-
tórios com a coordenação da escola Walter Jobim, sua direção pedagógica e professora/es,
nas dependências da mesma. Nessas oportunidades, a/os professora/es e a direção relata-
ram os principais problemas relacionados aos direitos humanos da escola e do seu entorno.
Ainda, foi realizada uma Oficina de Direitos Humanos sobre Educação Popular, Cine-
ma e Relações Internacionais, no dia 05 de setembro, na Antiga Reitoria da UFSM, onde
foram debatidos dois textos sobre as temáticas, o que também serviu para aproximar a/os
extensionistas e a/os professores da escola que estavam presentes. A leitura dos textos de
Mastellaro et al. (2011) e de Zanella e Neve Júnior (2017), que tratam das potencialidades
de uma Extensão Universitária de inspiração freireana a partir da análise de um projeto
de Extensão que envolve o curso de Relações Internacionais da Universidade de São Pau-
lo e uma escola pública no centro da cidade, e do uso do cinema no ensino de Relações
Internacionais com base em experiências dos autores como professores na Universidade
Federal de Uberlândia e na Universidade Vila Velha, respectivamente, inspirou a ideia de
transformar esta ação de Extensão também em objeto de pesquisa, e, portanto, os filmes
foram pensados em termos de testar a maior efetividade de um gênero cinematográfico
ou outro, em aproximar o debate entre graduandos e estudantes secundaristas e da EJA.
Para isso, foram escolhidos três filmes, cada um deles abordando uma das três temáticas:
para educação, foi escolhido o filme Malala (2015); para meio-ambiente, o filme A era da
estupidez (2009); e, para saúde, o filme Contágio (2011). E representando, respectivamente,
três gêneros cinematográficos distintos: um documentário, um filme de ficção que mistura
imagens e vídeos reais, e um filme apenas de ficção.
Os três dias de Cine contaram com o mesmo molde: uma breve explanação sobre con-
ceitos básicos de relações internacionais, direito internacional e Direitos Humanos, a fim
de nivelar o debate, acompanhada da entrega de material didático com esses conceitos,
seguida do filme, de uma problematização sobre a relação entre as temáticas, seguida de
uma dinâmica específica preparada e executada por cada grupo temático. No primeiro dia,
a dinâmica se tratava da discussão acerca de reportagens curtas sobre Malala e educação;
no segundo, tratava de analisar o filme e estabelecer ligações com a temática de meio am-
biente; no terceiro, a dinâmica se constituiu de uma conversa com perguntas orientadas
pelo grupo, e posterior realização de um questionário sobre aspectos desta edição do Cine.
Em 2019, a 5ª edição do Cine Direitos Humanos teve duração de 2 dias e 2 noites, nos
dias 30 de setembro e 1º de outubro, novamente na Escola Estadual de Ensino Médio Dr.
Walter Jobim, com a ideia de atingir novas turmas e o turno diurno. Nas reuniões prepa-
ratórias com a coordenação, direção pedagógica e a/os professora/es, foram definidas as
temáticas que a edição abordaria: fake news e violência de gênero. A escolha destas temáti-
cas se deu a partir de uma demanda da escola, pois refletia as suas demandas em termos de

49
direitos humanos, e o grupo, que aproveitou para difundir os conhecimentos setoriais em
direitos humanos e relações internacionais que se desenvolvem mediante pesquisas empíri-
cas no âmbito do NPPDI, nas áreas do debate. Como atividades preparatórias, houve duas
Oficinas de Direitos Humanos, ministradas pelos estudantes de Mestrado vinculados ao
NPPDI. Do Programa de Pós-Graduação em Direito, Fernando Gabbi Polli ficou respon-
sável por capacitar a/os estudantes e professora/es da escola com a oficina “Fake News e
Direitos Humanos: Implicações à Sociedade Democrática Atual”. Já a mestranda Lurian
Pinheiro Ramos, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais, ficou res-
ponsável pela seguinte capacitação: Desigualdade de Gênero e Violência: Reconhecendo Aspectos
de Violência de Gênero.
Após essas Oficinas, a/os estudantes extensionistas se dividiram em equipes para pre-
pararem as sessões de cinema e as dinâmicas educativas que as antecediam e sucediam. A
partir disso, ocorreu mais uma reunião com a coordenação, direção pedagógica e professo-
ra/es da escola para pensar estratégias para que as discussões do Cine Direitos Humanos
atravessassem as diversas disciplinas da grade curricular da escola. Essas reuniões também
permitiram que a/os estudantes extensionistas discutissem as suas temáticas com ela/es
e pudessem entender e se aproximar da realidade da escola, assim tornando os conteúdos
tratados mais tangíveis aos espectadores.
Os dois dias de Cine Direitos Humanos tiveram o mesmo formato: uma breve explanação
sobre conceitos básicos de relações internacionais e sobre direitos humanos, a fim de nivelar
o debate, de maneira que a/os participantes conhecessem o Projeto de Extensão e o Curso
de Relações Internacionais da UFSM. Acompanhado disso, uma forneceu-se material didá-
tico sobre os conceitos de cada uma das temáticas e sobre como elas interagem tanto com os
direitos humanos quanto com o cotidiano d ecada um. No primeiro dia, foram conceituados
violência, gênero, direitos humanos, entre outros, e utilizou-se da dinâmica de interagir com
os alunos para saber suas experiências acerca da temática. No segundo dia, foram discutidos
os conceitos acerca das fakenews, da proteção de privacidade e de por que disso ser um direito
humano. Após tais apresentações e debates, o filme foi exibido.

ENGAJAMENTO E SENSIBILIZAÇÃO: DE REPENTE, O MUNDO

O impulso original do Cine Direitos Humanos era e continua sendo experimentar as


possibilidades pedagógicas do uso conjunto das estratégias de educação popular e cinema
como um lugar privilegiado na formação dos internacionalistas e juristas crítico-sensível.
É difícil mensurar o impacto dessas atividades no percurso formativo da/os estudan-
tes extensionistas, e mais ainda na construção da sua cidadania. Em termos de impacto
acadêmico, o Cine Direitos Humanos contribuiu para desenvolver na/os estudantes a au-
tonomia e o protagonismo. Esses dois conceitos representam dois pressupostos de uma
mesma ética, a ética da alteridade, que dialoga, compreende e reconhece(se) (n)o outro
em sua inteireza e integralidade. A assunção da autonomia é condição indispensável para
a construção horizontal, dialógica e democrática do conhecimento a partir da interação

50
entre os saberes acadêmico e popular; ao passo que o estímulo ao protagonismo afigura-
-se fundamental para viabilizar a concretização de uma gama de direitos fundamentais
resguardados por instituições e tratados internacionais. Igualmente, o Cine Direitos Hu-
manos contribuiu para incorporar o prazer, a paixão e o lúdico na prática universitária,
proporcionando condição de possibilidade para (re)pensar e acessar agência via direito
internacional, a partir da busca de novas perspectivas e pedagogias capazes de desvelar as
relações de poder e de opressão difusas na sociedade. Trata-se de reconhecer no/com outro
possibilidades sempre renovadas de transformar essa realidade, através da utilização do
instrumental internacionalista. E esses impactos foram sentidos nas atividades de ensino e
pesquisa em que esta/es estudantes participaram, transbordando inclusive para aquela/es
estudantes que delas não participaram diretamente.
Em termos substanciais, o projeto deve contribuir para estimular, nos atores comuni-
tários, o senso crítico, a politização e a organização, além da diluição do provincianismo
de alguns ambientes no interior do RS; fomentar, nos atores envolvidos, a consciência
da inter-relação entre as esferas normativas nacionais e internacionais e a percepção das
consequências locais das práticas globais. A partir dessas iniciativas foram pensados se-
minários e oficinas para replicar a metodologia do Cine Direitos Humanos para outras
universidades, e também para pensar essas atividades de forma sistemática em parceria
com organizações regionais e poderes públicos, como a coordenadoria regional de educa-
ção. Ainda, alguns resultados foram sistematizados para serem apresentados e discutidos
com alguns operadores do direito (defensoria pública e ministério público) e das relações
internacionais (diplomatas, parlamentares, funcionários), mas a pandemia de COVID-19
sobrestou esses desenvolvimentos.
A Figura 3, a seguir, demonstra os participantes do projeto nas escolas Cilon Rosa e
Walter Jobim.

Figura 3 – Extensionistas em ação nas escolas Cilon Rosa e Walter Jobim

Fonte: NPPDI (2017 e 2019).

51
De forma geral, o Cine Direitos Humanos visa a problematizar e esclarecer os termos e
as condições de como avaliar e possivelmente mudar realidades sociais complexas, as quais
são sempre historicamente constituídas e multifacetadas. Nesse sentido, o Cine Direitos
Humanos é entendido como mediação entre o mundo vivido e os mundos possíveis.

52
REFERÊNCIAS

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53
CINEGRAFANDO TRAJETOS E AÇÕES EM
DIREITOS HUMANOS: A PARTILHA DE SABERES
E IMAGINÁRIOS NA LINGUAGEM AUDIOVISUAL

Valeska Maria Fortes de Oliveira


Sabrina Copetti da Costa
Jéssica Dalcin da Silva
Tania Micheline Miorando
UMA HISTÓRIA DE PARCERIAS:
CINEMA E DIREITOS HUMANOS EM UM GRUPO DE PESQUISA

O Gepeis, Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Imaginário Social, com


um trajeto de vida de 27 anos na Universidade Federal de Santa Maria, vinculado ao
Centro de Educação, tem como parcerias, desde sua criação, as redes de escolas, com o
que chamamos de pesquisa-formação. A dimensão da pesquisa na produção de ações de
extensão, como é o caso do Observatório de Direitos Humanos, tem fortalecido, nesses
anos, a relação entre Ensino, Pesquisa e Extensão. Essa concepção de trabalho coletivo é
uma experiência formadora tanto no sentido individual quanto para o grupo, que se envol-
ve com os projetos e implica-se com os sujeitos e os contextos, onde é permitido entrar e
compartilhar a formação.
A escuta, o olhar e o corpo sensível são acionados quando aprendemos, nesses anos,
uma concepção de Extensão que valoriza e aprende com os saberes, com as comunidades
e os espaços, reconhecendo suas dimensões educativas. Trazemos Ailton Krenak (2020,
p. 50), que nos provoca, no seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, a nos sentirmos
potentes em nossos encontros para a criação:

Tomara que estes encontros criativos que ainda estamos tendo a oportunidade
de manter animem nossa prática, a nossa ação, e nos deem coragem para sair de
uma atitude de negação da vida para um compromisso com a vida, em qualquer
lugar, superando as nossas incapacidades de estender a visão a lugares para além
daqueles a que estamos apegados e onde vivemos, assim como às formas de so-
ciabilidade e de organização de que uma grande parte dessa comunidade humana
está excluída, que em última instância gastam toda a força da Terra para suprir
a sua demanda de mercadorias, segurança e consumo (KRENAK, 2020, p. 50).

Os encontros criativos dos/das pesquisadores/pesquisadoras do Gepeis com a comu-


nidade do bairro Renascença, no espaço da Escola Municipal Professor Sérgio Lopes, na
cidade de Santa Maria/RS, manifestam sempre nosso compromisso com a vida e os direi-
tos humanos como professores e professoras que têm, na formação, o desafio da complexi-
dade da vida nesse país. Vivemos dias difíceis de crise sanitária, de naturalização da morte,
como temos visto a naturalização da pobreza e das condições de vulnerabilidade social a
que muitas pessoas estão submetidas.
Não menos difícil, o cenário educacional, que vive dias de encontros e ensino remoto,
tem nos desafiado a conhecer formas de vida e cenários, assim como a nos relacionarmos
a partir de formatos que se dão pela virtualidade. Nessa perspectiva, estamos frente a um
cenário de outros desafios, mas que já está entre nós. Temos os mesmos desafios, apenas
agudizados, quando falamos dos direitos humanos, num país que assiste, muitas vezes, à
banalização da vida, pela forma que trata as vidas perdidas, no cenário da mortalidade.
Olhamos para a formação como um grupo transdisciplinar e, quando afirmamos
ser para além da disciplina, fazemos com a noção de trajeto formativo e de experiência

55
formadora. Trajeto formativo é compreendido por nós como percursos “ainda inconclu-
sos, ainda em desenvolvimento, por isso mesmo não finitos, em vir a ser. Ou seja, o trajeto
alia-se ao processo de construção, é elemento instituinte da formação desses indivíduos”
(BRANCHER; OLIVEIRA, 2016, p. 9-10).
Experiência formadora é outro dos conceitos centrais de nossos estudos. Inspirado em
Marie-Christine Josso (JOSSO, 2010) e contextualizado nos nossos processos de pesqui-
sa-formação, como o processo transformador que exige tempo, reflexividade e implicação
das pessoas envolvidas para reorganizar seus trajetos, pelo trabalho e espaço autobiográ-
fico, nos vemos, dia a dia, melhor compreendendo o que estudamos. A aposta é sempre
na ressignificação dos trajetos e reinvenção de si, ampliando repertórios. Dois conceitos
que contribuímos na sua proposição, mas tendo como referência uma história que estamos
fazendo como grupo, que já tem várias gerações.
Um grupo que, em 2014, foi convidado para uma pesquisa sobre cinema e educação,
coordenada pela professora Inês Teixeira, da Faculdade de Educação, da Universidade Fe-
deral de Minas Gerais, tomou gosto e, desde lá, assume-se na formação para a Educação
e o Cinema. Fomos reunidos e reunidas numa Rede de Cinema e Educação e convidados,
por ocasião do Fórum da REDE KINO - Rede Latino-Americana de Cinema e Educação,
realizado no CINEOP, em Ouro Preto/MG, representando o Sul do Brasil, que segue es-
tudando e aproximando o Cinema e a Escola. Desde 2013, a Kino já realizou 10 edições
do Encontro da Educação, até 2020. O reencontro com a professora Inês Teixeira firmou
laços, pois já era um dos nossos afetos desde os eventos da História Oral, na década de 90.
Nosso grupo, ao integrar a Rede Kino, passou a acolher trabalhos de iniciação
científica, dissertações e teses na temática de Educação e Cinema e, no nosso caso, com
as lentes do Imaginário Social (CASTORIADIS, 1982). Em 2016, fomos convidados pela
professora Inês para integrar um projeto de pesquisa nacional (TEIXEIRA, 2017), com fi-
nanciamento do edital Universal do CNPq, sobre o cinema na vida dos professores. Nosso
grupo transformou o projeto de pesquisa, rapidamente, em um projeto de pesquisa-forma-
ção, com a parceria da Secretaria de Educação do Município de Santa Maria (SMED).
Tivemos alguns anos envolvidos e envolvidas com esse projeto, que teve um desdo-
bramento em ações de Pesquisa, Ensino e Extensão. Na cidade de Santa Maria/RS, co-
nhecíamos muitos professores que já vinham trabalhando com cinema nas suas escolas e
com os estudantes. O grupo caminhou conosco por dois anos de formação, num primeiro
momento, com a SMED como parceira, no segundo ano, com a parceria do Sindicato dos
Professores do Município de Santa Maria (SIMPROSM). A cada encontro-formação, o
envolvimento se tornava mais fecundo e criativo. Os professores estavam mais junto com o
Gepeis, e o Gepeis, por sua vez, cada vez aprendendo mais com os professores.
Produzimos um documentário com a Escola Municipal Francisca Weime, e as profes-
soras que coordenaram com o Gepeis continuaram construindo conosco o debate sobre o
cinema nas escolas e a potência da sétima arte. No âmbito da pesquisa, organizamos uma
coletânea em que as pesquisadoras, de várias instituições brasileiras, contribuíram com ar-
tigos, e o nosso grupo também apresentou resultados da pesquisa-formação. As “Telas da

56
docência: professores, professoras e cinema” (TEIXEIRA, 2017) colocaram em cena uma
mostra de como os professores e o cinema entravam para a escola. Rosália Duarte, nossa
consultora externa na pesquisa, assim definiu esse projeto interinstitucional:

Memória e reconhecimento constituem, a meu ver, a matéria-prima do que é feita


a ponte, no projeto que dá origem a esse livro, aproxima cinema e educação, uni-
versidade e escola, teoria e prática, pesquisadores-as e professores-as da educação
básica (DUARTE, 2017, p. 14).

Essa experiência formadora nos colocou no debate, em 2014, nas escolas de Santa Ma-
ria/RS e da região, além das instituições de ensino superior, onde compartilhamos sobre a
Lei 13.006 (BRASIL, 2014), Projeto do Senador Cristovam Buarque, propondo que a exi-
bição de filmes de produção nacional constituirá componente curricular complementar in-
tegrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por no mínimo
duas horas mensais. Participamos de um movimento de divulgação da lei, sensibilizando
os/as professores/as para um debate sobre o cinema nacional. A produção nacional já nos
encaminhava para temas dos Direitos Humanos, pois estamos falando de uma sociedade
que ainda precisa desconstruir um imaginário racista, homofóbico, transfóbico e a inter-
seccionalidade (AKOTIRENE, 2019) de seu debate, que podemos pensar na Terra Brasilis.
Participamos da produção intitulada Cinema e Educação: A Lei 13.006 - Reflexões, Pers-
pectivas e Propostas, organizada por Adriana Fresquet, publicada pela Universo Produção
(FRESQUET, 2015), que nos acolheu no CINEOP, Festival de Cinema de Ouro Preto, com
a Rede Kino. No artigo que chamamos “Ruídos na Tela… O cinema e a Obrigatoriedade nas
Escolas’’ (CANTON et al, 2015), é trazido um tempo-experiência, um tempo chronos e um
tempo kairós com as escolas e os professores no município de Santa Maria/RS. Essa foi uma
produção organizada ainda em 2014, mas com continuidades em 2015.
O campo do imaginário é solo fértil e o fluxo de imagens, com o qual também defini-
mos esse campo que nos aproxima dos Direitos Humanos com a linguagem audiovisual.
A potência da sétima arte nos mobiliza a cinegrafar a educação. O imaginário que toma-
mos como referência é de Cornelius Castoriadis (1982), mas ainda, pelos pesquisadores e
pesquisadoras do GEPEIS, como Narvaes (2000, p. 38), que diz da “rede de sentidos que
permite a coesão em torno de uma ordem vigente, sentidos que derivam da criação social”.
O campo do imaginário nos implica com os temas dos Direitos Humanos. Em 2018,
realizamos uma entrevista autobiográfica com Maria Luisa, a primeira aluna transsexu-
al do Instituto Federal Farroupilha, campus de São Borja/RS. Esse projeto, novamente,
com a energia criativa do Gepeis, transformou-se num documentário (MARIAS e Luisas,
2028), iniciado no estúdio da UNIPAMPA, campus São Borja/RS, cidade de Maria Lui-
sa. A discussão, que pautou muitos de nossos encontros antes, durante e depois, passou a
considerar a abrangência dos estudos de gênero, transgênero, direitos humanos, violência,
prostituição, educação e direitos humanos.

57
Fomos chegando por meio do projeto Cinegrafando a Educação na Escola Municipal de
Ensino Fundamental Professor Sérgio Lopes. Lá, focamos na formação continuada de pro-
fessores e professoras, com exibição de filmes a partir de temas como gênero, transgênero, re-
lações étnico-raciais, racismo estrutural, sem limitar a esses temas, mas sempre os pautando.
Permanecemos na escola e encontramos parcerias. Uma das turmas chamou-nos para suas
aulas, acolhendo-nos como projeto piloto para oficinas de audiovisual na escola.
Chegamos com Direitos Humanos numa instituição que já tem projetos. Aliamo-nos
aos temas da violência doméstica, das relações entre pais e filhos, e partimos para tantos
outros, quanto as imagens puxassem para o diálogo, para as rodas de conversa. Os temas
foram traduzidos em produções das crianças e dos jovens. Os professores continuam co-
nosco. Outro grupo se organiza para a formação continuada para conhecer a linguagem
audiovisual. Outras produções: agora com os professores. Professores protagonistas que
buscam, com seus projetos na escola, também o desenvolvimento das crianças e dos jo-
vens, nessa perspectiva.

A PROPOSTA ODH PARA 2019

As oficinas que começaram com os estudantes do 5.º ano, em 2016, transformaram-se


em parceria constante. O Gepeis partiu dos encontros de cinema para a grande aprendiza-
gem de novas formas de ser-estar na escola, como uma experiência que trazia a Extensão
como parte fundante da formação. As oficinas ocorriam de modo quinzenal com os estu-
dantes, e, como grupo, abraçamos a ideia de produzir conhecimento com crianças, tendo
o cinema como dispositivo de formação.
Motivados e motivadas por esta aproximação inicial, que vinha repercutindo de maneira
bastante produtiva, em uma equipe formada por membros de mestrado e doutorado em Edu-
cação, e docentes do GEPEIS, realizamos uma atividade formativa docente para a escola,
pensando em tudo o que estava envolvido nesse tempo de experiências. As aulas e discus-
sões eram com o foco no cunho formativo do Cinema na Educação, em encontros mensais,
sempre nas últimas segundas-feiras de cada mês, atividade que durou por oito meses (abril a
novembro/2019). A equipe do grupo de pesquisa foi formada por: Jéssica Silva, Luciano Be-
nitez, Luis Henrique Pereira e Valeska Fortes de Oliveira. Conjuntamente, nas salas de aula,
ocorria o Cineclubinho com os alunos, orientados por grupo adjacente, também do Gepeis,
o que permitia esse momento de reflexão formativa para os professores.
Nas rotinas de encontros, o local reservado para discussão era a biblioteca da escola.
As professoras e o professor, juntamente da equipe, dirigiam-se à biblioteca da escola para
encontros que iniciavam com uma breve explanação sobre a experiência estética que o
cinema pode promover, trazendo exemplos emanados dos professores, que apresentavam
situações vivenciadas, em que emoções e sensações eram evocadas ao assistir a determi-
nado filme ou cena: situações que entram no âmbito do inesquecível. Juntamente, eram
trazidos e contextualizados os aspectos técnicos que são utilizados para essa condução
nas narrativas... Cores, sonorização, ângulos, temporalidades, as formas de fazer cortes no

58
roteiro para que se prenda a atenção do espectador, o anseio; ou o contrário, a condução
para a placidez, etc. - um pouco do estudo técnico sobre o cinema.
Podemos destacar o quanto aprendemos com os professores da escola na qual atuamos
e vale lembrar que a regência da turma onde trabalhamos com o outro projeto de cinema
– com as crianças – se deu em uma docência compartilhada entre uma professora vidente
e um professor cego. No projeto para o ODH, aprendemos a olhar para um cinema que se
descreve oralmente: a audiodescrição fez sentido e nos mostrou estes cuidados para pensar
um cinema acessível.
Com o passar dos meses, o ensinar e discutir de técnicas de cinema foi permitindo que
os professores se apropriassem das terminologias e dos saberes, de modo que os encontros
foram resultando em um curta-metragem que foi roteirizado e filmado pelos próprios pro-
fessores. O seu olhar reflexivo criou uma narrativa de ligação entre o bairro Renascença e
o espaço da cidade urbanizada, simbolizado na metáfora da Ponte sobre o Rio Cadena. Os
docentes foram convidados a utilizar a técnica do Minuto Lumière, em que cada filmagem
acontece, por um minuto, filmando uma única cena, parada – um still – e registrando os
sons do lugar. Sobre esta filmagem, os/as professores/as fizeram uma narração poética,
comentando sobre a escolha desse local para representar seu espaço e cotidiano na escola.
Um bolsista do curso de Desenho Industrial da UFSM, que editou o material dos professo-
res para compor o curta-metragem que se originou do projeto, esteve conosco, subsidiado
pelo fomento do Edital ODH, PRE; assim, originou-se o curta-documentário Na escola da
vida, tatuamos histórias (NA ESCOLA, 2019).
Ao término dos encontros, foi proposta uma mostra e uma festa para o encerramento do
ano, na qual foi oferecido um almoço para as crianças e os professores no espaço cultural
e ecológico Casa Círculo. Lá, todos tivemos uma palestra sobre a construção da localidade
que se harmoniza com o seu ambiente e a natureza e como estes saberes preenchem os
espaços da escola e das casas de cada um, produzindo um cotidiano que busca a susten-
tabilidade. O transporte que conduziu a todos foi oferecido pela UFSM para o deleite dos
curtas-metragens cadastrados para a mostra. As memórias e afetos, até hoje, são comenta-
dos pelas crianças na Escola Sérgio Lopes.

A PROPOSTA ODH PARA 2020

O momento pandêmico, que teve seu início no Brasil em março de 2020, pegou de
assalto a todos nós. A primeira data de envio para participação no Edital 2020 para o Ob-
servatório de Direitos Humanos se tratava, coincidentemente, de 17 de março de 2020, no
mesmo dia em que a Universidade Federal de Santa Maria, em uma nota pública, solicitou
que as atividades presenciais fossem suspensas. Aos servidores e estudantes, era pedido
que aguardassem nova orientação, dada a escassez de informações que existiam (e em cer-
ta medida, ainda existem) sobre “a nova pandemia de coronavírus”.
O projeto inicial, que chegou a ser submetido, fora estruturado de modo a levar rodas de
conversa para a escola sobre temas envolvendo mulheres, mundo da família, mundo do tra-

59
balho, cuidado de si; temas estes tão presentes e importantes que foram evidenciados ainda
mais durante a pandemia. A escola municipal Professor Sérgio Lopes já contava, nos anos
anteriores, com uma abordagem trazendo a importância das mulheres na ciência, na mídia
e nos esportes, entre outros espaços tão importantes que as mulheres já ocupam. A realidade
das “mães chefes do lar” é bastante presente na comunidade do bairro Renascença, assim
como, infelizmente, em muitas áreas de periferia de qualquer cidade. Mães, tias e avós reve-
zam-se no cuidado das crianças, às vezes contando com uma vizinha e, principalmente, com
a própria escola. Irmãos mais velhos ajudam a cuidar dos mais novos, e, assim, estabelece-se
uma dinâmica familiar em que mulheres assumem papéis de cuidado e de sustento.
O cineclubinho também precisou ser repensado, de modo que as atividades de visuali-
zação e interpretação dos curta-metragens fossem substituídas por estudos de técnicas de
cinema, que as crianças pudessem trabalhar usando recortes e pensando em enquadramen-
tos para seus brinquedos, por exemplo. Podiam criar cenas e pensar a forma mais dinâmica
de retratá-las com o material que tinham em casa.
E a formação docente? Com os professores e as professoras, foi preciso rever toda a sua
rotina de entregas de caixas com tarefas na escola. Muitos alunos sequer tinham alimentação
suficiente, o que fazia compreender que o material escolar também era escasso. Os docentes e
a diretora da escola, assim como integrantes do Gepeis, providenciaram doações de alimen-
tos e material didático como forma de apoio aos estudantes e suas famílias, neste momento
tão peculiar da história e da sociedade. Foram feitas reuniões mensais com os professores, via
plataformas de encontros online, tanto no sentido de acolhimento de suas demandas e an-
seios como para a organização de um cronograma, alinhando expectativas e possibilidades.
O projeto com as mulheres, pensado para o ODH, acabou tomando o formato de ativi-
dades complementares, levadas às crianças, junto à proposta substitutiva do Cineclubinho.
A nova abordagem surgiu, então, de que a mensagem chegasse às mães e responsáveis por
meio das atividades temáticas desenvolvidas para as crianças, e que, de alguma forma, as
mulheres estariam também realizando, orientando e conduzindo a entrega.
O tema geral foi Mulheres que Admiro e podiam ser entrevistadas, fotografadas e desenha-
das. Mulheres de perto, mulheres do dia a dia, que tiveram a oportunidade de contar mais
de si para seus pequenos e, com isso, produzir diálogos e reflexões no espaço doméstico.
Recebemos variados testemunhos das crianças, reconhecendo, nas mulheres da sua casa,
tanto valor – ou mais – do que muitas “famosas”: mamãe desenhada com uniforme de
Mulher-Maravilha, por exemplo, ou o desenho da tia, enfermeira, orgulho da família por
ter diploma universitário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após fazermos esta breve recapitulação das ações de Extensão do Gepeis, com grande
participação que o Observatório de Direitos Humanos estimula mediante seus editais de
fomento, compreendemos a necessidade da ação preponderante dos docentes universitá-
rios e pós-graduandos em presença nos espaços de escola, o que nos leva a conversar com
quem já passou pela universidade e, agora, reescreve sua formação de mãos com a prática.

60
São professores e professoras que, quando se tornam egressos da universidade, mui-
tas vezes deparam-se com ambientes os quais haviam apenas “ouvido falar”. Esses espa-
ços se fazem de suma importância para que os docentes compreendam a possibilidade da
criação mediante a inventividade da proposição de uma realidade diferente, por meio de
técnicas, interações e revisionismos de si e da própria prática.
Nem sempre as escolas pretendem que haja momentos formativos como o que relata-
mos, e o docente, no cotidiano avassalador, não percebe ocasiões em que possa auto-refle-
tir-se. Por isso, as ações do ODH no fomento aos espaços de inclusão, de discussão sobre
minorias e na possibilidade do incentivo de temas no espaço de formação docente são de
importância inconteste, para que a escola os acolha, internalize e gere seres humanos me-
lhores no agir social.

61
REFERÊNCIAS

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9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação na-
cional, para obrigar a exibição de filmes de produção nacional nas escolas de educação
básica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/
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da EMEF Professor Sérgio Lopes. Brasil: Silva et al., 2019. (07’30”), cor. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=d2UD56HlJaM. Acesso em: 7 jun. 2021.

62
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TEIXEIRA, et al. (orgs.) Telas da Docência: professores, professoras e cinema. Belo Ho-
rizonte: Autêntica Editora, 2017.

63
PROJETO “AÇÕES DO NÚCLEO DE
IMPLEMENTAÇÃO DA EXCELÊNCIA ESPORTIVA
E MANUTENÇÃO DA SAÚDE” JUNTO AO
OBSERVATÓRIO DE DIREITOS HUMANOS

Luiz Fernando Cuozzo Lemos


Igor Martins Barbosa
Samuel Klippel Prusch
Aline Pacheco Posser
INTRODUÇÃO

No século XIX, surgiu a Extensão Universitária, uma atividade acadêmica identificada


pela interação entre comunidade e universidade, que também é denominada de terceira
dimensão, além da Pesquisa e do Ensino (COELHO, 2014; TEIXEIRA, 2015). As Insti-
tuições de Educação Superior (IES) podem se envolver com a sociedade de vários modos,
como a nível internacional, nacional ou local/regional, oferecendo atividades diversas,
que incluem serviços de saúde, iniciativas artísticas e culturais, ações de difusão e divulga-
ção do conhecimento, estabelecimento de parcerias com organizações da sociedade civil,
entre outras, portanto as ações mostram o papel fundamental das IES quanto a atender
aos problemas, às necessidades e às demandas da comunidade (GAVIRA; GIMENEZ;
BONACELLI, 2020), além de ter um papel fundamental na formação dos alunos, na qua-
lificação de docentes e no intercâmbio social (ARAÚJO et al., 2015).
A UFSM possui uma política extensionista com nove objetivos, dentre eles, o de propor-
cionar a realização de projetos e programas alinhados com o plano de desenvolvimento da
instituição, levando em consideração as necessidades da sociedade, e promover a inserção
junto a interfaces com a educação básica, tecnológica e técnica e segmentos sociais, reparan-
do as diretrizes extensionistas (UFSM, 2019). Além dos objetivos, a política extensionista
da UFSM é composta por seis diretrizes. Dentre elas, constam a interação dialógica entre
universidade e sociedade; interdisciplinaridade e interprofissionalidade e impacto e transfor-
mação social (UFSM, 2019).
Dentre as ações de Extensão da UFSM, inclui-se o projeto ODH, que tem como fina-
lidade amplificar o debate sobre a temática, além de incentivar a participação de técnicos-
-administrativos, discentes, comunidade geral e docentes em reflexões e ações sobre o tema
dos direitos humanos. A principal meta do projeto é a promoção da cultura e da cidadania,
tendo como aspectos básicos a interdependência, a indivisibilidade e a universalidade dos
direitos, por meio da formação acadêmica, da articulação e da intervenção junto às políti-
cas públicas, da Extensão, da aproximação do conhecimento, da pesquisa, dos movimen-
tos sociais e da sociedade civil organizada.
O ODH envolve questões e ações pertinentes a grupos populacionais em situação de
vulnerabilidade social, decompondo-se em 11 eixos: população negra; população indíge-
na; pessoa com deficiência; pessoa idosa; infância e adolescência; LGBTQIA+; Associa-
ção de Vítimas da Kiss (ATVSM); refugiados; mulheres; população em situação de rua; e
população em privação de liberdade. Portanto, o ODH procura consolidar suas ações com
esses grupos populacionais nos campi da UFSM.
Um núcleo que realizada ações junto ao ODH é o Núcleo de Implementação da Ex-
celência Esportiva e Manutenção da Saúde (NIEEMS). Ele foi criado no final do ano de
2017, por meio da iniciativa de docentes do curso de Educação Física da UFSM. Dentre
os propósitos, constam o desenvolvimento do esporte, incluindo desde a iniciação ao alto
nível até a promoção de ações para manter a saúde dos praticantes das diversas faixas
etárias, ou seja, da criança ao idoso. Ademais, o NIEEMS intervém em questões sociais,

65
promovendo práticas esportivas para indivíduos carentes, principalmente aqueles que se
encontram em vulnerabilidade social e, dessa forma, contribui para garantia dos direitos
humanos. Profissionais e acadêmicos colaboram no desenvolvimento das ações do núcleo,
o que proporciona diversas experiências e aprendizados, contribuindo, consequentemente,
para o crescimento profissional. Diferentes temas são debatidos no núcleo, como política,
aspectos biomecânicos e fisiológicos, avaliação física, esporte para todos, antidopagem,
treinamento e grupos populacionais em situação de vulnerabilidade social.
Um público que faz parte de grupos de pessoas em situação de vulnerabilidade social é a
população privada de liberdade. Há jovens incluídos nesse conjunto que cumprem medidas
socioeducativas, as quais possuem uma dimensão pedagógica em que devem ser oferecidas
aos adolescentes as garantias dos seus direitos sociais e individuais, por meio de um grupo
de atividades articuladas e planejadas com as políticas sociais de saúde, educação, cultura,
profissionalização, esportes e lazer (COSTA, 2015). Com a população privada de liberdade,
o NIEEMS realiza ações socioeducativas, como a promoção da prática do tênis de mesa, do
atletismo e da canoagem.

AÇÕES DESENVOLVIDAS PELO NIEEMS JUNTO AO ODH

O NIEEMS tem como objetivo principal desenvolver projetos que articulem diretamen-
te o Ensino, a Pesquisa e a Extensão, utilizando o esporte como mecanismo de entrada,
seja através da excelência esportiva, seja na promoção da saúde (física e mental) de seus
praticantes. Diante disto, muitas vezes, o grupo executa suas ações em parceria com outros
órgãos/núcleos/fundações, com o objetivo de atingir positivamente determinados grupos
específicos – uma delas é intitulada “Ações do Núcleo de Implementação da Excelência
Esportiva e Manutenção da Saúde (NIEEMS) junto ao Observatório de Direitos Humanos
(ODH)”, a qual realiza ações em conjunto com a Fundação de Atendimento Socioeduca-
tivo (FASE) do Rio Grande do Sul.
A FASE atua no atendimento de jovens autores de atos infracionais com medida judi-
cial de internação ou semiliberdade, oportunizando a reinserção social dos adolescentes,
em parceria com a sociedade, através de medidas socioeducativas. O surgimento da FASE
teve como base o desenvolvimento do ECA, no final dos anos 90, o qual impôs a necessi-
dade de reordenamento dos órgãos púbicos e das entidades da sociedade civil que atuam
na área da infância e da juventude, com vistas à adequação aos novos paradigmas concei-
tuais e legais de atenção a essa população.
A partir da parceria entre o NIEEMS, por meio da Pró-Reitoria de Extensão, do Minis-
tério Público e da FASE, o desenvolvimento do projeto na cidade de Santa Maria – RS se
baseou nas modalidades de tênis de mesa, atletismo e canoagem.

66
A EXTENSÃO A PARTIR DO TÊNIS DE MESA

O projeto denominado Iniciação ao tênis de mesa na FASE teve início no ano de 2018 e
ocorreu no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) de Santa Maria/RS (Figura 1),
com o objetivo principal de ensinar os princípios básicos do tênis de mesa, ao visar ao desen-
volvimento de habilidades específicas da modalidade e à busca da ressocialização dos alunos
beneficiados com o projeto, através do esporte.

Figura 1 – Espaço disponibilizado para a prática no CASE de Santa Maria

Fonte: autores.

O tênis de mesa é um esporte olímpico bastante dinâmico, que se utiliza de raquetes e é


disputado individualmente ou em duplas, sendo caracterizado como uma modalidade de
confronto, sem contato entre adversários, e de cunho estratégico, com o objetivo de golpear a
bola para o outro lado da rede, de maneira que o oponente não consiga rebater ou que faça de
forma incorreta (HARST et al., 1990; MUNIVRANA; PETRINOVIĆ; KONDRIČ,2015).
A prática desse desporto (Figura 2) oportunizou a promoção do trabalho de todo o
organismo, de modo a gerar diversos benefícios em seus praticantes, auxiliando no de-
senvolvimento de aspectos físicos e mentais (VILANI, 2004). Seu valor pedagógico é de
suma importância para o crescimento e desempenho dos jovens, de modo a desenvolver
coordenação motora, agilidade, precisão e rapidez na realização dos movimentos. É sabi-
do que a disputa de um ponto dura em média 3,5 segundos, e, nesse período, o praticante
deve ser capaz de raciocinar nas diversas possibilidades que podem acontecer no decorrer
da jogada, de modo que a velocidade do jogo faz com que os mecanismos perceptivos e de

67
atenção estejam em capacidade máxima, devido ao alto estímulo necessário durante a sua
ação (VILLANI; SAMULSKI; LIMA 2002). Assim, entende-se o tênis de mesa como um
potencializador de aspectos cognitivos e psicológicos, devido ao seu caráter de dinâmica de
pressão de tempo e a grande velocidade de respostas (refinamento motor), em decorrência
da variabilidade das situações de jogo (raciocínio).

Figura 2 – Prática da modalidade realizada em duas mesas, proporcionando uma


atividade mais dinâmica

Fonte: autores.

Do ponto de vista psicológico, ao estar inserido no projeto, o aluno era apresentado a


eventos enriquecedores em sua construção, afinal, por ser, muitas vezes, um esporte indi-
vidualizado (em uma situação de confronto), o praticante precisa conhecer a si mesmo,
ocasionando um aumento nas suas capacidades intrapessoais, como motivação, autoesti-
ma e equilíbrio emocional, o qual é testado em momentos de tensão, como em situações
de adversidade no placar ou, até mesmo, em provocações do oponente (VILANI; LIMA;
SAMULSKI, 2003). Outros comportamentos necessários estão relacionados a aspectos
disciplinares, destacando-se concentração, perseverança e autocorreção. No entanto, em
contrapartida, existem situações de crescimento pessoal em relação aos momentos de in-
teração social (disputa ou treinamento), produzindo, assim, uma situação de valoração
de fatores interpessoais, como a cooperação, a socialização e o respeito ao próximo, ine-
vitavelmente compartilhando seus progressos e insucessos junto ao grupo. Este ambiente
proporcionou a promoção do vínculo tanto entre atletas como entre atleta e treinador, de
modo a gerar um clima agradável, seguro e familiar, sendo esse fundamental para o desen-
volvimento de crianças e adolescentes (VILANI; SAMULSKI, 2002).

68
As atividades contemplavam todos os aspectos necessários na concepção de uma
aula. Na dimensão procedimental, foram ensinadas habilidades motoras básicas, como
quicar, rebater, sacar e movimentar o corpo. Em relação aos aspectos conceituais, fo-
ram divulgadas informações pertinentes a regras, história, evolução e materiais da
modalidade. Por fim, na dimensão atitudinal, ensinou-se valores éticos, disciplina e
respeito ao adversário, por exemplo.
Salienta-se, também, que a prática do tênis de mesa oportuniza o incremento nos níveis
de muitos aspectos fundamentais na vida adulta, como na intuição, na criatividade, no
raciocínio lógico, no individualismo (na busca de um emprego, por exemplo) ,e acima de
tudo, no cooperativismo fundamental na vida adulta (MARTINS, 1996). Além do mais,
ao realizar este esporte, o indivíduo é estimulado a inserir a atividade física na sua vida,
gerando um aumento na autoestima, modificando suas concepções a respeito de si (muitas
vezes negativas). Portanto, fica evidente que esse esporte é rico para a formação dos jovens,
propiciando numerosas satisfações, formação da personalidade, assim como promovendo
tanto qualidade de vida quanto desenvolvimento corporal e ofertando benefícios sociais.

A EXTENSÃO A PARTIR DO ATLETISMO

As ações que contemplavam a modalidade do atletismo também começaram em 2018,


no entanto a sua prática acontecia no Centro de Educação Física e Desportos (CEFD)
da UFSM. Esse projeto tem como principais objetivos aprimorar as habilidades motoras;
incrementar suas relações socioafetivas, promover uma maior socialização entre os “resi-
dentes” da FASE, além de proporcionar vivência em distintas provas. A figura 3 ilustra
os jovens conhecendo os locais de prática do atletismo:

Figura 3 – Os jovens conhecendo os locais de prática do atletismo

Fonte: autores.

69
O atletismo pode ser considerado a atividade corporal mais antiga do mundo, pois seu
surgimento se confunde com a própria história do homem. A base para execução dessa mo-
dalidade é de origem natural, ou seja, andar, correr, saltar, sendo essas habilidades adquiridas
ao longo da vida (SEDORKO; DISTEFANO, 2012), de modo a reforçar a sua prática ao lon-
go da história. Quanto à diversidade de modalidades dentro do atletismo, são desenvolvidas
provas de corridas, saltos e lançamentos/arremessos. Estas, por possuírem diferenças entre
si, servem para enriquecer fundamentos básicos, pois, para sua execução, o aluno necessita
conhecer sua cultura, de maneira a buscar aprimorar sua ação (SILVA; SEDORKO, 2012).
Devido a esses movimentos comuns, esse esporte é estimado como ancestral, sendo conside-
rado um esporte-base, gerando muitos benefícios aos seus praticantes (BRAGADA, 2020).
Pôde-se perceber, ao longo dos encontros realizados com os alunos, que, através do
atletismo, foi possível desenvolver aspectos procedimentais com o ensino e a execução de
movimentos que compõem as modalidades apresentadas. Já na parte conceitual, foram
apresentadas informações sobre a origem das provas, suas mudanças ao longo da história,
conceitos básicos da biomecânica, entre outros. Por fim, a dimensão atitudinal ligou o
atletismo aos valores sociais, reconhecendo atitudes de respeito mútuo, resolução de pro-
blemas, solidariedade, além da procura por justiça.
Assim, através do atletismo, foi possível trabalhar o desenvolvimento psicomotor (parte
física e cognitiva) dos alunos, de modo que, além das diversas técnicas aprendidas, fosse
proporcionado o desenvolvimento das capacidades motoras condicionais e coordenativas
– o que permitiu que o aluno obtivesse noções na percepção de tempo e espaço, adquirindo
qualidades como resistência, flexibilidade, força, agilidade, e servindo como estimulante
na produção de hormônios do crescimento e do desenvolvimento de músculos (CARA-
BALLO, 2017); bem como um melhor funcionamento do sistema cardiorrespiratório e do
sistema nervoso (GOMES, 2008; BONAPAZ, 2013), esse último na ampliação das cone-
xões neurais, sobretudo na área do sistema límbico (área das emoções e memórias), sendo
o responsável por realizar comparações que avaliam a capacidade do meio em satisfazer
as necessidades do organismo, modificando o nível do tônus de base. Esse sistema está no
centro da experiência relacional e repercute no tônus de base em função da satisfação ou
não das necessidades, sejam elas biológicas, afetivas e/ou culturais (LE BOULCH, 2008;
BRAGADA, 2020).
Os aspectos psicológicos também são desenvolvidos a partir da prática do atletismo,
garantindo o crescimento pessoal de cada aluno. É por meio dele que se pode promo-
ver questões como o contato social, a religião, a igualdade, dentre outras temáticas
(GOMES, 2008), bem como servir de oportunidade para distração momentânea dos
problemas particulares, de modo a gerar ganho de confiança, maior autocontrole, cria-
tividade e estabilidade emocional (CARABALLO, 2017). Além de contribuir para o
desenvolvimento de competências como o aprender a ser, aprender a conviver, apren-
der a conhecer e aprender a fazer, ampliando valores sociais importantes para forma-
ção integral do jovem (ROSA, 2016).

70
A Figura 4 demonstra a prática de distintas provas que compõem o atletismo.

Figura 4 – Prática de distintas provas que compõem o atletismo

Fonte: autores.

Portanto, esse esporte foi considerado uma rica ferramenta no processo de ensino-
-aprendizagem, pois contempla todas as esferas presentes na produção não só do co-
nhecimento específico da modalidade, mas também de um ser capaz de desenvolver
seus aspectos físicos, bem como de cidadão atuante na sociedade (REIS et al., 2015).
Constituindo, então, o atletismo como um desporto completo tanto para o indivíduo em
desenvolvimento quanto para um adulto.

A EXTENSÃO A PARTIR DA CANOAGEM

As atividades da canoagem se iniciaram em 2019, fazendo parte do projeto Canoagem na


Escola, sendo realizadas no açude do CEFD na UFSM (Figura 5). Esse projeto tem como
principais objetivos proporcionar aos alunos o contato tanto com as informações quanto
com a prática da modalidade, além de buscar desenvolver temáticas transversais, que com-
punham esse desporto.

Figura 5 – Açude do CEFD

Fonte: autores.
71
Devido à necessidade do homem em se locomover no meio aquático, a história da cano-
agem está diretamente ligada às origens do homem e à busca pelo sustento de seu povo. As-
sim, tendo uma evolução exponencial com o passar do tempo, a canoagem vem tendo um
grande desenvolvimento nos últimos anos aqui no Brasil, muito disso corresponde ao fato
de o país possuir muitos recursos fluviais, como rios e lagos, além de abrigar um extenso
litoral banhado pelo Oceano Atlântico, possuindo condições que propiciam a prática, de
forma tanto recreativa quanto competitiva. Na realização de sua prática, os praticantes uti-
lizam embarcações, chamadas de caiaques ou canoas, para enfrentar diferentes condições
de água (PALINSKI, 2009; LEMOS et al., no prelo). Diferente do remo, que é praticado de
costas para o horizonte, na canoagem, a posição é frontal ao horizonte de propulsão, esse
que é gerado a partir de pagaias de uma ou duas pás, dependendo da embarcação.
Sabe-se que a prática da canoagem exige um processo multiarticular, desta maneira,
desenvolvendo, em grande magnitude, a parte física de seus adeptos. Todo o trabalho apli-
cado na água se dá apenas pelas pás das pagaias, não havendo auxílio de outras ferramen-
tas ou utensílios. Contudo muitos acreditam que apenas os membros superiores atuam
na canoagem, porém é exigida uma carga de trabalho de todo corpo, mesmo que seja de
forma isométrica (membros inferiores e tronco), para uma ótima produção de movimento
da embarcação (LEMOS et al., no prelo). Assim, são percebidos acréscimos relacionados
à saúde, como exemplos: capacidades cardiorrespiratórias, potência, força, flexibilidade,
equilíbrio (CBCA, 1998).

Figura 6 – Os jovens tendo contato com o açude e com os equipamentos da prática

Fonte: autores.

Somam-se aos acréscimos tanto físicos quanto psicológicos os aspectos relacionados a


temáticas transversais pertencentes ao ambiente enriquecedor da canoagem. Destacam-se
os conhecimentos gerados a partir do contato direto com a água, como. por exemplo, o
enfrentamento ao medo do meio aquático, facilitado pelo auxílio da embarcação, bem
como a presença do professor responsável, que, anteriormente, passa conceitos básicos de
segurança e que, na prática, faz-se presente, assistindo ao aluno. Ainda ao encontro desse
exemplo, existe uma parte conceitual (técnicas de nados e ações complementares) e proce-

72
dimental pertinente a informações sobre a sobrevivência na água, sendo de grande valia no
decorrer da vida (LEMOS et al., no prelo). Dessa forma, esse esporte acaba por produzir
um treinamento psicológico no que diz respeito ao controle do medo. A produção da sen-
sação de eficácia e confiança podem diminuir os sentimentos ameaçadores, como o medo
(LAVOURA; MACHADO; ZANETTI, 2008).
Outro ponto transdisciplinar de suma importância se refere às informações pertinentes
ao atual debate envolvendo o meio ambiente. Discussões sobre os cuidados com a fauna
e a flora locais se fazem oportunos, seja por um primeiro contato com lugares com uma
natureza tão rica, os quais eram desconhecidos dos alunos, seja por debates sobre os cuida-
dos quanto à preservação e à biodiversidade, de modo a respeitar e zelar por esses espaços.
Questões voltadas à socialização também foram pauta durante as ações do projeto de
canoagem, de modo que o convívio e a interação entre indivíduos durante as práticas
proporcionaram situações de reflexão perante assuntos relevantes. Nesse sentido, pode-se
destacar o respeito ao próximo, a ética, a diversidade cultural, a cooperação e a inclusão
social. Tais temas podem auxiliar na busca pela reinserção de jovens na sociedade, a partir
da canoagem, fortalecendo valores como, por exemplo, disciplina e compreensão de direi-
tos e deveres. Assim, ampliando a nova oportunidade de vida aos alunos, possibilitando
serem agentes ativos e capazes de fazer a diferença na sociedade, bem como servindo de
exemplo a outros jovens que se encontram em situação semelhante.

TEMAS TRANSVERSAIS COMPLEMENTARES

ATIVIDADE FÍSICA – QUALIDADE DE VIDA

Um estilo de vida saudável requer que cidadãos e grupos adquiram e mantenham ações
de promoção da saúde e prevenção de doenças durante todo o curso de vida (CARVALHO;
COSTA, 2011). Gerando uma rotina de vida com a busca constante pelo exercício físico. No
entanto, na sociedade, o sedentarismo tem sido um dos causadores de problemas na saúde
pública. Tais evidências são preocupantes, já que o aumento no comportamento sedentário
parece estar positivamente associado à obesidade (DUMITH et al., 2014), ao consumo de
álcool, a hábitos alimentares não saudáveis e a prejuízos em determinados indicadores de
saúde psicossocial (BUSH et al., 2013; SILVA et al., 2015). A vivência do sobrepeso ou obe-
sidade durante a fase infanto-juvenil pode indicar uma pré-disposição à permanência desse
quadro durante a vida adulta (CONDE; BORGES, 2011). Acredita-se que cerca de 25% das
crianças e 80% dos adolescentes com essa condição se mantêm posteriormente.
Desse modo, são necessárias várias medidas para estimular a prática de atividades fí-
sicas, principalmente no público infanto-juvenil. Afinal, realizar uma atividade física re-
gularmente gera diversos acréscimos para a saúde e para a qualidade de vida, além de
prevenir inúmeras doenças (LEE et al., 2012). No público infanto-juvenil, esses benefícios
podem ser identificados em curto e/ou longo prazo. Pesquisas têm indicado que, quando
indivíduos jovens são mais ativos, durante esse período, existe menor chance de serem

73
obesos, desenvolver hipercolesterolemia e apresentar hipertensão arterial (BOZZA et al.,
2014; GUEDES et al., 2006; ROMERO et al., 2013). Contribuindo, também, para a melho-
ra do perfil lipídico e metabólico, bem como para uma redução do percentual de gordura
corporal (HALLAL et al., 2006; AZEVEDO et al., 2007). Já em longo prazo, a chance do
surgimento de osteoporose e de determinados tipos de câncer é menor ao alcançar a fase
adulta (HALLAL et al., 2006; SILVA et al., 2015). Além de promover habilidades pertinen-
tes às questões psicossociais, como as competências afetivas, éticas, estéticas, cognitivas,
de relação interpessoal e de inserção social (MARIETTO, 2007), distúrbios do sono, saúde
mental, fatores psicológicos (CARVALHO; COSTA, 2011).

MEIO AMBIENTE (ECOLOGIA) – SOBREVIVÊNCIA NO AMBIENTE AQUÁTICO

Atualmente, na Educação Física, existe uma ideia de desenvolver temáticas transdisci-


plinares, criando uma preocupação em produzir um processo de conscientização de forma
conjunta às práticas. Com os assuntos relacionados ao meio ambiente, não é diferente.
Esse pode ser conceituado como “o conjunto de componentes físico-químicos e biológicos,
associados a fatores socioculturais suscetíveis de afetar, direta ou indiretamente, em curto
ou em longos prazos, os seres vivos e as atividades humanas no âmbito globalizante da
ecosfera” (VIEIRA, 2001, p. 49).
Nesta relação, faz-se necessária a reflexão de que o ser humano não está só dentro do
ambiente, mas o compõe, como parte constituinte, atuando diretamente no andamento da
vida presente no planeta, criando a consciência de que esse começa dentro de nós e perpas-
sa tudo que nos cerca (GUIMARÃES et al., 2007). Diante disto, os espaços nas aulas de
Educação Física surgem como local no qual se pode fazer esta aproximação entre a teoria
e a prática, ainda mais quando se tratam de atividades relacionadas à natureza, pois estas
formas de movimento que se apresentam “frequentemente associadas à liberdade, aventu-
ra e integração com o meio” (ZIMMERMANN, 2006). Afinal, nessas situações, o corpo é
exposto ao ambiente, tornando-se parte daquilo, ao passar a ser um campo informacional,
recebendo e emitindo estímulos, permitindo ao indivíduo se perceber como parte integran-
te desse meio (PAULA, 2012).
Essas atividades possuem um caráter cooperativo, compostas por atitudes de respei-
to, reconhecimentos dos limites, confiança, as quais são observadas não somente na re-
lação Homem/Homem, mas também na relação Homem/Natureza. E saber respeitar as
“imprevisibilidades da natureza é pré-requisito para esse tipo de atividade” (MARINHO,
2004), bem como minimizar os impactos causados na natureza.
Além disso, os fatores ligados aos recursos hídricos são de suma importância ao se
pensar a prática no meio aquático, como, por exemplo, aspectos relacionados ao consumo
(gerenciamento correto), à preservação da vida existente e à qualidade da água. Assim, é
de suma importância a conscientização sobre os caminhos para se alcançar o equilíbrio
entre as demandas e as necessidades, as disponibilidades e a preservação destes recursos e
das comunidades de seres vivos a eles associadas.

74
Outra temática relacionada ao meio aquático é o fato de afogamentos serem a terceira
causa de morte em crianças e adolescentes (<15 anos) no mundo, de acordo com a WHO
(2014). Já no Brasil essa causa sobe para o segundo lugar. Em 2013, foram registradas
cerca de 372.000 pessoas vítimas de afogamento no mundo, das quais mais 142.219 foram
jovens. Diante destes fatos, percebe-se a importância do desenvolvimento de habilidades
de sobrevivência no meio aquático, sendo que essa competência consiste no processo que
permite ao indivíduo conseguir estar suficientemente “à vontade” na água com vista à
aquisição de outras habilidades motoras mais complexas (SARMENTO, 2001). Além de
produzir um sentimento de confiança e segurança nos praticantes de atividades aquáticas,
possibilitando o ensino gradual e prazeroso.

CONVIVÊNCIA – RELAÇÃO INTERPESSOAL – COOPERAÇÃO

Acredita-se que muitas funções psicológicas estão associadas à ideia do desenvolvimen-


to humano a partir das relações que o indivíduo estabelece com o ambiente sociocultural o
qual habita (VALSINER, 2001). Ao encontro disso, o conceito de internalização, de con-
tribuição de Vygotsky, baseia-se nas funções psicológicas superiores como a reconstrução
interna de uma operação inicialmente externa.
Nota-se que as relações interpessoais são indissociáveis no contexto da evolução huma-
na, e é através desse contato que produzimos e reproduzimos sentimentos, aprendizados,
percepções, dentre outros. Nesta direção, o Ministério da Educação, através de seus Pa-
râmetros Curriculares Nacionais, destacam o trabalho do profissional de Educação Física
em desenvolver o significado do trabalho em grupo, e que este consiste em valorizar a
interação aluno-aluno e professor-aluno como fonte de desenvolvimento social, pessoal e
intelectual; e frisam que situações de grupo exigem dos alunos a consideração das diferen-
ças individuais e de respeito aos outros, em um exercício de ética e cidadania (AGUIAR;
DUARTE, 2005).
Desta maneira, sabe-se que o relacionamento interpessoal no ambiente de qualquer prá-
tica, de acordo com a qualidade das experiências vividas, é capaz de influenciar diretamen-
te na formação integral do indivíduo. Assim, o convívio consiste em um contato positivo,
que possibilitará desenvolver benefícios em situações, como a redução da agressividade,
melhora da aprendizagem e a formação da personalidade, desenvolvendo suas potenciali-
dades para o exercício consciente da cidadania (AGUIAR; DUARTE, 2005).
É na exposição e no confronto de ideias que trocamos conhecimento e reflexões. Embora
os desacordos de pensamentos causem divergência, essa oposição permite um entender numa
visão de fora da sua. Nesses conflitos, são geradas oportunidades de aprender a se colocar no
lugar do outro, analisando determinada situação sob uma diferente perspectiva, levando a uma
reflexão e autoanálise, de modo que estas experiências auxiliam na regulação de diversas ações
sociais, constituindo no crescimento e amadurecimento do indivíduo, além da estimulação da
cooperação com o próximo (CHRISPINO, 2007; OLIVEIRA; SILVA, 2018).

75
A cooperação faz parte do princípio do que é se viver em sociedade, fazendo parte da so-
brevivência dos humanos como grupo, desde os primórdios. No início, as pessoas já viviam
juntas, fazendo atividades em conjunto, como caçar, colher frutos, bem como partilhar seus
bens (ORLICK, 1989). Percebeu-se, então, que era uma questão de vida ou morte.
É através da cooperação que são solidificados aspectos mentais, cognitivos, afetivos,
motores e, em especial sociais, que colaboram com laços de amizade (OLIVEIRA; SILVA,
2018), pois essa relação intensifica a preocupação de uma pessoa pelas outras e as estimula
a serem mais simpáticas, gerando uma confiança mútua que se apresenta como funda-
mental neste tipo de interrelação, pois, quando alguém escolhe cooperar, conscientemente
coloca seu destino parcialmente na mão dos outros (ORLICK, 1989).
Essa troca de ajudas acaba por promover elos importantes para indivíduos que estão,
muitas vezes, carentes de afetividade e socialização. Sendo que essa corresponde ao desen-
volvimento do coletivo, do espírito de união, da solidariedade. Consistindo em um pro-
cesso de integração do indivíduo com o grupo. Assim, o meio social se torna relevante,
servindo como um tipo de terapia complementar e eficaz na construção de um indivíduo
mais estruturado em sua capacidade psicossocial. Já a respeito da afetividade, compreende
um campo abrangente. Seu significado é percebido por um conjunto complexo de signos,
que tem uma significância geral – as atitudes, as posturas, as mímicas, o olhar, exprimem
os sentimentos, as emoções, os desejos e as pulsões conscientes ou inconscientes. Muitas
vezes, é o contato com o outro, o olhar, que exprime a busca da comunicação e da seguran-
ça, contato este que pode ser reduzido à presença e ao calor humano (DIAS, 1996).

MELHORAS SOCIOAFETIVAS – INCLUSÃO

Através da Educação Física aos jovens, deve ser permitida uma continuidade em de-
senvolvimento total, de modo a fazê-lo explorar a riqueza e a pluralidade dos movimentos
que seu corpo possibilita, oportunizando, assim, que o indivíduo se conheça melhor e se
torne um adulto mais apto (DAÓLIO, 1986). No entanto, com o passar dos anos, dentre
os aspectos que compõem uma aula, a dimensão atitudinal tem tido grande destaque nos
debates na área da educação. Sabe-se de toda carência presente nas camadas sociais do
país, desta forma, a intervenção do professor acaba tendo grande importância no desenvol-
vimento e na construção de uma sociedade mais igualitária e reflexiva. Ao encontro disso,
o Ministério da Educação traz, em seus parâmetros curriculares nacionais, que, na área da
Educação Física, deverão ser abordados os temas transversais, apontados como temas de
urgência para o país como um todo, além de poder tratar outros relacionados às necessida-
des específicas de cada região. Sobre cada tema, esse documento traz algumas reflexões a
serem tratadas pela área, com a intenção de ampliar o olhar sobre a prática cotidiana e, ao
mesmo tempo, estimular a reflexão para a construção de novas formas de abordagens dos
conteúdos (BRASIL, 1997). Diante disto, debates e discussões são presentes em temáticas
transversais, como, por exemplo, inclusão, ética, saúde, pluralidade cultural, orientação
sexual, trabalho e consumo.

76
O esporte é reconhecido como meio de inclusão social e um canal de socialização
positiva, existe um aumento de projetos esportivos destinados a jovens de classes
populares (VIANA; LOVISOLO, 2011). A realização de práticas esportivas é de
suma importância para a formação social dos indivíduos, pois questões referentes à
sociabilidade, à participação e à responsabilidade são intrínsecas do esporte (VIANA;
LOVISOLO, 2011). Portanto, pessoas em situação de vulnerabilidade social podem ser
incluídas por meio da prática esportiva, proporcionando melhorias socioafetivas.

CONCLUSÃO

Pode-se concluir que as IES possuem um papel fundamental ao estímulo à Extensão


Universitária, pois, por meio dela, há um estreitamento de relações entre comunidade e
universidade, possibilitado, à sociedade, ações e práticas, as quais, sem a intervenção de
projetos extensionistas, os habitantes, possivelmente, não teriam oportunidade de realizá-
-los. É preciso dar enfoque ao público em situação de vulnerabilidade social, pois eles apre-
sentam diversas carências e, muitas vezes, são excluídos da sociedade. Ao encontro disso, o
NIEEMS realiza ações com esse público, como pessoas privadas de liberdade – entre essas
atividades, está o projeto Ações do Núcleo de Implementação da Excelência Esportiva e Manuten-
ção da Saúde junto ao Observatório de Direitos Humanos. Por meio da prática de modalidades
esportivas, como tênis de mesa, atletismo e canoagem, os participantes aprendem esses
esportes, melhoram as habilidades motoras e capacidades físicas, além de desenvolverem
temáticas transversais, como a consciência ambiental, o cuidado com a natureza, a melho-
ra da qualidade de vida, bem como aspectos psicossociais, como ética, responsabilidade e
respeito ao próximo, cooperação e benefícios socioafetivos.

77
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82
ATENDIMENTO PSICOLÓGICO
ONLINE DE MÃES ADOTIVAS:
RELATO DE EXPERIÊNCIA DE
AÇÃO EXTENSIONISTA

Catiane da Silva Marques


Suane Pastoriza Faraj
Aline Cardoso Siqueira
INTRODUÇÃO

Como o trabalho psicoterapêutico online pode contribuir com o maternar de mães ado-
tivas? Tornar-se mãe ou pai é um processo psicológico que ocorre em todos os processos de
filiação, podendo a parentalidade enfrentar obstáculos para ser constituída. Com a finalida-
de de oferecer um espaço de escuta a mães adotivas, uma ação extensionista foi planejada
e realizada. Assim, esse capítulo objetivou relatar a experiência de atendimentos clínicos
online realizados com mães que estavam exercendo a maternidade pela via da adoção, e de
como esses atendimentos contribuíram com a vinculação entre mães e crianças adotadas.
A decisão pela maternidade adotiva envolve uma série de fatores que impactam a ma-
neira como as mães se relacionam e se vinculam com seus filhos. De acordo com Sampaio
et al. (2020), os pais adotivos podem ter chegado até esse filho após terem percorrido um
caminho doloroso, permeado pela dor da infertilidade, pela frustração de tratamentos que
não tiveram o desfecho esperado, por um longo processo burocrático da adoção, fanta-
sias relacionadas ao filho e pela família biológica. Essas vivências precisam ser elaboradas
pelos pais para que estes se sintam preparados para não somente ter um filho, mas, sim,
acolher e aceitar o filho com todas as demandas que ele suscitará. O estudo de Mahl et al.
(2011), que buscou estudar o luto da infertilidade e a adoção como uma maneira de exer-
cer a parentalidade, apontou que a maioria das participantes optaram pela adoção depois
de muitas tentativas de conceber um filho biológico, quando essas já estavam esgotadas
fisicamente e emocionalmente, constatando que histórias devem ser levadas em conside-
ração, pois as repetidas perdas e o luto por não gerar o filho biológico podem atravessar a
transição para a parentalidade adotiva.
Ainda que a transição para a parentalidade possa ocorrer de forma intensa em todas as
formas de tornar-se mãe e pai, pode ser mais complexa quando ocorre pela via da adoção.
Muitas crianças cujas famílias perderam o poder familiar e que estão elegíveis à adoção
têm histórico de violência e outras situações de violação de seus direitos, experiências que
acarretam efeitos na sua constituição psíquica e no seu comportamento. Essas crianças po-
dem apresentar, por exemplo, comportamentos desafiadores, precocidade da sexualidade,
afastamento familiar e ingresso em instituições de acolhimento, aspectos que precisam ser
levados em consideração pelos adotantes, favorecendo a consolidação da parentalidade
adotiva e no desenvolvimento saudável da criança ou do adolescente (LISONDO, 2018).
Um espaço de escuta para auxiliar o processo de parentalidade pode favorecer a adoção e
consolidar o vínculo entre pais e filhos.
O atendimento psicológico pode ser uma possibilidade de acolher e escutar as percep-
ções e os sentimentos de mães e pais adotivos, contribuindo para o processo de adoção
efetivo. Também pode ser uma ferramenta para instrumentalizar os pais adotantes diante
da adoção de crianças que passaram por situações adversas, o que pode ocasionar impasses
no relacionamento com a futura família adotiva. Com a pandemia de COVID-19, a moda-
lidade de atendimento online se popularizou no mundo. No âmbito nacional, o atendimen-
to psicológico online foi regulamentado pela Resolução CFP n.º 11/2018. O documento

84
estabeleceu que o psicólogo, a partir da realização de um cadastro na Plataforma E-Psi
do CFP (https://epsi.cfp.org.br/) e autorização do CFP, poderia atender, na modalidade
online, adultos, crianças e adolescentes. Com a pandemia do novo coronavírus, Sars-cov-2,
foi publicado um novo documento, a Resolução CFP n.° 04/2020, que permitiu a atuação
de todos os psicólogos cadastrados na Plataforma do E-Psi do CFP para a prestação dos
serviços de psicologia.
O atendimento online na área da psicologia consiste em uma prestação de serviços
psicológicos pela via da tecnologia da informação e comunicação (TICs). Nesse sentido,
o atendimento pode ocorrer de maneira síncrona (atendimento que acontece de maneira
simultânea) e assíncrona (não ocorre de maneira simultânea) (SIEGMUND et al., 2015).
O atendimento psicológico mediado pelas TICs refere-se ao um conjunto sistemático de
procedimentos, baseado em métodos e técnicas psicológicas por meio das quais se presta
um serviço nas diferentes áreas de atuação da psicologia, com vistas à avaliação, orienta-
ção e/ou intervenção em processos individuais e grupais (CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA, 2018). Nesse sentido, o atendimento online, da mesma forma que o pre-
sencial, segue princípios teóricos e técnicas psicoterápicas, propõe-se à escuta terapêutica,
ao estabelecimento de um contrato terapêutico, assim como da aliança terapêutica entre
paciente e terapeuta. Siegmund e Lisboa (2014), analisando desde um espectro amplo,
acreditam que o atendimento online é viável, pois é possível de se estabelecer uma relação
terapêutica confiável e transferencial e, com isso, alcançar os objetivos que se propuseram
paciente-terapeuta. Nessa mesma perspectiva, Bittencourt et al. (2020) sinalizaram que os
efeitos do atendimento psicológico online são semelhantes ao presencial no que se refere
à minimização dos sintomas e objetivos adquiridos em pacientes adultos, apesar de ter pe-
culiaridades em relação ao setting terapêutico. Os autores consideraram que a efetividade
do atendimento é possível, a partir do contrato terapêutico estabelecido e da oferta de um
setting terapêutico constituído por uma escuta ética e responsável. Dessa forma, a tecno-
logia na atualidade faz parte do cotidiano das pessoas e nos consultórios também se faz
presente, podendo modificar a prática da clínica psicológica e a forma de compreensão da
subjetividade dos sujeitos (BARBEIRO; REIS, 2020).
Diante do exposto, atendimento psicológico online individual às mães adotivas foi ofer-
tado por meio da atividade extensionista “Atendimento psicológico clínico especializado
voltado para as demandas do acolhimento institucional para crianças e adolescentes e
de famílias adotivas”, da Universidade Federal de Santa Maria. Este teve como objetivo
oferecer, às mães e aos pais adotantes, um espaço especializado, desde uma escuta clínica
psicanalítica sobre o processo de tornar-se pai e mãe pela via da adoção. O atendimento
também objetivou favorecer o estabelecimento de um olhar para o comportamento dos fi-
lhos, bem como (re)significar questões referentes à adoção, reconhecer as particularidades
e singularidades de cada criança, contribuindo positivamente para o desenvolvimento de
uma relação materna saudável.

85
MÉTODO

Trata-se de um relato de experiência, desse modo, pretende-se criar uma narrativa cientí-
fica a partir dos processos e das produções subjetivas vivenciadas por psicólogas do projeto.
O Projeto teve início no ano letivo de 2020, de maneira presencial. No entanto, após a de-
claração da pandemia de COVID-19 e a suspensão das atividades presenciais na universi-
dade, a ação extensionista passou a ser oferecida na modalidade online. A equipe da ação,
composta por acadêmicos da graduação e pós-graduação, definiu que o atendimento seria
realizado por meio da tecnologia de informação e comunicação, de maneira síncrona; e as
psicólogas pós-graduandas dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e Ciências da
Saúde atuariam como psicoterapeutas, enquanto os estudantes de graduação em Psicolo-
gia participariam das supervisões coletivas, realizando o debate teórico e a construção dos
casos. Obteve-se apoio do Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal de
Santa Maria, por meio de remuneração para um estudante do grupo.
A equipe de trabalho da ação de extensão foi qualificada para o atendimento psicológi-
co online a partir do estudo da legislação do Conselho Federal de Psicologia e do debate
de trabalhos científicos publicados. Além disso, participou de uma formação de 16 horas
sobre a temática do atendimento online promovida pela universidade.
No presente relato, optou-se pela apresentação de três casos de mães com filhos ado-
tivos, atendidas na atividade extensionista. Quanto à escolha destes casos, esta foi decor-
rente das similaridades entre eles, por centrar-se na questão da adoção e com demandas
parecidas apresentadas pelas pacientes, uma vez que a ação de Extensão não era destinada
exclusivamente ao público de mães adotivas, mas também a crianças e adolescentes advin-
dos do acolhimento institucional. As mães foram encaminhadas por meio de um Grupo de
Apoio e Incentivo à Adoção, organização não governamental da cidade, pela equipe téc-
nica de um acolhimento institucional e pelo contato com famílias que os filhos já haviam
sido atendidos nos anos anteriores.
Os atendimentos ocorreram de março a dezembro de 2020, tinham frequência sema-
nal, com a duração aproximada de 50 minutos, tendo como base teórica a psicanálise.
Os psicoterapeutas redigiram os relatos de atendimento após cada sessão, os quais eram
compartilhados para estudo em supervisão. As supervisões dos casos foram realizadas
semanalmente, em plataforma digital, a partir de leituras teóricas e discussão dos casos,
a partir de pressupostos psicanalíticos. A supervisão acadêmica constituiu-se em um mo-
mento fundamental para a formação profissional e também contribuiu para a construção
da identidade profissional através de apontamentos relevantes sobre a prática clínica. No
encerramento da ação de Extensão, os relatos dos atendimentos das mães foram analisa-
dos para a construção dessa comunicação científica, e arquivados.

86
RESULTADO E DISCUSSÃO

Inicialmente, será apresentada a história de três mães que exercem a maternidade pela
via da adoção e que foram acompanhadas no projeto de Extensão no ano de 2020. Em um
segundo momento, apresentar-se-á a análise e a discussão dos casos.
Irene tem 38 anos e é a filha mais velha de um casal atualmente separado, mas com
uma boa relação com eles. Tem um companheiro há dez anos, residindo com o mesmo
há quatro anos. Descobriu, aos 20 anos, que tinha síndrome de ovários policísticos, agra-
vo de saúde que pode influenciar na fertilidade. Ela contou que, mesmo assim, o médico
disse que não seria impeditivo para ter filhos. O esposo de Irene é filho adotivo de uma
família grande e nunca teve interesse em conhecer a família biológica, mas carrega uma
grande mágoa por ter sido abandonado. Por outro lado, apresenta gratidão aos pais ado-
tivos, por estes terem lhe adotado e criado como se fosse filho biológico. Irene e Paulo
tentaram inúmeras vezes engravidar, sem sucesso. O casal buscou auxílio profissional e
ambos foram submetidos a exames, os quais não sinalizaram infertilidade. O médico que
os acompanhou acreditava que o obstáculo era de cunho emocional. No entanto, o casal
nunca buscou atendimento psicológico. A partir da dificuldade de engravidar, Irene e Pau-
lo decidiram adotar uma criança, sem muitos requisitos, somente a preferência era por
meninas entre dois e oito anos de idade. O casal ficou três anos na fila de adoção até serem
chamados pelo Juizado da Infância e Juventude para conhecerem as irmãs Mariane e Lí-
via, com sete e três anos, respectivamente, e aceitaram o processo de adoção. Uma semana
após as meninas estarem sob responsabilidade do casal, eles já estavam com a guarda
provisória das mesmas. No atendimento psicológico, Irene apresentava, como principais
queixas, entre outras, o comportamento agressivo da Mariane, as brigas recorrentes entre
as filhas, o baixo desempenho escolar das meninas e as dificuldades das filhas em obedecer
às regras familiares. Também estava presente nas sessões o sentimento de “ameaça” em
relação à família biológica. Os pais adotivos modificaram o nome de registro das meninas
devido ao receio de a família biológica encontrá-las via rede social. De acordo com Irene,
Mariane teve mais resistência em aceitar a troca de nome. Lívia aceitou sem resistir, pois,
segundo Irene, queria esquecer o tempo que ficou acolhida. Outra situação presente nas
sessões era a onipresença da família biológica das filhas. Irene relatava que a filha Mariane
contava sobre suas vivências na família biológica. Além disso, quando era solicitada pelos
pais para fazer algo ou quando chamavam a sua atenção, verbalizava que via a sua mãe
biológica. Isso era motivo de preocupação de Irene e Paulo. Já Lívia, de três anos, falava
pouco sobre as vivências na família biológica. O período da pandemia de COVID-19 e as
mudanças na família devido às restrições também estavam presentes nos relatos de Irene.
No decorrer das sessões, pôde-se identificar que o período da pandemia aproximou Irene
das filhas - e esta passou a perceber que muitas situações apresentadas pelas meninas fa-
ziam parte do desenvolvimento infantil. Neste período, Irene relatou que algumas coisas
antes passavam despercebidas, pois trabalhava o dia todo, e as meninas ficavam o dia todo
na escola. Mas, a partir da relação próxima com as filhas, percebia que muitas coisas, que

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antes ela considerava absurdas, eram coisas de crianças, passando a se colocar mais no
lugar na Mariane e compreendendo que ela era uma criança. Irene realizou 20 sessões de
atendimentos psicológicos.
Lavínia, 31 anos, é mãe adotiva de dois meninos, Antônio e Vicente, de dez e dois anos,
respectivamente. Foi encaminhada pela equipe do acolhimento institucional, uma vez que
o filho mais velho havia sido atendido no Serviço de Psicologia da UFSM no ano anterior.
Uma vez que os atendimentos presenciais estavam suspensos na universidade, e o filho
não poderia retomar o atendimento na clínica-escola da universidade, Lavínia aceitou ser
acompanhada pela ação extensionista. No atendimento psicológico, Lavínia relatou que
o processo de adoção foi muito rápido, após três meses de cadastro aprovado, adotou os
meninos. Para Lavínia, o início do período de adoção foi muito difícil, porque Antônio
não entendia o motivo de ter saído da casa da mãe biológica e verbalizava que não queria
ser adotado. Na sua percepção, ela havia estabelecido uma maior vinculação com o filho
Vicente. As principais queixas apresentadas no atendimento psicológico estavam relacio-
nadas ao comportamento apresentado pelo filho Antônio, como: mentiras, acesso ao celu-
lar sem permissão, acesso a materiais pornográficos pelo celular, desatenção com a escola,
dificuldades com regras e comportamento desafiador. Além disso, faziam-se presentes nos
atendimentos o medo do futuro dos meninos e a preocupação quanto ao vínculo afetivo do
Antônio com a mãe biológica, pois ele verbalizava vontade de ser buscado por ela. Lavínia
verbalizava nas sessões o medo de ela não conseguir ser uma “boa” mãe para os filhos no
futuro e precisar reconhecer que a adoção deu errado, sendo julgada pelos familiares e ami-
gos. Os avós maternos são apoiadores e demonstram afeto pelos meninos, mas ela sentia
que havia preconceito em algumas falas. A relação com os meninos com o pai adotivo era
harmoniosa, estando ela e o marido alinhados nesse processo de adoção. No decorrer dos
atendimentos com Lavínia, Antônio não falava mais sobre não querer ser adotado. Tinha
ingressado em uma nova escola e estava adaptado. No entanto, com a pandemia de CO-
VID-19 e a modalidade do ensino remoto, Antônio passou a burlar as atividades da escola,
mentir e acessar a Internet sem autorização. No período da pandemia, Lavínia lamentava
não poder sair com os meninos para passear e estar com os amigos. No entanto reconheceu
que, com a pandemia, e com a necessidade de ficarem em casa, eles puderam aproveitar
o tempo juntos. Ela verbalizava que percebia o quanto ela pode ter cobrado do Antônio
demasiadamente. Ela afirmava que o processo de tornar-se mãe foi rápido: de um dia para
o outro, ela passou a ter dois filhos. Lavínia realizou 14 atendimentos psicológicos.
Joana tinha 34 anos e era mãe adotiva da Ana, de oito. Era uma mãe solo, buscou aten-
dimento por saber do projeto através de outra mãe que estava em atendimento. Buscou a
adoção pelo desejo de exercer a maternidade solo, não tinha muitos requisitos para o perfil
da criança. Queria um filho independentemente do sexo ou da cor, tinha preferência por
uma adoção com idade acima de cinco anos, por acreditar que, se fosse muito bebê, teria
mais dificuldades de cuidado, tendo em vista que é sozinha e com rede de apoio reduzida.
O processo de adoção foi rápido, tendo duração de aproximadamente seis meses. Segundo
Joana, no início, foi difícil a adaptação de ser mãe, pois acreditava que o processo seria

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mais demorado. Quando recebeu a ligação para ir conhecer a filha, afirmou “fiquei em
choque, muito feliz e, ao mesmo tempo apavorada, eu teria uma filha” (sic). Joana contou
que, no início, foi “apavorante”, pois estava com uma criança de quase oito anos, mas com
comportamento de um bebê de três anos, pois Ana não tinha controle dos esfíncteres, não
se alimentava e chorava muito quando Joana a deixava na casa da tia para ir trabalhar. Ana
contava histórias terríveis que havia vivenciado na família biológica, mas que, mesmo as-
sim, demonstrava querer voltar. Ana tinha um diagnóstico de déficit cognitivo grave e, por
conta disso, apresentava muitas dificuldades escolares. Além disso, Ana apresentava baixa
autoestima, seguidamente reclamava da sua aparência, não gostava do seu cabelo, dizia se
achar feia e questionava por que não tinha a mesma cor de pele da mãe adotiva. A criança
se mostrava bastante ambivalente em relação à adoção, às vezes dizia estar muito feliz por
ter uma nova família, e outras dizia que não queria ter se separado da família biológica.
Todas essas questões faziam Joana se questionar se saberia como agir diante de tantas si-
tuações desafiadoras, com receio do futuro, gostaria de dar uma boa criação e tinha medo
de cometer erros que causassem prejuízo ao desenvolvimento de Ana. Joana realizou 12
sessões de atendimentos psicológicos.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A partir dos atendimentos psicológicos realizados na modalidade online, foi possível


estabelecer o contrato e a aliança terapêutica. A psicanálise tem sua origem na escuta do
sujeito que sofre. Freud (1913), em seus primeiros textos sobre a histeria, defende que, ao
falar, o paciente tem a oportunidade de entrar em contato com suas representações não
ab-reagidas, permitindo, assim, que este afeto consiga sair através da fala, podendo fazer
uma re-significação deste. A fala é o meio que o sujeito utiliza para eliminar seus afetos re-
primidos. Percebe-se que, para realizar uma sessão de terapia, é necessário um sujeito que
sofre e uma escuta analítica qualificada. Carlino (2011) complementa que, em uma sessão
online, mesmo distantes, analista e analisando estarão conectados. O autor utiliza o termo
“presença comunicativa” para descrever este fenômeno e compara o atendimento online
ao atendimento utilizando no divã, onde o paciente perde o analista do seu campo de visão
e pode se desprover de possíveis resistências causadas pela aproximação com o olhar do
psicanalista. No atendimento online, o paciente pode utilizar desse recurso, ser escutado e
não estar no campo de visão do psicólogo.
As mães adotivas conseguiram trazer suas histórias acerca do desejo de ser mãe e o
processo de adoção. Também trouxeram as dificuldades encontradas no cotidiano no exer-
cício da maternidade, em especial devido ao comportamento e aos sintomas apresentados
pelas crianças. Os três casos atendidos apresentaram semelhanças nas queixas, todas elas
traziam a questão da onipresença da família biológica, relatando que as crianças mais ve-
lhas traziam mais lembranças, o que deixava as mães desconfortáveis. Ainda que a ideia de
que a família biológica estivesse presente no imaginário das crianças fosse algo difícil para
as mães adotivas, foi fundamental acolher esse sentimento no setting clínico. Rosseti-Fer-

89
reira et al. (2012) alertam para o fato de que as crianças adotadas têm uma história prévia
antes da adoção, e a adoção não é sinônimo de esquecimento nem deve ser, a nova família
deve apresentar um ambiente seguro e favorável, para que ela desenvolva novos modelos
de vinculações. A perda da família biológica é parte da história da criança, e ressignificar
essa perda, além de tornar possível reescrever sua origem, faz parte da construção dos no-
vos laços afetivos. Algumas crianças só conseguirão passar por esse processo e internalizar
sua história verbalizando. Para tanto, ela não deve ser vista como a parte obscura da his-
tória da criança, a escuta atenciosa e empática ao que a criança tem a falar favorece o pro-
cesso de filiação e a construção de uma nova família (MENDES; GHIRARDI,2018). Nos
atendimentos, foram valorizados o discurso das mães e o quanto a onipresença da família
biológica impactava no estabelecimento do vínculo com o filho adotivo. A maternidade se
dá a partir de um desejo de inscrever um filho como seu, na maternidade adotiva, ela parte
de um desejo no lugar de uma falta. No processo terapêutico, foi preciso desconstruir a
relação fantasmática que se instaura no imaginário da mãe adotiva sobre a relação do filho
com a mãe biológica. A integração da criança à nova família deve respeitar o tempo da
criança, levando em consideração as afinidades, as diferenças, as dificuldades e a história
de cada criança. Essa transição tende a não ser tão simples, no entanto a nova família pode
buscar alternativas, dentre elas o atendimento psicológico, visando a uma transição para a
parentalidade mais leve, na qual os pais consigam encontrar o tempo da criança, integrá-la
à família de forma satisfatória, sem cobranças e sem ver a família biológica como ameaça.
As mães adotivas verbalizavam o quanto muitos dos comportamentos das crianças im-
pactavam na forma como elas estavam se vinculando. Muitas vezes, um comportamento
típico de criança, como uma birra ou uma reação da criança mais difícil, podia levá-las
ao limite, e essas situações foram trabalhadas nas sessões. Winnicott (1997) aponta que
um dos fatores que determinam o sucesso na vinculação da família com o filho é o tipo de
cuidado que a família oferece a essa criança que não teve suas necessidades emocionais
atendidas. Oferecer um ambiente seguro e estável no qual a criança sinta-se pertencente,
falar sobre sua história sem ser reprimido é estar nesse ambiente seguro e, a partir dele,
construir novas experiências. O respeito às necessidades da criança e ao seu sentimento de
perda da sua família de origem apoiam a reconstrução do sentido de sua existência.
Outro ponto em comum nas demandas clínicas das pacientes se deu em relação ao filho
real e ao filho imaginado. Em alguns momentos, elas trazem, em suas falas, que, com o tem-
po, notaram que alguns dos comportamentos eram comuns em outras crianças, e não algo
característico dos filhos delas. As falhas apresentadas, no desenvolvimento de uma crian-
ça adotada, podem ser as mesmas apresentadas por um filho biológico. Winnicott (1997)
aponta que os problemas presentes no desenvolvimento de uma pessoa adotada nem sempre
diferem das questões que se apresentam no decorrer do desenvolvimento de uma pessoa co-
mum. Tanto na parentalidade adotiva quanto na biológica, os pais precisam internalizar as
expectativas em relação à criança real e à criança imaginada - essa expectativa diz respeito à
aparência, ao temperamento e aos comportamentos. A parentalidade adotiva abrange outras
questões que são peculiares dessa via da parentalidade, a ausência do vínculo genético e a

90
impossibilidade de tê-lo acompanhado desde bebê, a onipresença da família biológica e fan-
tasias relacionadas à hereditariedade, diferenças raciais, culturais e étnicas - são alguns dos
fatores que favorecem que o luto da criança real possa ser vivenciado de maneira mais lenta
(LISONDO, 2018).
A construção de vínculos em famílias adotivas, como há ausência de laços consanguí-
neos, dá-se tão somente pela fala:

São construídas através de quatro práticas de comunicação: nomear (indicar o


status da família através das qualificações dadas aos membros da família, por
exemplo, referir-se à mãe adotiva como “mãe” e a mãe biológica como “mãe
biológica”), discutir (que implica divulgações contínuas sobre a situação familiar,
a família adotiva e / ou a família biológica), narrar (que supõe a construção por
parte dos pais de uma história de adoção para a criança adotada) e ritualizar (que
legitima a adoção por meio de celebrações e atividades diárias) (GALVIN, 2003
apud RUBIO; AGOGLIA, 2006, p. 1).

As narrativas no contexto da parentalidade adotiva têm um duplo sentido e são alicerce


nessa transição tanto para os pais quanto para os filhos. As quatro práticas citadas acima
auxiliam os pais na sua vivência, onde eles superam lutos e elaboram a sua experiência
emocional, e os filhos se sentem inseridos na cadeia geracional, por meio de narrativas
familiares que eles legitimam sua história. Para que essas narrativas sejam potentes, é ne-
cessário que o filho tenha contato com sua história real, sua origem biológica, e esteja
ciente da impossibilidade de um saber pleno. Ele irá vivenciar as fantasias dessa falta de
completude da sua história, isso exigirá dos pais uma capacidade empática de escutar,
narrar e ritualizar as origens da criança ou adolescente adotado. Desse modo, a criança ou
o adolescente poderá assimilar psiquicamente aquilo que viveu e a constituição de quem é
(MACHADO et al., 2019). A narrativa das crianças ou dos adolescentes sobre a sua própria
história, experiências e emoções deve ser considerada em sua totalidade biopsicossocial.
Acolher e respeitar os sentimentos de medo, desconforto, desamparo e as fragilidades que
cada criança ou adolescente carrega é fazer valer o direito que cada criança ou adolescente
têm de opinar sobre as decisões da sua vida (TEFFAINE, 2018).
Nota-se que a transição para a parentalidade adotiva é envolta por uma série de fatores
pessoais, familiares, emocionais e institucionais. Além disso, os pais devem estar prepa-
rados para receber essa criança ou esse adolescente de acordo com a fase do amadureci-
mento em que se encontra. Gomes (2006) atenta para o fato de que a criança, assim como
os pais, pode demorar a fazer o luto do filho imaginado para o filho real. Ela pode levar
tempo para se adaptar, e uma adaptação rápida pode não ser saudável emocionalmente.
Ao chegar à nova família, ela enfrenta angústia e ansiedade, estar em um ambiente novo,
com uma nova família - é preciso elaborar essa nova experiência, o comportamento disfun-
cional na visão dos pais pode estar diretamente ligado a essa fase de adaptação da criança.
As mães mencionaram que, durante a pandemia, estavam mais em casa e acompanhando
mais de perto os filhos. Notaram que alguns comportamentos desafiantes estavam reduzin-
do e associaram ao aumento do tempo com a criança em casa. Já há pesquisas que apon-

91
tam os pontos fortes do home office estabelecido em função da pandemia da COVID-19,
como de Lemos, Barbosa e Monzato (2020). Esse estudo, que objetivou compreender os
impactos dessa doença no trabalho e na família de trabalhadoras brasileiras, surpreendeu
positivamente, pois, divergindo do que a literatura tem apontado sobre o tema, sinalizando
a sobrecarga das mulheres no home office, um número significativo de mulheres alegou
que trabalhar em casa as deixava mais próximas dos filhos. No caso das participantes dessa
intervenção, ficou claro o quanto ficar mais próximas dos filhos possibilitou um olhar mais
amplo e empático sobre o filho e sobre a fase do desenvolvimento que eles se encontravam,
bem como fortaleceu os vínculos entre mãe filho. A teoria do Apego proposta por Bowlby
(2001) ressalta a importância de, além de estabelecer, cultivar e manter os vínculos afetivos
na infância, os seres humanos constituem esses vínculos por toda a vida, e todos eles, além
de importantes, dão a possibilidade de reconstruir os mesmos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da oferta do atendimento psicológico online às mães adotivas, ficou evidente a


importância da oferta de um espaço de escuta especializado. Ser pai e ser mãe é uma tarefa
exigente, na qual as figuras parentais se deparam com inúmeras questões que precisam ser
elaboradas, entre elas, a possibilidade real da não criação de vínculos afetivos. Nas adoções
vivenciadas nos casos apresentados, por envolver crianças maiores, o processo evidenciou-
-se mais exigente, uma vez que as crianças já se posicionavam, negociavam regras, tinham
suas percepções e, por vezes, não concordavam com a visão dos pais, o que muitas vezes
pode colocar a maternidade ou a paternidade em prova, como também o desejo pelo fi-
lho em prova. A intervenção oferecida nesse momento foi fundamental para trabalhar o
luto do filho imaginado e dar espaço ao filho real, a onipresença da família biológica e a
bagagem que essa criança traz de sua história pregressa. Possibilitar que os pais adotivos
percebam os comportamentos a partir de um olhar mais atento e empático, ao invés de res-
ponsabilizá-la pela falta de conexão fez parte da agenda dos atendimentos. Dessa forma,
os atendimentos psicológicos possibilitaram que as mães percebessem, a partir da própria
fala, como as vivências dos filhos, anteriores à adoção, aparecem no cotidiano familiar e
como elas podem ser ressignificadas e entendidas pela família.
Considera-se que o atendimento psicológico online pode contribuir e trazer diversos
benefícios para que ocorresse o fortalecimento dos vínculos e favorecesse a transição
para a parentalidade adotiva, visto que, ao longo dos atendimentos, foram trabalhadas
tanto as dificuldades comportamentais presentes no cotidiano das famílias quanto os
próprios anseios das mães, buscando elaborar um processo de adoção saudável e sufi-
cientemente bom para o desenvolvimento das crianças. Nota-se que é possível, através
da escuta, estabelecer uma relação terapêutica confiável e transferencial no teleaten-
dimento, desde que sejam levadas em consideração as potencialidades e limitações de
cada paciente e a habilidade técnica do terapeuta para esse viés de atendimento. No
caso das mães adotivas, vale destacar que elas estavam disponíveis para os atendimen-

92
tos, criaram um setting seguro para falar sobre suas vivências e sentimentos. Com isso,
foi possível que os laços da parentalidade adotiva fossem estreitados e fortalecidos; e
que estratégias de enfrentamento dos desafios fossem pensadas. Dessa forma, o atendi-
mento online pode ser mais uma forma de intervenção parental, que visou ao estabele-
cimento de relações saudáveis e o desenvolvimento das crianças.
Por fim, a ação extensionista vem no sentido de assegurar a responsabilidade social da
universidade com a divulgação do conhecimento científico, o comprometimento dos estu-
dantes no seu processo de ensino aprendizagem e, consequentemente, a efetividade quanto
à contribuição da universidade para um processo social relevante. A atividade extensionista
também contribuiu para formação e aperfeiçoamento dos graduandos de Psicologia, para
atuação alinhada às necessidades da situação do acolhimento e ao fenômeno da adoção.
Assim, a universidade cumpre seu papel junto à comunidade acadêmica/científica não
apenas para a formação dos graduandos, como também junto à sociedade, considerando o
impacto social das ações desenvolvidas.

93
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Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. (Trabalho original publicado em 1954)

95
A GARANTIA DE DIREITOS HUMANOS NO
CONTEXTO SOCIOEDUCATIVO:
UMA HISTÓRIA DE POESIAS, SONHOS,
RESISTÊNCIAS E INVESTIMENTOS COLETIVOS

Renata dos Santos da Costa


Felipe Bueno da Silva
Marília de Araújo Barcellos
Sara Peres Dornelles Almeida
Juliana da Rosa Marinho
Jana Gonçalves Zappe
“Eu fui chamado pra viver daquilo (Eu fui)
Mas preferi ser quem fala daquilo” Djonga
INTRODUÇÃO

Este capítulo descreve algumas ações desenvolvidas no âmbito do projeto de Extensão


Oficinas de Intervenção Psicossocial com Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducati-
va, desenvolvido pela Rede de Estudos e Pesquisas sobre Desenvolvimento na Infância,
Adolescência e Juventude (REDIJUV), as quais envolveram a valorização da escrita e da
publicação de poesias enquanto recursos para a inclusão social e a garantia de direitos hu-
manos no contexto do sistema socioeducativo. A socioeducação compreende os processos
educativos direcionados aos adolescentes em conflito com a lei, visando à não reincidên-
cia infracional (CUNHA; DAZZANI, 2018) e segue os princípios propostos pelo ECA
(BRASIL, 1990) e pelo Sistema Nacional Socioeducativo (SINASE), que objetiva, primor-
dialmente, o desenvolvimento de uma ação socioeducativa sustentada nos princípios dos
direitos humanos (BRASIL, 2012).
Considera-se desafiador garantir direitos humanos no contexto socioeducativo, por
diversos motivos, destacando-se, nesse sentido, a manutenção da lógica punitiva histo-
ricamente consolidada, a partir das estruturas sociais, dentro e fora das instituições so-
cioeducativas, prevalecendo um imaginário social que prioriza a punição em detrimento
da educação como enfrentamento às desigualdades que ocasionam o conflito com a lei
(CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2010; ZAPPE; DIAS, 2011). Além disso,
a prática de atos infracionais está relacionada com uma trajetória prévia repleta de viola-
ções de direitos e dificuldades de acesso a políticas sociais de saúde, educação, assistência
social, entre outras, que garantiriam um desenvolvimento saudável, sendo desafiador ga-
rantir tais direitos tardiamente, de forma a superar muitas vulnerabilidades já vivenciadas
(GONCALVES; GARCIA, 2007; ZAPPE; RAMOS, 2010).
Diante de tais desafios, buscamos desenvolver ações extensionistas que despertem e
valorizem as potencialidades dos adolescentes, buscando encontrar, junto com eles, outras
vias para obtenção de reconhecimento social, reconstruindo projetos de vida e acessando
recursos que possibilitem viabilizá-los. Trata-se de uma aposta que leva em consideração
a singularidade de cada adolescente, o respeito pela sua história e trajetória de vida, pelo
contexto social e pelo seu desejo, o que só é possível à medida em que se estabelece uma
relação de proximidade e confiança (COSTA; LIMA; ALMEIDA; ZAPPE, 2020).
Os resultados desta aposta são tão diversos quanto são diversos os adolescentes que par-
ticiparam das nossas atividades ao longo dos últimos cinco anos, as quais se desenvolve-
ram na Escola Humberto de Campos, situada no CASE-SM. O projeto teve início formal
como prática extensionista da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 2018, o
que pode ser considerada uma nova etapa dentro de um processo que já se desenvolvia
dentro da instituição socioeducativa e que deu origem ao projeto de Extensão referido. Um
relato detalhado da história do projeto foi apresentado no capítulo “Intervenção psicosso-
cial com adolescentes privados de liberdade: estabelecendo laços entre Socioeducação e
Universidade para promover inclusão social” desse livro, e, aqui, a resgatamos brevemente,
para situar as ações que são foco deste capítulo.

98
A história do projeto é carregada de construções coletivas, tentativas de intervenção,
aprendizados e adaptações. Em meados de 2016, a partir de práticas de estágio em
Psicologia, foram ofertadas oficinas de criação, sendo utilizados diversos recursos que
estimulassem as potencialidades e a construção de vínculos com os adolescentes que
cumpriam medida socioeducativa de internação, já tendo em vista os pressupostos do
ECA (BRASIL, 1990) e do SINASE (BRASIL, 2012), os quais reconhecem os direitos
individuais e sociais dos adolescentes.
Investindo na manutenção deste espaço de trocas, criações e escuta ética, foi possível
pensar, cada vez mais, em estratégias que incentivassem os participantes das oficinas a re-
conhecerem-se enquanto sujeitos, identificando-se em suas histórias e projetando-se para
o futuro que deve ser garantido a todos, por meio de caminhos distintos da punição, da
coerção e da privação de liberdade. Para isso, foi importante contar com a presença e a
participação de socioeducadores, professores e outros profissionais envolvidos diretamen-
te com o processo social e pedagógico de execução das medidas socioeducativas. Estes
acompanharam algumas atividades, contribuindo, da sua forma, para o fortalecimento dos
vínculos com os adolescentes e o desenvolvimento das atividades.
Esta articulação da Psicologia com os adolescentes em cumprimento de medida socioe-
ducativa, professores e socioeducadores deve ser destacada devido à importância do traba-
lho em conjunto, conectado com a ideia de que é no coletivo que se criam possibilidades de
existência e participação cidadã. Dada a potencialidade desta proposta de intervenção, em
2018, ela se tornou ação extensionista, expandindo os diálogos sobre a socioeducação para
além dos muros da unidade socioeducativa em questão. Isso foi possível graças à vincula-
ção do projeto ao ODH/UFSM, o qual, assim como a REDIJUV, aposta na aproximação
da universidade com o território, no sentido de desenvolver ações que estejam relacionadas
com as demandas sociais emergentes em Direitos Humanos, nesse caso, envolvendo, de
forma mais específica, o Eixo Infância e Adolescência.
Compreendendo que território não é meramente um espaço físico, visto que envolve
dimensões múltiplas e complexas, onde o meio social se torna fundamental para que se-
jam pensadas e promovidas formas diversas de integração dos indivíduos na sociedade
(SANTOS, 2017), o projeto também passou a reconhecer a importância de que, além de
despertar e valorizar as potencialidades dos adolescentes, era preciso promover a visibilida-
de social delas, contribuindo para a desconstrução de estigmas e a construção de imagens
sociais mais favoráveis aos aspectos educativos e à garantia dos direitos dos adolescentes
privados de liberdade. Porém nem sempre isso é possível, tendo em vista a necessidade de
preservar a imagem pessoal dos adolescentes, resguardando o respeito à privacidade e à
não discriminação (BRASIL, 1990).
Ao longo dos últimos anos, conhecemos e interagimos com muitos adolescentes incrí-
veis e talentosos – e, neste capítulo, escolhemos registrar a história de um deles, que se tor-
nou pública alguns anos após o cumprimento da medida socioeducativa, o Felipe Bueno
da Silva, que atualmente é extensionista no projeto e co-autor deste trabalho. Felipe, nesse
contexto, resistiu através de sua arte e, hoje, representa muitos outros adolescentes incríveis

99
e talentosos que tivemos a grata oportunidade de conhecer, sonhar juntos e investir na luta
pela garantia dos direitos humanos, em especial dos direitos da criança e do adolescente.
Com sua arte e sua história, tem sido possível investir na promoção da visibilidade social
das potencialidades dos adolescentes, contribuindo para a construção de imagens sociais
mais favoráveis sobre a socioeducação e os socioeducandos. O modo como isso tem sido
possível, os recursos que têm sido utilizados e as relações que sustentam esse desafio serão
abordados a seguir.

A HISTÓRIA DO FELIPE COM A ESCRITA

A fim de contextualizar a trajetória de Felipe com a escrita, esta sessão aborda o seu
encontro com as palavras, a caneta e o papel, destacando como os versos, as rimas e as po-
esias se fizeram como ferramenta de resistência e o auxiliaram no processo socioeducativo
e de reinserção social.
No ano de 2014, em decorrência de um envolvimento com ato infracional, foi determi-
nado ao jovem, por vias judiciais, sob disposições do ECA, o cumprimento da medida so-
cioeducativa de internação em um Centro de Atendimento Socioeducativo, no interior do
estado do Rio Grande do Sul/RS. Conforme o Artigo 121 do ECA, a internação consiste
na medida socioeducativa mais severa, o que acarreta na privação de liberdade de adoles-
centes com idade entre 12 e 18 anos incompletos, e deve, assim, assegurar os princípios
de brevidade, excepcionalidade, e, sobretudo, respeitar a condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento destes (BRASIL, 1990).
Apesar dos avanços conquistados após a promulgação do ECA, há 30 anos, as unidades
socioeducativas ainda possuem condições precárias, tanto de recursos materiais, como, por
exemplo, a falta de dormitórios individuais em função da superlotação, que é frequente,
quanto de recursos humanos, na carência de profissionais. Além disso, reproduzem práti-
cas punitivas e corretivas em detrimento das ações educativas, o que se distancia do pro-
posto pelas legislações vigentes (LIMA et al., 2019). Ao chegar na unidade socioeducativa,
os jovens deparam-se com um contexto em que têm que lidar não somente com a privação
de liberdade, a distância de amigos e familiares, mas também com o cumprimento de ativi-
dades e rotinas determinadas pela instituição - e até então distantes das suas realidades de
vida, o que pode implicar em diversos desdobramentos.
Em 2014, os primeiros dias de Felipe na instituição de internação foram complexos, re-
pletos de dúvidas e inseguranças sobre o que estava vivenciando, preocupações com suas
responsabilidades que havia deixado do outro lado do muro, mesmo que tão jovem, além
das incertezas sobre o seu futuro após o cumprimento da medida socioeducativa. Todas estas
questões ocasionaram-lhe um misto de sentimentos; ansiedade, medo, angústia, raiva, triste-
za, desespero, revolta, saudade, entre outros, o que, de maneira geral, ocorre com os adoles-
centes que ingressam nas instituições socioeducativas, e que pode implicar na maneira como
estes reagem frente às demandas institucionais. Muitas vezes, essas situações potencializam
a ocorrência de problemas de comportamento e acarretam a aplicação de medidas discipli-

100
nares. De acordo com o Plano de Atendimento Coletivo da unidade socioeducativa de Santa
Maria, as medidas disciplinares decorrem do descumprimento de regras e normas atribuídas
pela instituição, como, por exemplo, desrespeitar ou ofender profissionais da equipe socioe-
ducativa, perturbar a ordem, entre outras (RIO GRANDE DO SUL, 2014).
Ao longo do cumprimento da MSE, a fim de tentar lidar com a inquietação mobilizada
por todos os seus sentimentos, Felipe encontrou nas palavras uma maneira de se expres-
sar. Inspirado por trechos de músicas que ouvia no radinho a pilha, disponibilizado pela
unidade, assim como em passagens e frases encontradas nos livros da biblioteca da escola
anexa à instituição, os quais retirava para a leitura em seu dormitório, revelou em peque-
nos pedaços de papel, escritos a lápis, seus primeiros registros de pensamentos, desabafos
e associações. Naquele momento, identificou que, a partir destas construções, a escrita lhe
proporcionava um certo “alívio”, dando vazão ao seu sofrimento. Através dos escritos, a
raiva, a angústia, as dúvidas e as inseguranças foram tomando outras formas, sendo mani-
festadas pelas suas poesias, seus versos e suas rimas.
Ao passar dos dias na instituição, Felipe tornou a escrita um hábito, um momento em
que conseguia ir, aos poucos, ressignificando sua trajetória até a internação, assim como
elaborando suas experiências vivenciadas dentro da unidade. Inicialmente, os instantes
de encontro com o lápis, o papel e as palavras eram sempre muito íntimos, testemunha-
dos apenas pelas paredes de seu dormitório. Certo dia, em um destes momentos, onde se
encontrava debruçado sobre sua cama, escrevendo nos pedaços de papel, foi surpreendi-
do pela chegada de uma agente socioeducadora, que, ao vê-lo encolhido, preocupou-se e
questionou o motivo pelo qual chorava. Ao elevar seu corpo para direcionar seu olhar à
portinhola (pequeno retângulo na porta do dormitório que possibilita a visão), respondeu
à monitora que não se tratava de lágrimas, mas, sim, de poesias.
Afetada pela cena que acabara de presenciar, a agente socioeducadora manifestou inte-
resse em saber mais sobre os escritos de Felipe e, após alguns dias, presenteou o jovem com
um caderno, para que este pudesse registrar e guardar ali suas produções. A partir deste
momento, os versos, as rimas e as poesias ecoaram pela instituição, chegando a outros can-
tos da unidade, tocando profissionais e outros adolescentes que estavam em cumprimento
de MSE, movimento este que potencializou a escrita de Felipe. Na medida em que com-
partilhava seus escritos, sua situação na medida socioeducativa tomava outras proporções.
Diante disso, ressalta-se o quanto esse momento foi decisivo na trajetória de Felipe, pois
ele se sentiu reconhecido em sua potencialidade de escrever e transformar sentimentos em
arte. O reconhecimento e a gratidão que ele nutre pela agente que deu início a esse proces-
so estão destacados em diversos momentos de sua obra (SILVA, 2019; 2020).
Outro marco importante para Felipe em sua trajetória foi o encontro com uma das
psicólogas da unidade, que o auxiliou e teve importante papel tanto em seu processo socio-
educativo como no investimento em seu processo de escrita. Ele considera que foi como
uma chave que possibilitou a abertura de vários cadeados em sua vida, abrindo portas
através das possibilidades de escuta e espaço para a validação de sua arte.

101
A partir de suas poesias, seus versos e suas rimas, dentro da instituição, Felipe foi dando
outros sentidos para sua história. Ao final de sua medida socioeducativa, já havia reunido
diversas produções em seu caderno, e, como forma de legitimar seu investimento na escrita e
homenageá-lo, a agente socioeducadora que o viu em seus primeiros momentos com o lápis,
o papel e as palavras, em parceria com as professoras da escola que auxiliavam Felipe na cor-
reção gramatical, construíram um protótipo de livro, intitulado “Entre versos e rimas para
superar tempos difíceis”. Após o cumprimento na medida socioeducativa, Felipe saiu da uni-
dade com uma bagagem de desafios superados e de sonhos a realizar, dentre eles, a publica-
ção do livro, escrito nos anos em que cumpriu MSE na instituição socioeducativa. Com isso,
ele pretendia semear suas poesias para inspirar outros adolescentes, mas, principalmente,
para dar visibilidade ao cotidiano de vida e de luta de jovens que sofrem pelas estruturas so-
ciais que visam não somente a invisibilizá-los, mas também a os extinguir (SANTOS, 2020).

A PUBLICAÇÃO DO PRIMEIRO LIVRO: O SONHO DE UM POETA E O PAPEL


DA UNIVERSIDADE NA PROMOÇÃO DE VISIBILIDADE E APOIO AOS JOVENS

Podemos salientar a importância do olhar atento dos profissionais que trabalham no sis-
tema socioeducativo, quando operam de modo cuidadoso e comprometido, a fim de possi-
bilitar que a experiência dos sujeitos que ali estão não seja meramente um período, ou uma
fase sem sentido, mas, sim, uma possibilidade de refletir amplamente sobre as situações e
condições que lhe fizeram estar naquele espaço, tanto pela falta de acesso a políticas sociais
que lhe sustentassem a formação na infância e a transição da adolescência, de forma a
garantir seu desenvolvimento biopsicossocial, quanto pela responsabilidade de identificar
quais poderiam ser as diferentes perspectivas futuras para além do ato infracional.
Durante a execução da medida socioeducativa, o planejamento para o futuro se dá a
partir do Plano Individual de Atendimento (PIA), onde, junto com o adolescente, técnicos e
familiares, é produzido um histórico de vida envolvendo o antes, o presente e o futuro, após
o cumprimento da medida socioeducativa (BRASIL, 2012). A partir dessa construção, tra-
balha-se para que, ao concluir o período de internação, o adolescente busque, junto com os
demais responsáveis por esse plano, um futuro que lhe possibilite experienciar o mundo de
forma mais ampla, participativa e cidadã, sem envolver-se com práticas que lhe coloquem
em risco novamente (OLIVEIRA; MOREIRA; SILVA; MARINHO; SOUZA, 2019).
O PIA é um instrumento essencial para entender a história de vida dos adolescentes
e dar uma direção de atendimento para os profissionais que fazem parte do trabalho
socioeducativo nas rotinas da instituição. Para tanto, é preciso ficar atento se o adoles-
cente está conseguindo desenvolver-se conforme tratado entre todos que participaram
do planejamento, sendo sempre possível alterar o documento para melhor atender às
demandas emergentes. Como mencionado, foi em um desses olhares de cuidado e
atenção de uma socioeducadora que Felipe foi interpelado, em um dos seus encontros
com o lápis, as palavras e o papel.

102
Felipe revelava sua revolta e sua raiva na forma de alterações comportamentais e proble-
mas disciplinares durante o cumprimento da medida socioeducativa, mas, a partir de suas
produções artísticas, começou a perceber outra direção para o que sentia, identificando
que, quanto mais colocava no papel o que lhe desorganizava e causava angústia, melhor
conseguia compreender outras possibilidades de operar no mundo, além da atuação e da
conflitiva com a lei. Foi a partir da escrita que também começou a entender que os demais
adolescentes tinham sofrimentos semelhantes aos seus, bem como a dificuldade em ex-
pressar tais sentimentos, usando, muitas vezes, a violência e a agressividade para aliviar o
mal-estar (GURSKI, 2017).
Após reunir suas poesias no caderno disponibilizado pela socioeducadora, Felipe con-
versou com uma das psicólogas da instituição e expressou seu desejo de futuramente pu-
blicá-las em um livro, contudo isso não foi possível até o momento em que foi desliga-
do da unidade socioeducativa. Ao sair da internação, Felipe ingressou em um programa
de egressos, o Programa de Oportunidades e Direitos (POD) (RIO GRANDE DO SUL,
2013), onde teve acesso à profissionalização, através de cursos de gastronomia, informáti-
ca, entre outros, continuou investindo em seus estudos, ingressou no mercado de trabalho
e seguiu nutrindo o sonho de um dia publicar seu livro e disseminar sua arte.
Passaram-se cinco anos quando o livro foi lembrado em uma reunião de planejamento
das atividades do projeto Oficinas de intervenção psicossocial com adolescentes que cumprem me-
dida socioeducativa. A coordenadora do projeto, que anteriormente trabalhou como psicó-
loga na unidade socioeducativa, apresentou a história de Felipe com a escrita aos demais
integrantes do projeto, que consideraram a potencialidade da obra como recurso para o de-
senvolvimento das atividades com os adolescentes participantes das oficinas, que demons-
travam interesse por escritas e poesias. Nesse momento, iniciou-se a retomada de contato
com Felipe e, por meio do suporte da enfermeira da unidade, foi possível localizá-lo.
Ao contatá-lo, por meio de um telefonema, anunciamos nosso interesse em saber se
ainda gostaria de publicar suas poesias em um livro em parceria com a REDIJUV, e, em
tom de surpresa, Felipe declarou que nunca havia desistido desse sonho. Já tinha tentado
publicar seu livro, mas a falta de recursos financeiros o impossibilitou, e, mesmo assim,
ainda guardava em uma gaveta todos os seus poemas, inclusive aqueles escritos enquanto
cumpria a medida socioeducativa.
Após esse encontro, sobretudo emocionante ao grupo, iniciou-se um longo trabalho
enquanto rede, entre Felipe, REDIJUV, a unidade socioeducativa (especialmente a socioe-
ducadora mencionada) e a universidade, a fim de possibilitar a publicação dos poemas car-
regados de histórias, sentidos e possibilidades. Para que isso pudesse se tornar realidade,
muitas mãos foram importantes e fizeram diferença nesse processo, em especial a equipe
da Assessoria de Comunicação do Centro de Ciências Sociais e Humanas (CCSH), que se
tornou parceira do projeto e foi responsável pela organização do material e pela constru-
ção do projeto gráfico do livro. Eles se mostraram sempre dispostos e presentes nas reuni-
ões com Felipe, e trabalharam com dedicação para deixar o livro o mais fiel à importância
que ele teve e tem para todas as pessoas envolvidas nesse processo de publicação. Após a

103
construção do projeto gráfico, o livro foi impresso na Gráfica da UFSM, com recursos do
Fundo de Incentivo à Extensão (FIEX), da PRE/UFSM.
O lançamento oficial do livro ocorreu na 46.ª Feira do livro de Santa Maria, no ano de
2019, em um espaço destinado à apresentação dos projetos de Extensão realizados pela
PRE/UFSM. O autor esteve presente na feira, fazendo a divulgação de seu livro, sessão
de autógrafos e de fotos, além disso, o momento contou com uma roda de conversa sobre
como Felipe encontrou na escrita uma possibilidade de expressar seus sentimentos de tris-
teza e raiva enquanto estava na instituição socioeducativa, bem como o seu desejo em es-
crever e publicar um segundo livro, o qual já possuía alguns escritos sobre a vida de Felipe
após o cumprimento da medida socioeducativa de internação.
O evento contou com a presença de diversas pessoas, dentre elas profissionais do siste-
ma socioeducativo, adolescentes que estavam cumprindo medida socioeducativa, profes-
sores da Escola Humberto de Campos, amigos e familiares do autor, integrantes da RE-
DIJUV e da UFSM, e comunidade em geral, que puderam interagir e compartilhar com
Felipe questões a respeito de suas poesias e o papel significativo que estas tiveram para a
transformação de suas experiências. Neste momento, o autor relatou que tanto ele quanto
os profissionais que estiveram próximos a ele nessa jornada puderam perceber a mudança
que a escrita de poesias possibilitou em sua vida, os efeitos positivos do cumprimento da
medida socioeducativa e o papel imprescindível da universidade para que ele pudesse estar
ali realizando seu sonho.
Além disso, o livro teve um segundo momento de lançamento na instituição onde Felipe
cumpriu a medida socioeducativa. Na ocasião, foi proposta uma roda de conversa, com a
leitura dos poemas pelos adolescentes da unidade, enquanto o poeta contava como cada
palavra surgiu a partir do que lhe acometia em diferentes momentos durante o seu proces-
so socioeducativo, como, a exemplo, a falta de visitas de familiares, a saudade dos irmãos,
a saudade da mãe, entre outros.
Após esse encontro, os versos e as rimas ecoaram novamente pela instituição, enco-
rajando e tendo como desdobramentos a escrita de poemas por outros adolescentes da
unidade. Além disso, nas palavras de Felipe, retornar ao lugar em que esteve privado de
sua liberdade foi um grande e importante marco em sua trajetória, pois este adentrou pe-
las portas da instituição, ocupando outro lugar, agora em um lugar de destaque, de poeta,
compartilhando sua experiência e inspirando outros adolescentes a se apropriar das pala-
vras como recurso para superar os desafios e as lutas, ou a encontrar outros recursos de
acordo com as potencialidades de cada um. Com isso, Felipe materializou a possibilidade
de investir em outros caminhos e utilizar a escrita enquanto potência para a construção de
seus projetos futuros, validação de suas vivências e sua existência.
Depois de divulgar publicamente suas poesias, Felipe foi convidado a participar de ou-
tros eventos para falar sobre o seu livro e sua história, tanto em espaços da UFSM quanto
em outras instituições, como, por exemplo, o Centro Social e Cultural Vicente Palotti.
Além disso, participou da escrita e apresentação de trabalhos acadêmicos sobre sua expe-
riência. Esses desdobramentos permitem compreender a importância da publicação dos

104
escritos de Felipe, não somente enquanto a realização de um sonho, mas também no sen-
tido do alcance de sua história e sua trajetória como fator de visibilidade para o contexto
socioeducativo em uma perspectiva positiva, potencializando a desconstrução de estigmas
e preconceitos, contribuindo para a construção de histórias e existências protagonizadas
por adolescentes e jovens pobres, periféricos e pretos, que historicamente são marginaliza-
dos e invisibilizados pela sociedade.

A CONSTRUÇÃO DO SEGUNDO LIVRO: DIREITOS HUMANOS


E COMUNICAÇÃO, UMA AÇÃO INTERDISCIPLINAR A PARTIR DA POESIA

Em 2020, foi lançada a obra Do passado para o futuro, na 47.ª Feira do Livro de Santa
Maria. Sequência de seu primeiro livro, Entre versos e rimas para superar tempos difíceis, a
publicação reúne poemas escritos após a privação de liberdade de Felipe. Lugar esse que
podemos considerar não somente como físico, mas também como aquele que permite am-
pliar a linguagem e a imaginação. No caso do autor dos livros, oportunidade de poder
expressar-se por meio da arte da escrita. E é aí que vemos o quanto a interdisciplinaridade
permite o desenvolvimento do sujeito para além de um movimento inicialmente propos-
to. Referimo-nos à possibilidade da materialização do desejo, da conquista, por meio da
produção de um produto, vale dizer, não é qualquer objeto, mas um livro e tudo que ele
carrega no sentido cultural, social, econômico, etc.
A parceria estabelecida entre os projetos de Extensão da Editora Experimental pE.com
e o projeto de Extensão da REDIJUV iniciou com a vivência de oficinas, de novembro a
dezembro de 2018, tempo suficiente para que a Comunicação Social pudesse, ao compre-
ender a dimensão da situação e as condições de jovens privados de liberdade, atuar na pro-
posta do livro de Felipe com mais propriedade, oferecendo sentido aos poemas por meio
do projeto do livro Do passado para o futuro.
Em a Ordem dos livros, o historiador Roger Chartier (1994) remonta a ideia de que o livro
prescinde de edição para existir: “os autores não escrevem livros: não, eles escrevem textos
que se tornam objetos escritos, manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados”
(CHARTIER, 1994, p. 17). A máxima de Chartier provém do desdobramento anunciado
por Roger Stoddard, em Morphologyandthe book fromanamerican Perspective, 1987, para ex-
plicar a escrita no século XVII. Contudo pode, muito bem, ser atualizada e trazida para a
contemporaneidade.
Complementando esse pressuposto, agregamos o conceito de paratextos, cunhado por
Gérard Genette (2009), uma vez que a obra per si é um texto com enunciados verbais cheios
de significação. Salienta Genette que o texto tem o acompanhamento de produções verbais
ou não, como todo o aparato que o cerca, desde o nome do autor em destaque ou não, um
prefácio, notas explicativas, entrevistas, resenhas, dentre outros quesitos que podem engran-
decer ou desfalecer uma obra. Tais paratextos, ou aparatos, cercam o texto e o prolongam.
No caso Do passado para o futuro, foram inseridas ilustrações e um posfácio, por exemplo, mas
cabe lembrar que cada decisão editorial, como colocar o texto com uma margem maior supe-

105
rior ou inferior, uma poesia na página da direita ou da esquerda, etc., foram exaustivamente
compartilhadas e pensadas entre a equipe, composta pelos integrantes da REDIJUV, pE.com
e Felipe, e, por isso, resultam em ações carregadas de sentido para o texto. Como disse Ge-
nette, para tornar o texto presente, afinal “o paratexto é aquilo por meio de que um texto se
torna livro e se propõe como tal a seus leitores” (GENETTE, 2009, p. 9).
O processo de edição é pleno de etapas, dentre as quais estão inseridos os papéis executados
pelos agentes de uma cadeia de valores que inicia na criação literária, perpassa pelo projeto
gráfico, pela diagramação, pela ilustração, pelo tratamento de imagem, pela revisão, pela im-
pressão e alcança a publicação e a divulgação da obra. A tal conjunção de etapas se estabelece
no processo editorial, cujo papel é o de articular e alinhavar todas as partes do processo, a fim
de ter o melhor resultado tanto para os que ali estiveram envolvidos quanto para os leitores.
Conforme indica a literatura na área, a edição prescinde de uma série de etapas - as
“principais etapas do processo produtivo do livro dentro de uma editora” podem ser acom-
panhadas em Pense (COLETTO; BARCELLOS, 2016, p. 35). O laboratório pE.com está
inserido no curso de Comunicação Social – Produção Editorial, isso justifica o porquê de
transformar o conteúdo elaborado por Felipe no melhor material para os leitores. A tarefa
faz parte da indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa e Extensão.
Ademais, o desafio no processo foi o de reunir os poemas, organizá-los de tal maneira
que a sequência pudesse corresponder a um crescente ao longo do livro. A primeira etapa,
chamada de preparação de originais, foi realizada pela equipe da REDIJUV, de maneira
que o material chegou na editora já com esse serviço realizado.
Estabelecer leveza à poesia circunscrita na obra foi um dos desafios no projeto gráfico,
que contou com espaçamentos pensados pelo silêncio, pelas não cores, por páginas em
branco, por entrada de capítulos demarcadas e as ilustrações que foram distribuídas ao
longo da obra, de maneira a dar um respiro entre as palavras, mais para compor e menos
para competir com o texto.
O trabalho contou com uma bolsista que fez o projeto gráfico desde a capa e a parte
interna, denominado miolo do livro, ela também elaborou as ilustrações customizadas
para os poemas, atendendo às leis do design, que estipula a harmonia entre o espaço
tipográfico (das letras) e a liberdade do vazio em margens, entrelinhamentos e compo-
sição da página como um todo.
Outrossim, cabe salientar que a materialidade, ou seja, o produto impresso ou mesmo
o digital, com sua ordenação dos poemas, a maneira de tratar os espaços, os vazios e os
preenchimentos, complementa o conteúdo escrito pelo autor, de maneira a constituir-se na
arte da edição tão utilizada ao longo dos anos, tendo sua origem na impressão em tabuletas
de barro, passando pelo papiro, pergaminho, no formato rolo e posteriormente o códice,
formato ao qual encontra-se até o surgimento do digital.
Como referem-se os pensadores como o crítico literário Ítalo Moriconi (2020), a obra
contém um circuito de valor, nela está inscrita toda a cadeia de suprimentos a qual perpas-
sa. E é na circulação posterior à publicação que o circuito da divulgação inicia, para chegar
ao leitor e a interpretação do que foi escrito.

106
O pertencimento ao qual a obra perpassa, sendo inserida no circuito de circulação ao
ser divulgada, por exemplo, em seu lançamento e autógrafos, tem sua legitimação junto
ao mercado por pequenos detalhes na sua produção, tais como a inserção do Internatio-
nal Standard Number, ISBN, número que registra a obra junto ao órgão internacional,
segundo “Toda obra deve constar registrada com ISBN [...] e constar o número referido na
folha de créditos (ou junto à ficha catalográfica), e na capa do livro” (JAEGER; AFONSO,
2015, p. 19). Nesse sentido, a solicitação de ISBN, dito como a “carteira de identidade” do
livro, no caso de Do passado para o futuro, significa a existência de um livro, mas muito mais,
o surgimento de uma autoria, de um empoderamento do sujeito por meio da presença da
obra e de tudo que a rodeia: impressão, circulação, divulgação, leitura.
Ao definirmos o que distingue a produção editorial do primeiro livro para a publica-
ção da segunda obra, pode-se afirmar que o caráter diferencial está no objetivo, enquanto
em um está o apoio na publicação e na concretização parcial do projeto e na visibilidade
da instituição e dos resultados a ela atinentes, no segundo caso, acrescenta-se a intenção
do cunho pedagógico e didático ao qual a pE.com está envolvida enquanto projeto de
Ensino, Pesquisa e Extensão.
O livro, objeto que contém, per si, o conhecimento, que permite o registro da história da
humanidade, constitui em instrumento de circulação de ideias. No caso do livro de Felipe,
são muitas as coisas envolvidas: desde o exercício do fazer a produção editorial enquanto
ensino, exercício criativo na arte do design e da solução de problemas do quesito arte, de
editar, que inclui a adaptabilidade do projeto às condições financeiras e de impressão, tais
como limitação de cores, número de páginas e maquinário disponível, até a disponibilidade
de tempo para a realização da produção em meio ao ano pandêmico de 2020 e tudo o que
isso acarretou aos estudantes, aos professores, enfim, aos envolvidos institucionalmente.
A obra poética, portanto, é muito mais do que um simples objeto. Ele tem sentido: car-
rega um sonho, uma vontade, a superação de alguém que extrapolou o espaço físico com
restrição de liberdade, para o espaço ilimitado da imaginação, da esperança, da transforma-
ção e da resistência. Nesse caso, que a publicação enquanto mídia, – meio é mensagem–,
tenha contribuído para fazer do sujeito em si, aquele a ocupar um espaço de cidadania a
ele destinado, ao mesmo tempo que instaura a aproximação entre o meio acadêmico com
a sociedade, instaurada para além dos muros da universidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: É PRECISO CONTINUAR A SONHAR,


A CRIAR E A INVESTIR COLETIVAMENTE E RESISTIR

Este capítulo descreveu algumas ações desenvolvidas no âmbito do projeto de Extensão


Oficinas de Intervenção Psicossocial com Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa,
as quais envolveram a valorização da escrita e da publicação de poesias como recursos para
a inclusão social, a garantia de direitos humanos e resistência no contexto socioeducativo.
De forma mais específica, apresentou-se a história do Felipe Silva, um jovem poeta egres-
so do sistema socioeducativo, e seu encontro com a escrita e com pessoas significativas

107
representadas por profissionais do Sistema Socioeducativo e da universidade, envolvendo,
principalmente, as áreas da Psicologia e da Comunicação Social.
Acredita-se na potência desses encontros para a promoção de ações sustentadas nos
princípios dos direitos humanos, enfrentando os desafios que ainda dificultam o exercício
da educação como principal recurso socioeducativo. É pelo encontro, pela proximidade
e pela valorização das potencialidades dos adolescentes que eles podem descobrir outras
vias para obtenção de reconhecimento social, reconstruir seus projetos de vida e encontrar
recursos que possibilitem viabilizá-los. No caso do Felipe, tais potencialidades envolvem
seu talento para a escrita de poesias, mas é possível apostar e investir nas potencialidades
particulares de cada adolescente, sejam elas quais forem, é preciso descobrir. Trata-se de
uma aposta que deve levar em consideração a singularidade de cada um, o respeito pela
sua história e trajetória de vida e pelo seu desejo, o que é possível na medida em que se
estabelece uma relação de proximidade e confiança.
Espera-se que essa narrativa, carregada de construções coletivas, tentativas de interven-
ção, aprendizados e adaptações, possa ser inspiradora de outras intervenções que possibili-
tem conhecer, sonhar, criar, estabelecer laços e investir coletivamente em um mundo mais
justo e garantidor de direitos humanos para todos e todas, e especialmente aos adolescen-
tes que cumprem ou já cumpriram medidas socioeducativas, suas famílias e comunidades.

108
REFERÊNCIAS

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110
INTERVENÇÃO PSICOSSOCIAL COM
ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE:
ESTABELECENDO LAÇOS ENTRE
SOCIOEDUCAÇÃO E UNIVERSIDADE PARA
PROMOVER INCLUSÃO SOCIAL

André Morgental Weber


Sara Peres Dornelles Almeida
Juliana da Rosa Marinho
Renata dos Santos da Costa
Luana da Costa Izolan
Jana Gonçalves Zappe
O objetivo deste capítulo é apresentar o desenvolvimento histórico do projeto de Ex-
tensão Oficinas de Intervenção Psicossocial com adolescentes em cumprimento de medida socioedu-
cativa de internação, registrado sob número 048322 no Portal de Projetos da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM) e vinculado ao Observatório de Direitos Humanos da
Pró-Reitoria de Extensão (PRE/UFSM). Por meio do projeto, busca-se contribuir com o
enfrentamento de dificuldades na promoção da cidadania, da inclusão social e da garantia
de direitos humanos dos adolescentes em conflito com a lei, o que está relacionado com a
existência de um certo descompasso entre as garantias legais e a efetivação delas.
A legislação reconhece os adolescentes enquanto sujeitos em condição peculiar de de-
senvolvimento, que devem ter garantidos, pelo Estado, o acesso aos direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana e assegurado o desenvolvimento saudável nos âmbitos físico, so-
cial, mental, moral e espiritual, por meio de ações de proteção e promoção social (BRASIL,
1990). No entanto, apesar de serem claramente estabelecidos estes direitos, desigualdades
estruturais fortemente presentes no Brasil dificultam o acesso a pessoas, recursos e serviços
que seriam fundamentais para a efetivação do desenvolvimento social. É frequentemente
descrita, na literatura, a proximidade entre a falta de acesso a direitos básicos e a prática de
atos infracionais, de forma que os adolescentes em conflito com a lei possuem uma trajetória
de vida mais marcada pela violação do que pela efetivação de seus direitos, ou seja, são pes-
soas que têm direitos “apenas no papel” (AZEVEDO; AMORIM; ALBERTO, 2017).
Diante desse cenário, compreende-se que o exercício da socioeducação é bastante com-
plexo e desafiador, uma vez que envolve a garantia de direitos fundamentais e a promoção
da cidadania, em uma perspectiva pedagógica, ao mesmo tempo em que promove a res-
ponsabilização pela prática de atos infracionais. Entre outros aspectos, envolve o desafio
de acessar os adolescentes, instigar reflexões sobre suas histórias de vida e mobilizar a
construção de projetos de vida desvinculados do conflito com a lei. Levando em conside-
ração os aspectos estruturais envolvidos, considera-se a importância do reconhecimento da
incompletude institucional e da necessidade de se estabelecer ações em rede que articulem
diferentes instituições com as instituições socioeducativas, como a universidade. É nessa
direção que o projeto tem sido desenvolvido, buscando explorar ao máximo as possibili-
dades de articulação entre Universidade e Socioeducação, considerando que a educação é
um dos principais pontos de intersecção entre elas.
As ações do projeto são realizadas em parceria com a Escola Estadual Humberto de
Campos, localizada em anexo ao CASE-SM, com o objetivo de possibilitar que os ado-
lescentes explorem diferentes formas de inscrição no mundo. As atividades são propostas
de forma dinâmica e flexível, a partir do que se produz na interação espontânea entre
extensionistas e adolescentes, seguindo a dinâmica de oficinas de intervenção psicosso-
cial. Trata-se de um método que se baseia na articulação entre diferentes dimensões, quais
sejam: clínica, visto que se interessa pelos projetos dos sujeitos implicados; psicossocial,
porque busca colocar cada pessoa dentro do seu contexto político, social e institucional;
e educativa, a partir de um viés de reflexão, aprendizagem, transmissão de informações e
conscientização (AFONSO, 2006).

112
De forma mais específica, as oficinas acontecem com o intuito de possibilitar uma es-
cuta que considere a relação do sujeito, seu contexto, suas experiências, as questões rela-
cionadas às vivências durante o cumprimento da medida socioeducativa, assim como as
questões apresentadas em função da sua vida, suas dúvidas, suas certezas, seus anseios,
dentre outros fatores que se tornam eloquentes no momento das atividades. Cabe men-
cionar que o desejo dos adolescentes em participar ou não das atividades das oficinas é
sempre respeitado.

A PRÉ-HISTÓRIA DO PROJETO (2016-2017)

As oficinas de intervenção psicossocial começaram a ocorrer no CASE-SM em 2016,


quando uma das integrantes do projeto realizava o estágio obrigatório de graduação em
Psicologia. Nesse período, a proposta se chamava “oficinas de criação”, onde buscava-se
primordialmente instigar a criatividade dos adolescentes, baseando-se em uma perspectiva
winicottiana, que salienta que os processos criativos podem levar o sujeito a identificar que
a vida vale a pena, e que não estamos apenas submetidos a um ajustamento padronizado,
como se fossemos máquinas. Assim, perceber e potencializar a criatividade em um am-
biente de qualidade e previsível possibilita tornar os sujeitos mais saudáveis e mobilizados
a viver de forma criativa (WINNICOTT, 1975).
Para isso, as atividades devem acontecer em um espaço de confiança, em que há acolhi-
mento para conversar, interagir e criar de forma livre e autônoma. Era sabido que essa pro-
posta se distanciava, em alguma medida, do que ocorria em outros espaços da instituição,
em que a segurança e a disciplina eram mais valorizadas, dificultando o exercício da au-
tonomia. Esses aspectos eram reconhecidos nas oficinas, e buscava-se interações também
com os socioeducadores, que acompanhavam as atividades das oficinas dentro da sala, ob-
servando e questionando sempre que algo estava fora do que era o esperado, para que fosse
possível trabalhar de forma coletiva dentro das práticas entendidas como socioeducativas.
Inicialmente, as atividades aconteciam no turno da manhã, todas as sextas-feiras, com
encontros quinzenais com cada grupo. No ano seguinte, 2017, iniciaram-se as atividades
com duas turmas no período da tarde, pois um dos adolescentes que estava nas oficinas no
período da manhã, e que era entendido pela instituição como um adolescente “difícil”, re-
latou, a uma das profissionais que o atendia, que era o espaço que ele mais gostava de estar
dentro da instituição, e teve que deixar de participar, pois suas aulas passaram a ser pela
manhã. Dessa forma, para manter o acesso deste adolescente e possibilitar a outros, foram
criados grupos no turno da tarde. O encontro com o adolescente percebido como “difícil”
foi entendido, pelos integrantes das oficinas, como uma oportunidade para apresentar um
espaço diferente para novas produções de discurso sobre ele (NASIO, 2011).
Cada grupo era composto por 6 adolescentes, todos meninos, de 14 a 17 anos, e, em
média, o tempo de duração das oficinas era de 3 horas, das 8h às 11h, pela manhã, e à
tarde, das 14h às 17h. A primeira oficina ocorreu em forma de apresentação da proposta,
para que os adolescentes pudessem se sentir acolhidos e se apropriarem do grupo. Segundo

113
Ribeiro e Torossian (2019), não há como saber o que faz o adolescente vir e ficar, então é
preciso que suportemos nossas incertezas e os silêncios iniciais sobre nossas apostas, pois é
nesse suportar de não saberes sobre esses sujeitos que podemos tolerar e, ao mesmo tempo,
ser suporte em cada encontro, para cada um. Com a entrada e apropriação do espaço, al-
gumas regras foram sendo constituídas no início das atividades. Regras essas criadas pelos
adolescentes, professores e mediadores participantes, no intuito de criar um espaço seguro
para o adolescente manifestar suas questões.
Os encontros seguiram e os adolescentes ficaram. A partir disso, pôde-se entender que,
mesmo diante de muitas dificuldades, ainda assim, eles também apostaram na ideia. Os
encontros posteriores foram pensados em grupo, onde os adolescentes escolheram entre
trabalhar com música, brincadeiras, construção de objetos, como, por exemplo, um abajur
com palitos de picolé, tie dye, argila, mobile, entre outros. Também foram assistidos docu-
mentários sobre funk e coletivos da cidade, nos quais houve suporte para conversar sobre
os padrões estéticos de beleza que são impostos pela sociedade, sobre a cultura da periferia,
sobre a juventude, também foi solicitado para alguns amigos gravarem vídeos que foram
apresentados aos adolescentes, na sua maioria eram amigos falando sobre suas experiên-
cias de vida e como foi passar por alguns desafios.
Um dos conteúdos apresentados durante as oficinas foi especialmente significativo: o
depoimento em vídeo de dois jovens que já haviam cumprido medida socioeducativa e que
ingressaram na universidade, contando sobre suas experiências. Os adolescentes pediram
para assistir aos vídeos diversas vezes e, a cada vez, discutiam e propunham questões so-
bre o que assistiam. Considerou-se fundamental que a possibilidade de ocupar um lugar
na instituição educacional/universidade estivesse sustentado em nosso discurso – exten-
sionistas e jovens do vídeo – como um espaço de pertencimento para quem cometeu ato
infracional, sendo possível aos adolescentes se identificarem para além do lugar físico das
instituições, mas também simbólico, autorizando-os, para além da infração, a estabelecer
laço com o social enquanto estudantes (GURSKY, STZYKALSKI, 2019).
Um grande parceiro para algumas atividades, nas quais inclusive alguns foram partici-
pantes, foi o Coletivo de Resistência Artísticos Periférica de Santa Maria (CORAP), alguns
convidados trabalharam com grafite, outros com produção de rima, outros falaram sobre
redução de danos. Nesses encontros, muitos adolescentes que não tinham uma boa relação
fora da instituição se propuseram a dividir o mesmo espaço para que os convidados pudes-
sem desenvolver suas atividades, bem como, algumas vezes, presenciou-se alguns adoles-
centes que haviam brigado reatarem suas amizades dentro das oficinas, para continuarem
dividindo o mesmo espaço.
O objetivo de um dos encontros era trabalhar com grafite, e a oficina contou com alguns
convidados que mobilizaram muito os adolescentes. É preciso salientar que não era possí-
vel para o grupo trabalhar com muitas das ideias sugeridas pelos adolescentes, nesse senti-
do, precisou-se buscar parceiros que apoiassem as ideias em alguns momentos. Um destes
convidados contou um pouco sobre suas experiências, tanto pessoais quanto no campo
artístico, e a escola nos cedeu uma parede de uma das salas de aula – que anteriormente

114
funcionava dentro da unidade – para que esse convidado pudesse desenvolver seus dese-
nhos com os meninos. E foi a primeira vez que um adolescente, mesmo presente em outros
momentos, mobilizou-se a participar, sendo fortemente sustentado por esse convidado,
dizendo-lhe que o que ele tinha para contribuir era importantíssimo para o produto final
da obra. Ao receber esse cuidado e ficar satisfeito com a atenção que lhe foi endereçada, o
adolescente se sente seguro e acolhido, integrado ao ambiente, em que, na sustentação de
sua subjetividade, foi possível dar continuidade ao ser, operando no ambiente que lhe foi
apresentado. (WINNICOTT,1945/1978)
A parceria com a gestão da escola e com os socioeducadores sempre foi de extrema
importância para desenvolver alguns projetos que tínhamos desejado em conjunto com os
grupos de adolescentes, visto que, quando é possível a flexibilidade no processo de aten-
dimento e acompanhamento do adolescente, reformulando, sempre que possível, essas
ações, na escuta de suas demandas, as novas atividades passam a ter outro significado,
levando em conta as relações desse sujeito com o mundo, considerando sua subjetivida-
de, história e desenvolvimento psicossocial (RIBEIRO, TOROSSIAN, 2019). A partir de
2017, as atividades seguiram com os adolescentes, contudo o grupo se dedicou a uma
maior aproximação com a gestão da escola, a qual sempre foi muito importante para que
o trabalho do projeto acontecesse, acolhendo nossas ideias e proporcionando material e
espaço para o desenvolvimento das atividades. Os extensionistas também buscaram uma
aproximação da equipe técnica e socioeducadores, para melhor atender os adolescentes e
buscar entender sobre a relação que existia entre a instituição e os adolescentes. Nesse pe-
ríodo, foi realizada uma devolutiva para escola e outros profissionais, apresentando alguns
indicativos que pôde-se observar nesses encontros.

A CONSTRUÇÃO DO PROJETO DE EXTENSÃO EM 2018:


A UNIVERSIDADE VAI ATÉ A UNIDADE SOCIOEDUCATIVA

Com o ingresso de duas integrantes das oficinas de criação na UFSM, uma como mes-
tranda e outra como docente, as atividades passaram a ocorrer em formato de ações exten-
sionistas e a contar com os recursos da universidade, que possibilitaram, entre outras coi-
sas, ampliar a equipe executora das atividades e o número de adolescentes acessados. Em
2018, as atividades foram desenvolvidas em uma sala localizada na escola anexa à institui-
ção, às sextas-feiras, com duração de duas horas e meia, durante os turnos da manhã e da
tarde, contando com quatro grupos, sendo estes compostos por quatro a oito adolescentes
cada. Os grupos, que se reuniam quinzenalmente, eram mediados por três integrantes da
equipe, sendo uma psicóloga, acadêmica do mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia - PPGP/UFSM, e duas estudantes de psicologia da UFSM. Também faziam
parte das oficinas professores da Escola Humberto de Campos, os quais colaboraram no
desenvolvimento de cada oficina, trazendo questões relacionadas ao cotidiano e à rotina
da escola, assim como compartilhando as vivências da unidade socioeducativa.

115
As intervenções propostas pelas mediadoras seguiam ocorrendo através de recursos ar-
tísticos e pedagógicos, como músicas, teatro, dança, grafite, filmes, jogos, construção de
revistas e roda de conversas, a fim de facilitar a interlocução entre adolescentes, mediado-
res e professores. Seguia-se valorizando a importância de oferecer um ambiente acolhedor
e seguro para a realização das atividades, compartilhamento de experiências e para que a
escuta fosse se tornando um preceito de construção de vínculo.
O espaço das oficinas continuava sendo construído na aposta e no investimento dos
interesses e desejos manifestados pelos participantes. Em uma das primeiras oficinas
realizadas, na busca por aproximação, uma das mediadoras observava um dos adoles-
centes na confecção de um filtro dos sonhos, objeto este que era ensinado por uma das
agentes socioeducadoras e que, de costume, os adolescentes confeccionavam em seus
dormitórios. Naquela ocasião, a atividade proposta para o grupo era um filme, contudo
o adolescente optou em seguir na produção do seu material, junto a uma das professoras
que acompanhava a oficina. Ao perceber o interesse da mediadora em sua atividade, um
diálogo se estabeleceu, que, a seguir, originou um convite do adolescente à mediadora,
para que tentasse elaborar um filtro dos sonhos. Esse relato busca demonstrar que é a
partir destas trocas, do interesse e do investimento no desejo do adolescente que se esta-
belecem e se consolidam vínculos.
No decorrer das atividades, a partir destas apostas singulares, os adolescentes foram
sentindo-se pertencentes ao grupo formado, viabilizando a fala e a escuta sem julgamen-
tos de moralidade, o que, posteriormente, possibilitou que eles começassem a apresentar
questionamentos, pontuações e falas relacionadas às atividades, e se implicarem enquanto
sujeitos ativos no processo das oficinas. Como mencionado, tanto em função da vivência
dentro da instituição (CASE-SM e escola) quanto de questões de vida pessoal.
Após o estabelecimento do vínculo entre extensionistas e adolescentes, as propostas
consolidaram-se em espaços de escuta e trocas. Com isso, as atividades se direcionaram
para que os adolescentes pudessem pensar a constituição e execução das oficinas, a partir
da criação de regras em jogos, confecção de materiais, sugestões e indicações de atividades,
músicas, filmes e documentários, brincadeiras e demais atividades que contemplassem a
todos. Além disso, ao longo das oficinas, os adolescentes puderam se reconhecer enquanto
grupo, criando a própria identidade de seus grupos através de símbolos e nomes atribuídos
a cada turma. Inspirados no filme “Os guardiões das galáxias”, que aborda a importância
do trabalho coletivo e em equipe, um dos grupos construiu uma bandeira que representava
seus integrantes. Cada adolescente pôde contribuir, expressando-se através de frases, dese-
nhos ou auxiliando na execução da pintura da bandeira.
Ao longo do ano de 2018, diferentes trabalhos foram sendo constituídos junto à es-
cola, como, por exemplo, pensar a formatura escolar dos adolescentes ao final do ano.
Nesse sentido, a busca pelo vínculo familiar, inclusive da participação da família em
algumas atividades, começou a ser abordada. Nessa elaboração, os impasses se torna-
ram evidentes, pensando na relação e na possibilidade trazidas nos grupos e as regras
institucionais, que se apresentavam, em algumas ações, como impeditivos. Essa relação

116
da escuta e da realização dos grupos com as regras institucionais do CASE-SM sempre
estiveram presentes. Se deparar e escutar o funcionamento institucional e a maneira
como isso intervia nos grupos sempre se apresentou como um desafio na elaboração das
atividades e da própria escuta dos adolescentes.
Visto as dificuldades impostas pela dinâmica institucional para realizar a formatura
dos adolescentes, outras possibilidades começaram a ser pensadas no espaço das ofici-
nas. Levando em conta os princípios apresentados pelos documentos legais mais recen-
tes, como a autonomia dos adolescentes em seu processo socioeducativo e a inclusão
da gestão democrática nas instituições, pensou-se na construção coletiva de um evento
onde os adolescentes pudessem expressar-se através da arte e estivessem implicados
desde a idealização até o planejamento da infraestrutura, sonorização, decoração, ali-
mentação, cerimonial e espetáculos artísticos.
Assim, foram organizados grupos de trabalho, compostos pelos adolescentes partici-
pantes das oficinas, professores da escola e integrantes da REDIJUV. Os GT eram divi-
didos de acordo com a área de maior interesse dos adolescentes e foram organizados da
seguinte maneira: GT da Infraestrutura, responsável pela escolha do local do evento na
instituição, sua locação e organização de mesas e cadeiras; GT da Sonorização, responsá-
vel pelos equipamentos de som (caixa de som, microfone, projetor), seleção das playlists de
música, cobertura fotográfica e DJ no dia do evento; GT da Decoração, responsável pela
escolha e confecção de materiais para a ornamentação do evento; GT da Alimentação,
encarregado pelo planejamento e execução do cardápio; e GT do Marketing, responsável
pela divulgação, assim como incumbido pela realização do cerimonial no dia do evento.
A partir desta distribuição, todos os adolescentes que desejaram estar envolvidos no pro-
cesso de construção do evento investiram e trabalharam para a sua realização. Foram em
torno de dois meses para se pensar, planejar e executar a I Mostra de Talentos do CASE/SM,
sendo reservado sempre um momento nas oficinas semanais para tratar do assunto. No
dia do evento, os adolescentes apresentaram produções artísticas, como teatro de Natal,
performance com a música Indestrutível, de Pabllo Vittar, além de apresentações musicais,
de rap e rimas, que foram ensaiadas em momentos disponibilizados pelos professores em
suas aulas, assim como nos próprios dormitórios dos adolescentes. O evento contou com
a presença de convidados, como a diretora da unidade, professores, técnicos, agentes so-
cioeducadores e integrantes da REDIJUV. A realização deste foi um momento marcante
na trajetória das oficinas com os adolescentes, assim como um importante momento de
afirmação da relação entre as instituições socioeducativas e universitárias.

A CONTINUIDADE DO PROJETO EM 2019 –


OS ADOLESCENTES VÃO À UNIVERSIDADE

No ano de 2019, as oficinas continuaram acontecendo, no sentido de promover um


ambiente de escuta aos adolescentes, contando, para isso, com a inserção de mais exten-
sionistas. Com novos olhares para a proposta que já vinha sendo desenvolvida, o grupo

117
se deparou com questionamentos e reflexões constantes quanto aos encontros, bem como
em relação às possibilidades de adaptar as oficinas conforme eram observados obstáculos
ou novas demandas. Ainda, foram construídas possibilidades de intervenção que ultrapas-
saram o espaço físico do CASE-SM, passo importante para fortalecer o projeto enquanto
Extensão Universitária, ou seja, como estratégia para o estabelecimento de uma relação
dialógica e articulada entre universidade e comunidade, e, neste caso, mais especificamen-
te, de uma aproximação dos adolescentes com o ambiente universitário.
Reflexo dessa ampliação com relação às atividades pode ser visto, por exemplo, na reali-
zação de uma oficina de origami 3D durante a 46.ª Feira do Livro da Cidade de Santa Maria,
a qual foi planejada e organizada a partir da demanda apresentada pelos adolescentes. Este
momento foi repleto de significados, pois proporcionou a saída de alguns adolescentes do
CASE-SM e seu contato com a comunidade, além de ter reforçado o interesse do projeto em
investir na autonomia dos participantes, que tiveram a oportunidade de ensinar suas técni-
cas e de conversar com as pessoas que circulavam pelas tendas da feira. A participação na
feira também envolveu o lançamento do livro de um egresso do sistema socioeducativo que,
durante o cumprimento de sua medida, escreveu poesias, e que tem sua história contada em
capítulo específico deste livro, cujo título é A garantia de direitos humanos no contexto socioeduca-
tivo: Uma história de poesias, sonhos, resistências e investimentos coletivos.
Além do lançamento do livro para a comunidade na feira, posteriormente, houve um
momento de encontro do autor com os adolescentes dentro do CASE-SM, que tiveram a
oportunidade de acessar os poemas, conversar sobre as leituras e encontrar inspiração. Este
encontro também envolveu profissionais da instituição, como, por exemplo, uma professora
que, anos atrás, enquanto o autor do livro cumpria medida socioeducativa, havia recebido
dele uma carta de agradecimento que reconhecia a importância de suas aulas. A professora
levou essa carta e leu durante o encontro, revelando que ela era uma fonte de inspiração e
motivação para seu trabalho na unidade, o que foi muito emocionante para todos.
Outro momento muito significativo, na mesma época, e em parceria do projeto com o
evento literário já mencionado, foi a visita da repórter e escritora Eliane Brum, autora de
livros que, dentre outras temáticas, trazem reflexões sobre juventudes, vulnerabilidades
e realidades que, de alguma forma, acabam remetendo também às vivências dos adoles-
centes. Ao encontrar com estes meninos em cumprimento de medida socioeducativa, a
escritora utilizou a leitura como estratégia para proporcionar um espaço de trocas entre
os participantes da atividade, em consonância com as propostas da REDIJUV no que se
refere ao reconhecimento da importância da escuta sensível.
No decorrer do ano, outras atividades também se destacaram. Como os encontros com
os adolescentes sempre foram planejados e organizados conforme o grupo observava a
necessidade de abordar determinados temas, em certo ponto consideramos que seria per-
tinente trabalhar sobre dispositivos artísticos, de saúde, de educação, dentre outros, que
constituem uma rede nos territórios, e que são importantes para que os adolescentes te-
nham acesso aos seus direitos, como, por exemplo, o atendimento à saúde, os estudos
e outros fatores necessários ao desenvolvimento. O grupo criou, então, a “dinâmica das

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portas”, que se tratava de uma atividade na qual os participantes ficavam de frente para
três portas (desenhadas e recortadas em papel pardo e coladas na parede da sala), podendo
escolher uma delas para abrir. Ao abri-las, deparavam-se com colagens que faziam refe-
rência a locais como Unidade Básica de Saúde (UBS), teatro, escola, profissionais como
psicóloga e professora, atividades como dança, hip-hop, dentre outros.
A ideia inicial era que os adolescentes falassem sobre estes elementos constituintes da
sociedade, se os acessam, se consideram importantes, como se dá a relação deles com es-
tes diferentes dispositivos e pessoas. Porém, conforme eles foram interagindo, mostraram-se
curiosos quanto ao que tinha atrás de todas as portas, e deram um novo direcionamento à
dinâmica, definindo, então, que cada porta indicaria um valor que eles dão aos elementos
representados. Uma porta seria usada para eles colarem aquilo que é importante, outra para
colarem o que não é importante, e a última para que fosse colocado aquilo que não fazia
diferença, de acordo com a avaliação do grupo. Assim, foi percebido que muitas ferramentas
e muitos dispositivos de garantia dos direitos de crianças e adolescentes não faziam parte
da realidade dos meninos. Por exemplo, eles não tinham conhecimento de que poderiam ir
até uma UBS para solicitar atendimento. Também mostraram que certos espaços culturais,
como o teatro, estão distantes de suas realidades. Assim sendo, considerando a proposta
geral do projeto e em consonância com o que é pretendido pelo ODH, a atividade se fez fun-
damental para identificar possíveis lacunas quanto à compreensão dos adolescentes no que
se refere aos direitos humanos. Mais que isso, possibilitou trabalhar, com os participantes da
oficina, os direitos garantidos no ECA, tais como aqueles referentes à saúde, alimentação,
educação, lazer, cultura, liberdade, convivência familiar e comunitária, dentre outros (BRA-
SIL, 1990), os quais eram desconhecidos ou pouco entendidos pelos meninos.
Também puderam ser resgatados alguns recursos que foram geradores de reflexões e
potencializadores dos vínculos entre oficineiros e adolescentes, como, por exemplo, o ci-
nema. Conforme apontado por Barbosa (2018), nossa sociedade é audiovisual, no sentido
de que faz parte do nosso cotidiano acessar a realidade do mundo pela via das represen-
tações ou imitações transmitidas através das telas. Assim, ferramentas como o cinema, de
acordo com Fresquet (2017), auxiliam-nos a ver o que está “fora”, mas também o nosso
interior. Em algumas oficinas, os adolescentes solicitaram que fossem passados alguns fil-
mes, como, por exemplo, o filme nacional intitulado Era uma vez..., que fazia os meninos
falarem, da sua maneira, sobre a vida nas periferias e sobre o amor. O filme, lançado em
2008, retrata a história de paixão entre pessoas de mundos contrastantes, um menino da
favela e uma menina de família rica. Perto do fim, o filme é trágico, e, nessa parte, os ado-
lescentes tendiam a demonstrar desconforto – às vezes, até mesmo se negando a ver a cena
e o restante da história.
Não só este, como outros filmes se mostraram importantes na abertura ao diálogo e às
trocas de vivências entre os participantes das oficinas. Alguns assuntos, mais delicados,
que dificilmente eram ampliados nas oficinas, acabavam sendo abordados e desenrolados
a partir destes dispositivos cinematográficos. Especificamente no exemplo referido, con-
sidera-se relevante utilizar recursos audiovisuais como acessórios no processo de refletir

119
sobre temáticas que perpassam o desenvolvimento humano, como é o caso do amor, que,
de acordo com Braz (2006), participa de forma ativa na estruturação da personalidade, per-
mitindo que cada indivíduo se aproxime de sua essência e, ainda, propiciando o desenrolar
das relações sociais. Em consonância com esta perspectiva, Santos, Custódio e Dias (2017)
complementam que as relações amorosas têm importância na adolescência, e experiências
românticas, sejam elas reais ou fantasiosas, permitem que o jovem desenvolva percepções
distintas de si e nas relações entre pares e grupos. Assim, é fundamental que este e outros
assuntos sejam abordados, de alguma forma, nos encontros com os adolescentes, que mui-
tas vezes não conseguem expressar seu interesse em dialogar sobre questões cotidianas
aparentemente mais sensíveis, mas que, diante da possibilidade, refletem a respeito e se
deparam com conflitos, sentimentos e experiências relacionadas ao seu desenvolvimento.
Neste mesmo sentido, foram percebidos como potentes alguns momentos em que os
grupos optaram por não realizarem as atividades propostas para as oficinas do dia. Em
vez da dinâmica pensada pelos extensionistas, os meninos solicitaram, por exemplo, que
pudessem jogar xadrez. Durante as partidas, os participantes conversavam sobre diversos
assuntos relacionados às suas vidas, o que também nos colocava diante de muitas refle-
xões, questionamentos e temáticas que eram discutidas espontaneamente, mas que faziam
muito sentido para aqueles que estavam envolvidos naquele momento. Era dessa forma
que, muitas vezes, nosso grupo conseguia perceber quais assuntos poderiam ser de maior
interesse e utilidade, bem como aqueles que deixavam os meninos menos implicados. Nes-
tes momentos, ainda, era comum que algum adolescente se afastasse um pouco do restante
do grupo e começasse a falar sobre questões mais pessoais com algum dos extensionistas.
Assim, com dinâmicas flexíveis e considerando a complexidade que era oferecer aquele
espaço de escuta, o vínculo cresceu cada vez mais com os adolescentes, partindo da com-
preensão de que há certa transitoriedade na adolescência, no sentido de que se trata de um
período de descoberta, conforme Winnicott (1999), no qual cada pessoa está empenhada
em uma experiência vital e no estabelecimento da identidade, e, por isso, as atividades e os
assuntos propostos ora fazem sentido, ora já não fazem mais.
Ainda em 2019, foi trabalhada a história do hip-hop, de músicas, jogos envolvendo
curiosidades e conhecimentos gerais, dentre outros elementos. A cada semana, o interesse
dos adolescentes parecia se manter ou aumentar, o que tornava muito significativo tudo
aquilo que estávamos nos dispondo a construir e planejar juntos. Resultado desta abertura
às várias formas de interação e discussão foi a constatação de que o número de adolescen-
tes foi aumentando de maneira significativa com o passar do tempo, colocando a questão
da escuta e do incentivo à livre expressão e troca de experiências, dúvidas e perspectivas
como algo diferente no cotidiano da escola. Com isso, considera-se que seria fundamental
pensar as atividades e compartilhá-las com os servidores do CASE-SM e os professores
que já faziam parte da atividade, incluindo estes atores na realidade das oficinas de inter-
venção psicossocial e mostrando as diversas possibilidades de interação e aproximação
com os adolescentes. Ainda neste ano, o grupo pode pensar em passeios para além dos mu-
ros da instituição e que os adolescentes pudessem se identificar de alguma forma, como,

120
por exemplo, a visitação à Jornada Acadêmica Integrada (JAI), que ocorreu no campus
da UFSM e contou com a exposição e apresentação de trabalhos de diversos nichos e in-
teresses. A partir desta visitação à JAI, surgiu o interesse por conhecer mais do campus e
do Jardim Botânico existente na UFSM – então, como uma oportunidade inédita, o grupo
conseguiu a liberação de 5 adolescentes e 1 técnica para realizar uma visita coordenada
no Jardim Botânico. Durante o passeio, além de conhecer diversas espécies de plantas e
biodiversidade, foi realizado um piquenique para encerrar o momento.

2020: MOMENTO DE RESISTIR, RESSIGNIFICAR


E CRIAR NOVAS FORMAS DE INTERAÇÃO

Em 2020, algumas poucas oficinas ocorreram até acontecer o advento da pandemia de


COVID-19, que impossibilitou a continuação das oficinas de maneira presencial, a fim de
seguir os protocolos de biossegurança e evitar a propagação do vírus. Um desafio colocado
para que o grupo pensasse, então, uma maneira de continuar proporcionando um espaço
de escuta e interação, onde os adolescentes continuassem com a possibilidade de apresen-
tar seus discursos em função da sua vida, suas dúvidas, suas certezas, seus anseios, dentre
outros fatores, como mencionado no início deste escrito. A questão de como possibilitar
que as oficinas continuassem a ser um meio de escuta, porém de maneira não presencial,
apresentou-se como um desafio para quem estava pensando os grupos.
Como manter o contato com os adolescentes? Como apresentar o grupo de maneira não
presencial a adolescentes que ingressassem no CASE-SM? Como possibilitar que, mesmo
sem a presença física, os grupos continuassem sendo um lugar de escuta? Questões que se
apresentaram no grupo com a pandemia e a não possibilidade de voltar presencialmente
ao CASE-SM e à escola. Diante disso, a REDIJUV desenvolveu uma atividade de envio
de cartas para os adolescentes. Foi pensado, então, em um primeiro momento, apresentar
a proposta através das cartas como uma alternativa de comunicação entre o grupo e os
adolescentes para que a escuta continuasse acontecendo. Sabendo que não da mesma ma-
neira, porém com os entraves que estavam sendo sentidos e colocados, também considera-
dos dentro da atividade do envio das cartas. Através do envio das cartas, as respostas dos
adolescentes que aderissem por vontade à escrita, seria respondido de maneira individual,
mantendo um contato semanal.
A adesão à atividade foi acontecendo de maneira gradual. Da mesma maneira que, no
início dos grupos, a escuta delineou o desenvolvimento das atividades, nesse momento, o
envio das cartas significou certo recomeço. Recomeço metodológico pela nova maneira de
contato, porém com a vivência desses anos de grupo sendo considerada para iniciar essa
nova etapa. Cabe mencionar que, durante a realização dos grupos presenciais, a escrita
era uma ferramenta utilizada em algumas propostas que surgiam dos adolescentes, sen-
do certa continuidade também com relação aos grupos que já aconteciam. Vale ressaltar,
também, que a escrita de cartas já é uma alternativa de comunicação presente no cotidiano
dos adolescentes do CASE, pois estes, muitas vezes, comunicavam-se com seus familiares,
amigos e namoradas através de cartas.

121
Em um primeiro momento, obtivemos poucas respostas. Os adolescentes estavam en-
contrando alguma perspectiva para utilizar as cartas como algo interessante. Da mesma
maneira, o grupo da REDIJUV também pensava como fazer das cartas algo interessante
para que esses adolescentes se sentissem ouvidos. Com isso, algumas respostas foram
sendo feitas, e as conversas começaram a acontecer. Toda semana, como mencionado,
eram construídas uma carta coletiva para todos os adolescentes e as cartas individuais
quando havia resposta.
No decorrer do tempo, os adolescentes começaram a aderir mais à atividade, aumentan-
do o número de adolescentes que respondiam às cartas. A conversa continuou e os desafios
também. Algumas questões institucionais começaram a se atravessar, algumas respostas
esperadas não aconteciam, e o grupo da REDIJUV não sabia o que havia acontecido com
o adolescente. Se a resposta não veio por opção de não escrita, se não aconteceu por algu-
ma medida dentro do CASE-SM, se o adolescente não estava mais na instituição. Diversos
desafios colocados e presentes no escrever das cartas de maneira semanal.
O contato com os adolescentes e, até mesmo, a possibilidade de repassar as respostas
ao grupo da REDJUV aconteceram através das técnicas da instituição, principalmente a
enfermeira e a psicóloga. Com esse contato, foi pensado em reuniões que possibilitassem
colocar essas questões anteriormente mencionadas e, assim, ir pensando na atividade de
uma maneira interessante para os adolescentes. Em meio a tantas incertezas e questiona-
mentos sobre a funcionalidade das cartas, o grupo conseguiu propor uma atividade dife-
rente de forma virtual. A feira do livro da cidade de Santa Maria ocorreu de forma online
em 2020, tendo como um dos eventos o lançamento do segundo livro de um dos integran-
tes da REDIJUV e egresso do CASE, o qual pode ser realizado por meio de videochamada
para alguns adolescentes e técnicos da instituição. Esse foi um momento dos extensionistas
se reinventarem com o fazer psi e pensarem em novas possibilidades de intervenção, que
talvez, em outros momentos, não teriam sido consideradas. A construção da proposta das
cartas acontece dia após dia, em cada resposta recebida, no silêncio das não-respostas, nas
histórias e desenrolar das linhas e em cada palavra dita que se faz um novo jeito de estar
presentes de alguma forma no cotidiano dos adolescentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo apresentou a história do desenvolvimento de um projeto de Extensão que


busca desenvolver oficinas de intervenção psicossocial com adolescentes privados de liber-
dade, incluindo a pré-história do projeto. Em linhas gerais, as atividades do projeto busca-
ram enfrentar o desafio de acessar os adolescentes, instigar reflexões sobre suas histórias
de vida e mobilizar a construção de projetos de vida desvinculados do conflito com a lei.
Para isso, tem-se buscado explorar ao máximo as possibilidades de articulação entre uni-
versidade e socioeducação, o que tem se mostrado muito potente.
Já na pré-história do projeto, a universidade aparece como espaço de pertencimento de
egressos do sistema socioeducativo, cujas histórias mobilizaram reflexões e mostraram, de

122
forma concreta, que a educação é um caminho para a superação do conflito com a lei. Com
a formalização do projeto de Extensão, os laços entre a universidade e os adolescentes se
estreitam, ampliando possibilidades de interação com a inserção de graduandos e pós-gra-
duandos nas atividades desenvolvidas na Unidade Socioeducativa. O ano de 2019, especial-
mente, foi marcado pela presença dos socioeducandos em espaços da universidade, o que foi
decisivo para consolidar a ideia de que é possível e potente investir em educação. Em 2020, a
pandemia de COVID-19 limitou nossa mobilidade e possibilidade de contato presencial, mas
possibilitou que a aposta inicial do projeto, que envolvia a escrita de diários, já até esquecida,
finalmente pudesse acontecer, mas então sob a forma de escrita de cartas.
Espera-se que o conteúdo deste capítulo, em que se buscou narrar o movimento das
propostas em toda sua vitalidade, possa servir de inspiração para outras propostas de in-
vestimento no campo da socioeducação que contribuam para que os adolescentes tenham
seus direitos garantidos para além do papel. Em 2021, o grupo segue com as atividades
remotas, mantendo o contato e o vínculo por meio de trocas de cartas. As palavras que são
trocadas materializam o investimento feito pelo grupo nos adolescentes, na socioeducação
e na universidade, dão testemunho da capacidade criativa e mantêm viva a esperança pela
retomada dos encontros presenciais no futuro.

123
REFERÊNCIAS

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125
ESCOLA E SOCIOEDUCAÇÃO NO
CONTEXTO DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE:
DESAFIOS E POTENCIALIDADES EM UM
GRUPO COM PROFESSORES

Dorian Mônica Arpini


Joana Missio
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A socioeducação pode ser entendida como um dos diversos avanços na garantia de


direitos dos adolescentes no Brasil. Regida pelo ECA (BRASIL, 1990) e, mais especifica-
mente, pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (BRASIL, 2006), propõe
um atendimento que leva em consideração a condição peculiar de desenvolvimento em
que se encontram os adolescentes, tanto no estabelecimento quanto no cumprimento das
medidas socioeducativas. Tendo isso em vista, é preciso garantir, aos adolescentes que
cumprem medida socioeducativa, todos os direitos previstos pelo ECA, atribuição que ga-
nha peso nas instituições de cumprimento de medida de internação, quando há a privação
de liberdade. Um desses direitos é o da escolarização, previsto pelo Artigo 124, inciso XI,
no ECA (BRASIL, 1990), que, em geral, é assegurado dentro da própria instituição.
Os adolescentes que ingressam em uma instituição de privação de liberdade, em geral,
possuem uma relação de fragilidade com o contexto educacional e com a aprendizagem:
grande distorção idade/ano de escolaridade, evasões, abandonos, dificuldades de apren-
dizagem, reprovações e, até mesmo, violações de direitos nesse contexto (ZANELLA,
2010; RIBEITO; VELTEN, 2016; BRONDANI; ARPINI, 2019a). No entanto, a partir
dos estudos de Padovani e Ristum (2013a), de Brondani e Arpini (2019a) e de Kujawaet al.
(2018), a escola, para esses jovens, ganha significados muito positivos, como possibilidade
de mudança, porta de entrada para o mundo do trabalho, construção da identidade, ressig-
nificação da importância do estudo, espaço de reflexão e de desejo de um futuro diferente
do presente. Assim, vivenciando novas experiências escolares, pautadas no respeito, na
autonomia e na responsabilidade, o adolescente pode “desenvolver novas formas de se re-
lacionar consigo mesmo e com o mundo que o cerca, possibilitando olhar a realidade com
expectativas e oportunidades que antes não eram percebidas como possíveis” (PADOVA-
NI; RISTUM, 2013b, p. 163).
Nesse contexto, a figura do professor se torna extremamente importante, pois é ela
quem promove a conexão do adolescente com a escola, podendo enriquecer as experi-
ências escolares (BRONDANI; ARPINI, 2019). Ainda que o cenário do ensino-aprendi-
zagem possa se apresentar como desafiador dentro da privação de liberdade, em especial
pelos atravessamentos institucionais, da vulnerabilidade social e das situações de violência
que permeiam a vida dos alunos, a ação do professor pode contribuir com experiências
escolares mais bem sucedidas para os adolescentes. Para isso, esses profissionais têm cons-
truído sua prática “questionando seus valores, fortalecendo convicções pedagógicas, rein-
ventando e criando novas estratégias, propondo soluções que permitam superar as adver-
sidades e melhorar o processo de ensino-aprendizagem” (BISINOTO, 2017, p. 49). Tendo
isso em vista, questiona-se: como é ser professor na socioeducação e, mais especificamente,
em uma unidade de internação? Que afetos, emoções, sentimentos e pensamentos essa
prática profissional mobiliza?
Tendo como norte esses questionamentos, será aqui relatada uma experiência de ação
realizada com professores de uma escola no contexto da socioeducação, situada em uma

127
unidade de cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade. Essa ex-
periência integra um conjunto de ações que resultam de um convênio de cooperação
técnica firmado entre o Ministério Público do RS (MP), a UFSM e a FASE, com início
no ano de 2014. O convênio, vinculado à Pró-reitoria de Extensão da UFSM, tem como
objetivo geral o aprimoramento das atividades de socioeducação, as quais, por si só, já se
constituem num grande desafio.
Nesse sentido, pautados pela garantia dos Direitos consagrados pelo ECA (BRASIL,
1990), as atividades realizadas pelo convênio sempre tiveram como objetivo qualificar e
ampliar tanto as diferentes ações quanto os diferentes atores e saberes que circundam o
contexto da socioeducação, em especial quando esta envolve a privação de liberdade, me-
dida de maior gravidade. Por se tratar de uma instituição de caráter fechado, arejar os
olhares e as ações realizadas são uma aposta para a construção da perspectiva da socioe-
ducação, sobretudo aquela prevista pelo SINASE (BRASIL, 2006). O convênio contempla
cinco eixos prioritários: conhecendo a realidade do CASE-SM e dos CAS-SM; processos
gerenciais; integrando e fortalecendo os saberes técnicos; (re)criando espaços socioedu-
cativos; e entrelaçando os fios: adolescentes e família. Para alcançar os eixos propostos,
diferentes departamentos da universidade foram se inserindo ao decorrer do tempo, de-
senvolvendo atividades com os atores envolvidos – adolescentes, socioeducadores, equipe
técnica, familiares e professores.
Para exemplificar, mencionamos algumas das atividades realizadas pelo convênio: ofi-
cinas de produção audiovisual, oficinas de leitura, oficinas de teatro, atletismo, criação de
mandalas com jardinagem, grupo com familiares, assessoria à equipe técnica e aos socio-
educadores. A fim de agregar e compartilhar as diferentes ações realizadas, o convênio
opera com um Grupo de Trabalho que se reunia mensalmente nas dependências da Pró-
-Reitoria de Extensão da UFSM, momentos nos quais se discutiam as propostas em desen-
volvimento, novas articulações e outros grupos que iam se agregando com novas ações. A
partir disso, prevê-se que, através de uma abordagem interdisciplinar externa à instituição
fechada, pode-se aprimorar o trabalho da socioeducação. Seminários avaliativos também
foram realizados, nos quais as ações desenvolvidas foram compartilhadas e novos rumos
foram traçados. A proposta do convênio, a sua operacionalização e o leque de ações rea-
lizadas pode ser encontrado no capítulo publicado por Moraes, Arpini e Janczura (2020).
Tendo em vista esses aspectos, este capítulo tem como objetivo apresentar as ações que
foram realizadas junto aos professores da escola que atende os adolescentes que cumprem
medida socioeducativa de privação de liberdade no CASE-SM.

A PROPOSTA DO GRUPO: ASPECTOS METODOLÓGICOS

A ideia de propor um grupo com os professores da escola surgiu a partir de outra ação,
realizada em 2016, por professoras dos departamentos de Psicologia e de Serviço Social
da UFSM. Na ocasião, as docentes de Psicologia e Serviço Social desenvolveram uma
atividade de assessoria ao CASE. Esta atividade teve como ponto de partida a realização

128
de assessorias com a equipe técnica e os socioeducadores do CASE. A partir dessa ação,
houve uma aproximação por parte dos professores, em especial pela direção da escola,
que manifestou o interesse de serem também inseridos numa proposta de assessoria. Essa
experiência se constituiu num contraponto importante para as assessoras, que foram sur-
preendidas pela prática docente realizada na escola, permeada por reflexões, iniciativas e
por uma forma de se relacionar com os adolescentes diferente da que se apresentava em
outros setores da instituição. Existia, no contexto da escola, o que Mehry (2002) define
como trabalho vivo ou, como Espinosa (1980) diria, uma potência de ação, dois aspectos
muito significativos para a consolidação da socioeducação.
Ainda que, nesse momento, a escola funcionasse dentro da instituição, ocupando uma
parte do andar térreo de uma das galerias, o ambiente e as relações se apresentaram sig-
nificativamente diferentes, com um grupo que se permitia ousar novas práticas, apesar de
todo aparato prisional que os contornava. Pode-se identificar, ainda, que os professores
tinham conhecimento das legislações que norteiam as práticas socioeducativas, e busca-
vam superar os impasses, trazendo seus desafios e, ao mesmo tempo, suas estratégias de
enfrentamento das problemáticas. Observou-se, também, a realização e o cuidado com
datas significativas e a comemoração delas, e também da abordagem de temas difíceis
como a morte (WITT; ARPINI; JANCZURA, 2020). A partir desta primeira experiência,
foi articulada uma nova proposta de trabalho, em 2019, com os professores, com o objetivo
de proporcionar um espaço de reflexão, trocas e discussões sobre a experiência de educar
adolescentes em privação de liberdade. A proposta foi apresentada à diretora e à coordena-
dora pedagógica no início do semestre letivo de 2019 e obteve não só o aceite das mesmas,
como também abertura e apoio na sua concretização.
A escola, como cenário da ação, em sua apresentação, já evidencia o investimento da
equipe de profissionais: após alguns corredores mais cinzentos e algumas grades com ca-
deados grandes, um corredor estreito leva a um bloco colorido, com cartazes, trabalhos e
atividades nas paredes, cadeiras coloridas, uma enorme estante de livros, espaço com al-
mofadas para leitura, entre outros elementos que tornam o ambiente leve, alegre e afetivo.
De imediato, pode-se pensar essa atmosfera diferenciada da escola como algo que subverte
a lógica ainda predominantemente punitiva e segregacionista de muitas instituições de
cumprimento de medida de privação de liberdade para adolescentes – que, em sua apresen-
tação, ainda se assemelham a uma prisão.
Nesse cenário, os encontros do grupo ocorreram de forma mensal, sempre às quar-
tas-feiras após o término da aula (período já reservado para reuniões e formações), com
duração aproximada de 50 minutos. A estruturação das temáticas a serem abordadas nos
encontros foi sendo construída de acordo com as demandas apresentadas pelos participan-
tes, ao longo do período de duração da ação, buscando sempre a escuta como principal
aspecto norteador na condução do grupo. Para construir o diálogo e o espaço de trocas,
foram utilizadas algumas dinâmicas de grupo, com propostas de colagens, escritas ou ví-
deos para disparar a discussão.

129
No total, foram realizados seis encontros com o grupo. O primeiro encontro coincidiu
com uma confraternização de Dia das Mães que não tinha sido finalizada a tempo, logo,
a mestranda facilitadora do grupo pode participar de um momento bastante afetivo da
equipe como observadora, iniciando sua inserção no ambiente da escola. Já no segundo
encontro, foi possível colocar em prática a proposta, tendo um momento de apresentações
e, em seguida, uma pergunta norteadora, cuja resposta cada participante poderia escrever
em um cartaz: “como é, para vocês, educar adolescentes em privação de liberdade?”. A
temática do terceiro encontro foi “os desafios da educação na privação de liberdade”, abor-
dada através de uma conversa com perguntas disparadoras (“O que é um desafio? Qual é
o maior deles? Como enfrentá-lo? Como tem sido?”).
Após a temática dos desafios, interpôs-se a necessidade de abordar as potencialidades
do trabalho docente na socioeducação, tema do quarto encontro, no qual foi proposto que
cada um compartilhasse, por meio da escrita, uma boa história de sua trajetória docente.
Houve uma troca de histórias (sem identificação de autoria) e a leitura das mesmas, mo-
mento que trouxe lembranças, diversão, mobilização de emoções e reflexões. No quinto
encontro, a fim de abarcar a identidade profissional na discussão, construiu-se um painel
com recortes de revistas, com o seguinte eixo norteador: “quem eu sou como professor na
socioeducação?”. O painel foi exposto no corredor da escola, para que os alunos pudessem
vê-lo e interagir com os professores a respeito dele. Por fim, no sexto e último encontro, as-
sistiu-se a um trecho do documentário “Nunca me sonharam” (RHODEN, 2017), seguido
por uma conversa de fechamento dos encontros.

SER PROFESSOR(A) NA SOCIOEDUCAÇÃO:


REFLEXÕES E CONSTRUÇÕES COLETIVAS

Entende-se que nem sempre é simples adentrar em um contexto institucional e promo-


ver um espaço de reflexão sobre práticas profissionais, sobretudo por conta da rotina e da
organização já instituídas. É preciso escutar não só as pessoas, como também o espaço e as
relações, a fim de construir um único fio condutor, pelo qual é possível mobilizar questões
e promover novas construções coletivas: o vínculo. Assim, em um local como uma institui-
ção de cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade, esse fio condutor
se torna ainda mais importante, a fim de proporcionar a confiança necessária para o bom
andamento de um grupo.
Nesse sentido, a partir da inserção na escola e do início da ação, observou-se bastante
abertura e adesão à proposta por parte dos profissionais da escola, de forma que os encontros
decorreram com boa participação, motivação, entusiasmo e afetividade entre os membros
do grupo. Essa atmosfera possibilitou a emergência de temáticas importantes e a expressão
de sentimentos e ideias relacionados ao cotidiano na escola, como, por exemplo, os desafios
enfrentados nesse contexto. A palavra “desafio” apareceu com predominância no cartaz pro-
duzido pelo grupo no segundo encontro, fato que direcionou a conversa do terceiro encontro,
a fim de melhor explorar esses desafios e que questões estariam implicadas neles.

130
Um desafio trazido por uma professora, e que teve a concordância dos demais, foi o
mal-estar em se deparar com muitas grades na instituição, afirmando que a adolescência
não combinaria com encarceramento, uma vez que a juventude lhe remete à ideia de li-
berdade. Nessa mesma direção, o grupo relatou algumas dificuldades nas intermediações
entre a escola e a “casa” (forma como chamam a instituição CASE), no que concerne às
burocracias, às regras, aos interesses, aos procedimentos e às relações. Em relação a isso,
a busca pelo diálogo e pela mediação é constante, a fim de obter os recursos necessários à
realização das atividades na escola e fazer a manutenção das relações dentro da instituição.
Além disso, outras questões que o grupo considerou de difícil manejo foram colocadas,
como os relatos que os adolescentes acabam por trazer durante as aulas, que englobam,
muitas vezes, experiências de vida perpassadas pela violência e pela exclusão social. Tra-
ta-se muitas vezes de falas carregadas de sofrimento, de vivências difíceis ou, até mesmo,
de pouca esperança e falta de perspectivas para o futuro fora da instituição. Algumas pro-
fessoras trocaram, durante o grupo, suas experiências com essa escuta, expressando que,
ao mesmo tempo em que se sentem bem por serem vistas como alguém capaz de escutar e
compreender, sentem-se em dúvida quanto à forma de lidar com a situação. Nesse sentido,
ganhou destaque a palavra “impotência”, sentimento identificado por elas como presente
não apenas nesses momentos de escuta, mas também em tantos outros momentos. In-
clusive, foi quando questionados sobre qual seria o maior dos desafios enfrentados que a
palavra “impotência” surgiu e ganhou força na discussão.
Nessa conjuntura, o grupo demonstrou reconhecer a peculiaridade do trabalho que de-
sempenham, ressaltando, em diversos momentos, que aquela escola não seria igual às ou-
tras da rede de ensino. A própria organização da escola já é, em si, diferenciada: as séries
são organizadas por etapas, as turmas são compostas por poucos alunos, há a presença de
socioeducadores acompanhando os adolescentes e há uma série de regras e protocolos que
os professores têm de se adaptar ao se inserirem nessa escola. Além de terem suas vidas
marcadas pela exclusão e pela vulnerabilidade social, e estarem em condição de cumpri-
mento de medida socioeducativa, muitos dos alunos mantinham uma relação conturbada
com o ambiente escolar anteriormente – ou essa relação era até mesmo inexistente. Esses
aspectos exigem dos professores um atendimento mais individualizado, que compreenda
seus contextos de vida e que atenda às reais necessidades dos alunos.
Logo, os participantes do grupo relataram uma frustração diante do pouco retorno que
julgam ter dos adolescentes no que tange à aprendizagem. Nesse sentido, os professores
manifestaram o despreparo com o qual adentraram a instituição, e também alguns precon-
ceitos, que foram quebrados no decorrer da inserção na escola e do envolvimento com o
trabalho e com os adolescentes. Contudo, aos poucos, puderam se adaptar ao ritmo, às sin-
gularidades e às demandas dos adolescentes, tendo como norte a consideração do contexto
social dos mesmos. Bisinoto (2017) destaca que essa sensação de despreparo é corroborada
pelo fato de a formação inicial dos professores não contemplar tradicionalmente a temáti-
ca da socioeducação, e que essa “preparação” acaba acontecendo pela prática, a partir da
necessidade cotidiana de superação de desafios e de desenvolvimento do trabalho.

131
Tendo em vista esses aspectos, embora a sensação de impotência tenha sido descrita
como sendo o maior dos desafios, o grupo colocou o retorno afetivo significativo que tem
dos educandos como fator de motivação para o trabalho. Ainda que tenha um caráter
bastante desafiador, a equipe de profissionais da escola consegue perceber o espaço esco-
lar como um espaço de liberdade, criatividade, esperança, construção de perspectivas de
vida e desenvolvimento de potencialidades. Nessa mesma direção, Zanella (2010) pontua
que o atendimento escolar diferenciado e individualizado e a superação das dificuldades
escolares anteriores à medida, juntamente, trazem avanços educacionais aos adolescentes
e fazem com que, em geral, eles gostem de estudar durante a privação de liberdade.
A partir disso, foi preparado o encontro seguinte com o objetivo de fazer um contra-
ponto à impotência, resgatando a potência das boas histórias já vividas pelos professores
dentro do ambiente escolar. Nesse encontro, cada participante escreveu, em um papel,
uma situação que tenha lhe marcado, emocionado, inspirado ou motivado e, em seguida,
trocaram entre si para fazer a leitura. A fim de motivar a escrita das histórias, a mestranda
citou algumas situações ou alguns episódios que pôde observar ou escutar, e que conside-
rou como potências no trabalho docente, como o projeto de rádio escola, a criação de um
campeonato de “stop” (jogo) com os adolescentes, entre outros. A partir dos registros da
mestranda, seguem alguns exemplos de escritos dos participantes neste encontro: “até o
simples fato de eles mudarem de etapa e virem me visitar na aula me emociona muito”;
“receber um feedback dos alunos sem perguntar: - professora, nós gostamos da aula”; “um
aluno que me pergunta: - prof., vocês vão sentir saudade de mim? Porque eu vou sentir
saudade da escola”. Foi um momento de reconhecimento das potencialidades não só dos
adolescentes de acordo com as situações relatadas, mas também de pequenas e simples
ações ou intervenções dos professores que tiveram impacto em seu trabalho com os alunos.
Cabe aqui relatar que a mestranda facilitadora do grupo e a professora orientadora tive-
ram a oportunidade de participar de uma festa junina, organizada pela equipe da escola,
para os adolescentes. A partir do que foi observado, pode-se considerar esse momento
também como uma “boa história”, uma “história de potência”, tal como as histórias rela-
tadas pelos professores no grupo. Era evidente, naquele espaço, o investimento, o afeto e a
alegria depositados na decoração, nos alimentos, na música, nas conversas, etc. Foi percep-
tível a construção caprichosa e cuidadosa de um ambiente divertido para os adolescentes,
de modo que os mesmos estavam participando ativamente do espaço: alguns adolescentes
eram os DJ, outros eram os fotógrafos da festa, outros ajudavam com as comidas, entre ou-
tras funções. A construção desses espaços torna-se uma grande potencialidade do trabalho
docente na socioeducação, uma vez que possibilita a vivência do afeto, da autonomia, da
espontaneidade, da diversão e dos vínculos.
Além disso, os desafios enfrentados, as boas histórias e tantos outros aspectos compõem
a identidade profissional de cada membro da equipe, tópico que foi abordado no quinto
encontro. Com recortes de revista espalhados em uma mesa, os participantes puderam
fazer, cada um, sua própria colagem, expressando “quem sou eu como professor(a) na
socioeducação?”. A atividade permitiu o reconhecimento dos diferentes atravessamentos

132
que constituem o fazer docente de cada um: suas histórias de vida, suas experiências esco-
lares pregressas, a forma como se olha e como se é olhado pelo outro, suas formações, seus
desejos, projetos e ideais, suas visões de mundo e suas crenças, entre outros. Essa atividade
possibilitou a expressão de questões mais pessoais da equipe, igualmente importantes para
enriquecer as trocas dentro do grupo e melhor compreender aspectos do fazer profissional.
Após essas colagens serem expostas sem autoria em um painel, no corredor da escola,
cumpriram seu objetivo de instigar e inquietar os alunos, promovendo interações, diálogos
e afetos entre eles e os professores.
Por fim, no sexto e último encontro, o documentário “Nunca me sonharam” (RHO-
DEN, 2017) suscitou grande mobilização de sentimentos e uma importante discussão
acerca do impacto da educação, sobretudo do professor, na vida e no futuro de crianças e
adolescentes em situação de vulnerabilidade social no Brasil. Além de trazer, para a con-
versa, a triste realidade desse público, o grupo se sensibilizou e se motivou com relação
ao potencial que o trabalho docente pode alcançar, ainda que as preocupações e angústias
constantes possam desmotivar em momentos específicos. A conversa de fechamento dos
encontros contou com um retorno bastante positivo por parte da equipe, que relatou ter
sido de grande importância o espaço de fala, escuta, trocas, vínculos, afetos e reflexões.

ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

Construir parcerias interinstitucionais tem sido um desafio importante para a formação


universitária, e em especial para a consolidação de práticas extensionistas. Nesse sentido,
uma das contribuições mais significativas dessa experiência foi fortalecer as relações entre
a universidade e a sociedade, em especial as instituições de privação de liberdade, foco des-
ta ação. A socioeducação carrega algumas similaridades com o contexto prisional, sendo
que essa aproximação tem desafiado cotidianamente os atores envolvidos nesse cenário.
Assim, estreitar os vínculos entre a universidade e essa realidade se constituiu num gran-
de desafio, no qual escola e universidade saem fortalecidas em termos de conhecimento,
aprendizagem e possibilidade de transformação social.
O espaço do grupo de professores se constituiu em um espaço de escuta, de reflexão e de
discussão sobre a prática, além da ampliação da visão acerca de diversos aspectos da socioedu-
cação e do contexto de vida dos adolescentes. Acredita-se que proporcionar espaços como esse
fortalece a equipe em seu propósito e em sua capacidade de construções coletivas na socioedu-
cação. Afinal, trabalhar com os profissionais da escola é, também, potencializar os efeitos da
educação na vida dos adolescentes que cumprem a medida de privação de liberdade.
Nessa direção, os professores mostraram uma capacidade de empatia e de cuidado nas
relações com os adolescentes, que certamente merece ser evidenciada com muito mérito.
Sabe-se que dificuldades no percurso escolar desses adolescentes fazem parte da realidade,
de modo que a escola está, para eles, muitas vezes destituída de valor. Assim, ressignificar
essa relação evidencia a potência dos professores superando as impotências que o cotidia-
no apresenta. Eis aí uma das razões para ter esperança.

133
Para a formação universitária, adentrar no contexto das problemáticas sociais é ul-
trapassar barreiras, ganhar novos contornos e oportunizar uma capacidade de reflexão e
aproximação com os desafios que se apresentam no cotidiano. Isso se torna ainda mais
importante tendo como palco dessas problemáticas o Brasil, um país com enormes de-
sigualdades sociais e econômicas, que colocam uma grande parte da infância e da ado-
lescência em contextos de vida permeados por muitas vulnerabilidades, situações que se
apresentam como armadilhas cotidianas. Ciente dessa realidade é que o ODH da UFSM
vem buscando, através da Extensão, fomentar a importância da busca e da garantia dos
Direitos Humanos.

134
REFERÊNCIAS

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136
ESCapando do ECA:
no bom sentido

José Luiz de Moura Filho


Dione Raquel Zoch Viñas
INTRODUÇÃO

Em 2019, quando se implementou o Projeto de Extensão Espaços de Educação, Socia-


lização e Cidadania (ESC), o Programa de Extensão Núcleo Interdisciplinar de Interação
Jurídica Comunitária (NIIJuC) completava 15 anos de atuação, com foco em cinco eixos
(depois denominados frentes): Crianças e Adolescentes; FASE/Presídio; Sem terra/sem
teto; Informais e Indígenas/quilombolas, oportunidade em que o ODH, da PRE/UFSM,
lançava seu primeiro edital específico.
Frise-se que, nos dois anos anteriores, 2017 e 2018, o NIIJuC já se havia voltado às ques-
tões atinentes ao eixo Crianças/Adolescentes, primeiro coordenando o Projeto EC(QU)
ALIZANDO, por meio do qual, em parceria com colegas dos Departamentos de Psicolo-
gia e Serviço Social, implementaram um curso de capacitação para Conselheiros Tutelares
dos municípios jurisdicionados pela Comarca de Santa Maria (RS), e, na sequência deste
– apenas como colaborador –, na divulgação do trabalho destes profissionais, inclusive por
meio de programa semanal, na Rádio UNI FM.
Tendo em vista isso, e ante o destaque constante do edital ODH/2019, consistente
na possibilidade de se vincular a proposta a um dos convênios específicos mantidos pela
UFSM na área de Direitos Humanos, buscou-se contato com a Promotoria de Justiça
Especializada (Infância e Juventude/Ato Infracional), em Santa Maria (RS), a fim de se
discutir as possibilidades de atuação no município, em termos de prioridades, já que o
Ministério Público Estadual era signatário do Termo de Cooperação Técnica n.º 11/2014,
firmado, também, com a FASE, oportunidade em que se chegou à conclusão de que uma
das carências enfrentadas, no território, era a inexistência de oferta de espaços adequados
para o cumprimento de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), uma das modalidades
mais brandas de Medida Socioeducativa (MSE).
Dessa forma, passou-se à elaboração do projeto, que tomou o nome, sinteticamente, de
ESC, que, além de ser a sigla para Espaços de Educação, Socialização e Cidadania, é uma refe-
rência à tecla do computador que permite “escapar” da tela onde se está, ou seja, buscou-se
atribuir um sentido figurado à abreviatura, indicando não uma fuga – objetivamente ou
subjetivamente falando – das causas que levaram ao cometimento de ato infracional, mas
uma possibilidade de os socioeducandos vislumbrar um outro ambiente, mais pacífico,
acolhedor e promissor, em termos de futuro, como a seguir se verá. Mas, antes, é necessá-
rio compreender, minimamente, no que consiste a PSC.

DO DIREITO E DOS FATOS

Para adaptar-se às disposições da Convenção Internacional dos Direitos da Criança,


vigentes no país a partir de novembro de 1990, o Brasil editou a Lei Federal n.º 8069/90,
que instituiu o ECA, fruto da regulamentação do Artigo 227 da Constituição Federal de
1988, com base na Doutrina da Proteção Integral.

138
Dentre as mudanças trazidas pela nova legislação, destaca-se a separação dos casos so-
ciais daqueles que envolvem conflitos de natureza jurídica, sendo que os primeiros devem
ser abordados no âmbito das Políticas Públicas e da solidariedade social, enquanto que
estes devem ser resolvidos na esfera da Justiça. Neste último caso, com a observância ao
devido processo e a todas as garantias que isso implica em termos de proteção aos adoles-
centes a quem se atribua a autoria de ato infracional.
Tais mudanças, porém, implicaram no questionamento acerca de qual a instância ade-
quada para a condução de ambas as situações, tendo-se buscado fugir à recorrente esfera
administrativa pelas sabidas deficiências em termos de estrutura e funcionamento, optan-
do-se, assim, pela criação de um órgão não jurisdicional autônomo para tratar das crianças
e dos adolescentes em situação de risco, e encaminhando-se à Justiça Especializada os
casos de “conflito com a lei”.
Neste último caso, em que pese a opção pela judicialização, vê-se da legislação que
se trata de última alternativa, ou seja, sempre que houver possibilidade de composição
através de mediação, essa será proporcionada, tendo sido instituídos vários programas, no
âmbito do Poder Público, pautados na chamada Justiça Restaurativa. Dentre outras ini-
ciativas, consta do Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul
(2016/2025), estabelecido pela Resolução CEDICA/RS 145/2016, no Eixo 2 – Qualificação
do Atendimento Socioeducativo, a Estratégia 2.9, consistente na construção, ampliação e fortaleci-
mento de parcerias com entidades externas, para fins de execução de cursos de capacitação, profissio-
nalização e oferta de vagas para trabalho educativo/estágios, para adolescentes/jovens adultos inse-
ridos no Sistema de Atendimento Socioeducativo, conforme a Lei da Aprendizagem nº 10.097/2000.
Do ponto de vista dos serviços de apoio – especialmente de natureza social – disponíveis
no território de atuação desses “mediadores”, observa-se que, embora muitas vezes existen-
tes, eles não trabalham em rede, propriamente, havendo mesmo, em alguns casos, sobrepo-
sições e, pois, deseconomias, sendo indispensável, num primeiro momento, mapeá-los sob a
forma de diagnóstico e, ao depois, conectá-los com vistas a uma atuação mais eficaz.
No caso do território sob a jurisdição do Juizado Regional da Infância e Adolescência,
município de Santa Maria (RS), por exemplo, trata-se de mais de 40 municípios, sendo 17
deles sedes de comarcas, dos quais metade conta com IES, as quais podem constituir-se
em espaços para a Prestação de Serviços à Comunidade – PSC, já que conjugam Ensino,
Pesquisa e Extensão, ou seja, educação, fator de abertura para o mundo do trabalho e, pois,
relações sociais. A outra metade dos municípios sedes de comarca, que não possui IES
no sistema presencial, situa-se a menos de 50 km destas, ou seja, para um país de dimen-
sões continentais como o nosso, pequenas distâncias, mas que abrigam grandes diferenças
sociais e econômicas, carentes, assim, de coesão territorial. que as novas tecnologias de
informação e comunicação, hoje tão utilizadas na educação, podem suprir.
Sem dúvida, o consumo desenfreado de bens supérfluos, estimulado pela mídia, a servi-
ço do capital, leva a boa parte da prática de atos infracionais, assim como questões de gê-
nero e raça, ou seja, conflitos de classe mesmo, que Estados fracos e governos autoritários
– hoje presentes no mundo como um todo – tentam, se não ignorar, tratar como se fossem

139
conjunturais, quando, na verdade, são estruturais, especialmente em países colonizados,
como o nosso, propiciadores de uma sociedade extremamente desigual e, pois, injusta!
Qualitativamente, as iniciativas, em todas as esferas administrativas, especialmente no
âmbito federal, como a Emenda Constitucional n.º 95 (teto de gastos); a Reforma Traba-
lhista (que aprofundou o desemprego); o Pacote Anticrime; a Reforma Previdenciária; as
discussões sobre a redução da maioridade penal; as ressuscitadas propostas de Lei da Mor-
daça e Escola sem Partido; a reação da Câmara dos Deputados à decisão do STF – mesmo
sem repercussão geral – sobre o aborto, para ficar nos temas mais polêmicos que tem sido
pautados pelo Congresso Nacional, atingem o âmago dos problemas por esses agentes
enfrentados, que não é senão fruto das enormes desigualdades sociais que o país vê, nova-
mente, aprofundarem-se. Isto sem falar na crise econômica que já assola o Rio Grande do
Sul há mais de 4 anos, e que tem culminado no desmonte do estado, em especial na área
de segurança pública.
A legislação que decorreu da Lei Federal 8.069/90 – ECA que, em seu Artigo 4º,
estabelece como dever da família, da sociedade e do Estado, a proteção integral a esses
seres em formação, voltou-se mais às medidas socioeducativas a serem aplicadas quan-
do do cometimento de atos infracionais, aspecto que tem gerado muita polêmica - e do
que decorrem propostas de redução da maioridade penal (de 18 para 16 anos) –, sendo
menos frequentes mecanismos preventivos e mesmo alternativos à judicialização dos
conflitos envolvendo esse segmento.
A falta de recursos financeiros e de pessoal impede a criação e manutenção de serviços
voltados à proteção integral de crianças e adolescentes, e, mesmo quando esses existem,
muitas vezes não funcionam sob a forma de rede, conectados, o que prejudica a efetivação
das medidas adotadas, quer por Conselheiros Tutelares, quer mesmo pelas demais institui-
ções responsáveis pelas Políticas Públicas a elas destinadas, como os Centro de Referência
Especializado em Assistência Social (CREAS), no caso do Rio Grande do Sul.
Dentre os princípios e as diretrizes do já citado Plano Estadual de Atendimento Socioe-
ducativo do Rio Grande do Sul (2016/2025), encontra-se a “primazia das medidas em meio
aberto”, quais sejam, a Prestação de Serviços à Comunidade – PSC e a Liberdade Assistida
– LA e, nesse mesmo documento, uma das estratégias (1.19) preventivas previstas no Eixo
2 – Qualificação do Atendimento Socioeducativo - consiste em Mobilizar instâncias do poder
público e da sociedade civil, visando à ampliação de unidades executoras destinadas ao cumprimento da
Medida Socioeducativa de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC).
A configuração da Política de Assistência Social em Santa Maria (RS) teve seu início
entre os anos de 2005/2006 e, atualmente, encontra-se em gestão plena no que diz respeito
à oferta dos serviços de proteção da Política de Assistência Social. O Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) passa a ser o instrumento de execução da Política de Assistência
Social em território nacional, sendo as unidades estatais Centro de Referência em Assis-
tência Social (CRAS) e CREAS, responsáveis em ofertar os serviços de proteção social
básica e especial de média complexidade.

140
Em relação aos serviços ofertados no CREAS, a grande alavanca se dá, no município
de Santa Maria, a partir da Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, em 2009,
pois, antes, aqueles eram gerenciados por programas estratificados e de forma fragmenta-
da, atendendo demandas específicas, não considerando a família como perspectiva princi-
pal de atendimento.
Inserida nesta política municipal de atendimento, a medida socioeducativa comporta
suporte técnico aos adolescentes – e às suas famílias – no acompanhamento do andamen-
to do PIA, o qual deve garantir a efetivação dos objetivos daquela, que se referem tanto
à responsabilização quanto à proteção social do adolescente. O profissional de referência
– orientador socioeducativo – deverá supervisionar o adolescente durante seu período de
cumprimento, encaminhando, periodicamente, à autoridade judiciária, relatórios circuns-
tanciados, bem como acompanhá-lo nos procedimentos – especialmente audiências – de
justiça instantânea, realizados no âmbito do Juizado da Infância e Juventude, além de rea-
lizar o chamado acompanhamento social, por meio de visitas domiciliares e institucionais,
sem falar na sua inserção em outros serviços (saúde, educação, profissionalização, etc.) e
programas socioassistenciais e, também, políticas públicas setoriais.
O profissional que atua na socioeducação deverá possibilitar acessos e oportunidades
para ampliação do universo informacional e cultural, o desenvolvimento de habilidades
dos socioeducandos, fortalecendo, assim, a convivência familiar e comunitária. O CREAS
atende à demanda das medidas socioeducativas na modalidade Prestação de Serviço à
Comunidade (PSC), imposta a jovens/adolescentes, por meio de profissionais que seguem
normativas estabelecidas pelo SINASE, a partir de 2012, sendo determinante, para o êxito
das mesmas, a elaboração do diagnóstico do perfil do adolescente, da forma mais minucio-
sa possível, no PIA.
Contudo são analisadas, a priori, suas aptidões, almejando, com isto, uma probabilidade
menor de que ele não cumpra esta medida socioeducativa, de tal modo que é necessário
trabalhar a prevenção em todos os sentidos, com a elevação da autoestima, para que – caso
seja necessária a imposição da mesma –, ao final do procedimento, esteja mais preparado
para a vida em comunidade e consciente de que seus atos repercutem diretamente em suas
relações familiares e sociais. Ou seja, ao cometer o ato infracional, são responsabilizados, e
depende deles – em grande medida - o cumprimento da PSC, para, assim, ser restabelecida
legalmente sua liberdade. Conforme estabelecido no Artigo 117 do Estatuto da Criança e
Adolescente – ECA, na Seção IV:

A Prestação de Serviço Comunitário consiste na realização de tarefas gratuitas de


interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades assis-
tenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em
programas comunitários ou governamentais.
Parágrafo único: As tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do adolescente,
devendo ser cumpridas durante jornada máxima de oito horas semanais. Aos
sábados e domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a fre-
quência à escola ou à jornada normal de trabalho (BRASIL, 1990).

141
Em Santa Maria, hoje, sob a condução do CREAS, a MSE/PSC encontra-se, no mo-
mento, com 53 socioeducando(a)s, o(a)s quais, em função da pandemia do novo coronaví-
rus, vem(êm) sendo acompanhado(a)s através de visitas domiciliares e contatos telefônicos.
Para efetivar esta ação, o CREAS conta com técnicos preparados no sentido de dar o su-
porte necessário à demanda de PSC destes adolescentes/jovens, pois seus atos infracionais
são consequências de suas fragilidades familiares, muitas vezes não percebidas pela rede
social na qual este adolescente/jovem está inserido, sendo eles, à época: Coordenadora do
CREAS, a assistente social Ivone Fontoura; Gerente de Projetos, a pedagoga Dione Viñas;
Técnico em Saúde Mental, o bacharel em Direito Fabrício Palmeiro; e o psicólogo Igor Silva.
Foi com base nestes aspectos, de fato e de direito, que o Projeto ESC foi elaborado,
conforme a seguir relatado.

OS OBJETIVOS ESTABELECIDOS

De um ponto de vista mais geral, o objetivo do ESC é efetivar o caráter pedagógico das
medidas socioeducativas em meio aberto, o que deveria ser atingido por meio da persecu-
ção de uma série de outros desideratos, cuja metodologia se encontra, sucintamente, entre
parênteses, como segue:

1. estudar a legislação brasileira referente aos direitos das crianças e dos adolescentes,
à luz da doutrina e da jurisprudência, inclusive internacionais (Seminários);
2. discutir os principais problemas sociais do território, como habitação, saúde, educa-
ção, segurança, lazer, trabalho, renda e consumo (Documentários);
3. conhecer a estrutura e o funcionamento dos serviços destinados à proteção integral
às crianças, aos adolescentes e suas famílias ou entidades responsáveis, em especial
aqueles atinentes à Assistência Social (Visitas técnicas);
4. receber treinamento nos serviços a serem prestados (Minicursos);
5. incentivar a criação de oportunidades de atividades em grupo e convívio intergera-
cional, por meio de festas, feiras de trocas, gincanas, concursos, etc. (Oficinas);
6. propor a criação de equipamentos do tipo Centrais de Práticas Restaurativas nas
comunidades locais (Planejamento Participativo).

Em que pese constar do edital a observação de que os projetos deveriam ter caráter in-
terdisciplinar - razão pela qual se propôs a destinação de recursos para custeio de dois bol-
sistas – apenas uma cota/bolsa mensal foi deferida, tendo-se decidido, então, pela seleção
de estudante do curso de Ciências Sociais, área cuja formação atende – ainda que de forma
não específica – a maior parte dos conhecimentos relacionados à demanda proposta.
Embora a Medida Socioeducativa consista em execução de um serviço, a proposta não
implica, por certo, em substituição de mão de obra - especialmente aquela pouco qualifi-
cada, praticamente terceirizada, como limpeza e vigilância – mas, sim, em apresentar aos
socioeducandos o mundo do trabalho de uma forma mais lúdica e diversificada, associada

142
à educação, especialmente a informal, dada a natureza do ato infracional, qual seja, postu-
ras incompatíveis com a vida em sociedade.
Contatadas as parcerias consideradas, num primeiro momento, como identificadas com
o escopo do cumprimento de PSC na UFSM, foi realizada uma reunião com aquelas,
oportunidade em que cada uma das partes fez uma apresentação de sua instituição e atua-
ção, bem como foram discutidos quais espaços, dentro da UFSM, seriam mais adequados
às práticas da medida socioeducativa, levando-se em conta os atos infracionais cometidos,
faixa etária, gênero e grau de escolaridade do(a)s adolescentes, e os aspectos relativos à
periculosidade/penosidade/insalubridade do ambiente acadêmico, momento em que al-
gumas possibilidades foram excluídas, como o apoio em laboratórios, por exemplo.
A partir disso, um Termo de Parceria – simplificado – foi elaborado, para ser firmado
entre o responsável pelo setor/órgão da UFSM e a Coordenação do Projeto, onde o(a)
s adolescentes poderiam cumprir a PSC, basicamente o Jardim Botânico, o Planetário, o
PRAXIS, o Projeto Zelo, o Projeto Viva o Campus, a Orquestra Sinfônica, o Colégio Poli-
técnico, o Colégio Técnico-industrial, o Núcleo de Prevenção de Incêndios da Pró-Reitoria
de Infraestrutura (PROINFRA) e a Imprensa Universitária/Gráfica, vários deles frequen-
tados pela comunidade externa, configurando-se, então, não só a Prestação de Serviços à
Comunidade, mas efetivando-se, também, o caráter pedagógico das medidas, posto que
executadas em ambiente formativo/educativo.
Daqueles, apenas para os quatro primeiros se chegou a encaminhar adolescentes, sendo
que, no caso dos Projetos Zelo e Viva o Campus, por motivos não bem esclarecidos, em prin-
cípio, houve desencontro quanto ao local, horário e/ou servidor a quem se apresentar para
a atividade prevista; com a PROINFRA, ficou-se de estabelecer um treinamento (Brigada
de Incêndio), em fevereiro de 2020, mas a iminência da pandemia de COVID-19 acabou
por adiá-lo; e, quanto à Biblioteca, houve retorno da direção no sentido de que os servidores
decidiram não aderir à proposta, sem maiores justificativas, o que foi lamentável, pois, quem
sabe, no contato diário com livros, a curiosidade em desvendar tanto conhecimento ali depo-
sitado pudesse ser um estímulo à leitura, e, de consequência, o retorno aos bancos escolares.
Por outro lado, com setores em que a proposta/desafio foi muito bem recebida, como a
Orquestra Sinfônica, não tivemos a oportunidade de encaminhar adolescentes, pelo mesmo
motivo do ocorrido com a PROINFRA: a superveniência da pandemia.

FORMAÇÃO TEÓRICA MÍNIMA DA EQUIPE

Muito embora a natureza de “voluntariado” de que se revestem as atribuições dos fun-


cionários da UFSM, responsáveis por receber os socioeducandos nos espaços parceiros,
e mesmo que a atuação dos Conselhos Tutelares não exija uma capacitação profissional
específica, por óbvio que, em se tratando de pessoas em formação, é indispensável algum
tipo de qualificação, indisponível no âmbito do projeto, que de interdisciplinar passou a
disciplinar, com a seleção de apenas um bolsista, sendo necessário recorrer-se a convênios

143
com instituições públicas ou privadas (caso da ONG CEDEDICA), o que poderia ser evi-
tado, caso estivessem em curso medidas preventivas, como é o caso das Centrais de Práti-
cas Restaurativas nas Comunidades, notadamente na sua função de difusão da cultura da
paz, ainda pouquíssimo frequentes no município.
Vê-se, pois, que esse “agente social voluntário”, que o servidor da UFSM responsável
pelo setor de execução da PSC passou a encarnar, justamente por não se enquadrar em
categoria profissional, ofício ou carreira – da mesma forma que os Conselheiros Tutelares,
como dito, já que estes dizem respeito a uma realização de cunho pessoal, e não a uma sa-
tisfação íntima, a que comumente se chama vocação –, de regra, carece de conhecimentos
acerca não só da legislação, mas também dos meios que esta coloca à sua disposição para
a consecução de suas funções. Sem falar no fato de que, em se tratando de um trabalho
voltado a pessoas, normalmente, em situação de vulnerabilidade social, também aqueles
carecem de suporte, em especial teóricos e metodológicos, para tanto.
Estabelecidas as parcerias, inclusive no que tange à contribuição de cada um(a) dos(as)
órgãos/entidades, havia a previsão de se desenvolver momentos de capacitação, breves,
em torno de quatro (4) horas/um turno, cada: para os servidores da UFSM, lotados nos
espaços parceiros, básica, a fim de entenderem a natureza e o funcionamento das medidas
socioeducativas em meio aberto (especialmente PSC), e estabelecerem com o(a)s adoles-
cente(s) uma relação de troca respeitosa, tendo em vista sua condição de pessoa em forma-
ção, a ser ministrada pelos servidores do Centro de Referência Especializada em Assistên-
cia Social e do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDEDICA).
Da mesma forma, cientes da existência de uma experiência de mais de 20 anos,
então, junto à Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), a equipe, formada pelo Coordenador do Projeto (Prof. Dr. José Luiz de
Moura Filho) e pelos servidores tanto do CREAS Santa Maria (Dione Viñas, Fabrício
Palmeiro, Ivone Fontoura e Igor Silva) quanto do CEDEDICA (Fernanda Coimbra e
Graciela Ribeiro) deslocou-se a Porto Alegre (RS), onde foi recebida, em 8 de julho
de 2019, pela servidora técnica Magda Oliveira, coordenadora do Projeto PSC desde
2013, e demais membros, numa troca de informações bastante rica, em termos de
desdobramento das atividades, como os encontros mensais com os pais/responsáveis
pelo(a)s adolescentes, oportunidades em que os envolvidos no processo de socioedu-
cação trocavam impressões sobre o mesmo, bem como se procurava conhecer melhor
o contexto familiar e, pois, detectar eventuais medidas acessórias ao procedimento em
curso, a fim de se evitar a reincidência.
Tal encontro foi propiciado pela criadora do Projeto PSC – Profa. Carmem Maria Cray-
di –, então já aposentada, que esteve em Santa Maria (RS), naquele ano, para palestrar no
XIX Congresso Internacional-MOBREC/VI Seminário Internacional do IFF/ I Seminário Inter-
nacional da UFSM em Educação Popular, tendo-se agendado um encontro entre a mesma e a
equipe do ESC, momento bastante esclarecedor, em termos de exposição da trajetória – e,
de consequência, dos obstáculos/desafios- da experiência na UFRGS, que, só pelo tempo
de duração, já se pode considerar como exitosa.

144
Já para os socioeducandos, seriam proporcionadas duas formações: uma genérica, a fim
de que conhecessem a instituição, do ponto de vista dos limites e das possibilidades em ter-
mos de acesso a dependências e serviços, normas de convivência, etc.; e, outra, específica
para as atividades a serem desempenhadas nos mais diversos espaços parceiros; a serem
ministradas, a primeira pela equipe do projeto, e a segunda pelos servidores do setor/espa-
ço específico parceiro.
As atividades que seriam desenvolvidas nesses momentos deveriam ser subsidiadas por
textos básicos, envolvendo legislação e educação, para a condução dos seminários; bem
como pela exibição de filmes/documentários que propiciariam rodas de conversa, além
das visitas aos equipamentos de apoio em termos de assistência. Tanto quanto possível,
as atividades desempenhadas deveriam ser certificadas, como forma de registro e mesmo
para que os socioeducandos pudessem começar a elaborar um currículo com vistas à sua
trajetória futura, no mundo do trabalho.
Uma vez que o foco eram os adolescentes em cumprimento de PSC, mas alguns se
encontravam, também, em LA e havendo mesmo a possibilidade de inclusão, futura, de
jovens em acolhimento –, a Metodologia de abordagem dos temas iria variar conforme
aspectos pessoais, como gênero, idade, escolaridade, situação legal, etc.
Naquele momento, uma das questões limitantes – se pode dizer – da execução de PSC
num ambiente universitário, que não se revestisse de um caráter do tipo “substituição de
mão-de-obra barata”, era o fato de que muito(a)s do(a)s adolescentes socioeducandos
eram analfabetos funcionais, oportunidade em que surgiu a ideia de se buscar o apoio do
Curso Pré-Vestibular Práxis, o qual, contatado, manifestou interesse na proposta, pois
há muito pensavam em se impor o desafio da alfabetização. Desta forma, ficou ajustado,
junto à Vara da Infância e Juventude, a possibilidade de que parte da PSC fosse cumprida
sob a forma de frequência a aulas onde, de maneira transversal ao ler e escrever, temas
de interesse dos jovens fossem discutidos, bem como os intervalos de lanche servissem
de momentos de sociabilização.
Os encontros do projeto PRAXIS ocorreram, inicialmente, no espaço do CEDEDICA,
situado na rua Pinto Bandeira, n.° 180, tendo havido três encontros, mas logo se pensou
que, estrategicamente, no centro de Santa Maria, seria mais viável para o deslocamento
dos(as) jovens/adolescentes, então definiu-se que a antiga Reitoria da UFSM seria o espa-
ço mais adequado, pois era, também, a sede daquele Programa de Extensão.
Com caráter pedagógico e crítico-social, construído e mantido por meio da ação de
estudantes voluntários de alguns cursos da UFSM (Geografia, Ciências Sociais, His-
tória, Ciências Biológicas, etc.), a experiência junto ao PRAXIS permitiu a criação de
vínculos – entre - e com o(a)s socioeducando(a)s, a partir de encontros que proporcio-
naram uma diversificada troca de aprendizado, uma vez que estes relatavam suas difi-
culdades em termos de enfrentamento do cotidiano – muitas vezes sem apoio familiar
para o crescimento social –, pautado por uma escola que parecia um sonho distante, o
que fazia com que o interesse pela mesma se perdesse em meio a uma rotina de anseios
e buscas por uma condição de vida melhor.

145
Desta maneira, os encontros seguiram conforme as necessidades que surgiam, por meio
de questionamentos que o(a)s socioeducando(a)s traziam e experiências que os voluntários
achavam necessário, como, por exemplo: já que a unanimidade do(a)s adolescentes/jovens
gostava de músicas, tendo preferência por rap e funk, construiu-se uma aula sobre os mo-
vimentos musicais; falou-se sobre Bossa Nova, MPB, samba, rock, etc., criando-se, assim,
novas possibilidades de conhecimento, indo ao encontro de interesses que perpassam suas
perspectivas de convivência e integração social.

DA OPERACIONALIZAÇÃO DO PROJETO

Como o deslocamento dos socioeducandos era feito em transporte coletivo, custeado


pelo município, e, quando os ônibus adentram o campus da UFSM, fazem um trajeto que
não passa exatamente em frente aos locais “conveniados”, estabeleceu-se, junto ao Setor
de Transporte – também vinculado à PROINFRA –, a possibilidade de se conceder creden-
ciais para que aqueles pudessem chegar a locais mais distantes. Mas mesmo este transporte
interno obedece a trajetos que faz com que aqueles que não estão familiarizados com a
estrutura do campus acabem se perdendo, percorrendo longas distâncias, muitas vezes sem
passar por algum prédio – ou mesmo pessoa – que possam auxiliar na orientação espacial.
Por esta razão, também foi contatado o Setor de Vigilância (PROINFRA), no sentido de
comunicar aos servidores deste (na sua esmagadora maioria terceirizados) da existência do
projeto e, pois, da circulação de jovens não universitários, para se evitar eventual incidente
com componente discriminatório, pois, infelizmente, abordagens violentas a adolescentes
pobres – normalmente negros – são comuns em ambientes elitistas, como ainda são os
campi universitários.
O fluxo do Projeto era basicamente o seguinte: às segundas-feiras à tarde, as partes se
reuniam, no CEDEDICA, para conferência dos dados (números de adolescentes enca-
minhados na semana anterior, horas cumpridas, setores de destinação, etc.), bem como
discussão acerca da colocação dos novos, pois que as audiências em que eram definidas as
medidas socioeducativas se realizavam às terças-feiras, e, depois disso, as equipes de profis-
sionais do CREAS e CEDEDICA elaboravam um PIA, a partir do qual se definia o setor
de cumprimento, levando-se em conta os critérios já referidos (idade, gênero, escolaridade,
etc.), além de avaliação da experiência, até ali.

DOS RESULTADOS ESPERADOS

Com a abertura de espaços realmente educativos, como o são os diversos órgãos/setores


da UFSM, com os quais se pretendia estabelecer parcerias, esperava-se poder dar às MSE
em meio aberto – especialmente a PSC – um caráter efetivamente pedagógico/social, seja
ressocializando aqueles adolescentes que tiveram a oportunidade de inserção social, seja
mesmo iniciando processos de socialização para aqueles cuja realidade é de quase que ex-
clusão total, em termos de acesso a direitos garantidos pelo ECA.

146
Dessa forma, a redução da reincidência em atos infracionais; a retomada da vida es-
colar; o início de uma trajetória no mundo do trabalho; o reforço de vínculos familiares;
a recuperação e manutenção de níveis de saúde – física e mental; e a construção de laços
comunitários que permitem uma atuação coletiva, de solidariedade, especialmente inter-
geracional, eram resultados esperados, situações que, com certeza, contribuíram para a
redução da violência em seus espaços de convivência diária.

DOS INDICADORES DE AVALIAÇÃO

O indicador de avaliação considerado mais objetivo era a quantidade de atores so-


ciais (socioeducandos, profissionais da rede de atendimento socioeducativo, lideranças
comunitárias, membros da comunidade acadêmica da UFSM, etc.) diretamente envol-
vidos/beneficiados com o projeto, a ser mensurada pelo número de participantes nas
atividades propostas.
Da mesma forma, as publicações realizadas a partir da proposta - seja por alunos, seja por
professores, pessoal técnico-administrativo ou mediadores - em periódicos, eventos, etc. tam-
bém serviria para avaliar o nível de eficácia da ação. Ainda, a abertura de novos espaços com
vistas à execução das medidas socioeducativas em meio aberto, a partir dessa experiência na
UFSM, também permitiria avaliar o quanto o projeto conseguiu conscientizar os envolvidos
acerca dos direitos fundamentais das crianças, adolescentes e suas famílias. Os índices de
reincidência, por certo, apontariam, também, os níveis de desempenho das ações
Por fim, iniciativas tomadas a partir da proposta, no sentido de qualificar ainda mais os
profissionais com atuação na temática, no território de incidência do projeto, poderiam ser
usadas como forma de se aferir o grau de autonomia por ela gerado. A confiabilidade dos
indicadores, porém, dependeria, em parte, da existência de dados secundários sobre os casos
de cometimento de atos infracionais atendidos pela estrutura ora existente, tomando-se por
base o ano de 2016 (implementação do Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Infelizmente, ainda não é possível fazer uma avaliação dos primeiros resultados do pro-
jeto de forma mais conclusiva, dado que a pandemia do novo coronavírus não só impediu
a continuidade do mesmo, como também o pouco tempo de duração da experiência po-
deria implicar em conclusões precipitadas e, pois levianas, podendo-se, neste momento,
apenas fazer algumas correções de rumos, notadamente do ponto de vista do fluxogra-
ma, como nos casos de desencontros entre socioeducando(a)s e voluntários/parceiros da
UFSM, bem como da prospecção de alternativas em termos de adequação dos horários
destinados ao cumprimento da PSC, que, conforme a legislação, deve se dar aos finais de
semana e feriados, dias em que a maioria das atividades acadêmicas não funciona.
Por outro lado, pretende-se avançar na proposta, no sentido de se criar condições de
realizar atividades envolvendo as famílias do(a)s socioeducando(a)s, assim como o faz o

147
Projeto PSC da Faculdade de Educação da UFRGS, para conhecer um pouco mais das
causas do cometimento dos atos infracionais, o que pode auxiliar na sua prevenção.
Mesmo assim, a avaliação dos participantes é de que a experiência tem se mostrado
exitosa, devendo-se envidar esforços para que, oficialmente, deixe de ser um mero projeto
e passe a ocupar um espaço mais institucional no âmbito da Extensão, especialmente a
partir do momento em que esta passa a ser mais valorizada enquanto um dos tripés da
educação superior, indissociável do Ensino e da Pesquisa.

148
REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Federal nº 8.069, de 13.07.90. Institui o Estatuto da Criança e do Adoles-


cente.

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jurídica e a apreciação de suas decisões pelo Poder Judiciário. In: PEREIRA, T. da S. O
melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999,
p. 551-574.

PEREIRA, T. da S. Direito da Criança e do Adolescente: uma proposta interdisciplinar.


Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

PEREIRA, T. da S. O Melhor interesse da criança. In: PEREIRA, T. da S. O melhor


interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 1-102.

PEREIRA, T. da S. O cuidado como valor jurídico. In: PEREIRA, T. da S.; PEREIRA,
R. da C. (coords.). A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos
tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 231-256.

PEREIRA, S. S. M. Direitos e deveres nas relações familiares: uma abordagem a partir


da eficácia direta dos direitos fundamentais. In: PEREIRA, T. da S.; PEREIRA, R. da
C. (coords.). A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribu-
nais. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 509-536.

RIO GRANDE DO SUL. Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo do Rio


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RODRIGUES, W. M. Abuso sexual infanto-juvenil: uma análise à luz da jurisprudência


brasileira. In: VERONESE, J. R. P. (org.). Violência e exploração sexual infanto-juve-
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VERONESE, J. R. P. et al. Entre violentados e violentadores. São Paulo: Editora Cidade


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VERONESE, J. R. P. et al. Os direitos da criança e do adolescente. São Paulo: LTr,
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contra a humanidade. Florianópolis. OAB editora, 2005.

VERONESE, J. R. P.; COSTA, M. M. M. da. Violência doméstica: quando a vítima é

149
criança ou adolescente: uma leitura interdisciplinar. Florianópolis: OAB editora, 2006.

VERONESE, J. R. P.; OLIVEIRA, Luciene de Cássia Policarpo. Educação versus pu-


nição: a educação e o direito no universo da criança e do adolescente. Blumenau: Nova
Letra: 2008.

VERONESE, J. R. P.; VIEIRA, C. E. Limites na educação: sob a perspectiva da doutrina


da proteção integral, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional. 1. ed. Florianópolis: OAB/SC editora, 2006. v. 1. 205p .

150
CORREDORES CULTURAIS

José Luiz de Moura Filho


Gabriel de Oliveira Soares
INTRODUÇÃO

Em 2020, quando se implementou o Projeto de Extensão Corredores Culturais, o NII-


JuC já havia ultrapassado 15 anos de atuação, com foco em cinco frentes (inicialmente
chamadas eixos): Crianças e Adolescentes; FASE/Presídio; Sem-terra/sem-teto; Infor-
mais e Indígenas/quilombolas, oportunidade em que o ODH, da PRE/UFSM, lançava
seu terceiro edital específico.
Frise-se que a familiaridade do NIIJuC com as questões atinentes aos povos originários
e tradicionais vem desde a sua criação, praticamente quando já se havia voltado às ques-
tões atinentes ao(a) eixo/frente Indígenas/Quilombolas, primeiro participando da equipe
multidisciplinar que elaborou o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Terri-
tório (RTID) do Quilombo da Palma, em 2008, e, depois, colaborando com a organização
da 1.ª Assembleia Indígena de Santa Maria, em 2011, dentre outras frentes assumidas por
demanda destas populações vulneráveis.
Tendo em vista isso, e ante a condicionante – veiculada na Chamada Interna 04/2020/
PRE/UFSM/OBSERVATÓRIOS DE DIREITOS HUMANOS – de que as ações pro-
postas deveriam se enquadrar nos eixos dos grupos populacionais em situação de vulnera-
bilidade social ou temáticas elencadas – dentre as quais se encontravam População negra e
Indígenas – e estando aquele Programa de Extensão, à época, em função da pandemia do
novo coronavírus, acompanhando as comunidades quilombola e indígenas no território de
Santa Maria (RS), do ponto de vista da segurança alimentar, junto a um coletivo que se
formou a partir de várias iniciativas atomizadas, que, ao depois, se autodenominou Comitê
de Emergência e Rua (CER), resolveu-se por estender as ações, institucionalmente, àquelas
populações. Porém decidiu-se por trabalhar com comunidades em situação de fronteira,
já que esta condição geográfica passou a implicar, a partir da promulgação da Lei (de Mi-
gração) Federal n.º 13.245/17, em limitações à livre circulação das mesmas pelas divisas
do território nacional, tendo-se decidido por Aceguá (RS) em razão de que o território é
próximo ao de Caçapava do Sul (RS), onde se encontra um dos Geoparques Aspirante que
a UFSM e a Universidade Federal do Pampa/UNIPAMPA, juntamente, vêm apoiando,
institucionalmente, e lugar para onde se deslocaram parte dos guaranis da Terra Indígena
do Irapuá, localizada neste município.
Desta forma, passou-se à elaboração do projeto, que tomou o nome de Corredores Culturais
em razão de que as comunidades referidas se encontram às margens da porção rural do cha-
mado Corredor Internacional, uma faixa composta de 33m de largura – para cada lado - a
partir da linha divisória da fronteira entre o Brasil e o Uruguai, em projeção horizontal, numa
situação jurídica bastante complexa em termos de acesso a Políticas Públicas – especialmen-
te sociais – e mesmo ante o fato de que o Uruguai não é signatário da Convenção 169, da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece normas de proteção aos povos
indígenas e tribais (no caso, os quilombolas), sendo sua efetividade o objetivo geral da proposta
e, para cuja consecução, aqueles mais específicos serão a seguir comentados, não sem antes se
abordar a legislação – especialmente de natureza territorial – incidente acerca do tema.

152
OS OBJETIVOS ESTABELECIDOS

Sinteticamente, a proposta visava a assessorar as comunidades quilombolas e indígenas, no


que tange à legislação (inclusive internacional, como a Convenção 169, da Organização Inter-
nacional do Trabalho – OIT) e Políticas Públicas – especialmente sociais –, bem como orien-
tação acerca daquelas específicas para a fronteira, notadamente a nova Lei de Migração, que,
entende-se, limitou a livre circulação de membros das mesmas naquela zona, na medida em
que retirou do antigo Estatuto do Estrangeiro, dispositivo que assim o permitia, expressamente.
Dentre os objetivos específicos, destaca-se a proposta de capacitação para as lideranças
comunitárias sobre a legislação acerca das Políticas Públicas Sociais, o que seria feito por
meio de oficinas, rodas de conversa, exibição de filmes, etc., atividades que foram inviabi-
lizadas em função da necessidade de distanciamento social para se evitar a intensificação
da pandemia do novo coronavírus, da mesma forma que o foi o encontro transfronteiriço
das comunidades tradicionais de ambos os lados da fronteira, razões pelas quais o projeto
foi renovado em 2021.

BREVE CARACTERIZAÇÃO DAS COMUNIDADES

Para tanto, procedeu-se, inicialmente à caracterização das comunidades, constatando-se


a existência de uma aldeia guarani recém instalada na área pública (pouco mais de 1ha),
onde se encontra uma escola municipal desativada, denominada Mina – mesmo nome da
localidade –, não servida por transporte, distante 10 km da zona urbana, por estrada de
chão, onde residem 11 crianças (6 do sexo masculino e 5 do feminino), 1 jovem (homem),
4 adultos (2 homens e 2 mulheres) e 1 idoso (homem), recebendo atendimento à saúde no
próprio local, todos oriundos de Santa Catarina, salvo um deles, que viveu com a família
por mais de 30 anos no Uruguai, e agora veio se juntar aos parentes.
Próximo à aldeia, encontra-se o quilombo Tamanduá, distante 20 km da sede do mu-
nicípio, por estrada encascalhada, também, e, da mesma forma, sem acesso a transporte
coletivo, sendo 12 crianças (7 meninos e 5 meninas), 18 jovens (9 homens e 9 mulheres),
45 adultos (27 homens e 18 mulheres) e 11 idosos (5 homens e 6 mulheres), que recebem
atendimento em saúde uma vez por mês, frequentam a escola na vizinha Colônia Pionei-
ra, e cuja associação se encontra em fase de regularização, possuindo certificação como
remanescente de quilombo, pela FCP, desde 2009. A energia é fornecida pela Companhia
Estadual de Energia Elétrica (CEEE) e a água por meio de poços, cisternas/cacimbas e ca-
minhão pipa, com acesso à Internet, possuindo, como principal fonte de renda, a produção
de queijos, hortaliças e artesanato.
Já a comunidade remanescente de quilombo da Vila da Lata está a 29 km do centro
(em direção contrária às anteriores, ou seja, a oeste da sede do município), com acesso,
da mesma forma, por estrada de chão, o chamado Corredor Internacional entre o Brasil
e o Uruguai (mantido pelos dois países), tendo por moradores 11 crianças (9 meninos e
2 meninas), 17 jovens (11 do sexo masculino e 6 do feminino), 23 adultos (13 homens e

153
10 mulheres) e 15 idosos (6 homens e 9 mulheres), que também recebem atendimento em
saúde uma vez por mês, estudam na Escola Estadual Nossa Senhora das Graças, não ha-
vendo oferta de transporte público, tendo certificado expedido pela FCP desde 2009 e cuja
associação se encontra em vias de regularização. A infraestrutura de energia, água e Inter-
net é idêntica à de Tamanduá, e, quanto à renda, acrescente-se a presença de trabalhadores
rurais e aposentados.
Quanto aos deslocamentos entre um país e outro, a pandemia dificultou muito, mas
uma moradora do Tamanduá – nascida no Uruguai – relatou as frequentes visitas que faz
à família e aos amigos, indo pelo campo mesmo, a cavalo, sem restrições, via o Passo de
São Diogo (localidade na linha fronteiriça), porém não houve manifestações acerca de
limitações, especialmente depois da aprovação da nova Lei de Migração, a qual desconhe-
cem, assim como o Acordo para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a nacionais
fronteiriços, do Brasil e do Uruguai (Decreto n.° 5.105/04).

PARCERIAS IDENTIFICADAS

Um dos objetivos específicos era o estabelecimento de parcerias com instituições lo-


cais/regionais (em ambos os lados da fronteira), com vistas à construção de alternativas
enquanto as políticas públicas se encontram em construção, o que se logrou, e permitiu a
continuação do projeto em 2021, como se verá.
Nas pesquisas realizadas pela Internet, bem como nos contatos com as lideranças co-
munitárias, além da própria Municipalidade, conseguiu-se vislumbrar que, dada a pouca
efetividade das políticas públicas para a população em geral, e mesmo aquelas voltadas
às populações tradicionais e indígena, localizadas no território fronteiriço, estas se valem
de parcerias, algumas, inclusive, informais ou com pessoas físicas, como os assentados da
Reforma Agrária de Hulha Negra (RS) e religiosos da Igreja Católica (os freis Sérgio Go-
ergen, Jorge Osório, Wilson Zanata e Laércio); o advogado de Bagé (RS), Francisco Carlos
Estigarribia Martins; o historiador, ativista e produtor cultural de Aceguá (RS), Glécio
Rodrigues; além do Sr. Riovaldo e do memorialista Ricardo Tadeo. De maneira um pouco
mais formal – mas também militante, pode-se dizer, já que não se constatou, atualmente
em vigor, o registro de um projeto propriamente dito – a Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA) (campus Bagé), através do Prof. Hélvio, bem como a Empresa Brasileira
de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER), por meio do Convênio com a As-
sociação Sulina de Crédito e Assistência Rural (ASCAR), representada pela extensionista
Luana Alves, aparecem em vários momentos como apoiadoras das comunidades quilom-
bolas e indígena; sem falar no Conselho Indigenista Missionário (CIMI), na pessoa do Sr.
Roberto Liebgott, no caso específico desta última.
Quanto a estas, muito embora alguns contatos pessoais iniciais tenham tido pouca parti-
cipação – como os senhores Riovaldo e Ricardo Tadeo, que não participaram de nenhuma
reunião, e dos religiosos, dentre os quais apenas um (Padre Jorge) estabeleceu diálogo – ou-
tros evoluíram a ponto de agregar entidades uruguaias com atuação nas temáticas relativas

154
aos povos originários e tradicionais, como são os casos das Oficinas Regionais de Análises
para Políticas em Equidade Racial (ORAPER/Fronteira), em sua versão para as fronteiras
e a Organização Mundo Afro (OMA), as quais passaram a constar como apoios externos
para a continuidade do projeto, aprovada em 2021.

FORMAÇÃO TEÓRICA MÍNIMA DA EQUIPE


E OPERACIONALIZAÇÃO DO PROJETO

O projeto foi desenvolvido com o auxílio de dois bolsistas de Extensão, Kauane Ca-
bral, aluna do 7.º semestre do Curso de Terapia Ocupacional, e Vinicius Storgatto Nunes,
acadêmico também do 7.º semestre, mas de graduação em Ciências Socais, os quais reali-
zaram leituras acerca das temáticas quilombola e indígena, respetivamente, especialmente
quanto às políticas públicas e questões fronteiriças, bem como participaram de seminá-
rios do Grupo de Pesquisa Autogoverno, Administração Participativa e Paradiplomacia
(APAR), registrado no Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), cujo Líder é também o
Coordenador do Projeto.
Para a execução do projeto, foram realizadas, pelo menos, três viagens a Aceguá (RS);
contatos telefônicos e por e-mail, bem como reuniões virtuais – e presenciais, na medida do
possível – com bolsistas, autoridades, gestores, servidores públicos, moradores e lideranças
comunitárias; além da compilação de dados secundários a partir de páginas de órgãos ofi-
ciais, e mesmo Organizações Não Governamentais (ONG).

DA LEGISLAÇÃO

Desde o advento da Constituição Federal de 1988 – CF/88, seja por meio da tentativa de
regulamentação dos artigos 215, 216, 231 e 232, seja por força do Artigo 68, do Ato das Dis-
posições Constitucionais Transitórias (ADCT), uma série de normas garantidoras dos direitos
sociais das populações indígenas e quilombolas foi sendo editada, muitas de natureza setorial,
como aquelas referentes à saúde e à educação, ficando a questão territorial – fundiária – pratica-
mente paralisada, em função dos interesses econômicos, especialmente dos setores de energia,
mineração e agronegócio, sendo que, no caso dos segundos, também em razão da Ação Direta
de Inconstitucionalidade – ADI 3239, cuja decisão final – no sentido da constitucionalidade do
Decreto Federal n.º 4.887/03 – somente no final de 2018 foi proferida.
Porém, entende-se que nenhuma das políticas setoriais poderá se efetivar, em níveis
satisfatórios, sem que o aspecto territorial esteja definido, já que a relação das populações
indígenas e tradicionais com a terra baseia-se numa cosmovisão, onde a ancestralidade e os
elementos da natureza estão muito presentes no dia a dia, precisando estar em equilíbrio,
a fim de que possam ter qualidade de vida.
No aspecto fundiário, assim, há um requisito comum para a delimitação do territó-
rio, qual seja, a condição de “terras tradicionalmente ocupadas”; mas, do ponto de vista

155
da demarcação, titulação e gestão da propriedade imobiliária, há diferenças, conforme se
trate de indígenas ou quilombolas. Isto porque, no caso dos povos originários, toda terra
é titulada em nome da União, não cabendo, assim, ao Estado, pagar por aquilo que já é
seu, ou seja, provado que a área se enquadra no critério de “ocupação tradicional”, os atu-
ais detentores somente fazem jus à indenização por benfeitorias feitas de boa-fé, situação
que tem colocado em conflito, muitas vezes, pequenos proprietários rurais e comunidades
indígenas, já que o próprio governo brasileiro – até o advento da Lei de Terras, em 1850
– estimulava a ocupação, como dito, emitindo títulos de propriedade. Por outro lado, em
se tratando de comunidades quilombolas, se o Relatório Técnico de Identificação e Deli-
mitação do Território – RTID concluir em favor destas, os posseiros são indenizados - de
forma prévia, justa e em dinheiro - e a propriedade é registrada em nome da associação
especialmente criada para sua gestão, com as cláusulas de inalienabilidade (não pode ser
vendida, doada, trocada), impenhorabilidade (não responderá pelas dívidas contraídas
pela entidade ou qualquer de seus membros, sucessores a qualquer título ou moradores) e
imprescritibilidade (ninguém sobre ela poderá exercer o direito de usucapião).
De modo geral, as comunidades quilombolas estão situadas em áreas pequenas, de di-
fícil acesso e com declividades acentuadas, o que se verifica não só naqueles criados como
quilombo mesmo - como forma de esconderijo e defesa -, mas também no pós-abolição,
por serem consideradas inúteis para atividades produtivas, como escarpas, terrenos ala-
gados ou matas fechadas, ou, ainda, em territórios de fronteira, muitas vezes com limites
incertos, até mesmo contestados, como é o caso dos chamados Campos Neutrais, que se-
paravam o Brasil do Uruguai, ainda no século XIX.
As dificuldades para a efetivação de direitos, em termos de acesso físico - e mesmo nos
aspectos intelectual e jurídico – conformam um manto de invisibilidade a encobrir o passa-
do – e o presente, também – das comunidades afro-brasileiras e indígenas, especialmente na
região Sul do país, em face das levas migratórias, notadamente europeias, trazidas pelo ainda
governo imperial, que, até mesmo como estratégia de ocupação – a teoria utilizada pelos
portugueses para a expansão territorial era a do uti possidetis –, fomentou (muitas vezes por
meio, inclusive, da titulação) a ocupação do território fronteiriço, havendo, ainda, situações
de disputa, como é o caso da reivindicação da localidade denominada Vila Thomas Albor-
noz (Brasil) ou Massoller (Uruguai), pela República Oriental do Uruguai.
A palavra quilombo provém dos termos oriundos do idioma do povo bantu, “kilombo”
(quimbundo) e “ochilombo” (umbundo), e significa “local de descanso”, já que os povos
da África Ocidental – trazidos ao Novo Mundo como escravos - eram nômades e se utiliza-
vam do termo para designar os territórios onde faziam suas pausas para descanso. No Bra-
sil, durante o período colonial, adaptou-se o termo para designar as localidades utilizadas
como refúgio de pessoas que se rebelaram contra o sistema escravista e, por isso, até os dias
de hoje, ainda se perpetua a errônea ideia de que os povos remanescentes de quilombos são
meros “descendentes de pessoas escravizadas e fugitivas”. É necessário desvencilhar-se de
tal conceituação, pois, embora alguns tenham sido mesmo locais para onde os escravos – e
também indígenas – fugiam do jugo da escravidão, atualmente os quilombos são espaços

156
voltados para o cultivo e a valorização de suas tradições culturais, para a preservação de
recursos naturais disponíveis e, pois, para a resistência, sendo que os remanescentes de
quilombos desempenham atividades, em sua maioria, na agricultura, na pesca e no extra-
tivismo, dentre outras.
Já o termo índio foi cunhado quando do contato com os povos originários, pelos pri-
meiros portugueses que aqui chegaram, pois – segundo consta – o destino dos descobri-
dores era a Índia, onde pretendiam chegar por meio de outra rota, que não o Estreito de
Gibraltar, para evitar ataques de corsários, porém as pessoas desta etnia não gostam e não
utilizam a denominação, mas, sim, indígenas.
É vasta a legislação de proteção aos povos indígenas ao longo de toda a história do
Brasil – ainda que inefetiva –, mas, com relação aos afro-brasileiros, foi somente por meio
da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), do Programa Brasil Qui-
lombola e da criação da Secretaria Especial de Políticas e Promoção para a Igualdade
Racial (SEPPIR) que começaram a ser criadas e, de fato, aplicadas, políticas públicas com
enfoque nas comunidades quilombolas. Já o Estatuto do Índio, de 1973, baseado na políti-
ca de assimilação dos indígenas e sua “integração à sociedade nacional”, embora revogado
– em parte – ainda não foi substituído por nova legislação, eis que até a denominação pro-
posta – Estatuto dos Povos Indígenas – causa arrepios a bancadas do Congresso Nacional
(como a BBB: do boi, da bala e da Bíblia), uma vez que, em tese, permitiria a chamada
“autodeterminação”, ou seja, a criação de outros tantos países quanto às etnias ainda pre-
sentes no território nacional, um subterfúgio que faz com que os mesmos continuem a ser
“tutelados” pelo Estado brasileiro, como se incapazes fossem.
O Decreto Federal n.° 4.887, de novembro de 2003, afirma que o território é a base da
reprodução física, social, econômica e cultural das comunidades, e regulamenta o procedi-
mento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes dos quilombos de que trata o Artigo 68, do ADCT, da Cons-
tituição Federal de 1988. De acordo com este artigo, fica estabelecido que o Estado deve
emitir títulos de propriedade definitiva aos remanescentes de comunidades quilombolas que
estejam ocupando efetivamente suas terras. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento (MAPA), competindo à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, sob a
supervisão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), nos termos
do Artigo 13, I, g, do Decreto Federal n.° 10.253, de 20 de fevereiro de 2020: “Formular,
normatizar e supervisionar as ações e as diretrizes sobre manifestação em licenciamento am-
biental que afete direta ou indiretamente as terras quilombolas” (BRASIL, 2020).
Desse modo, de forma sintetizada, compete ao INCRA, diretamente supervisionado
pelo MAPA, a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e
o registro das terras ocupadas por remanescentes de quilombos, de que tratam os decretos
acima citados. O processo da regularização fundiária nestes territórios se dá a partir da
elaboração de RTID, de competência do INCRA, por meio de equipes multiprofissionais,
contratadas, envolvendo antropólogos, geógrafos, assistentes sociais, advogados, engenhei-
ros, historiadores, economistas, arquitetos, agrônomos, zootecnistas, etc., normalmente

157
em conjunto com órgãos governamentais estaduais, conforme dispõe a Instrução Nor-
mativa do INCRA, n.º 16, de 24 de março de 2004, inclusive por meio de convênios com
instituições de pesquisa e universidades.
A instrução normativa acima foi complementada pela de n.º 57, de 20 de outubro de
2009, que “regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos”.
Já para a implementação de políticas públicas que não envolvam o direito à terra, a
Portaria Fundação Cultural Palmares n.º 98, de 26 de novembro de 2007, “Institui o Ca-
dastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundação Cultural
Palmares, também autodenominadas Terras de Preto, Comunidades Negras, Mocambos,
Quilombos, dentre outras denominações congêneres”, sendo que o Rio Grande do Sul já
tem mais de uma centena de comunidades certificadas, sendo muitas delas na porção sul,
área onde o latifúndio e, pois, o uso do trabalho escravo, deu-se em maior escala.
A certificação pela FCP é, pois, pré-condição para a implementação de políticas públi-
cas e o acesso à terra – como se vê do rol de normas abaixo –, mas algumas comunidades
podem não ter interesse nesta última demanda, seja porque suas glebas já se encontram
tituladas, seja porque seus posseiros optam por regularizá-las via usucapião, ou pretendem
alegá-lo em caso de defesa em eventual processo de reintegração de posse.
Não bastasse a inefetividade de muitas das políticas públicas propostas – abaixo arrola-
das –, mesmo em setores mais tradicionais, não se logrou identificar propostas para atacar
o fator determinante das desigualdades sociais – a injusta distribuição de riqueza – que são
a razão de existir daquelas, quais sejam, iniciativas para geração de trabalho e renda. Estas
aparecem apenas de forma transversal, como, por exemplo, no Programa Brasil Quilombo-
la, acreditando-se que esteja intrínseca na parte em que cita a capacitação de agentes para
o etnodesenvolvimento econômico solidário dos núcleos produtivos locais, bem como o
estímulo à criação de cooperativas e associações.
Nesse sentido, o quadro abaixo representa as principais normas que institucionalizam
as políticas públicas existentes, acompanhadas de suas respectivas ementas:

Quadro 1 – Norma e ementa correspondente

Norma Ementa
Constituição Federal de 1988 Artigos 215 e 216 da Constituição Federal – Direito à preser-
vação de sua própria cultura.
Artigo 68 do ADCT – Direito à propriedade das terras de co-
munidades remanescentes de quilombos.
Decreto Legislativo n.º 5051/2004 Direito à autodeterminação de Povos e Comunidades Tradicio-
- Convenção 169 da OIT nais.

158
Decreto Federal n.º 4.887, de 20 Cria o Programa Brasil Quilombola e trata da regularização
novembro de 2003 - PROGRAMA fundiária de terras quilombolas, definindo as atribuições dos
BRASIL QUILOMBOLA órgãos federais. Revoga a exigência de comprovação de ocupa-
ção de terras anterior à abolição da escravatura.
Decreto Federal n.º 6040, de 7 de Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
fevereiro de 2007 dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Decreto Federal n.º 6261, de 20 de Dispõe sobre a gestão integrada para o desenvolvimento da
novembro de 2007 Agenda Social Quilombola no âmbito do Programa Brasil Qui-
lombola.
Lei Federal n.º 12.188, de 11 de Institui a Política Nacional de Assistência Técnica e Exten-
janeiro de 2010, Art. 5º são Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária
(PNATER) e o Programa Nacional de Assistência Técnica e
Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária
(PRONATER), altera a Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993.
Beneficia os assentados da reforma agrária, os povos indígenas,
os remanescentes de quilombos e os demais povos e comunida-
des tradicionais.
Lei Federal n.º 12.288, de 20 de Institui o Estatuto da Igualdade Racial.
julho de 2010
Portaria Fundação Cultural Pal- Institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades
mares n.º 98 de 26 de novembro de dos Quilombos da Fundação Cultural Palmares, também auto-
2007 denominadas Terras de Preto, Comunidades Negras, Mocam-
bos, Quilombos, dentre outras denominações congêneres.
Instrução Normativa INCRA n.º Regulamenta o procedimento para identificação, reconheci-
57, de 20 de outubro de 2009 mento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e re-
gistro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos.

Portaria Ministério da Saúde n.º Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População
992, de 13 de maio de 2009 Negra, cujo objetivo é promover asaúde integral da população
negra, priorizando a redução das desigualdadesetnicorraciais, o
combate ao racismo e à discriminação nas instituições e servi-
çosdo SUS.
Lei Federal n.° 12.288, de 20 de Institui o Estatuto daIgualdade Racial, destinado a garantir à
julho de 2010 população negra a efetivação daigualdade de oportunidades,
a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos edifusos e o
combate à discriminação e às demais formas de intolerância
étnica.; cujo Capítulo I, Art. 6o, ao dispor sobre o direito à
saúde da população negra,refere que esse direito será garantido
pelo poder público mediante políticasuniversais, sociais e eco-
nômicas destinadas à redução do risco de doenças e deoutros
agravos.

159
Portaria Ministério da Saúde n.° (Anexo 1, das diretrizes fundamentais, II) - Aprova a Política
2.488, de 21 de outubro de 2011 Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de dire-
trizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a
Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes
Comunitários de Saúde (PACS). Devem estar implantadas em
municípios não incluídos no estabelecido na alínea I e atender
a população remanescente de quilombos ou residentes em as-
sentamentos de no mínimo 70 (setenta) pessoas, respeitando
o número máximo de equipes por municípios, publicado em
portaria específica.
Lei Federal n.º 12.711, de 29 de Institui que sejam oferecidas/reservadas no mínimo 50% das
agosto de 2012 vagas nas instituições federais de ensino superior para estu-
dantes de escolas públicas, que são preenchidas por candidatos
autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Contudo, não há
uma reserva específica para candidatos quilombolas, torna-se
facultativo aos institutos federais oferecer outras ações voltadas
para a inclusão específica de remanescentes de quilombos.
Lei Estadual/RS n.º 15.564, de 29 Autoriza a instituição de auxílio emergencial para instituições e
de dezembro de 2020 espaços culturais e dá outras providências.
Decreto Federal n.º 7.488 - PAC “Assinado em 24/05/2011, publicado no DOU em 25/05/2011
QUILOMBOLA (FUNASA) - Discrimina ações do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC) a serem executadas por meio de transferência obrigató-
ria.” O Programa de Aceleração do Crescimento Quilombola
foi lançado em 2007 com o objetivo de melhorar o acesso à
educação, saúde, infraestrutura, por meio de edificação de es-
tradas, abastecimento de água e saneamento básico. Ademais,
a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), a qual é vinculada
ao Ministério da Saúde, oferece abastecimento de água potável
e esgotamento sanitário às comunidades quilombolas, por meio
do Programa Saneamento Básico.
Lei Federal n.º 11.977/2009 - HA- O Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR) concede
BITAÇÃO RURAL (o programa subsídios com recursos do Orçamento Geral da União (OGU)
de Habitação Rural é no âmbito da ao beneficiário, (sendo agricultor familiar ou trabalhador rural)
Lei do Minha Casa Minha Vida). organizados por uma entidade organizadora, para a aquisição
de material de construção, para a construção, conclusão ou
reforma/ampliação da unidade habitacional em área rural.
Lei Federal n.° 11.977/2009 - MI- Foi firmado um acordo entre a SEPPIR e a Caixa Econômica
NHA CASA MINHA VIDA Federal para a implementação do Programa com maior enfo-
que no desenvolvimento interior das comunidades remanescen-
tes de quilombos.
Decreto Federal n.º 7.535, de 26 Gerido e executado pela FUNASA, MDS e MIN, o programa
de julho de 2011 - PROGRAMA visa a construção de cisternas para recolher água da chuva e
ÁGUA PARA TODOS abastecer a comunidade.
Lei Federal n.º 12.873, de 24 de Tem como princípio fundamental a garantia do acesso à água
outubro de 2013 - PROGRAMA potável e segurança alimentar para as comunidades. O Minis-
CISTERNAS tério de Desenvolvimento Social é responsável por repassar os
recursos para a construção das mesmas.

160
Lei Federal n.º 10.836, de 9 de Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda,
janeiro de 2004 - PROGRAMA instituído pela Lei N° 10.836 de 9 de janeiro de 2004, focado
BOLSA FAMÍLIA em atender famílias em situação de pobreza ou extrema pobre-
za, buscando lhes auxiliar no enfrentamento de sua vulnerabili-
dade financeira e social lhes provendo um auxílio mínimo para
garantir o acesso à educação e a alimentação. Os principais
objetivos do programa envolvem, também, o incentivo à segu-
rança nutricional, o apoio ao desenvolvimento de famílias em
situação vulnerável e o auxílio no acesso à rede de serviços pú-
blicos, buscando combater a extrema pobreza, a fome e as desi-
gualdades. Para se inscrever no programa, é necessário já estar
inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Gover-
no (Cad. Único). Para a inclusão das famílias quilombolas no
Cadastro Único não é necessária a apresentação de nenhum
comprovante, apenas que a família se autodeclare quilombola
ao entrevistador e preencha o perfil social.
Decreto Federal n.º 7520/2011 O Programa tem como principal objetivo levar energia elétrica
- PROGRAMA LUZ PARA TO- à zonas rurais e áreas remotas, com tarifas subsidiadas pelo Go-
DOS verno Federal, governos estaduais e distribuidoras de energia.

Lei Federal n.º 12.212/2010 e De- A Tarifa Social gera um desconto nas contas de energia elétrica
creto Federal n.º 7.583/2011 - TA- da população de baixa renda inscrita no Cadastro Único. Para
RIFA SOCIAL Indígenas e Quilombolas inscritos no Cad. Único, com renda
familiar de até meio salário mínimo por pessoa, o desconto
pode chegar até 100% com o limite de consumo de 50 KWh
por mês. É necessário informar o “perfil social” no Cad. Único
para ter direito ao desconto de 100%.
Lei Federal n.º 10.696, de 2 de Tem como objetivo o incentivo à agricultura familiar, a redis-
julho de 2003; Decreto Federal tribuição de produtos provenientes da agropecuária (de agri-
n.º 4.772, de 02 de julho de 2003; cultores familiares do PRONAF) para indivíduos em situação
alterado pelo Decreto Federal n.º de insegurança alimentar e a elaboração de estoques para fins
5.873, de 15 de agosto de 2006 - específicos. Além disso, o programa também colabora com a
PROGRAMA AQUISIÇÃO DE aquisição de equipamentos agrícolas e materiais voltados para
ALIMENTOS (PAA) o desenvolvimento local.
Lei Federal n.° 11.947/2009 – O PNAE busca garantir a segurança alimentar/nutricional dos
PROGRAMA NACIONAL DE alunos que frequentam a educação básica, através da trans-
ALIMETAÇÃO ESCOLAR ferência de recursos à nível estadual/municipal. A merenda
(PNAE) escolar busca minimamente assegurar a contribuição para o
desenvolvimento e a aprendizagem dos estudantes.
Resolução CNE/CEBE n.º 8, de A educação quilombola tem por objetivo manter viva a história
20 de novembro de 2012 - EDU- e cultura das comunidades remanescentes de quilombos. Além
CAÇÃO QUILOMBOLA disso, definem-se investimentos voltados para a construção e
manutenção de escolas nas localidades.

161
ESFQ - ESTRATÉGIA DE SAÚ- Trata-se de uma porta de entrada para o Sistema Único de
DE DA FAMÍLIA QUILOM- Saúde (SUS), que atua de forma integral e contínua, tendo
BOLA (Portaria n.º 2.488, de 21 como objetivo a promoção de melhor qualidade de vida aos
de outubro de 2011. Resolução usuários. Para sua atuação em comunidades remanescentes
98/2013 da CIB) de quilombos, o município deve estar de acordo com a adesão
ao Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade
da Atenção Básica (PMAQ), o qual garante pagamento adi-
cional ao município para a abrangência destes territórios. A
instituição da ESFQ em qualquer município deve ser articulada
com as associações das comunidades quilombolas, criação de
Assessorias de Saúde da População Negra, inclusão do quesito
étnico-racial nos documentos do usuário do SUS para a qualifi-
cação de dados, dentre outras ações específicas voltadas para a
saúde da população negra.
Portaria n.º 2.662/14 do Ministé- O Programa GESAC promove a implantação e manutenção de
rio das Comunicações - Telecentro telecentros, visando ampliar a acessibilidade digital dos mora-
dores. A adesão é feita mediante acordo de cooperação técnica
entre entidades proponentes e a Coordenação Executiva do
Programa.
Previdência A respeito da Reforma da Previdência e seus impactos sobre os
Quilombos, tornam-se evidentes as consequências negativas e
a possibilidade de muitos remanescentes de Quilombos sequer
conseguirem se aposentar, contribuindo fortemente com o êxodo
rural. A atual proposta impõe a idade mínima de 60 anos tanto
para homem quanto para mulher, além de aumentar de 15 para
20 anos o tempo mínimo de contribuição para se aposentar. Ade-
mais, ainda torna obrigatória a contribuição anual, em dinheiro,
no valor de R$ 600,00 por membro da família (contribuição
direta). Atualmente para se aposentar o quilombola (homem)
deve ter 60 anos e a mulher 55 anos. É necessário comprovar 15
anos de atividade quilombola, com uma contribuição de 1,7%
sob seus ganhos de vendas de artesanatos (contribuição indireta).
Caso não haja comércio a contribuição não é obrigatória.

Fonte: autores (2021).

CONSIDERAÇÕES FINAIS (RESULTADOS ESPERADOS)

No projeto, havia uma previsão de, no curto prazo (final do projeto, janeiro de
2021), poder se identificar os principais obstáculos experimentados pelas comunida-
des indígenas e quilombolas desse pedaço do Corredor Internacional Brasil/Uruguai
(especialmente por sua condição fronteiriça), no que tange ao acesso a direitos sociais,
conforme a legislação de ambos os países, e identificar os instrumentos legais/insti-
tucionais para sua superação, o que se logrou, constatando-se a ignorância – no bom
sentido – no caso dos beneficiários, como, também, dos gestores públicos, porém, nes-
ta situação, não há qualquer justificativa para tanto, já que os que assim se propõem
devem atuar de forma preventiva ou, no mínimo, responsiva às demandas que, no caso,

162
foram encaminhadas por meio da extensionista da EMATER que, não por acaso, é,
também, militante do movimento negro.
Já a médio prazo – aquele do Plano Integrado de Trabalho para a Fronteira Brasil-Uru-
guai – 2016, estabelecido pelos governos de ambos os países, no âmbito da Nova Agenda
de Cooperação e Desenvolvimento Fronteiriço Brasil – Uruguai –, a expectativa é de que
se possa estabelecer canais de participação dessas comunidades na construção de meca-
nismos institucionais de efetivação dos direitos sociais e culturais, como se pode ver da-
quele documento, mais especificamente: 1) fomento de iniciativas culturais que estimulem
a consolidação de corredores culturais na região fronteiriça; 2) melhorar a qualidade dos
serviços públicos prestados às populações locais, observadas competências, necessidades e
características específicas dos municípios fronteiriços; 3) colaborar com o Plano de Ação
para a conformação do Estatuto da Cidadania do MERCOSUL (CMC/DEC. No. 64/10),
o que depende, especialmente, dos rumos que o Brasil irá tomar, em termos de integração
regional, a partir do projeto político a ser escolhido pelos brasileiros em 2022.
Por fim, a longo prazo, a proposta de reverter, na prática, normas nacionais que impe-
dem a livre circulação de populações tradicionais e indígenas, nos espaços transfronteiriços
- situação que viola as normas de Direito Internacional Público vigente – ainda se encontra
no horizonte do projeto, agora reeditado e reforçado com as parcerias estabelecidas, inclu-
sive do lado uruguaio, como as Organizações Mundo Afro e a ORAPER/Fronteira.

163
REFERÊNCIAS

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bro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas Constitucionais de
Revisão nos 1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 91/2016 e pelo Decreto
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Tarifa Social de Energia Elétrica, e dá outras providências. Disponível em: http://www.
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167
MEDITAÇÃO NO CUIDADO A ADOLESCENTES
EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

Marcio Rossato Badke


Gabriel Lautenschleger
Elisa Vanessa Heisler
Raquel Mortari
Pamella Giovanella Scalcon Keller
Jana Rossato Gonçalves
OS ADOLESCENTES E O CONTEXTO SOCIOEDUCATIVO NO BRASIL

Os olhares para a atenção e a proteção de crianças e adolescentes de forma integral


chegam à ponta do atendimento, tomando forma com a edição da Constituição Federal de
1988 e, posteriormente, no ano de 1990, com a instituição da Lei 8.069, também chamada
de ECA, sendo o principal meio de instituir as normas no país sobre os direitos da criança
e do adolescente. Foi através do ECA que foram incorporados, à legislação, os avanços tra-
zidos na Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da Criança e permitiu-se que fosse
efetivo o Artigo 227 da Constituição Federal, que fez o primeiro aceno para os direitos
como garantias fundamentais de crianças e adolescentes em território nacional. O ECA
ainda representa um avanço nas regras de proteção dos adolescentes e, principalmente, pre-
vê que a sociedade civil participe da decisão e do controle das políticas públicas editadas
pelos governos para este público. A proteção integral vem como um favorecimento ao de-
senvolvimento físico, mental, moral e social, sempre primando princípios como liberdade
e dignidade (ECA, 1990).
Segundo o ECA, a adolescência compreende a faixa etária dos 12 aos 18 anos, já o Ministé-
rio da Saúde segue a convenção da Organização Mundial da Saúde (OMS), que traz a adoles-
cência como a segunda década de vida, compreendendo a idade dos 10 aos 19 anos. Sabemos
que este período é marcado pelas transformações tanto físicas como emocionais e, como citado
anteriormente, é nessa fase que se formam os principais valores morais. A busca pela identida-
de, a personalidade se formando, além de ser o período que encontra-se os maiores conflitos na
sua identidade, precisando se esforçar para avaliar suas responsabilidades e obter um conceito
claro de quem é e quem quer ser no futuro (VERNI; TARDELI, 2015).
As condições de vida dos adolescentes, especialmente meninos em situação socioeco-
nômica prejudicada, ainda são um desafio tanto para governos, na implantação de política
públicas efetivas, quanto para a produção científica, que pode auxiliar no conhecimento e no
apontamento de resoluções para os problemas enfrentados por esse grupo, sendo um traba-
lho que pode e deve ser colaborativo. Dentro deste conjunto de políticas públicas, encontra-
mos a socioeducação como um conjunto de ações e medidas que vem com o intuito de dar
suporte no atendimento a adolescentes infratores, que demonstraram condutas de crime ou
contravenção penal. De acordo com o ECA, o adolescente infrator é todo indivíduo que, an-
tes de completar 18 anos de idade, ao cometer qualquer tipo de delito classificado como ato
infracional, responderá por seus atos conforme a norma específica, não podendo responder
pelos seus atos como adulto (ECA, 1990; OLIVEIRA, 2019). São jovens que, na maioria dos
casos, possuem um histórico familiar defasado e condições de vida restritas.
Nessa condição de conflito com a lei, foi necessário que se criasse um sistema que
pudesse (através de medidas variadas) levar esse infrator a uma ressocialização, e, o mais
importante, longe do caminho da criminalidade, para que ele reflita, repense e siga por um
caminho que o levará a uma vida digna e dentro da lei. Sendo assim, foi publicada, em
2006, a Resolução n.º 119 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescen-
te, com diversas diretrizes e orientações para o trabalho de equipes que estão em contato

169
direto com adolescentes em conflito com a lei e seus familiares, essa resolução se converte
em lei em 2012. A Lei 12.594/12 institui o SINASE, sendo o principal instrumento resul-
tante de debates e discussões sobre a temática no Brasil. Podemos resumir o Sinase como
a regulamentação na forma como o Poder Público (federal, estadual e municipal), por seus
mais diversos órgãos e agentes, deverá prestar o atendimento especializado ao qual adoles-
centes autores de ato infracional têm direito (DIGIÁCOMO, 2016).
Precisamos observar que, com o desenvolvimento das políticas públicas de socioedu-
cação, traz-se a luz as mesmas como algo de caráter pedagógico e se distanciando do pas-
sado, que apresentava teorias punitivas ou até mesmo adolescentes sendo tratados como
adultos nas ações de repressão aos crimes. É importante destacar que as leis instituídas não
são instrumentos de minimizar os atos infracionais, e, sim, apresentadas com o intuito de
fazer com que o infrator compreenda o ato que cometeu, responda por ele e que tenha a
oportunidade de ser reintegrado à sociedade, incentivado ao caminho correto, isso como
uma resposta à sociedade.
Este movimento de educação social para oportunizar um novo comportamento é cen-
trado no adolescente com participação ativa, não apenas objetivando superar uma vivência
infracional, mas também o desafiando a vencer as desigualdades sociais, ampliando seu
exercício de cidadania, oportunizando o desenvolvimento crítico, ensinando uma profis-
são, e não apenas visando a sua inserção nas políticas sociais.

A MEDITAÇÃO COMO FORMA DE AUTOCUIDADO

Na adolescência, faz-se necessário promover a saúde, e compreende-se por saúde não mais
somente a ausência de doença, mas também o equilíbrio do bem-estar físico, mental e social.
Esse conceito hoje é visto a partir de uma perspectiva mais completa e holística, somado ao
completo bem-estar, com a ideia de equilíbrio e consonância da vida (SOUZA et al., 2019).
Nesta busca do bem-estar físico, mental e social, podemos destacar a meditação como
um método facilitador. A meditação pode ser dividida em dois grupos, o primeiro se refere
à doutrina budista e hinduísta, trazendo a meditação como uma experiência na busca das
dimensões mais profundas do ser. Na doutrina budista, facilmente encontramos mais de
40 tipos de meditação, sendo a mais estudada a prática do Zazen, uma prática em que se
fica sentado com o tronco ereto, pernas dobradas, olhos abertos e fazendo uma respiração
em ritmo e profunda, permitindo um descanso mental no momento da prática. Dentro da
doutrina hinduísta, a prática meditativa compreende uma das fases do sistema yoga, cha-
mado de dhyána. Apesar de sua apresentação no ocidente, através das tradições religiosas,
atualmente, a meditação tem atraído muitos adeptos, sem, necessariamente, estarem liga-
dos à religião correspondente, no entanto esses novos praticantes buscam, nessa prática,
uma fonte de redução e controle da ansiedade (LIMA, 2013).
O segundo tipo de meditação consiste na prática Mindfulness, na língua portuguesa co-
nhecido como “atenção plena”, que consiste em uma consciência sincera e não julgadora,
ou seja, proporciona uma capacidade de acolhimento e aceitação do momento presente.

170
Surgiu com as tradições budistas, porém passou a ser empregado dentro das ciências oci-
dentais com a finalidade terapêutica. Essa prática permite que a pessoa aprenda a tomar
consciência das experiências internas de uma maneira mais saudável, ajuda a promover a
autoaceitação e, assim, torna seu praticante conhecedor de seus sentimentos, fator este de
suma importância na construção do caráter de adolescentes (RAHAL, 2018).
Nos últimos anos, o uso de Terapias Integrativas e Complementares em Saúde foram
colocadas à luz por meio de pesquisas que comprovaram sua eficácia, contribuindo para o
equilíbrio físico e psíquico do indivíduo. Nesse grupo de terapias, encontra-se a meditação.
Em 2017, o Ministério da Saúde editou a portaria que dispõe sobre a Política Nacional
de Práticas Integrativas e Complementares (PICS) no SUS e incluiu a meditação como
uma prática que pode ser ofertada como uma terapia integrativa e complementar. Essa
articulação do Estado em desenvolver políticas de incentivo ao uso de PICS, atrelado à
necessidade da população, vem trazendo uma grande procura de alternativas seguras que
complementem tratamentos convencionais (BADKE; LAUTENSCHLEGER, 2019). Essa
integração das PICS permite que elas sejam aplicadas nos mais diversos campos e para as
mais diversas situações, o que remete ao projeto que apresentamos neste momento.
Faz-se necessário, nesse estudo, o conceito da meditação como prática integrativa para a Or-
ganização Mundial de Saúde, que se refere a ela como uma ferramenta para harmonização dos
estados mentais e da consciência, presente em inúmeras culturas e tradições (BRASIL, 2017).
Explanou-se sobre a meditação em suas diferentes formas ao redor do mundo, porém
o método abordado no presente trabalho explora a meditação de relaxamento, pois tem
como prerrogativa o trabalho com a respiração, ancoramento e expansão da consciência
(LEANDRO; BAKOF; MUNHOZ, 2019).
Para a aquisição desse estado meditativo, existem diversas técnicas e suas variações,
nas quais a atenção da pessoa é ancorada em uma palavra, um som, uma imagem, uma
oração ou até mesmo na própria respiração, isso permite com que a mente se estabeleça
no presente, no ato de meditar (FORTNEY; BONUS, 2007). Neste contexto, a meditação
vem com a estratégia de efetuar a promoção da saúde e o incentivo ao autocuidado do
adolescente, que, muitas vezes, institucionalizado, não tem um incentivo a esse conceito de
autocuidado para lidar com os estressores da privação de liberdade e a responsabilização
pelos atos infracionais por ele cometidos. Com esse intuito, a presente discussão percorreu
uma breve análise sobre os conceitos acima citados, para, assim, mais especificamente,
adentrar no estudo desenvolvido no centro do estado do Rio Grande do Sul, que teve como
objetivo compreender a promoção do autocuidado de adolescente por meio da meditação
em um CASE, em que foi possível observar a contribuição da oficina meditativa a esses
adolescentes. Este estudo foi possível através de um projeto de parceria entre a UFSM, o
ODH, o Laboratório de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde da UFSM e o
Governo do Estado do Rio Grande do Sul, através da FASE/RS.

171
A FUNDAÇÃO DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO NO RS

A FASE/RS foi criada no ano de 2002, por força da Lei n.º 11.800 e do Decreto n.º
41.664, fazendo a consolidação do processo de reordenamento institucional após a conso-
lidação e o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, provocando, assim, o fim da
antiga Fundação do Bem-Estar do Menor (FEBEM) (FASE, s.d).
O Surgimento da FASE vem com uma concepção de atender ao ECA e melhorar o aten-
dimento aos jovens em conflito com a lei, fazendo um trabalho mais humanizado e menos
repreensivo. Um dos mais importantes avanços trazidos pelo ECA foi a distinção entre o
tratamento dispensado ao adolescente vítima de violência e abandono e o tratamento ao
adolescente autor de ato infracional, com isso, a FASE foi especializada no atendimento
exclusivo ao segundo grupo, trazendo, assim, as medidas de internação ou semiliberdade.
Atualmente, a FASE conta com 13 unidades de internação e 10 unidades de semiliberdade,
estas unidades são conhecidas por CASE. A capacidade de internos nas unidades do estado
é de 765 adolescentes, sendo que, no início do mês de junho de 2021, os CASE estavam com
56,1% de sua capacidade total, abrigando 429 adolescentes nas 13 unidades (FASE, 2021).

O CASE SANTA MARIA

Considera-se pertinente caracterizar o local e a rotina dos adolescentes para compreen-


der como a meditação está inserida no contexto. Para o desenvolvimento de atividades, foi
firmado um termo de cooperação técnica entre Ministério Público, Instituição de Ensino
Superior e FASE (MPRS, 2014). Além de meditação, os adolescentes frequentam oficinas
ocupacionais de crochê, costura, encadernação, pintura em madeira e xadrez. Participam
de atividades físicas, assistem a filmes e podem fazer cursos profissionalizantes. Ainda, os
adolescentes possuem a oportunidade de participar de atividades de espiritualidade, com
as igrejas universal, espírita, católica, internacional da graça e igreja adventista do 7.º dia.
O local recebe adolescentes do sexo masculino, de 12 a 20 anos, que são provenientes
de 40 municípios e 17 comarcas, jurisdicionados no Juizado Regional da Infância e Ju-
ventude, que cometeram atos infracionais. Atende as MSE de IP (Internação Provisória),
ISPAE (Internação Sem Possibilidade de Atividades Externas) e ICPAE (Internação Com
Possibilidade de Atividades Externas).
Em termos de recursos humanos, o centro conta com uma equipe composta por direção
(diretor e assistente de direção), equipe técnica (1 advogado, 2 assistentes sociais, 1 enfermei-
ra, 1 dentista,1 pedagoga, 1 profissional de educação física e 2 psicólogas), agentes socioedu-
cadores (62 pessoas) e equipe de apoio (administrativo, motoristas, manutenção e técnicos de
enfermagem), além de médico clínico e médico psiquiatra, que são terceirizados.
A escolarização dos adolescentes é oferecida pela Secretaria Estadual de Educação.
Sendo assim, na unidade, está inserida uma escola estadual - e todos os adolescentes do
CASE frequentam a escola. As aulas ocorrem nos turnos da manhã, da tarde e da noite,
com ensino fundamental e médio.

172
Em junho de 2021, o CASE de Santa Maria contava com uma capacidade de 39 vagas,
apresentando 37 internos, uma proporção de 94,9% da capacidade total, e dois adolescentes
em semiliberdade, representando 8% da capacidade, que é de 25 adolescentes (FASE, 2021).

O ACOLHIMENTO DO SOCIOEDUCANDO

O acolhimento é um momento que propicia, ao socioeducando que está chegando ao


CASE, conhecimento e esclarecimento da medida socioeducativa que ele irá cumprir, fa-
zendo com que ele assuma o compromisso com a sua reintegração social (BRASIL, 2014).
Essa percepção inicial poderá ser de aceitação, rejeição ou indiferença e influenciará nas
atitudes que permearão essa relação no decorrer do cumprimento da medida. É importan-
te destacar que esse trabalho inicial de aproximação do socioeducando se dá no processo
de construção do vínculo e participação da família, que é extremamente fundamental na
adesão da medida socioeducativa (BRASIL, 2014).
Para esse acolhimento, é necessário que a equipe se atente aos contatos iniciais, assu-
mindo atitudes que facilitem essa chegada, detalhes simples que fazem toda a diferença são
essenciais para uma permanência saudável do adolescente. São importantes ações como
chamar pelo nome, transmitir segurança e apoio, estando pronto para captar seu estado
emocional, não emitindo conceito de valor sobre seu ato infracional, ou até mesmo outros
constrangimentos pejorativos ao mesmo (BRASIL, 2014).
No CASE Santa Maria, quando um adolescente chega, de imediato ele passa por ava-
liação da equipe de enfermagem e, posteriormente, pelo atendimento da equipe técnica do
local, fica inicialmente em um dormitório individual para adaptação por alguns dias, para
aí, sim, ser transferido ao dormitório coletivo, com outros adolescentes. Esse período de
adaptação é para a ambientação do mesmo no local, entender onde está e por que. Neste
período, observa-se que os mesmos demonstram sentimentos de sofrimento, ansiedade,
estresse e irritabilidade. Em algumas situações, esses sentimentos são intensificados pela
abstinência do uso de drogas (CASE-SM, 2014; BRASIL 2014).
Quando esses jovens passam a conviver com os demais, esses sentimentos iniciais ten-
dem a mudar, as atividades em grupo vêm como uma boa opção para auxiliar no controle
da ansiedade e da raiva, e a oficina de meditação acaba sendo uma alternativa para esses
adolescentes conseguirem conviver com os demais de forma mais harmônica. O direcio-
namento para tal atividade é feito por meio da enfermeira e da psicóloga, que direcionam
para o grupo de meditação quando observam que o adolescente está com dificuldade em
lidar com a raiva, quando está com intolerância às frustrações ou que está muito ansioso.
Além disso, são consideradas público potencial para participar do grupo de meditação os
meninos que apresentam insônia, depressão ou, ainda, aqueles que possuem um histórico
recorrente de incidência em medidas disciplinares (CASE-SM, 2014; BRASIL 2014).
A oficina de meditação no CASE Santa Maria (Figura 1), ofertada pelo convênio do
LAPICS com a FASE, teve início em agosto de 2019 e encerrou em janeiro de 2020, sendo
a seleção dos primeiros participantes feita pela enfermeira e psicóloga da instituição. O

173
CASE estipulou que os atendimentos poderiam contar com até cinco participantes, um
número que é estabelecido para todo o tipo de atividade em grupo (Figura 1).
Figura 1 – Oficina de Meditação como forma de autocuidado

Fonte: autores.

A sistemática da oficina acontecia da seguinte forma: a sala era aromatizada com óle-
os essenciais de alecrim, lavanda e laranja doce, a fim de trabalhar emoções por meio da
inalação de aromas, desencadeando sensações e proporcionando um local agradável para
que os adolescentes falassem de suas emoções. Os participantes chegavam ao local, e as ca-
deiras já estavam dispostas em círculo, para a atividade ser realizada em grupo. A ambien-
talização acontecia com sons da natureza, havia uma apresentação inicial, e a terapeuta

174
explicava como ocorreria a atividade. Iniciava com um relaxamento, seguido de respiração
profunda e, após, a meditação guiada. O processo meditativo durava aproximadamente 20
minutos, e, aos poucos, a terapeuta solicitava aos participantes que fossem despertando e
relatassem o que haviam sentido naquele momento.
Como os adolescentes geralmente têm resistência para as atividades, inicialmente foi
difícil que eles realizassem a entrega ao momento e meditar sobre as falas da terapeuta,
algo que foi melhorando no decorrer das sessões, cada participante frequentou entre duas e
dez sessões e observou-se que, ao final de cada sessão, os participantes se mostravam mais
calmos. O objetivo principal da atividade era o ensino das técnicas de meditação para que
eles se utilizassem o conhecimento da prática nos seus dormitórios, para alívio da ansie-
dade durante o período de privação de liberdade. Durante todo o período de aplicação da
terapia, existiu rotatividade entre os participantes, essa rotatividade vinha por fatores como
medidas disciplinares que impediam o participante de continuar, consultas no horário da
atividade, opção de participar de outra atividade no horário, entre outras. Os participantes
que desistiram dos atendimentos tinham a opção de voltar à lista de espera quando dese-
jassem e aguardar vagas disponíveis.
A regularidade na prática de meditação permitiu que os adolescentes visualizassem seus
próprios padrões de comportamento, seja antes da privação de liberdade, seja dentro do
CASE, e, assim, eles tiveram a oportunidade de fazer do autocuidado uma rotina para suas
vidas no cumprimento da medida socioeducativa. Os adolescentes foram questionados
sobre a prática de meditação e se ela estava tendo algum benefício que eles conseguiam
perceber – e obteve-se relatos em como a meditação teve importância na diminuição das
atitudes que traziam prejuízos a si através de agressões e manifestação de raiva. Através da
meditação, eles conseguiram ter uma maior aceitação de suas fraquezas.
No diário de campo (Figura 2) que foi utilizado durante todo o período da oficina, alguns
participantes mencionaram que o autocuidado que eles obtiveram com a meditação lhes per-
mitiu a paz e um pouco de desconexão do ambiente em que se encontram, afastando, assim,
de maneira gradual, os pensamentos que instigavam a raiva. Um dos adolescentes relatou
que, quando tinha sentimentos de raiva, sentava na cama e utilizava as técnicas da medita-
ção para afastar esses pensamentos e conseguir lidar melhor com o momento em que estava
vivendo. Outro falou que a oficina era no dia de visitas – e isso fazia com que ele ficasse mais
tranquilo para a espera dos familiares. Todos os participantes destacaram que a meditação
foi um meio de lidar melhor com os sentimentos que estavam vivenciando e, principalmente,
encarar a realidade da privação de liberdade. A meditação ofereceu a eles uma sensação de
paz e equilíbrio, essa prática torna o praticante atento, experimentando o que a mente está
fazendo no momento presente, desenvolvendo o autoconhecimento e a consciência, com o
intuito de observar os pensamentos e reduzir o seu fluxo (BRASIL, 2017).

175
Figura 2 – Participantes escrevendo no diário de campo

Fonte: autores (2021).

A meditação tem um alto poder de estimular o bem-estar, reduzir o estresse e promover


um relaxamento exterior e interior. Na socioeducação, a meditação se apresenta como
uma forma de conscientização sobre quem os adolescentes são, a fim de diminuir os com-
portamentos negativos, trazendo a possibilidade de apreender a lidar com seus erros, am-
pliar a consciência e permitir uma reinserção na sociedade de forma mais leve e menos
traumática para o adolescente em conflito com a lei.

CONCLUSÃO

Muitas vezes que nos deparamos com situações de infrações executadas por adolescen-
tes e jovens, pensamos que o futuro destes é um caminho fácil para o mundo do crime – e
isso, de fato, pode acontecer quando não temos uma atuação contundente nas medidas de
socioeducação para os adolescentes em conflito com a lei.
Por vezes, não enxergamos como nós, sociedade civil, podemos ser responsáveis por
mudar a realidade dessas pessoas, que, sim, cometeram infrações, mas merecem, como
todos, uma oportunidade de mudança – e a nossa responsabilidade, como sociedade, é
reinseri-los na vida cotidiana.
Ao iniciar um projeto de meditação no CASE, tínhamos muitas dúvidas de como essa
prática poderia ou não ser aceita pelos adolescentes que, nessa fase da vida, trazem consigo
muitos questionamentos e anseios – tratando-se de adolescentes institucionalizados, isso é
ainda mais acentuado. Mas, ao mesmo tempo, partíamos de uma certeza que o nosso pa-
pel como extensionistas era nos doar para esses socioeducandos, e tivemos a grata surpresa
de, no decorrer do projeto, ter uma aceitação do público e incentivar a participação de cada
um como sujeito responsável pelo seu cuidado.

176
Observou-se, com este trabalho, o quão significativo foi para os participantes adentrar
no caminho da meditação, na busca do seu equilíbrio interior. Essa oficina fez com que eles
pudessem repensar sobre o que pretendem para sua vida. Alcançamos, assim, nosso princi-
pal objetivo, que era permitir a integração do indivíduo e torná-lo conhecedor de si próprio,
visando ao bem-estar integral, onde corpo, mente e espírito precisam estar em equilíbrio.

177
REFERÊNCIAS

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relógio biológico humano. In: FREITAG, V.; BADKE, M. (orgs.). Práticas integrativas e
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Association for Moral Education Conference. Anais… Santos, SP: 2015. Disponível em:
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em: 15 maio 2021.

179
PARTE
II
PROJETO “DNA AFETIVO KAMÊ E
KANHRU” NO CONTEXTO DA ARTE
COLABORATIVA COM COMUNIDADE
INDÍGENA KAINGÁNG

Andreia Machado Oliveira


Kalinka Lorenci Mallmann
Eliseu Balduino
O projeto DNA Afetivo Kamê e Kanhru (DNA AKK) tem sido desenvolvido dentro de
uma perspectiva colaborativa que integra arte, tecnologia e comunidades. O projeto iniciou
em 2016, através da pesquisa de mestrado da artista multimídia Kalinka Mallmann, com
orientação da Profa. Dra. Andreia Oliveira e colaboração do indígena kaingáng e do pro-
fessor de história, Joceli Sirai Sales. As ações que contemplam a prática DNA AKK estão
vinculadas, principalmente, ao não esquecimento da língua e dos modos específicos de or-
ganização social da cultura indígena kaingáng, por meio de ações inventivas e criativas em
arte e tecnologia. E, com base nos discursos lançados sobre arte e colaboração, buscamos
compreender esses processos de criação compartilhada. Atualmente, o projeto DNA AKK
se desdobra no projeto de extensão Ativação da cultura indígena por meio de práticas colaborativas
em arte, ciência e Tecnologia, contemplado em 2019 e 2020 pelo Edital ODH/PRE.
As ações realizadas até agora, consistem em laboratórios de criação audiovisual nas
escolas EEIEF Gormecindo Jete Tenh Ribeiro (Terra Indígena do Guarita km10 - RS) e
EEIEF Augusto Opê da Silva (Santa Maria/RS). Nesses laboratórios, vêm sendo produ-
zidos desenhos digitais referentes às marcas Kamê e Kanhru e cartografias do território das
comunidades, em que as crianças fotografam e filmam o território da aldeia e entrevistam
moradores das comunidades, com o intuito de marcar em um mapa físico as famílias Kamê
e as famílias Kanhru (Figura 1). As crianças colaboraram efetivamente com o jogo que está
sendo desenvolvido, criando os personagens, juntamente com a equipe, desenhando alguns
animais, alimentos, além de ilustrar as atividades que realizavam na aldeia, como pescar e
caçar (Figura 2). É importante destacar que a cada encontro entre a equipe do LabInter e
as crianças kaingáng na comunidade é gerado uma aura de afeto e respeito num processo
mútuo de aprendizagem. Tais metodologias trazem em si um processo recíproco entre to-
dos os agentes participantes, ao compartilharem saberes, desejos, hábitos, olhares, gestos,
experiências que atravessam e se encarnam no corpo, uma agregação com o coletivo, um
agenciamento coletivo a ser ativado e cartografado. “Nesse sentido, a colaboração está es-
tritamente relacionada ao afeto, à empatia, à solidariedade e à conectividade que há entre
os indivíduos” (MALLMANN, OLIVEIRA, SOARES, 2019, p. 146). Falamos não em
hierarquia e separação, mas em empoderamento pelo respeito à diferença e pela potência
do coletivo (OLIVEIRA, 2017).

182
Figura 1 – Laboratórios de criação: EEIEF Gormecindo Jete Tenh Ribeiro (Terra
Indígena do Guarita km10/RS) e EEIEF Augusto Opê da Silva (Santa Maria/RS).

Fonte: acervo do projeto DNA AKK.

Figura 2 – Laboratórios de criação: EEIEF Gormecindo Jete Tenh Ribeiro (Terra


Indígena do Guarita km10 RS) e EEIEF Augusto Opê da Silva (Santa Maria/RS)
- Fotografias: Kalinka Mallmann e Vicent Solar (Eliseu Balduino), desenhos e
ilustrações (criação coletiva)

Fonte: acervo projeto DNA AKK.

183
Nas últimas décadas, alguns artistas realizam uma arte efetiva e afetiva relacionada a
esses lugares específicos, com as próprias comunidades locais (LIPPARD, 2001). Identifi-
camos uma postura contemporânea generalizada que via na criatividade da ação coletiva e
nas ideias compartilhadas, uma forma de apropriação do poder pelos artistas, produzindo
um empoderamento social (BISHOP, 2012). As práticas artísticas colaborativas revelam
um conjunto de especificidades comuns, tais como: trocas efetivas com a comunidade e/
ou grupos, engajamento com questões sociais locais, entrelaçamento com outras áreas do
conhecimento e autoria coletiva. E, mais importante que esses apontamentos, além de
serem proposições processuais sociais destacadas de um objeto estético resultante, a troca
relacional se torna a própria práxis criativa (KESTER, 2006). Com o tempo, mais e mais
metodologias ganharam legitimidade que permitiram que os artistas pudessem trabalhar
juntos em uma variedade de modalidades colaborativas em projetos artísticos - como co-
letivos de vídeo, laboratórios de criação, oficinas, encontros, etc. – que numa geração an-
terior teria sido descartada como arte comunitária (KESTER, 2011, p. 9). Nesse sentido,
podemos pensar em modos de fazer para/com o outro em propostas de arte socialmente
engajada (HELGUERA, 2011). Os quais acontecem em meio ao protagonismo dos gru-
pos sociais e suas urgências e não apenas como uma proposição imperativa e isolada por
parte dos artistas. Compreendendo a arte como agente de transformação que “foca na
criatividade e iniciativa social”, e visualiza a produção artística como um lugar possível
(CANCLINI, 1980, p. 32-33). Reinaldo Laddaga (2006) discorre que “a arte de hoje está
contaminada de processos abertos, intensificados pela conversação, dilatando o tempo e o
espaço das experiências entre os sujeitos” (LADDAGA, 2006, p. 21).
Um dos desdobramentos do projeto DNA AKK foi a criação do jogo digital Kamê Ka-
nhru. Trata-se de um projeto em arte e tecnologia que está, atualmente, em fase de conclu-
são, implementação e, posteriormente, distribuição e exibição. A temática Kamê e Kanhru,
explorada na proposta e no jogo digital, representa a dualidade da sociedade indígena
kaingáng. Sabe-se que a organização sociocultural kaingáng é conhecida pelos seus prin-
cípios cosmológicos de acordo com o mito de origem, representado pelos antepassados
Kamê e Kanhru. Cada metade clânica possui uma marca/sinal, que usa em seus rituais: a
dos Kamê (é téj), dois traços paralelos e compridos, a dos Kanhru (ror), um círculo curto e
preenchido. Sendo que as pessoas da mesma marca são consideradas irmãs e irmãos, e os
que possuem marcas diferentes, cunhados e cunhadas. Para os kaingáng essas marcas são
relevantes para entender a concepção cultural, social e cosmológica de seus povos e como
eles se relacionam com o mundo. Segundo Jacodsen (2013), essa dualidade diz respeito a
uma percepção do universo que reflete a presença e influência do Sol e da Lua. Esses prin-
cípios cósmicos refletem o sistema de liderança em termos de um todo social composto por
duas metades, que são “opostos e complementares” simultaneamente, e são aplicados aos
humanos, animais, plantas, cosmo.
É relevante abordar que a proposta do jogo digital Kamê Kanhru visa a valorização da
língua kaingáng. Sendo assim, o jogo Kamê Kanhru foi desenvolvido bilíngue (kaingáng
e português), para que possa ser jogado nas escolas e comunidades kaingáng e na comu-

184
nidade não-indígena em geral. A criação do jogo conta com três objetivos principais de
valorização cultural: a ativação do princípio Kamê Kanhru; a ativação da língua kaingáng e
a valorização das relações entre os anciãos e as crianças. Para o povo kaingáng, a interação
entre os velhos (Kofá) e os jovens é de suma importância. Nessas comunidades, as crianças
e os adultos ocupam os mesmos espaços para aprender, o que resulta em crianças mais
autônomas, pois o seu aprender está baseado no ouvir, observar e experimentar (FERREI-
RA, 2019). Na relação criança e ancião, a criança kaingáng é parte legítima do cotidiano
de sua comunidade, onde compartilha tarefas com as demais pessoas de diversas idades,
desenvolvendo o coletivismo e reconhecendo-se como papel importante na perpetuação
de seus saberes e costumes. O ancião tem um papel fundamental na comunidade ao ser
referência de conhecimento e sabedoria.
O jogo em geral acontece em um ambiente 3D, por meio de missões que os jogadores
devem completar para que os vários níveis disponíveis sejam desbloqueados. A figura do
cacique, bem como a do kuian (pagé) e kujá (anciã) aparecerão com frequência no mundo
3D, para orientar o personagem principal a seguir suas metas com a sabedoria advinda da
cultura kaingáng (Figuras 3 e 4). Assim, é fortalecido também o valor e o respeito das lideran-
ças dentro da comunidade. Todos esses artifícios descritos foram pensados e elaborados para
que o jogo possa proporcionar uma imersão cultural realmente efetiva para o jogador. Tendo
em vista que esses jogos servirão também de apoio pedagógico para professores das escolas
indígenas, para que tratem das questões culturais de forma lúdica e atualizada.

Figura 3 – Gameplay Jogo Kamê Kanhru (diálogo entre avatar/personagem jogável


e Anciã)

Fonte: Print-screen - Jogo kamê Kainru - Programação, (Bruno Gottlieb), modelagem


3d (Elizabeth Uzoegwu), ilustração (Vicent Solar), acervo do projeto DNA AKK.

185
Figura 4 – Diálogo com Kuan, introdução do mini-jogo da pescaria

Fonte: Print-screen - Jogo Kamê kainru - Programação, (Bruno Gottlieb), Ilustra-


ções (Vicent Solar), Tradução (Joceli Sales), acervo do projeto DNA AKK.

Para reforçar a identificação das crianças kaingáng com o projeto, diversas ativida-
des interativas foram realizadas presencialmente nas escolas juntamente à comunidade por
meio dos Laboratórios de criação. Nesses laboratórios, as crianças puderam se expressar
através de ideias e de desenhos, os quais foram posteriormente utilizados para constituir
os minijogos dentro do projeto digital. A partir dessa estratégia, as crianças poderão re-
conhecer seu próprio trabalho no jogo e sentir-se realmente integrada ao projeto. Alguns
exemplos dessa colaboração no processo, encontramos no jogo de quebra-cabeça e no jogo
das palavras. Nesses jogos, as imagens foram completamente baseadas nos desenhos das
crianças (Figura 5).

Figura 5 – Mini-jogos. Respectivamente: Jogo do Tigre e dos Cachorros, jogo da


memória, quebra-cabeças, jogo das palavras, numerais, cestarias e pesca

Fonte: Print-screen - Jogo Kamê Kanhru - Programação, (Bruno Gottlieb), Ilustra-


ções (Criação colaborativa, finalização para o digital: Vicent Solar).

186
Visando a interação entre indivíduos kaingáng das marcas Kamê e Kanhru e o sentido
ancestral de complementaridade, um modo multiplayer foi adicionado ao jogo, o qual exige
cooperação e interação entre jogadores distintos. Trata-se do jogo dos Tigres e dos Cachor-
ros (que integra o jogo digital Kamê Kanhru), o qual é um jogo tradicional da cultura kain-
gáng, jogado em um tabuleiro. Por meio do jogo do Tigre e dos Cachorros são fomentados
valores como o espírito de equipe e a importância da cooperação. Em sua versão digital,
desenvolvida pela equipe do projeto DNA AKK, é possível que jogadores de diferentes co-
munidades do Brasil possam interagir juntos através da rede de Internet, ativando a coletivi-
dade e a colaboração entre os indivíduos. Sabe-se que as famílias das comunidades, muitas
vezes, possuem recursos limitados de acesso à informação pelo meio digital. A partir dessa
prerrogativa, foi construído um sistema onde até quatro pessoas poderão jogar no mesmo
dispositivo. Outra abordagem tomada foi a possibilidade de ampla compatibilidade do
jogo com diferentes plataformas. O jogo funciona em computadores, para ser utilizado nas
salas de informática das escolas ou mesmo por um computador portátil e também pode ser
acessado em dispositivos móveis, como celulares e tablets.
A Cartilha de atividades Kamê Kanhru foi também um dos resultados do projeto DNA
AKK. Foi realizada no período da vigência da bolsa do ODH, em 2020, concedida à
doutoranda Kalinka Lorenci Mallmann. O apoio do ODH também esteve presente no
trabalho de ilustração do artista Vicent Solar (Eliseu Balduino), bolsista do ODH em 2019.
Sua elaboração integra a metodologia de implementação do jogo digital Kamê Kanhru
acontecerá por meio de oficinas nas comunidades kaingáng e na rede municipal de ensino
da cidade de Santa Maria, subsidiado pela lei municipal Aldir Blanc. Trata-se de um ma-
terial de apoio, o qual será distribuído a cada criança das turmas das escolas que recebe-
rem o projeto de implementação do jogo digital. A cartilha conversa diretamente com as
questões culturais abordadas no jogo digital Kamê Kanhru, e, desse modo, ela foi elaborada
bilíngue, dando relevância ao idioma nativo kaingáng. O conteúdo didático trata de ativi-
dades pedagógicas, como jogo dos sete erros, labirintos, colorir, dentre outras alternativas
para as crianças interagirem com os personagens e a temática do jogo digital (Figura 6). As
atividades estão atreladas aos aspectos culturais kaingáng, como a alimentação, o uso das
plantas, a atividade de pesca, as marcas corporais, o parentesco cosmológico e o artesa-
nato. Alguns elementos da Cartilha são oriundos de materiais elaborados com as crianças
nas escolas kaingáng, como os desenhos do quebra-cabeça. Também é construído uma
referência afetiva com as comunidades que participam do projeto DNA Afetivo Kamê e Ka-
nhru, presente no jogo digital. Dentre essas referências, a Cartilha traz a escola kaingáng de
Santa Maria Augusto Opê da Silva e o personagem do professor Joceli Sales, integrante da
equipe do projeto, organizador e tradutor da obra proposta (Figura 6). A Cartilha também
traz o Centro Cultural da comunidade Terra Indígena do Guarita, km10.

187
Figura 6 – Cartilha de Atividades Kamê Kanhru, atividade de labirinto

Fonte: Ilustração do personagem: Vicent Solar. Criação da cartilha: Kalinka


Mallmann.

Figura 7 – Cartilha de Atividades Kamê Kanhru, atividade de sete erros

Fonte: Ilustração do personagem: Vicent Solar. Criação da cartilha: Kalinka


Mallmann.

188
Como a cultura kaingáng é o elemento motivador e orientador de todas as ações da
proposta DNA AKK, é relevante atentar que os modos de criação colaborativos sugeridos
nessa prática, proporcionam que a cultura indígena deixe de ser apenas tema artístico,
tornando-se contexto e conteúdo por meio das diversas experiências proporcionadas em
comunidade. Nesse sentido, a prática DNA AKK vem a permitir que os povos indígenas
sejam os contadores de suas próprias histórias e sabedorias. Portanto, os povos indígenas
resistem aos processos hegemônicos ao potencializar seus modos culturais por meio da
arte e do uso das tecnologias emergentes. Em suma, no projeto DNA AKK, pensamos
como as ações passadas e presentes se amplificam em ações futuras, através de um sen-
so de responsabilidade com o outro e da valorização da cultura kaingáng. Desse modo,
entendemos que aspectos culturais dos povos originários podem contribuir com valores
baseados em fazeres e saberes ancestrais a serem absorvidos significativamente em suas
formas coletivas e colaborativas. Entendemos que aspectos culturais dos povos originários
podem contribuir com tais valores ancestrais a serem absorvidos em suas formas coletivas
do saber, na perspectiva de uma comunidade global e um futuro mais inclusivo com outros
modos de relacionamento e arranjos sociais.

189
REFERÊNCIAS

BISHOP, C. The social turn: collaboration and its discontents. New York: Artforum,
February. p. 179-185. 2006. Disponível em: https://makinginvisibleart.wordpress.com/
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derno Brasil Arte Sustentabilidade, v. 2, n. 2, p. 11-35. São Paulo: Videobrasil. 2006.

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Salamanca. 2001.

MALLMANN, K. L.; OLIVEIRA, A. M.; PEREIRA, M. E. S. Prática artística em


comunidade indígena Kaingang: por uma metodologia colaborativa. PÓS: Revista do
Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, v. 9, n. 18, p. 129-147. 2019.

OLIVEIRA, A. M. Arte e comunidade: práticas de colaboração implicadas no comum.


PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, v. 7, n. 14.
2017.

190
DANÇAR A MISSA DA TERRA SEM MALES:
UM FAZER-DIZER DO CORPO QUE
PRONUNCIA O MUNDO

Odailso Berté
Crystian Castro
Mônica Correa de Borba Barboza
INTRODUÇÃO

A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o
que será. (GALEANO, 2015, p. 25).

No ano de 2002 vi pela primeira vez a obra Missa da Terra Sem Males realizada em frente
à Catedral de Santo Ângelo, RS, sendo encenada por um grupo de atores. Lembro-me da
sensação de assombro, atravessamento e imensa motivação em ser parte dela dando-lhe
movimento com a dança contemporânea. No mesmo ano, o compositor musical da obra,
Martín Coplas, assistiu a uma apresentação do grupo amador de teatro-dança que eu coor-
denava, Grupo Vida em Arte, na Romaria do Caaró, e nos convidou para atuar nas próxi-
mas edições da Missa da Terra Sem Males que ocorreram no Sítio Histórico de São Miguel
Arcanjo em 2002 e 20035.

A partir do relato acima, que situa como a obra Missa da Terra Sem Males6 chegou até
nós, iniciamos esta reflexão sobre a remontagem que fizemos da referida obra com os(as)
acadêmicos dos cursos de Dança da UFSM e, especificamente, com os(as) integrantes
do projeto de pesquisa Laboratório Investigativo de Criações Contemporâneas em Dança
(LICCDA). No ano de 2019, a UNESCO comemorou o Ano Internacional das Línguas
Indígenas, e esta foi a motivação para remontarmos a Missa da Terra Sem Males em nossos
fazeres artístico-formativos dentro da Universidade pública, tendo o apoio do ODH da
PRE/UFSM.
Nosso escrito inicia com uma apresentação da simbologia da Terra Sem Males na nar-
rativa sagrada do povo Guarani, expondo como ela pode ser ampliada para fomentar a
causa de todos os povos indígenas e de outros grupos sociais marginalizados. Atentos(as)
em trazer a voz indígena para o texto, o próprio compositor musical da Missa da Terra Sem
Males, o artista Martín Coplas – descendente do povo indígena Quéchua, nos concedeu
uma entrevista na qual compartilhou preciosas informações e relatos sobre como a criação
desta obra se deu calcada nas lutas sociais e na defesa dos povos originários, de sua histó-
ria e sua cultura. Com isso, e apoiados(as) no pensamento de Paulo Freire (2005; 2015),
chegamos à possibilidade de entender a dança como lugar de fala, como um fazer-dizer
do corpo que pronuncia o mundo quando atenta à realidade e às causas emergentes que
conformam nossos contextos socioculturais.

5 Relato do professor Odailso Berté que, na época, 2002, era coordenador e coreógrafo do Vida em Arte –
Grupo de Teatro-dança, de Santo Ângelo, RS.
6 A Missa da Terra Sem Males, criada em 1979, é uma missa católica e obra artística que, baseada na
simbologia Guarani da Terra Sem Males (Yvy Mara Ey), apresenta a igreja católica e os brancos pedindo
perdão aos povos indígenas da América pelo massacre dos seus antepassados. Texto: Dom Pedro Casaldáliga
e Pedro Tierra. Música: Martín Coplas.

192
YVY MARA EY, A TERRA SEM MALES

Na riqueza de suas crenças, o povo Mbya-Guarani guarda e cultiva um conjunto de nar-
rativas sagradas que conformam sua cosmologia. Essas narrativas podem ser compreendi-
das como míticas (sagradas e não sagradas) e históricas (sobre a conquista). Conforme um
dos interlocutores Guarani da pesquisa de Litaiff (2018), homens e mulheres brancos não
respeitam as histórias/mitos indígenas porque estas não são escritas, e este também é um
fator que dificulta os modos desses sujeitos relacionarem essas narrativas com sua história
e luta na atualidade. A abrupta cisão entre o mundo mítico e o mundo empírico, impingida
pela cultura branca ocidental, trouxe consequências drásticas para a relação entre mito e
práticas sociais guarani. No entanto, mais de quinhentos anos de sua resistência mostram
a bravura em, mesmo em meio às adversidades, manter sua cultura e esperança vivas.
No conjunto de narrativas sagradas dos Mbya Guarani, “Yvy Tenonde, a terra dos
imortais, é destruída dando lugar a Yvy pua’u, a Terra Nova ou Segunda Terra, lugar da
descontinuidade e da morte; e a Yvy Mara Ey, a distante terra da eternidade” (LITAIFF,
2018, p. 43). Yvy Mara Ey – Terra Sem Males é a esperança de um lugar sem sofrimentos,
sem mortes, onde há comida para todas as pessoas. Entre as diferentes versões das narra-
tivas existentes sobre a Terra Sem Males, o etnólogo alemão Curt (Unckel) Nimuendaju
(1883-1945), recolheu a seguinte, entre os Guarani Apapocuva:

Quando Nhanderuvuçu (nosso grande Pai) resolveu acabar com a terra, devido à
maldade dos homens, avisou antecipadamente Guiraypoty, o grande pagé, e mandou
que dançasse. Este obedeceu-lhe, passando toda a noite em danças rituais. E quando
Guiraypoty terminou de dançar, Nhanderuvuçu retirou um dos esteios que sustenta
a terra, provocando um incêndio devastador. Guiraypoty, para fugir do perigo, partiu
com sua família para o Leste, em direção ao mar. Tão rápida foi a fuga, que não teve
tempo de plantar e nem de colher a mandioca. Todos teriam morrido de fome, se não
fosse seu grande poder que fez com que o alimento surgisse durante a viagem.
Quando alcançaram o litoral, seu primeiro cuidado foi construir uma casa de tábuas,
para que quando viessem as águas ela pudesse resistir. Terminada a construção, reto-
maram a dança e o canto.
O perigo tornava-se cada vez mais iminente, pois o mar, como que para apagar o
grande incêndio, ia engolindo toda a terra. Quanto mais subiam as águas, mais Gui-
raypoty e sua família dançavam.
E para não serem tragados pela água, subiram no telhado da casa. Guiraypoty cho-
rou, pois teve medo. Mas sua mulher lhe falou:
- Se tens medo, meu pai, abre teus braços para que os pássaros que estão passando
possam pousar. Se eles sentarem no teu corpo, pede para nos levar para o alto.
E, mesmo em cima da casa, a mulher continuou batendo a taquara ritmadamente
contra o esteio da casa, enquanto as águas subiam.
Guiraypoty entoou então o nheengaraí, o canto solene guarani. Quando iam ser tra-
gados pela água, a casa se moveu, girou, flutuou, subiu... subiu até chegar à porta do
céu, onde ficaram morando.
Esse lugar para onde foram chama-se Yvy mara ey (a Terra sem males). Aí as plantas
nascem por si próprias, a mandioca já vem transformada em farinha e a caça chega
morta aos pés dos caçadores. As pessoas nesse lugar não envelhecem e nem morrem
e aí não há sofrimento (CNBB, 2001, p. 55-56).

193
Como símbolo de uma “Terra” e não um “céu” sem mal, um outro mundo possível,
uma sociedade justa e promotora da dignidade humana, a Terra Sem Males foi a inspira-
ção para a composição sacra e artística da Missa da Terra Sem Males. Esta obra “começou a
brotar sobre a pedra das Ruínas de São Miguel [...]. Contra toda a violência, contra todo o
sangue derramado, o Povo Guarani foi capaz de sonhar a Terra Sem Males [...], a utopia
possível. A utopia construída pela luta dos oprimidos” (TIERRA, 2002, p. 3). Nas palavras
do co-autor do texto da referida obra, está o sentido esperançoso da utopia possível da Ter-
ra Sem Males como projeto de sociedade, alavancada pela luta dos grupos marginalizados
em prol de seus direitos, de sua dignidade.
Para nós, artistas e professores(as) da dança, dançar a obra Missa da Terra Sem Males
se conecta à movente esperança de Guiraypoty e sua família que, quanto mais subiam as
águas, mais dançavam. A dança como motor da utopia, como lugar de fala, como fazer-di-
zer do corpo (SETENTA, 2008) que intervém no mundo pronunciando-o, fazendo-se uma
forma de luta que move a história e pode contribuir na criação de um mundo de relações
mais justas. Nesse sentido, prosseguimos esta reflexão trazendo elementos da criação da
obra Missa da Terra Sem Males através da trajetória de seu compositor musical, o artista
indígena Martín Coplas, e, com isso, chegaremos aos processos criativos em dança da re-
montagem da referida obra.

A CRIAÇÃO DA MISSA DA TERRA SEM MALES:


NAS TRILHAS MUSICAIS DE SEU COMPOSITOR

E Martín Coplas, argentino, descendente de Quéchua e Aymara – pseudônimo


com sabor de alma musical popular que carrega o respaldo prócero de Martin
Fierro – diria, em solfa, em várias músicas aborígenes do Continente, a parte
mais profunda. Por Martín falariam outra vez as flautas dos Andes emudecidas e
o amedrontado tambor do coração do meu Povo (CASALDÁLIGA, 1979, p. 1).

“Casualmente hoje é o aniversário da minha mãe, ela é Quéchua, autóctone, ela tem 94
anos de idade”, assim o músico argentino Martín Coplas, de nome original Mário Alberto
Pachado, iniciou os relatos sobre a criação da obra Missa da Terra Sem Males da qual é o
compositor musical. De origem indígena, Coplas tem por sua mãe um respeito ancestral e
considera que “ela é a fonte. Ela é a raiz da terra”. Nascida na comunidade indígena Qué-
chua de La Hoyada, região de cordilheiras, no norte argentino, fronteira com o Chile, com
sete anos de idade ela foi levada para a cidade de Catamarca, há 200 km da aldeia. Com
doze anos, foi trazida para Buenos Aires, para trabalhar como empregada doméstica. “Mi-
nha mãe é muito inteligente, conseguiu sobreviver. Hoje ela tem 94 anos e está tranquila”,
diz Coplas ao comentar sobre o choque cultural que foi para ela sair da aldeia indígena e
vir para uma cidade e em seguida para a metrópole Buenos Aires7.

7 Entrevista de Martín Coplas concedida a Odailso Berté, em 29 de abril de 2021, através de videochamada
do aplicativo WhatsApp, Santa Maria/Taquara, RS.

194
Na história da mãe deste artista indígena se reflete a história de resistência de tantas
mulheres e homens indígenas dos mais diferentes povos da América que, perante os dolo-
rosos processos da colonização, tiveram que se adaptar para sobreviver. Nascido em 15 de
novembro de 1950, na cidade de La Plata, o pequeno Mário Alberto Pachado aprendeu a
cantar com sua mãe: “Eu também ouvia a minha mãe que cantava... ‘Tu que puedes, vuél-
vete’, de Atahualpa Yupanqui, [...]. Ela cantava muito bem, eu aprendi a cantar com ela”8.
Coplas reconhece com estima o legado que sua mãe indígena lhe deu, de fazer empanadas,
cantar, e o levar aos programas de auditório da rádio Província, aos domingos, para ver
tantos artistas e músicos de folclore argentino.
Além de estudar em uma boa escola primária, ao estilo francês, Coplas frequentou a
Casa del Niño General Belgrano, onde teve aulas de canto coral e disciplina específica
sobre o folclore argentino com um professor que tocava violão e flauta quena. Com sua
esposa, que era também merendeira, o professor ensinava as coreografias das 75 danças
do folclore argentino catalogadas pelo Ministério da Educação. “Eles nos ensinaram tudo
isso, inclusive sapateio, de malambo”, comenta Coplas, enfatizando seu aprendizado de
danças como “gato, chacareira, zamba, arunguita, la huella, el pala-pala, los amores, el es-
condido, el pericón nacional... Conheço todas no seu tempo, no seu ritmo. Ele me ensinou
a sapatear, no contato com chão, a me expressar”9.
Além deste valioso aprendizado, proporcionado pelo projeto educacional do governo
de Juan Domingo Perón, Coplas destaca que sua formação artística também tem raízes
populares. No bairro onde vivia, seus vizinhos provinham de cidades do interior como
Corrientes, Misiones, Formosa e Chaco, e muitos eram descendentes dos Guarani das
reduções jesuíticas. Com poesia nas palavras, Coplas conta:

Na esquina do bairro eu ouvia a gaita verdulera, eles tocavam chamamé, eram de


Corrientes, de Misiones. Há duas quadras, se ouvia um bumbo leguero, eram os
santiagueños, de Santiago del Estero, de parentes salteños, tucumanos, do norte
argentino e de Misiones... são as grandes forças que estruturaram a Argentina. Es-
tava tudo lá. [...] O povo me deu essas informações, cada um com sua identidade10.

Sua formação artística, provinda dessas raízes culturais, também se mesclou com a mi-
litância política quando, já no ensino médio, sua mãe o levou para um comício na sede do
Partido Socialista de Los Trabajadores, em La Plata. Neste espaço, junto da iniciação ao
marxismo e a ênfase na transformação social, Coplas conheceu lideranças, intelectuais, poe-
tas e poetizas como Pedro Zárate e Fernanda Paz, e o antropólogo boliviano Colla Mercado,
com quem, além da amizade, desenvolveu diferentes trabalhos. Coplas considera que “o que
deu caminho para abrir mais meu horizonte foi a poesia, para poder [...] chegar a uma trans-
formação”11. Em um caldeirão sociocultural, que atravessa o governo peronista, populista,
8 Idem.
9 Idem.
10 Idem.
11 Idem.

195
que valoriza a identidade, o trabalhador, chegando às ditaduras, tudo isso foi moldando a
subjetividade do artista. A conexão entre arte e política levou Coplas a integrar grupos mu-
sicais e universitários, entrecruzando música, poesia e dança, sempre na perspectiva crítica e
alentado pelo sonho da construção de uma sociedade baseada na justiça social.
A partir de 1972, a dificuldade em seguir a vida como artista no conturbado cenário
ditatorial argentino fez Martín Coplas chegar à cidade de Uruguaiana, no Sul do Brasil,
onde passou a integrar um promissor movimento cultural provocado pelo festival Califór-
nia da Canção Nativa de Uruguaiana. Resgatando um personagem de um espetáculo dos
tempos da militância no Partido Socialista de Los Trabajadores, criado por Pedro Zárate,
Mário Alberto Pachado adotou o nome artístico Martín Coplas, e assim se tornou conheci-
do no Rio Grande do Sul, sendo, inclusive, citado no texto da peça teatral Bailei na Curva
(1983), de Julio Conte. Na cidade de Santa Maria, RS, Coplas integrou atividades junto
ao movimento estudantil da UFSM e a lideranças como Beto São Pedro e Adelmo Genro
Filho, tendo estreitado laços com artistas como o pintor Claudio Carriconde e o violonista
e professor da UFSM Alvaro Pierre.
Fazendo sua trajetória na música nativa, Martín Coplas desenvolveu seu projeto artís-
tico em profunda ligação com a herança dos povos originários latino-americanos. Tendo
já criado e participado de diferentes shows e recitais, Coplas criou, em 1977, o espetáculo
musical O grito de uma raça, apoiado pela Associação Nacional de Apoio ao Índio (ANAI),
obra que circulou pelo interior do Rio Grande do Sul. A repercussão desse importante
trabalho fez com que Coplas fosse convidado, por intermédio de Júlio Geiger e Antonio
Cechin (membros da ANAI) para participar da proclama indígena com o bispo católico
Dom Pedro Casaldáliga (1928-2020) e pelo líder político e escritor Pedro Tierra (1948) no
Sítio Histórico de São Miguel Arcanjo, em 1978, este considerado o Ano dos Mártires da
Causa Indígena. “Meu primeiro contato com Dom Pedro foi em 1978, nas Ruínas de São
Miguel [...]. Aí conheço Dom Pedro e Pedro Tierra. [...] Eles já tinham me mandado a
letra da missa, o texto. E eu já tinha feito alguns esboços musicais”12.
No lugar emblemático das ruínas da antiga catedral da redução jesuítico-guarani
de São Miguel Arcanjo deu-se o encontro que selou a criação da obra Missa da Terra Sem
Males, que tem seu texto escrito por Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra e a música
composta por Martín Coplas. A primeira realização desta obra se deu no ano de 1979, na
Catedral Metropolitana da cidade de São Paulo13.

A Missa da Terra Sem Males brotou em terra Guarani, o Povo-aliança da Améri-


ca Índia. [...] A mesma Igreja que abençoou a espada dos conquistadores e sacra-
mentou o massacre e o extermínio de povos inteiros, nesta missa se cobre de cinza
e faz sua própria e profunda penitência. [...] A Missa da Terra Sem Males é uma
convocação a todos os oprimidos da América que marcharam durante séculos
e marcham hoje em busca da Terra Sem Males libertada (TIERRA, 1979, p. 1).

12 Idem.
13 Uma produção em vídeo feita pela Verbo Filmes documenta a primeira Missa da Terra Sem Males, na
Catedral Metropolitana de São Paulo, em 1979. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pBN-
qtK-VF5g&t=1105s. Acesso em: 8 maio 2021.

196
Uma missa que inverte a pretensa autoridade dos homens da igreja católica que
ainda seguem as premissas do nefasto projeto colonialista. Coloca a igreja no seu devido
lugar de servidora e pecadora que coleciona muitos erros ao longo da história, erros que
contradizem de maneira superlativa o projeto humanista e popular do líder que diz seguir,
Jesus Cristo. Esta missa-obra artística é uma criação que engloba aspectos aparentemente
contraditórios entre si. Primeiro, é rito e arte, dimensões da vida humana que já foram uma
coisa só e que a sociedade ocidental separou e as colocou em lados opostos, autorizando
apenas determinadas formas de arte que cumprissem com o fim de ser instrumento de
catequização. A arte que fora também rito se tornou apenas instrumento metodológico de
um ritual discursivo vazio de experiência estética. Segundo, esta é uma obra que junta um
ato sagrado do colonizador com uma narrativa sagrada do colonizado, operando uma ou-
tra lógica inter-religiosa que, na visão da tradição católica, é da ordem do condenável e do
sacrílego, pois implode a lógica ocidental, branca, eurocêntrica, patriarcal e conservadora
ao entrecruzar cristão e pagão.

Eu, missionário, espanhol – no caso, ser catalão não fez diferença –, diria mi-
nha parte de contrição, em nome da Espanha colonizadora e em nome da Igre-
ja Missionária. [...] Esta Missa já escandalizou a alguns. E não apenas à TFP
(Tradição, Família e Propriedade) que a tachou de “sacrílega” e “blasfema”. [...]
Imagino que escandalizará também a alguns dos meus nostálgicos patrícios. [...]
O etnocentrismo e o lucro capitalista – e todo tipo de egoísmo pessoal, étnico ou
econômico impedem entender e assumir não apenas esta Missa, mas toda Missa.
Porque toda Missa verdadeira escandaliza necessariamente. A Missa é sempre
uma ruptura, um sacrifício, uma passagem libertadora da morte para a vida: Pás-
coa (CASALDÁLIGA, 1979, p. 1).

Um bispo, um líder que já fora preso político e um descendente indígena se juntam
na criação de uma obra que causa desassossegos, incomoda, desconcerta a compreensão
colonialista e acende a chama da esperança de quem sonha e trabalha por outro mundo
possível. Esta obra eleva a tradicional celebração católica, que recorda e tem como centro
a ceia onde Jesus Cristo diz que seu corpo é pão e seu sangue é vinho entregues em prol
da vida de todos(as), à potência desta sua verdadeira essência. O sagrado cristão e (o dito)
pagão se entrelaçam instaurando um rito-arte que, ao unir poesia, música e dança com a
profissão de fé, realiza um ato de profanação (AGAMBEN, 2007), ou seja, um ato que
toca e faz um uso particular daquilo que foi separado da esfera humana comum, dando-lhe
novos sentidos, trazendo-o de volta ao seio da vida, da comunidade, dos corpos reunidos.

A Missa da Terra Sem Males se construiu com as pessoas que me ajudaram e ao


mesmo tempo porque eu sempre procurei fazer obras, [...] folclore latino-ameri-
cano. [...] Eu já estava na luta da causa indígena, tudo o que eu sabia coloquei
dentro desta obra... Desde o sapateio do meu professor... Ela chega a mim pelas
lutas sociais do momento do encontro com Dom Pedro14.

14 Entrevista de Martín Coplas concedida a Odailso Berté, em 29 de abril de 2021, através de videochama-
da do aplicativo WhatsApp, Santa Maria/Taquara, RS.

197
Como forma de mostrar as raízes culturais da América, Coplas selecionou ritmos in-
dígenas e populares de diferentes regiões do Continente Americano: Chaya, dos Andes;
Lonco-Meo, do Sul da Califórnia; Baguala e Cueca Andina, dos Andes Meridionais; Dan-
ça Toba, do Chaco Astral e Boreal; Yaravi, da região setentrional dos Andes; Vidala, dos
Vales Calchaquies; Malambo, do Sul da América; Huayano, da Cordilheira dos Andes;
Kaluyo, ritmo pré-colombiano; Chacarera Trunca, do Nordeste da Argentina; Pampeano,
região pampeana; Retumbo, de origem Mapuche e Araucana. Como bem disse Casal-
dáliga (1979), na Missa da Terra Sem Males, por Martín Coplas falam as flautas indígenas
emudecidas e os tambores amedrontados do coração dos povos originários americanos.
Arte – Fé – Vida entrelaçadas no compromisso histórico-social de rever os erros, assumir
as culpas e, com remorso crítico, pôr-se na construção de novas formas de conivência, res-
peito e vida em comum, uma nova sociedade.

O PROCESSO CRIATIVO EM DANÇA DA MISSA DA TERRA SEM MALES



Como dissemos anteriormente, no ano de 2019 a UNESCO comemorou o Ano
Internacional das Línguas Indígenas, alertando para o respeito e para a preservação
desse valioso patrimônio dos povos originários. Por meio de uma ação do Projeto de
Extensão De terra seus corpos, em parceria com o ODH da PRE/UFSM, realizamos a
celebração do Ano Internacional das Línguas Indígenas com a remontagem da core-
ografia Terra Sem Males (adaptação de fragmentos da obra Missa da Terra Sem Males),
envolvendo três turmas dos cursos de Dança da UFSM (Licenciatura e Bacharelado),
das disciplinas de Estudos dos Processos Criativos II, Fundamentos da Produção de
Espetáculos e Procedimentos de Criação I.
No Projeto de Extensão De terra seus corpos já vínhamos desenvolvendo um trabalho
artístico-pedagógico com jovens da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Igi-
neo Romeu Koenjú, da comunidade Guarani Tekóa Koenjú de São Miguel das Missões
(BERTÉ, 2020). Desse modo, este trabalho junto à comunidade Guarani, que resultou na
apresentação do espetáculo Som e Luz em Corpos no Sítio Histórico de São Miguel Arcanjo,
foi a base que potencializou o trabalho formativo e artístico da coreografia Terra Sem Ma-
les, desenvolvida com 40 estudantes dos cursos de Dança da UFSM. A mostra da primeira
montagem desse trabalho foi realizada em junho de 2019, no Complexo Didático e Artísti-
co (CDA) do Centro de Educação Física da UFSM15. Após esta mostra, a coreografia Terra
Sem Males permaneceu sendo trabalhada e teve seu processo criativo aprofundado junto a

15 Um registro da primeira montagem da coreografia “Terra Sem Males”, feito pela TV Câmara de Santa
Maria, RS, pode ser apreciado em: https://www.youtube.com/watch?v=1BPlvl2Zyic&t=397s. Acesso em:
9 maio 2021. Direção dos professores Odailso Berté e Crystian Castro.

198
13 intérpretes-criadores(as) e docentes do Laboratório Investigativo de Criações Contem-
porâneas em Dança (LICCDA)16.
Com o grupo LICCDA duas outras versões deste trabalho artístico foram criadas e apre-
sentadas. A primeira delas desenvolveu-se mediante o convite do compositor musical Martín
Coplas para integrarmos a obra completa Missa da Terra Sem Males, realizada conforme a litur-
gia católica. Com isso, seguimos para um aprofundamento do processo criativo desse trabalho
artístico, tendo agora a estrutura e o roteiro completos da obra original como base. Por meio de
um estudo minucioso da música e do texto da obra com os(as) intérpretes-criadores(as) do LIC-
CDA, o processo criativo se deu por meio do uso da palavra e da sonoridade (vocal e musical)
como motivadores da construção de movimentos. Cada um(a) dos(as) intérpretes-criadores(as)
recebeu trechos dos textos em português, Guarani, Makuxi, Karajá, Tapirajé e Aymara, grava-
dos em áudio17, do bloco Memória Penitencial que integra a obra. Nesse ato penitencial, que é
o momento do rito de perdão dentro da missa, indígenas recordam o que eram e como viviam
enquanto brancos colonizadores assumem o que fizeram e como destroçaram o modo de vida
nativo. Além deste, foram trabalhados os blocos canto à Morena de Guadalupe, Compromisso
Final e Réquiem dos Mártires, que compõem a Missa da Terra Sem Males, e sua apresentação foi
em frente à Catedral de Santo Ângelo, RS, em setembro de 201918.

Figura 1 – Coreografia da Memória Penitencial da Missa da Terra Sem Males, em


Santo Ângelo (2019)

Foto: Fernando Gomes. Arquivo dos autores.


16 O Laboratório Investigativo de Criações Contemporâneas em Dança (LICCDA) é um grupo de pes-
quisa, um coletivo de artistas – discentes, docentes e pesquisadores de pós-graduação dos cursos de Dança
da Universidade Federal de Santa Maria – engajado com a pesquisa artística no campo da dança. O grupo,
iniciado em 2014 pelo Prof. Dr. Odailso Berté, tem criado e apresentado obras de dança contemporânea em
espaços como escolas públicas de educação básica, teatros, feiras, sítios arqueológicos, entre outros, contri-
buindo para a ampliação e democratização do acesso a bens culturais de dança desenvolvidos na Universi-
dade pública.
17 A obra completa Missa da Terra Sem Males, texto e música, foi gravada em CD pela produtora Verbo
Filmes, no ano de 2002.
18 Um registro da apresentação da Missa da Terra Sem Males em setembro de 2019, em frente à Catedral
de Santo Ângelo, RS, feito pelo Portal das Missões, pode ser apreciado através do link: https://www.youtu-
be.com/watch?v=iRZfi5f20gE. Acesso em: 9 maio 2021.

199
Com suas criações autorais, cada um(a) dos(as) intérpretes-criadores(as) trouxe ao gru-
po sua forma de expressar as sensações e provocações trazidas pelas imagens suscitadas
pelo texto e pela sonoridade das vozes e das músicas. Realizar esse tipo de feitura de dança
contemporânea dentro de uma missa católica com tal força política, é um rompimento de
paradigmas. Os(as) dançarinos(as) irrompem em cena, em frente ao altar, às autoridades
eclesiásticas e ao povo, (re)interpretando a obra por meio do movimento, não de uma dan-
ça ilustrativa. Nesta obra, eles(as) não dançam a música e tampouco representam o texto,
mas, sim, dançam uma/sua dança que ressignifica a história dos povos originários. Des-
cendentes de povos indígenas, negros, alemães e italianos, os(as) dançarinos(as) do LICC-
DA acentuam em seus corpos uma causa que é de todos(as), é o corpo na luta e como luta,
com sua arma que é arte. Nesta missa, o verbo/palavra se faz carne/corpo reivindicando
o direito e o dever de todos os corpos, de viver e lutar pela vida, contribuindo assim, aqui
e agora, para a construção de uma Terra sem males.
A segunda versão criada (com os blocos Memória Penitencial, canto à Morena de Gua-
dalupe, Compromisso Final e Réquiem dos Mártires fora da liturgia católica), desta vez in-
cluiu um profícuo diálogo entre dança e muralismo. Imagens da pintura mural A Lenda de
Imembuí (1976), de Eduardo Trevisan, localizada no Salão Imembuí da Reitoria da UFSM,
foram usadas para motivar e criar outras composições de movimento da coreografia. Este
mural tem como referência o conto da origem da cidade de Santa Maria, com seus prota-
gonistas a indígena Guarani Imembuí e o bandeirante português Morotin.

Figura 2 – Coreografia Terra Sem Males em frente ao mural A Lenda de Imembuí (2019)

Foto: Arquivo PRE/UFSM.

200
A apresentação deste trabalho ocorreu na abertura do 2.º Fórum de Direitos Humanos
da UFSM, em novembro de 2019, sendo realizada em frente ao mural que inspirou a cria-
ção dos novos elementos coreográficos, gerando uma exuberante visualidade no entrecru-
zamento entre as artes visual e cênica. Em suas diferentes versões, a coreografia Terra Sem
Males, dentro ou fora da liturgia católica, exorta, questiona, anuncia, denuncia e pronuncia
o mundo, as injustiças, a história e o compromisso com a construção de um projeto de
sociedade mais equânime. Consideramos a dança, nesta perspectiva que aqui refletimos,
como um lugar de fala, o dançar como a nossa forma de dizer, de pronunciar o mundo,
conforme as reflexões de Paulo Freire (2005; 2015), que a seguir desenvolveremos.

DANÇA COMO LUGAR DE FALA

Ao refletir sobre nosso fazer-pensar artístico em torno da obra Missa da Terra Sem Males
com base nas proposições do educador e pensador brasileiro Paulo Freire (2015), compre-
endemos que é a “palavra verdadeira” que permite aos homens e mulheres a pronúncia
de mundo – “um ato de criação e recriação” que não ocorre “sem o amor que o funda”
(FREIRE, 2015, p. 92), pois o amor é o fundamento do diálogo. Consideramos este pro-
cesso criativo coletivo de dança como sendo um fazer artístico dialógico no qual, confor-
me Salles (2017), se experimenta a “autoria em rede” (SALLES, 2017, p. 40) ou a própria
“criação como rede” (SALLES, 2017, p. 36). Os sujeitos em criação interagem, trocam,
dialogam e partilham seus modos de se (mo)ver n(o) mundo.
Embora a palavra verbalizada vocalmente nem sempre apareça como centralidade na
dança, entendemos que o gesto, o movimento, a ação do corpo são a nossa “palavra”. A
dança, que é pensamento-ação integrados, é o fazer-dizer do corpo (SETENTA, 2008),
um ato de fala que age no mundo. Como campo de estudos e como arte, a dança faz-se o
nosso lugar de fala, o modus operandi de nossa práxis. Com Freire (2005), compreendemos
que “o mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronuncian-
tes, a exigir deles um novo pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas
na palavra. No trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 2005, p. 90). Na dança contempo-
rânea criada de maneira coletiva, mediada pela palavra e instauradora do movimento/
gesto/ação que é o fazer-dizer do corpo, encontramos caminhos de pronúncia de mundo
que provocam nossos(as) estudantes/intérpretes-criadores(as)/dançarinos(as) a um novo
pronunciar, uma dança-palavra – ação-reflexão que é também uma forma de participação
cidadã na conjuntura social.

[...] não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente


tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado,
construído, política, estética e eticamente por nós, homens e mulheres. A utopia
implica essa denúncia e esse anúncio, mas não deixa esgotar-se a tensão entre
ambos quando da produção do futuro antes anunciado e agora um novo presente
(FREIRE, 2015, p. 126).

201
Refletindo sobre nosso fazer artístico em torno da obra Missa Terra Sem Males junto com
nosso estimado Paulo Freire, fazemos-pensamos a dança na perspectiva de um futuro a ser
inventado desde hoje, política, ética e esteticamente por nós. Parafraseando Freire (2015)
compreendemos que não podendo tudo, a arte pode alguma coisa. A dança pode ser uma
forma de intervenção no mundo – denúncia e anúncio, pronúncia de mundo – a contribuir
na utopia-projeto de uma Terra sem males. Ao refletir sobre como nosso tempo é especia-
lista em criar ausências do sentido da própria experiência de vida e do convívio social, o
filósofo brasileiro/indígena Ailton Krenak (2019) reflete sobre a intolerância

com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de


dançar, de cantar. [...] Então pregam o fim do mundo como uma possibilidade de
fazer a gente desistir dos nossos sonhos. [...] Cantar, dançar e viver a experiência
mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é am-
pliar o nosso horizonte [...]. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria
que esse tempo que nós vivemos quer consumir (KRENAK, 2019, p. 26-32).

A dança contemporânea que realizamos nas diferentes versões da Missa da Terra Sem
Males não se equivale às danças indígenas autóctones e muito menos nos coloca no lugar
desses sujeitos, tirando seu lugar de fala. Nós dançamos mediados/impelidos por suas
vozes. No hall de possibilidades e estilos das danças cênicas, esta tem sido uma forma de
pensar-fazer dança que nos possibilita considerar o sujeito que dança e suas experiências,
valorizar as possibilidades dos corpos diferentes, fazendo da arte uma ferramenta de luta
em prol de uma causa que é indígena e também de todos os grupos sociais marginaliza-
dos historicamente: mulheres, negros(as), sujeitos LGBTQIA+, pessoas com deficiência e
também a defesa do meio ambiente. Recordando Pedro Tierra (1979), “a Missa da Terra
Sem Males é uma convocação a todos os oprimidos da América” (TIERRA, 1979, p. 1)
de ontem e de hoje, a denunciarem a opressão, anunciarem a esperança e pronunciarem o
mundo, o outro mundo possível de ser construído.

Hoje, e cada dia mais, a Missa da Terra Sem Males tem uma importância fantás-
tica. Está falando do sonho guarani para todo o mundo. Pois é um sonho guarani
a Terra Sem Males, é um todo, para toda a humanidade. Nossos povos originários
acreditavam em uma terra sem males, como tantos outros povos da América que
também acreditam em outras narrativas19.

A criação da obra Missa da Terra Sem Males, alentada pelo sonho-utopia-fé guarani, se
deu de maneira coletiva, entre um bispo espanhol, amoroso, crítico e consciente da culpa
de seus antepassados colonizadores – Dom Pedro Casaldáliga; um escritor, líder de esquer-
da e que foi preso político – Pedro Tierra; e um artista/músico indígena descendente do
povo Quéchua – Martín Coplas. Do primeiro ao mais recente chamado de Martín Coplas
– Mário Alberto Pachado para dançarmos a Missa da Terra Sem Males, acolher esse convite

19 Entrevista de Martin Coplas concedida a Odailso Berté, em 29 de abril de 2021, através de videochama-
da do aplicativo WhatsApp, Santa Maria/Taquara, RS.

202
tem sido uma honra, uma forma de deixar-nos mover pelas vozes indígenas que ecoam ao
longo da história manchada de sangue pelos brancos invasores da América. A voz e a mú-
sica de Coplas – Pachado, que ressoa a fala e os ritmos dos povos originários do continente
americano, impele a nossa fala-dança – o fazer-dizer do corpo – a tornar carne esse verbo,
unindo a nós corpos à causa indígena e às causas de outros grupos sociais marginalizados.
“Quanto mais subiam as águas, mais Guiraypoty e sua família dançavam”, diz o mito
da Terra Sem Males. A esperançosa dança foi tão intensa que a casa dançou junto, girou,
flutuou e suspendeu o céu. Uma dança teimosa que, contra todas as adversidades insiste
em continuar em movimento para manter a utopia viva, para ampliar o horizonte e enri-
quecer as subjetividades de todos os corpos. Na taquara ritmada e na voz da mulher espe-
rançosa que, frente ao desespero de Guiraypoty, diz para que ele abra os braços a fim de dar
pouso aos pássaros e assim ganhar asas, encontramos a motivação, o alento e a renovação
do compromisso social a que deve nos levar sempre a nossa dança. “Dance, dance, ou
estaremos perdidos” (TAVARES, 2017, p. 7), disse a coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-
2009), dando-nos assim outro alento para persistirmos fazendo-pensando a dança como
lugar de fala, como fazer-dizer do corpo que intervém no mundo pronunciando-o, dando,
assim, nossa contribuição artística na construção de uma Terra sem males.

203
REFERÊNCIAS

BERTÉ, O. “Olhem só, eles agora estão dançando”: habitar o patrimônio cultural com
os/as Mbyá-Guarani. In: VIEIRA, M. de S. (org.). Escritos sobre dança. Natal: ANDA,
2020.

CASALDÁLIGA, P. Missa da Terra Sem Males. 1979. Disponível em: http://www.


dhnet.org.br/direitos/militantes/casaldaliga/casaldaliga_missa.html. Acesso em: 8 maio
2021.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Por uma terra sem males:
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204
RECUPERANDO NASCENTES E
SABERES TRADICIONAIS:
ESTUDO DE CASO NA TERRA
INDÍGENA DO GUARITA

Suzane B. Marcuzzo
Kessia Abich Rodrigues
Andre Luis Soares
Alexssandro de Freitas de Morais
Lucas Gavioli Ganciné
INTRODUÇÃO

As Terras Indígenas (TI) no Brasil abrangem 13,8% do território nacional e 22,6% da


Amazônia brasileira. Além da importância fundamental para a manutenção da riqueza
étnica e cultural dos povos indígenas. São mais de 300 povos indígenas, falantes de mais
de 270 línguas, que existem, e resistem, em todas as regiões biogeográficas brasileiras
(WORLD BANK, 2020).
Na maior parte das vezes, esses territórios desempenham um papel inestimável na manu-
tenção das funções ecossistêmicas dos ambientes naturais, contribuindo para a conservação
da diversidade biológica; a regulação do ciclo hidrológico e produção direta de grande parte
da água destinada ao consumo humano (FERNÁNDEZ-LLAMAZARES et al., 2016).
Contudo, o papel de guardião da natureza atribuído aos povos indígenas, muitas vezes
não corresponde à realidade. Muitas vezes ao longo das gerações essa relação pela presen-
ça de seres, espíritos, plantas, animais, em uma cosmogeografia associada à vida saudável
é rompida, influenciada pela aculturação e atingidas pela perda da oralidade, forma pela
qual se passam os conhecimentos tradicionais.
Entende-se por conhecimento tradicional como um conjunto de conhecimentos e cren-
ças acumulados culturalmente transferidos de geração em geração, sobre as relações entre
organismos vivos (incluindo seres humanos) e o meio ambiente, sendo um atributo de
sociedades com continuidade histórica na prática do uso de recursos. Em todos os casos,
a tradição passa oralmente entre gerações (MCCARTER et al., 2014). Conforme o PNU-
MA (2001), conhecimento tradicional é “um corpo de conhecimento construído por um
grupo de pessoas através de sua vivência em contato próximo com a natureza por várias
gerações” (PNUMA, 2001). “Ele inclui um sistema de classificação, um conjunto de ob-
servações empíricas sobre o ambiente local e um sistema de auto-manejo que governa o
uso dos recursos” (PNUMA, 2001).
Nessa vertente, ao se trabalhar com comunidades tradicionais, é de fundamental im-
portância que se discuta o tema território sob o ponto de vista da materialidade, enquanto
espaço de subsistência, e do simbolismo, ao se considerar o vínculo afetivo-ancestral, e de
relação entre as plantas e o que elas representam vinculadas ao imaterial (SOUZA et al.,
2010; ROCHA et al., 2015). Neste último contexto que estes saberes-fazer acumulados pela
experiência (e experimentação) humana, se conservaram e foram transmitidos ao longo
das gerações por transmissão oral (PEREIRA; DIEGUES, 2010).
Sendo assim, quando falamos de conhecimento indígena tradicional, não só nos referimos
aos distintos saberes e sabedorias acumuladas através dos séculos de existência e civilização,
como também às formas distintas de ver o mundo, isto é, a visão holística pela qual a exis-
tência humana é descoberta pelas comunidades indígenas (LAWRENCE; PAIGE, 2016).
Dessa forma, é nessa perspectiva da relação dos saberes e fazeres com a visão de mundo,
que a etnia Kaingang da Terra Indígena do Guarita modificou sua relação com a natureza
ao longo das gerações. Fatores como a influência e estabelecimento de igrejas evangélicas
convertendo a maioria da comunidade Kaingang refletiu no quase desaparecimento da

206
figura do Kujá e dos rezadores, e em um afastamento da cosmologia ancestral da natureza
e seus sistemas de cura baseados nas plantas.
Na cosmovisão ancestral, sua sabedoria é vinculada ao respeito à terra, considerada a
mãe, o sol (kamé), a lua (kanhru), o ar, a natureza e tudo o que nela existe. De acordo com
Correia et al. (2007), depois de um dilúvio, dois irmãos surgiram de um buraco na terra,
kamé ao nascer do sol e tem a marca comprida e o domínio das plantas e animais com a
mesma marca; kanhru nasceu ao nascer da lua e tem a marca redonda, com o domínio
sobre plantas, animais com marca redonda. A divisão sobre as “plantas-remédio” (vênh-
-kagta) (HAVERROTH, 2004), conforme as marcas tribais, a metade kamé tende ter um es-
pírito com grande força, mais ofensivos por isso representam plantas de folhas compridas
largas ou estreitas com frutos e espinhos. Enquanto a metade kanhru são espíritos calmos e
inofensivos, representados por plantas de folhas arredondadas e sem espinhos.
Ainda, na etnia Kaingang, as ervas (plantas) medicinais sempre foram usadas em trata-
mento de doenças em geral, sendo que épocas passadas, só faziam o uso das ervas orien-
tados pelos kujá, e os rezadores (são as pessoas que participam ajudando o kujá nos rituais
do Kiki, para a passagem dos mortos, para o descanso eterno) bem como de benzedores
(são as pessoas que têm o conhecimento da prática de benzimentos para algumas doenças)
(FREITAS; ROKÁG, 2007). Há alguns anos esse conhecimento das ervas se tornou mais
frequente entre as famílias, repassado de pais para filhos. Porém, ainda há conhecimento o
qual apenas o kujá detém, o qual é repassado a alguém de sua inteira confiança.
Sendo assim, o distanciamento atual das raízes ancestrais e crenças levaram a abertura
da Terra Indígena do Guarita ao monocultivo e à agricultura convencional. Contudo, o
aumento de lavouras, principalmente de soja, e o uso de agrotóxicos ocasionou não só a
diminuição de diversas espécies medicinais, mas também a redução do número de nascen-
tes de água. E desta forma, a necessidade pela água fez com que o Kaingang fosse à busca
do “tratamento do corpo da terra”, aceitando de volta sua floresta e o entendimento de que
apenas a integralidade de um ecossistema equilibrado pode manter a abundância de água.
Assim, o presente trabalho teve por objetivo iniciar o processo de restauração ecológica
de uma nascente na Terra Indígena do Guarita, com implantação de sistemas agroflores-
tais. Visamos ainda, o envolvimento da comunidade kaingang local de maneira participa-
tiva, buscando revitalizar durante o processo o conhecimento tradicional e valores ances-
trais relacionados às plantas nativas da floresta autóctone na área protegida.

MATERIAL E MÉTODOS
ÁREA DE ESTUDO

A Terra Indígena de Guarita está localizada na região noroeste do estado do Rio Gran-
de do Sul e compreende 23.406,87 hectares de área, com cobertura de mata primária de
51,18%, mata secundária 20,52%, capoeira 18,17%, uso agrícola 8,59% e solo exposto
1,54%, com diferentes modos de utilização pela comunidade indígena (SOMPRÉ, 2007).
É dividida em 13 setores, que abrange os municípios de Redentora, Tenente Portela e Er-

207
val Seco, onde residem 7.000 índios. É a maior área Kaingang em extensão do estado e a
mais populosa do país e também abriga 80 famílias de índios Guaranis. Parte da área de
floresta foi convertida em monocultivos (Figura 1), dentre elas, a área foco das nascentes
restauradas com SAF.

Figura 1 – Imagem da área de nascentes a ser recuperada na Terra Indígena do


Guarita

Fonte: Google Earth

METODOLOGIA

Pela estrutura organizacional do povo indígena e para obtermos uma representatividade


fidedigna de forma a favorecer uma construção coletiva de aprendizado, o estudo foi de-
senvolvido por meio de oficinas temáticas utilizando a metodologia de Diagnóstico Rural
Participativo (DRP), a qual tem a finalidade de instrumentalizar um diagnóstico partici-
pativo para validar dados e discutir o planejamento de áreas e o território como um todo
(VERDEJO, 2010). O mesmo tem por diretriz que a informação seja transmitida por meio
de vivências e discussão de ideias.
Inicialmente foi aplicada a ferramenta para o reconhecimento territorial, onde por meio
de uma expedição na mata, adultos e jovens da aldeia tiveram a oportunidade de troca de
saberes sobre a floresta, identificando espécies e usos. A ferramenta participativa utilizada
foi a “Travessia”. A equipe de trabalho e os demais participantes percorreram a área, a
fim de reconhecer os diferentes tipos de ambiente, os sistemas de produção, a vegetação, a
infraestrutura, os recursos hídricos, dentre outros aspectos relevantes (Figura 2).
A “travessia” possibilita gerar perfis com detalhes do ambiente, mas os resultados mais
importantes são pautados na discussão e na reflexão sobre o uso e a conservação de aspec-
tos naturais ou socioculturais.

208
Figura 2 – Momento da “travessia” dentro da área da nascente a ser recuperada

Fonte: os autores.

A travessia foi realizada anteriormente à elaboração do mapa falado, para subsidiar um


conhecimento mais aprofundado sobre a área. Durante o seu desenvolvimento, foi feita
uma reconstrução histórica do uso da área, incluindo, por exemplo, antigos usos da área
ocupada atualmente.
Posteriormente, foi utilizada a ferramenta participativa chamada “Mapa Falado” para
obter informações acerca de todo o conhecimento das plantas já utilizadas para artesanato,
alimentação e cura, bem como plantas potenciais para tais benefícios (Figura 3).

Figura 3 – Comunidade kaingang desenvolvendo o mapa falado na temática do arranjo


de espécies para o SAF

Fonte: os autores.

Os mapas participativos criados pelas comunidades locais representam o lugar em que vi-
vem, mostrando os elementos que as próprias comunidades consideram importantes, como
os limites habituais da terra. É comumente usado para criar mapas que representem pa-
drões de uso de terra e recursos, riscos, valores e percepções da comunidade, para coletar
informações sobre conhecimentos e práticas tradicionais, coletar dados para avaliações ou
monitoramento, apresentar cenários alternativos e capacitar e educar as partes interessadas

209
(PYHÄLÄ et al., 2016). O grupo reunido foi discutindo quais as espécies seriam adequadas
para o arranjo, bem como as espécies agrícolas de interesse para estarem consorciadas. Para a
representação do arranjo feito direto na terra, se utilizou de sementes, serragem, galhos para
cada elemento dentro do sistema agroflorestal. Durante a montagem surgiram diversas infor-
mações relevantes trazidas pelas anciãs a respeito do conhecimento das plantas por parte de
kujás acometidos pelo COVID-19 e suas indicações para tratar os membros da comunidade.
Por sua vez, foi colocado pelos representantes das famílias kaingang que o arranjo com-
portasse espécies por eles utilizadas em seus artesanatos e cestarias, como cipós e taquaras,
de forma a facilitar o acesso por eles realizado para coletas. Estas plantas atualmente são
raras em matas nas proximidades das casas, exigindo o deslocamento a grande distância na
floresta para serem encontradas. Essa metodologia foi aplicada para o processo de constru-
ção e implantação de sistema agroflorestal (SAF) para recuperação de nascente no local.
Os SAF são uma importante estratégia que une segurança alimentar, restauração de
floresta e abundância de água é a implantação dos sistemas agroflorestais, os SAF (LUNZ,
2007). Trata-se do uso do solo combinando culturas agrícolas com espécies florestais na
mesma área. É a melhor maneira de conciliar a restauração ambiental com aumento de
produtividade, geração de renda e melhoria de qualidade de vida, principalmente da agri-
cultura familiar. As culturas são plantadas combinando suas necessidades ecológicas de
água, luz, nutrientes e espaço, possibilitando o desenvolvimento saudável de todas as es-
pécies inseridas (PALUDO; COSTABEBER, 2012). Além disso, é um modelo muito uti-
lizado para produção de alimento, cobrir o solo e auxiliar na conservação da água e das
espécies de animais que vivem na área. Polinização, ciclagem de nutrientes, controle bio-
lógico, sucessão ecológica, dispersão de sementes e muitas outras relações ecológicas são
alguns dos processos que o SAF proporciona e que auxiliam na conservação ambiental da
área (PINHEIRO; FREIRE, 2013). Nesse tipo de sistema, o produtor fica menos depen-
dente de insumos externos, o que possibilita uma maior segurança alimentar sem o uso de
agrotóxicos e/ou fertilizantes químicos.
Todo SAF é planejado de acordo com cada situação. Levam-se em conta os objetivos
a se alcançar, o que se deve produzir e as espécies com mais facilidade de comércio. Mas
sempre pensando nos hábitos de crescimento e produção de cada planta. O interessante é
conciliar as espécies arbóreas, arbustivas e rasteiras que produzirão frutos, raízes, folhas,
seiva, sementes e madeira de forma a recompor o equilíbrio de uma floresta.

ÁREA EXPERIMENTAL

Em relação ao sistema agroflorestal em mata ciliar, a implantação do arranjo de espé-


cies para a recuperação da nascente teve o suporte da Embrapa Pelotas, a qual cedeu 600
mudas de espécies florestais (Quadro 3) para implantação dos primeiros 0,5 ha do total
de 2,0 ha de área a ser plantada. A execução transcorreu dentro da proposta participativa,
onde o indígena foi o agente de construção, adquirindo conhecimento ao mesmo tempo

210
em que interage por meio da troca de saberes. O plantio foi realizado por um grupo de 30
pessoas entre os mediadores e mulheres e homens indígenas adultos, jovens e crianças. O
solo já se encontrava com nabo-forrageiro germinado, de pós-colheita de milho.

Quadro 1 – Lista de espécies florestais nativas implantadas na primeira etapa da


agroflorestal e suas finalidades

Nome vulgar Nome científico Uso Parte da Produção Comprovação


planta (anos) científica
Aroeira- Schinus terebinthifolia Raddi condimentar fruto 1,5-2,00
vermelha
Araticum Annona neosalicifolia H.Rai- alimentar fruto 8
ner
Angico- Parapiptadenia rigida (Ben- medicinal casca 5 Ribeiro; Nardi
vermelho th.) Brenan (2015).
Açoita-cavalo Luehea divaricata Mart. medicinal casca 8 Batista et al.
(2016)
Canela de Helietta apiculata Benth recuperação planta
Veado
Erva-mate Ilex paraguariensis A. St.- alimentar folha 8
-Hil.
Guajuvira Cordia americana (L.) Gotts- madeireiro planta
chling & J.S.Mill.
Guabiroba Campomanesia xanthocarpa alimentar fruto 10
(Mart.) O.Berg
Jaboticaba Plinia peruviana (Poir.) Go- alimentar fruto 10
vaerts
Guaporiti Plinia rivularis (Cambess.) alimentar fruto 6
Rotman
Grandiúva Trema micrantha (L.) Blume recuperação planta
Pinheiro-do- Araucaria angustifolia (Ber- alimentar semente 15  
Paraná tol.) Kuntze
Fonte: os autores (2021).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A técnica da “travessia” permitiu observar o grau de conhecimento do grupo sobre as


espécies da mata em torno da escassa nascente, de 15 indígenas, apenas uma mulher na fai-
xa etária de 60 anos e um rapaz conheciam as espécies. Entretanto, as mulheres do grupo
demonstraram interesse em conhecer as plantas e sua função ecológica.
Durante a travessia, a senhora indígena mostrou os cipós utilizados para o artesanato e
afirmou que deveriam compor a agroflorestal, uma vez que são utilizados por eles. Nesse
sentido, se discutiu que os cipós referidos são plantas de sub-bosque e para sua inserção na
agroflorestal levaria o tempo das copas das árvores plantadas se fecharem. Esta foi uma

211
oportunidade de falar da importância de se manejar a floresta, permitindo que fosse sus-
tentável, por meio da produção de plantas da floresta, como o caso do cipó. Ainda foi tra-
tado sobre as espécies exóticas invasoras, uma vez que observamos junto ao curso d’água
a presença intensa do lírio-do-brejo (Hedychium coronarium J.Koening.), o que prejudica o
estabelecimento das espécies nativas de mata ciliar. Tratou-se que no momento do plantio
da agroflorestal os lírios seriam removidos da mata ciliar, o rizoma (gengibre-branco) indica-
do para que providenciasse sua comercialização, uma vez que é uma planta condimentar e
medicinal (FACUNDO; MOREIRA, 2005) e suas folhas utilizadas como cobertura de solo.
Na etapa posterior, a elaboração do Mapa Falado resultou em um arranjo de espécies
florestais nativas da Floresta Estacional Decidual do Alto Uruguai (Figura 4), as quais
ocorriam na região antes do desmatamento e são de conhecimento por parte de alguns
kaingang por suas propriedades medicinais e funções ecológicas.

Figura 4 – Arranjo de espécies nativas florestais presentes no sistema agroflorestal


conforme conhecimento etnobotânico da comunidade kaingang

Fonte: Kessia Abich Rodrigues.

As plantas foram definidas em linhas distanciadas por 5,0 m, e cada indivíduo por es-
pécie apresentou a distância entre si de 1,5 m, formando um módulo de quatro linhas. O
total da área apresentou dois módulos.
Quanto à definição das espécies pelo grupo de valor etnocultural, a erva-mate (Ilex pa-
raguariensis A. St.-Hil) foi escolhida por se tratar de um componente socioeconômico e
histórico-cultural, onde seu produto representa uma ressignificação de valores culturais e

212
de sustentabilidade, bem como outras espécies de plantas sugeridas por eles na etapa ante-
rior. Historicamente, a coleta de erva-mate sempre esteve associada à abertura de entrada
nos territórios kaingang na província do Ibiaçá (segunda fase das Missões), como moeda
corrente (MENDES, 1954). A geografia dos ervais é predominantemente associada à parte
norte das províncias do Uruguai, do Tape e de Ibiaçá, domínio da Floresta Ombrofila Mis-
ta e da Floresta Estacional Decidual (Floresta do Alto Uruguai) nas bacias dos rios Guarita
e Turvo (RAMBO, 1956; LINDMAN; FERRI, 1974).
Nessa perspectiva, a definição da araucária (Araucaria angustifólia (Bertol. Kuntze) segue
a mesma origem, onde segundo relato das senhoras da comunidade durante a oficina, a
espécie era extremamente abundante na região antes do período das balsas do rio Uru-
guai. De acordo com Schmitz (2009), os Kaingang faziam grandes provisões de pinhão
para muitos meses, conservando-os por meio de um processo engenhoso de desidratação.
Inicialmente eram preparados jacás de taquara do tamanho apropriado para serem condu-
zidos nas costas, que, depois de cheios, eram imersos em água corrente por alguns dias e
em seguida, estendidos ao sol para secar. Isso feito conduziam os jacas para seus ranchos,
carregando-os as costas presos por uma alça de embira (Daphnopsis fasciculata (Meisn.) Ne-
vling) e lá os estendiam sobre jiraus de taquara armados por cima do fogo, onde recebiam
a fumaça. Desse modo, conservavam-se os frutos do pinheiro por muitos meses sem se
alterarem e preparavam com eles uma excelente farinha, substancial e saborosa. Contudo,
Mabilde (1983) afirma que as pinhas eram reunidas pelas mulheres e carregadas por elas
nas costas em cestas para um lugar arenoso e úmido, onde eram enterradas para serem
conservadas para alimentação nos meses em que os pinheiros não produziam seus frutos.
Outras espécies foram sugeridas durante o mapa falado por seu uso medicinal presentes
nas cascas e lenho para chás, dentro do conhecimento tradicional indígena. Estas espé-
cies são corroboradas pela ciência (Tabela 1), como o angico (Parapiptadenia rigida (Ben-
th.) Brenan), como o pau amargo (Picramnia parvifolia Engl.), caixeta (Schefflera morototo-
ni (Aubl.) Maguire.), açoita-cavalo (Luehea divaricata Mart.).
Nesse momento da discussão foi colocado por uma das senhoras presentes que um
dos anciãos durante a COVID-19 tratou diversos indígenas com uma infusão de diversas
plantas, entre elas pau-amargo, caixeta e quina (Bathysa australis), e as pessoas tratadas se
recuperaram. O grupo discutiu então sobre a importância do conhecimento tradicional ser
repassado para as futuras gerações, e o quanto esta é uma preocupação dos anciãos, por
perceberem a falta de interesse dos jovens em aprender a medicina tradicional.
De forma coletiva, se definiu para introdução para o SAF no período adequado (agos-
to-outubro) espécies que sejam benéficas umas às outras no sistema, e que possam ser
parte da alimentação e socioeconomia da TI. Assim, ficou definido que será introduzido
o plantio de amendoim, feijão, abóbora, mandioca, batata-doce e banana, nas entrelinhas
das espécies nativas arbóreas já plantadas em maio de 2021.
Posteriormente, a implantação da agrofloresta ocorreu de maneira coletiva, onde as
famílias da TI participaram incluindo mulheres e crianças, mantendo-se o grupo de 30
pessoas. O grupo se dividiu em equipes, um grupo de homens no plantio, outro grupo na

213
remoção do lírio-do-brejo e outro grupo, de mulheres preparando a parte foliar do lírio
para cobrir as mudas plantadas a fim de proteger o solo.
Nesse momento foi possível verificar o grande interesse das mulheres em conhecer as
espécies das plantas, e assim que aprendiam de imediato ensinavam aos filhos que estavam
junto delas. Também, foi uma oportunidade que encontraram de buscar o conhecimento
tradicional com os mais velhos que participaram do plantio, buscando o saber de uso e
comportamento ecológico das espécies. Durante essa troca, as anciãs deixavam claro para
as jovens que as plantas são como elementos que fazem parte de todo um processo de cura
culturalmente elaborado.
Por sua vez, o grupo de homens apresentou o foco no plantio, como técnica e possibi-
lidade de produção de renda, demonstrando uma preocupação com as espécies agrícolas,
de forma a garanti-las no arranjo em uma segunda etapa, onde a recuperação da nascente
estaria em um segundo plano.
Nessa perspectiva, vimos nessa ação uma possibilidade de ponto de partida para revita-
lizar e resgatar os valores ancestrais dos kaingang com a natureza e respeito com a terra.
Lembrar-se da importância das fases da lua que se colhe as ervas, as suas formas de coleta,
e respeitar principalmente a voz dos guias, dos pássaros, da água, das árvores e do vento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escassez de um bem natural fundamental para a sobrevivência humana como a


água, foi na verdade instrumento de reflexão, tomada de decisão e mudança de com-
portamento de parte da comunidade kaingang da Terra Indígena do Guarita. O envol-
vimento dos indígenas em todo o processo de elaboração e implantação da agrofloresta
possibilitou identificar lacunas na oralidade daquelas famílias. Essas lacunas revelaram
uma nova figura disposta a manter o conhecimento tradicional indígena, e este papel
tende a ser preenchido pelas mulheres kaingang, as quais se envolveram completamente
no processo de restauração da nascente local desde seu fundamento até execução, com
um cuidado que só uma mãe terra pode ter.

214
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WORLD BANK. Indigenous peoples. Disponível em: https://www.worldbank.org/


en/topic/indigenouspeoples#:~:text=There%20are%20approximately%20476per cent-
20million, %%%20of%20the%20extreme%20poor. Acesso em: 28 maio 2021.

217
DIREITOS DAS PESSOAS INDÍGENAS:
PLURALIDADE LINGUÍSTICA E
ACESSO À JUSTIÇA

Vítor Jochims Schneider


Jafé Emanuel Chaves Ribeiro
Gilnei Candinho
Rodrigo Mariano
A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA NO TERRITÓRIO BRASILEIRO

Para grande parte da população brasileira, a pergunta “Que língua você fala na sua
casa?” parece um tanto quanto estranha ou mesmo desnecessária. Ao longo dos séculos de
formação do Estado brasileiro, a ideia de que “ser brasileiro é ser falante de português” se
consolidou de modo que o senso comum da população urbana e alfabetizada é de que o
Brasil é um país monolíngue.
Infelizmente, não dispomos de um censo atualizado que apresente de modo preciso
a porcentagem das diversas línguas que são faladas no território brasileiro. Uma imensa
maioria, que beira mais de 95% da população nacional, é falante do português brasilei-
ro como primeira língua. Porém, para espanto geral da nação, o território brasileiro abriga
grande parte da diversidade linguística do planeta. Estima-se que no Brasil de hoje sejam
falados cerca de 215 idiomas. Deste grupo, a maior parte, cerca de 180 idiomas correspon-
dem às línguas indígenas faladas por cerca de 305 etnias que, por si só, formam um cenário
linguístico extremamente variado. Além deste grupo, estão presentes no Brasil cerca de
30 idiomas de imigrações recentes, além das línguas afro-brasileiras faladas em diversos
quilombos (OLIVEIRA, 2009).
Quando conseguimos romper a ideia de que todo brasileiro é falante de português, po-
demos nos dar conta de que o monolinguismo hegemônico de nosso país, muitas vezes
tido como um fenômeno “óbvio” ou “natural”, é, na realidade, mais uma peça da imen-
sa máquina colonial que opera na América há mais de cinco séculos. Estima-se que no
momento do início da invasão colonial do território que veio a ser o Brasil, havia cerca
de 1.070 línguas, sendo faladas por uma população estimada de 5 milhões de habitantes.
Ou seja, se considerarmos as cerca de 180 línguas indígenas faladas atualmente, constata-
mos que menos de 15% das línguas nativas atravessaram os séculos de colonialismo e ao
avanço da língua portuguesa (RODRIGUES, 2002). Deste grupo de cerca de 180 línguas
indígenas faladas atualmente, uma centena dessas estão em estado moribundo, e apenas 25
línguas contam com mais de cinco mil falantes (MAIA, 2006).
Se observarmos as ações do Estado colonial português e do Estado brasileiro, vamos ob-
servar que a língua portuguesa é utilizada como ferramenta para reduzir a diversidade de
línguas e enfraquecer a vitalidade cultural dos povos indígenas. Este projeto de eliminação
de línguas foi explicitado pelo discurso oficial em 1758, pelo Diretório dos Índios. Este ins-
trumento jurídico foi criado para regular as populações indígenas na colônia portuguesa,
logo após a expulsão da Companhia de Jesus. Através deste ato jurídico, elaborado pelo
Marquês de Pombal, a língua portuguesa é oficializada, portanto imposta como idioma
da administração pública e do ensino no território colonial. Esta estratégia do iluminista
português colaborou para o início declínio do uso da língua geral brasílica, na região da
Costa Atlântica, e do nheengatu, na Amazônia, que eram de fato os idiomas falados pela
maior parte da população (BESSA FREIRE, 2004; MARIANI, 2004).
Desde este primeiro ato que oficialização da língua portuguesa no território brasileiro,
diversas outras ações governamentais foram tomadas para consolidar o cenário de hege-

219
monia monolinguística. Se observarmos a Constituição Federal de 1988, após 230 anos de
promulgação do Diretório dos Índios, é conferida à língua portuguesa o estatuto de língua
oficial20, sendo este o idioma no qual o ensino fundamental deverá ser ministrado.
É importante observar que no segundo parágrafo do artigo 210 do Capítulo Da educa-
ção, cultura e do desporto, o texto da Constituição Federal indica que para as comunidades
indígenas está assegurado também o uso das línguas maternas nos espaços educativos. Esta
disposição indica uma modificação relevante, ao passo que passa a incluir as línguas ma-
ternas dentro das escolas indígenas, dividindo espaço com o português, o que coloca os
alunos indígenas numa situação de bilinguismo obrigatório.
A partir da redemocratização, a questão da diversidade e manutenção das línguas indí-
genas tem mobilizado diversos agentes indígenas e não-indígenas. A maior parte dos ações
comunitárias e projetos de pesquisa em torno deste tema estão vinculados à educação, com
o intuito de inventar uma escola indígena capaz de reverter os processos de dominação cul-
tural, linguística e epistêmica que caracterizam a modernidade. Tais ações são de extrema
importância para elaboração de estratégias de manutenção, fortalecimento e reinvenção
cultural dentro das comunidades.
No território brasileiro, o uso das línguas indígenas é previsto legalmente apenas no
espaço educativo, ao lado da língua portuguesa. Nos demais domínios da administração
pública, a imensa variedade de línguas nativas não é reconhecida como meio legal de co-
municação e expressão. Ainda que instrumentos jurídicos das normas internacionais - De-
claração dos Direitos Humanos, Convenção Internacional dos Direitos Civis e Políticos,
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - garantam assessoria linguís-
tica, sob a forma de serviços de intérpretes e tradutores, a grupos vulneráveis, é necessário
reconhecer sua ineficácia em nosso país. Desse modo, as barreiras linguísticas existentes
entre os povos contribuem para ações de violação de direitos humanos básicos e para a
perpetuação de desigualdades sociais (HAMMEL, 1995; OLIVEIRA; SILVA, 2017).
O projeto de extensão Intérpretes indígenas: pluralidade linguística e acesso à justiça foi elabo-
rado com o intuito de desenvolver um trabalho vinculado às comunidades mbyá guarani
e kaingang da região para reconhecimento das línguas ameríndias no domínio da justiça e
segurança pública. Para tanto, o projeto é desenvolvido de modo interdisciplinar, aproxi-
mando pesquisadores da área de Letras e Direito, acadêmicos indígenas e ativistas sociais
dedicados a pensar em estratégias de fortalecimento cultural, garantia de direitos e acesso
à justiça21. O grupo alinha suas ações a partir da Resolução 287/19 do Conselho Nacional
de Justiça, que estabelece os procedimentos próprios ao tratamento das pessoas indígenas
acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade. Tal resolução reconhece a possibilida-

20 O artigo 13 da Constituição Federal determina a língua portuguesa como o idioma oficial da República
Federativa do Brasil. Mais recentemente, em 2002, a Lei Federal n.10.436 reconhece a língua brasileira de
sinais (Libras) como meio legal de comunicação e expressão.
21 Em 2020, a equipe extensionista é composta pelos professores Vítor Jochims Schneider (coordenador);
José Luiz de Moura Filho (co-orientador); Jafé Emanuel Chaves Ribeiro (bolsista); Gilnei Candinho (cola-
borador); Rodrigo Mariano (colaborador).

220
de de medidas de responsabilização não restritivas de liberdade e não estatais, próprias das
culturas indígenas, bem como garante que o emprego das línguas ameríndias seja conside-
rado válido dentro das instituições públicas.
Para que possamos apresentar o contexto de atuação do projeto, seu embasamento jurídico
e suas ações, optamos por abordar, inicialmente, o problema do encarceramento indígena no
Brasil e no Rio Grande do Sul. Em seguida, apresentaremos a Resolução 287/19 do CNJ e
como esta pode contribuir para alteração do quadro de aumento da população indígena encar-
cerada. Por fim, apresentaremos algumas das ações promovidas pelo projeto no ano de 2020.

O PROBLEMA DO ENCARCERAMENTO INDÍGENA

Em 2007, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e a Procuradoria Geral da Re-


pública (PGR) elaboraram o relatório intitulado Criminalização e Situação Prisional de Ín-
dios no Brasil. O documento relata um levantamento de dados sobre a população indígena
encarcerada nos estados do Amazonas, Bahia e Rio Grande do Sul. O texto apresenta as
dificuldades enfrentadas para obtenção de dados sobre o encarceramento indígena e descreve
o quadro de desinformação dos servidores públicos – policiais, agentes carcerários, delega-
dos, promotores, procuradores, juízes e indigenistas de órgãos oficiais – acerca da legislação
aplicável aos índios acusados de crimes e das recomendações da Convenção 169 OIT que, no
Brasil, assumiram estatuto de lei após sua ratificação pelo Congresso Nacional.
O capítulo deste documento dedicado ao Rio Grande do Sul chama nossa atenção.
Na data da pesquisa, a população prisional total do estado era de 24.865 pessoas, sendo
que o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça (Infopen)
indicava a presença de 77 indígenas encarcerados. De acordo com o relatório, ainda que
os números brutos sejam pequenos, quando considerados percentualmente, os dados se
tornam alarmantes. Enquanto o total de indígenas no RS representa 0,12% da população,
o total de índios encarcerados representa 0,3% da população prisional.
Mais recentemente, em consulta aos dados públicos do Departamento Penitenciário
Nacional (DEPEN), é possível realizar um levantamento do quantitativo da população
carcerária indígena entre 2005 e 2017, conforme a Tabela 1.

Tabela 1 – Evolução da população carcerária indígena no Brasil

Homens Mulheres Total


Dez 2005 264 15 279
Jun 2006 386 36 422
Dez 2006 534 68 602
Jun 2007 474 44 518
Dez 2007 508 31 539
Jun 2008 401 29 430

221
Dez 2008 475 36 511
Jun 2009 474 31 505
Dez 2009 486 35 521
Jun 2010 673 42 715
Dez 2010 692 56 748
Jun 2011 786 60 846
Dez 2011 708 61 769
Jun 2012 924 55 979
Dez 2012 799 48 847
Jun 2013 713 50 763
Jun 2014 654 33 498
Dez 2014 625 41 666
Dez 2015 735 35 770
Jun 2016 552 38 590
Jun 2017 1104 81 1185

Fonte: os autores (2021).

De acordo os dados apresentados, o número total de indígenas encarcerados no


país apresenta uma flutuação, se observarmos as variações ano a ano. No entanto, se ob-
servarmos a série histórica que atravessa mais de uma década, verificamos que há um
crescimento no número de pessoas indígenas encarceradas.
Se nos detivermos em uma análise exclusiva dos dados registrados pelo DEPEN no
último período, junho de 2017, podemos observar que a população indígena encarcerada
está distribuída de modo desigual pelas unidades federativas (Tabela 2):

Tabela 2 – Distribuição população indígena encarcerada em junho de 2017

Homens Mulheres Total


AC 6 - 6
AL 3 - 3
AM 9 1 10
AP 12 1 13
BA 14 1 15
CE 116 - 116
DF 16 - 16
ES 6 - 6
GO 2 - 2
MA 6 - 6
MG 91 8 99
MT 2 - 2

222
MS 230 13 243
PA 4 25 29
PB 284 - 284
PE 8 1 9
PI 2 1 3
PR 5 1 6
RJ 3 - 3
RN NI NI NI
RO 8 11 19
RR 101 6 107
RS 163 10 173
SC 2 1 3
SE NI NI NI
SP 12 1 13
TO NI NI NI
Total 1104 81 1185

Fonte: os autores (2021).

Chama atenção para estes dados o fato de que quase 60% da população indígena encar-
cerada de todo país está localizada em três estados: Paraíba (24%), Mato Grosso do Sul
(20%) e Rio Grande do Sul (14,5%). Os dados reforçam o que havia sido indicado pela As-
sociação Brasileira de Antropologia em 2007, sobre os números alarmantes de indígenas
encarcerados no Rio Grande do Sul.

RESOLUÇÃO 287/19

Do ponto de vista jurídico, a Constituição Federal de 1988 marca o abandono do pro-


jeto integracionista e passa a considerar a pessoa indígena como sujeito de direitos. Desde
sua promulgação, diversos instrumentos jurídicos têm sido consolidados na área de saú-
de e educação, graças a diversos movimentos sociais que reivindicam o reconhecimento
das populações ameríndias. Dentre tais conquistas, destaca-se a mudança de paradigma
educacional que, conforme consta nos artigos 231 e 232 da CF/88, passa a reconhecer a
organização social, costumes, línguas e tradições como elementos centrais dos processos
de ensino e aprendizagem das comunidades indígenas (BRASIL, 1988).
Ainda que sejam verificados avanços no campo jurídico em termos de reconhecimento
de direitos aos povos indígenas, o Conselho Nacional de Justiça afirma que o Código Penal
e o Código de Processo Penal deixam lacunas quanto ao tratamento jurídico-penal da pes-
soa indígena, o que acaba por não consolidar a mudança paradigmática estabelecida pela
Constituição de 1988 e ratificada pela Convenção nº 169, da Organização Internacional
do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, conforme Decreto 5051/2004. Com o intuito
de superar tal defasagem, o Conselho Nacional de Justiça dedicou-se, juntamente com
outras instituições, a estabelecer procedimentos de acompanhamento jurídico para sujeitos

223
indígenas em situações de conflito legal. A concretização deste esforço é a Resolução n.º
287, de 25 de junho de 2019, que busca alinhar o tratamento jurídico penal direcionado à
população indígena com o disposto na Constituição.
Deste modo, a Resolução estabelece os procedimentos a serem adotados quando do tra-
tamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e ofe-
rece as diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder
Judiciário. Esta Resolução baseia-se em três eixos: (a) na excepcionalidade extrema do en-
carceramento indígena, (b) no reconhecimento da possibilidade de responsabilização por
meio de medidas não estatais ou não restritivas de liberdade e (c) na previsão de garantias
específicas aos indígenas em estabelecimentos penais. Dentre as garantias previstas para a
população indígena, em estabelecimento penal, está prevista, no artigo 5.°, a presença de
um intérprete em todas as etapas do processo.

Art. 5º A autoridade judicial buscará garantir a presença de intérprete, preferen-


cialmente membro da própria comunidade indígena, em todas as etapas do pro-
cesso em que a pessoa indígena figure como parte:
I - se a língua falada não for a portuguesa;
II - se houver dúvida sobre o domínio e entendimento do vernáculo, inclusive em
relação ao significado dos atos processuais e às manifestações da pessoa indígena;
III - mediante solicitação da defesa ou da Funai; ou
IV - a pedido de pessoa interessada (BRASIL, 2019).

Em complemento ao texto da Resolução 287/2019, o Conselho Nacional de Justiça


explicita, em seu manual, de que modo é possível estruturar uma equipe permanente de
apoio aos juízes e tribunais:

Para que os juízes e tribunais estejam aptos a lidar com casos envolvendo acu-
sados, réus ou condenados indígenas, deve existir uma atividade permanente de
criação e manutenção de uma rede de entidades e profissionais cujo trabalho é in-
dispensável para a atuação nesses casos, nos termos do art. 15 da Resolução CNJ
287/2019. Nesse sentido, os tribunais deverão manter cadastro de intérpretes es-
pecializados nas línguas faladas pelas etnias características da região. É necessá-
rio que esses profissionais não se limitem a manejar o idioma, mas entendam a
cultura e o contexto em que ele se insere. Até por isso, pode ser interessante que
pessoas indígenas desempenhem o papel de intérpretes (CNJ, 2019, p. 24)

Além da estruturação de uma equipe de profissionais que possibilite o acompanhamen-


to da pessoa indígena ao longo do processo, o Conselho Nacional de Justiça indica a ne-
cessidade de realização de ações formativas para os profissionais que atuam em Comarcas
e Seções Judiciárias com população indígena.

Art. 16. Para o cumprimento do disposto nesta Resolução, os tribunais, em cola-


boração com as Escolas de Magistratura, poderão promover cursos destinados à
permanente qualificação e atualização funcional dos magistrados e serventuários
que atuam nas Varas Criminais, Juizados Especiais Criminais e Juizados de Vio-
lência Doméstica e Familiar contra a Mulher e Varas de Execução Penal, nota-

224
damente nas Comarcas e Seções Judiciárias com maior população indígena, em
colaboração com a Funai, instituições de ensino superior ou outras organizações
especializadas (CNJ, 2019, p. 47)

As orientações estabelecidas pela Resolução 287/2019 são endossadas pela Nota Téc-
nica 53/2019, da Divisão de Atenção às Mulheres e Grupos Específicos, do Ministério
da Justiça e Segurança Pública. Esse documento, emitido em dezembro de 2019, explicita
medidas necessárias a serem adotadas no acompanhamento de pessoas indígenas privadas
de liberdade, nos estabelecimentos penais. No parágrafo 21, o documento estabelece que

Para pessoas indígenas encarceradas que não tenham o domínio da língua portu-
guesa, a administração penitenciária deverá fornecer, no âmbito administrativo,
serviço de intérprete, inclusive quando no cadastro do estabelecimento. Este pro-
cedimento deverá ser adotado, ainda, sempre que a pessoa indígena demonstrar
incompreensão quanto aos procedimentos que está sendo submetida ou quanto
às regras de comportamento do estabelecimento prisional (BRASIL, 2019).

Assim como disposto na Resolução 287/2019, a Nota Técnica 53/2019 indica, no pará-
grafo 53, a necessidade de capacitação dos servidores, a ser realizada em escolas prisionais:

Considerando que os servidores que atuam em unidades prisionais também es-


tão expostos a dificuldades relacionadas ao aprisionamento de pessoa indígena,
todas as administrações prisionais estaduais que possuem população indígena
presas, através de suas escolas penitenciária, devem garantir a capacitação conti-
nuada aos/às servidores(as) e demais profissionais dos estabelecimentos penais,
considerando a perspectiva dos direitos humanos e os princípios de igualdade e
não-discriminação, inclusive em relação à orientação sexual e identidade de gê-
nero, sendo de extrema importância o treinamento dos(as) servidores(as) quanto
às orientações constante nesta ata (BRASIL, 2019).

AÇÕES DO PROJETO

As ideias que deram forma ao projeto Intérpretes indígenas:pluralidade linguística e acesso à


justiça haviam germinado num cenário pré-pandemia. A partir de uma análise dos dados
oferecidos pela DEPEN sobre os números da população indígena encarcerada no estado e
a então recente publicação da Resolução 287/19, o grupo alimentamos o desejo de promo-
ver uma série de encontros entre alunos indígenas da universidade e membros das comuni-
dades da região para promoção de oficinas de formação de intérpretes comunitários. Para
tanto, nos dedicamos inicialmente a pensar sobre o cenário linguístico das comunidades
indígenas da região.
Se observarmos os dados censitários de 2010, veremos que dentre os indígenas que re-
sidem em terras regularizadas, 32,3% não são plenamente alfabetizados, o que consolida
uma barreira entre uma considerável parcela da população originária e os instrumentos
jurídicos do Estado. Além disso, temos em mente que o português que circula entre as co-
munidades indígenas é, por vezes, uma variante muito distinta da norma padrão emprega-
da em documentos processuais e em procedimentos jurídicos, o que costuma acarretar em

225
problemas de compreensão interdialetal ao longo dos processos. Desse modo, o intérprete
comunitário indígena, tal como previsto pela Resolução 287/2019, não é um mero presta-
dor de um serviço burocrático, mas um agente necessário para garantir que os direitos da
pessoa indígena sejam respeitados junto aos órgãos de Justiça e Segurança.
O intérprete indígena, em nossa compreensão, é um agente social, dotado de conhecimen-
to linguístico e comunicativo, capacitado para atuar em situações nas quais membros de sua
etnia e/ou comunidade estejam em conflito com a lei ou reivindicando seus direitos. Desse
modo, a formação do intérprete indígena é uma ação inovadora, que exige não apenas o
desenvolvimento de habilidades linguísticas e jurídicas, mas também a formação de sujeitos
capazes de mobilizar seus conhecimentos para ampliação de seus vínculos identitários.
A figura do intérprete indígena ainda é pouco compreendida. Embora haja estudos vol-
tados sobre o papel de sujeitos indígenas que atuaram como durante o período colonial,
raros são os registros a respeito da atuação de intérpretes de línguas indígenas na atualida-
de. Silvana dos Santos e Aline Poltroniere-Gessner (2019) em uma revisão de literatura a
respeito de direitos linguísticos e acesso à justiça, as autoras identificam uma considerável
produção acerca da prática de intérpretes dirigida a estrangeiros, comunidade surda e,
em menor escala, para populações imigrantes. Em nenhum dos trabalhos foi abordada a
prática de interpretação em línguas indígenas. Maíra Monteiro Pinheiro (2014) realiza um
levantamento de pessoas indígenas que atuam como intérpretes em diferentes situações de
contato com instâncias públicas, e verifica um maior número de agentes atuando na área
da saúde. No entanto, a pesquisadora ressalta a inexistência de um registro de intérpretes
de línguas indígenas para possíveis atuações profissionais. A inexistência de uma profissio-
nalização do intérprete de línguas indígenas é verificada mesmo em países onde o serviço
de intérprete comunitário é parcialmente consolidado, como nos casos da África do Sul,
Austrália e Canadá. No entanto, é necessário observar que, mesmo nestes países, a forma-
ção e o treinamento de intérpretes seguem sendo um desafio (PÖLLABAUER, 2012).
Um desafio ainda maior se sobrepôs ao projeto com o avanço da pandemia de covi-19.
Havíamos pensado uma série de ações, eminentemente presenciais, nas quais estariam
envolvidos graduandos e membros das comunidades indígenas da região, para promover
a formação de intérpretes. Um roteiro com conteúdo programático e carga-horária havia
sido esboçado para condução dos encontros formativos. Porém, a partir de março de 2020,
percebemos que teríamos de modificar nosso plano de ações.
A adoção das ferramentas de interação remota não ocorre de forma homogênea. Quando
consideramos os membros das comunidades indígenas que não estão acessando o ensino
superior, verificamos que o acesso à Internet impediria a realização dos encontros formativos
com membros externos. Desse modo, nos dedicamos a realizar estudos internos, com a par-
ticipação dos membros da equipe extensionista e com a presença de convidados externos22.

22 Esses encontros ocorreram entre maio e novembro de 2020, contaram com a presença de Ivo Cípio Au-
reliano, advogado e assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), professor de língua Macuxi
na Universidade Federal de Roraima; Viviane Balbuglio, advogada e assessora jurídica do Instituto das Irmãs
da Santa Cruz; Danilo Braga, liderança kaingang, historiador, professor no Instituto Estadual de Educação
Indígena Angelo Manhká Miguel.

226
A partir destes encontros formativos, os membros da equipe passaram a desenvolver
suas reflexões em ações mais pontuais. É importante registrar que a partir dos debates pro-
movidos pelo projeto e de conversas realizadas entre membros da comunidade kaingang,
Jafé Emanuel Chaves Ribeiro, então graduando em Direito, decidiu dedicar-se com mais
afinco ao estudo da Resolução 287/19 e das sua potencialidade como instrumento jurídi-
co. Desse modo, foi elaborado o trabalho de conclusão de curso, orientado por José Luiz
de Moura Filho, intitulado Minha pátria é minha língua: a figura do intérprete indígena como
condição de um processo penal justo.
Além destas ações, os membros do projeto dedicaram-se a pensar numa maneira de di-
vulgar a Resolução 287/19 entre as comunidades indígenas da região. Realizamos diversos
momentos de discussão para pensar em como seria possível produzir e compartilhar conte-
údos informativos dentro de um contexto de isolamento social. Inicialmente, pensamos na
possibilidade de elaborar cartilhas e de materiais audiovisuais em língua kaingang e mbyá
guarani para difusão de informações jurídicas.. Porém, após alguns encontros, os membros
do grupo começam a se dar conta de que a tarefa da tradução solitária – tal como costuma
ocorrer entre línguas europeias e oficializadas – de textos jurídicos para línguas indígenas
configurava um exercício extremamente árduo com uma finalidade questionável.
Foi neste momento em que os membros do grupo se depararam com a cartilha Os direi-
tos das pessoas indígenas em conflito com a lei. Este material (Figura 1), produzido por agentes
do Instituto das Irmãs da Santa Cruz (IISC), do Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), da Associação Juízes para a
Democracia (AJD) e do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), apresenta, na forma
de uma história em quadrinhos, informações a respeito da resolução 287/19 e de outros
direitos das pessoas indígenas. O material, com desenhos elaborados por Otto Mendes, se
passa “em alguma das centenas de comunidades indígenas do Brasil...” e tem como perso-
nagem principal o jovem Robson, aluno indígena do curso de Direito, que retorna para sua
comunidade de origem. O texto, elaborado em língua portuguesa, consegue apresentar, na
forma de diálogo, diversos detalhes da resolução.

Figura 1 – Os direitos das pessoas indígenas em conflito com a lei

Fonte: (Kanhgág ag kãgrá vẽnhkugrynh torá to vãmén, 2020, p. 5).

227
Em diálogo com Viviane Balbuglio, do IISC, verificamos a possibilidade de traduzir o
material para língua kaingang. Esse trabalho foi realizado por Gilnei Candinho, graduan-
do em Medicina e residente na Aldeia Indígena Ventarra Alta. O trabalho de criação de
uma versão da cartilha não é realizado de modo solitário, mas com a participação con-
sultiva de diversos membros das comunidades kaingang da região. Ao final de algumas
semanas de diálogo, consulta e revisão, foi elaborado o texto que compõe a Kanhgág ag
kãgrá vẽnhkugrynh torá to vãmén.
No dia 16 de abril, os membros do projeto foram convidados a participar da Audiência
Pública sobre a defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, promovida pela OAB Nacional.
Já ema 11 de maio de 2021, os membros do grupo foram convidados a participar da live de
Lançamento da cartilha em HQ sobre povos indígenas em conflito com a lei na língua kain-
gang (Figura 2). Além de Jafé Emanuel Chaves Ribeiro e Gilnei Candinho, representantes do
projeto, estiveram presentes na atividade António Eduardo Cerqueira de Oliveira (Secretário
Executivo do CIMI), Marcelo Chalréo (advogado e vice-presidente da Comissão Especial de
Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB), Otto Mendes (missionário do CIMI-Nor-
deste e ilustrador da cartilha).

Figura 2 – Lançamentoda cartilha em HQ sobre povos indígenas em conflito com a


lei na língua kaingang

Fonte: Print Screen (2021).

Atualmente, a equipe extensionista tem se dedicado à divulgação do material produzi-


do na forma impressa e digital entre membros das comunidades kaingang da região, bem
como entre órgãos de justiça e segurança pública. Além disso, o grupo está se organizando
para produção de uma versão mbyá guarani da cartilha e planejando ações de divulgação.

228
REFERÊNCIAS

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Prisional de Índios no Brasil (Relatório Final). Associação Brasileira de Antropologia:
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Acesso em: 19 jul. 2022.

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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução 287/2019 - procedimentos rela-


tivos a pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade. Brasília:
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230
COMUNICAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E
PROTAGONISMO DOS REFUGIADOS POR
MEIO DO DOCUMENTÁRIO “5.000KM:
UMA JORNADA DE ESPERANÇA”

Anna Julia Carlos


Bruna Bonadeo
Gabriel Masarro de Araujo
Rafael Foletto
INTRODUÇÃO

A presença de imigrantes, solicitantes de refúgio e refugiados no Brasil cresceu de forma


bastante significativa nos últimos anos (OBMIGRA, 2020). Da mesma forma, esse fluxo
se diversificou, abrangendo diferentes regiões do mundo. Trata-se de uma população di-
versa e que chega de diferentes origens geográficas, sociais, culturais, entre outros aspectos.
O Brasil acompanhou esse movimento global, destacando-se o aumento no ingresso de ve-
nezuelanos, devido à crise econômica, política e social no país vizinho. Atualmente, mais
de 260 mil venezuelanos vivem atualmente no país, dos quais, até o momento, mais de 37
mil tiveram suas solicitações de refúgio atendidas pelo governo brasileiro, tornando-se o
país com o maior número de refugiados venezuelanos reconhecidos na América Latina,
segundo o Conselho Nacional de Refugiados (Conare). O fluxo de venezuelanos e vene-
zuelanas é o maior êxodo da história recente da América Latina e a ONU estima que mais
de 4,7 milhões de pessoas já deixaram seu país de origem, conforme aponta a Agência da
ONU para Refugiados (ACNUR).
Com a Operação Acolhida, desde fevereiro de 2018, o Governo Federal brasileiro pas-
sou a auxiliar no acolhimento de refugiados e imigrantes venezuelanos, e que se encontram
em situação de vulnerabilidade. Em parceria com a agência das Nações Unidas, governos
estaduais e municipais e integrantes da sociedade civil, as Forças Armadas e o Poder Públi-
co trabalham em conjunto para prestar o auxílio humanitário que se dá em três momentos:
ordenação da fronteira, abrigamento e interiorização. 
A organização estabelecida por parte do governo brasileiro destinada pelo processo
de interiorização tem como objetivo realocar para outras cidades do Brasil, venezuelanos
concentrados em Boa Vista (RR), reduzindo o impacto do fluxo no estado de Roraima e
oferecendo melhores condições de acolhimento aos que adotaram, mesmo que seja por um
tempo, o Brasil como nova morada. 
Nesse sentido, no Estado do Rio Grande do Sul, destaca-se o município de Chapada,
pioneiro ao acolher 52 venezuelanos em 2018. Com isso, o projeto “Comunicação e refu-
giados venezuelanos no Norte RS: a interculturalidade por meio do audiovisual” debate e
aplica a extensão universitária por meio da relação entre comunicação e direitos humanos
a partir da produção audiovisual como ferramenta de reflexão, questionamento social e
auxílio de inclusão. 
Em 2019, construiu-se um documentário em parceria com os venezuelanos, contextua-
lizando e problematizando o cotidiano, e suas visões de mundo, a fim de registrar, informar
e produzir conhecimento sobre o fluxo migratório. Os relatos são de uma vida com pouco
dinheiro e com somente o necessário para alimentação, perda de familiares pela violência
e outras situações que os afetaram nos últimos anos, fazendo com que muitos decidissem
sair do país e elegessem o Brasil com seu novo lar, como contam 30’38’’ do documentário
“5.000km: uma jornada de esperança”, história de quatro famílias que encontraram, no
pequeno município gaúcho, a oportunidade para recomeçarem as suas vidas. A proposta
os coloca como agentes ativos na construção do audiovisual por meio de oficinas e capaci-

232
tação para roteirizar a própria história, sendo captada pela equipe de extensão e gerando o
conteúdo indicado por eles, sempre em diálogo com os participantes. As futuras atividades
são de exibição e debate em escolas da região e inscrição em concursos audiovisuais. 
Tendo em vista que esta problemática mundial se refletiu por diversas partes do mundo,
inclusive no interior do noroeste gaúcho, desenvolveu-se o projeto de extensão pensando
desde o âmbito da comunicação a partir da proposta da criação de um documentário em
parceria com os venezuelanos como maneira de auxiliar no acolhimento desses sujeitos e
na contribuição de materiais comunicativos sobre o fluxo migratório. 
Como objetivo geral desta ação de extensão, pretende-se registrar, informar e produ-
zir conhecimento sobre o recente fluxo migratório de venezuelanos no Brasil. Tendo isso
como centro, será produzido um documentário em parceria com esses sujeitos, tendo por
base o relato deles mesmos sobre o período que estiveram em situação de refúgio e enquan-
to imigrantes no norte do Rio Grande do Sul.
Acredita-se que a ação de extensão contribui como estímulo para o incremento da pro-
dução audiovisual discente, potencializando a formação dos estudantes nessa área, en-
quanto espaço de registro do contexto social, indo para além do caráter técnico, desenvol-
vendo um olhar sensível e minucioso sobre um determinado assunto, acontecimento ou
fenômeno da realidade, dando espaço para as distintas vozes que compõem a sociedade
humana, bem como atentando a demandas do ambiente que estão inseridos, ou seja, a
comunidade local, que muitas vezes não encontra lugar no cenário midiático hegemônico.
Ainda, considera-se essa experiência significativa na formação de profissionais da comu-
nicação social, no sentido, de nutrirem nas suas atividades profissionais uma aproximação
com os sujeitos, grupos humanos e coletivos que compõem a sociedade, acercando as
visões de mundo desses indivíduos com o conteúdo dos produtos midiáticos que esses fu-
turos comunicadores venham a desenvolver evitando, desse modo, eventuais lacunas entre
a instância da produção e os anseios da audiência ativa.
Por fim, observa-se que a proposição de projeto se apresenta como relevante ao se de-
bruçar na contextualização dos aspectos comunicacionais, sociais, históricos, culturais e
políticos relevantes para compreender as configurações midiáticas, sociais e culturais e as
distintas relações que fazem parte do panorama atual da América Latina. Ainda, por ofe-
recer interessantes ângulos para se observar as recentes mudanças que vêm acontecendo no
continente, e a forma como essas transformações podem ser apresentadas em estruturas,
sistemas e produtos midiáticos, bem como as consequências dessas construções em outros
processos, como o da integração regional e o da constituição da cidadania e da intercultu-
ralidade. Ainda, possibilita dimensionar e apreender configurações midiáticas que constro-
em os seus produtos em diálogo com as visões de mundo e relações sociais dos indivíduos,
observando-os como participantes do contexto sociopolítico e midiático. Pois, ademais da
dimensão racional, existe uma dimensão sensitiva e emotiva que apresenta lógicas diver-
sificadas. De maneira semelhante, torna-se necessário produções midiáticas que priori-
zem a vinculação de uma visão de integração regional latino-americana, focada em ações
afirmativas e inclusivas, contribuindo para a construção de conhecimentos qualificados,

233
ampliados e produtivos sobre a questão. Desse modo, apresentando-se como instâncias
potencializadoras para o desenvolvimento de culturas comunicacionais, cidadãs e políticas
inovadoras e transformadoras. Enfim, pensa-se que, por meio da realização de um produto
audiovisual, em ativa colaboração com os refugiados, pode-se dar visibilidade às deman-
das desse grupo social de modo a contribuir no enfrentamento de demandas relativas a
realidade desses sujeitos, como a questão do acolhimento por parte das comunidades do
norte do Rio Grande do Sul, região na qual o Campus de Frederico Westphalen da UFSM
está inserido. Acredita-se que os produtos audiovisuais são ações relevantes de extensão
para a publicação e difusão de questões prementes da realidade social, contribuindo para
não apenas aproximar a Universidade com os diferentes públicos, mas também para buscar
a transformação dessa realidade, por meio dos anseios advindos da sociedade.
 
A PERSPECTIVA DO AUDIOVISUAL E AS POSSIBILIDADES DE DIÁLOGOS
ENTRE COMUNICAÇÃO E DIREITOS HUMANOS

Com a proposta de dialogar com os processos de elaboração de relatos a partir das mi-
grações, busca-se compreender melhor a complexidade desse fenômeno, no contexto da
sociedade contemporânea. Desse modo, pensa-se a comunicação como espaço privilegia-
do para a reflexão de questões fundamentais da realidade social, como o caso dos fluxos
migratórios, utilizando-se de produtos midiáticos, como é o caso dos documentários, como
alternativa para diminuir tensões, conflitos e preconceitos, abordando, por outro lado, as
potencialidades da interculturalidade, desde a relação entre as diferenças e similaridades
culturais entre migrante e autóctones. 
Desse modo, parte-se da problematização sobre o tratamento informativo da imigração
nos meios de comunicação (rádio, imprensa escrita e televisão fundamentalmente), no
tocante a interculturalidade. Busca-se, no projeto dar voz a quem, depois de perder casa
e pátria, se vê também sem a chance de nem mesmo contar a própria história. Utilizan-
do-se, para tanto, de recursos comunicacionais, como o audiovisual, no planejamento e
elaboração de um documentário realizado com os interlocutores, que não apresente o seu
cotidiano, como também, de visibilidade para as suas demandas, avançando no sentido de
uma comunicação plural, inclusiva e participativa, que contribua para o fortalecimento da
integração regional e da sociabilidade entre os sujeitos e, desse modo, com a solidificação
da cidadania e da democracia
Nesse âmbito, Lorite e Grau (2013, p. 153), alertam que “el conocimiento no solo se ar-
ticula en torno del audiovisual, sino que invita a reflexionar a través de el”, ou seja, tem-se
a necessidade de pensar a câmera como processo metodológico e técnico não apenas de
análise de fontes documentais, mas também da realidade social construída tanto nos víde-
os quanto nas falas dos sujeitos comunicantes. Portanto, trata-se de dar à câmera de vídeo
um uso que não consista apenas em registras imagens, mas sim confrontar conhecimentos
em diálogo múltiplo com outras áreas de conhecimento (MALDONADO, 2006).

234
Assim, como abordagem metodológica, busca-se desenvolver oficinas de comunicação
utilizando a ideia de cidadão multimídia na criação de narrativas independentes, que esti-
mulem a formação comunicacional, participação política e engajamento comunitário dos
refugiados venezuelanos, possibilitando aos imigrantes serem mais que personagens para
se tornarem produtores de conteúdos. Em outros termos, desde o processo pré-produção
até o processo de edição, busca-se uma narrativa para o documentário que intensifique o
contato com os refugiados, de modo que saiam de trás das câmeras e passaram a ser prota-
gonistas da própria história desenvolvida.
Sendo assim, em diálogo com os objetivos propostos pelo projeto, tendo como mote as
oficinas audiovisuais, observa-se a necessidade da realização de três etapas, apresentadas
na sequência. Assim, no primeiro momento, desenvolve-se a contextualização das temáti-
cas que abrangem o projeto, como a questão do Direitos Humanos e da interculturalidade.
Observa-se que essa etapa que se constitui como uma forma de olhar os fatos, processos ou
fenômenos no intuito de ampliar as informações, os dados, e as pistas referentes à proble-
mática investigada. Para tanto, são realizadas processualidades exploratórias do contexto
da pesquisa, buscando perceber seus contornos, suas especificidades, suas singularidades.
Entende-se que é importante compreender a realidade investigada em suas diferentes face-
tas, considerando uma diversidade de cenários, perspectivas, olhares e abordagens. Nesse
sentido, serão acionados elementos bibliográficos de referência sobre as temáticas que tan-
genciam o produto audiovisual em questão, como a problemática dos Direitos Humanos,
dos fluxos migratórios, da linguagem audiovisual. Ainda, outro movimento dentro dessa
etapa, será a pesquisa de documentários, na qual se busca a compreensão da questão au-
diovisual por meio da observação e análise de produções audiovisuais significativas para
compreender elementos históricos, culturais, sociais, políticos e comunicacionais que en-
volvem e incidem na compreensão sobre o fenômeno das migrações. No segundo momen-
to, realiza-se as entrevistas, que são imprescindíveis, nesse tipo de projeto, considerando
os interlocutores como “sujeitos complexos de caráter histórico, social, cultural, político,
ético, estético, técnico e psicológico que se constituem como sujeitos comunicantes em
receptividade comunicativa”. As formas de uso de uma entrevista pelos pesquisadores po-
dem ser muitas. Pode ser uma ferramenta de coleta e registro de dados (MANN, 1970), um
diálogo (MEDINA, 1995), um método de coleta e registro de narrativas e histórias de vida
(BOSI, 2010). O seu uso e aplicação precisam ser pensados com método, considerando
a finalidade para a qual se deseja empregá-la. Sem isso, a entrevista pode apenas reunir
falas arquivadas de alguma forma, não se tornando meio de ampliação de conhecimento
de uma realidade ou acontecimento. Ao mesmo tempo, importa observar a fisionomia, a
linguagem, os gestos, a emoção que o entrevistado eventualmente possa expressar, bem
como o contexto que o rodeia. Tais elementos aportam ao entrevistador e ao público da-
dos que não encontram em nenhum outro meio ou gênero (MENDONZA, 1999). No
caso do documentário, a entrevista se apresenta como uma possibilidade de construção de
documento que reúne, ao mesmo tempo, voz e imagem de pessoas “anônimas” e dispostas
a relatarem diferentes tipos de experiências de vida, e que fogem do interesse ficcional do

235
cinema, por exemplo. Para tanto, a construção do roteiro das entrevistas será feita com
base nos saberes, pensamentos e visões de vidas dos sujeitos envolvidos na produção au-
diovisual trazendo para o produto, justamente o conteúdo que eles desejam produzir, as
histórias e memórias que desejam acionar.
Por fim, discute-se a montagem e a edição do material coletado, também, em consonân-
cia com as considerações e a participação dos sujeitos refugiados, entendendo esse proces-
so como fundamental para a produção de conteúdo e sentido ao filme, dando ritmo e di-
namicidade a narrativa. Nesse âmbito, a equipe de extensionistas, desenvolve uma versão
prévia da narrativa que será avaliada pelos interlocutores, de modo a se ter um conteúdo
condizente com as demandas e desejos dos sujeitos partícipes do filme, atentando para as
opiniões e percepções dos participantes quanto ao produto final. 
Acredita-se que a partir desse conjunto de ações seja possível contribuir no processo
de acolhimento e inclusão social dos refugiados nas comunidades na qual estão inseridos,
bem como na formação da identidade dos sujeitos, por meio da interculturalidade entre
migrantes e residentes.

PROTAGONISTAS DAS PRÓPRIAS HISTÓRIAS: OFICINAS DE PRODUÇÃO


AUDIOVISUAL E A RELAÇÕES INTERCULTURAIS
 
Para se inserir na problemática do fluxo migratório, realizou-se levantamentos de infor-
mações a fim de contextualizar os extensionistas sobre a situação. Desde o início do proje-
to, acompanhou-se o panorama migratório tanto da Venezuela, quanto dos refugiados que
já foram interiorizados, e os desdobramentos disso nos meios de comunicação e na socie-
dade como um todo. A contextualização do que acontece nessas instâncias, brevemente
explanadas no primeiro item deste texto, fez com que ao longo do projeto os envolvidos (na
extensão) estivesse a par da realidade dos venezuelanos, otimizando o diálogo e contato
entre os sujeitos. 
A comunicação, como principal área de conhecimento em que a ação se sustenta, de-
senvolve-se na parte teórico-prática para concretizar os objetivos propostos, sobretudo o de
capacitar os imigrantes a partir de oficinas de audiovisual para a produção do documentário.
Assim sendo, como uma das primeiras ações, destaca-se a construção de uma cartilha
de comunicação documental em vídeo. O conteúdo teórico-prático principal das oficinas
foram orientados desde a elaboração desse documento sobre audiovisual. A construção
se deu, sobretudo, por meio de pesquisas sobre conceitos e conteúdos de comunicação co-
munitária, audiovisual, documentário, narrativa de audiovisual e de documentário, roteiro
e rotina de produção, e linguagens e informações técnicas para a produção (linguagem
fotográfica, cortes, planos, ângulos, movimentos, tomada, cena, sequência, decupagem,
áudio, iluminação e direitos de imagem). Todo esse conteúdo foi reunindo em 21 páginas,
impressas e entregues aos imigrantes já no primeiro encontro.
Ao longo das oficinas, os extensionistas explicaram o conteúdo da cartilha e realizaram
atividades de roteiro com os envolvidos, a fim de captar ideias propostas pelos participantes.

236
O contato para a produção com os venezuelanos se deu em três momentos:  em maio
de 2019, realizou-se a apresentação da proposta e a primeira oficina voltada a construção
de roteiro para captar ideias dos cinco venezuelanos que participaram; na segunda ofici-
na, em junho de 2019, foram abordados aspectos técnicos de uma produção audiovisu-
al, proporcionando aos envolvidos o contato com equipamentos e captações; na mesma
oportunidade e no mês seguinte foram captadas os relatos de cada família e dos sujeitos
envolvidos da recepção dos imigrantes.
Compreendeu-se que, devido a distância da Universidade até Chapada e os poucos recur-
sos para o desenvolvimento do projeto, os extensionistas iriam prestar todo o suporte técnico
de gravação do documentário, a fim de otimizar a captação do proposto pelos venezuelanos. 
Analisou-se a viabilidade das propostas de roteiros construiu-se o fio condutor da nar-
rativa guiados pela: a situação na Venezuela antes de vir para o Brasil; a vinda até a fron-
teira (em Pacaraima/RO) e o encaminhamento até Boa Vista/RO; a entrada em refúgio
e processo de interiorização; a voluntarização do Município de Chapada para receber os
venezuelanos (com depoimento dos principais responsáveis por isso); a viagem até Chapa-
da/RS; e a vida na nova moradia. 
O documentário explora o relato de quatro famílias de venezuelanos que sofreram difi-
culdades para sair de seu país de origem. Com dinheiro apenas para comprar o necessário
da alimentação e a perda de familiares pela violência, são algumas das situações que os
levam a eleger o Brasil com seu novo lar. No Noroeste do Rio Grande do Sul, o Município
de Chapada, foi uma das primeiras cidades a receber voluntariamente os refugiados do
país vizinho, interiorizados pelo Operação Acolhida, programa do Governo Federal. 
O produto audiovisual também traz os olhares das pessoas que os receberam no mu-
nicípio. Como fontes secundárias da narrativa captou-se o depoimento de três assistentes
sociais do município que estiveram envolvidas na organização do recebimento dos refugia-
dos em 2018, bem como o prefeito da cidade. 
Os recursos financeiros para desenvolvimento da proposta foram oriundos do ODH/
PRE e do Departamento de Ciências da Comunicação (DECOM), e com apoio do Cine
Globo da cidade. Durante toda a produção foi possível contar com auxílio dos técnicos de
rádio e audiovisual da Universidade. Os equipamentos utilizados foram em sua maioria da
própria Universidade (dois tripés, quatro câmeras e dois microfones de lapela). Depois das
captações, realizou-se o processo de pós-produção do documentário, que durou de agosto
a novembro de 2019 e contou com envolvimento direto dos extensionistas e do coordena-
dor do projeto. Ainda, com o apoio do curso de Letras – Espanhol, da UFSM, foi possível
contar com a colaboração de uma discente que produziu as legendas do filme.
Com o tempo de 30’38’’, o documentário 5000KM: uma jornada de esperança, foi lançado
em novembro de 2019, no Cine Globo Frederico, em Frederico Westphalen. Foi propor-
cionado as quatro famílias de imigrantes assistirem em uma tela de cinema as suas pró-
prias histórias. Ainda, o vídeo foi também disponibilizado no Youtube23 e aproveitou-se a

23 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=E9M56uSrwIc&t=45s.

237
divulgação do lançamento, nos meios de comunicação regionais, para também informar o
link da produção nas matérias. E, em março de 2020 o documentário foi exibido na progra-
mação da TV Campus da UFSM. Por fim, objetiva-se, também, que o documentário seja
exibido nas escolas dos municípios de Chapada/RS, Palmeira das Missões/RS e Santa
Maria/RS, no sentido de ampliar o debate sobre os fluxos migratórios contemporâneos no
Estado.
Observa-se a relevância da qualificação de cinco venezuelanos, participantes das ofici-
nas e da produção do documentário, bem como um diálogo horizontal durante todas as
fases de produção, recebendo sugestões e alterações na pós-produção. Por fim, o projeto
também fomenta a formação dos estudantes envolvidos, capacitando-os a realizar um pro-
jeto audiovisual de forma autônoma. 

REFLEXÕES FINAIS
 
Acredita-se que por intermédio das oficinas de produção audiovisual, tem-se a possibi-
lidade da geração de conteúdos com os quais os participantes se identificam, pois, desta
forma, os refugiados podem se apropriarem da narrativa e da linguagem audiovisual, tor-
nando-se produtores e não apenas consumidores culturais. Como resultado, o vídeo final
apresenta as visões de mundo, obtidas a partir dos diversos contextos sociais e mediações
culturais que constituem esses sujeitos. Ainda, possibilita dimensionar e apreender confi-
gurações midiáticas que constroem os seus produtos em diálogo com as visões de mundo
e relações sociais dos indivíduos, observando-os como participantes do contexto sociopo-
lítico e midiático. Pois, ademais da dimensão racional, existe uma dimensão sensitiva e
emotiva que apresenta lógicas diversificadas.
Sendo assim, pensa-se que a presente proposição de projeto se apresenta como relevan-
te ao se debruçar na contextualização dos aspectos comunicacionais, sociais, históricos,
culturais e políticos relevantes para compreender as configurações midiáticas, sociais e
culturais e as distintas relações que fazem parte do panorama atual da América Latina.
Ainda, por oferecer interessantes ângulos para se observar as recentes mudanças que vêm
acontecendo no continente, e a forma como essas transformações podem ser apresentadas
em estruturas, sistemas e produtos midiáticos, bem como as consequências dessas constru-
ções em outros processos, como o da integração regional e o da constituição da cidadania
e da interculturalidade.
Acredita-se que a ação de extensão sirva como estímulo para o incremento da produção
audiovisual discente, potencializando a formação dos estudantes nessa área, enquanto es-
paço de registro do contexto social, indo para além do caráter técnico, desenvolvendo um
olhar sensível e minucioso sobre um determinado assunto, acontecimento ou fenômeno da
realidade, dando espaço para as distintas vozes que compõem a sociedade humana, bem
como atentando a demandas do ambiente que estão inseridos, ou seja, a comunidade local,
que muitas vezes não encontra lugar no cenário midiático hegemônico. Ainda, considera-
-se essa experiência significativa na formação de profissionais da comunicação social, no

238
sentido, de nutrirem nas suas atividades profissionais uma aproximação com os sujeitos,
grupos humanos e coletivos que compõem a sociedade, acercando as visões de mundo
desses indivíduos com o conteúdo dos produtos midiáticos que esses futuros comunica-
dores venham a desenvolver evitando, desse modo, eventuais lacunas entre a instância da
produção e os anseios da audiência ativa.
Por fim, como possibilidades de desdobramentos do projeto de extensão, a partir, so-
bretudo, das demandas e das problematizações dos participantes da ação, pensa-se em
trabalhar com a questão do acesso dos imigrantes e refugiados ao sistema educacional
brasileiro, para que possam compreender a estrutura educacional do país e se motivarem
a ingressar nas universidades públicas do país, para seguirem a sua formação intelectual,
cultural e pessoal. Enfim, observa-se como relevante desenvolver atividades relativas as
diferentes nuances do acesso à educação por parte da população imigrante e refugiados,
de forma a dar visibilidade aos seus pleitos, em diálogo com as suas visões de mundo e
relações sociais, de maneira a contribuir com apoio, atenção, integração local e acesso a
direitos desta população, como é o caso do acesso à educação superior, por exemplo.

239
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240
INTERFACES TEÓRICO-PRÁTICAS DO
MIGRAIDH E CÁTEDRA SÉRGIO VIEIRA
DE MELLO DA UFSM PARA EDUCAÇÃO
EM DIREITOS HUMANOS

Giuliana Redin
Amanda Schreiner Pereira
Maria Clara Mocellin
Maria Catarina Chitolina Zanini
Liliane Dutra Brignol
Eliana Rosa Sturza
INTRODUÇÃO

A Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) foi instituída na UFSM no ano de 2015, pela
assinatura do Termo de Parceria entre a universidade e o Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados, subsidiado e possibilitado pela atuação do Migraidh, Grupo de
Ensino, Pesquisa e Extensão, Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional, re-
gistrado pela universidade no CNPq. O Convênio objetiva:

promover e difundir o Direito Internacional Humanitário, o Direito Internacional


dos Direitos Humanos e, em especial, o Direito Internacional dos Refugiados
que encontram-se sob a proteção internacional do Governo do Brasil, bem como
de desenvolver atividades que objetivem a incorporação da temática na agenda
acadêmica da instituição (TERMO DE PARCERIA, Cláusula Segunda, 2020).

O Migraidh, responsável técnico pelo convênio da Cátedra Sérgio Vieira de Mello na


UFSM, nasceu em 2013, com o projeto de pesquisa “Perspectivas Político-Normativas
para a Proteção dos Direitos Humanos do Imigrante Internacional no Brasil”, coordenado
pela professora Giuliana Redin, frente a um dos maiores desafios de direitos humanos, o
Direito Humano de Migrar24 e o reconhecimento de migrantes e refugiados como sujeitos
e sujeitos de direitos. “A ordem de Estados legitima uma exclusão e violência estruturais a
partir da negação institucionalizada do não nacional como sujeito pleno de direitos” (RE-
DIN, 2013). Esse pressuposto desperta para uma “ética voltada à responsabilidade com
um sujeito que é negado, leva a uma contestação da ‘verdade’ das instituições do Estado,
conforme Sayad (1998), e requer a essencial presença desse sujeito” (MIGRAIDH, 2020).
Estruturado no tripé ensino, pesquisa e extensão, o Migraidh se constitui como coletivo
de educação em direitos humanos para o desenvolvimento de ações voltadas à proteção
e promoção dos direitos humanos do grupo social de migrantes e refugiados. O Grupo é
um espaço de atuação política, subsidiada pelos estudos avançados no tema das migrações
internacionais e tem como pressuposto o direito humano de migrar e o reconhecendo da
agenda das migrações como um “fato social total” (SAYAD, 1998). Ao longo dos seus oito
anos de atuação, atualmente o Grupo conta com seis linhas de pesquisa, nas áreas do Di-
reito, Ciências Sociais, Comunicação Social, Psicologia e Letras. São elas: Linha 1 Proteção
e Promoção dos Direitos Humanos de Migrantes e Refugiados no Brasil25; Linha 2 Psicanálise e
Migrações: efeitos clínico-políticos dos deslocamentos26; Linha 3 Fluxos Migratórios Internacionais,

24 Tema referenciado a partir da problemática situada na tese de doutorado Direito de Imigrar: direitos
humanos e espaço público, da professora Giuliana Redin, fundadora do Grupo.
25 A linha é liderada pela professora Giuliana Redin, do Departamento de Direito. Essa é a linha de fun-
dação do Migraidh, em 2013.
26 Inicialmente, a linha adotava o título Clínica Psicossocial da Identidade: Subjetividade do(a) migrante
forçado(a), sob a coordenação do prof. Dr. Omar Hector Bonifacino Ardans (in memorian). Atualmente, a
linha é liderada pela técnica administrativa Amanda Schreiner Pereira, do Curso de Psicologia da UFSM.

242
Projeto Migratório e Alteridades27; Linha 4 Múltiplas Cidadanias e Processos Migratórios28; Linha
5 Comunicação Midiática e Migrações Transnacionais29; e Linha 6 Política Linguística e Portu-
guês Língua de Acolhimento30. Participam estudantes e pesquisadores de variadas áreas do
conhecimento, a exemplo, Direito, Relações Internacionais, Comunicação Social, Letras,
Psicologia, Ciências Sociais, Serviço Social e áreas da Saúde.
O Programa de Extensão, denominado Assessoria a Imigrantes e Refugiados, atualmente
em sua segunda fase, promove o ativismo em direitos humanos, estimula o desenvolvimen-
to do pensamento crítico e o envolvimento com a pesquisa, a partir de seu objetivo geral,
que visa: a promoção de ações para o acesso a direitos da população migrante e refugiada,
reconhecimento de direitos e incidência em processos legislativos e formulação de políticas
públicas, apoio psicossocial, ações de integração local e combate à xenofobia. A extensão
universitária é diretamente responsável pelo cumprimento dos compromissos firmados no
convênio que institui a Cátedra Sérgio Vieira de Mello na UFSM, suas ações também são
dirigidas para respostas mais integrais, considerando as múltiplas vulnerabilidades a que
estão suscetíveis migrantes internacionais, não apenas aqueles reconhecidos com o status
de refugiados:

1. Atendimento e assessoria jurídica individualizada e coletiva, também colaborati-


va com órgãos públicos, por meio de peticionamentos e pareceres; 2. Apoio psicos-
social, prestado por meio do convênio interno firmado com o Núcleo de Psicanálise
do Curso de Psicologia da UFSM; 3. Apoio para o acesso a serviços públicos; 4.
Acessibilidade linguística por meio das Rodas de Conversa; 5. Ações de integração
local da população migrante e refugiada; 6. Fortalecimento de redes voltadas ao
acolhimento, atendimento e inserção laboral da população migrante e refugiada;
7. Apoio técnico e realização de cursos de formação e eventos científico-culturais;
8. Mediação junto ao Executivo e Legislativo municipais para as agendas de po-
líticas públicas para a população migrante e refugiada; 9. Atuação em advocacy:
iniciativa e proposição de políticas públicas e incidência em processos legislativos
e administrativos relativos à agenda das migrações; 10. Apoio técnico à aplicação
da Res 41/2016 (art. 8º) e desenvolvimento das práticas de acolhida e permanência
de estudantes imigrantes e refugiados na UFSM; 11. Ativismo na promoção dos
direitos humanos da população migrante e refugiada por meio de ações de combate
à xenofobia e todas as formas de discriminação; 12. Participação como sociedade
civil em eventos governamentais e conferências sobre o tema das migrações inter-
nacionais e do refúgio (MIGRAIDH, 2020).

A extensão do Migraidh foi instituída como Programa de Extensão em 2014, com o


nome Assessoria Jurídica a Imigrantes e Refugiados, coordenado pela professora Giuliana Re-
din, e teve como marco a proposta de Resolução para a criação do “Programa de Acesso
à Educação Técnica e Superior da UFSM para refugiados e imigrantes em situação de

27 A linha é liderada pela docente Maria Clara Mocellin, do Departamento de Ciências Sociais.
28 A linha é liberada pela docente Maria Catarina Chitolina Zanini, do Departamento de Ciências Sociais.
29 A linha é liderada pela docente Liliane Dutra Brignol, do Departamento de Ciências da Comunicação.
30 A linha é liderada pela docente Eliana Sturza, do Departamento de Letras.

243
vulnerabilidade”, protocolada sob n. 23081.019460/2014-68, baseado na ampliação das
ações afirmativas na universidade. Tal política, orientada pelo princípio fundamental da
igualdade de oportunidade e de tratamento no acesso à educação técnica e superior, foi
aprovada na UFSM em 2016, e referenciada nacional e internacionalmente pelo seu cará-
ter inovador na promoção de direitos humanos.
Este capítulo apresenta as interfaces teórico-práticas do Migraidh e da Cátedra Sérgio Vieira
de Mello da UFSM para uma Educação em Direitos Humanos, produtora do conhecimento
fruto do diálogo e integração entre academia, meio e sujeitos. O Programa de Programa de
Extensão Assessoria a Migrantes e Refugiados possui inspiração freiriana, subsidia e é subsi-
diado pelas seis linhas de pesquisa, que, implicadas no ensino, desenvolvem práticas de inclu-
são e “Encontro com o Outro”, dirigidas à promoção de direitos humanos, da justiça social e
do fortalecimento das instituições democráticas. Portanto, o trabalho desenvolvido pelo grupo
compreende as dimensões do sujeito, na sua relação com o Estado e com a sociedade e da sua
subjetividade, sem as quais não é possível compreender as relações de exclusão e exclusão.
As secções abaixo foram elaboradas respectivamente por cada coordenadora de li-
nha de pesquisa e buscam estabelecer essa interface prática no âmbito extensionista do
Migraidh/Cátedra Sérgio Vieira de Mello, como contribuição para o pensar/agir na
Educação em Direitos Humanos.

PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DE DIREITOS HUMANOS DE


MIGRANTES E REFUGIADOS NO BRASIL

Como primeira linha de pesquisa e que deu origem ao Migraidh no ano de 2013, Pro-
moção e Proteção de Direitos Humanos de Migrantes e Refugiados no Brasil31, coordenada pela
professora Giuliana Redin, busca

compreender o cotidiano e vivência do sujeito da mobilidade humana internacio-


nal e identificar os aspectos psicossociais da sua vulnerabilidade para contribuir
no avanço legislativo, reconhecimento de direitos e desenvolvimento de políticas
públicas voltadas à proteção, acolhimento e integração local da população mi-
grante e refugiada (MIGRAIDH, 2018).

A pesquisa está referenciada na tese de doutoramento Direito de Imigrar: Direitos Hu-


manos e Espaço Público e parte da “desconstrução e superação das bases securitárias que
estruturalmente produzem e reproduzem as relações de exclusão e vulnerabilidade do su-
jeito em situação de migração e refúgio”. Desse modo, o conhecimento gerado pela linha
contribui para uma “convergência político-jurídica do tema das migrações e do refúgio
para dentro do campo exclusivamente dos direitos humanos, do direito humano de migrar
como possibilidade, do reconhecimento de direitos e do combate à xenofobia estrutural,
que é constitutiva da própria ideia do Estado-nação” (MIGRAIDH, 2018).
31 A linha recebeu esse título na 2ª fase do projeto que deu origem ao MIGRAIDH, Perspectivas Político-
-Normativas para a Proteção dos Direitos Humanos do Imigrante Internacional no Brasil, n. 033952.

244
Essa linha preocupa-se com a contestação da “verdade” das instituições sociais, funda-
das na exclusão, que, segundo Douzinas (2009, p. 363), é “tão constitutiva da identidade
nacional quanto o é da subjetividade humana”. Uma realidade que, segundo Sayad (1998,
p. 46), “impõe a todos a manutenção da ilusão coletiva de um estado que não é nem pro-
visório nem permanente [...]”, ou seja, “de um estado que só é admitido como como pro-
visório (de direito), com a condição de que esse ‘provisório’ possa durar indefinidamente,
ora como definitivo (de fato, com a condição de que esse ‘definitivo’ jamais seja enunciado
como tal”. É esse pressuposto teórico que marca a luta pelo Direito Humano de Migrar,
como reconhecimento do migrante e do refugiados como um sujeito pleno de direitos. A
linha de pesquisa Promoção e Proteção de Direitos Humanos de Migrantes e Refugiados no Brasil,
portanto, objetiva subsidiar avanços legislativos e o desenvolvimento de políticas públicas
voltadas ao acolhimento e integração local de migrantes e refugiados/as.
Das mais simbólicas ações práticas do grupo, destacam-se: a, já referida, política de
ingresso na UFSM a imigrantes e refugiados; o 1º curso para servidores públicos em Santa
Maria, voltado ao acolhimento, atendimento e integração local de migrantes e refugiados,
que resultou na Carta de Santa Maria sobre Políticas Públicas para Migrantes e Refugia-
dos; e a nota técnica ao PL 2516/2015 (Lei de Migração) na Câmara.
A proposta apresentada pelo Migraidh do Programa de Acesso à Educação Técnica e Supe-
rior da UFSM para refugiados e imigrantes em situação de vulnerabilidade, uma das suas mais
significativas ações, que foi aprovado em 2016 pela Resolução 041, baseou-se na observa-
ção das especificidades que caracterizam a desigualdade estrutural em relação ao sujeito
da mobilidade humana internacional: abrangeu migrantes por razão humanitária, além
dos refugiados; facilitação documental pela análise simplificada de documentos de con-
clusão de ensino médio ou equivalente no país de destino, dispensando-se a validação via
Coordenadorias Regionais de Educação, dispensa de proficiência em língua portuguesa
ou provas seletivas. Portanto, uma política avançada, debruçada no princípio da igualdade
de oportunidades e centrada na realidade vivenciada pela população migrante e refugia-
da. Essa iniciativa surgiu a partir da pesquisa empírica realizada junto à comunidade de
imigrantes haitianos em Lajeado, que revelou ainda a grande dificuldade em relação ao
reconhecimento no Brasil dos títulos educacionais, como também para o ingresso nas ins-
tituições de ensino superior.
No ano de 2015 o Migraidh encaminhou Nota Técnica para os debates da nova Lei de
Migração, construída com base no reconhecimento do direito de migrar e da igualdade
formal, além da material. Fundamentos para uma mudança paradigmática em relação ao
então Estatuto do Estrangeiro, legislação securitária, que negava expressamente ao imi-
grante uma condição de sujeito. A Nota Técnica foi apresentada à Comissão Especial des-
tinada a proferir parecer ao Projeto de Lei 2516/15 na Câmara dos Deputados, decorrente
do Projeto de Lei do Senado 288/2013, que instituiu a Lei de Migração, n. 13.445/2017.
O documento examinou o conteúdo do PL e propôs alterações norteadas pelo aperfeiço-
amento de sua agenda de direitos humanos e superação do espaço da discricionariedade
estatal no tema migratório, fundado na concepção do Direito Humano de Migrar e na

245
garantia da igualdade independentemente de nacionalidade. A Nota Técnica refletiu “o
contato empírico e atuante com os desafios cotidianos e as reivindicações de imigrantes e
organizações civis relacionadas ao tema”, o que permitiu “que fossem oferecidas propos-
tas muito concretas e alinhadas com a promoção e a proteção dos direitos humanos dos
imigrantes no Brasil”. (REDIN, MINCHOLA, ALMEIDA, 2020, p. 26)
O Migraidh também protagonizou a primeira iniciativa em Santa Maria voltada à forma-
ção de agentes públicos para o acolhimento, atendimento e integração local da população
migrante e refugiada. Um espaço de sensibilização sobre uma realidade que aponta para
múltiplas situações de vulnerabilidade do sujeito. Deste 1º Curso de Formação e Capacitação
em Direitos Humanos para Servidores Públicos: Migração, Refúgio e Políticas Públicas, ocorrido em
2017, resultou na Carta de Santa Maria sobre Políticas Públicas para Migrantes e Refugiados, a qual
recebeu Moção de Apoio do Legislativo aprovada por unanimidade em sessão plenária.
Ações que adotaram uma metodologia de permanente diálogo com a população mi-
grante e refugiada, de pesquisa e extensão como práxis, no reconhecimento da extensão
como comunicação e na sua essencialidade para a produção do conhecimento. Iniciativas
inspiradas no que Paulo Freire (2017) apontou como “quefazer educativo libertador”, que
requer “consciência do inacabamento”, que nos constitui eticamente e nos permite olhar o
outro. É a ideia do “Encontro com o Outro”, que nos ensina sobre diferença e autonomia.
Segundo Freire (2017, p. 29), a extensão como comunicação

exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. [...] Reclama a refle-
xão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece
conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o ‘como’ de seu conhecer e os
condicionamentos a que está submetido seu ato.

PSICANÁLISE E MIGRAÇÕES:
EFEITOS CLÍNICO-POLÍTICOS DOS DESLOCAMENTOS

Por meio das ações do projeto de extensão Intervenção Psicossocial com Imigrantes e Refu-
giados, do Núcleo de Psicanálise, empreendido e proposto a partir da parceria interna com
o Migraidh, estabelecida em 2019, a linha de pesquisa Psicanálise e Migrações, coordenada
pela psicóloga Amanda Schreiner Pereira, objetiva analisar os efeitos clínicos e políticos dos
deslocamentos dos sujeitos em situação de migração.
Visando a oferta de atendimentos psicológico e psicossocial para imigrantes e refugia-
dos, formou-se uma equipe de trabalho cujo foco de estudo inicial foi a concepção de
estrangeiro. Do ponto de vista do sujeito, para a psicanálise, estrangeiro é originalmente
um “êxtimo”, aquilo que conjuga o íntimo com uma exterioridade radical, uma parte da
estrutura do sujeito expulsa na origem da relação com a linguagem e que retorna como
algo estranho e externo. (LACAN, 2008, 1959-60).
Já o uso do termo estrangeiro para designar indivíduos advindos de outro país, tem ori-
gem política. Até o séc. XVIII o termo era usado, nas línguas européias, em referência ao

246
fora do comum, não-familiar. (KOLTAI, 2000). Assim, faz-se necessário o encontro com o
êxtimo e o político do termo em cada um que se permite na escuta migrante.
Na especificidade da escuta com imigrantes, além das dificuldades relativas à legaliza-
ção de sua permanência no país, ao ingresso no mercado de trabalho, ao aprendizado da
nova língua, entre outros, é preciso atentar-se às marcas da violência como causa do ato
de migrar, as violências com as quais se encontram quando exclusos no laço social em sua
nova morada, bem como às condições de resistência frente ao desamparo, para cada um
destes sujeitos.
A clínica da migração implica que, além do deslocamento físico, de um país a outro, pos-
samos escutar o deslocamento subjetivo, tempos necessários para elaboração das situações
de mudança por contextos traumáticos, como guerras ou extrema miséria, por exemplo,
mas também pela própria necessidade de vivência dos tempos dos lutos necessários para
reinserção no laço social. Para Rosa (2012, p. 71), isto exige o desenvolvimento de práticas
clínico-políticas de intervenção, para que seja possível “testemunhar, acompanhar e inter-
vir nos diferentes modos de lidar com os impasses desses sujeitos em seu laço social”.
A experiência junto a imigrantes estudantes na UFSM, ingressantes pela política de
ação afirmativa, demonstra que, além dos efeitos próprios às migrações, somam-se às ques-
tões de vulnerabilidade, as raciais. Sendo em sua maioria negros32, os imigrantes atendi-
dos pelo projeto narram a diferença em ser negro no Brasil, onde o racismo é manifestação
“normal” da sociedade e lógica para a reprodução das desigualdades no seio da estrutura
social. Trata-se do racismo estrutural entranhado na política e na economia de nosso país,
como designa Almeida (2020).
As relações que neste momento afloram evidenciam que a violência que sofrem os imi-
grantes também se ancora na racialização das vidas. Deste modo, o racismo se tornou
questão atual no debate desta linha e um de seus fundamentos éticos. Além disto, o traba-
lho com as migrações demanda uma atuação interdisciplinar e de rede, cujas intervenções
propostas pela equipe articulam-se a outras instâncias públicas, o que permite dar suporte
às ações de extensão e propiciar o reinvestimento dos sujeitos no laço social.

FLUXOS MIGRATÓRIOS INTERNACIONAIS,


PROJETO MIGRATÓRIO E ALTERIDADES

Para entender os processos (i)migratórios, a linha de pesquisa Fluxos Migratórios Interna-


cionais, Projeto Migratório e Alteridades, coordenada pela professora Maria Clara Mocellin,
parte de uma perspectiva, segundo Sayad (2000), de que o fenômeno migratório se confun-
de com a própria história de nosso sistema econômico e inscreve-se numa lógica governada
tanto pelos determinismos econômicos como também pelas categorias de nosso entendi-

32 O termo negro em português é uma tradução do Black, termo inglês usado com B maiúsculo para se
distanciar da terminologia colonialista utilizada até a década de 60 e sublinhar o fato de que não se trata de
uma cor, mas de uma identidade política. Há um dilema teórico na tradução do português, visto que o uso da
palavra negro/a pretende ser usado como um termo político, mas se ancora em uma terminologia colonial,
ligado a uma história de violência e desumanização (KILOMBA, 2020)

247
mento político, que é um entendimento indistintamente social, econômico, cultural, mo-
ral, político (nacional e nacionalista) e mental.
O debate gerado no âmbito da linha de pesquisa situa as dinâmicas (i)migratórias, so-
bretudo os fluxos internacionais que trouxeram migrantes caribenhos e africanos para o
sul do Brasil. A pesquisa parte de alguns processos fundamentais na vida desses migrantes:
os deslocamentos e inserção no mundo do trabalho, as interações sociais e às diferentes
relações de alteridades estabelecidas na sociedade de destino, o projeto migratório e as
obrigações familiares e religiosas, as dinâmicas transnacionais e de transmigrantes que
se deslocam entre duas ou mais sociedades. Os migrantes, na perspectiva transnacional,
são compreendidos como transmigrantes (GLICK-SCHILLER;BASCH; BLANC-SZAN-
TON, 1992), na medida em que mantêm constantes interconexões entre o país de destino
e o de origem e tomam decisões dentro de uma rede que envolve, simultaneamente, duas
ou mais sociedades. Em suma, dependem de múltiplas e constantes interconexões que
cruzam fronteiras internacionais.
Essa realidade é observada em um grupo de jovens senegaleses em Santa Maria, vin-
culados ao comércio de rua. Em meio à esfera mercantil, esses homens jovens trabalham,
trocam informações, conhecem pessoas, se deslocam por diferentes cidades do Brasil e
de países vizinhos. Os deslocamentos que o comércio ambulante lhes proporciona estão
diretamente ligados ao que buscam no projeto migratório: sustentar a si e às suas famílias,
viajar e conhecer lugares e pessoas, adquirir experiências de vida que os tornem homens
de maior prestígio nas redes familiares de seu país de origem. Entre eles há cooperação,
solidariedade e obrigações (MOCELLIN, 2017).
A pesquisa também observou como um grupo de estudantes haitianos que ingressaram
em cursos da UFSM por meio da ação afirmativa de ingresso para migrantes e refugiados
(Resolução 041/2016) compreendia as relações raciais no Brasil33, uma interpretação base-
ada na memória social sobre a independência haitiana e a experiência da diáspora anterior
à chegada ao Brasil (TROITINHO, 2019).
Duas pesquisas empíricas, implicadas em uma rede de trocas de experiências, conhe-
cimento e acolhimento, em conjunto com as ações extensionistas do Migraidh, que teve
como interlocutores imigrantes senegaleses e haitianos. No caso dos imigrantes senegale-
ses, cuja pesquisa empírica, desde 2014, observou-os no seu local de trabalho, as ruas de
Santa Maria, onde trabalhavam vendendo correntes, anéis, relógios, dentre outras merca-
dorias. A partir do trabalho extensionista do Migraidh, mais especificamente das Rodas
de Conversas com migrantes, foi possibilitado um convívio constante com os senegaleses
entre os anos de 2015 a 2019, período em que recém haviam chegado em Santa Maria, e de
maior dificuldades de inserção e adaptação na sociedade local. Para além do ensino-apren-
dizado das noções básicas da língua portuguesa, tendo como apoio o material didático
intitulado Pode Entrar: Português do Brasil para refugiadas e refugiados (FEITOSA, 2015), as

33 Essa pesquisa resultou na dissertação de mestrado intitulada O caminho certo é a escola, é nossa porta
de saída”: Perspectivas e trajetórias de haitianos na UFSM, produzida em 2019, por Bruna Troitinho, inte-
grante do grupo.

248
rodas de conversa se transformaram em um espaço de trocas interculturais. Uma das estra-
tégias de interação do grupo foi a troca de experiências de vida entre os imigrantes e os es-
tudantes/pesquisadores, contemplando os universos da vida familiar, religiosa, escolar e/
ou acadêmica, cultural, dentre outras. Muitas demandas por parte dos senegaleses foram
manifestadas nesses momentos de convívio. As mais frequentes eram as dificuldades com
a obtenção da documentação de imigrante, a inserção no mundo do trabalho e as dificul-
dades com o trabalho no comércio de rua, devido às constantes apreensões de suas mer-
cadorias pelos órgãos municipais. Demandas que foram acompanhadas pelo trabalho de
assessoria jurídica do Migraidh, no sentido de garantir direitos e combater atos arbitrários
durante as ações de repressão ao comércio de rua. Os senegaleses que participavam com
regularidade das Rodas de Conversa se tornaram mediadores do grupo de senegaleses em
Santa Maria, atuando como interlocutores junto às ações extensionistas e em outras ativi-
dades demandadas pelo Migraidh. Neste espaço criado de troca intercultural e reconheci-
mento étnico-religioso, também consolidou-se a participação do Migraidh na organização
da festa religiosa senegalesa Grand Magal de Touba34 em Santa Maria, ocorridas nos anos
de 2016, 2017, 2018 e 2019. A organização da festa era planejada e organizada durante as
Rodas de Conversas envolvendo os estudantes e pesquisadores do Migraidh, em conjunto
com os senegaleses.

PROCESSOS DE MOBILIDADE, CIDADANIAS E RECONHECIMENTO

Com o objetivo de congregar projetos e atividades que objetivem analisar as dinâmi-


cas envolvidas nos processos de obtenção, reconhecimento e vivência das cidadanias (em
seus mais variados sentidos) por parte de migrantes e refugiados em Santa Maria e região,
a linha de pesquisa Processos de Mobilidade, Cidadanias e Reconhecimento, coordenada pela
professora Maria Catarina Chitolina Zanini, reúne pesquisas documentais e etnográficas,
voltadas ao conhecimento e mapeamento das complexidades presentes em tais processos e
as dinâmicas entre Estado, sociedade civil e mobilidades.
Trata-se de uma linha vinculada às reflexões acerca da importância da cultura, do coti-
diano e também dos aspectos simbólicos e existenciais na vivência plena de processos de
cidadania e reconhecimento em contextos de mobilidade. Por entender que as relações de
poder que circulam horizontalmente (FOUCAULT, 1998) são tão importantes de serem
observadas quanto aquelas que provêm das lógicas do Estado, a linha tem procurado, por
meio de pesquisas etnográficas, compreender, analisar e refletir acerca de como se proces-
sam (ou não) as inserções de migrantes e refugiados nas sociedades de destino. A linha
também procura analisar de que forma os migrantes se situam e se colocam como partes
ativas em seus processos interativos (DE CESARO; ZANINI, 2018). Da mesma forma,

34 A Festa religiosa senegalesa Grand Magal de Tuba é um ritual religioso praticado pelos membros da
confraria Mouride, que seguem os ensinamentos do seu líder Cheikh Ahmadou Bamba, fundador dessa
confraria. Na diáspora senegalesa esse ritual cumpre um papel importante de integração na sociedade local
e divulgação da cultura religiosa senegalesa.

249
como ressalta Trouillot (2001), torna-se importante observar como o poder se processa em
contextos interativos, nas suas capilaridades e cotidianidades.
Tais pesquisas, vinculada às atividades do NECON/UFSM (Núcleo de Estudos Con-
temporâneos), têm subsidiado ações de formação, workshops, mesas redondas, disciplinas
de graduação e na pós-graduação que incentivem os estudos sobre migração, suas com-
plexidades e particularidades. A migração é um processo que deve ser compreendido em
suas diferentes fases, da saída dos países de origem até a inserção (ou não) nos países de
destino. Os indivíduos em mobilidade, por mais que possam fazer o processo isoladamen-
te, trazem consigo uma história de vida, suas vinculações familiares e políticas, sua língua,
seus corpos, suas crenças e suas lógicas de mundo. Permitir que essas sejam respeitadas na
sociedade de chegada é também um direito humano, assegurado pela Declaração Univer-
sal sobre a Diversidade Cultural35, de 2002.
A possibilidade de vivenciar seus credos, ter acesso à soberania alimentar, com garantias
de que possam produzir e consumir os itens de alimentação respeitados culturalmente,
também é uma questão que a linha tem estudado. A comida, o vestir, o falar, poder circular
publicamente e ocupar espaços públicos são também aspectos muito importantes de serem
respeitados nos processos de mobilidade. Quais atividades são permitidas e facilitadas para
que os migrantes ou refugiados possam se manter e viver com dignidade nas cidades? E em
Santa Maria, como isso tem acontecido?
A linha se preocupa ainda com as questões históricas vinculadas às migrações e outros
processos de mobilidade, para compreender de que forma as negociações de posições e hie-
rarquias, de inclusões e exclusões vão se estabelecendo ao longo do tempo. O que dialoga
com essas dinâmicas? Questões raciais, de classe, de geração, de credo, de gênero? Quais?
Como os imigrantes alemães, italianos (ZANINI, 2006)36, japoneses, sírios e libaneses,
entre outros, estabeleceram-se na cidade e região? O que fizerem para serem respeitados e
respeitarem as diversidades? Pensar as diversidades e como as cidades, os Estados nacio-
nais e as sociedades civis estão refletindo sobre isso é algo que compreendemos ser muito
importante (VERTOVEC, 2007, 2011). No contexto contemporâneo de mundialização
(LINS RIBEIRO, 2000), torna-se importante também observar as dinâmicas interativas e
como as relações de poder se processam entre indivíduos e seus coletivos e o que podemos
aprender sobre diversidades e diálogos com todas essas dinâmicas. E também o que pode
ser melhorado para termos uma sociedade mais equitativa e respeitosa das diversidades.
35 A Declaração está disponível no endereço eletrônico: http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTI-
MEDIA/HQ/CLT/diversity/pdf/declaration_cultural_diversity_pt.pdf
36 Neste estudo é analisada a construção da italianidade na região central do Rio Grande do Sul e também
se salienta o quanto o diálogo entre grupos diversos em contextos comuns pode variar historicamente. Essas
variações dialogam muito com acontecimentos e contextos regionais, nacionais, internacionais nos quais
se deve também observar o desenvolvimento do capitalismo e suas dinâmicas, elemento importante para se
compreender historicamente determinadas mobilidades.

250
COMUNICAÇÃO MIDIÁTICA E MIGRAÇÕES TRANSNACIONAIS

A linha de pesquisa Comunicação Midiática e Migrações Transnacionais, coordenada pela


professora Liliane Dutra Brignol, passou a integrar o Migraidh/CSVM em 2018, com o
objetivo de fomentar projetos que pudessem articular questões comunicacionais e midiá-
ticas sobre as migrações transnacionais em suas múltiplas dimensões. Prioritariamente,
a linha tem investigado as representações midiáticas das dinâmicas migratórias e os usos
sociais das mídias por sujeitos migrantes em suas implicações para políticas de reconheci-
mento e cidadania. Tais eixos são complementares e ajudam a refletir sobre a importância
da comunicação midiática nas trajetórias migrantes e no conhecimento socialmente com-
partilhado sobre o fenômeno, com consequências para o modo como é enfrentado pela
sociedade. A linha parte do pressuposto da migração como direito humano e enquanto um
fato social total (SAYAD, 1998), cujos deslocamentos culturais sociais e simbólicos exigem
uma ruptura com sua compreensão baseada em uma lógica exclusivamente econômica ou
securitária. Portanto, trabalha para a construção de produções midiáticas que reflitam a
complexidade das migrações e do refúgio nas sociedades contemporâneas, para além de
uma pauta associada apenas a problemas e conflitos. Isto implica pensar no âmbito inter-
cultural, social, político, econômico e comunicacional das migrações de maneira integra-
da, de modo a propor uma abordagem crítica às perspectivas comumente observadas na
cobertura midiática, restritas à representação do migrante enquanto ameaça, como vítima
ou limitado a sentidos que levam à exotização das diferenças.
A linha está vinculada ao grupo de pesquisa “Comunicação em rede, identidades e
cidadania” do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFSM, no qual são de-
senvolvidas investigações orientadas à análise dos processos de recepção e de usos sociais
das mídias, com temáticas relacionadas à construção de identidades e dinâmicos plurais de
participação cidadã mediadas por tecnologias digitais.
Como objetos de estudo relacionados à linha Comunicação Midiática e Migrações
Transnacionais, estão as web rádios comunitárias de migrantes haitianos (PINTO, 2019),
as dinâmicas de auto representação em práticas de comunicação na web de migrantes sene-
galeses (COSTA, 2017) e as redes sociais migratórias de senegaleses no Rio Grande do Sul
(BRIGNOL, 2021). Os estudos mais recentes têm se dedicado a refletir sobre o papel das
tecnologias digitais na conformação de ativismos de resistência à xenofobia e ao racismo,
bem como sobre a intersecção entre as experiências migratórias com exclusões de gênero.
Na extensão, destacam-se as ações de sensibilização para uma agenda das migrações de
respeito às diferenças e na formação de acadêmicos e de profissionais da área, em ações
junto à comunidade (como eventos, rodas de conversa, mostras), além da colaboração com
a produção de conteúdo midiático de divulgação e de promoção do conhecimento desen-
volvido pelo Migraidh/CSVM.
Como parte das ações, no segundo semestre de 2019, a linha de pesquisa subsidiou o
Curso de Extensão para Comunicadores sobre Mídia e Migrações Transnacionais, que teve
como objetivo promover formação e aperfeiçoamento para profissionais e estudantes do

251
campo da Comunicação e contribuir para promoção do conhecimento e atualização sobre
a trajetória dos movimentos migratórios no Brasil e no mundo e o papel de suas constru-
ções midiáticas na promoção de relações interculturais. O curso envolveu diversas áreas de
pesquisa e atuação do Migraidh/CSVM (Comunicação Social, Direito, Ciências Sociais,
Psicologia, Letras, entre outras) e incluiu os seguintes tópicos: Panorama histórico e traje-
tória dos movimentos migratórios transnacionais no Brasil e no mundo; Políticas migrató-
rias no Brasil e mundo; Cultura, diversidade cultural, interculturalidade e a suas relações
com a comunicação midiática; Características e tendências da cobertura das migrações
transnacionais nos meios de comunicação brasileiros; Desafios éticos para a abordagem
midiática das migrações. Este foi um importante espaço de diálogo e de complexificação
da construção midiática sobre o tema, de aproximação do conhecimento acadêmico às ex-
periências de profissionais da área da Comunicação no contexto de Santa Maria e região.
Esse resultado, é um dos exemplos da atuação extensionista voltada à democratização
do conhecimento e aproximação dos agentes que atuam nos diversos campos do debate de
direitos humanos e da não securitização sobre as migrações transnacionais.

POLÍTICA LINGUÍSTICA E PORTUGUÊS LÍNGUA DE ACOLHIMENTO

Com o objetivo de promover ações que oportunizem o acolhimento de migrantes e refu-


giados na UFSM, a partir da organização cursos, assessorias e materiais para o ensino da
língua portuguesa, a linha Política Linguística e Português Língua de Acolhimento, coordenada
pela professora Eliana Sturza, subsidia a elaboração de materiais e a perspectiva do ensino
da língua portuguesa como língua de acolhimento37. São desenvolvidas as ações políti-
co-linguísticas que enfocam o atendimento das necessidades linguísticas específicas dos
migrantes e refugiados para sua integração, sobretudo, na vida acadêmica e mobilidade
com dignidade no ambiente universitário. O acesso ao aprendizado da língua é um direito
que cria condições para a construção da dignidade social, econômica e cultural desses mi-
grantes e refugiados.
O conceito de Língua de Acolhimento surge em Portugal nos anos 2000 justamente em
vista das levas de migração na Europa. O Português Língua de Acolhimento (PLAc) se pau-
ta por atender às necessidades de comunicação imediata dos sujeitos no mundo do trabalho e
às condições de acesso aos serviços, possibilitando-lhes uma inserção social adequada. Neste
37 São referências utilizadas na linha: AMADO, R. S. O ensino do português como língua de acolhimento
para refugiados. Revista SIPLE, v. 4, n. 2, [6 p.], out. 2013. BULEGON, M.; SOAREA, L. F. Impactos so-
ciais dos novos fluxos migratórios e políticas linguísticas no Brasil: o ensino de Português como Língua de
Acolhimento (PLAc). Revista on line de Política e Gestão Educacional, Araraquara, v. 23, n. 3, p. 638-655,
set./dez., 2019; CAMPOS, F.; JÚNIOR COSTA, E. O ensino de Português como Língua de Acolhimento
(PLAC) na linha do tempo dos estudos sobre o Português Língua Estrangeira (PLE) no Brasil.Horizontes de
Linguística Aplicada, ano 19, n. 1, 2020; L.P. DELL’ISOLA, R.; SACARAMUCCI, M. V. R.; SCHLAT-
TER, M.; JÚDICE, N. A avaliação de proficiência em português língua estrangeira: o exame CELPE-Bras.
In: Rev. Brasileira de Linguística Aplicada, v. 3, n. l, p. 153-184, 2003; OLIVEIRA, G. M. Política Linguís-
tica e Internacionalização: a Língua Portuguesa no Mundo Globalizado do Século. Revista Trabalhos de
Linguística Aplicada. v. 52, n.2 Campinas, jul./dez. 2013.

252
sentido, o objetivo do ensino do Português se pauta pelas práticas sociais identificadas como
fundamentais para a integração dos migrantes e refugiados na sociedade.
A partir da realidade do imigrante dentro do contexto universitário, a integração de fato
requer que os setores de atendimento administrativo, do contexto de ensino-aprendizagem
nos diversos cursos da Universidade, desenvolvam estratégias para qualificar acolhida e
inclusão. A elaboração dessas estratégias requer o reconhecimento do lugar de escuta do
migrante e do refugiado, de modo que suas dificuldades sejam orientadoras dessas estraté-
gias, mas também como forma de redução da circulação dos preconceitos e promoção da
experiência intercultural no contexto universitário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma educação em direitos humanos é aquela construída a partir da comunicação ou


da dialogicidade entre academia, meio e sujeitos. Pressupõe o reconhecimento do outro;
o “Encontro com o Outro”. Essa é a base que constitui a atuação do Migraidh, Direitos
Humanos e Mobilidade Humana Internacional, e seu compromisso com a agenda das
migrações internacionais, que credencia a Universidade Federal de Santa Maria para o
Convênio da Cátedra Sérgio Vieira de Mello na UFSM.
As interfaces teórico-práticas do Migraidh/CSVM encaram as migrações internacio-
nais como um “fato social total”, nas palavras de Sayad (1998), e abordam o sujeito mi-
grante nas dimensões psicossocial, político-jurídica, social, das instituições e da subjetivi-
dade. Esse diálogo aponta para o conhecimento sobre as múltiplas situações que implicam
na vulnerabilidade do grupo social de migrantes e refugiados e orienta as ações voltadas
à inclusão social, integração local e pleno reconhecimento do migrante/imigrante como
sujeito de direitos.
Essas ações, orientadas pelo Direito Humano de Migrar, constituem a história do Mi-
graidh, estão na essência da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da UFSM e representam co-
nhecimento especializado produzido na temática. São elas que resultam e são resultado de
uma Educação em Direitos Humanos como desafio da universidade.

253
REFERÊNCIAS

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256
UFSM NAS RUAS:
ITINERÁRIOS DE AÇÕES
EXTENSIONISTAS COM PESSOAS EM
SITUAÇÃO DE RUA EM SANTA MARIA/RS

Amara Lúcia Holanda Tavares Battistel


Josiane Bertoldo Piovesan
Mariana Mozzaquatro
PASSOS INICIAIS

O projeto de extensão UFSM nas RUAS: mais portas, menos muros para catadores de materiais
recicláveis e pessoas em situação de rua, vinculado ao ODH - PRE/UFSM, iniciou em 2018,
a partir do desejo de docentes do Curso de Terapia Ocupacional da mesma universidade
e colaboradores. Foi elaborado com o intuito de fornecer cuidado humanizado para pes-
soas em situação de vulnerabilidade social. Dessa forma, inicialmente, o objetivo traçado
visou estimular a cidadania ativa, as relações de convivência, o processo de acolhimento e
a sensibilização, visando desencadear e adequar atividades promotoras de troca de saberes
entre os participantes do projeto, as pessoas em situação de rua e os catadores de materiais
recicláveis na cidade de Santa Maria – RS.
Compreende-se por população em situação de rua o disposto no Decreto n.º 7.053, a
saber: “Grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os
vínculos familiares fragilizados ou rompidos e a inexistência de moradia convencional re-
gular” (BRASIL, 2009). Portanto, trata-se de uma população heterogênea, constituída por
indivíduos com histórias singulares, os quais ocupam as ruas por diversas razões e convi-
vem com a diversidade e a complexidade, dinâmica, ritmo e constituição cultural e política
desse espaço (SILVA et al, 2018).
Desse modo, foi criado um grupo de trabalho composto por discentes, docentes e voluntá-
rios, não necessariamente do Curso de Terapia Ocupacional, mas que tivessem interesse para
iniciar as ações no território juntamente com o público-alvo, ou seja, vontade de mobiliza-
rem-se nesse sentido. Com poucos recursos, uma sala emprestada pela prefeitura municipal
de Santa Maria, localizada no Clube 21 de abril, porém com muita vontade de fazer a dife-
rença, iniciaram-se as aproximações entre os participantes do projeto, voluntários e usuários.
Eram propostas, nesses encontros, trocas e criação de vínculos entre os participantes.

O CAMINHO SE FAZ AO CAMINHAR:


AÇÕES DESENVOLVIDAS ANTES DA PANDEMIA DA COVID-19

Os primeiros passos do projeto se centraram na construção de vínculos na busca de


sinergia entre os participantes, aproximação e criação de laços de confiança, visando ao
acolhimento e à sensibilização do cuidado. Durante algum tempo, foram planejadas ações
amparadas na Política de Assistência Social (BRASIL, 2004) e Política Nacional para a
População em Situação de Rua (BRASIL, 2009). Contudo, pouco enxergávamos de resul-
tados, visto que as pessoas não conseguiam aderir às intervenções. A avaliação das circuns-
tâncias nos levou a perceber que precisamos fazer/falar menos e escutar mais. Assim, era
necessária uma escuta atenta para entendermos a demanda do público atendido a fim de
planejarmos ações precisas e adequadas.
Com isso, enxergamos o papel de mediador da equipe multidisciplinar, a importância do
saber acadêmico alimentado pelo saber vivido e experienciado nas ruas. Ainda, notamos que

258
a aprendizagem se fazia em mão dupla, que tínhamos muito a aprender, pois só assim seria
possível planejarmos nossas ações de modo a fazer sentido para eles. Enfim, ficou perceptível
o fato de que deveríamos elaborar ações que realmente pudessem atender às suas reais neces-
sidades. A partir disso, poderíamos pensar em trocas de saberes com base na lógica de quem
vivenciava a realidade das ruas. Conforme pontua Freire (2000, p. 70): “O educador se reco-
nhece conhecendo os objetos, descobrindo que é capaz de conhecer, assistindo à imersão dos
significados em cujo processo se vai tornando também significador crítico”. Logo, as histórias
de vida precisaram ser ouvidas, sem questionamentos, para podermos compreendê-las.
A primeira lição, para os proponentes do projeto, foi a certeza de que antes da criação
do vínculo não chegaríamos até eles. Em função disso, abandonamos a organização do
espaço do Clube 21 e fomos ao território frequentado por essas pessoas. A Praça Saldanha
Marinho, no centro da cidade, foi um ponto de encontro eficaz. Nela, eles transitam, en-
contram-se e até trabalham. Nas rodas de conversa, descobrimos alguns talentos e o gosto
pela música. Por iniciativa da população em situação de rua, criamos um grupo chamado
de “Samba na Praça”, o qual teve por objetivo proporcionar momentos de encontro, des-
contração e visibilidade para essa população, que possui pouco destaque e protagonismo
em Santa Maria. A cada encontro, algo novo surgia, novos desejos eram trazidos e, muitas
vezes, nossa roda de música terminava com histórias de vidas que eram emocionantes
e instigantes. Algumas histórias eram comoventes e marcadas por atos desumanos. Se-
guiram rodas de capoeira, roda de violão, brincadeiras e jogos de futebol, que, para eles,
causavam alegria, pertencimento e descontração, mas, aos olhos dos transeuntes, geravam
surpresa, estranhamento e até desconforto.
Essas atividades ocuparam um espaço significativo, tanto no cotidiano desses indiví-
duos quanto para nós, que começamos a nos sentir inseridos no território e acolhidos por
eles. O ambiente de rua tem um lugar de potência e de pertencimento e é um espaço em
que eles se sentem mais confiantes, mesmo sem infraestrutura de habitação. Na verdade, o
território da rua é o espaço mais semelhante a uma “casa” para essa parcela da população.

Nele [o território] pode-se observar diferentes maneiras de existir, sonhar, viver,


trabalhar e realizar trocas sociais. Essa noção exige que se tenha a compreensão
de intervenção em saúde que supere a noção de risco, que isola e escolhe deter-
minadas variáveis, geralmente de ordem biológica, para o desenvolvimento das
ações de saúde. A intervenção em saúde deve estar pautada pela noção de chan-
ces de vida, que busca trabalhar a partir de uma visão do ambiente ecológico e
social em que estas vidas se tecem. Dessa maneira entende-se que as chances de
vida determinam as chances de saúde das pessoas (BARROS et al., 2002, p. 100).

Quando compreendemos o sentido de nossas ações, o projeto começou a ganhar pro-


porções ainda maiores, aumentando o número de participantes. Muitos deles não estavam
em situação de rua, porém viviam em vulnerabilidade social, vivenciando precárias con-
dições de trabalho. Alguns relataram vivências de preconceito e discriminação ao serem
vistos catando materiais recicláveis nas lixeiras.

259
Tais relatos incentivaram o projeto a desenvolver alternativas a fim de desconstruir essa
visão inadequada. Então, promovemos o I Seminário de Políticas Públicas para a Popula-
ção em Situação de Rua da Universidade Federal de Santa Maria, que teve como propósito
fomentar discussões relativas ao contexto em que vivem a população em situação de rua e
catadores de materiais recicláveis na cidade de Santa Maria, de modo a sensibilizar o poder
público, os gestores, os docentes e os discentes. Também objetivamos possibilitar a fala e a
presença dessas pessoas que se sentem à margem da sociedade, ao ocuparem um espaço pú-
blico como a UFSM, de grande importância na cidade, o qual, até então, eles não frequenta-
vam e sequer conheciam. Assim, o seminário causou um impacto no lócus em que aconteceu:
a universidade. Foram muitos olhares de estranhamento e questionamentos gerados pela
ocupação das pessoas em situação de rua naquele espaço. Dessa forma, instigamos a quebra
de barreiras e de estigmas ao permitirmos o acesso dessa população à UFSM.
Os seminários passaram a ser organizados de forma anual com o intuito de proporcio-
nar visibilidade à população em situação de rua e de discutir questões pertinentes, rela-
cionadas à assistência social, à terapia ocupacional e às políticas públicas voltadas a essa
parcela da população. Enquanto integrantes do projeto, compreendemos que esse espaço
ajudou a promover direitos, garantiu protagonismo e gerou um sentimento de pertenci-
mento a indivíduos que vivenciam a extrema vulnerabilidade social.
Na Terapia Ocupacional, as ações de saúde têm o propósito de compreender de forma
global os indivíduos, percebendo demandas que vão além de fatores biológicos e do processo
de saúde e doença. Essa área de estudo busca proporcionar intervenções no âmbito social,
cultural e econômico; criar espaços de discussão sobre a relevância social de ações que visem
ao cuidado integral ao ser humano; prevenir violação de direitos; promover a fiscalização e o
acesso aos benefícios das políticas públicas, garantindo o cumprimento dos direitos.
A Constituição de 1988 trouxe mudanças importantes para o campo da assistência
social, desencadeando a criação de políticas públicas, como a Política Nacional de As-
sistência Social e a implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), como
uma política social e um direito dos cidadãos (CARVALHO, 2002; SPOSATI, 2007). O
incremento dessas políticas contribuiu para consolidar um campo de atuação histórico de
terapeutas ocupacionais, o qual deu seus primeiros passos na década de 1970. Em 2011, foi
reconhecida como especialidade a Terapia Ocupacional em Contextos Sociais, pelo Con-
selho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Ela foi regulamentada pelo Conselho
Nacional de Assistência Social (CNAS) como uma das categorias habilitadas a atuar nas
equipes de referência e/ou na gestão dos serviços socioassistenciais que compõem o SUAS
(OLIVEIRA; PINHO; MALFITANO, 2019).
Visando à formação de um espaço de compartilhamento de experiências e conhecimen-
tos e, igualmente, buscando formas possíveis de ensino remoto, como é recomendado pela
UFSM, foi proposta uma disciplina complementar de extensão, vinculada ao projeto de
extensão, denominada Terapia Ocupacional Social e a População em Situação de Rua. Essa foi
desenvolvida com o objetivo de proporcionar, a quem a cursasse, conhecimentos teóricos
referentes à temática central do projeto. A disciplina contou com a presença de diversos

260
profissionais, oriundos de diferentes áreas de atuação do campo social, quer sejam: da saú-
de, da educação e da assistência social.
Além disso, neste período, participamos do III Fórum de Direitos Humanos da UFSM, con-
tribuindo com um vídeo informativo referente às ações do projeto na Mostra dos Projetos
de Extensão de 2020 do ODH. Ainda, divulgamos nossas ações nos Fóruns de Extensão
e Jornadas Acadêmicas Interdisciplinares e publicamos artigos em periódicos científicos.

MUDANÇA DE ROTA: A PANDEMIA IMPÕE NOVOS RUMOS

Quando o vínculo havia se feito, as relações já estavam estabelecidas, eis que surgiu a
imposição do distanciamento social imposto pela Severe Acute Respiratory Syndrome Corona-
virus-2 (SARS-CoV-2), causadora da COVID-19. Esse novo cenário exigiu a reformulação
das estratégias de intervenção, cuidado e assistência, com o propósito de se prevenir a con-
taminação da COVID-19 e preservar a saúde dos participantes do projeto e das pessoas em
situação de rua. Desse modo, foi imprescindível uma adaptação das ações extensionistas
ao formato remoto.
Em meio ao cenário de incertezas e de instabilidades desencadeado pela pandemia do
novo coronavírus, respeitando as orientações da UFSM de suspender por tempo indeter-
minado as ações de extensão, foi necessário reformular nosso plano de atuação. No primei-
ro momento parecia impossível e um grande desafio realizar atividades remotas com uma
população sem acesso aos recursos tecnológicos para tal. Nesse sentido, o projeto passou a
integrar as ações do Comitê Emergência Rua (CER)38, o qual foi criado no início da pan-
demia, consistindo na união de diversos grupos de voluntários, de diferentes vertentes, os
quais atuam em prol da população em situação de rua do município.
No cenário de pandemia no Brasil, foram necessárias adaptações em todas as ações
extensionistas. Assim, o projeto teve que se adequar ao objetivo de parcerias e meios de
implementação, buscando, constantemente, formas de apoio com grupos de voluntários,
instituições privadas e públicas de Santa Maria.
Dessa forma, passamos a formular estratégias de cuidado em nossas redes sociais,
buscando parcerias com grupos de voluntários, instituições públicas e privadas, a fim de
proporcionar, direta ou indiretamente, assistência à população em situação de rua. Com
a aproximação do inverno, foi organizada a implantação de um centro de acolhimento
organizado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), via CREAS
da Prefeitura Municipal de Santa Maria, a Associação de Acolhimento e Ressocialização

38 O Comitê Emergência Rua (CER) é composto pelo Grupo Almoço Solidário, Grupo SOS RUAS, Pro-
jeto ALIMENTORIA, Projeto MANÁ, Acolher Com o Coração, Projeto PANELA DO BEM, Projeto O
Pouco Que Vale Muito, Grupo Familiar, Associação Gaia: Projeto Gaia Resgatando Vidas, Grupo Somente
o Bem, Instituto São José, Grupo Comunidade Olhar Misericordioso, Associação Gaia, Casa de Acolhimen-
to Provisório Maria Madalena, Comunidade Terapêutica Maria Madalena, Projeto de Extensão RÁPIDOS,
Projeto de Extensão UFSM nas ruas, Projeto Esperança/Cooesperança, Conselho Municipal de Segurança
Alimentar (COMSEA-SM).

261
para Indivíduos em Vulnerabilidade Social (GAIA), bem como diversos grupos de volun-
tários do CER. Essa ação teve o propósito de acolher, em um abrigo temporário no Centro
Desportivo Municipal (CDM), as pessoas em situação de rua, a fim de prevenir o contágio
delas pela COVID-19 e protegê-las do frio.
Por meio dessas parcerias, o projeto efetuou muitas ações envolvendo arrecadações de
materiais de higiene, alimentos, roupas, álcool em gel, colchões, lençóis e diversos mate-
riais necessários para a organização do espaço de acolhimento. Além disso, abrangeu par-
ticipamos do planejamento e da coordenação de algumas oficinas de artesanato, pintura
e jogos. Durante o período de acolhimento, no CDM e no momento posterior a ele, con-
tinuamos com as arrecadações, dando suporte aos diferentes grupos, tanto em se tratando
de arrecadações quanto no que se refere à divulgação das ações por eles desenvolvidas.
Desse modo, passamos a atuar como elo, fazíamos campanhas, arrecadávamos doações
da comunidade e, por meio dos grupos de voluntários constituintes do CER, chegávamos
à população em situação de rua.
Sabendo que embora as aglomerações tenham sido desencorajadas, as festividades, an-
teriormente realizadas com muito movimento, passaram a ser realizadas de modo mais
tímido, durante as refeições oferecidas pelos grupos de voluntários para as pessoas em
situação de rua. Assim, comemoramos o Dia das Crianças, geralmente muito esperado, e
as Ceias de Natal e Ano Novo.
Ao contrário do que esperávamos, as ações, ainda que de modo diferente, continuaram
acontecendo. Nesse novo processo, algo muito importante aconteceu no que se refere aos
laços criados entre os grupos e ao impulso nas relações de parcerias estabelecidas. Nesse
sentido, destacam-se as parcerias com o projeto Esperança Co-esperança, coordenado pela
irmã Lourdes Dill39, e com as Casas de Passagem40 Maria Madalena e Mundo Novo, que
possibilitaram a concretização do I Seminário Internacional de Políticas Públicas para

39 A Irmã Lourdes Dill é Educadora Popular do Cooperativismo, da Economia Popular Solidária, da Agri-
cultura Familiar. Ela também é Agente da Caritas, desde 1987, e coordenadora do PROJETO ESPERAN-
ÇA/COOESPERANÇA e o BANCO DA ESPERANÇA, da Arquidiocese de Santa Maria, RS – Brasil,
e é Presidente do CONSEA/SM (Conselho de Segurança Alimentar de Santa Maria). Possui licenciatura
plena em Economia Doméstica, com Especialização em Extensão Urbana e Rural na Universidade de Passo
Fundo – RS. Além disso, realizou curso de especialização em Organização Popular, Movimentos Sociais e
Democracia Participativa pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Belo Horizonte – MG, com
participação na organização do Curso pela Cáritas Brasileira em parceria com a Universidade Federal de Mi-
nas Gerais. Recebeu diversos prêmios por sua atuação frente à Economia Solidária, entre eles Troféu Mulher
Cidadã (2014) na categoria “Profissionalização e Geração de Trabalho e Renda da Mulher”, da Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – RS, e o Prêmio Mietta Santiago (2018), da Câmara dos
Deputados, em Brasília-DF.
40 Conforme o site oficial do GESUAS, as “Casas de Passagem” são unidades para acolhimento e proteção
de indivíduos afastados do núcleo familiar, bem como para famílias que se encontram em situação de aban-
dono, ameaça ou violação de direitos. Caracterizam-se pela oferta de acolhimento imediato e emergencial,
com um limite de permanência máxima de 90 dias. Com capacidade para atender 50 pessoas, o serviço pode
ser acessado por meio do CREAS, do Serviço em Abordagem Social e Centro Pop. O serviço funciona 24
horas em regime de plantão. Disponível em https://www.gesuas.com.br/blog/acolhimento-institucional/.
Acesso em: 8 ago. 2021

262
a População de Rua da UFSM, o qual, neste ano, fez parte da programação da Edição
Especial Online da 27º Feira Internacional de Cooperativas (FEICOOP)41. Esse evento
forneceu um espaço de trocas de experiências e vivências entre os participantes do projeto,
docentes, discentes, profissionais, comunidade santa-mariense, gestores e pessoas em situ-
ação de rua. A participação no seminário se fez por videochamadas, as quais foram insta-
ladas nas casas de passagem, e por meio dos vídeos gravados das pessoas em situação de
rua durante a oferta de refeições a elas. Desse modo, as pessoas em situação de rua foram
ouvidas por todos os participantes do evento, o que despertou o sentimento de pertenci-
mento nos assistidos que estavam nas casas de passagem, pois se reconheceram nos relatos.
As redes sociais do projeto se tornaram uma maneira de abranger a sociedade, por meio
de publicações e vídeos informativos, com o intuito de estabelecer parcerias e de visibilizar as
temáticas de pessoas em situação de rua e de catadores de materiais recicláveis. A visibilidade
alcançada, por meio das redes sociais, elevou a visibilidade, gerou o aumento de seguidores
e de novos parceiros. Isso, por sua vez, contribuiu muito com as campanhas de arrecadação
dos diversos itens necessários ao cuidado para com a população em situação de rua.

NOVOS RUMOS: NA ROTA DA AGENDA 2030

A partir das parcerias consolidadas, o aumento da visibilidade do projeto e a identifi-


cação de formas de trabalho encontradas com profissionais que coordenam e atuam na
Casa de Passagem Mundo Novo, foi possível vislumbrar a candidatura à chamada interna
n.º 62/2020-PRE, proposta pela PRE por meio da Coordenadoria de Desenvolvimento
Regional e Cidadania, para credenciamento de ações de extensão para uso do Espaço de
Ações Comunitárias e Empreendedoras, localizado na Rua Floriano Peixoto, 1184, bairro
Centro, município de Santa Maria - RS. A contemplação nesse edital foi possível graças à
parceria com a Casa de Passagem Mundo Novo, que nos proveu de recursos provenientes
de uma verba parlamentar relacionada aos Direitos Humanos, com a qual foram con-
templados e que possibilitará alavancarmos as ações iniciais. Tal conquista representa um
marco divisor de águas nas possibilidades e nos rumos do projeto. Conseguimos uma sala
destinada a nossas ações, um espaço de pertencimento, situado em um local privilegiado,
nas imediações do território em que as pessoas em situação de rua transitam.
Dessa forma, conseguimos vislumbrar novas possibilidades de atuação interprofissional
e intersetorial nos âmbitos da saúde, educação, assistência social, arte, cultura, trabalho e

41 A Feira de Economia Solidária se constitui como uma proposta coletiva, que reúne trabalhadores e tra-
balhadoras do campo e da cidade, empreendimentos, fóruns, redes e consumidores/as, movimentos sociais,
pastorais, diferentes denominações religiosas, entidades da sociedade civil, instituições públicas e privadas.
Trata-se de um processo “aprendente e ensinante”, que se contrapõe às formas de exploração engendradas
no modo de produção capitalista e às opressões que incidem na vida da classe trabalhadora de modo geral.
Busca-se, a partir dessa construção, o cultivo de novas relações humanas e também novas relações quanto ao
cuidado com a CASA COMUM e construção da cultura do BEM VIVER. Disponível em: http://feicoop.
com.br/content/knowledgebase/kb_view.asp?kbid=1. Acesso em: 7 jun. 2021.

263
renda. Para tanto, alinharemos nossas ações aos objetivos propostos na Agenda 203042. A
Agenda 2030 prevê a erradicação da pobreza, fome zero e agricultura sustentável; saúde e
bem-estar, educação de qualidade, igualdade de gênero, água potável e saneamento; energia
acessível e limpa, trabalho decente e crescimento econômico; indústria, inovação e infraes-
trutura, redução das desigualdades; cidades e comunidades sustentáveis, consumo e produ-
ção responsáveis, ação contra a mudança global do clima, vida na água, vida terrestre; paz,
justiça e instituições eficazes, bem como parcerias e meios de implementação. Esses são os
17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos a fim de implementar ações
práticas para uma sociedade igualitária (PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO, 2021).
O plano de trabalho previsto para ser desenvolvido no Espaço de Ações Comunitárias e Em-
preendedoras prevê o desenvolvimento de estratégias de atenção aos indivíduos em situação de
vulnerabilidade social alinhadas aos objetivos já mencionados. Assim, destacamos a erradicação
da pobreza, efetuada por intermédio das ações de organização de campanhas de doações de aga-
salhos, produtos de higiene, alimentos, brinquedos e arrecadação de álcool em gel e máscaras,
a fim de oferecer formas de cuidado durante o combate ao vírus SARS-CoV-2.
O objetivo de fome zero e agricultura sustentável também pode ser visualizado através das
nossas ações práticas, como a participação dos integrantes do projeto em espaços de oferta
de refeições para pessoas em situação de desamparo e vulnerabilidade social, como também
a entrega de cestas básicas para famílias e grupos que necessitam de alimentos. Além disso, a
saúde e o bem-estar são propósitos do projeto, sendo efetuados por meio de espaços voltados
à prevenção de doenças e à promoção de saúde, elaborados em parceria com o CREAS.
O objetivo de redução das desigualdades é norteador para o projeto, sendo implementa-
do em todas as ações desenvolvidas ao longo de todos os anos de atuação extensionista.
Assim, destacamos a luta constante pelos direitos básicos para indivíduos em situação de
vulnerabilidade social e a inclusão da sociedade nesta discussão, através da organização
de três seminários de políticas públicas para a população em situação de rua, vinculados à
UFSM e ao ODH, bem como da realização da pré-conferência de saúde para esse segmen-
to da população, realizada na Praça Saldanha Marinho.
Nessa perspectiva de atuação, há também os objetivos de paz, justiça e instituições eficazes,
que visam à promoção de sociedades pacíficas, justas e inclusivas. Destacamos, para além
dos eventos organizados, os espaços de acolhimento, como o grupo “Samba na Praça”,
direcionado à recreação, saúde, visibilidade e, sobretudo, uma atividade de estimulação a
sentimentos de pertencimento à sociedade. Dentre as próximas ações previstas está a cria-
ção do Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua,
consolidado pela Lei n.° 17.252/2019, que consiste em um órgão colegiado composto de
modo paritário entre Governo e Sociedade Civil a fim de construir, acompanhar e avaliar a

42 Conforme o site oficial da PRE da UFSM, Agenda 2030 é um protocolo mundial que objetiva repensar
ações voltadas à criação de uma sociedade justa e digna para todos os indivíduos que nela vivem. Foi criada
durante uma reunião de Cúpula da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2015, sendo o Brasil um
dos 197 países que se comprometeram a desenvolver ações envolvendo os 17 Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável, ampliados em 169 metas, até o ano de 2030.

264
política municipal para a população em situação de rua no município. A partir disso, será
possível empreender a luta pela criação do Centro POP, sendo possível buscar a inclusão
social desses indivíduos.
Como propósito de plano a médio e longo prazo do projeto, temos o objetivo de pro-
porcionar trabalho decente e crescimento econômico. Isso poderá ser concretizado por meio da
elaboração de oficinas de geração trabalho e renda para catadores de materiais recicláveis
e pessoas em situação de rua. A referida ação será implementada na sala destinada ao pro-
jeto, por meio da Chamada Interna 62/2020 da PRE (Credenciamento de ações para com-
por o quadro de atividades do espaço de ações comunitárias e empreendedoras – PRE/
UFSM), tendo como meta a construção conjunta de espaços informativos referentes a
empreendedorismo, educação financeira e geração de renda. Além disso, prevemos a con-
fecção de produtos para venda, com o intuito de proporcionar aos indivíduos um trabalho
remunerado e digno.
Ainda na perspectiva de geração de renda, as oficinas pensadas para abranger o viés de
trabalho também terão, como propósito, o consumo e a produção responsáveis, abrangendo o vi-
gésimo segundo objetivo da Agenda 2030. Através dessa ação, o projeto buscará confeccionar
produtos com materiais recicláveis, de modo a estimular estratégias de consumo consciente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Faz-se imprescindível compartilhar as vivências e as experiências das ações de extensão


universitária em meio à pandemia da COVID-19, permitindo maiores discussões e estabe-
lecendo reflexões referentes às possibilidades da atuação a distância. Dessa forma, é funda-
mental destacar as diferentes perspectivas de movimentação do projeto, buscando compre-
ender as novas demandas encontradas pelo público-alvo e, também, as maneiras possíveis
de atuação, visando aos cuidados necessários a fim de evitar o contágio pelo coronavírus.
Nesse sentido, é fundamental salientar a resiliência da equipe envolvida nas ações, a
qual, mesmo com os obstáculos encontrados durante o processo, buscou adaptações e
maneiras de fornecer cuidado e assistência diante ao distanciamento social. Há inúmeras
dificuldades em prover ações de extensão a distância, principalmente compreendendo o
público-alvo do projeto, ou seja, as pessoas em situação de rua, sem acesso às mídias digi-
tais e a ligações telefônicas. Desse modo, foi necessário repensar estratégias de cuidado, as
quais englobassem essa população sem oferecer risco à saúde a ela e preservando a saúde
dos integrantes do projeto.
À vista disso, é importante ponderar a importância das parcerias obtidas ao longo da
existência do projeto. Foram elas que causaram potência, geraram visibilidade e deram
mais amplitude às intervenções. Tais ações, em conjunto com instituições públicas e priva-
das, bem como com grupos de voluntários, vêm fornecendo maior visibilidade à temática
de pessoas em situação de rua e catadores de materiais recicláveis, sendo possível, princi-
palmente em meio acadêmico, proporcionar maior acesso a essa questão, que é de extrema
relevância social. Ademais, por meio das parcerias, foi possível abranger as demandas de

265
pessoas em situação de rua e catadores de materiais recicláveis, organizando campanhas
de conscientização e prevenção sobre a COVID-19, além da arrecadação de produtos de
higiene pessoal e alimentos, dando visibilidade à temática em espaços com gestores da
cidade de Santa Maria.
Para finalizar, é importante expressar nosso agradecimento e reconhecimento à Pró-
-Reitora de Extensão, por todo apoio e incentivo por meio do ODH, o qual tem possibili-
tado a realização de nosso projeto. Tal incentivo se fez fundamental para a projeção que o
UFSM nas ruas: mais portas, menos muros para catadores de materiais recicláveis vem atingindo
no meio acadêmico e, do mesmo modo, entre a população geral de Santa Maria.

266
REFERÊNCIAS

BARROS, D. D.; GUIRARDI, M. I. G.; LOPES, R. E. Terapia ocupacional social.


Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 95-103, 2002.

BRASIL. Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004; Norma Operacional


Básica – NOB/Suas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
– Secretaria Nacional de Assistência Social, 2005.

BRASIL. Decreto nº 7.503 de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para


a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Mo-
nitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União: Brasília, DF, ano 2009,
p. 16, 23 dez. 2009.

BRASIL. Lei nº 17.252 de 26 de dezembro de 2019. Consolida a Política Municipal para


a População em Situação de Rua, institui o Comitê Intersetorial da Política Municipal
para a População em Situação de Rua e dá outras providências. Câmara Municipal do
Estado de São Paulo. São Paulo, SP, ano 2019, sessão em 3 de dezembro de 2019.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 7


ed., Rio de Janeiro: Paz e terra, 2000.

OLIVEIRA, M. L. de; PINHO, R. J. do; MALFITANO, A. P. S. O cenário da inserção


dos terapeutas ocupacionais no Sistema Único de Assistência Social: registros oficiais
sobre o nosso percurso. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, v. 27, n. 4, p.
828-842, 2019.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA. Pró Reitoria de Extensão. Agenda


2030. Disponível em: https://www.ufsm.br/pro-reitorias/pre/agenda-2030/. Acesso em:
20 maio 2021.

SILVA, C. R. et al. Estratégias criativas e a população em situação de rua: terapia ocupa-


cional, arte, cultura e deslocamentos sensíveis. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupa-
cional, v. 26, n. 2, p. 489-500, 2018.

267
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO CONTEXTO
DA PANDEMIA DE COVID-19: RELATOS DAS AÇÕES
DESENVOLVIDAS PELO CENTRO DE REFERÊNCIA
ESPECIALIZADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO
MUNICÍPIO DE SANTA MARIA/RS

Annie Caroline Ebani Jacques


Maria Ramires Conrado
INTRODUÇÃO

O fenômeno população em situação de rua, homens e mulheres que sobrevivem em


condições sub-humanas de existência e sem acesso às necessidades básicas, é consequência
de processos de violações de direitos e exclusão, tendo como base o sistema capitalista e a
divisão de classes, que ao excluir os indivíduos do processo de trabalho, coloca-os à mar-
gem da sociedade, sendo estes considerados invisíveis.
A invisibilidade imposta à população em situação foi agravada pela pandemia da CO-
VID-19, quando em março de 2020, o mundo entrou em alerta com o novo coronavírus.
As principais recomendações dos órgãos de saúde eram o distanciamento social, isolamen-
to, uso de máscaras e higiene frequente das mãos com álcool em gel e sabão. Naquele mes-
mo período, o mundo parou, sendo decretado o isolamento social como forma de conter o
avanço da contaminação pelo vírus. O município de Santa Maria, seguindo os protocolos,
também determinou o fechamento do comércio, eventos, bares, etc. Somente os serviços
essenciais poderiam funcionar, orientando às famílias a permanecerem em suas casas. Po-
rém, como ficariam aqueles indivíduos que não possuíam casa e nem acesso à higiene?
A política de assistência social no município precisou de organização para atender à
demanda da população em situação de rua frente à pandemia da COVID-19, para permitir
minimamente o distanciamento social, acesso à higiene e necessidades básicas.
É neste sentindo, que o relato apresenta as estratégias desenvolvidas para atender as
demandas da população em situação de rua do município, como o isolamento social para
população em situação organizado no CDM e posteriormente a continuidade do atendi-
mento no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), evidencian-
do também os desafios enfrentados frente à precarização da política pública e retrocessos
dos direitos sociais.
Este relato, que se desenvolve dentro de uma perspectiva de trabalho interdisciplinar,
entre as áreas de psicologia e serviço social, tendo como base a promoção da cidadania
e viabilização de direitos, para além da apresentação do trabalho desenvolvido junto à
população em situação de rua durante a pandemia de COVID-19, tem como intuito o
enfretamento e a resistência frente avanço do conservadorismo e retorno de práticas assis-
tencialistas e higienistas.

POP RUA43 NA PANDEMIA


POP RUA NA PANDEMIA:
ISOLAMENTO SOCIAL E VIOLÊNCIA ESTRUTURAL44

Ao correlacionar violência estrutural e a pandemia da COVID-19, Souza et al. (2020, p. 2)


se apoiam em dois conceitos de violência estrutural que se complementam ao dimensionar
esse cenário. Primeiramente, Johan Galtung a define como “[...] uma deficiência evitável das
43 Termo abreviado para se referir à população em situação de rua.
44 Parte integrante do artigo de conclusão do Curso de Especialização em Estudos de Gênero Mulher(es)
na(s) Rua(s) x Política(s) Crua(s): Fragmentos da violência estrutural na pandemia de COVID-19. (CONRA-
DO; SIQUEIRA, 2021, no prelo)”.

269
necessidades humanas fundamentais” (SOUZA, 2020, p.2). Já Maria Minayo e colaborado-
res afirmam que: “ela se fundamenta no contexto de extremas desigualdades sociais, onde
uma parte da população é excluída e não tem acesso a direitos, o que abre espaço para a
desvalorização da vida e banalização da morte da impunidade” (SOUZA, 2020, p.2). Sendo
assim, a violência estrutural nega os direitos fundamentais que consistem no direito à vida, à
educação, à alimentação, à moradia, à saúde, ao saneamento básico, entre outros.
A pandemia de COVID-19 provocou a urgência de respostas rápidas das políticas públi-
cas, inclusive da Assistência Social. Com a identificação das pessoas em situação de rua
como grupo de risco, principalmente pelo fato de não terem moradia, o que implica na im-
possibilidade de isolamento e acesso à higiene, fatores estes pautados como fundamentais
na prevenção ao contágio, à gestão municipal de Santa Maria/RS através da SMDS des-
tinou um espaço para o isolamento social a fim de promover a proteção dessa população
extremamente vulnerável.
O isolamento Social para pessoas em situação de Rua no município de Santa Maria/
RS ocorreu no CDM, no período entre 25 de março a 30 de abril de 2020, sendo acolhidas,
nesse período, 75 pessoas, dentre estas, 70 homens e 05 mulheres, 43 não possuíam docu-
mentação, 57 declararam fazer uso abusivo de substâncias. Dentre as mulheres, 02 já ha-
viam sido abordadas pela equipe de abordagem social do CREAS em situações anteriores
e uma havia acessado o CREAS anteriormente. Todas essas mulheres afirmaram fazer uso
abusivo de substância e trazem marcas da violência no discurso do seu cotidiano de rua.
Este acolhimento se deu abruptamente, pois se organizou em caráter emergencial, sem
fornecer tempo hábil para que nós, a equipe técnica de abordagem social do CREAS – uma
psicóloga e uma assistente social – estruturasse um plano de acolhimento. 
Num primeiro momento, nós - equipe de referência - acessamos o local destinado ao
acolhimento das pessoas em situação de rua para avaliar as condições deste. Realizamos
no dia posterior abordagem social comunicando os usuários sobre a disponibilidade do
espaço, além de reforçar as orientações necessárias sobre as práticas de prevenção a CO-
VID-19. No dia seguinte, a maioria deles já aguardava ansiosa a abertura dos portões para
o acolhimento. Alguns, no entanto, apesar das nossas insistentes tentativas de sensibiliza-
ção, se recusaram a acessar o espaço.
Foram ocupados três pavilhões, cada um destinado a um fim específico. No primei-
ro, onde os usuários chegavam, seria realizado o acolhimento. Neste local também ficavam
os kits de higiene e as roupas limpas, além de um espaço improvisado para a guarda de
pertences pessoais. Ao lado dos banheiros foi colocado um contêiner de lixo para o des-
carte das roupas sujas e supostamente contaminadas.  O segundo pavilhão foi destinado
às refeições, com 50 mesas espaçadas dois metros cada. Por fim, o terceiro pavilhão com
cinquenta colchões numerados e distantes dois metros cada.
Além da abordagem social, os usuários chegavam através de encaminhamentos da rede
e demanda espontânea. Assim que acessavam o isolamento, eram acolhidos por nós, e
recebiam, além de um kit de higiene e roupas limpas, um número correspondente ao leito
que ocupariam. Após serem encaminhados para o banho, eram servidas as refeições. Para

270
maior compreensão das demandas individuais, criamos uma ficha de acolhimento com
dados de identificação, serviços já acessados e comorbidades presentes.
O acolhimento em saúde no isolamento social, se estruturou sob responsabilidade do
voluntariado, e que, inicialmente se instalou no pavilhão de acesso do CDM, migrou pos-
teriormente para um espaço reservado em anexo, com acesso irrestrito aos técnicos e vo-
luntários e que os acolhidos acessavam para verificação dos sinais vitais, administração
medicamentosa, e se necessário, encaminhados ao Pronto Atendimento Municipal, que
se configurou como serviço de referência. Ao longo do acolhimento esse espaço também
passou a gerenciar e armazenar doações de roupas e materiais de higiene, além de alimen-
tos recebidos. Não raro, aconteciam momentos privativos aos voluntários de confrater-
nizações de aniversários, “contratações” e “despedidas” no espaço que foi apelidado de
“bunker” pelos acolhidos.
Pactuamos com os usuários, logo no acolhimento inicial, além das regras básicas de
higiene e distanciamento social, que se saíssem do espaço não poderiam retornar ao isola-
mento, como medida protetiva para o coletivo. Ao longo do acolhimento, regras de convi-
vência foram desenvolvidas durante as rodas de conversa, como escala de limpeza, toque
de recolher, uso dos materiais, dinâmica das refeições, entre outros. Todos, sem exceção,
tinham lugar de fala no círculo.
As rodas de conversas eram realizadas ao final de cada “plantão” a fim de discutir
questões circunstanciais que surgiam ao longo do dia com o objetivo de evitar ruídos
na comunicação do coletivo e proporcionar aos acolhidos gerência responsável sobre a
dinâmica do espaço ocupado. “Os grupos podem constituir-se em espaço de vínculos e
identificação de condições e situações similares, estimulando um conjunto de pessoas na
busca de soluções a partir de potenciais individuais e coletivos” (CONSELHO FEDE-
RAL DE PSICOLOGIA, 2013, p. 72).
Nos utilizamos das ações já desenvolvidas anteriormente no CREAS com essa popula-
ção, que obtiveram relativo êxito, como as já mencionadas rodas de conversas pautadas na
perspectiva de participação autônoma dos usuários e as oficinas de arte terapia, priorizan-
do a livre expressão dos acolhidos.
As oficinas de arte terapia, enquanto instrumento de reelaboração traumática das si-
tuações de violação de direitos aconteciam em tempo integral conforme o interesse de
cada acolhido. Foram disponibilizados a estes o material de pintura e artesanato para que
as acessassem conforme o desejo individual. Essas atividades desenvolviam-se de forma
individual e grupal, característica marcante que diferenciava os homens das mulheres. En-
quanto a maioria dos homens se ocupavam da confecção coletiva de artesanato e cartazes
alertando sobre os riscos e as medidas de precaução contra a COVID-19, as mulheres de-
senvolviam produções individuais de desenhos e poesias que remetiam às suas vivências.
As principais refeições, almoço e jantar, eram disponibilizadas pelo Restaurante Popu-
lar do Município e aos finais de semana pelo Exército Brasileiro. Também recebíamos do-
ações diárias de lanches através de entidades e grupos voluntários. Nós realizávamos três
chamadas diárias que ocorriam no horário das principais refeições, pois era o momento

271
em que o coletivo se reunia, e a cada evasão, se abria uma vaga para um novo acolhimento.
Cabe destacar que a grande maioria das evasões se davam no período noturno, quando nós
não estávamos presentes. Ao final da chamada, nos sentávamos para realizar as refeições
junto ao grande grupo. 
Com o passar do tempo, não era mais necessário a realização das chamadas durante o
horário das refeições, pois já conhecíamos todos pelo nome e sabíamos quem permane-
cia ali. Além dos próprios acolhidos nos avisarem: “estou aqui ainda”, “não fui embora,
viu?”. O vínculo estava criado. E se manifestava em forma de cumplicidade, em partilhar o
mesmo alimento, em dividir conosco as doações de doces que ganhavam. A partilha do ali-
mento igualava técnicos e acolhidos, rompendo os abismos sociais. Naquele fragmento de
tempo, éramos somente pessoas nos alimentando mutuamente da comida, da palavra, da
troca, do vínculo, resgatando nesse recorte de tempo, o sentido estrito da comensalidade.
Em que ponto as alteridades migram para relações de subalternidades? Em que momento
impera a clivagem determinada pelos marcadores sociais?
Propusemos um plano de desacolhimento que levou em consideração o desejo e as pos-
sibilidades de cada um, priorizando a manutenção e fortalecimento da autonomia como via
de não retornar à situação de rua, pautando-se nos mecanismos da rede enquanto suporte
para a reinserção social pós isolamento através da promoção do acesso a garantia de direitos.
Baseando-nos nos pressupostos de que

É indispensável que o Plano de Acompanhamento Individual e/ou Familiar seja


traçado em conjunto com as pessoas atendidas, visto que o campo da PSA exige a
superação da crença de que, com o nosso saber, podemos resolver e determinar o que
é melhor ou necessário para a vida daqueles que atendemos (BRASIL, 2018, p. 111).

Elencamos as seguintes ações no plano de desacolhimento: Encaminhamento para


regulação e confecção de documentação individual; Encaminhamento para inserção no
cadastro para auxílio emergencial; Encaminhamento para família ampliada ou aluguel;
Articulação da Gestão da SMDS com a Casa de Passagem para acolhimento dos casos
não contemplados na terceira ação; Confecção de currículos para inserção no mercado
de trabalho; Articulação e encaminhamentos para a rede de serviços das políticas de
Assistência Social e Saúde; Articulação com a Gestão da SMDS para garantia de acesso
ao restaurante popular gratuitamente para aqueles que ainda estão em situação de vul-
nerabilidade social mediante avaliação da equipe CREAS; Articulação com a gestão da
SMDS para definição prévia da data para encerramento das atividades de Acolhimento
no CDM; Desligamento dos voluntários; Continuidade do acompanhamento da rede
socioassistencial do município aos usuários.
Cabe ressaltar que ao longo do isolamento social, demais profissionais vinculados à
SMDS atuantes no CREAS e nos CRAS do município integraram equipe técnica de traba-
lho interdisciplinar atuante junto às pessoas acolhidas.

272
Criada a partir do contexto pandêmico, a cartilha do Ministério da Mulher, Família
e Direitos Humanos legitima a prática do voluntariado no acolhimento às Pessoas em
Situação de Rua:

[...] nesse contexto a participação da sociedade civil organizada se faz absoluta-


mente necessária. Tanto os movimentos da população em situação de rua ou de
garantias de direitos humanos, quanto empresas, setor turístico e as organizações
religiosas podem desempenhar um papel de extrema relevância por meio da con-
jugação de esforços em todo o território nacional, possibilitando assim, que todos
tenham acesso e recebam o atendimento devido (BRASIL, 2020, p. 3).

Respaldado legalmente, o voluntariado se fez presente no espaço de acolhimento, na


maioria das vezes representado por projetos e grupos de cunho religioso, sendo, esse dis-
curso messiânico diametralmente oposto ao preconizado pelas leis e normativas que regem
a política de Assistência Social. Infelizmente, um número significativo de técnicos, tanto
da Assistência Social, quanto os voluntários da área de Saúde, engrossava o coro que ento-
ava um discurso repleto de moralismo e questões pré-concebidas. 
O voluntariado se dividia em dois grupos além dos profissionais de Saúde; um pequeno
grupo laico composto estritamente por mulheres e um grande grupo de cunho religioso
que pregava os preceitos da “evangelização” nas abordagens com os usuários. Antagônicos
às práticas das rodas de conversa, este segundo grupo enfileirava os acolhidos em cadeiras
como uma plateia das pregações religiosas, proferidas aos gritos. Esses episódios ocorriam
no período noturno, após a saída dos técnicos do local. Se tornaram, progressivamente per-
ceptíveis as tensões entre esses dois grupos na disputa de um suposto “poder” e influência
sobre os acolhidos. Sob esse aspecto, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos preconiza que:
Nos casos em que a rede pública de serviços for insuficiente para atender toda a
demanda da população em situação de rua no contexto da pandemia, sugerimos
o fortalecimento dessa rede a partir de articulações realizadas com as organiza-
ções civis e religiosas, bem como com o setor privado e empresarial, coordenado
pela gestão pública local e com atuação intersetorial (BRASIL, 2020, p. 4).

A precariedade em profissionais habilitados e a indisponibilidade destes para atender


esse público-alvo revela o sucateamento não somente da política de assistência social,
abrindo espaço para o assistencialismo calcado no senso comum de culpabilização do
sujeito pela sua atual situação, desresponsabilizando estado e sociedade. A ausência de
responsividade ética por via de regra resulta na permissividade para ações arbitrárias, por
vezes nefastas. O discurso dos direitos se contrapõe a outras representações que naturali-
zam a vulnerabilidade social, causadas por “vontade própria da população” (CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013).
Num dado momento, fomos violentadas verbalmente por um voluntário, por não acei-
tarmos a decisão arbitrária de desligamento de um acolhido idoso, que supostamente teria

273
saído do acolhimento para consumir bebida alcoólica. Tendo em vista, a proximidade do
término do período de acolhimento e estando a equipe em articulação com os familiares
para recebê-lo, optamos por mantê-lo ali, sendo que, se desacolhido prematuramente, cer-
tamente regressaria às ruas. Neste cenário, fica evidente a existência do assistencialismo
calcado na manutenção da miséria. Baseados no senso comum, alguns voluntários busca-
vam por estratégias punitivas justificadas com o intuito de “educar” os acolhidos. Segundo
a cartilha que legitima a presença do voluntariado nesse fazer coletivo, “[...] deverão ser
observadas as situações de pessoas que demonstrem fazer uso abusivo de álcool e outras
drogas tanto no momento do ingresso no serviço de acolhimento, quanto da vivência no
acolhimento” (BRASIL, 2020, p. 7).

Vale destacar que a convivência com desproteções e graves violações de direitos é


uma constante entre pessoas em situação de rua sob distintas formas de violências,
ameaças, expulsões, agressões: efeitos perversos do brutal processo de desproteção
a que esta população está submetida. Diferentes formas de violência são expressas
nos relatos, em narrativas de medo e vergonha e, também, nos corpos, em feridas
expostas e cicatrizes. Em muitas destas narrativas, destas marcas, é possível encon-
trar interfaces com consumo de álcool e outras drogas o que amplia ainda mais o
risco e a violação de direitos desta população (BRASIL, 2016, p. 90).

Ainda, fomos ameaçadas por outras diversas vezes.  Esses desastrosos e recorrentes epi-
sódios foram determinantes para o cessar das atividades do isolamento social. Tornou-se
insustentável prosseguir em um ambiente marcado pela legitimação da violência estrutural
pautada na ausência de ética, empatia e respeito mútuo.
Ao fim do isolamento social, do total dos 75 acolhidos, 23 evadiram, 17 foram acolhi-
dos por familiares, 16 se utilizaram do auxílio emergencial do governo federal para custear
aluguel, 13 receberam passagens interurbanas para a cidade de origem, 05 foram transfe-
ridos para a Casa de Passagem Municipal, 01 acolhido optou por aderir a tratamento em
Comunidade Terapêutica. Quanto às mulheres, duas evadiram, uma foi transferida para
a Casa de Passagem, uma recebeu passagem intermunicipal para a cidade de origem e
uma retornou para a família. Sabe-se que, atualmente, três dessas mulheres regressaram
à situação de rua. Apenas uma, segue vinculada ao CREAS e ao Centro de Atendimento
Psicossocial (CAPS), unidade de atendimento do SUS.

POP RUA NA PANDEMIA: O TRABALHO PÓS-ISOLAMENTO SOCIAL NO CEN-


TRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CREAS)

Após o período de aproximadamente 40 dias do isolamento social para a população


em situação de rua, continuamos a acompanhar e desenvolver projetos e estratégias para
o atendimento das demandas junto aos indivíduos na sede do CREAS, o qual é definido
como uma unidade pública de referência para a oferta de trabalho social a famílias e in-
divíduos em situação de risco pessoal e social por violação de direitos, que demandam in-

274
tervenções especializadas no âmbito do SUAS, componente da proteção social especial de
média complexidade (BRASIL, 2013). Destacamos que mesmo que o município de Santa
Maria apresente demanda para atendimento à população em situação de rua, confirmada
através dos números, não possui CENTRO POP (Centro de Referência para População em
Situação de Rua). A ausência do dispositivo transfere para o CREAS a oferta do trabalho
social com a população em situação de rua, por meio do Serviço Especializado em Abor-
dagem Social (SEAS) e por demanda espontânea.
No cotidiano de trabalho profissional observamos o crescimento da população em situ-
ação de rua no município, consequência do desemprego gerado através de demissões, em-
purrando os trabalhadores para o mercado de trabalho informal e ainda por Santa Maria
localizar-se na região central do Estado do Rio Grande do Sul, sendo o maior município
da região, o que pode possibilitar a inserção no mercado de trabalho e formas de sobrevi-
vência nos espaços públicos, como foi o caso de artesãos e malabares que permaneceram
nos semáforos da cidade.
Durante o período de pagamento do auxílio emergencial, muitas pessoas em situação
de rua garantiram um local para moradia e o acesso mínimo às necessidades básicas, visto
que grande parte era beneficiária do Programa Bolsa Família, no valor médio de R$89,00.
Através da SMDS45 foram garantidas 50 vagas para acesso gratuito ao restaurante popular,
permitindo a garantia de uma refeição diária, onde acessaram o CREAS para realização
de avaliação socioeconômica e concessão do benefício. Porém, após alguns meses o núme-
ro de vagas diminui para 20, e atualmente são apenas 15 vagas.
Frente o aumento do número de pessoas em situação de rua, onde nem mesmo a Casa
de Passagem e o acolhimento provisório foram suficientes para atender a demanda de aco-
lhimentos, além dos indivíduos que evadem com frequência ou são desligados de ambos
os dispositivos, propusemos a garantia do direito à higiene para aqueles usuários que estão
ocupando a via pública, através de banhos que seriam realizados na sede do CREAS. Após
autorização da gestão, o chuveiro utilizado foi obtido através de doação, além dos itens de
higiene e toalhas, arrecadados através de solicitações nas redes sociais. Iniciamos em feve-
reiro o acesso ao banho para a população em situação de rua, cada usuário recebe um kit
de higiene por mês e é de sua responsabilidade zelar pelos itens, que podem ser guardados
pelo CREAS. Apenas no mês de abril de 2021 foram disponibilizados mais de 100 banhos.
Para além do acesso à higiene, o banho propiciou a criação e o fortalecimento do vínculo
entre nós profissionais e o usuário, através da escuta de sua trajetória, que aos poucos era
contada, mostrando que estava criado um vínculo de confiança.
O cotidiano de desafios e enfrentamento às situações de vulnerabilidades frente a
escassez de recursos, aliou-se ao enfrentamento do senso comum e ataques à política pú-
blica de assistência social e de forma direta ao trabalho desenvolvido pelo CREAS junto à
população em situação de rua. A atitude revela que a estratégia utilizada apenas contribui
para a manutenção da pobreza, indo de encontro ao que preconiza a Política Nacional

45 Secretaria de Município de Desenvolvimento Social.

275
para População em Situação de Rua (2009) e normativas da política de assistência social.
Cabe aqui a indagação: a quem interessa a manutenção da pobreza?
As pessoas em situação de rua carregam em suas trajetórias situações de violências
deste a infância, abandono e negligência. Os vínculos familiares fragilizados e rompidos
são as consequências dos processos sociais vivenciados que culminaram na situação de
rua. Ocupar o espaço público não foi uma escolha, mas a última alternativa de sobrevivên-
cia, aliada principalmente ao uso abusivo de substâncias. Como se não bastasse o estigma
e preconceito imposto às pessoas em situação de rua, a culpabilização pela realidade vi-
venciada faz parte do cotidiano dos usuários também dentro de um contexto municipal.
As ligações de pessoas da sociedade civil exigindo a retirada de indivíduos da via pública
para a manutenção do “bairro familiar limpo”, que atrapalham a apresentação da cidade
no que se refere ao turismo e que incomodam os que passam, são apenas alguns exemplos
das frequentes solicitações que ouvimos.
A violência vivenciada na infância, aliada a escassez de políticas públicas para en-
frentamento à extrema situação de vulnerabilidade biopsicossocial, desencadeia os chama-
dos processos de higienização, que consiste na retirada de forma compulsória das pessoas
em situação de rua da via pública. Conforme relatos dos próprios usuários, ações higie-
nistas tornaram-se rotina no município, envolvendo força policial e caminhão de coleta
de resíduos, que junto de uma arquitetura higienista, colocam obstáculos materiais para
impedir a ocupação dos espaços públicos, como uma fórmula para a resolução da situação,
excluindo completamente o cidadão e sujeito de direitos e desejos que ali se encontra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações contidas neste breve relato, no presente contexto pandêmico, nos


remete a tempos idos, nos quais, ainda que equidistante de um exercício pleno do preconi-
zado pelas premissas da política da assistência social, era possível a manutenção do víncu-
lo em um contexto de coletividade vivenciado nos projetos do “Natal POP Rua” e “Arraial
POP Rua”. Eventos nos quais nos reunimos a fim de celebrar e acima de tudo reafirmar
a reivindicação pelo “direito de ter direitos”, diferentemente do ocorrido no isolamento
social, imersos em um cenário de calamidade permeado por incertezas. Ainda assim, esse
momento único que atravessamos nos impulsiona para a articulação de novas formas de
se fazer a política da assistência social sem jamais deixar de lado os princípios éticos que
regem nossas ações. Fazer e insistir na política da assistência social voltada às pessoas em
situação de rua é acima de tudo, um ato de resistência. Nosso, por eles, deles, para eles. O
lugar de fala perpassa, transpassa, atravessa o que nos cala.

276
REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para


a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Mo-
nitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasí-
lia, DF, 24 dez. 2009a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2009/decreto/d7053.htm. Acesso em: 19 jan. 2021.

BRASIL. Proteção Social no SUAS a indivíduos e famílias em situação de violência e


outras violações de direitos: Fortalecimento da Rede Socioassistencial. Brasília: Minis-
tério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria Nacional de Assistência
Social, 2018.

BRASIL. Atendimento e Acolhimento Emergencial à população em situação de rua no


contexto da pandemia da Covid-19: Informações e Recomendações. Brasília: Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2020. Disponível em: https://www.gov.
br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/populacao-em-situacao-de-rua/Atendimento_e_Aco-
lhimento_Emergencial.pdf. Acesso em: 18 jan. 2021.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referências técnicas para a Prática de


Psicólogas(os) no Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS.
Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2013. Disponível em: http://www.crpsp.org.br/
portal/comunicacao/artes-graficas/arquivos/2013-CREPOP-CREAS.pdf. Acesso em: 18
jan. 2021.

SARTI, C. A sedução da desigualdade: trabalho, gênero e classe. In: SCHPUN, M.


(org.). Gênero sem fronteiras: oito olhares sobre mulheres e relações de gênero. Floria-
nópolis: Editora Mulheres, 1997. p. 153-168.

SOUZA, E. et al. Violência Estrutural e COVID-19. Associação Brasileira de Saúde


Coletiva, [S.l.], 19 maio 2020. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/gtviolen-
ciaesaude/2020/05/19/violencia-estrutural-e-covid-19/ Acesso em: 4 set. 2020.

277
MÃES, CRIANÇAS E A QUESTÃO PRISIONAL:
REFLEXÕES ACERCA DAS EXPERIÊNCIAS
DO PROJETO INSPIRA

Graziela Escandiel de Lima


Marcia Eliane Leindcker da Paixão
Jéssica Pereira Righi
INTRODUÇÃO

A perspectiva que adotaremos nesta escrita é a de, seguindo a proposta do livro, enunciar
nossas vinculações ao Projeto INSPIRA, apoiadas em uma breve discussão do conceito de
alteridade, demonstrando com o andamento do projeto e com sucessivas aproximações a
construção de uma identidade ao escopo dos Direitos Humanos. Posteriormente, daremos
a conhecer a trajetória vivida pelo Grupo de Estudantes e Professoras com e através desse
Projeto até o momento. Por fim, expomos nossas intencionalidades para o futuro, demons-
trando, assim, algumas perspectivas.

UM POUCO DA HISTÓRIA: UM PROJETO, MUITOS CAMINHOS

O projeto INSPIRA iniciou em 2016, a partir de uma parceria entre a Polícia Federal,
a SUSEPE e a UFSM com o objetivo de contribuir para a manutenção dos vínculos entre
mães em situação de privação de liberdade e suas crianças. A proposta acordada entre
as instituições foi a realização de três eventos ao ano, respectivamente em maio (Dia das
Mães), outubro (Dia da Criança) e dezembro (Natal).
Os eventos do INSPIRA têm o propósito de garantir uma conexão entre mães e crian-
ças, proporcionando a troca de afetos, de diálogos e de interações que não são possíveis no
dia a dia, nem das crianças, nem de suas mães. A contribuição maior do projeto é pensar os
espaços e os tempos em que a partilha dos afetos, dos diálogos e das interações pudessem
acontecer, mediadas pelas brincadeiras possíveis naquele espaço físico. Por isso brinque-
dos, instrumentos musicais, tapetes, colchonetes são alguns dos elementos que auxiliam e
incentivam a aproximação entre mães e filhos(as).
Sabemos que essa é uma pequena oportunidade de minimizar a saudade e a dor cau-
sada pelo distanciamento físico decorrente da situação de encarceramento da mãe. No
entanto, também temos a certeza de que, para muitas delas, esses momentos se configuram
como as únicas possibilidades de ver, tocar, cheirar, sentir a presença de sua(s) criança(s).
Entendemos que, para as crianças e jovens, a possibilidade de estar com suas mães é uma
maneira de manter e formar vínculos, mas também um momento que possibilita o encon-
tro dos irmãos, visto que muitos vivem em lares separados. Já para as mulheres, os eventos
representam a possibilidade de sair do ambiente carcerário, encontrar os filhos e com eles
vivenciar momentos de brincadeiras, diálogos e afetos, compondo, assim, outras experiên-
cias no tempo em que vivem a privação de liberdade.
Nossa identificação inicial com o Projeto INSPIRA se mostra em duas linhas de atua-
ção: uma pensa e reflete sobre a infância e outra em que se tematiza a mulher e a situação
prisional. Para tanto nos importa pensar como em momentos tão “eventuais” se pode
fazer algo por uma parcela da população que se torna invisível à sociedade: a mulher em
situação de encarceramento. Como se entende a experiência do encarceramento familiar/
materno na vida das crianças? E também quais são as experiências vividas na família e na
escola pelas crianças filhas de mulheres presas? Essas questões passaram a fazer parte das

279
nossas reflexões como Grupo que, a partir dos eventos, buscou de alguma forma aprofun-
dar estudos e reflexões acerca das temáticas que circundam a questão da população em
privação de liberdade.
Dois momentos sempre são marcantes nos eventos do Projeto INSPIRA: a chegada
das mulheres no local escolhido e, depois de um dia de afagos e alegrias, a despedida de
mães e crianças. Uma emoção muito forte sempre nos acompanha nessas situações. Na
chegada, vemos/sentimos ansiedade, alegria, beleza, perfume, esperança. Logo depois, as
crianças chegam, cada grupo familiar é acompanhado por uma agente penitenciária que
as conduz até o ambiente em que suas mães as aguardam. Depois disso, por um período
de sete horas, o “dia é delas”46.
Em meio às nossas atividades de planejamento, organização de materiais, proposição
de tempos e espaços que possibilitem interações e descontração, consideramos que tudo
deve ser feito para elas - mães e crianças - para seu bem estar e satisfação, mesmo que
esta seja momentânea. Por estarmos inseridas em um projeto que envolve a segurança e
a contínua privação de liberdade de mulheres, nosso trabalho sempre foi atravessado por
sensações de possibilidades, mas também de impotências. Porém, também podemos dizer
que mesmo com uma espécie de “liberdade vigiada” sempre presente, temos conseguido
avançar no sentido de entender que, para trabalhar com aquelas mulheres e suas crianças,
é preciso muito mais que empatia, é preciso alteridade.
Desde o primeiro evento em que participamos, ficou evidente ao grupo a neces-
sidade de nos despojarmos de crenças de que poderíamos nos colocar no lugar daquelas
mulheres para tentar entender a sua condição de vida em um período tão pequeno de tem-
po e com tão pouco contato que tínhamos. Nesse sentido, também entendemos que seria
preciso olhar aquelas pessoas – mulheres, mães, consideradas infratoras de regras sociais
– como outras, diferentes.
No dicionário Aurélio da Língua Portuguesa encontramos que Alteridade é a “Qua-
lidade do que é outro” (2010). Dessa forma, de nada adiantava buscar ver a situação do
encarceramento tentando nos colocar no lugar delas. Esse lugar é irreconhecível a não ser
que tenhamos a nítida capacidade de nos reportar para o silêncio, a saudade, o enclau-
suramento, a dor, o frio, a separação dos filhos, o abandono da família, as situações e os
sentimentos que acompanham a mulher em situação de privação de liberdade.
Concordamos com Laplantine quando afirma que: “[a] experiência da alteridade (e a
elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar,
dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano,
e que consideramos ‘evidente’” (LAPLANTINE, 2000, p. 21). Dessa forma, ao participar
dos eventos, entendemos que é necessário olhar com calma, estar no ambiente com cuidado,
reconhecer que passar um dia com os filhos, pode ser o habitual, familiar para a maioria
das mães, mas representa o diferente na vida daquelas mulheres. Reconhecer esse diferente
faz parte de conhecer, e, para o mesmo autor, o conhecimento da nossa cultura passa pelo
46 Essa é uma expressão que nos acompanha nos momentos de planejamentos junto a todas as equipes e
instituições que participam dos eventos.

280
processo de conhecimento de outras. Portanto, precisamos “especialmente” reconhecer que
somos apenas uma cultura possível entre tantas outras (LAPLANTINE, 2000, p. 21).
Com o acompanhamento dos eventos em 2016 e 2017, muitas dúvidas, muitas reflexões
e muitos anseios foram dando força a outros movimentos no contexto da UFSM. Esses
movimentos representam estudos, reuniões de planejamento e preparação das ações de
maio, outubro e dezembro. Com o andamento das experiências de cada evento, fomos
entendendo também nosso papel como extensionistas. Buscamos, então, investir esforços
no acompanhamento das mães e das crianças, mesmo que a cada evento tivéssemos in-
constâncias de participações. Para demonstrar a participação das mulheres e seus filhos no
Projeto INSPIRA, é preciso deixar claro que a decisão sobre essa participação das mulhe-
res era pauta de trabalho do corpo técnico da SUSEPE.
Para organizar os eventos, sempre precisávamos pensar em um número limitado de
mulheres, tendo em vista alguns fatores: espaço para todos em um ambiente fechado, tem-
po de deslocamento com as crianças, questões de segurança, que eram coordenadas entre
SUSEPE, Polícia Civil e Polícia Federal, considerando o cumprimento dos objetivos do
Projeto, mas também a ordem e a segurança de todos/as.
Para tanto, foram escolhidas 10 a 12 mães que estavam em situação de privação de li-
berdade, já cumprindo pena e apresentavam “bom comportamento” no cumprimento das
“Regras de convivência” no interior do Presídio Regional de Santa Maria/RS. A partici-
pação dos filhos também seguia algumas regras: crianças e adolescentes precisavam ter de
2 a 12 anos. No entanto, isso foi constantemente redimensionado, pois em alguns casos as
crianças eram menores de 2 anos. Essa flexibilidade permitiu que a mãe e a criança (re)es-
tabelecessem contato. A idade limite de 12 anos também foi sendo flexibilizada durante as
reuniões de planejamento junto à SUSEPE e à Polícia Federal, porque alguns adolescentes
foram avançando na idade, mas no nosso entendimento não deveriam ficar em casa no dia
em que seus irmãos iriam ver a mãe no INSPIRA.
Todos esses movimentos somam na experiência de entender como lidar com a situação
familiar das mulheres e suas crianças. Também nesses movimentos, fomos tendo, cada vez
mais, oportunidades de sentar, conversar, rir, brincar e principalmente ouvir essas mulheres.
Por outro lado, nos eventos, sempre cuidamos para proporcionar espaço para o toque, o diálogo,
as interações entre mães e seus filhos, o diferente possível naquele dia que era todo para elas.
No quadro a seguir (Quadro 4), estão pontualmente demonstrados alguns dados acerca
da participação das mulheres nos Eventos do INSPIRA.

Quadro 1 – Demonstrativo do número de eventos do Projeto INSPIRA

EVENTOS INSPIRA
1.ª edição - 08/04/2016
2.ª edição - 04/11/16
3.ª edição - FESTA DE NATAL (Presídio, sem a participação da UFSM)
4.ª edição - 26/05/2017

281
5.ª edição - 10/11/2017
6.ª edição - FESTA DE NATAL (Presídio, sem a participação da UFSM)
7.ª edição - 08/06/2018
8.ª edição - 14/12/2018 - Festa de Natal no Presídio, com a participação da UFSM
9.ª edição - 03/05/2019
10.ª edição - 18/10/2019 - FESTA DE NATAL COM CUIDADORES, com a participação da UFSM
Fonte: Organizado pelas autoras.

No quadro 5, veremos quantas foram as participantes dos Encontros do INSPIRA, bem


como em quais eventos cada uma participou, seu núcleo familiar com as idades das crianças.

Quadro 2 – PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES PROJETO INSPIRA

MÃE/FILHOS/GÊNERO/IDADE EDIÇÕES
M1 – 2 filhos com idade de 4 e 7 anos e 1 filha com idade de 6 anos 1.ª, 2.ª
M2 – 1 filho com idade de 4 anos e uma filha com idade de 10 anos 1.ª, 2.ª, 4.ª, 5.ª
M3 – 2 filhas com idade de 4 e 8 anos 1.ª, 2.ª
M4 – 2 filhos com idade de 7 e 12 anos 1.ª, 4.ª, 5.ª
M5 – 1 filha com idade de 1 ano e 10 meses 1.ª, 2.ª, 4.ª, 5.ª
M6 – 2 filhas com idade de 4 e 8 anos e 1 filho com idade de 12 anos 1.ª
M7 – 1 filho com idade de 5 anos 1.ª, 4.ª, 5.ª, 7.ª, 9.ª
M8 – 1 filha com idade de 3 anos 1.ª, 2.ª
M9 – 1 filha com idade de 9 anos 1.ª, 2.ª, 4.ª, 5.ª, 7.ª
M10 – 1 filho com idade de 8 anos 1.ª, 5.ª
M11 – 1 filha com idade de 5 anos 2.ª
M12 – 2 filhas com idade de 2 e 3 anos 2.ª, 4.ª
M13 – 2 filhas com 5 e 8 anos 2.ª
M14 – 1 filho com 2 anos 2.ª, 4.ª
M15 – 3 filhas com idade de 4, 7 e 10 anos e 2 filhos com idade de 8 e 9 2.ª
anos
M16 – 2 filhos com idade de 2 e 4 anos e 1 filha com idade de 7 anos 2.ª
M17 – 2 filhos com idade de 2 e 10 anos e 2 filhas com idade de 9 e 10 2.ª, 4.ª
anos
M18 – 2 filhas com idade de 5 e 13 anos e 1 filho com idade de 7 anos 2.ª, 4.ª
M19 – 2 filhas com idade de 3 e 12 anos e 2 filhos com idade de 5 e 11 4.ª, 5.ª, 7.ª, 9.ª
anos
M20 – 2 filhas com idade de 2 e 4 anos e 2 filhos com idade de 6 e 8 anos 4.ª, 5.ª, 7.ª
M21 – 2 filhas com idade de 2 e 8 anos e 1 filho com idade de 13 anos 4.ª, 5.ª, 7.ª, 9.ª

282
M22 – 1 filho com idade de 2 anos 4.ª, 7.ª, 9.ª
M23 – 1 filho com idade de 8 anos e 1 filha com idade de 13 anos 4.ª, 5.ª, 7.ª
M24 – 3 filhos com idade de 2, 8 e 11 anos e 1 filha com 12 anos 5.ª
M25 – 1 filho com idade de 7 anos 5.ª
M26 – 2 filhas com idade de 2 e 13 anos 7.ª
M27 – 2 filhas com idade de 7 e 14 anos 9.ª
M28 – 1 filho com idade de 6 anos e 1 filha com idade de 12 anos 9.ª
M29 – 2 filhos com idade de 3 e 7 anos 9.ª
M30 – 2 filhas com idade de 7 e 10 anos 9.ª
M31 – 2 filhos com idade de 9 e 12 anos 9.ª
M32 – 2 filhos com idade de 2 e 3 anos 9.ª
M33 – 1 filha com idade de 8 anos 9.ª
Fonte: organizado pelas autoras.

De acordo com os demonstrativos, nem todas as 33 mulheres puderam participar de


todos os eventos. Isso se deve a vários fatores, dos quais o não atendimento ao critério
comportamental foi, felizmente, muitas vezes substituído por outros que mais nos alegra-
vam: algumas não participaram, porque não estavam mais no presídio ou haviam obtido,
no decorrer dos quatro anos do projeto, o direito de mudança de regime no cumprimento
da pena, como semiaberto e até mesmo liberdade condicional.
A seguir, demonstramos algumas fotos dos eventos:

Figura 1 – Registros dos Eventos do INSPIRA

283
Fonte: Acervo do Grupo INSPIRA/UFSM.

284
Na UFSM, o Projeto ganhou incrementos da pesquisa e hoje está ligado ao Programa
de Extensão Educação INSPIRAndo vidas, com ações direcionadas ao acompanhamento
das situações de vida escolar e familiar das crianças, além de projetar olhares diferenciados
para a situação da mãe/mulher que vive longe da família. Esses investimentos têm se mos-
trado muito potentes na tarefa formadora que a universidade carrega consigo. Ao mesmo
tempo, têm nos possibilitado integrar, desde 2018, o ODH da PRE.

(RE)PENSANDO NOSSAS AÇÕES PARA ALÉM DOS EVENTOS DO INSPIRA

A perda ou restrição provisória da liberdade não acarretam a supressão de direitos fun-


damentais. O crime não retira do homem sua dignidade. O indivíduo, por mais vil que
possa parecer, é sempre sujeito de direitos (NOVO, [s.d], p. 5).

Sabe-se que a temática prisional é complexa e merece um olhar especial das Uni-
versidades e de diferentes instâncias sociais e de conhecimento. Sabemos também que
a presença feminina nas prisões acarreta situações de outras ordens, que também nos
preocupam. No entender de Novo:

A mulher é uma minoria na prisão, tanto em número quanto em visibilidade.


As recomendações de estudos prisionais indicam a necessidade de não continuar
ignorando as necessidades de perfil prisional das mulheres apenadas. Em muitos
momentos, as dificuldades das mulheres são as mesmas dos homens (o ambiente,
o sistema, a superpopulação, etc.), entretanto existem questões específicas que
precisam ser observadas (a situação dos filhos, a gravidez, o emocional, as neces-
sidades, as habilidades, etc) (NOVO, s.d., p. 6).

Em conexão com a situação prisional de mulheres, a situação de vida de crianças com


familiares presos denota grande vulnerabilidade social e necessita de atenção especial e de
ações educativas que contribuam com a superação de suas adversidades. Por isso, o Grupo
intensificou estudos em encontros formativos que fortalecem a todos e marcam outras for-
mas de entender a situação vivida por essas mulheres e suas crianças. A seguir, na Figura
2, ilustramos o registro de uma reunião de estudo.

Figura 2 – Registro de uma reunião formativa do grupo

Fonte: Acervo do Grupo INSPIRA/UFSM.

285
Com o Programa de Extensão Educação INSPIRAndo vidas, contamos com a possibilida-
de de articulação entre os grupos – Mulheres e Crianças – e na definição e constituição das
ações que intencionam: A reflexão acerca dos olhares para a situação prisional a partir das mães
e das experiências das crianças e adolescentes. Essas reflexões tornam-se necessárias quando
sabemos que:

Os filhos e filhas de homens e mulheres presos são como uma população esque-
cida, não só pela instituição escolar, mas também pelos meios acadêmicos e pela
sociedade em geral: pouco sabemos quem são, onde estão e como são (se é que
são) atendidos pela escola e, especialmente, não sabemos de que necessitam e
quais suas reais dificuldades (STELLA, 2009, p. 21).

A partir de algumas inquietações surgidas nesse processo, nas reuniões do Grupo INS-
PIRA da UFSM, buscamos aporte teórico dos Estudos da Criança e da Infância que contri-
buem para ampliar as discussões sobre as formas como crianças vivem suas infâncias, seus
contextos familiares, que, muitas vezes, são bastante transitórios, tendo em vista a situação
prisional familiar. Assim, é preciso considerar que essas infâncias se caracterizam por expe-
riências vividas de forma contextual, marcadas pelas questões de classe e em suas relações
com a sociedade e o mundo (BELLONI, 2009; MÜLLER, 2009; SARMENTO, 2009).
Kramer (2008) nos lembra que as crianças pertencem a uma classe social, por isso “[...]
não formam uma comunidade isolada; elas são parte do grupo e suas brincadeiras ex-
pressam esse pertencimento (KRAMER, 2008, p. 17)”. Como sujeitos sociais, nascem no
interior de uma classe e de um grupo social, no qual existem costumes, valores, hábitos,
práticas sociais e experiências que interferem nos significados que atribuem às pessoas, às
coisas e às relações (KRAMER, 2008).
A autora considera que, para muitas crianças, não é dado o direito de brincar, pois o
trabalho é seu compromisso para sua própria sobrevivência, apesar de ainda pequenas. No
trabalho desenvolvido no INSPIRA, deparamo-nos com outras situações, que também im-
pactam, porque retiram das crianças a oportunidade de viver experiências que são próprias
da sua idade, conduzindo, assim, para questões emocionais e subjetivas que preocupam a
nós adultos e docentes que atuam com essas crianças nas escolas. Para Stella (2009):

A prisão materna tem outros efeitos sobre as crianças: a mudança de seu cuida-
dor primário, a perda de apoio emocional e, muitas vezes, do apoio financeiro,
podendo, nesse tipo de separação, serem atingidas de uma forma mais intensa,
especialmente quando saem de seu ambiente familiar e entram em um ambiente
mais amplo como, por exemplo, a escola, uma vez que os encargos maternos com
as crianças ultrapassam o espaço doméstico e as mulheres têm também a respon-
sabilidade do acompanhamento escolar de seus filhos (STELLA, 2009, p. 21).

O acompanhamento das situações cotidianas de vida das crianças – filhas das mulheres
presas – seria uma ação a ser realizada no ano de 2020, o que não aconteceu em função da
pandemia. Esse trabalho objetivava a construção de um olhar atencioso a uma infância que

286
se produz em situação de vulnerabilidade social, tendo em vista que as crianças precisam
ser criadas por parentes, amigos, vizinhos, muitas vezes, fora de “sua casa”.
Com a pandemia e o distanciamento social imposto desde março de 2020, propusemos
novamente a inserção de algumas ações no ODH, com vistas à ampliação do debate sobre
a questão prisional. Nesse sentido, realizamos reuniões em salas virtuais, com leituras, as-
sistência a documentários sobre o tema, além de diálogos e debates sobre a situação fami-
liar que essas mulheres acabam deixando para o lado de fora da prisão. Também propomos
as Rodas de Conversa sobre a situação prisional, suas relações com a escola, crianças e família
e também o olhar sobre o Cárcere Feminino pelo ponto de vista de agentes da SUSEPE.
Os estudos do Grupo têm levado a reflexões importantes acerca da questão prisional e
seus temas adjacentes. A escola e suas possibilidades de socialização das crianças têm sido
frequentemente referenciadas e, no entendimento de Stella (2009): “A instituição escolar
– importante meio de socialização do indivíduo – tem sido estudada sob vários aspectos:
como promotora de vínculos sociais importantes” (STELLA, 2009, p. 21).
Abaixo, no quadro, trazemos os dados organizados por grupo familiar, demonstrando
as escolas a que se vinculavam as crianças participantes do Projeto INSPIRA no ano de
2019, quando uma perspectiva de acompanhamento das crianças era planejada para acon-
tecer.

Quadro 3 – Mães, Filhos e Escolarização

MÃE/FILHOS/IDADE ESCOLARIZAÇÃO
M1 EEI Aracy Trindade Caurio
F1 – 4 anos EMEF Prof. Edy Maya Bertóia
F2 – 6 anos EMEF Prof. Edy Maya Bertóia
F3 – 7 anos
M2
F1 – 4 anos Não está na escola
F2 – 10 anos EE de 1° Grau Dr. Paulo Lauda
M3 – EMEF Prof. Edy Maya Bertóia
F1 – 4 anos EMEF Prof. Edy Maya Bertóia
F2 – 8 anos
M4 EMEF Santa Marta
F1 – 7 anos EMEF Santa Marta
F2 – 12 anos
M5 Não está na escola
F1 – 1 ano e 10 meses
M6 EMEI CAIC
F1 – 4 anos EMEI CAIC
F2 – 8 anos EMEF Maria de L. Bandeira Medina
F3 – 12 anos
M7 Creche Aldeias Infantis SOS
F1 – 5 anos

287
M8 EMEF Aracy Barreto Sacchis
F1 – 3 anos
M9 EMEF Prof. Edy Maya Bertóia
F1 – 9 anos
M10 IEE Olavo Bilac
F1 – 8 anos
M11 EMEF Dom Luiz Victor Sartori
F1 – 5 anos
M12 Não está na escola
F1 – 2 anos EMEF Pinheiro Machado
F2 – 3 anos
M13 EMEI Aracy Trindade Caurio
F1 – 5 anos EMEI Aracy Trindade Caurio
F2 – 8 anos
M14 Não está na escola
F1 – 2 anos
M15 Não está na escola
F1 – 4 anos EMEF João Belém
F2 – 7 anos EMEF João Belém
F3 – 8 anos EMEF João Belém
F4 – 9 anos EMEF João Belém
F5 – 10 anos
M16 Não está na escola
F1 – 2 anos Não está na escola
F2 – 4 anos EEEF General Édson Figueiredo
F3 – 7 anos
M17 Não está na escola
F1 – 2 anos EMEF Rodrigues Alves
F2 – 9 anos EMEF Rodrigues Alves
F3 – 10 anos EMEF
F4 – 12 anos
M18 Não está na escola
F1 – 5 anos Não está na escola
F2 – 7 anos Não está na escola
F3 – 13 anos
M19 Não está na escola
F1 – 3 anos EMEI Ida Fiori Druck
F2 – 5 anos EEEF Dom Antônio Reis
F3 – 11 anos EEEF Dom Antônio Reis
F4 –12 anos
M20 Não está na escola
F1 – 2 anos EMEI Ida Fiori Druck
F2 – 4 anos EMEF Chácara das Flores
F3 – 6 anos EMEF Marechal Rondom
F4 – 8 anos

288
M21 Não está na escola
F1 – 2 anos EMEF João Link Sobrinho
F2 – 8 anos EMEF João Link Sobrinho
F3 – 13 anos
M22 Não está na escola
F1 – 2 anos
M23 EMEF Diácono João Luiz Pozzobon
F1 – 8 anos EMEF Chácara das Flores
F2 – 13 anos
M24 Não está na escola
F1 – 2 anos EMEF Chácara Flores
F2 – 8 anos EMEF Dom Antônio Reis
F3 – 11 anos EMEF Euclides da Cunha
F4 – 12 anos
M25 EEEF Almiro Beltrame
F1 – 7 anos
M26 Não está na escola
F1 – 2 anos EMEF São Carlos
F2 – 13 anos
M27 EMEF Euclides da Cunha
F1 – 7 anos EBE Cícero Barreto
F2 – 14 anos
M28
F1 – 6 anos EMEF Euclides da Cunha
F2 – 12 anos EMEF Euclides da Cunha
M29 Não está na escola
F1 – 3 anos EMEF Lourenço Dalla Corte
F2 – 7 anos
M30 EMEF Pinheiro Machado
F1 – 7 anos EMEF Pinheiro Machado
F2 – 10 anos
M31 EMEF Marechal Rondom
F1 – 9 anos Não está na escola
F2 – 12 anos
M32 Não está na escola
F1 – 2 anos Não está na escola
F2 – 3 anos
M33 EBE Cícero Barreto
F1 – 8 anos
Fonte: organizado pelas autoras.

Ao analisarmos o quadro, é possível perceber que, em algumas escolas, há várias crian-


ças matriculadas que vivem a situação do encarceramento materno. Também vemos que
muitas ainda estão fora da escola - a maioria com menos de quatro anos, ou seja, estariam
na Educação Infantil. Sem a obrigatoriedade de estar na escola, acabam sendo “cuidadas”
em casa mesmo, ou em um lugar próximo por algum/alguma parente, ou conhecido/a.

289
Ao mesmo tempo, em conversas com as mães em um dia do INSPIRA, perguntamos
a elas se consideravam importante que seus filhos/as estivessem na escola. Todas as mães
que estavam em privação de liberdade e participando do projeto responderam que sim.
Quando indagadas do por que dessa consideração, suas respostas giraram em torno de:
“Aprendizagem deles, formação…”,“Tudo! sem estudo, não vão ser nada…”, “Conviver com outras
crianças, no colégio aprendemos a respeitar e ser respeitada”, “Para a pequena, mais tranquilidade,
para a grande, vai aprender mais”, “Para o futuro dela!”. Portanto, fica clara uma consideração da
importância da escola para essas mães que estão privadas do convívio com seus filhos, o que
nos coloca mais um desafio frente à situação vivida por essas famílias.
Nossa intenção nas Rodas de Conversa, realizadas em 2020, como ação extensionis-
ta, foi justamente investir esforços para que a temática prisional fosse discutida no meio
acadêmico e com a sociedade em geral, incluindo de forma bastante contumaz as relações
com a escola. Para isso, em uma das Rodas, contamos com a participação e fala de profes-
soras das redes públicas de Santa Maria. Concordamos com Stella quando ela diz: Como
uma instituição criada para manutenção de uma dada sociedade e cultura, a escola tam-
bém desempenha um papel de reprodutora dos padrões sociais e, com isso, pode acolher
ou excluir os indivíduos em seu meio (STELLA, 2009, p. 21).
Nas Rodas de Conversa, pautamos as situações de vida familiar e escolar com profes-
soras das redes públicas de Santa Maria e região, já que a vida escolar das crianças que
têm a situação de cárcere familiar materno, em alguma medida acaba se conformando a
situações de instabilidade e inconstância. Não raras vezes irmãos acabam sendo criados
ou vivem por algum tempo em lares distintos, assim como, muitas vezes, há também mais
uma separação de vínculos escolares, quando as transições de uma casa para outra geram
também as transferências de uma instituição para outra que as crianças nem conhecem e
custam a se adaptar. Assim, consideramos importante ampliar os debates e reflexões sobre
essas situações, pois também entendemos que: “a separação mãe-filho pela prisão não
pode ser tratada como outra separação (morte, divórcio), pois possui características espe-
cíficas, quais sejam, a mudança do papel social da mãe e a influência do significado social
da instituição prisional” (STELLA, 2009, p.21).
Destacamos que é mister ampliar as discussões e reflexões acerca do tema em questão,
com docentes, estudantes de diferentes áreas, profissionais que se inserem em instituições/
atuações e integram os serviços envolvidos com as mães presas, suas crianças e/ou seus
cuidadores/as. Para tanto, continuaremos com as ações que cada vez mais impelem à am-
pliação e ao aprofundamento da temática.

O ODH E AS POSSIBILIDADES DE AMPLIAÇÃO DA AÇÃO EXTENSIONISTA

Para divulgação do Projeto e das Rodas de Conversa, também em 2020, foram criadas
páginas em redes sociais, como Facebook e Instagram, onde são publicadas informações so-
bre o Projeto, suas ações em tempo de Pandemia e também convites para as Rodas, que são

290
abertas ao público em geral. O engajamento dessas páginas alcançou um grande público de
seguidores e também de pessoas interessadas em participar das ações.
Nossa metodologia é dialógica e reflexiva, em busca de investir na formação e autoforma-
ção dos estudantes. Os temas de estudos são escolhidos em grupo e a ampliação dos debates
via publicação dos movimentos do grupo e da ação extensionista nas Redes Sociais deu gran-
de visibilidade e causou interesse de pessoas de diferentes segmentos da sociedade.
As Rodas de Conversa tomaram forma a partir do que Freire instituiu acerca do
Diálogo: existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronun-
ciado, por sua vez, volta-se problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo
pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na
ação-reflexão (FREIRE, 2011, p. 108).
Consideramos que dizer a sua palavra contribui para transformar o mundo, pois isso
não é privilégio de alguns, mas direito de todas as pessoas. O diálogo é este encontro das pes-
soas, mediatizadas pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação
eu-tu. [...] Se é dizendo a palavra com que, pronunciando o mundo, as pessoas (grifo nosso)
o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual as pessoas ganham significa-
ção enquanto pessoas (grifos nossos) (FREIRE, 2011, p. 109).
As atividades realizadas contribuem com novas (in)formações, experiências e sensibi-
lização na formação de profissionais que tenham olhar e escuta sensível tanto para a in-
fância como para as mulheres que vivem a situação de privação de liberdade. A universi-
dade, além de consolidar ações de extensão, fomenta e amplia reflexões tanto no âmbito
acadêmico, quanto junto à sociedade, com discussões tão necessárias acerca da situação
prisional que têm consequências na vida de muitas famílias. Nossa contribuição se projeta
acerca da construção de uma atitude mais acolhedora e sensível para uma população vul-
nerável e que se espera poder viver outras experiências no futuro.
Espera-se, a partir deste trabalho, que o processo formativo produza impactos na vida
acadêmica e pessoal das pessoas envolvidas, tendo em vista o investimento na construção
de processos colaborativos de discussão, estudos e produção de conhecimentos. Vislum-
bramos também que a situação prisional seja estudada a partir do referencial dos direitos
humanos, e que a escola e a educação sejam pioneiras ao abraçar uma educação mais in-
clusiva e acolhedora a partir da ressignificação da situação de vida de crianças cujas mães
estão em privação de liberdade.
Buscamos incessantemente construir outro olhar para a situação prisional da mulher
e a vida da criança sem a presença da mãe, com vistas à construção de ações de soli-
dariedade e de humanização na escola e nas relações sociais a partir da continuidade e
ampliação desse projeto. Ao encontro disso, desejamos que as histórias contadas e as
vivências no INSPIRA contribuam para que estudantes em formação e docentes que
atuam em escolas e comunidades em situação de vulnerabilidade possam “encontrar” e
relacionar-se com essas temáticas/situações de forma crítica e autônoma, mas também
afetuosa, fraterna e respeitosa.

291
Temos vivenciado a articulação entre ensino, pesquisa e extensão, considerando a vin-
culação dessas ações aos processos de formação desenvolvidos nos cursos da UFSM, bem
como com sua continuidade nas trajetórias profissionais das pessoas em diferentes áreas
de atuação. Nas Rodas de Conversa, sempre buscamos as sugestões dos participantes sobre
temáticas que pudessem ser tratadas pelas ações extensionistas gestadas pelo grupo que
vive as experiências no Programa de Extensão e no Projeto INSPIRA. Nosso público tem
se mostrado ávido para momentos formativos que tematizam:

• solidão da mulher em privação de liberdade;


• vínculo mãe/filho na situação carcerária;
• quem são essas mães e a importância da visibilidade social;
• educação continuada para profissionais, seja da educação, saúde ou servi-
ços sociais que trabalhem com esse público;
• saúde da mulher;
• desigualdades/preconceitos/gênero existentes entre homens e mulheres
em sistema de encarceramento;
• a vida depois do cárcere – relações familiares e sociais de modo geral e
reinserção no mercado de trabalho;
• preconceitos com crianças negras, filhos das presidiárias;
• sistema educacional dentro do presídio;
• realidade das gestantes privadas de liberdade;
• como é realizada a ressocialização das ex-presidiárias;
• feminismo sob a perspectiva do cárcere;
• situações limites nas escolas e agendas de acolhimento.

Nesse sentido, as ações do ano de 2021 foram realizadas no contexto de uma escola de
Ensino Fundamental, propondo rodas de conversa com as professoras. Também estamos
organizando um Curso de Extensão para 2022 que abordará o tema prisional e educação,
pois entendemos que a universidade tem a tarefa formativa em suas mãos e não pode se
furtar em abordar, pesquisar e atuar com temas que mexem com a vida de crianças e mu-
lheres. Essa expansão do tema, para além dos espaços da UFSM, tem a intenção de seguir
nessa linha formativa, humana e crítica.

292
REFERÊNCIAS

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culo XXI? Cadernos de campo: Revista de Ciências Sociais, n. 19, 2015. Disponível em:
https://periodicos.fclar.unesp.br/cadernos/article/view/7568. Acesso em: 5 maio 2021.

FREIRE, P. Cartas a Cristina. 2. ed. rev. São Paulo: Editora UNESP, 2003. (Série Paulo
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KOSMINSKY, E.; PINTO, R.; MIYASHIRO, S.. FILHOS DE PRESIDIÁRIOS NA ES-


COLA: UM ESTUDO DE CASO EM MARÍLIA – SP. Revista de Iniciação Científica
da FFC - (Cessada), v. 5, n. 0.138, 2007.

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BAZÍLIO, L.; KRAMER, S. Infância, educação e direitos humanos. 3. ed. São Paulo:
Cortez, 2008. p. 51-81.

KRAMER, S. Infância, cultura contemporânea e educação contra a barbárie. In: BAZÍ-


LIO, L.; KRAMER, S. Infância, educação e direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Cortez,
2008. p. 83-106.

LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia. Tradução: Marie-Agnès Chauvel. São


Paulo: Brasiliense, 2000.

LYRA, L. R.; BAUMER, G. C. Bullying e filhos de presidiários no Ensino Fundamental:


algumas reflexões. Colóquio Internacional de Educação, v. 1, n. 1, 2011. Disponível em:
https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/coloquiointernacional/article/view/1242. Aces-
so em: 11 jan. 2021

NOVO, B. N. A realidade do sistema prisional brasileiro. Brasil Escola. Disponível em:


https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/brasil/a-realidade-sistema-prisional-brasileiro.
htm. Acesso em: 11 jan. 2021

SANTOS, A. M. V. Pais encarcerados: filhos invisíveis. Psicologia, Ciência e Profissão,


Brasília, v. 26, n. 4, p. 594-603, dez. 2006. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/
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em: 31 ago. 2020.

293
SCHILLING, F.; MIYASHIRO, S. G. Como incluir? O debate sobre o preconceito
e o estigma na atualidade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 2, p. 243-254,
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STELLA, C. Aprisionamento materno e escolarização dos filhos. Psicol. Esc. Educ.


(Impr.), Campinas, v. 13, n. 1, p. 21-28, jun. 2009.

294
REFLEXÕES SOBRE O PROJETO DIREITO E GÊNERO:
ANÁLISE DE UM ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO
TEÓRICA SOBRE OS ESTUDOS DE GÊNERO
E SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO

Andrea Nárriman Cezne


Íngrid Schmidt Visentini
INTRODUÇÃO

O projeto de pesquisa e extensão, intitulado Direito e Gênero, encontrava-se ativo ao


longo do ano de 2019 e teve como objetivo estudar o Direito e as Relações de Gênero, em
especial os direitos das mulheres, inclusive referentes à identidade e orientação sexual, a
fim de abranger a população LGBTQIA+ e fomentar a discussão do tema no âmbito da
universidade e fora dela.
O projeto se inseriu na área de Extensão Direitos Humanos e Justiça, especificamente
na Linha de Extensão Grupos Sociais Vulneráveis, visto que se coaduna com

Ações voltadas para o planejamento, implementação e avaliação de processos de


atenção (educação, saúde, assistência social, etc.) de emancipação, de respeito à
identidade e inclusão desses grupos; promoção, defesa e garantia de direitos; desen-
volvimento de metodologias de intervenção, tendo como objeto questões de gênero,
de etnia, de orientação sexual, de diversidade cultural, de credos religiosos, dentre
outros; formação, capacitação e qualificação de pessoas que atuam com esses seg-
mentos (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA, 2018, p. 2).

Como objetivos específicos foram previstos os seguintes: a) estimular o conhecimento


teórico e prático dos feminismos e das relações com os direitos das mulheres, bem como da
população LGBTQI+, como forma de prevenção e combate às desigualdades e violências
de gênero; b) propiciar a discussão ampla dos referenciais teóricos dos Feminismos e dos
Direitos das Mulheres, formando estudantes e membros da comunidade interessadas/os
em estudos de gênero a partir de leituras de livros, capítulos e artigos científicos que ensi-
nem gênero e feminismos, a fim de emancipar e capacitar para discussões e ações voltadas
à prevenção e ao combate de desigualdades e situações de violência; c) promover espaços
de reflexão e debates em assuntos específicos de gênero, tais quais identidade, orientação
sexual, não-discriminação, combate às violências, em parceria com órgãos públicos, seus
agentes e membros, e outras instituições públicas e privadas que demonstrarem interesse,
a fim de realizar eventos, palestras, debates, entre outros. Para isso, o projeto contou com
a participação da Delegacia Para a Mulher de Santa Maria/RS, incluindo grupos externos
à universidade; d) prestar assistência à comunidade no que lhe for demandado e possível
dentro dos recursos do projeto e da instituição.
Como justificativa principal para apresentação do projeto, parte-se da observação da
falta de um espaço específico para discussão do tema no Curso de Direito em Santa Maria.
Embora houvesse produções teóricas relacionadas à área, elas eram dispersas, pois não
havia um grupo específico para uma convergência e um diálogo entre as pessoas que tra-
balharam esses diferentes temas. A partir do contato com pessoas que produziram na área,
verificou-se essa lacuna e iniciou-se a construção de um projeto. Surgiu, assim, o projeto
Direito e Gênero, que buscou estimular o conhecimento teórico e prático dos feminismos
e das relações com os direitos das mulheres, bem como da população LGBTQI+, como
forma de prevenção e combate às desigualdades e violências de gênero.

296
Nesse sentido, inicialmente, divulgou-se a formação do grupo Artemis – Direito e
Gênero, através do site do Curso de Direito da UFSM e das redes sociais, optando-se
por abrir inicialmente para participação de toda e qualquer pessoa, já que o papel pri-
mordial da extensão é a relação entre a universidade e a sociedade. Também não se
restringiu a participação de profissionais e estudantes do Direito, entendendo-se a ne-
cessidade de trabalhar transversal e multidisciplinarmente o debate sobre as questões
do gênero e suas relações com o campo do Direito. Após a divulgação inicial do gru-
po, várias pessoas vieram às primeiras reuniões, mas permaneceu um grupo pequeno,
formado em sua maioria por pessoas que não pertenciam à UFSM, com perfil diverso.
O grupo contava com pessoas de diversas formações, tais como Psicologia, Serviço
Social, Jornalismo, uma mestranda do Mestrado em Direito, além dos estudantes de
graduação do Curso de Direito e de Ciências Sociais. Ressalta-se que as reuniões se re-
alizavam no espaço físico do Prédio da Antiga Reitoria da UFSM, no Centro de Santa
Maria, e isso pode ter dificultado a adesão ao grupo de estudantes de outros cursos,
que funcionam no Campus de Camobi da UFSM.
Durante o andamento do projeto, promoveu-se espaços de reflexão e debates em assun-
tos específicos de gênero em parceria com órgãos públicos, seus agentes e membros, e ou-
tras instituições públicas e privadas que demonstraram interesse, a fim de realizar eventos,
palestras, debates, entre outros.
Uma das metas iniciais era a questão da formação teórica dos membros do projeto sobre
os Estudos de Gênero. Em busca de atingir essa finalidade, foram realizadas discussões
semanais sobre os referenciais teóricos dos Feminismos, dos Direitos das Mulheres, do
conceito de gênero (suas variáveis, suas implicações sociais, culturais e econômicas), a fim
de emancipar e capacitar para reflexões e ações envolvendo temas de desigualdades. Desta-
ca-se que se priorizou inicialmente a leitura específica sobre o tema de Estudos de Gênero
com abordagem teórica, já que a grande maioria do grupo não tinha contato anterior com
os textos teóricos da temática.
O primeiro texto discutido foi dos autores Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel (2015),
intitulado Gênero, raça, classe: opressões cruzadas e convergências na reprodução das desigualdades.
O texto trabalha no sentido de compreender as desigualdades presentes nas sociedades
contemporâneas, levando em conta as três variáveis, gênero, raça e classe, conjuntamente,
e não de forma isolada. Os múltiplos padrões de dominação impactam de forma diferen-
te os indivíduos situados no espaço social. As opressões são estruturais e a compreensão
deve ser feita a partir do funcionamento conjunto de estruturas de desigualdades que têm
origens diversas.
Outro texto discutido foi As origens das civilizações e do patriarcado, de Peter Stearns (2007).
Segundo o autor, por volta do quarto milênio A.E.C.47, a maior parte das sociedades agrí-
colas tinha desenvolvido novas formas de desigualdades entre homens e mulheres, num sis-
tema com o domínio de maridos e pais geralmente chamado de patriarcal. As civilizações

47 A sigla utilizada pelo autor refere-se a “Antes da Era Comum”.

297
aprofundaram o patriarcado e, ao mesmo tempo, cada uma uniu as questões de gênero
com aspectos de sua estrutura cultural e institucional.
Gênero: uma perspectiva global foi uma obra discutida ao longo de oito encontros, sendo
estudado um capítulo por vez. As autoras Connel e Pearse (2015) levantam questões para
compreender o gênero no mundo contemporâneo, tais como: as diferenças psicológicas
entre mulheres e homens, as masculinidades e feminilidades, a relação entre as questões de
gênero e preocupações globalizadas envolvendo a mudança ambiental e a reestruturação
econômica. Assim, as autoras fornecem um arcabouço contemporâneo para a análise do
tema, com atenção especial às questões globais, destacando o caráter multidimensional das
relações, e apontam como as políticas de gênero se transformam em situações de mudança.
No encontro com a discussão do texto Gênero: uma categoria útil para análise histórica, de
Joan Scott (1995), foi abordado como o gênero é compreendido e como seus usos permitem
diferentes classificações. No seu uso mais simples, gênero é sinônimo de mulheres, visando
indicar a erudição e a seriedade, porque gênero tem uma conotação mais objetiva e neutra
do que mulheres. Gênero como substituto de mulheres é igualmente utilizado para sugerir
que a informação a respeito das mulheres é necessariamente informação sobre os homens,
ou seja, um implica no estudo do outro. Esse uso rejeita a ideia das esferas separadas e
defende que estudar as mulheres de forma separada perpetua o mito de que a experiência
de um sexo tem muito pouco ou nada a ver com o outro sexo. Ademais, o seu uso rejeita
explicitamente as justificativas biológicas. O gênero se torna uma maneira de se referir às
origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres.
Os Usos e Abusos do Gênero foi outro texto discutido da autora Joan Scott (2012) sobre o
termo gênero. O debate sobre o entendimento de gênero é sobre seu alcance de estender
um conceito para além das mulheres e homens, chegando às grandes estruturas e processos
onde as relações sociais são formadas e fronteiras políticas patrulhadas. Assim, o gênero
não representa apenas as mulheres, pois é uma questão de política e, por essa razão, confi-
gura-se como um conceito útil para análise crítica.
A partir dessa formação básica e da discussão da bibliografia selecionada para os encon-
tros, esperava-se que os sujeitos participantes pudessem produzir trabalhos e apresentá-los
em eventos para, assim, levar a discussão a outros âmbitos, realizando palestras e discus-
sões em instituições públicas e privadas que desejem discutir a questão. É muito relevante
que o debate acadêmico seja aberto à comunidade em geral, para que haja difusão de co-
nhecimentos para incentivar os agentes a serem multiplicadores em defesa dos direitos das
mulheres e da população LGBTQI+.

RESULTADOS DO PROJETO: PRODUÇÃO TEÓRICA

O projeto de pesquisa Direito e Gênero possibilitou a produção teórica acadêmica sobre


os feminismos e as relações com os direitos das mulheres e da população LGBTQI+. Ana-
lisou-se de que forma foi desenvolvida a identificação da mulher como sujeito de políticas
públicas específicas, sendo estudadas algumas dessas, especialmente aquelas relacionadas

298
à maternidade. Dessa forma, entre as produções realizadas como parte desse projeto, fo-
ram desenvolvidos trabalhos sobre maternidade, mercado de trabalho e direitos humanos,
apresentados em diferentes eventos pela bolsista FIEX do Projeto Direito e Gênero, Íngrid
Schmidt Visentini.
Ademais, foram desenvolvidos artigos para apresentações em alguns eventos e posterior-
mente publicados. Discriminação de gênero e direito: implicações da maternidade no mercado de
trabalho foi apresentado no II Congresso de Ensino, Pesquisa e Extensão em História da UFSM.
Quando os papéis sociais de homens e mulheres são diferenciados por sexo, as atividades
femininas e masculinas são separadas e hierarquizadas com valores diferentes. Isso resulta
em práticas discriminatórias, em defasagem salarial, em empregos femininos nos setores
do mercado de trabalho mais baixos, em maior número de mulheres no setor informal e
em maiores taxas de desemprego entre as trabalhadoras. Culturalmente, há a concepção
de que a função da mãe é cuidar dos filhos, e isso interfere tanto na admissão de mulheres
quanto no reingresso após a licença maternidade, pois os empregadores supõem que se-
rão menos comprometidas com o trabalho e que por este motivo também devam ganhar
menos. Dessa forma, o objetivo do trabalho foi analisar os avanços e limites da legislação
trabalhista em relação à maternidade e às respectivas implicações para as mulheres que são
mães e estão inseridas no meio laboral.
A Problemática da Inserção da Mulher no Mercado de Trabalho sem uma Rede de Apoio Estatal
Adequada foi apresentado no VI Jornada Brasileira de Sociologia e buscou analisar a dificulda-
de da inserção da mulher no mercado de trabalho após o nascimento dos filhos, refletindo
sobre as políticas públicas relacionadas à área, ressaltando especificamente a questão do
acesso à educação infantil e se ele interfere na reinserção das mulheres no mercado de tra-
balho. Mulheres com menos condições econômicas dependem mais de políticas públicas
estatais que deveriam garantir o acesso das crianças a creches e pré-escolas. A garantia de
educação infantil gratuita disponível por parte do Estado deveria favorecer essa realidade
das mulheres mães que precisam se manter economicamente para prover suas necessida-
des básicas e dos filhos. Os dados recentes mostram que, apesar do aumento de matrículas,
o acesso a creches gratuitas está longe de ser o esperado por parte daquelas crianças em
situação de vulnerabilidade social.
O Acesso à Educação Infantil e suas Repercussões para a Inserção da Mulher no Mercado de
Trabalho, apresentado no X Jornadas Regionais do GT Mundos do Trabalho da ANPUH-RS,
também abrangeu a temática do acesso das mulheres ao mercado de trabalho e a proble-
mática da maternidade, tendo como foco a análise da realidade do ingresso à creche, prin-
cipalmente por parte das crianças em situação de vulnerabilidade social, e a importância
de políticas públicas como suporte adequado que contribua para a reinserção da mulher
no mercado de trabalho, especialmente no caso específico do retorno após a maternidade.
Além disso, buscou-se um diálogo transdisciplinar entre as Ciências Humanas e a
Literatura, na análise da questão dos direitos das mulheres na obra O Conto da Aia,
de Margareth Atwood. Dessa forma, foi apresentado o trabalho O Conto da Aia - The
Handmaid’s Tale: reflexões sobre o livro como possibilidade de discussão dos ataques aos Direi-

299
tos Humanos e das mulheres no 5.° Congresso Internacional Direito e Contemporanei-
dade. Outro trabalho ainda sobre o assunto intitulado Análise da obra O Conto da Aia
(The Handmaid’s Tale) como espaço de reflexão sobre a história dos Direitos das Mulheres foi
apresentado no II Congresso Internacional de História da UFSM. Os dois trabalhos
objetivaram discutir a relação entre a obra O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale como
título original), escrita por Margaret Atwood, e as possíveis reflexões que a partir dela
se pode fazer sobre a questão dos direitos das mulheres, seus avanços e retrocessos
históricos. A partir da narrativa ficcional, analisa-se os papéis de gênero expressos e
como a autora Margareth Atwood utilizou antecedentes históricos na construção da
narrativa distópica. Dentre os temas que são mais relevantes na obra, aparecem as
violações aos direitos humanos, em especial das mulheres, que se inspiraram em casos
concretos, como o caso do Irã e da Revolução Islâmica, especialmente considerando
a forma como a questão das mulheres e seus direitos foi tratada pelo regime instituí-
do. Destaca-se inicialmente que em ambos os casos (de Gilead e do Irã), os governos
instituídos baseiam-se em uma concepção de Estado Teocrático, onde uma Religião
monoteísta é a base da ordem instituída e imposta a toda a população. A partir desses
valores religiosos, constrói-se uma visão de mundo de interpretação conservadora, e
acabam se justificando várias interferências em diferentes níveis, que afetam inclusive
a vida privada desses cidadãos, em especial das mulheres.
Além dos trabalhos sobre maternidade, mercado de trabalho e direitos humanos, foram
apresentados por Íngrid Schmidt Visentini (bolsista FIEX) outros trabalhos sobre o projeto
no âmbito da Jornada Acadêmica Integrada da UFSM, com o intuito de divulgar todas
as atividades e os estudos desenvolvidos, bem como informar como se dava o seu funcio-
namento, quais sejam: Direito e Gênero, apresentado na 34.ª Jornada Acadêmica Integrada
da UFSM; Produção teórica a partir do projeto Direito e Gênero, apresentado na 35.ª Jornada
Acadêmica Integrada da UFSM e Direito e Gênero: breve levantamento sobre as repercussões do
projeto, apresentado na 35.ª Jornada Acadêmica Integrada da UFSM.

RESULTADOS DO PROJETO: REUNIÕES E PALESTRAS

A partir do grupo de pesquisa do projeto Direito e Gênero também foram realizadas


palestras e debates abertos ao público sobre assuntos específicos da área de Estudos de Gê-
nero, tais como: feminicídio e violência de gênero; maternidade e direito do consumidor,
direitos da população LGBTQIA+; reforma da previdência e as mulheres.
Todos os eventos contaram com apresentação de pessoas especialistas no assunto e que
foram convidadas a participar voluntariamente, buscando-se inovar em temáticas pouco
abordadas na área. Também se procurou valorizar a produção e a construção de saberes
de pessoas que haviam passado pela UFSM como acadêmicas. Foram convidadas algumas
que haviam trabalhado com a temática em seus trabalhos finais na graduação, advogadas
e professoras atuantes na instituição, e egressos da UFSM envolvidos com a temática da
área. Inicialmente, o foco nos eventos acabou sendo mais voltado às questões relativas aos

300
direitos das mulheres, mas a intenção seria a ampliação do debate em momento posterior,
inserindo novos temas relativos aos direitos da população LGBTQIA+.
Abriu-se a discussão da temática com uma retrospectiva da evolução histórica dos Di-
reitos das Mulheres no âmbito do Direito de Família. No dia 29 de abril de 2019, ocorreu
a palestra A Evolução Legislativa e Jurisprudencial dos Direitos das Mulheres, com a Profa. Ma.
Bernadete Schleder dos Santos. Bernadete Schleder dos Santos é advogada na área de
Direito de Família e Sucessões há mais de trinta anos, professora aposentada da UFSM e
Professora da UFN na área de Direito de Família e Sucessões. A palestrante abordou de
que forma se sucederam modificações na legislação e na jurisprudência sobre o papel e
o tratamento dado à mulher, afetando sua autonomia, especialmente focando a questão
no âmbito do Direito Civil. Foram abordadas questões, a exemplo da capacidade civil da
mulher casada, o casamento e seus regimes jurídicos, o reconhecimento da união estável,
como instituição familiar, separação e divórcio.
Em 21 de maio de 2019, a palestra Aplicabilidade da lei de feminicídio (Lei n.º 13.104/2015)
no Brasil: a violência de gênero sob a perspectiva da criminologia feminista, ministrada pela ba-
charela Bibiana Della Méa Pesamosca (advogada egressa do Curso de Direito da UFSM),
abordou a questão do feminicídio e como ele passa a ser abordado dentro dos Tribunais. A
autora também analisou estatísticas sobre a temática, e demonstrou as dificuldades iniciais
por parte dos operadores do Direito (como juízes, advogados, e outros) sobre a interpreta-
ção do fato como crime de feminicídio. Fez também uma análise crítica da interpretação,
a partir da leitura da criminologia feminista.
Em 8 de junho de 2019, ocorreu a palestra Maternidade e direitos do consumidor, com a pa-
lestrante Profa. Ma. Patricia Strauss Riemenschneider (IMED) e os debatedores Profa. Dra.
Daniela Richter (UFSM) e Prof. Me. Vitor Hugo Do Amaral Ferreira (UFN). A discussão
levantou a questão da invisibilidade da mulher no momento em que a criança nasce e em
como isso torna a mãe um sujeito hipervulnerável, tendo em vista que em uma análise ho-
rizontal como consumidores somos todos vulneráveis e em uma análise vertical alguns são
mais vulneráveis que outros, ou seja, hipervulneráveis. Algumas situações de vulnerabilidade
são agravadas na maternidade, tais como: gestação e puerpério; desacreditar a mulher como
mãe a partir dos facilitadores da maternidade (cesariana, leite artificial, mamadeira, etc.);
cirurgias cesáreas agendadas. Assim, supostas necessidades viraram mercadorias, agravan-
do-se a situação mais pela própria pressão da indústria (especialmente das fórmulas de leite
artificial) sobre os médicos que atuam na área. Toda uma sistemática convence que a mulher
não consegue parir (naturalmente) e não consegue amamentar, sendo que apenas 5% das
mulheres, a nível mundial, por problemas físicos não seriam capazes de amamentar. 80% das
mulheres que tiveram o desmame não realmente o queriam. A publicidade de leite sintético
é vedada na maior parte do mundo, menos nos EUA. Crianças não amamentadas são mais
propensas a doenças. Todo excesso de informação não filtrada gera falta de informação, agra-
vando ou potencializando a vulnerabilidade. Informações adequadas e evidências podem
contribuir muito para uma melhora efetiva da situação, visto que atualmente há dificuldades
no Brasil em relação à implementação de uma política pública do consumidor.

301
Por fim, no dia 15 de junho de 2019, foi realizada a palestra A Reforma da Previdência e
as Mulheres, com as palestrantes Profa. Dra. Laura Fonseca (Serviço Social - UFSM) e Bel.
Gabriela do Canto Perez (Advogada no Escritório Jobim Associados e egressa da UFSM)
no Tribunal do Júri, Antiga Reitoria. O debate envolveu a Reforma da Previdência (na épo-
ca, a PEC 6/2019, posteriormente incorporada como Emenda Constitucional 103/19).
Primeiramente, focou-se nos aspectos gerais e estruturais da Reforma da Previdência e, em
seguida, analisou-se brevemente as regras, demonstrando mais especificamente como as
mudanças na aposentadoria e pensão impactariam mais a vida das mulheres. Isso ocorre
principalmente em razão da irregularidade e informalidade do trabalho da mulher, fatores
que acabam por colocá-las em situação de maior prejuízo frente à Reforma Previdenciária,
agravando a situação das classes sociais mais vulneráveis.
Devido à demanda de membros da direção da Casa do Estudante Universitário da
UFSM (CEU I), que solicitaram a realização de uma roda de conversa em razão de acon-
tecimentos ocorridos no âmbito do local, o evento Violência sexual e tipos penais foi realizado
pelo projeto Direito e Gênero e pela coordenação da CEU I no próprio local. Esse evento
contou com a participação da Delegacia Para a Mulher de Santa Maria/RS que possibi-
litou, através dessa parceria, acesso à realidade específica referente à violência contra a
mulher na cidade. Também contou com o apoio e com a participação do ODH, da PRAE e
da Ouvidoria - UFSM. Em formato de roda de conversa, o debate do evento ocorreu como
uma troca de conhecimentos, reflexões e informações entre os participantes. Definiu-se,
primeiramente, o que é violência sexual: qualquer ação na qual uma pessoa, valendo-se
de sua posição de poder e fazendo uso de força física, coerção, intimidação ou influência
psicológica, com uso ou não de armas ou drogas, obriga outra pessoa, de qualquer sexo,
a ter, presenciar, ou participar, de alguma maneira, de interações sexuais ou a utilizar, de
qualquer modo, a sua sexualidade, com fins de lucro, vingança ou outra intenção. Exem-
plos: estupro, assédio sexual, exploração sexual, pedofilia (BRASIL, 2014). A violência
sexual também pode acontecer se a pessoa não estiver em condições de dar seu consenti-
mento, em caso de estar sob efeito do álcool e outras drogas, dormindo ou mentalmente
incapacitada, entre outros casos (OMS). Segundo o Art. 2.º da Lei n.º 12.845, de 1.º de
Agosto de 2013: “Considera-se violência sexual, para os efeitos desta Lei, qualquer forma
de atividade sexual não consentida” (BRASIL, 2013).
Após uma definição inicial desse conceito, o debate seguiu com os tipos de violência se-
xual, bem como seus tipos penais, quais sejam: Estupro (Art. 213), Violação sexual mediante
fraude (Art. 215), Importunação sexual (Art. 215-A), Assédio sexual (Art. 216-A), Regis-
tro não autorizado da intimidade sexual (Art. 216-B), Estupro de Vulnerável (Art 217-A) e
Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de
pornografia (Art. 218-C). Cada integrante do grupo apresentou um tipo após estudo e prepa-
ração para isso. Foi divulgado também um material elaborado por equipe do Hospital Uni-
versitário de Santa Maria que aborda especificamente a questão do estupro e das medidas
posteriores profiláticas de gravidez indesejada e de Infecções Sexualmente Transmissíveis
(IST). Esse evento demandou dos participantes do grupo Artemis um tempo maior entre

302
leituras e elaboração do material de trabalho em encontros que duraram um mês. Embora
o evento tenha tido um debate extremamente produtivo, até mesmo tendo em vista a parti-
cipação de sujeitos que atuam nos diversos pontos de acolhimento à vítima e à elaboração
de processos administrativos (dentro da estrutura da UFSM) e de combate direto à violência
sexual, infelizmente a adesão à época de Moradores da CEU I foi baixíssima.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como reflexões sobre as atividades que ocorreram no desenvolvimento do Projeto Di-


reito e Gênero, pode-se concluir que grande parte de seus objetivos foram cumpridos. To-
davia, a previsão de assistência direta formalizada à comunidade referente a esses assuntos
não pode ser realizada, visto que exigiria um processo mais longo de formação e o amadu-
recimento do projeto em fases seguintes. Isso demandaria o envolvimento com outros se-
tores da UFSM, como a Assistência Judiciária Gratuita da UFSM (AJUFSM), local onde
são realizados os estágios curriculares na área do Direito, sob supervisão dos professores
do Curso de Direito responsáveis pelas respectivas disciplinas de Estágio Prático.
Em relação aos aspectos relativos à produção teórica, há espaço ainda para muitos tra-
balhos, tendo como foco o diálogo entre a área do Direito, os Estudos de Gênero e as
Ciências Sociais. Cita-se aqui como exemplo o tema da maternidade, da reinserção no
mercado de trabalho e do acesso à educação infantil. Essa temática é bastante rica, e cer-
tamente poderia continuar a ser explorada, considerando as dificuldades enfrentadas nesse
campo, agravadas posteriormente à eclosão da pandemia de COVID-19, que resultou na
suspensão do funcionamento presencial de creches e escolas infantis por longos períodos
em função da emergência sanitária.
Além da produção teórica, as Artes (Cinema, Literatura, Música, e Artes Plásticas) po-
dem ser utilizadas como instrumentos pedagógicos para reflexão sobre Direitos Humanos
e sobre as questões de gênero em projetos posteriores que podem ser formulados a partir
de uma formação básica inicial.
O projeto se mostrou como um espaço que promoveu discussões e ações que capacita-
ram os participantes, inicialmente em nível teórico na área dos Estudos de Gênero. Toda-
via, as temáticas dessa área se caracterizam justamente por envolver questões subjetivas
dos participantes. Nesse sentido, o desenvolvimento das discussões também possibilitou
um espaço de acolhimento e de reflexões pessoais dos participantes do grupo que foram
compartilhadas com os colegas durante os encontros referentes a situações críticas viven-
ciadas, envolvendo o machismo e as diferentes opressões relacionadas ao gênero, assim
como a discriminação contra pessoas LGBTQIA+. Portanto, a diversidade de composição
do próprio grupo foi um diferencial, já que havia pessoas de diferentes idades, formações
profissionais e orientação sexual, contando com pessoas da comunidade LGBTQIA+, in-
clusive participantes da militância social, porque, além da teoria, havia a possibilidade de
discussão a partir das experiências trazidas pelos sujeitos ao grupo.
O projeto também relacionou a temática em palestras de diferentes áreas do Direito,

303
buscando demonstrar como essa relação entre Direito e Gênero poderia ser importante e
necessária, não apenas no viés do Direito Penal. Nesse âmbito, é obviamente necessário
abordar de forma diferenciada a violência relacionada às questões de gênero (como a vio-
lência doméstica) e capacitar as pessoas para identificar e combater as situações de violên-
cia. Em suma, as relações entre Direito e Gênero afetam desde a concepção do Direito Ci-
vil sobre família, até a Previdência Social e outras políticas públicas onde o viés de Estudos
de Gênero é importante e necessário. Conclui-se que o grupo Artemis - Direito e Gênero
apresentou-se como um espaço importante para o debate acadêmico e à comunidade em
geral, em especial aos participantes das reuniões semanais.

304
REFERÊNCIAS

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reprodução das desigualdades. Dossiê Desigualdades e Interseccionalidades, 2015, v.
20, n. 2, p 27.

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Tale) Como Espaço de Reflexão Sobre a História dos Direitos das Mulheres. In: Caderno
de Resumos Simpósios Temáticos II Congresso Internacional de História – Cultura,
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CEZNE, A. N.; VISENTINI, Í. S. “O Conto da Aia” – The Handmaid’s Tale: Reflexões


sobre o livro como possibilidade de discussão dos ataques aos Direitos Humanos e das
mulheres. In: 5º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: Mídias e
Direitos da Sociedade em Rede, 2019, Santa Maria - RS.

CONNELL, R.; PEARSE, R. Gênero: uma perspectiva global. São Paulo: InVerso, 2015.

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to Alegre, v. 20, n. 2, jul./dez., 1995.

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STEARNS, P. N. As origens das civilizações e do patriarcado. In: História das Relações


de Gênero. São Paulo: Contexto, 2007.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA. Pró-Reitoria de Extensão. Edi-


tal FIEX 2019. Santa Maria, RS: Pró-Reitoria de Extensão, 2018. Disponível em:
https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/346/2018/12/Edital-FIEX-2019-Retificado-
-em-12-03-2019.pdf. Acesso em: 13 set. 2022.

VISENTINI, Í. S.; CEZNE, A. N. A Problemática da Inserção da Mulher no Mercado


de Trabalho sem uma Rede de Apoio Estatal Adequada. In: Anais da Jornada Brasileira
de Sociologia, 2019. v. VI. p. 1-12.

VISENTINI, Í. S.; CEZNE, A. N. Direito e Gênero. In: Anais 34ª Jornada Acadêmica
Integrada, 2019.

VISENTINI, Í. S.; CEZNE, A. N. Direito e gênero: breve levantamento sobre as reper-


cussões do projeto. In: Anais 35ª Jornada Acadêmica Integrada, 2020.

305
VISENTINI, Í. S.; CEZNE, A. N. Discriminação de Gênero e Direito: Implicações da
Maternidade no Mercado de Trabalho. In: História[s] em Tempos de Crise: Possibilida-
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VISENTINI, Í. S.; CEZNE, A. N.. Produção teórica a partir do projeto Direito e Gênero.
In: Anais 35ª Jornada Acadêmica Integrada, 2020.

306
AÇÕES DE ENFRENTAMENTO
DA VULNERABILIDADE SOCIAL:
TRABALHO E RENDA PARA AS
MULHERES DA VILA MARINGÁ/RS

Talita Gonçalves Posser


Bruna de Vargas Bianchim
Paula Balardin Ribeiro Aragão
Pedro Henrique Silva dos Santos
Vânia Medianeira Flores Costa
INTRODUÇÃO

No Brasil, a desigualdade social fez com que a parcela da população economicamente


ativa, excluída dos postos formais de trabalho, retomasse formas diferenciadas de organiza-
ção do trabalho, da produção e da geração de renda com vistas a amenizar o desemprego, a
pobreza e a exclusão, em busca da emancipação social (SANTANA et al., 2016). Com isso,
o emprego flexível e a informalidade surgem como alternativas para a saída do desemprego,
cada vez em índices maiores, de modo a se adequar às novas demandas do mercado.
Em termos de desigualdade social, a figura da mulher ganha destaque, pois, muitas
vezes, por circunstâncias da própria realidade, ela assume sozinha a função de chefe de
família. De forma geral, as mulheres permanecem em trabalhos precários e vulneráveis,
além de receberem os piores salários e possuírem jornadas extensas de trabalho, fruto da
acumulação do trabalho remunerado com serviços de cuidado do lar (IPEA, 2016). Rocha
et al. (2017) afirmam que uma efetiva autonomia e empoderamento da mulher passa pelo
reconhecimento de que seu bem-estar sofre influência direta de sua independência econô-
mica e emancipação social.
A universidade por sua vez, atua na formação profissional de acadêmicos, abrangen-
do três dimensões da formação universitária: a pesquisa, o ensino e a extensão. A exten-
são universitária, através de sua configuração de processo educativo cultural, científico e
educacional, é a que melhor permite a articulação entre o ensino e a pesquisa de forma
indissociável, além de viabilizar a relação transformadora entre universidade e sociedade
(BRASIL, 2012). Dessa forma, a formação do aluno vai além da aquisição de conhecimen-
tos técnico-científicos, uma vez que a instituição de ensino deve se transformar no locus de
construção/produção do conhecimento, em que o aluno atue como sujeito da aprendiza-
gem, produzindo conhecimento crítico, reflexivo e comprometido com a comunidade.
Mediante o exposto, o presente estudo tem por objetivo relatar as ações desenvolvidas no
ano de 2019 pelo projeto de extensão da UFSM, intitulado Ações de enfrentamento da vulnerabi-
lidade social: trabalho e renda para as mulheres da Vila Maringá/RS. Desenvolvido por professores
e alunos, o projeto busca realizar ações que possibilitem o enfrentamento da vulnerabilidade
social para as mulheres da Vila Maringá em Santa Maria/RS, por meio de oficinas voltadas
à formação profissional para as mulheres em situação de vulnerabilidade social da Vila Ma-
ringá. Em suma, oportuniza o desenvolvimento de habilidades para fabricação artesanal e
venda dos produtos fabricados, disseminando os conhecimentos práticos para aproveitamen-
to de materiais alternativos (recicláveis), além de promover a identificação de oportunidades
concretas de inserção dos produtos desenvolvidos no mercado. Dessa forma, o projeto am-
plia a relação da universidade com a sociedade a partir de ações de caráter social e propor-
ciona aos alunos a oportunidade de engajar-se em projetos de cunho social.
O presente estudo se justifica, sob o ângulo teórico, por contribuir com o enfrentamento
da vulnerabilidade social através da geração de trabalho e renda. Sob o ângulo prático, por
buscar ser instrumento de inclusão social e econômica, possibilitando ao público o desen-
volvimento de suas capacitações, geração de trabalho e renda, contribuindo para sua sub-

308
sistência e autonomia. Por outro lado, a integração entre docentes e discentes, por meio do
desenvolvimento e do acompanhamento de atividades de extensão, aliado ao contato com
realidades para além do espaço acadêmico, dentre elas a de comunidades carentes, desafia a
operacionalização dos conhecimentos adquiridos em sala de aula. Dessa forma, ações como
as desenvolvidas colaboram para a formação do acadêmico e estão em consonância a um
dos grandes eixos da Política Nacional de Extensão Universitária (2012), que contribui para
que a Extensão Universitária seja parte da solução dos grandes problemas sociais do país.
Para melhor explanação, na sequência, elucidar-se-á algumas considerações iniciais so-
bre a fundamentação teórica no que diz respeito à vulnerabilidade social e a situação da
mulher e a extensão universitária. Após, a metodologia da ação, o relato de experiência do
projeto e as considerações finais.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

No intuito de compor um arcabouço teórico optou-se por subdividir esse capítulo


em duas breves seções sobre a temática vulnerabilidade social e a situação da mulher
e a extensão universitária.

VULNERABILIDADE SOCIAL E A SITUAÇÃO DA MULHER

Segundo Padoin e Virgolin (2010) embora a vulnerabilidade social seja um conceito de


recente formulação, há um consenso entre os autores que estudam essa temática, de que a
vulnerabilidade social abrange inúmeras dimensões, a partir das quais pode-se identificar
situações de vulnerabilidade dos indivíduos, famílias ou comunidades. Essas dimensões
estão ligadas tanto a características tanto do indivíduo ou grupo quanto ao meio social no
qual estão inseridos.
É importante compreender que quando se fala em vulnerabilidade social, aponta-se
para um estado no qual grupos ou indivíduos se encontram, destituídos de capacidade
para ter acesso aos equipamentos e oportunidades sociais, econômicas e culturais ofereci-
dos pelo Estado, mercado e sociedade. A falta de acesso a elementos considerados funda-
mentais para o desenvolvimento dos recursos materiais e socioculturais como: educação,
lazer, trabalho e cultura, colabora para o crescimento da situação de vulnerabilidade social
(PADOIN; VIRGOLIN, 2010).
De acordo com o Atlas da Vulnerabilidade Social nos Municípios Brasileiros (IPEA, 2015),
a região Sul é a região que apresenta a maior quantidade de municípios na faixa de muito baixa
vulnerabilidade social, ao todo são 341 municípios inseridos nesta faixa. O estado de Santa
Catarina tem 44,4% dos municípios inseridos nesta faixa, o Rio Grande do Sul tem 30,2% e o
Paraná 15,3%. Esses municípios com vulnerabilidade social muito baixa estão localizados na
região norte do estado do Paraná, no estado de Santa Catarina localizadas no litoral sul, no
Sudoeste e no Centro-oeste, além da porção Centro-norte do Rio Grande do Sul.

309
Conforme afirma Pinto (2011), “as mulheres assumem uma sobrecarga de papéis fren-
te às dificuldades sociais, econômicas e de violência”. Estas dificuldades fazem com que
se sobressaiam por um lado a baixa autoestima, as frustrações, os medos e anseios, e por
outro, a coragem e a perseverança. Para o autor, elas apresentam também um alto grau de
vulnerabilidade emocional, seja pela violência e exploração a que foram submetidas, seja
pela fragilização e abandono a que estão expostas, na busca diária de estratégias para a
sobrevivência de seu lar. Aching e Granato (2016) afirmam que quando sob condições de
vulnerabilidade social, a maternidade pode ser uma experiência de desamparo, incerteza e
solidão. Sendo uma experiência geralmente marcada pela ausência de um parceiro ou pai
da criança. A mulher, apesar de apresentar-se em um momento de fragilidade, precisa en-
contrar ou desenvolver recursos para tomar conta de si mesma e de seus filhos (as). Apesar
disso, em seu estudo foi demonstrada a possibilidade da existência de uma maternidade de
desenvolvimento de vínculos entre mãe e o bebê mesmo em ambientes sociais precários.
Atingir este estágio não é fácil ou simples e Aching e Granato (2016) relatam ainda ser des-
conhecido se um cuidado ou desenvolvimento de qualidade pode ser sustentado ao longo
do tempo nestas condições, mas que pode afirmar-se que a maternidade em situação tão
precária por via de regra é uma tarefa emocionalmente exaustiva e desafiada.

A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: BREVES CONSIDERAÇÕES

A Extensão Universitária, uma das atividades fim da universidade junto à pesquisa e


ao ensino, ganha cada vez mais visibilidade no atual contexto frente às inúmeras ações e
atividades que visam atender a crescente demanda da sociedade por resoluções de proble-
mas que muitas vezes não são atendidos pelas políticas públicas vigentes (DEL-MASSO et
al., 2015). Alguns autores apontam que a extensão universitária surgiu na Grécia, em suas
primeiras escolas, outros afirmam que foi na Europa medieval, e há quem diga que ela é
originária da Inglaterra em meados do século XIX.
No Brasil, a extensão universitária no Brasil deu-se no início do século passado, mais pre-
cisamente na Universidade aberta de São Paulo, em projetos abertos ao público, porém os
assuntos relacionados às questões políticas e sociais passaram a ser tratados após o decreto
do “Estatuto da Universidade Brasileira” em 1931 (DESLANDES; ARANTES, 2017).
A fim de fomentar a prática extensionista o Plano Nacional de Educação, meta 2011 a 2020,
enviado pelo Governo ao Congresso Nacional em dezembro de 2010, que esclarece: “Assegu-
rar no mínimo, 10% do total de créditos curriculares exigidos para a graduação em programas
e projetos de extensão universitária”. Para Deslandes e Arantes (2017) sua prática é o maior
aliado para o aperfeiçoamento da aprendizagem acadêmica, e os projetos de extensão ajudam
a aprimorar o conhecimento adquirido ao longo da graduação, além de melhorar a autocon-
fiança, proporcionar o conhecimento profissional na área escolhida, melhorando o currículo
e aumentando as chances para o mercado de trabalho e as empresas que recrutam trainees
preferem aqueles que estiveram envolvidos com algum projeto de pesquisa e ou extensão, e que
foram inseridos na comunidade, vivenciando e colocando em prática o seu aprendizado.

310
Diante disso, a Extensão Universitária possui papel importante no que se diz respeito
às contribuições que pode trazer à sociedade. Segundo Rodrigues et al. (2013) é preciso,
por parte da Universidade, apresentar concepção do que a extensão tem em relação a
comunidade em geral, colocando em prática aquilo que foi aprendido em sala de aula e
desenvolvê-lo fora dela. A partir do momento em que há esse contato entre o aprendiz e
a sociedade beneficiada por ele, acontece por parte dos dois lados, benefícios. Aquele que
está na condição de aprender acaba aprendendo muito mais quando há esse contato, pois
se torna muito mais gratificante praticar a teoria recebida dentro da sala de aula.

METODOLOGIA DO PROJETO

Desde o ano de 2014 um grupo de estudos formado por alunos da graduação e pós-gra-
duação e docentes do curso de Administração da Universidade Federal de Santa Maria
interessados em atuar com um público social e economicamente carente em um bairro
periférico, deu início ao projeto de extensão. Essa iniciativa há sete anos desenvolve ações
integrando docentes, discentes, comunidade local e parceiros na busca pela inclusão social
de grupos em situação de vulnerabilidade social por meio da capacitação profissional e
formação humana.
O projeto é desenvolvido junto a Vila Maringá, uma região periférica da cidade de Santa
Maria/RS formada por uma população advinda de diversas regiões da cidade por motivos
diversos de realocação de moradia. Muitas das famílias dividem espaços de casa ou terre-
no, residindo mais de uma família no mesmo espaço revelando as deficiências econômicas
e financeiras que impedem uma vida digna na garantia das necessidades básicas como
moradia, saúde, alimentação, educação. Essas carências, dentre outros fatores, contribuem
para a marginalização e índices de criminalidade na Vila Maringá frequentemente noticia-
dos pelos jornais locais.
A maioria das famílias não possui renda fixa e constituem-se de diaristas, recicladores,
serviços de pintura, construtores civis e serventes ou trabalham no comércio da cidade.
Além disso, muitas pessoas não têm escolaridade adequada para suprir as necessidades das
empresas, assim, parte da população economicamente ativa vive desempregada ou, ainda,
com baixa remuneração. A renda média familiar está entre um a dois salários mínimos,
e o grau de escolaridade que apresentam é o Ensino Fundamental ou Médio incompleto,
dificultando sobremaneira uma preparação para o trabalho e acesso à cidadania.
Nesse contexto, é grande o número de famílias chefiadas por mulheres que assumem
além da educação dos filhos e netos, a subsistência da família, seja como provedora prin-
cipal ou como auxiliar nas despesas junto ao cônjuge. Assim, atingir especificamente esse
público torna-se uma importante ferramenta de inclusão social e econômica, pois, possi-
bilitar a geração de trabalho e renda para essas mulheres contribui para sua emancipação,
autoestima e sustento de suas famílias. Isso gera a necessidade de desenvolver ações sociais
que estejam voltadas para as pessoas economicamente carentes a fim de proporcionar uma
formação que conduza a autonomia e qualificação profissional.

311
A comunidade da Vila Maringá conta com o centro social São Francisco de Assis que
possui uma infraestrutura composta por salas, cozinha e um salão amplo que, durante al-
gum tempo, desenvolveu em parceria com ONG atividades de música, teatro, informática
e assistência social, beneficiando a população local. Porém, desde o segundo semestre de
2013 poucas são as ações mantidas, permanecendo o desejo de alguns grupos de continua-
rem participando desses espaços, como é o caso de um grupo de mulheres que se reúne para
trabalhos manuais. O espaço físico e a infraestrutura do centro comunitário encontram-se
abertos para projetos que visem contribuir com o desenvolvimento da comunidade local
diante de suas demandas, dentre as quais, a geração de trabalho e renda é fundamental.
Portanto, considerando o contexto em que se situa a Vila Maringá, as necessidades do
público a ser atingido e a disponibilidade de uma infraestrutura que possibilita o desen-
volvimento de atividades de extensão, o projeto torna-se um instrumento de mediação à
geração de trabalho e renda para a comunidade local, e ainda uma oportunidade para os
participantes de colocar na prática os conhecimentos adquiridos no curso, o que aperfeiçoa
o processo de ensino-aprendizagem dos discentes e docentes envolvidos com o projeto,
efetuando a integração da universidade e sociedade, contribuindo para o atendimento das
demandas sociais.

AÇÕES DESENVOLVIDAS PELO PROJETO EM 2019:


RELATO DE EXPERIÊNCIA

No ano de 2019 através do projeto Ações de enfrentamento da vulnerabilidade social:


trabalho e renda para as mulheres da Vila Maringá/RS, ligado ao curso de Administração
da Universidade Federal de Santa Maria em parceria com o grupo de mulheres da Vila
Maringá desenvolveu diversas ações, dentre elas:

• planejamento: como forma de compreender a vivência das mulheres den-


tro do Projeto, tal como os pontos positivos e negativos a serem trabalha-
dos dentro da extensão universitária e como este transforma sua realidade
e as auxilia em diferentes âmbitos, buscou-se a realização de entrevistas
com as participantes do projeto para Planejar as atividades que seriam
ofertadas às participantes, considerando as preferências e condições es-
truturais e financeiras para a escolha das capacitações/oficinas.
• oficina de edredons: foram realizadas a confecção de 15 edredons doa-
dos para o Abrigo Espírita Oscar Pithan, outros vendidos na comunidade
da Vila Maringá e outros doados para as próprias mulheres participantes
como forma de geração de renda.
• oficinas de artesanato: foram realizadas oficinas de artesanato, onde as
participantes aprenderam a fazer ganchos decorados com rosas reciclá-
veis, chaveiros de feltro em forma de coração, além da oficina de fuxico
junto a associação das Irmãs do Sagrado Coração de Maria.

312
• produção de panos de prato: como fruto de oficinas realizadas nos anos
anteriores, foram confeccionados aproximadamente 100 panos de pratos
natalinos e comercializados para empresas locais de Santa Maria/RS.
• participação em eventos: Além da apresentação do projeto da Jornada
Acadêmica Integrada da UFSM, o projeto foi apresentado para a comuni-
dade externa na 1ª Mostra de Projetos de Extensão e Prestação de Serviços
do Centro de Ciências Sociais e Humanas, que ocorreu no Royal Plaza
Shopping no mês de novembro de 2019. Nesta, foram expostos os bri-
gadeiros produzidos por uma das participantes do projeto que participou
das oficinas de culinária realizadas em 2018, ganchos decorados com rosas
recicláveis, chaveiros de feltro em forma de coração, realizados em ofici-
nas de fuxico com a associação das Irmãs do Sagrado Coração de Maria,
os acolchoados confeccionados durante o ano de 2019 e os panos de pra-
to natalinos que são comercializados para empresas locais. Alguns destes
produtos foram sorteados durante a amostra para a maioria divulgação do
projeto e das atividades realizadas pelas mulheres do Centro Social.

Na Figura 1, apresentam-se imagens dos panos de pratos, cobertores e dos produtos que
foram expostos na 1.ª Mostra de Projetos de Extensão e Prestação de Serviços do Centro
de Ciências Sociais e Humanas.

Figura 1 – Trabalhos desenvolvidos pelas participantes do projeto de extensão

Fonte: Arquivo pessoal.

313
As participantes do projeto se mostraram dispostas a dar continuidade às atividades no
ano de 2020, porém em decorrência da pandemia de COVID-19 não foi possível colocar
em prática as atividades pretendidas. A proposta para o ano de 2020 era trabalhar em
quatro frentes: horta comunitária, oficinas de artesanato, culinária e oficinas de temáticas
gerais. Dessa forma, o desenvolvimento do projeto colabora para uma transformação posi-
tiva na estimulação e criação de renda para essas participantes e suas famílias, contribuído
para o fortalecimento das habilidades já existentes das participantes.

CONCLUSÃO

Desse modo, a expectativa do projeto é expandir esta ação para mais famílias, contri-
buindo assim, para a redução de problemas de ordem socioeconômica da região, dispondo,
além disso, a interação mais próxima e compartilhada entre universidade e a comunidade,
contribuindo para a integralização de atividades de caráter social.
De forma geral, as participantes avaliam o projeto de forma positiva, e estão constan-
temente solicitando novas oficinas e capacitações. Como um aspecto a melhorar está a
participação de mais mulheres nas atividades e a geração de renda de forma organizada e
sistematizada, pois percebe-se que o engajamento ocorre de forma gradativa, sendo este
um desafio presente no processo da ação extensionista. Por fim, pretende-se dar continui-
dade às ações que já vem sendo desenvolvidas e trabalhar em cima desses pontos, para que
se atinjam melhores resultados ao longo do projeto.
Assim, o relato das atividades desenvolvidas pelo projeto Ações de enfrentamento da vulnera-
bilidade social: trabalho e renda para as mulheres da Vila Maringá/RS, no ano de 2019, é resultado
da articulação e do comprometimento do grupo de participantes, moradoras de um bairro
periférico de Santa Maria e de alunos da UFSM. Pelas experiências vividas percebe-se que
o impacto social proporcionado por ações de extensão é um processo gradativo, desafiante e
requer uma gestão participativa que inclua as participantes como sujeitos ativos.
Ademais, entende-se que as ações desenvolvidas de modo participativo e colaborativo
possuem um impacto social na comunidade local não somente pela atuação da universida-
de e parceiros voluntários, mas também pelo engajamento dos participantes. Para o grupo
de discentes e docentes, os desafios teóricos pertinentes à articulação de pessoas em busca
de objetivos e recursos se tornam reais e complementam o ensino.

314
REFERÊNCIAS
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Saúde Coletiva, v. 21, n. 6, p. 1921-1930, 2016.

315
TRABALHO E VIDA DIGNA:
AÇÕES COM AS MULHERES RECICLADORAS
E CATADORAS DE LIXO (DESCARTE) NO
MUNICÍPIO DE SANTA MARIA/RS

Sirlei Glasenapp
Solange Regina Marin
Fernando da Rocha Bellé
Mariana Mozzaquatro
INTRODUÇÃO

As ações extensionistas têm por finalidade a expansão das oportunidades das mu-
lheres catadoras e recicladoras de lixo (descarte) vinculadas a Associação de Recicla-
gem do município de Santa Maria/RS. Este objetivo vem de encontro com as pesquisas
realizadas sobre pobreza, capacitações e direitos humanos, baseadas em autores como
SEN (2000), ALKIRE (2002).
A abordagem das capacitações de Sen (2001) representa um novo espaço informacional
onde avaliações e comparações de bem-estar são realizadas e permite a discussão de temas
como trabalho e vida digna das mulheres. Os funcionamentos são os seres e fazeres das
pessoas e podem variar dos mais elementares, como estar adequadamente nutrido e livre
de doenças evitáveis, a outros mais complexos, como participar da vida da comunidade e
respeito próprio e as suas combinações consistem nas capacitações, ou seja, a liberdade de
realizar escolhas sobre sua vida.
Um dos principais questionamentos que embasaram a nossa prática extensionista fo-
ram os motivos que levaram estas mulheres a trabalharem com reciclagem, se está rela-
cionado com a falta de acesso a outras formas de trabalho ou se este serviço proporciona
sentimento de pertencimento e motivação às mulheres. Há dignidade nesta laboração,
mulheres buscam sua independência financeira, sustento e sobrevivência, além de con-
tribuir para a limpeza da cidade.
Os dados empíricos dessa experiência extensionista foram coletados e analisados a par-
tir de trabalhos de ensino, pesquisa e extensão que tratam de questões fundamentais de
qualidade de vida e de trabalho das mulheres na Associação de gestão de resíduos e desper-
dícios em organizações do Município de Santa Maria. Essas questões envolvem aspectos
sociais, econômicos, ambientais, educacionais e culturais e reforçam a autonomia das mu-
lheres por meio da consciência ecológica e da auto-organização no exercício da cidadania.
As ações realizadas no âmbito do projeto Trabalho e vida digna: ações com as mulheres recicla-
doras e catadoras de lixo (descarte) no município de Santa Maria/RS/Brasil buscam que as pessoas
envolvidas tomem o assento do condutor nas diferentes atividades propostas de forma a pro-
mover a autonomia e o empoderamento da comunidade envolvida. O projeto trabalha para
a promoção de renda das mulheres ao proporcionar condições mais organizadas na coleta de
materiais, reciclagem e desenvolvimento de produtos e comercialização.
Além disso, a formação de uma consciência de grupo ou de reconhecimento como uma
classe de trabalhadoras junto à sociedade de Santa Maria/RS, o envolvimento de organi-
zações privadas quanto à necessidade de gestão do descarte dos resíduos dentro de padrões
que permitam a coleta, separação e reciclagem adequadas.
É importante destacar o compromisso das organizações públicas quanto à necessidade
de desenvolvimento de políticas públicas e estabelecimento de programas de conscientiza-
ção que sensibilizem a população e as empresas que valorizem a separação e a reciclagem
de seus resíduos, e a maior visibilidade de grupos vulneráveis, que se intensificou com a
pandemia iniciada em março de 2020.

317
No contexto de pandemia em que vivemos as ações realizadas atenderam às normas
sanitárias e orientações das autoridades científicas sobre saúde pública. Para a efetivação
das ações este ano de 2021 o projeto conta com uma equipe multidisciplinar para atender
as demandas, como alunos dos cursos de Administração, Psicologia, Terapia Ocupacional,
além da colaboração de professores e profissionais externos. O trabalho continuado com
grupos seletivos de mulheres em função de sua atuação na Associação abrange um total de
20 mulheres (diretamente) e indiretamente suas famílias.

REFERENCIAL TEÓRICO

As pessoas em seus diferentes contextos sociais, políticos, culturais e econômicos buscam


de algum modo tomar o assento de condutor de suas vidas, tendo por base o desenvolvimento
de sua autonomia e maior empoderamento na comunidade de seu domicílio. A maioria das
pessoas, em especial as mulheres, não nasce com a liberdade de escolhas, pois o mundo sempre
viveu em classes dominantes e classes dominadas e ainda com muitas desigualdades48. Os di-
reitos foram conquistados de inúmeras formas, revoluções abruptas ou incrementais, subsídios
de Estados mais sociais ou mais conservadores. No caso das mulheres, seus direitos foram con-
quistados mais tardiamente e não sem muita luta49. Mas o fato é que as pessoas estão na busca
de condições de vida que lhes proporcione dignidade de vida mínima. No caso das mulheres
catadoras em Santa Maria é possível fazer a discussão dessas questões.
O município de Santa Maria não possui o compromisso efetivo em desenvolver políticas
públicas e estabelecer programas de conscientização que sensibilizem a população e as em-
presas de modo que valorizem a separação e a reciclagem de seus resíduos. Também não
se observa o envolvimento da sociedade e de organizações privadas quanto à necessidade
de gestão do descarte dos resíduos dentro de padrões que permitam a coleta, separação e
reciclagem adequadas, ou seja, é importante o desenvolvimento de uma consciência cole-
tiva da sociedade sobre a importância da coleta e separação do lixo.
Além disso, ainda se faz necessário a formação de uma consciência de grupo e de re-
conhecimento das mulheres catadoras como uma classe de trabalhadoras, para que assim,
estas lutem por direitos básicos de trabalho digno. Dessa forma, é fundamental estimular o
empoderamento e a visibilidade do trabalho diário destas mulheres, demonstrando para a
sociedade o quão importante é a reciclagem.
Faz-se imprescindível salientar que o trabalho efetuado pelas mulheres associadas é,
muitas vezes, desgastante, isto em função da baixa remuneração e pela falta de matéria
prima. Este cenário intensificou-se com a pandemia de COVID-19, sendo ainda mais di-
ficultoso para as trabalhadoras terem independência financeira apenas com a reciclagem.

48 Sen (2001) trata das muitas diferentes desigualdades enfrentadas pelas mulheres.
49 Para uma discussão sobre defesa dos direitos das mulheres ver: Wollstonecraft (2016).

318
Outro ponto é a questão dos direitos humanos fundamentais, como uma alimenta-
ção nutritiva, que não é contemplada para grupos vulneráveis, como é o caso das mulheres
catadoras de Santa Maria.

Os direitos humanos são pretensões éticas constitutivamente associadas à impor-


tância da liberdade humana, e a solidez de um argumento apresentando determi-
nada pretensão como direito humano deve ser avaliado pelo exame da discussão
racional pública, envolvendo uma imparcialidade aberta. Os direitos humanos
podem servir de motivação para muitas atividades diversas, desde legislação e a
implementação de leis adequadas até a mobilização de outras pessoas e a agita-
ção pública contra violações dos direitos (SEN, 2011, p. 401).

Sen (2011) argumenta que há várias formas de promover os direitos humanos, além
da legislação, de modo que pode ser mais efetiva por uma variedade de instrumentos e a
versatilidade de modos. Sen (2017) “As declarações dos direitos humanos são afirmações
éticas da necessidade de dar a devida atenção à importância de liberdades incorporadas na
formulação dos direitos humanos”. Quando é necessário um acordo para a estrutura social
dos direitos humanos, este deve buscar a importância da liberdade atende a condição da
importância social. “A significação dos direitos está relacionada com a importância da li-
berdade sob seu aspecto de oportunidades e seu aspecto de processo” (SEN, 2011, p. 407).
Dentre os direitos específicos, “os direitos sociais e econômicos ou direitos de bem-estar”
é uma preocupação recente, que surge com as transformações das sociedades, provocando
mudanças à comunidade internacional. Onde se discute as carências sociais e econômicas,
impactando em imposições de reformas políticas (SEN, 2011, p. 415-416). Questões como
a pobreza e desigualdades sistêmicas passaram a influenciar os direitos humanos.
Sen (2005) chama atenção para a abordagem das capacitações no lugar do espaço infor-
macional da utilidade e a possibilidade que essa perspectiva fornece de tratar questões de
direitos. Para Sen (2005), capacitações e direitos humanos dependem do processo de racio-
cínio público; afirma que apesar do apelo da ideia de direitos humanos, ainda para alguns
parece como intelectualmente frágil. Isso não é fato novo, a declaração de independência
americana tomou ser autoevidente que todos eram dotados pelo seu Criador com certos
direitos inalienáveis, a declaração francesa de 1789 dos direitos do homem assumiu que
os homens eram nascidos e permaneciam livres e iguais em direitos. Para Sen (2005), essa
divisão continua viva até hoje e há muitos que ainda entendem a ideia de direitos humanos
como nada mais do que chorar no papel, como descrevera Bentham.
Levando isso em consideração, reitera-se a importância de estudos que permitam a dis-
cussão dos direitos a partir da vivência das pessoas, em especial dos relatos das mulheres
catadoras de Santa Maria, ainda mais no contexto da pandemia, desde março de 2020.

319
RELATOS DAS MULHERES SOBRE SUAS VIDAS

As ações extensionistas do Trabalho e vida digna: ações com as mulheres recicladoras e cata-
doras de lixo (descarte) no município de Santa Maria/RS/Brasil foram desenvolvidas com as
mulheres catadoras e recicladoras do município de Santa Maria/RS. No Brasil, elas são
duplamente excluídas, por serem mulheres e por serem coletoras de materiais recicláveis.
Devido a isso, é ainda mais imprescindível estimular a cidadania dessa população que,
muitas vezes, encontra-se em situação de risco social e pessoal.
A proposta de grupos e espaços coletivos é auxiliar essas mulheres a se enxergarem como
protagonistas de suas vidas, bem como incentivar a autonomia e empoderamento, por meio
de cursos, palestras, visitas técnicas e rodas de conversa. A partir disso e junto a essas partici-
pantes, pensamos em intervenções que consigam atender às suas diferentes demandas.
O projeto almeja impactar socialmente a vida das mulheres, promovendo aumento
de renda ao proporcionar condições mais organizadas na coleta de materiais; desen-
volvimento de uma consciência coletiva da sociedade do município de Santa Maria/
RS sobre a importância da coleta e separação do lixo; desenvolvimento da autoestima e
da participação das catadoras por meio de encontros programados para discutir temas
relacionados com a coleta, separação e reciclagem; formação de uma consciência de
grupo ou de reconhecimento como uma classe de trabalhadoras junto à sociedade de
Santa Maria/RS; desenvolvimento de organizações privadas quanto à necessidade de
gestão do descarte dos resíduos dentro de padrões que permitem a coleta, separação e
reciclagem adequadas; e lutar pelo compromisso das organizações públicas quanto à ne-
cessidade de desenvolvimento de políticas públicas e estabelecimento de programas de
conscientização que sensibilizem a população e às empresas que valorizem a separação
e a reciclagem de seus resíduos.
A ação de extensão buscou ampliar capacitações e elaborar um plano de ação junta-
mente com as mulheres tendo como objetivo o atendimento de suas necessidades. Além
disso, viabilizar e fomentar a importância da implementação da Política Nacional de Resí-
duos Sólidos (PNRS), prevista na Lei Federal n.° 12.305/2010.
O relato de experiência aqui exposto faz parte do projeto de extensão que está sendo
desenvolvido com mulheres recicladoras e catadoras de materiais recicláveis desde 2019.
Foram elaboradas diversas ações de extensão como já citadas. Recentemente, foi organi-
zada uma estratégia de escuta qualificada, com intuito de fornecer um espaço seguro de
acolhimento para as trabalhadoras.
Na busca de maior visibilidade e compreensão das demandas apresentadas pelas mu-
lheres recicladoras e catadoras de materiais recicláveis que desempenham os papéis de
liderança na Associação de Reciclagem, foi organizada uma roda de conversa com seis
mulheres vinculadas à associação, no dia 11 de maio de 2021. Ademais, produziu-se um
roteiro com questões a fim de entender o cotidiano das trabalhadoras no âmbito de saúde,
trabalho e relações familiares. Para direcionar as discussões, houve um mediador integran-
te do projeto que conduziu a roda de conversa a partir de questões preestabelecidas. No

320
decorrer, as seguintes temáticas foram focalizadas: reciclagem, renda, vulnerabilidades,
família, acesso a direitos e dificuldades relacionadas à pandemia da COVID-19 no Brasil.
Inicialmente, questionou-se sobre o papel social desempenhado pelas trabalhadoras em
suas respectivas residências, o retorno recebido foi que a maioria das mulheres associadas
são as responsáveis por suas famílias; tanto financeiramente, quanto emocionalmente. To-
das as trabalhadoras têm filhos: em média três por família, a maioria em idade escolar. 
Durante o momento de roda de conversa, foram abordadas as formas de educação a
distância, em função do cenário de distanciamento social imposto pela pandemia do novo
coronavírus. As mães adotaram a estratégia de buscar os materiais na escola para que os fi-
lhos estudassem em casa. No entanto, em colégios municipais, durante o período de um ano,
as crianças não tiveram contato com nenhuma forma de educação escolar, em função das
famílias não terem acesso a tecnologias de mídias digitais e do colégio não ter recursos para
fornecer acesso aos estudantes. Mesmo sem atividades escolares, os alunos foram aprovados
para a próxima série, com expectativa de recuperação do conteúdo no ano seguinte.
Além disso, houve o relato de uma mãe que tem seu filho matriculado em um colégio
estadual da região, em que a estratégia adotada pela escola, desde o início do isolamento
social, foi o envio de atividades para os alunos efetuarem em suas residências. Estes estu-
dantes não perderam os conteúdos de seus respectivos anos letivos. Todas as famílias re-
cebem benefícios sociais mensais, como bolsa família, em relação aos benefícios emergen-
ciais, as mulheres relataram que optaram por este benefício, abdicando daquele, em razão
da família não poder ser contemplada por ambos os auxílios governamentais.
Quando questionadas sobre a renda adquirida pela reciclagem, as trabalhadoras respon-
deram que o faturamento da associação proporciona a sobrevivência de todas as mulheres
vinculadas ao trabalho. Compreendendo que as atividades desempenhadas na associação
variam entre arrecadação, separação e confecção de produtos, as trabalhadoras foram
questionadas referentes ao desejo de explorar novas possibilidades de atividades a serem
desempenhadas com reciclagem dentro da Associação. O retorno recebido pelas mulheres
foi de estarem envolvidas em novos formatos de vendas, buscando atualizações e visibili-
dade ao serviço proporcionado por elas. 
Em relação às principais dificuldades, anteriormente ao período da pandemia, encon-
tradas pelo trabalho na associação, as mulheres responderam que era a falta de transporte
para buscar arrecadações e doações de materiais. Conforme os relatos, neste atual cenário
brasileiro, o problema de dificuldade no deslocamento para busca de doações se manteve,
mas surgiu uma nova limitação: a escassez de matéria prima. Em função disso, durante
o ano de 2020, as trabalhadoras viviam apenas de doações e de ações de projetos sociais,
isto em decorrência da suspensão das atividades da UFSM, sendo esta a única contribuinte
com resíduos para reciclagem. 
Em relação ao acesso a direitos básicos, as mulheres compreendem a importância do
trabalho desempenhado por elas para a sociedade de forma geral, destacando a prefeitura
municipal e o meio ambiente, mesmo que, conforme o relato, não haja um reconhecimento
e valorização por parte dos governantes. Neste viés, no que se refere a direito à renda, as

321
trabalhadoras trouxeram a insuficiência do salário para manter as contas mensais, sendo
necessário complementar a renda com auxílio de benefícios sociais.
No direito à saúde, foi possível compreender como relato das mulheres que elas não
têm o hábito de ir a consultas regularmente, cabe aprofundar as razões pela qual estas tra-
balhadoras não têm acesso a este direito básico. Diversas mulheres vinculadas à associação
foram contaminadas pelo Sars-CoV-2; todas se encontram bem no atual momento, no en-
tanto, relataram muito desconforto durante o período de atividade do vírus.
 Em relação ao tratamento, todas foram à unidade básica de saúde (UBS) para aten-
dimento médico, onde receberam a confirmação da doença. Contudo, os medicamentos
necessários para o tratamento não são disponibilizados pelo SUS, precisando serem adqui-
ridos de forma independente pelos usuários. As mulheres relataram não terem efetuado
intervenções medicamentosas em função dos valores dos remédios.
No que concerne à alimentação, foi questionado sobre o acesso a alimentos e a refei-
ções (café da manhã, almoço e jantar). As mulheres relataram, em média, duas refeições
diárias: o almoço e o jantar. Esta situação vem se agravando ainda mais em função da
pandemia do novo coronavírus. De acordo com o relato das trabalhadoras, o acesso à
alimentação vem sofrendo mudanças, no que diz respeito à diminuição da quantidade de
alimentos nas refeições diárias.
Em relação ao pertencimento e acesso a conselhos municipais, as mulheres contaram que
se inserem nestes espaços com intuito de fornecer maior visibilidade para o trabalho desem-
penhado na associação. Foi solicitado que as trabalhadoras fizessem uma autoanálise de suas
atuações, elas julgam que muitas vezes os conselhos não fornecem assistência necessária e ade-
quada. As trabalhadoras relataram que estão buscando a participação efetiva no conselho da
saúde, o qual anteriormente faziam parte e, por algum motivo desconhecido, foram retiradas. 
Em certo momento, houve um espaço para questões direcionadas de forma indivi-
dual para cada mulher relatar o significado da associação em sua vida, a primeira res-
posta foi A ARSELE para mim é uma segunda casa, todas as trabalhadoras concordaram
com esse sentimento de pertencimento. Para algumas mulheres, o sentimento é ainda
mais profundo justificado pelo discurso da antiga presidente da associação “A Asso-
ciação é a minha casa” e também pela narrativa da atual presidente “A Associação, no
caso, é a minha casa. Eu só vou pra casa pra dormir”. 
Foi possível compreender que a associação é mais do que um espaço de geração de
trabalho e renda, concede o sentimento de pertencimento. É fundamental considerar o
papel social proporcionado pelo trabalho, é através dele que as mulheres consideram-se
empoderadas e responsáveis pelo sustento de suas famílias. Os filhos, desde a gestação,
vivenciam cotidianamente o trabalho das mães na associação, sendo um espaço que acolhe
as crianças através de atividades específicas, como artesanato.
Quanto à atuação e ao trabalho das mulheres com reciclagem, elas relataram que todas
as envolvidas são participativas e atuantes nas atividades. Em relação ao planejamento
para os próximos anos, as trabalhadoras compartilham desejos de melhorias dentro da
associação, destacando a necessidade de um transporte visando à busca dos materiais para

322
coletas. Além disso, em algumas narrativas foi trazido à necessidade de apoio e o desejo de
mais consideração pelo trabalho desempenhado pelas mulheres, elas fazem uma relação
entre a valorização por parte da sociedade com a qualidade de vida.
Nesse viés, foi questionado sobre a possibilidade de um ecoponto, como retorno uma
trabalhadora contou referente a necessidade principal é que a prefeitura efetue a coleta de
materiais recicláveis e distribua nas associações em Santa Maria. A mulher justifica que
houve outras tentativas de ecopontos e de containers laranjas, e que nenhuma dessas ten-
tativas funcionaram de forma efetiva, em função dos materiais não chegarem nas associa-
ções e de não haver uma organização na separação. 
Como sugestão, as trabalhadoras trazem a ideia de a prefeitura ser encarregada pela dis-
tribuição dos materiais recicláveis, sendo necessário um caminhão rotativo organizado por
divisões semanais de entrega em cada associação em Santa Maria. Conforme a narrativa,
o ecoponto é inviável em razão do deslocamento das mulheres, e também, pela indisponi-
bilidade do local em permitir a presença de crianças, sendo estas, os filhos das trabalhado-
ras. Por fim, é relatado que a associação possui uma infraestrutura adequada, só é preciso
material suficiente para reciclagem. 
Nesta perspectiva, foi indagado sobreo trabalho com materiais recicláveis, se em algum
momento houve desejo por parte das mulheres em explorar outras profissões e as respostas
foram unânimes: este trabalho faz parte da vida delas. As mulheres trouxeram a importân-
cia de projetos sociais vinculados à temática de reciclagem, visando melhorias para a as-
sociação e, igualmente, aos direitos sociais, de habitação, alimentação, educação e saúde. 

AÇÕES EXTENSIONISTAS COM AS MULHERES DA ASSOCIAÇÃO

As ações extensionistas vêm sendo desenvolvido desde o ano de 2019 em conjunto com
as mulheres catadoras e recicladoras da Associação, com o objetivo de procurar, analisar e
identificar juntamente com as mesmas quais são as maiores vulnerabilidades e dificuldades
dentro do meio social questão inseridas para que assim o projeto possa encorajar trabalhar
e desenvolver alguns pontos que possam ajudar essa população que, muitas vezes, se en-
contra em situação de risco social e pessoal a ter uma vida mais digna.
Ao longo do atípico ano de 2020, o contexto do isolamento devido a pandemia se alas-
trou por todo o mundo, com isso fatores relacionados com comércio, indústria e reutiliza-
ção de matérias primas acabaram por passar em meio a um intervalo de tempo instável e
imprevisível, reduzindo ou até se tornando inexistente os materiais propícios para o desen-
volvimento dos projetos relacionados a reciclagem em associações ou recicladores locais
em regiões como Santa Maria, repercutindo diretamente na população que utiliza a coleta
seletiva e reciclagem como fonte de renda principal para suas vidas e famílias. A partir
desse contexto ações foram planejadas para minimizar os impactos e permitir a inclusão
dessa população para vulnerável.
Os participantes do Projeto Trabalho e vida digna resolveram se reunir para discutir
o que poderia ser feito para continuar ajudando a recicladora ARSELE a realizar feitos

323
maiores frente a nova realidade que agora enfrentava. Juntamente com parcerias feitas ao
longo de 2019 e começo de 2020, já era especulada a ideia de produzir um carrinho extra
que auxiliasse no recolhimento de resíduos na rua, e finalmente em abril de 2020 foi entre-
gue o novo equipamento para auxiliar nas atividades de coleta independente nas localida-
des da rua. Sabendo que apenas a entrega de um novo equipamento de auxílio na coleta
seria suficiente para encaminhar as mulheres para uma independência maior, pensando
em novas possibilidades, foi mediado parcerias que se constituíram com empresas as quais
se preocupam com a proteção de seus trabalhadores, bem como com a responsabilidade
social com a comunidade onde atuam.
Nesse período de pandemia foram instauradas normas sanitárias pelas autoridades pú-
blicas, e um dos equipamentos obrigatórios para o convívio coletivo foi o uso de más-
caras. Foi então que o projeto sugeriu a ideia da confecção de máscaras e vendas pelas
associadas. Conseguiu-se doação dos insumos, como tecido, linha, elástico e embalagens.
Identificou-se a dificuldade na comercialização das máscaras, pois as associadas possuem
dificuldades nessa área, ou seja, não há uma organização destas para vendas, inclusive de
outros produtos confeccionados a partir do material coletado na reciclagem. Há interesse
em produzir artesanato, mas não existe um foco, um estilo e também não possuem um
ponto de comercialização. Tentou-se criar formas virtuais em redes sociais, para a divul-
gação e venda, mas devido a dificuldades de acesso ao sistema de Internet e necessidade de
treinamento presencial, não foi concluída ainda essa modalidade. A partir dessas adversi-
dades foi desenvolvido o Projeto Máscaras pelos integrantes do projeto de extensão, com o
objetivo de buscar parcerias com as empresas locais, uma vez que estas necessitariam esse
equipamento para poder realizar suas atividades.
O Projeto das Máscaras foi enviado para as empresas locais e a partir da divulgação houve
o interesse de uma cooperativa de crédito – UNICRED Ponto Capital – em realizar essa
parceria com Associação, ou seja, no período de agosto e novembro, foram confeccionadas
e comercializadas 1.550 para essa organização, gerando uma renda líquida para a Arsele
de R$ 6.250,55. Além da Unicred, realizou-se parceria com uma empresa de Serigrafia
– Inovação, para aplicar a logomarca nas máscaras. Esta empresa de serigrafia também
estava num período de baixa demanda, devido a crise econômica e sanitária, dessa forma
foi uma produção importante. O Projeto Trabalho e Vida Digna participou da Campanha
Eu Transformo, da Unicred Ponto Capital, e conseguiu ampla divulgação na sociedade e
reconhecimento por parte da Cooperativa como ações transformadoras da cidade.
As parcerias externas foram o diferencial para a realização das ações do Projeto. Se-
guem as principais no setor de serigrafia, construção civil, tecidos e confecções, emba-
lagens e cooperativa de economia e crédito, além de profissionais especialistas, pessoas
voluntárias, e redes de relações sociais.
Acreditamos que por estas ações e demais atividades realizadas comunicamos a sociedade a
importância da extensão da UFSM e o retorno que proporcionamos para grupos em vulnera-
bilidade social, buscando os direitos fundamentais dos cidadãos. As ações terão continuidade
nos próximos anos, uma vez que já estão em andamento atividades em 2021 que visam criar
e desenvolver novos produtos a partir do material reciclado e outras fontes de matéria prima.

324
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta trajetória é possível compreender a importância de ações visando a


melhoria da qualidade de vida, incluindo um ambiente de trabalho mais organizado e a
elevação da renda mensal das mulheres recicladoras e catadoras de materiais recicláveis.
Dessa forma, foram elaborados planos de ações a curto, médio e longo prazo.
No entanto, ao decorrer do projeto, foram surgindo diversas demandas imediatas, e
assim, enquanto integrantes, foram elaboradas estratégias a fim de saná-las. São elas a pro-
dução do carrinho para busca e coleta de materiais recicláveis, a capacitação e confecção
de máscaras e a parceria com instituições privadas a fim de fornecer serviços da associação.
O projeto visa questões complexas de formas de trabalho, família e qualidade de vida,
além disso, buscamos estimular o empoderamento feminino e a independência financeira
das mesmas. Para que isso fosse possível, em função do contexto social precário, foi im-
prescindível atender as necessidades básicas deste grupo vulnerável de mulheres, através de
ações emergenciais de geração de renda.
Faz-se importante destacar a necessidade de políticas públicas que deem conta da com-
plexidade do cotidiano destas associadas, sendo fundamental pensar em formas de acesso
aos direitos sociais e econômicos, os quais estas mulheres não estão inseridas, pelo contrá-
rio, encontram-se em situação de  risco social e pessoal.
Neste viés, há também a influência da pandemia do Novo Coronavírus, a qual fez com
que fosse necessário adaptar nossas ações extensionistas. Além disso, houve uma restrição
da procura do serviço oferecido pela associação, resultando na diminuição da renda men-
sal das mulheres, a qual já era baixa. Assim, o projeto auxiliou com estratégias de renda
alternativa, sendo esta, a confecção de máscaras, que gerou um aumento na renda mensal
das mulheres.
Em síntese, apesar de todas as dificuldades e desafios encontrados ao longo desta traje-
tória, as ações promovem melhorias, auxiliam com informações e conhecimentos através
da ampliação de capacitações, com intuito de elevar a renda mensal, sendo esta, uma
demanda trazida pelas mulheres de forma decorrente. Ademais, repensando, de forma
conjunta, a organização dessas associadas, fornecendo acesso e as colocando como prota-
gonistas de suas histórias de vida.
Através do acolhimento e da escuta das histórias de vida das mulheres, foi possível
compreender e discutir criticamente as condições e a organização de trabalho e fomentar
o envolvimento de instituições públicas e privadas, para buscar formas de mudanças no
processo logístico de manuseio e transporte do descarte, implicando em implementação de
novas tecnologias que possam contribuir para a melhoria da vida das mulheres e garantir
uma mudança sustentável de política. Por fim, acreditamos ser possível impactar econô-
mica e socialmente na vida das mulheres recicladoras e catadoras, promovendo bem-estar
físico, mental e social.

325
REFERÊNCIAS

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University Press: Oxford, 2002.

BRASIL. Lei n° 12.305, de 02 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos


Sólidos; altera a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 3 ago. 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm. Acesso em: 5 nov. 2019.

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SEN, A. Desigualdade Reexaminada. Tradução: Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:


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SEN, A. Human right sand capabilities. Journal of Human Development, v. 6, n. 2,


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SEN, A. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

WOLLSTONECRAFT, M. Reivindicação dos direitos da mulher. Boitempo, 2016.

326
LGBTCHÊ:
FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS
EM GÊNERO E SEXUALIDADE

Gustavo de Oliveira Duarte


Felipe Barroso de Castro
Aline de Souza Caramês
Thaiane Bonaldo do Nascimento
Felipe Machado
TORNAR-SE/SER PROFESSOR(A): UM PROCESSO INICIAL E PERMANENTE

Compreendemos a formação como um processo que se desenvolve de maneira continua


e acompanha o(a) professor(a) por toda a sua trajetória. A base dessa formação profissio-
nal é a formação inicial, a qual pode ser entendida como um espaço/tempo em que os(as)
futuros(as) professores(as) têm o primeiro contato com conhecimentos técnicos e pedagó-
gicos, além dos conteúdos e temas de sua área de conhecimento. A chamada formação
permanente ou continuada, por sua vez, desafia o(a) professor(a), já “formado(a)” e em
atuação, a refletir e avaliar constantemente sua ação docente frente a diferentes temas e
questões contemporâneas (NÓVOA, 1992).
Como define Molina Neto (2014), a formação permanente apresenta um conjunto am-
plo de significados, uma vez que pode contemplar tanto propostas de formação de insti-
tuições formadoras, as quais promovem programas, projetos e atividades; quanto as inten-
cionalidades do próprio sujeito que busca qualificação profissional por iniciativa própria.
No entanto, destaca o autor que compreender formação permanente e os processos de
“reciclagem” como sinônimos, é um equívoco, pois a reciclagem

pressupõe uma relação funcional de subordinação entre os especialistas que


produzem conhecimento e os professores que os aplicam de forma mecânica
[...] esse modelo de formação percebe os professores como seres carentes e
inertes à espera de uma qualificação que os capacite e os torne competentes
para resolver uma gama de problemas educacionais que ganham visibilidade na
sala de aula, cujas origens e soluções, com frequência, não estão em suas mãos
(MOLINA NETO, 2014, p. 324).

No entendimento de Nóvoa (1992), essa característica processual da formação deve le-


var em conta o professor como sujeito e, portanto, também como produtor de sua própria
formação, na perspectiva de uma autoformação. Nesse sentido, a base da formação inicial
é reforçada e adquire subsídios, posteriormente, a partir de uma formação permanente que
considera o professor com sujeito de conhecimento próprio, resultante de sua experiência do-
cente e da sua própria autorreflexão. Esse complexo jogo de pensar e repensar a experiência
visa, justamente, “trazer o conhecimento automatizado pela experiência para o âmbito da
consciência [...] na unidualidade professor-investigador” (MOLINA NETO, 2014, p. 327).
Marcelo García (1999) aborda uma variedade de terminologias para elucidar a impor-
tância da formação de professores(as), destaca que há uma característica fundamental para
se entender a peculiaridade da formação docente. Segundo o autor, a formação de profes-
sores(as) é sempre e ao mesmo tempo uma formação de jovens formadores(as), ou seja,
iniciantes na carreira docente que, a partir das primeiras experiências de trabalho, já vi-
venciam situações de erros e de acertos, ou seja, de limites e possibilidades. Essa transição
do papel que ocupavam como estudantes para o de professores(as) traz consigo inúmeras
dúvidas e tensões que permeiam o trabalho e que somente com o tempo podem ser contor-
nadas, ao passo que também geram aprendizagens significativas e potentes.

328
Esse processo de tornar-se professor(a), denota, na visão de Fensterseifer (2020), o pró-
prio caráter de incompletude do(a) professor(a). Nas palavras do autor (2020, p. 58): “ser
professor é um ‘sendo’, não é uma substância fixa, é um ‘ser no mundo’, constitui-se nessa
relação com o mundo que é também histórica, portanto um saber mutável e que se mani-
festa em contextos singulares”. A função docente, o mundo social e cultural e o próprio ser
humano são atravessados pela historicidade que lhes é constitutiva, uma vez que se criam,
se recriam e se interpenetram. Nessa perspectiva, construímos pedagogias e contextos que
não são indiferentes aos acontecimentos históricos, as mudanças culturais e as transforma-
ções do mundo humano.
Segundo Fensterseifer (2020), existem algumas características que são próprias do que é
ser professor(a) no mundo contemporâneo. Primeiramente, ser professor(a) é envolver-se em
uma tarefa “impossível”, já que os(as) alunos(as) nunca cabem nas formas que os adultos
utilizam para formá-los(as), caso contrário teríamos cópias das gerações anteriores. Ser pro-
fessor(a) é fazer enfrentamentos, é fazer os(as) estudantes “caírem na real”, de modo que as
identidades destes vão se constituindo nessa relação de oposição entre prazer e realidade. Ser
professor(a) é não perder a esperança, é não desistir de seus objetivos e reduzir ao máximo
a distância que o(a) separa do(a) aluno(a), o que justifica o estabelecimento de uma relação
sempre pedagógica. Finalmente, ser professor(a) é ter algo a professar, uma vez que “o que
põem alguém na condição de professor é o reconhecimento da posse de um saber que não
está disponível a todos na mesma medida” (FENSTERSEIFER, 2020, p. 63).
Trata-se, como descrevem Masschelein e Simons (2013), de uma questão de respon-
sabilidade pedagógica, pois a escola é a própria materialização de um tempo e espaço de
democratização do conhecimento em que o mundo é tornado púbico e partilhado, ou pelo
menos deveria ser. Para tais autores o(a) professor(a) é uma figura pedagógica que habita a
escola. É um(a) mestre consciente de seu ofício, oferece seu conhecimento como matéria,
o assunto por amor ao assunto, o ofício por amor ao ofício. Ao apresentar o conhecimento
historicamente produzido aos estudantes está liberando o poder da velha geração, mesmo
que temporariamente, para que a nova geração se constitua como tal.
As características tratadas pelos autores em relação ao “ser professor(a)” evidenciam o
papel que este sujeito ocupa na contemporaneidade na perspectiva de uma educação esco-
lar justa e responsável. Mais propriamente, como abordava Freire (2011), a eterna busca
por uma educação como prática de liberdade, o que implica a negação do ser humano
desligado do mundo. Uma vez que a realidade não é estática e está sempre em constante
transformação, o(a) educador(a) enquanto educa é também educado(a) em diálogo. Nessa
direção, partilhando do pensamento desses autores, acreditamos que o(a) professor(a) pre-
cisa dialogar com a realidade e seus diferentes contextos, não somente no que diz respeito
a questão macro social, mas também sobre as peculiaridades da realidade em que trabalha.
Nesse sentido, muitos são os temas que emergem das realidades escolares, principalmente
dos(das) jovens, e que precisam ser debatidos para apresentar esclarecimentos conceituais
e partilhar conhecimento, causa, empatia e respeito no espaço escolar.

329
Debater temas como gênero e sexualidade, não somente na Educação Física, mas
fundamentalmente em toda a educação escolar, é uma demanda vigente e que ocupa
centralidade nos debates contemporâneos. A seguir, apresentamos uma discussão con-
ceitual sobre gênero e sexualidade e, na sequência, partilhamos esse assunto nos estudos
da área da Educação Física, apresentando algumas análises e, finalmente, práticas e
projetos possíveis sobre o tema.

UM DESAFIO CONTEMPORÂNEO: GÊNERO, SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO

Compreendemos o conceito e a potência científica e política da categoria Gênero a par-


tir de uma perspectiva sociocultural, isto é, apoiado no paradigma das Ciências Sociais e
dos aprofundamentos da área da Educação (LOURO, 2008). Gênero, nesta perspectiva, re-
fere-se a uma organização social baseada na diferença entre os sexos a partir de seu aspecto
relacional, (SCOTT, 1995) isto é, o sentido histórico e crítico do termo é o fio condutor das
discussões as quais nos filiamos.
Assim, rejeitamos o determinismo biológico do tema e compreendemos as múltiplas
possibilidades do ser-estar feminino e/ou masculino, isto é, as condições das feminilidades
e das masculinidades. Isto implica em reconhecer, compreender e respeitar novas e outras
construções e arranjos identitários e, consequentemente, sociais, plurais. A categoria de
Gênero admite as identidades subjetivas de homens e de mulheres, no plural. Isto impli-
ca em desacomodar nossas velhas certezas, binárias, sobre a tradicional oposição entre
homens e mulheres. Desassossega, inquieta, embaralha, mistura e exige, portanto, novos
olhares sobre novos fenômenos, novas práticas sociais. Embora haja diferentes linhas teó-
ricas sobre a compreensão dos estudos de Gênero, a nossa filia-se à corrente pós-estrutura-
lista francesa onde Michel Foucault é uma das referências principais.
A partir da relevância e legitimidade dos Movimentos Sociais no Brasil e no mundo
faz-se necessário uma ampliação do olhar acerca do feminino e do masculino como fixos.
Nossa aposta é na compreensão de feminilidades e de masculinidades, múltiplas, diversas
e inclusivas. E isto faz toda a diferença para que possamos enfrentar diferentes preconcei-
tos e, até mesmo, manifestações de violência simbólica e física sofridas pelos diferentes,
esquisitos, estranhos, anormais.
Estudar as relações de Gênero e Sexualidade na Educação e na formação de professores
é trabalhar com a ferramenta de desconstrução ao buscar reverter e deslocar uma cons-
trução hierárquica entre o significado das coisas compreendidas como naturais (SCOTT,
1995). Tal postura passa não somente pela formação de professores nas etapas inicial e con-
tinuada, na gestão escolar e, sobretudo, nas próprias famílias dos alunos que trabalhamos.
É compreender que as relações de poder, de empoderamento, de opressão, de hierarquia
fazem parte do complexo jogo ente poderes e saberes. É admitir que não há neutralidade
na práxis pedagógica, que mesmo no silêncio há discursos em pontos de vista interligados,
levando em consideração cada contexto e suas especificidades. Marcas do corpo, marcas
de poder (LOURO, 2008). É preciso problematizar e ressignificar as práticas sociais na

330
contemporaneidade, investigar mesmo o porquê das coisas acontecerem desta ou daquela
maneira, sem desmerecer seus atravessamentos históricos. Tal postura “exige dar olhos e
ouvidos a muitos aspectos da prática cotidiana da educação escolar que muitas vezes vêm
sendo silenciadas” (PEREIRA; ASSUNÇÃO, 1997, p.116).
Compreender as contribuições dos Estudos de Gênero é compreender o corpo como um
construto biológico, social e moral, de maneira interligada, evitando a fragmentação e a clas-
sificação fixa, reducionista. Compreender o corpo de nossos alunos e alunas é atentar para
todo o seu cotidiano: a comida, as religiões, as mídias, a indústria da “moda” e da “beleza”,
a classe social, a etnia, entre outros (SOARES, 2003). Ou seja, compreender que o corpo não
é nunca será neutro, ele é atravessado por diferentes questões de ordem social e cultural e
que isto tudo interfere e dialoga com nossas aulas, nossos conteúdos, nossas posições como
professor e como pessoa. Meninas de cabelo curto, meninas gordas, meninas bonitas, frágeis,
altas, baixinhas, cuidadosas; meninos fortes, com atitude, atletas, bagunceiros denotam pos-
turas de gênero, portanto, generificadas. Marcas do corpo, marca de poder.
É no cotidiano e no complexo jogo das relações que se estabelecem entre os grupos,
categorias, “guetos” que nascem as representações sociais dos sujeitos que por sua vez
acabam por moldar as atitudes e posturas da classe de professores/as. “A escola é marcada-
mente um lugar dos rituais – sexistas e religiosos – e estes estão entranhados de ideologias
sociais e culturais que se manifestam em todas as suas atividades, e que acabam por expres-
sar as representações” (PEREIRA; ASSUNÇÃO, 1997, p. 119). Neste sentido, o conceito
de gênero não parece adequar-se

[...] ao desempenho de papéis masculinos e femininos, mas sim ligados à pro-


dução de identidades – múltiplas e plurais – de mulheres e homens no interior
de relações e práticas sociais (portanto no interior de relações de poder). Essas
relações e práticas não apenas constituem instituem os sujeitos (esses vários tipos
de homens e mulheres), mas também produzem as formas como as instituições
sociais são organizadas e percebidas. Nesse sentido, a escola, como um espaço
social que foi se tornando, historicamente, nas sociedades urbanas ocidentais, um
locus privilegiado para a formação de meninos e meninas, homens e mulheres é,
ela própria, um espaço generificado, isto é, um espaço atravessado pelas represen-
tações de gênero (LOURO, 1997, p. 77).

Frente à complexidade e a necessidade de maior esclarecimento sobre os temas gêne-


ro e sexualidade, os processos de formação de professores(as) em Educação Física con-
figuram-se em momentos e espaços propícios para o debate e a problematização desses
assuntos. Além de contribuir para a capacitação de acadêmicos(as) e professores(as) já
atuantes, a formação pode apontar caminhos para o trabalho com temas emergentes que
tanto podem ser desenvolvidos em relação aos conteúdos da Educação Física, como
também de forma interdisciplinar.

331
FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS: GÊNERO E SEXUALIDADE EM PAUTA

Levando em consideração a amplitude da área da Educação Física, é dever da formação


inicial de professores(as) apresentar e discutir temas e debates contemporâneos que, com
uma considerável contribuição da mídia e das tecnologias da informação/comunicação do
mundo globalizado, são latentes e se manifestam nos mais diversos espaços de nossa socie-
dade. Isso porque, além dos conteúdos próprios da área, muitos são os temas que podem
ser abordados e que “conversam” com outras áreas de conhecimento. É o caso da discus-
são sobre a mídia e o esporte; uso de doping; lazer, saúde e exercício físico; até discussões
sobre preconceitos étnico/raciais, corpo (estética, identidades e diversidade); e mais espe-
cificamente o que estamos tratando nesse capítulo, as relações de gênero e sexualidade.
Conforme orienta a Resolução n.º 2, de 1º de julho de 2015, do Conselho Nacional de
Educação (Ministério da Educação), em vigor desde o ano de 2017, é obrigatório que os
cursos de nível superior de Pedagogia e Licenciaturas abordem determinados temas em
suas matrizes curriculares. Entre outros assuntos como direitos humanos, educação es-
pecial e a Língua brasileira de sinais (Libras), está previsto o trabalho com “diversidades
étnico-racial, de gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional [...] (BRASIL, 2015). No en-
tanto, embora haja esse embasamento legal, nos cursos de Licenciatura em Educação Fí-
sica, gênero e sexualidade ainda são pouco abordados, conforme diagnosticaram Correia,
Devide e Murad (2017). De acordo com Saraiva (2002) é fundamental o papel importante
de professores/as na problematização e também nas vivências das questões de gênero, em
suas práticas pedagógicas, junto com seus/as alunos/as, e para que isso aconteça, os/as
próprios/as precisam estar abertos e esclarecidos, dispostos/as a aprender.
Em estudo recente de Araújo e Devide (2019), por exemplo, foram analisadas as ementas
de diversas disciplinas de cursos de Educação Física Licenciatura em 4 (quatro) universi-
dades públicas do Rio de Janeiro. O objetivo do estudo foi verificar a presença ou não de
gênero e sexualidade e como eram abordados. Após análise, os autores encontraram apenas
4 (quatro) disciplinas que abordavam os temas em questão, sendo que 2 (duas) dessas eram
optativas, denunciando a posição de marginalização que essas temáticas se encontram na
formação inicial. Segundo os autores, é nítida a demanda e a necessidade para a discussão
desses temas na escola, uma vez que ela é muitas vezes um espaço em que acontecem muitos
cenários de discriminação. Nas palavras de Araújo e Devide (2019, p. 39),

a falta de conhecimento sobre as temáticas do ‘gênero’ e da ‘sexualidade’ impac-


ta a formação desses licenciandos/as de forma negativa, [...] gerando uma falta
de sensibilidade dos/as futuros/as docentes sobre como a categoria de gênero
influencia os processos de exclusão nas aulas de EF. Em última instância, essa
(in)visibilidade das temáticas impede que licenciandos/as possuam ferramentas
para atuarem de forma crítica e reflexiva, colaborando para a naturalização das
desigualdades entre meninas e meninos.

332
Já em estudo de Jaeger, Quoos e Venturini (2019), foi analisado a percepção sobre se-
xualidade de futuros(as) docentes do curso de Educação Física Licenciatura da UFRGS.
A pesquisa inferiu que são raras as disciplinas obrigatórias e/ou optativas do curso que
abordam a sexualidade na Educação Física escolar, ademais a compreensão do vocábulo
“sexualidade”, para a maioria dos(as) participantes(as), apresenta apenas um caráter bio-
logicista. Os conhecimentos e preceitos sobre sexualidade por parte dos(as) acadêmicos(as)
foram construídos sob influências fora do currículo, ou seja, a partir da participação em
palestras, outros cursos e o próprio convívio social. Para as autoras, portanto, a busca pelo
conhecimento sobre essa temática está atrelada às escolhas dos(as) estudantes em suas tra-
jetórias acadêmicas. Diante dos resultados encontrados, Jaeger, Quoos e Venturini (2019)
destacam que a formação profissional tem um grande desafio em habilitar futuros(as) pro-
fessores(as) para tratar temas como gênero e sexualidade com clareza e coerência. Isso
inclui justificar a necessidade dessa discussão a favor da educação para a diversidade se-
xual. No entanto, a reduzida abertura do currículo, seguida da fragilidade das abordagens,
podem aumentar o despreparo dos(as) docentes fazendo-os(as) considerar o tema como de
abordagem opcional em suas aulas.
Se os(as) futuros(as) docentes não possuem aporte teórico para assuntos latentes no âm-
bito escolar, a exemplo de gênero e sexualidade, corre-se o risco de que os mesmos sejam
abordados a partir de seus próprios pressupostos, o que vai na contramão do que considera
Fensteirseifer (2020). Para o autor (2020, p. 47), “quanto ao professor, no exercício da ativi-
dade docente, não lhes são permitidas escolhas pessoais diante de questões que a república
normatiza, por exemplo, ser complacente com atitudes racistas ou homofóbicas”.
A função da educação é tornar esclarecida a diversidade de posições que compõem
nossa sociedade, tematizando, desnaturalizando e evidenciando a pluralidade de sentido
e significados que os sujeitos podem produzir nos mais variados contextos. Isso não sig-
nifica, complementa o autor, que a educação pode ser tomada como neutra, uma vez que
o ato de educar é político e tem as marcas de nossa intencionalidade pedagógica como
professores(as). Nesse sentido, a escola se torna um tempo e espaço com grande potencia-
lidade para o debate, uma vez que o assunto transcende a sala de aula, se manifestando nas
ações cotidianas da escola. A organização das filas, as roupas e/ou uniformes escolares,
as mensagens nas portas dos banheiros, os apelidos, as práticas de bullying, etc, são alguns
exemplos. Na Educação Física, sobretudo, essas questões podem ganhar ainda mais visibi-
lidade, devido ao seu potencial em problematizar determinações culturais e padrões sociais
em torno das práticas corporais e esportivas (JAEGER, QUOOS, VENTURINI 2019).
Debatendo esses assuntos, a presença de projetos que abordam pedagogicamente esses
temas é de fundamental importância no espaço escolar. Esses momentos tornam-se forma-
tivos não somente para os(as) alunos(as) das escolas, mas também para acadêmicos(as) de
Educação Física em formação e professores(as) da educação básica que interagem durante
as atividades/palestras e repensam suas práticas e intervenções.

333
O PROJETO LGBTCHÊ NAS ESCOLAS

O projeto LGBTCHÊ nas Escolas foi desenvolvido durante o ano de 2019 a partir de
Edital público do ODH, vinculado à PRE UFSM. O objetivo principal do projeto foi atuar
tanto na formação inicial de alunos dos Cursos de Educação Física da UFSM como da
formação continuada de Professores das redes Estadual e Municipal de Santa Maria/RS a
partir de palestras e rodas de diálogo sobre questões de gênero e sexualidade. É válido des-
tacar o contexto social e político do Brasil, à época, onde vários direitos sociais adquiridos
anteriormente passaram a ser questionados e, até mesmo, suspensos, sobretudo os referen-
tes às temáticas das relações de gênero e sexualidade. A seguir apresentamos algumas re-
flexões a partir das ações do Projeto, com um aluno bolsista e um Professor da UFSM nas
quatro escolas que conseguimos espaço e que aceitaram receber esta formação específica.
Algumas escolas tradicionais da cidade não quiseram abordar o tema naquele momento.
Na Escola 1 conseguimos reunir 3 turmas de Ensino Médio e apenas uma professora.
Neste contexto as perguntas mostraram-se um tanto tímidas durante o debate realizado.
No entanto, a maioria dos alunos e a professora presente relataram a ausência de casos de
pré-conceitos e/ou violência de Gênero na Escola. A Supervisão e a Direção da Escola
mostraram-se bastante receptivos para a discussão da temática, inclusive solicitaram retor-
no do projeto à Escola visando atender os demais professores.
Na Escola 2 o contexto foi bem diferente. Trabalhamos com as turmas do ensino No-
turno e com duas professoras presentes. Durante a primeira parte do encontro percebemos
várias manifestações de alunos, todos jovens homens, acerca da temática, inclusive com
piadas homofóbicas. Em vários momentos as professoras precisaram intervir de modo a
solicitar silêncio e comprometimento com a atividade. Nossa surpresa foi no momento da
discussão: a grande maioria dos alunos se manifestou com relatos pessoais envolvendo as
questões de gênero na própria Escola. As professoras relataram certa surpresa com as ma-
nifestações dos alunos, afirmando o ineditismo desta atividade na Escola. Ainda, ao final
da atividade recebemos várias questões, por escrito, dos alunos, para aprofundar em uma
próxima oportunidade na Escola.
A Escola 3 foi nosso diferencial e uma imensa surpresa positiva: conseguimos nos “en-
caixar” na reunião mensal de formação dos Professores da Escola, um luxo! Pela primeira
vez no Projeto conseguimos dialogar com aproximadamente vinte e cinco professores, de
diferentes áreas da Escola, além de toda a equipe diretiva, desta vez sem alunos/as. De
uma maneira geral, metade dos docentes afirmou que já trataram de questões de gênero
e de sexualidade em suas aulas, ainda que não de forma de conteúdo programático, mas
de uma forma mais “leve” quando o assunto apareceu. A outra metade mostrou-se muito
interessada na temática e afirmou “não ter a mínima ideia de como tratar disso em aula”.
A Professora de Educação da Física da Escola, com formação de Mestrado na área, afirma
certa familiaridade em relação à temática abordada.

334
Na verdade, em minha prática docente, as relações de gênero já vinham sendo traba-
lhadas ao longo do ano e buscando uma relação com o conteúdo abordado, como em
jogos, esportes e demais práticas corporais. O projeto LGBTCHÊ veio para ampliar
meu olhar para as situações que acontecem e também para despertar a novas possibi-
lidades de abordar o tema sobre gênero e sexualidade nas aulas. Foi muito importante
e necessário a escola ter abraçado esse projeto (Professora da Escola 3).

Articulando com os objetivos do projeto, Freire (1996) nos mostra que a pesquisa
contribui para transformar a curiosidade ingênua, caracterizada pelo senso comum, em
curiosidade epistemológica, considerada como um exercício crítico dando a capacidade
de aprender. E essa ideia pode ser refletida em uma colocação de uma professora, o qual
nos trouxe que a nomenclatura do projeto foi um dos fatores significativos para que essa
transformação acontecesse e despertasse sua atração.

O estímulo que tive para despertar a minha curiosidade inicialmente foi a partir
do jogo de palavras com a sigla que formou o nome do projeto: LGBTCHÊ. Isso
porque o nome já nos traz uma reflexão sobre a cultura gaúcha e o quanto ela tem
força com os padrões e tradições que nos é apresentado desde a infância. A partir
do projeto, ao meu ver, foi interessante pensarmos que é possível sim mantermos
as tradições e ao mesmo sermos sensíveis e mais flexíveis, de modo a combater os
preconceitos existentes (Professora da Escola 3).

Acredito que nós, enquanto professores e professoras de Educação Física não


podemos nos omitir dessa temática pois elas aparecem com muita frequência du-
rante as aulas, principalmente as aulas práticas. Um exemplo disso é lembrarmos
que esportes foram criados e pensados por homens e para homens. As mulheres
já tiveram muitas conquistas, mas ainda precisamos debater sobre isso nas aulas
(Professora da Escola 3).

Essa reflexão nos aponta para os escritos de Souza Júnior (2020), que nos leva a reco-
nhecer a necessidade de se investir nos chamados, Processos Educativos, almejando a equi-
dade de gênero nas aulas de Educação Física, ocorrendo com base em um diálogo entre os
Estudos de Gênero e a Pedagogia do Esporte.

Durante o desenvolvimento projeto, recordei de uma aluna trans que tivemos


há alguns anos na escola. Lembro-me que foi um choque para todos e todas da
escola quando a aluna apareceu, pois infelizmente nunca tivemos algum tipo de
formação que tratasse dessa temática. Era algo novo, que muitos consideravam
que fugia da ‘norma’ (Professora da Escola 3).

Segundo Foucault (1999), a norma pode ser considerada um dos mecanismos de poder
que gera uma verdade a ser seguida, algo adequado, correto, uma das totalidades para além
da qual estariam os anormais, que seriam seres excluídos do que é normal na sociedade.

Muitas vezes não é uma tarefa fácil conseguir abordar nas aulas, mas precisamos
assumir nosso compromisso com a educação e pautar para que situações de pre-
conceito não aconteçam no ambiente escolar, seja dentro ou fora de uma aula
(Professora da Escola 3).

335
Na fala desta professora percebemos o desafio que pode ser trabalhar com as rela-
ções de gênero na escola. No caso da Educação Física, as aulas tornam-se um contexto de
elaboração das identidades de gênero, com a participação em atividades corporais. “Se
em algumas áreas escolares a constituição da identidade de gênero parece, muitas vezes,
ser feita através dos discursos implícitos, nas aulas de EF esse processo é, geralmente mais
explícito e evidente” (LOURO, 2001, p.72).
A professora reflete que:

A Educação Física é um lugar muito propício para tratar sobre gênero pois todo
e qualquer conteúdo há uma situação que merece ser debatida. Se tivéssemos
momentos de abordar as relações de gênero naquela época que tivemos uma alu-
na trans, certamente teríamos mais esclarecimentos de como compreender e agir
perante essa nova situação (Professora da Escola 3).

Para Louro (2004), a escola, incluindo professores e currículos não devem ignorar as mu-
danças que acontecem em práticas sociais relativas ao gênero e à sexualidade de alunos/as.
Nesse sentido, também defendemos a ideia de sempre buscar a problematização através de
estudos, entendimentos, sensibilidade e ações para as diferentes situações que apareçam.
Na Escola 4, trabalhamos com três turmas do Ensino Fundamental e com apenas 1
professor presente, o Professor de Educação Física. Este, aliás, fez o papel de mediação
com a Direção da Escola e abriu espaço para as questões de Gênero com seus alunos, uma
vez que já trabalhara com a temática das mulheres no futebol e sobre o feminismo. Do pro-
fessor de Educação Física da Escola ficou o interesse de levar seus alunos à Universidade
Federal de Santa Maria para continuar a discussão com seus alunos bem como o desejo de
convidar demais professores e equipe diretiva da Escola.

Minha tentativa era de situar as discussões sobre gênero e sexualidade dentro


de uma questão maior de combate ao preconceito. Percebia que alguns colegas
também trabalhavam nessa linha, ou seja, gênero e sexualidade não recebiam um
foco e uma exposição propriamente dita, mas estavam presentes de forma mais
sutil (Professor da Escola 4).

Este professor desenvolveu um projeto interdisciplinar na Escola envolvendo as dis-


ciplinas de História, Ensino religioso, Língua Portuguesa, Matemática e Educação Física.
O título do projeto foi O empoderamento feminino através da participação das mulheres no esporte
e tratou os seguintes temas: a participação das mulheres nas práticas esportivas; análise da
construção histórica da inserção das mulheres nos esportes; pesquisa de dados e estatísti-
cas sobre o tema; desconstrução de conceitos e pré-conceitos; e a construção de um Jornal
digital abordando todo o conteúdo desenvolvido no projeto. Também foi abordada a Copa
do mundo de futebol feminino da FIFA, realizada na França, uma vez que se tratava de
um mega evento esportivo que atraiu olhares de todo o mundo para o torneio, reafirmando
a aceitação e a importância da participação das mulheres em uma modalidade esportiva
dominada hegemonicamente por homens.

336
O tema do projeto ganhou maior embasamento a partir das discussões sobre gê-
nero e sexualidade, dentro e fora do esporte, a partir do projeto LGBTCHÊ. O
trabalho foi apresentado no “2º Espaço Educar e Empreender”, organizado pela
Prefeitura Municipal de Santa Maria ao final do ano de 2019 (Professor da Escola
4).

O Professor da Escola 4 reflete sua ação docente e destaca que é importante ressal-
tar a mudança de postura, da maioria dos alunos envolvidos diretamente nas atividades,
no que se refere a tolerância, respeito e empatia. Quando se tem espaço para a discussão,
falar e ouvir sobre diferentes pontos de vista, sentimentos expostos, vontade de transfor-
mação na construção de uma sociedade mais igualitária, nossos alunos se manifestam de
maneira crítica e respeitosa. O referido professor ainda destaca que a partir das ações do
projeto espera-se que as sementes lançadas aqui sejam o início de uma nova mentalidade
[...] Homofobia, intolerância religiosa, preconceito étnico e racial são alguns temas que ne-
cessitam cada vez mais de um olhar crítico e pedagógico, mas ao mesmo tempo sensível”
(CASTRO et al., 2019).
A partir de 2020, o Professor 4 assumiu a Coordenação Pedagógica dos Anos Finais do
ensino fundamental e afirmou compreender a Escola a partir de um olhar mais amplo e
aprofundado, como um todo. A partir desse olhar, a proposta de trabalho interdisciplinar
foi novamente uma realidade para a escola:
Como em cada semana tínhamos um tema a ser trabalhado pelas disciplinas, o
tema “Combate ao preconceito” esteve em pauta já na terceira semana. Precon-
ceito racial, diversidade cultural, respeito as pessoas com deficiência, homofobia
e questões de gênero foram abordadas a partir da análise das tirinhas do perso-
nagem Armandinho (criação do artista Alexandre Beck). Tivemos uma grande
participação dos alunos nessa atividade e ao término do ano letivo (com a avalia-
ção das propostas interdisciplinares). Também recebemos uma avaliação muito
positiva tanto por parte dos alunos como por parte dos professores em relação a
esse trabalho especificamente. Nessas condições, creio que o fato de abordarmos
o tema gênero e sexualidade dentro de uma proposta interdisciplinar mais ampla
já foi um grande passo, mas que ainda carece de aprofundamento para atividades
futuras (Professor da Escola 4).

Essa experiência nos mostra que temas como esses são latentes e precisam estar presen-
tes nas salas de aula. Aos professores, é necessário um olhar sensível para essas questões e
uma preocupação pedagógica para o trabalho com gênero, sexualidade e o combate a to-
das as formas de preconceito que parecem ter ganhado uma “sobrevida” com os discursos
de ódio profanados por um movimento conservador que avançou sobre o país nos últimos
anos. Portanto, é preciso e ao mesmo tempo necessário “falar sobre” para que essa discus-
são não seja silenciada ou negligenciada às novas gerações.

337
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como principais resultados apontamos uma formação específica para um aluno bol-
sista do projeto, discussões formativas em uma disciplina do Curso de Educação Física
Licenciatura e, sobretudo, a riqueza das discussões realizadas em quatro Escolas públicas
da cidade de Santa Maria/RS, dentro de seus limites e possibilidades, contribuindo para a
formação continuada dos professores envolvidos no Projeto LGBTCHÊ.
Apesar da fama de tradicional e conservador, o estado do Rio Grande do Sul se compa-
rado às demais regiões brasileiras, os professores que tivemos contato mostraram-se muito
receptivos em acolher a discussão sobre as relações de gênero e Sexualidade na formação
básica, inicial e também continuada. Percebemos muita curiosidade e vontade de aprender
da maioria dos alunos e também dos docentes. A maioria dos professores das quatro es-
colas parceiras afirmou não ter vivenciado alguma experiência com tais temáticas durante
seus cursos de Graduação, apenas um professor de Educação Física sinalizou algum con-
tato, ainda que rapidamente.
O projeto LGBTCHÊ demonstrou que abordar Gênero e Sexualidade na escola é uma
prática possível. Sua aceitação no ambiente escolar, os questionamentos de alunos(as) e
professores(as) demonstram a necessidade destes assuntos serem abordados com maior
ênfase na formação inicial e permanente de professores(as). Afinal, professores(a) não po-
dem estar aquém do mundo, mas integrados às necessidades escolares, às mudanças e aos
desafios contemporâneos.

338
REFERÊNCIAS

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340
O PROGRAMA DE EXTENSÃO GIDH:
GÊNERO, INTERSECCIONALIDADE E DIREITOS
HUMANOS ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA

Gabriela Schneider
Mariana Selister Gomes
Núncia Guimarães Escobar
INTRODUÇÃO

“Companheira me ajude que eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com
você ando melhor”50. Esse canto, que entoa e ecoa no movimento feminista desde 2017,
tem sido a tônica do Programa de Extensão GIDH – Gênero, Interseccionalidade e Direi-
tos Humanos, vinculado ao Observatório de Direitos Humanos, da Pró-reitoria de Exten-
são da Universidade Federal de Santa Maria. Através dessa frase, as mulheres demonstram
a importância da união, a qual somente será alcançada por meio de um olhar múltiplo e de
uma atuação interseccional. Somos mulheres, no plural. Partimos do debate universal dos
Direitos Humanos, mas percebemos a necessidade de dar enfoque nas questões de Gênero,
bem como, de reconhecer as intersecções entre Gênero, Raça, Classe e Sexualidade.
O GIDH surge em 2019 a partir do diálogo entre diferentes organizações, de dentro e de
fora da universidade – sendo elas: o Grupo de Estudos e Pesquisas em Cultura, Gênero e
Saúde (GEPACS/UFSM); o Departamento de Ciências Sociais (DCS/UFSM); o Progra-
ma de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCSociais/UFSM); o Programa de Pós-
-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI/UFSM); a Ordem dos Advogados do
Brasil Subseção de Santa Maria (OAB/SM); a Comissão de Direitos Humanos da OAB/
SM; a Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB/SM; o Coletivo Voe LGBTQi+;
o Coletivo Dandaras de Mulheres Negras; o Coletivo Feminista Grita; e, o Centro Cultural
Sociedade Mocidade Independente das Dores.
Em 2019, realizamos as seguintes ações: (1) Workshops de Pesquisa, com objeti-
vo de divulgar os trabalhos de pesquisa relacionados a Gênero, Interseccionalidade
e Direitos Humanos, realizados por integrantes do GEPACS e de possíveis grupos
parceiros (professoras, estudantes de pós-graduação e de graduação), proporcionando
a integração entre pesquisa, ensino e extensão, bem como, fortalecendo as referidas
temáticas. Foram realizados seis workshops, atingindo um público de cerca de 150
pessoas. (2) Palestras de formação, com objetivo de ampliar a relação da Universidade
com Entidades da Sociedade Civil, levando os debates científicos sobre Gênero, Inter-
seccionalidade e Direitos Humanos para formação de advogados e ativistas. Foram
realizadas duas palestras, atingindo um público de 60 pessoas. (3) Festival da Diver-
sidade, com objetivo de promover a integração da Universidade com a comunidade,
através de um espaço aberto, lúdico, informal e interdisciplinar, com rodas de conversa
sobre as temáticas de Gênero, Interseccionalidade e Direitos Humanos, apresentações
artísticas, e venda de produtos e alimentos artesanais. Foi realizado um festival, atin-
gindo um público de 400 pessoas. Em 2019, atingimos um público de mais de 600
pessoas. Neste ano, contamos com duas bolsistas de graduação FIEX/PRE/UFSM,
uma bolsista de graduação e uma de pós-graduação ODH/PRE/UFSM e mais sete

50 Mulheres fazem Marcha Histórica: Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor. Jornal Sul 21, 8
mar. 2017. Disponível em: https://www.sul21.com.br/em-destaque/2017/03/mulheres-fazem-marcha-his-
torica-eu-sozinha-ando-bem-mas-com-voce-ando-melhor/. Acesso em: 25 maio 2021.

342
voluntárias51, alunas da graduação e da pós-graduação em Ciências Sociais, Relações
Internacionais e Comunicação Social.
As ações do GIDH em 2019 tiveram ampla repercussão na cidade, tendo resultado em um
convite para a coordenadora ser entrevistada na TV Câmara, da Câmara de Vereadores de
Santa Maria. O Programa “Câmara Entrevista” teve duração de 34 minuto e foi transmitido
pelo Canal de televisão TV Câmara, em outubro de 2019 e, posteriormente, disponibilizado
no youtube52. Esta entrevista foi uma forma de divulgar as ações do GIDH e, principalmente,
levar para a comunidade os debates teóricos, as pesquisas científicas e as lutas sociais em
torno do da Interseccionalidade de Raça, Classe e Gênero e dos Direitos Humanos.
Em 2020, em função da tragédia da Pandemia de COVID-19, optamos por dar conti-
nuidade as nossas ações de forma online. Realizamos: (4) GIDH Divulga, com produção
de conteúdo semanal nas redes sociais, atingindo cerca de 300 pessoas em cada postagem;
e, (5) Curso de Extensão, sobre Feminismo e Antirracismo, o qual atingiu mais de 400
inscrições. Assim como no ano anterior, em 2020 também contamos com duas bolsistas
de graduação FIEX/PRE/UFSM, e uma bolsista de pós-graduação ODH/PRE/UFSM
e mais sete voluntárias53, alunas da graduação e da pós-graduação em Ciências Sociais,
Relações Internacionais e Comunicação Social. Em 2021, seguimos nossa trajetória, cons-
truindo e divulgando uma Cartilha online, que visa esclarecer Mitos e Verdades em torno
dos Direitos Humanos, Gênero e Raça.
Todas nossas ações estão em diálogo como nosso objetivo geral, qual seja: difundir e
fortalecer, juntamente com parceiros externos (associações da sociedade civil e movimen-
tos sociais), as discussões científicas e as lutas sociais acerca da Igualdade e da Equidade
de Gênero, da Interseccionalidade entre Gênero, Classe, Raça e Sexualidade, bem como,
dos Direitos Humanos na Universidade Federal de Santa Maria e em seu entorno social.
No que tange aos princípios, seguimos os pilares das Universidades Públicas Brasileiras, ou
seja, nos organizamos através da Gestão Democrática Participativa e da indissociabilidade
do tripé Ensino-Pesquisa-Extensão.
Em termos epistemológicos e metodológicos, nos orientamos pela Pesquisa-ação, pelas
Metodologias Feministas e Antirracistas e pelo Conhecimento Situado. Com relação a
Pesquisa-ação (NOFFKE; SOMEKH, 2015; TRIPP, 2005) entendemos que é necessário
integrar uma ação transformadora da realidade social com o monitoramento e a reflexão
51 Agradecemos às alunas participantes de 2019: Amanda Krein Antonette (bolsista de graduação do
ODH/PRE); Lurian Pinheiro Ramos (bolsista de pós-graduação ODH/PRE); Maria Eduarda Oliveira
Dall’aqua e Saruê Klüsener Vezaro (bolsistas FIEX/PRE); Eduarda Racoski Cortelini, Fernanda Perez
Mendonça, Gabriela Schneider, Micaela Severo da Fonseca, Milena Prevedello Rubin, Nuncia Gabriele
Guimarães Escobar, Renata Rodrigues Marques, Sabrina Da Costa Chiuza (voluntárias da graduação e da
pós-graduação).
52 Disponível em: https://youtu.be/BEygjW2JMRw. Acesso em: 2 jun. 2021.
53 Agradecemos às alunas participantes de 2020: Nuncia Gabriele Guimarães Escobar (bolsista de pós-gra-
duação ODH/PRE); Milena Prevedello Rubin e Sabrina da Costa Chiuza (bolsistas FIEX/PRE); Brunna
Felkl do Nascimento, Eduarda Racoski Cortelini, Fernanda Perez Mendonça, Gabriela Schneider, Luisa
Paim Martins, Lurian Pinheiro Ramos, Maria Eduarda Oliveira Dall’aqua, Renata Rodrigues Marques (vo-
luntárias da graduação e da pós-graduação).

343
constante em torno desta (transform)ação. A dialética entre teoria e prática, entre reflexão
e transformação, também é o princípio básico das Metodologias Feministas (ACKERLY;
TRUE, 2010; CHANTLER; BURNS, 2015) e Antirracistas (PARKER; ROBERTS, 2015).
Desta forma, ao mesmo tempo em que agimos sobre o mundo, somos capazes de compre-
endê-lo e explicá-lo melhor; bem como, a partir de uma melhor compreensão, tornamo-
-nos mais aptos à ação transformadora.
Acrescentamos, ainda, que a perspectiva epistemológica e metodológica do Conheci-
mento Situado (HARAWAY, 1995; LOWY, 2000; GOMES, DUARTE; CASARIN, 2019)
é subjacente a todo o Programa GIDH. Entendemos que o sujeito produtor do conheci-
mento não é neutro, e, por isto, deve explicitar seu posicionamento e refletir constante-
mente sobre ele (situar-se) para produzir um conhecimento transparente, com objetivos
científicos e sociais evidentes. Neste sentido, afirmamos que somos todas feministas, an-
tirracistas e defensoras dos direitos humanos. Nossas reflexões foram constantes durante
todo o processo de planejamento, execução e avaliação das ações.
Em termos teóricos, nos orientamos pelas discussões dos conceitos Gênero, Interseccionali-
dade e Direitos Humanos, em constante diálogo com nossas ações práticas. A seguir, explicita-
remos algumas autoras e conceitos fundamentais. Em seguida, descreveremos e analisaremos
nossas ações. Por fim, apresentaremos algumas considerações finais e perspectivas futuras.

O GIDH EM TESSITURAS TEÓRICAS


O QUE SÃO DIREITOS HUMANOS?

Direitos humanos são para bandidos? Direitos humanos é coisa de esquerda? Direitos
humanos são para humanos direitos? Direitos humanos autorizam a impunidade? Direitos
humanos são direitos apenas das minorias? Os mitos, ou as crenças comuns, geradas a partir
de narrativas sem fundamentação científica, permeiam a temática dos Direitos Humanos no
Brasil. Na contemporaneidade, com o avanço tecnológico, o problema se agrava com a disse-
minação descontrolada de informações falsas. Assim, os mitos acabam criando forças e con-
tribuem com uma sociedade que dissemina o ódio e pouco se preocupa com o conhecimento
crítico, com a diversidade e com a pluralidade. Mas, afinal, o que são Direitos Humanos?
Para compreender o que são Direitos Humanos é preciso entender, mesmo que brevemen-
te, a sua história. Globalmente, a ideia de Direitos do Homem foi difundida a partir da Revo-
lução Francesa, sobretudo com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Os revolucionários de 1789 julgavam-se apóstolos de um mundo novo, ou seja, não queriam
apenas fazer uma declaração para a França, mas para o mundo em geral (COMPARATO,
2013, pp. 114-115). Os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade traziam um avanço para
as sociedades da época, marcadas pelo direito de vida e de morte exercido por reis e nobres
sobre a maioria da população. No entanto, apesar de representar um significativo avanço e
de se pretender universal, a Declaração acabou por construir um sujeito de direitos a partir
do pressuposto de um homem, branco, burguês, proprietário e heterossexual.

344
Bragato (2011; 2013) lembra que tais direitos foram resultados de uma concepção de
indivíduo racional e autossuficiente, pressupostos estes que apresentam até os dias de hoje
“implicações para a construção da justificação prática e teórica dos direitos humanos”
(BRAGATO, 2013, s/p). É por isso que desde as primeiras manifestações de reconheci-
mento legal desses direitos, as mais diversas críticas têm sido feitas, entre elas marxistas,
feministas e pós-coloniais (BRAGATO, 2013, s/p), que podem ser vistas, por exemplo:
em Marx (1991), ainda no século XIX; e, mais recentemente, em Pateman (1993), Scott
(1986), Davis (1982), Crenshaw (2002), Butler (2008), entre outras.
Uma crítica particularmente interessante é empreendida por Carole Pateman (1993)
que faz uma releitura dos clássicos Contratualistas, afirmando que o tão aclamado “Con-
trato Social” é, na verdade, um “Contrato Sexual”, pois exclui explicitamente as mulheres
da nova sociedade política pactuada pelo Contrato Social, no final do século XVIII.
Além e em conjunto com as críticas, os movimentos sociais também perceberam a im-
portância de repensar a ideia clássica individual de cidadania e lutar por direitos univer-
sais. O resultado, especialmente após as atrocidades e violações de direitos ocorridas na
Segunda Guerra Mundial, foi a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), e,
posteriormente, em 1948, a concepção da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH). Assim, é possível afirmar que os direitos humanos são “o resultado de lutas so-
ciais e coletivas que tendem à construção de espaços sociais, econômicos, políticos e jurídi-
cos que permitam o empoderamento de todas e todos para lutar plural e diferenciadamente
por uma vida digna de ser vivida” (FLORES, 2009, p. 114-115).
A DUDH pode ser considerada o primeiro instrumento internacional geral de Direitos
Humanos a ser proclamado por uma organização internacional de caráter universal e visa
identificar e reconhecer a necessidade de uma dignidade comum entre os seres humanos.
A interpretação da DUDH ocorre de forma ampliada, a fim de abarcar todos e todas, in-
cluindo aqueles que em algum momento foram excluídos pela história, como as mulheres,
os homens negros, as mulheres negras, a população de baixa renda, os povos indígenas, a
população LGBTTQi+, e outros. A Declaração é, portanto, “uma referência imprescindí-
vel para o estudo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais” (ISA, 1999, p. 88).
É importante perceber que os direitos humanos são processos de “dinâmicas e lutas
históricas resultantes de resistências contra a violência que as diferentes manifestações do
poder, tanto das burocracias públicas como das privadas, exerceram contra os indivíduos
e os coletivos” (FLORES, 2009, p. 61). É por isso que devemos “ser capazes de superar
as abstrações que sustentam a teoria tradicional dos direitos e propor uma reflexão que
impulsione, sistematize e complemente as práticas sociais num sentido crítico, subversivo
e transformador” (FLORES, 2009, p. 97).
Os direitos à vida, à liberdade, à segurança, à justiça, à saúde, entre outros, previs-
tos na Declaração Universal de 1948, são para todos e todas. Como afirmou Mignolo
(2011, p. 23, tradução nossa), os mesmos humanos tidos como marginais são humanos
tanto quanto as privilegiadas elites políticas nacionais e internacionais. Por analogia,
podemos dizer que os mesmos humanos considerados “bandidos” são humanos tanto

345
quanto qualquer outro ser humano, sem distinção de gênero, cor, raça, classe social,
viés político ou nacionalidade.
Na busca por uma sociedade mais justa e igualitária, é necessário conhecer e difundir
constantemente “as estratégias de reprodução das relações hegemônicas que colocam pes-
soas e grupos em posições desiguais” (FLORES, 2009, p. 97). Por isso, a contribuição com
o conhecimento crítico e responsável sobre os Direitos Humanos, por meio da educação,
de reflexões e de práticas sociais é uma forma de manter viva a luta constante pela efetiva-
ção e aplicabilidade destes direitos.

O QUE É GÊNERO?

Gênero é uma ideologia? Debater Gênero destrói as famílias? Afinal, o que é Gênero?
Em primeiro lugar, é importante destacar que Gênero é uma categoria científica, com, pelo
menos, 35 anos de história e consolidação no meio acadêmico, político e social. Quando
mencionamos estes 35 anos, referimo-nos ao clássico artigo de Joan Scott (1986), que de-
fine “gênero como uma categoria útil de análise histórica”, apontando que esta categoria
surge para compreendermos as relações entre homens e mulheres em diferentes contextos
históricos e geográficos, ou seja, os papéis de homens e mulheres construídos socialmente
e historicamente – e não biologicamente. A categoria Gênero (social e histórica) diferen-
cia-se, portanto, da categoria Sexo (biológico).
Analisar e debater que “ser homem” e “ser mulher” são construções sociais – e não
apenas dados biológicos – permite que possamos questionar desigualdades, violências e
estereótipos, possibilitando a emancipação. Por isso, grupos conservadores temem a cate-
goria Gênero, por ela carregar em si um potencial libertador e transformador.
O artigo de Joan Scott define dimensões de análise da categoria gênero, sendo elas: ins-
titucional (política e econômica), normativa (costumes e leis), cultural (valores simbólicos)
e subjetiva (individual). Por este caráter científico, o artigo se tornou uma grande referên-
cia. Algumas décadas antes, em 1948, Simone de Beauvoir já havia demonstrado que ser
mulher é uma construção social. A filósofa argumentou que ser fêmea da espécie humana
é uma condição biológica, mas, ser mulher na sociedade é uma condição social e histórica.
Ou seja, ser mulher no século XXI, não é a mesma coisa que ser mulher no século XVI,
por exemplo.
Tanto Joan Scott, quanto Simone de Beauvoir são questionadas por autoras negras por
analisarem “a mulher” no singular, não considerando devidamente as questões raciais e de
classe. Neste debate, emerge a perspectiva da Interseccionalidade.

O QUE É INTERSECCIONALIDADE?

Os debates sobre Interseccionalidade passaram a ocupar espaço central na Teoria Fe-


minista, a partir da década de 1970. A discussão que propomos neste subcapítulo se volta
para a Interseccionalidade de Raça, Classe e Gênero, modelo utilizado pelo GIDH em

346
suas ações, que advém, sobretudo, da perspectiva construída por Movimentos Feministas
Negros a nível nacional e internacional. A história do conceito está enraizada no contexto
estadunidense, pois é a jurista Kimberlé Crenshaw que cunha o termo e elabora, inicial-
mente, nos estudos jurídicos (CRENSHAW, 2002), meios para se operacionalizar uma
lente analítica eficiente que compreenda questões referentes à condição de mulheres ne-
gras. No entanto, é digno salientarmos que anos antes da nomeação deste marco teórico, o
conteúdo da Interseccionalidade em si já era difundido através das lutas sociais de mulhe-
res negras, racializadas em geral, condenadas pelo machismo e pela dominação de classe.
Em 1980 o livro “Mulheres, Raça e Classe” da militante e intelectual Angela Davis é
publicado. Nesta obra, a preocupação principal da agenda feminista negra é a violência siste-
mática de gênero, de classe e de raça desde a escravidão ao capitalismo, tendo em vista todos
os condicionantes estruturais que se apresentam como indissociáveis para a compreensão da
realidade social, sem atribuição de primazia ou hierarquia de opressão. Neste sentido, a do-
minação de classe social, a racialização e a generificação, conjuntamente, compõem o eixo
central de problematização da Interseccionalidade, em um sistema integrado.
Os processos históricos são fundamentais para os estudos interseccionais, justamente
por partir – de forma crítica – do contexto característico de mulheres em situação de mar-
ginalidade, como observado em “E eu não sou uma mulher?”, discurso proferido em 1851
por Sojourner Truth, mulher escravizada nos EUA que, neste depoimento histórico, expõe
questões de cunho interseccional e até mesmo lança a crítica à visão essencialista e hege-
mônica contida na categoria “mulher” – aspectos que foram expressivamente silenciados
por mais de um século e que revelam a importância da intersecção real e de proposições
combativas ao silenciamento e a ocultação das mulheres negras e pobres na sociedade. O
feminismo negro auxilia na consolidação do projeto Interseccional, tanto em seus termos
prático-políticos quanto epistemológicos, uma vez que as ações sociais partem de uma
consciência coletiva e propicia, também, uma transformação coletiva, diferente da linha
individualista e liberal que deturpa e atrasa os debates sobre emancipação, pois ignora os
contextos históricos e as estruturas sociais. Assim, as lutas organizadas dependem da cons-
cientização geral e da ação coletiva: “se o poder como dominação se organiza e opera por
meio de opressões interseccionais, então a resistência deve demonstrar uma complexidade
comparável” (COLLINS, 2019, p. 331).
O paradigma da Interseccionalidade, gestado primeiramente nos Estados Unidos, é in-
corporado como prática de ação política pelos movimentos sociais e como abordagem
teórica-metodológica pelo meio acadêmico, sendo reivindicado e reformulado para além
do contexto estadunidense, como é o caso das mobilizações latino-americanas, africanas
e caribenhas em torno da Interseccionalidade. O feminismo Decolonial propõe alguns
desdobramentos na utilização da Interseccionalidade, apresentando de forma contundente
a dimensão de Sistema-Mundo Colonial. A crítica feminista desde o Sul Global é de que
o debate interseccional proposto a partir da Europa e Estados Unidos, hegemonicamente,
ignora a barbárie colonial e o legado imperialista da colonialidade. Maria Lugones (2014,
p. 57), destaca: [...] as violências que são sistematicamente infringidas às mulheres de cor:

347
mulheres não brancas; mulheres vítimas da colonialidade do poder e, inseparavelmente, da
colonialidade do gênero; mulheres que criticaram o feminismo hegemônico por ignorar a
interseccionalidade de raça/classe/gênero.
Ochy Curiel atenta para o equívoco da Interseccionalidade quando esta confere uma
divisão em algo coexistente, ou seja: a mulher está em um lado, a negra está em outro e a
pobre ainda em outro – isso em uma mesma pessoa. Para a autora: “o problema é pensar
que essas condições se dão separadas e são autônomas e que em algum momento se in-
terseccionam” (CURIEL, 2017, p. 116). O que importa, com efeito, é a realidade em sua
totalidade. Feministas negras brasileiras [como Lélia González, Beatriz Nascimento, Sueli
Carneiro e muitas outras] são responsáveis por manter fortemente ativo o debate acerca da
luta antirracista, classista e feminista, apesar das disputas e tensões devido a pluralidade de
ideias. Estas autoras explicam que em ambos os movimentos sociais, havia uma supressão
das questões levantadas por ativistas negras. Entre as mulheres, a discussão racial não era
vista como fundamental. Entre os negros, o machismo era desconsiderado. No movimento
classista, a pauta racial, do ponto de vista dos diferentes processos de marginalização que
o povo negro está submetido, bem como, a pauta feminista, eram entendidas como algo
que poderia corromper o foco da luta de classes. Lélia Gonzalez questiona: “[...] até que
ponto essas correntes, ao reduzirem a questão do negro a uma questão socioeconômica,
não evitariam assumir o seu papel de agentes do racismo disfarçado que cimenta nossas
relações sociais?” (GONZALEZ, p. 69, 2018).
Diante do exposto até aqui, constatamos que a Interseccionalidade parte do ponto de
vista do feminismo negro, o qual demonstra as condições estruturais e históricas de imbri-
cação entre raça, gênero e classe (DAVIS, 2016), as quais devem ser incorporadas em todas
as lutas sociais. Nesse sentido, destacamos que o GIDH parte de uma perspectiva dos Di-
reitos Humanos, a qual se mostra insuficiente e, por isso, soma-se a perspectiva de Gênero,
a qual por sua vez também se mostra insuficiente e, por isso, chega-se à visão Interseccio-
nal. Ressaltamos que a perspectiva da Interseccionalidade que adotamos está alinhada à
Decolonialidade, pois incorporamos à reflexão sobre o colonialismo/imperialismo. Por
fim, entendemos que, como qualquer outra empreitada teórico-metodológica e prática, a
Interseccionalidade pode e deve estar aberta aos questionamentos. As revisões auxiliam o
aprimoramento do trabalho e das ações em prol de uma sociedade mais justa e igualitária.

O GIDH EM TRANSFORMAÇÃO
WORKSHOPS DE PESQUISA

A primeira ação desenvolvida pelo GIDH foi o Ciclo de Workshops de Pesquisa, inti-
tulado Workshop GIDH: Atualidades em Gênero, Interseccionalidade e Direitos Humanos. Esta
ação ocorreu de junho a novembro de 2019, com um encontro mensal, sempre na primeira
terça-feira do mês, na sala de aula da Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSM, no
horário de intervalo entre os turnos da tarde e da noite (das 17h às 19h). Cada encontro
possuía uma temática de pesquisa relacionada ao GIDH e contava com a apresentação

348
de três trabalhos em andamento, de estudantes de graduação, de pós-graduação e de pro-
fessoras, vinculadas ou parceiras do GIDH. A ideia desta ação era divulgar e debater as
pesquisas em andamento com o publico interno e externo a universidade. Tivemos o total
de 6 encontros, com uma média de 25 participantes por encontros. O público foi bastante
participativo, no entanto, esteve formado na sua maioria por estudantes de graduação e
pós-graduação – não conseguimos atingir satisfatoriamente o público externo à universi-
dade, o que acreditamos se dever ao fato da localização dos eventos no Campos da UFSM
(afastado do centro da cidade), bem como, do distanciamento simbólico que muitas vezes
a universidade estabelece com o público em geral, distanciamento este que a extensão
trabalha para diminuir e que, enquanto GIDH, em constante transformação, buscaremos
superar. Os temas foram os seguintes: (1) Memória, Museus e Direitos Humanos; (2) Se-
curitização e Direitos Humanos; (3) Família, Maternidade e Carreira; (4) Mulheres em
espaços de Masculinidade; (5) A Luta por Direitos e Combate à Violência Racista e LGB-
TQIfóbica; (6) Movimentos Sociais e Resistência Política.

PALESTRAS E CARTILHA INFORMATIVA

No ano de 2019, com o objetivo de combater a desinformação e fortalecer a defesa dos


direitos humanos, o GIDH/UFSM promoveu a palestra Gênero, Diversidade e Direitos Hu-
manos: Mitos e Verdades na cidade de Santa Maria/RS. A palestra deu ensejo à criação da
Cartilha Gênero, Raça e Direitos Humanos: Mitos versus Verdades, concluída em 2021 e atual-
mente em fase de publicação.
A palestra Gênero, Diversidade e Direitos Humanos: Mitos e Verdades foi ministrada pela co-
ordenadora do GIDH, alunas de graduação e pós-graduação integrantes do Programa e
advogadas/os colaboradores do GIDH. Ressalta-se que a palestra foi construída de forma in-
tegrada, com encontros prévios entre os palestrantes para debater o tema e construir a abor-
dagem de forma conjunta. A palestra ocorreu em dois locais distintos e de forma gratuita. A
primeira palestra ocorreu no dia 2 de setembro de 2019, no Auditório da OAB – Subseção
de Santa Maria/RS. Já a segunda aconteceu no dia 10 de setembro de 2019, no Auditório da
Antiga Reitoria da UFSM. O intuito era debater a temática de gênero, Interseccionalidade e
Direitos Humanos com públicos distintos, porém todos interessados no tema.
A palestra na sede da OAB tinha como expectativa um público amplo de advogados e
advogadas, profissionais indispensáveis à administração da justiça. No entanto, mesmo
com ampla divulgação entre a classe, a adesão foi relativamente baixa (em torno de 20
pessoas). A falta de interesse no tema pode demonstrar, entre outras questões, a dificuldade
que tais profissionais têm em trabalhar direitos humanos – algo que para muitos, de forma
equivocada, pode ser considerado abstrato e longe dos interesses do cotidiano profissional.
Já a palestra ministrada na sede central da UFSM tinha por objetivo atingir professores/
as da educação básica e ativistas. O público também foi relativamente baixo para o espe-
rado (em torno de 30 pessoas). A equipe do GIDH teve dificuldades de estabelecer uma
parceria mais próxima com os sindicatos dos professores, apesar dos contatos por e-mail,

349
telefone e presencialmente, empreendidos pelas bolsistas com a secretaria dos sindicatos.
Avaliamos que, para conseguir uma participação mais efetiva dos professores da educa-
ção básica em futuras ações, será necessário um contato mais direto com as lideranças
sindicais; bem como uma parceria com a Coordenadoria Regional de Educação e/ou a
Secretaria Municipal de Educação para que a atividade pudesse ser computada na carga
horária; ou, ainda, um convênio diretamente com alguma escola para que os professores
não precisassem se deslocar. O GIDH pensa em retomar essa ação de formação de profes-
sores de forma mais direta, na volta do ensino presencial pós-pandemia.
Tendo em vista que atingimos um público menor que o esperado com as palestras, bem
como, que havíamos construído, de forma conjunta, um bom material informativo para
as palestras, surgiu a ideia de transformarmos o conteúdo em uma cartilha informativa,
de distribuição on line (e, se houver recursos, algumas impressas). A Cartilha Gênero, Raça
e Direitos Humanos: Mitos versus Verdades foi elaborada pela Equipe do GIDH, em parceria
com a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de
Santa Maria/RS, como forma de divulgação científica e de fortalecimento da luta femi-
nista, antirracista e por direitos humanos. Contrapondo mitos com informações com base
científica, escrita de forma simples e didática, a Cartilha busca encontrar públicos diversos,
como estudantes de Ensino Médio, professores da Educação Básica, movimentos sociais e
a comunidade em geral. Entre os principais temas trabalhados na Cartilha estão os direitos
humanos, o feminismo, a diversidade sexual, o antirracismo e o antifascismo.

FESTIVAL DA DIVERSIDADE

Uma das ações de maior destaque do GIDH, em 2019, foi o Festival da Diversidade,
realizado na Escola de Samba Mocidade Independente das Dores, no dia 25 de agosto.
O evento contou com um público de cerca de 300 pessoas (e cerca de 700 confirmadas
no evento no Facebook), assim como, envolveu mais de quinze entidades parceiras54. Foi
um importante momento de trocas, reflexões, lazer e resistência através da cultura. Entre
as atrações, destacamos: (a) Almoço - feijoada ofertada pela equipe parceira da Escola
de Samba Mocidade, com a renda destinada para os custos do festival e para a própria
comunidade; (b) Gastronomia - comidas vendidas para apoio do comércio gastronômico
local; (c) Artesanato - fortalecimento de empreendedores sociais que atuam na cidade; (d)
Rodas de conversa - atividades realizadas por Coletivos e Associações parceiras, sobre te-
54 Agradecemos a todas as entidades e coletivos que colaboraram com o Festival da Diversidade, princi-
palmente, a Sociedade Cultural Mocidade Independente das Dores (Santa Maria), nas pessoas das Diretora
e Vice-Presidente Silvia Leme, Diretora de Comunicação Micaela Severo e Presidente de honra Seu Romeu,
entidade que abrigou e construiu o Festival conosco. Agradecemos, também: Observatório de Direitos Hu-
manos da UFSM, Migraidh - Cátedra Sérgio Vieira de Mello UFSM, Comissão de Direitos Humanos OAB
Santa Maria, Comissão Especial da Diversidade Sexual e Gênero – OAB Subseção Santa Maria, Dandaras
– Coletivo de mulheres negras, Coletivo Voe, Coletivo GRITA, GEEUM@ Grupo de estudos e extensão
Universidade das mulheres, Coletivo SOU SUS, Umbigo de Bruxa, Grupo de Mulheres Amor, Movimento
e Dança, Ateliê Colaborativo, Ateliê Cosmonauta, Nandara Antunes – Nandi e Ninas Lima; Arsele Recicla-
gem, La Mordida – Gastronomia Uruguaia, Fuki Beer.

350
mas como Racismo, Direitos LGBTQi+, Feminismo, Migrações; (e) Oficinas – oficina de
dança, oficina de bambolê, oficina sobre saúde coletiva e temáticas afins; (f) Apresentações
artísticas - shows musicais, teatrais e coreográficos da cena artística independente de Santa
Maria; (g) Brechó – com livros, roupas e acessórios provenientes de doações, vendidos para
a auxiliar nos custos do Festival.
O evento começou próximo ao meio-dia e terminou a noite. Ao longo das atividades
pudemos observar a complexidade e as tensões em volta da Interseccionalidade, no sentido
de que os desdobramentos raciais, de classe e de gênero se mostraram evidentes no Festi-
val em sua totalidade, desde a construção até o fechamento. Assim, refletimos o quanto
a extensão universitária, ancorada em Metodologias Feministas, Antirracistas, da Pesqui-
sa-ação e do Conhecimento Situado, possibilitou uma visão plena da relação dialética e
intrínseca entre a teoria e a prática, através, principalmente, da diversidade de grupos so-
ciais reunidos que ocuparam um espaço proposto para o bem-estar e acolhimento de todas,
todes e todos. Apesar dos princípios da Educação Popular conduzirem o Programa GIDH,
há equívocos na caminhada, próprios do redirecionamento de um espaço de saber privile-
giado (universidade) para espaços não formais de educação (comunidade). Ainda assim,
consideramos que o I Festival da Diversidade foi um sucesso de integração e aprendizado,
e ouvimos muitos elogios do público e dos coletivos que colaboraram. Os erros serviram
para o aprimoramento das próximas edições e para o fortalecimento dos sujeitos que com-
põem e interagem com o GIDH, bem como, das diversas lutas sociais que os envolvem.

GIDH DIVULGA

Em 2020, o Brasil e o mundo foram altamente impactados pela pandemia de COVID-19.


Em função disso, para manter a segurança da comunidade acadêmica tanto quanto possível,
as atividades das universidades passaram a ocorrer de forma remota. O GIDH se reformulou
e construiu duas ações: o GIDH Divulga e o Curso de Extensão. O GIDH Divulga foi um
quadro semanal nas redes sociais (principalmente no Instagram, mas também no Facebook e
no Twitter) onde era feita a divulgação de um tema de pesquisa das integrantes do GIDH,
com a definição simples de alguns conceitos e a exemplificação com alguns dados. Os temas
abordados foram: Preconceito contra Brasileiras em Portugal; Impedimento de Mulheres no
Futebol; Genocídio da População Negra; Políticas Públicas – Brasil Sem Homofobia; Des-
colonização Epistêmica e Estudos sobre Branquitude; Agenda Mulheres, Paz e Segurança
Internacional; Feminismo e Democracia - Eleições Municipais 2020; Via Campesina e Mu-
lheres na Luta pela terra; Cultura do Estupro. O Público atingido foi, aproximadamente, 300
contas alcançadas com cada publicação no Instagram e 130 no Facebook.

351
CURSO DE EXTENSÃO

O curso de Extensão Feminismo e Antirracismo: descontruindo mitos foi uma ativi-


dade online e gratuita que ocorreu nos meses de outubro e novembro de 2020. Ao todo,
foram cinco encontros correspondendo a doze horas de formação. O tema das aulas foram:
Feminismo – princípios, pautas e teorias; Raça, racismo e luta antirracista; Identidades e
Direitos LGBTQI+; Interseccionalidade de Raça, Classe e Gênero; e, por fim, Pelo Direito
de Sonhar: vozes da resistência.
O curso recebeu mais de trezentas inscrições e cerca de setecentas visualizações em
seu canal de vídeo no Youtube. Os/as professores/as convidados/as atuam em diferentes
universidades, a nível nacional e internacional, e eram acompanhados por debatedoras
organizadas na militância de movimentos sociais e/ou na pesquisa acadêmica brasileira.
Tanto os/as participantes do curso, convidades e ouvintes, advinham de diferentes inser-
ções no âmbito estudantil e profissional, como também em outros aspectos de condição
de vida em geral, a saber: geracional, econômico, racial, de gênero, sexualidade, entre
outros. Novamente, a Interseccionalidade é materializada nestes encontros, mesmo que
virtualmente. Destacamos que houve bastante interação através do chat, durante as aulas
do curso. Abaixo elencamos alguns comentários, realizados pelos estudantes através dos
formulários de participação:

Achei bem esclarecedora e com ótimos convidados! Gostaria, por fim, de parabe-
nizar todas as pessoas que fizeram parte tanto da organização, quanto os convi-
dados que me fez refletir sobre diversos temas e além do meu papel na sociedade.
Obrigada GIDH!

Uma aula muito plural, mostrando realidades em diferentes áreas. O curso foi
maravilhoso, temos tanto a para aprofundar o debate e ir além, na prática com
ações antirracistas e feministas. Parabéns equipe GIDH, agora aguardamos a se-
gunda parte do curso!!!

Assim como todas as aulas do curso, essa está sendo mais uma aula incrível onde
estou podendo aprender muito, todas as falas são extremamente enriquecedoras e
com certeza vou sentir falta de toda terça-feira estar aprendendo sobre esses temas.

Foi fantástico fazer parte desse curso! Espero que futuramente vocês façam ou-
tros. Sempre quis participar dos cursos do GIDH e por questões de tempo não era
possível, nesse modelo consegui participar das aulas. Fiquei maravilhada com a
qualidade dos debates e apresentações. Parabéns!

Como o Curso todo, foi uma aula muito potente! Ótimo ouvir diferentes vozes
com abordagens diferentes e ainda assim as problemáticas em comum. A capa-
cidade dos palestrantes em casar suas falas e fazer links sobre o assunto tornou o
diálogo ainda melhor.

Gostaria de parabenizar todos os envolvidos na organização do curso e os pales-


trantes pela experiência enriquecedora. Sou muito grata pela oportunidade de
ter participado, muito obrigada!! Com o curso aprendi a olhar a nossa sociedade

352
por outros ângulos e visões, a reconhecer as relações de poder que a estrutura,
assim como a posição que diferentes grupos assumem nela (por privilégio ou
imposição). Acima de tudo, aprendi que apesar dos obstáculos é possível sim
lutar contra as desigualdades e assimetrias que nos cercam e constituem a nossa
realidade. É preciso criar espaços de aprendizado cada vez maiores para que as
pessoas possam ouvir e aprender com as diferentes vivencias e necessidades para
mudar nossa realidade. Mais uma vez, obrigada!! (GIDH, 2020).

Este retorno positivo do público reforça a importância da extensão universitária, bem


como, a relevância dos temas Gênero, Raça e Direitos Humanos. Para nós, ouvir nosso
público-alvo é perceber que estamos caminhando, ensinando e aprendendo, realizando
ações e transformações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo sobre o GIDH permitiu sintetizar teorias e práticas do nosso Programa
de Extensão, construído em diálogo com inúmeros coletivos, associações e estudantes de
graduação e pós-graduação, desde 2019. É uma honra para o GIDH compor um livro jun-
tamente com tantas ações de extensão vinculadas ao Observatório de Direitos Humanos
da Pró-Reitoria de Extensão da UFSM. A Extensão permite que a Universidade se torne
mais próxima à comunidade, contribuindo de diferentes maneiras para a transformação
social. Sempre aliada ao Ensino e a Pesquisa, a Extensão completa o tão importante tripé
das universidades públicas brasileiras.
Nós do GIDH, buscamos sempre aliar a teoria e a prática, em constante dialética e
transformação. Nossos debates teóricos abordam os Direitos Humanos, a categoria Gê-
nero e a Teoria da Interseccionalidade de Raça, Classe e Gênero, buscando as contribui-
ções de cada perspectiva, bem como, suas críticas e lacunas. Nossas ações envolveram
Workshops de Pesquisa, palestras informativas, cartilha informativa, divulgação científica
nas redes sociais, curso de Extensão online e festival cultural e formativo. Esperamos se-
guir contribuindo para a divulgação científica desses temas tão importantes, como Gênero,
Raça e Direitos Humanos, bem como, para as lutas por equidade e igualdade, contra todas
as formas de preconceito, discriminação, exploração e opressão. Nossa atuação seguirá
no mundo virtual e, assim que possível, nos encontramos com olho no olho e abraços,
lutando, como nos lembra Rosa Luxemburgo: “Por um mundo onde sejamos socialmente
iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.

353
REFERÊNCIAS

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355
OFICINAS DE TEATRO PARA PESSOAS
COM E SEM DEFICIÊNCIA:
PRÁTICAS E PROCEDIMENTOS DE
CRIAÇÃO EM BUSCA DA AMPLIAÇÃO DA
ACESSIBILIDADE ÀS ARTES CÊNICAS

Marcia Berselli
Vanessa Corso Bressan
Flavia Grützmacher dos Santos
A atividade aqui compartilhada está vinculada ao Programa de Extensão Práticas Cê-
nicas, Escola e Acessibilidade55, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Teatro Flexível:
práticas cênicas e acessibilidade (CNPq) junto à UFSM. Trata-se do Projeto Oficinas de
Teatro para pessoas com e sem deficiência, que teve edições nos anos 2017, 2018, 2019,
2020 e está em fase de início das práticas no ano corrente, 2021. Desde o ano de 2019 o
projeto conta com apoio do ODH – PRE/UFSM56.
Neste texto, após contextualizar as oficinas e o público participante das atividades, apre-
sentamos as principais estratégias de criação postas em operação nos encontros, enfatizan-
do o procedimento criativo-pedagógico das Funções flutuantes. Tal procedimento conso-
lidou-se como uma prática de base do grupo nos anos de 2017 a 2019, influenciando na
ampliação de foco das propostas, considerando não só a atuação, mas também as demais
funções da cena como possibilidades de exercício nas oficinas de teatro.
Ao ampliar as experimentações com a função design de cena, a partir das experimenta-
ções práticas, observamos aspectos relativos à mobilização dos diferentes canais sensoriais,
em um indicativo sobre a ampliação da acessibilidade. Assim, o texto enfatiza tal função,
identificando aspectos relacionados à sua presença em processos de criação e sua influ-
ência em questões relativas ao acesso, visto que se investe na pluralidade de percepções
advindas da provocação de atravessamentos entre os diferentes canais sensoriais.

OFICINAS DE TEATRO PARA GRUPO HÍBRIDO: CHAVES DE ENTENDIMENTO

As oficinas são abertas a pessoas com e sem deficiência, com e sem repertório prévio no
campo das artes cênicas e com e sem o objetivo de se profissionalizar na área. No primei-
ro ano, as deficiências abrangidas pelo projeto eram as físicas e sensoriais, o que mudou
no segundo ano, quando o projeto passou a ser para pessoas com deficiência física e, a
partir do terceiro ano, houve a abertura para pessoas com deficiências em geral, buscando
ampliar o acesso a um público maior e desvincular a prática de um diagnóstico específico
relacionado a uma deficiência particular.
Esse nos parece ser um aspecto decisivo para que a leitura dos sujeitos parta da inter-re-
lação do coletivo e não de uma série de sintomas a serem observados no objeto, conside-
rando que há um processo de objetificação do corpo a partir do momento que sua subjeti-
vidade é anulada. Nas oficinas, buscamos estabelecer um ambiente em que as limitações
e as possibilidades de cada participante são compreendidas no convívio com a alteridade,
reconhecidas individualmente e entendidas pelo grupo da seguinte maneira:

Inicialmente, ou fora do contexto dessa pesquisa, as limitações corporais de uma


pessoa podem ser vistas como um impedimento, uma condição que restringe o

55 Desde o seu início o Programa de Extensão Práticas Cênicas, Escola e Acessibilidade vem contando
com apoio do Fundo de Incentivo à Extensão (FIEX-CAL/PRE/UFSM).
56 Já atuaram como bolsistas do projeto os e as estudantes Amanda Pedrotti, Filipe Cardoso, Pedro Mar-
tins e Vanessa C. Bressan.

357
indivíduo a possibilidades reduzidas, mas aqui escolhe-se olhá-las por outra pers-
pectiva, aquela que vê outras alternativas e está decidida a descobrir a liberdade
dentro das limitações corporais de cada um. [...] Entendemos também a noção
de limitação de uma maneira expandida. Os limites não estão restritos às partici-
pantes com deficiência física, facilmente identificados pelo olhar, mas concernem
a todas as participantes de diferentes maneiras, e não só fisicamente (BRESSAN,
BERSELLI, 2019, p. 5).

O aspecto do convívio é um fato a ser destacado, porque informa sobre nossa com-
preensão da deficiência, que se dá a partir do modelo social. Esse modelo a identifica
como algo extrínseco à pessoa, estabelecendo-se pela interação com o ambiente através de
aspectos arquitetônicos, atitudinais, comunicacionais, metodológicos etc. Diferentemente
do indicado pelo modelo médico, que atribui a deficiência a aspectos intrínsecos à pessoa.
Podemos pensar nos seguintes exemplos para destacar nossa perspectiva: um usuário de
cadeira de rodas é impedido de acessar um prédio pela presença de escadas e a ausência
de uma rampa (aspecto arquitetônico); uma pessoa surda que tem como primeira língua a
Libras é impedida de acompanhar adequadamente uma aula pela ausência de intérprete de
Libras (aspecto comunicacional e metodológico); uma pessoa cega é impedida de usufruir
de espaços ou de informações de modo autônomo quando as sinalizações se encontram
majoritariamente apresentadas em formato visual sem a correspondente sonora ou tátil
(aspecto comunicacional e arquitetônico).
Nas situações apontadas, a deficiência passa a ser entendida como um problema, por-
que as condições do ambiente não asseguram aos indivíduos sua plena participação. Mas
o problema está nos ambientes e recursos que são limitadores, e não na pessoa. Os pre-
conceitos, estigmas e estereótipos que vinculam deficiência à incapacidade são os pontos
principais a serem revistos quando se pensa a acessibilidade atitudinal. Esse tipo de aces-
sibilidade trata da postura dos sujeitos em relação à pessoa com deficiência, que ainda é
comumente impedida de realizar atividades por ser desacreditada e deslegitimada em suas
potencialidades. Na prática proposta, buscamos fomentar outra atitude das participantes,
ao compreender as diferenças sem inferiorizá-las.

[...] no contexto em que esta pesquisa está sendo desenvolvida, privilegiando o co-
letivo em detrimento ao individual, as diferenças de corpos, habilidades e reper-
tórios dos participantes são compreendidas enquanto argumento potente para
a criação. A pesquisa, assim, destaca o aperfeiçoamento coletivo de saberes, a
partilha de vivências e a disseminação de práticas teatrais que entendam o indiví-
duo, com todas suas particularidades, enquanto agente mobilizador do processo
de criação (BRESSAN; BERSELLI, 2019, p. 14, grifos nossos).

Alinhando a perspectiva do leitor e da leitora à do coletivo em relação aos aspectos


anteriores, é importante pontuar outros hibridismos do grupo. Em cada ano, contamos
com a presença de colaboradoras57, vinculadas à área das artes cênicas e outras sem vín-

57 Utilizaremos o artigo feminino, pois, predominantemente, o grupo participante foi formado por
mulheres cis e trans.

358
culo anterior à participação nas oficinas, advindas de diferentes áreas do conhecimento. O
mesmo caráter é compreendido quanto aos objetivos das participantes, sendo que algumas
estavam mais interessadas no processo formativo e no desenvolvimento de competências e
habilidades no campo e outras estavam mais interessadas no espaço de lazer estabelecido.
Durante seus três primeiros anos, a oficina contou com menos de dez participantes,
fato que se deve a diferentes fatores, um deles sendo a delimitação desse número pela
proponente. Para ela era importante tentar minimizar a disparidade entre a quantidade de
pessoas com e sem deficiência e também a quantidade de pessoas dos cursos da área teatral
e de outras áreas, pois faria pouco sentido existir um total de vinte participantes e apenas
uma delas ser de outra área, que não o teatro, ou ter deficiência e ainda nos considerarmos
um grupo de caráter híbrido. O número de pessoas aumentaria na medida em que interes-
sadas com deficiência e/ou interessadas de fora da área teatral estivessem participando. O
maior desafio, nesse sentido, foi efetivamente chegar a nosso público: as pessoas com defi-
ciência. O que poderíamos considerar ser um desinteresse dessas pessoas, todavia, nesses
contextos, a disposição é o fator de menor destaque. Como já destacamos, existem diversas
barreiras sociais que dificultam ou impedem alguns grupos de exercerem seus interesses,
sejam eles profissionais ou de outra ordem.

O acesso à informação e ao conhecimento específico em Dança é outro fator


importante a se pensar a respeito da formação e profissionalização do artista com
deficiência. Nesse aspecto, deparamo-nos com a dificuldade de circulação de in-
formações sobre as diversas técnicas e abordagens estéticas nos mais variados
níveis, tanto em se tratando da educação quanto da dimensão artística. Se esse
tipo de informação é difícil chegar às pessoas de um modo geral, no caso das pes-
soas com deficiência se torna ainda mais complicado, devido aos muros que se
impõem à frente da comunicação, negando-lhes a possibilidade de acessar novos
conhecimentos, via formação, para assim deslocarem-se para espaços de autono-
mia (CARMO, 2020, p. 50).

Como expõe o artista e professor Edu Ó (nome artístico de Carmo), a informação ainda
é recurso escasso que, muitas vezes, não chega a todas as pessoas de modo equalizado. Isso
certamente influencia em quem vai poder acessar determinadas práticas. Atentas a essa
problemática, no decorrer dos anos o coletivo passou por adaptações em busca de estraté-
gias que pudessem colaborar para o aumento do número de participantes.
Inicialmente, as oficinas foram desenvolvidas no Campus da UFSM, sendo ofertadas
no prédio do Centro de Artes e Letras (nos anos de 2017 a 2019), na sequência passando
para o Centro de Educação (2019) e, por fim, assumindo a modalidade remota através do
ambiente virtual durante a pandemia de COVID-19 (2020 e 2021). De 2017 até o final do
primeiro semestre de 2019, as oficinas aconteceram durante o período da noite, em dife-
rentes dias da semana, enquanto, no segundo semestre de 2019, elas foram dinamizadas no
turno da manhã, retornando para o período noturno em 2020 e 2021.
Nos primeiros anos, a facilitadora dos encontros foi a professora que coordenava o pro-
jeto. Já a partir do segundo ano, alguns encontros foram conduzidos pelas demais partici-

359
pantes da oficina que, com o suporte da coordenadora e o repertório de jogos e exercícios
desenvolvidos pelo coletivo, estavam aptas a promover a prática. A partir de 2019 passou
a se investir mais na flutuação de pessoas facilitando o encontro, o que levou às oficinas
serem assumidas por estudantes do Curso de Licenciatura em Teatro a partir de 2020.
No momento atual, a organização e o planejamento dos encontros em sua completu-
de são responsabilidades da bolsista do projeto, que conta com as avaliações e sugestões
da professora coordenadora. O grupo começou a delinear, assim, um de seus pontos de
grande importância, o da formação de facilitadoras e facilitadores – futuras professoras e
professores de Teatro, sensibilizadas e sensibilizados pela questão da acessibilidade de suas
práticas. Essa sensibilização começa a ser pensada a partir do momento em que as práticas
de base consideram as alteridades, por isso uma série de estratégias criativas que promo-
vem o trabalho em ciclos e a horizontalidade nas relações entre os sujeitos são utilizadas
na oficina. Apresentaremos as práticas no próximo tópico do texto.
No ano de 2020, a fim de buscar outro modo de organização e estruturação da oficina para
estimular um número maior de participantes, e impulsionadas pela necessidade de platafor-
mas remotas, passamos a flexibilizar a exigência anterior de participação continuada (fator
presente entre 2017-2019). Nesse novo modo de operar, as pessoas poderiam se inscrever na
oficina em qualquer período, recebendo antecipadamente informações sobre o encontro da
semana. A cada encontro, esperávamos as pessoas que estivessem disponíveis, em um modo
amplo de compreensão de disponibilidade que inclui aspectos físicos, emocionais e sociais.
Essa flutuação promoveu uma maior circulação de pessoas pela oficina, algumas se mantive-
ram até o encerramento das práticas do ano, outras partilharam sua presença em encontros
pontuais. Isso não tornou nossos vínculos mais frágeis, ao contrário, estimulou uma reversão
do que compreendemos por comprometimento e favoreceu nossa sensibilidade à amplitude
de questões que atravessam cada pessoa para que ela possa/queira/consiga estar na oficina.
Aqui, há uma relação com o pensamento da artista e ativista da deficiência Petra Kuppers,
que ao relatar sobre os modos de operação de seu grupo, destaca que

[…] abordamos os ensaios como oficinas independentes, em vez de partes de uma


progressão natural rumo a um desempenho ensaiado. Isso permite um envolvi-
mento muito mais livre e um maior número de pessoas, formando comunidades
ao invés de conjuntos (KUPPERS, 2011, p. 123, tradução nossa).

Kuppers (2011) revela um aspecto decisivo ao trabalho: a liberdade como fundamento


da comunidade estabelecida nas oficinas. Essa mobilização do modo de operar nas oficinas
já se mostrou efetiva no ano de 2020, com uma maior circulação de pessoas pela prática.

360
CONTEXTUALIZANDO AS PRÁTICAS DESENVOLVIDAS: UMA OFICINA DE
TEATRO COM FOCO EM QUATRO FUNÇÕES DA CENA

Formamos um coletivo que se identifica com as relações indisciplinares (PASQUIER;


SCHREIBER, 2007), o que indica à inexistência de uma figura centralizadora de poder e o
entendimento de que as práticas cênicas devem valorizar as características individuais dos
e das participantes, sem a intenção de engavetar suas particularidades. Isso reverbera no
arranjo da oficina, que adota o modo colaborativo (ARAÚJO, 2009; BARONE, 2011) de
organização das pessoas no processo de criação. Esse modo informa sobre diferentes espe-
cialidades no processo criativo – a partir de funções definidas, como atuação, encenação,
expectação, sem, no entanto, estabelecer uma hierarquia entre elas.
Operamos colaborativamente com o apoio de estratégias de criação que viabilizam a
participação horizontal de cada indivíduo nas práticas pela maneira que se estruturam,
sendo elas, especialmente: Cycles Repère (BEAUCHAMP; LARRUE, 1990; SOLDE-
VILA, 1989), Funções Flutuantes (BERSELLI; SOLDERA, 2014), Scores (WORTH;
POYNOR, 2004), Tuning Scores (NELSON, 2006) e Contato improvisação (PAXTON,
1997). No ano de 2020, passamos a investir de modo mais efetivo nas abordagens so-
máticas do movimento (FELDENKRAIS, 1977; BOLSANELLO, 2005), que já esta-
vam presentes anteriormente, porém sem ser o centro das práticas. Em seguida, iremos
abordar de modo mais detalhado a estratégia das Funções Flutuantes, a qual possibili-
tou o desenvolvimento do exercício em funções variadas da cena, fator que mobilizou
as participantes da oficina a se exercitarem na encenação e no design de cena para além
do tradicional par das funções da atuação-expectação.
A prática das Funções Flutuantes foi desenvolvida pelas artistas e pesquisadoras Berselli
e Soldera (2014), sendo utilizada no momento composicional do processo criativo para
promover o fluxo e a fluidez das ocupações de quatro funções primordiais da cena que
são demarcadas espacialmente, sendo: a atuação, a encenação, a expectação e o design de
cena. Essas quatro funções primordiais são compreendidas a partir de Dubatti (2008) que
indica: “Chamamos convívio ou acontecimento convivial à reunião, de corpo presente, de
artistas, técnicos e espectadores em uma encruzilhada territorial cronotrópica (unidade de
tempo e espaço) cotidiana” (DUBATTI, 2008, p. 28, tradução nossa).

361
Figura 1 – Demarcação espacial das funções da cena58

Fonte: Acervo do projeto (2020).

Como exposto na figura acima, esse é um dos padrões de demarcação utilizados nas ofi-
cinas (as linhas são traçadas com fita crepe). Ao início da proposta todas as pessoas presen-
tes no processo, aqui nomeadas como jogadoras, são convidadas a ocupar uma das funções
delimitadas, da forma em que cada uma delas tenha uma agente para operá-la. Ao longo da
experimentação, pelo jogo que se estabelece entre as funções, é promovido um diálogo entre
linguagens (verbais e não verbais, espaciais, corporais, visuais e sonoras) que alimentam a com-
posição e geram o desejo das participantes para transitar entre uma função e outra, conforme
sua intenção de ação, por exemplo: uma participante que inicia a experimentação no espaço da
expectação e decide operar um equipamento de luz deve informar59 sua trajetória e se deslocar
até a função de designer (local em que os equipamentos técnicos estão concentrados), ou seja,
“Flor da expectação para o design de cena”. A participante tem autonomia para decidir em que
função atuar e por quanto tempo, sem existir a necessidade de passar pelas quatro funções,
podendo ocupar quantas vezes julgar necessário cada uma delas.

58 Descrição da imagem: a imagem apresenta um quadrado com fundo branco e linhas marcando as bordas
em cor preta. Dentro do quadrado temos divisões em linhas também de cor preta. Na metade superior, um
retângulo com a indicação ao centro ATUAÇÃO, em caixa alta e cor preta. Abaixo, na metade inferior do
quadrado, outros três quadrados, um ao lado do outro. Dentro do primeiro quadrado está escrito DESIGN
DE CENA, no segundo quadrado está escrito ENCENAÇÃO e no terceiro EXPECTAÇÃO, todas as escri-
tas em caixa alta e em cor preta. Na borda inferior do quadrado maior, no canto esquerdo, há a indicação
SALA, em caixa alta e cor preta.
59 Estamos tratando especificamente das oficinas em que contamos com público formado por pessoas com
e sem deficiência física, assim, a informação aqui foi apresentada de modo verbal pelas participantes. No
entanto, vale destacar que em um contexto de grupo formado também por pessoas surdas ou com deficiência
auditiva, tal informação seria sinalizada utilizando a Língua Brasileira de Sinais.

362
Sabendo que é recomendada a ocupação de cada função por ao menos uma jogadora,
cada vez que um deslocamento é realizado, outros, consequentemente, também precisam
ser feitos gerando constantes adaptações e o engajamento das agentes que têm por objetivo
alimentar e promover o jogo. Dessa forma, interesses e inclinações de cada participante
vão sendo descobertos e destacados, ao mesmo tempo em que habilidades e competências
de atuar em cada função são desenvolvidas.
Essa estratégia gera uma flexibilização das hierarquias entre as participantes e suas po-
sições, mesmo aquela que tem um domínio refinado e segurança para agir na atuação, por
exemplo, estará constantemente migrando para a expectação, a encenação e o design de
cena, gerando uma alternância dos poderes. Ao mesmo tempo, há uma revisão de enten-
dimentos e expectativas sobre as demandas de cada função.
As práticas extensionistas estão vinculadas ao projeto de pesquisa Procedimentos e práti-
cas de colaboração artística horizontal: corpos, repertórios e saberes60, promovendo assim uma pro-
fícua interação entre ensino, pesquisa e extensão. Desde 2017, o grupo vem estudando as
estratégias utilizadas no contexto das oficinas, as características de processos colaborativos
e a postura das participantes nessas práticas, destacando o viés da acessibilidade a partir
de procedimentos metodológicos e de atitudes que promovem a acessibilidade. Nesse sen-
tido, a cada ano privilegiamos umas das funções nos estudos teóricos, tratando da atuação
(BRESSAN; BERSELLI, 2019b), encenação (TIEPPO; BERSELLI, 2019; BERSELLI;
TIEPPO, 2020) e design de cena (BRESSAN; BERSELLI, 2019a).
De modo a contextualizar à leitora e ao leitor o que desenvolvemos nas oficinas em
relação às funções do processo, privilegiamos as abordagens relativas aos experimentos no
design de cena. Levando em vista que essa é uma função que tradicionalmente não é posta
em prática em oficinas de teatro, pensamos ser pertinente contextualizar sua presença no
trabalho do Grupo Teatro Flexível e indicar os pontos de análise que informam sobre a
ampliação de questões relativas ao acesso à cena, a partir da possibilidade de atuação en-
quanto designers no processo criativo.

DESIGN DE CENA

Entre as figuras presentes no processo de criação cênica, a designer de cena pode


ser uma promotora do jogo a partir de estímulos centrados em diversos canais sen-
soriais. Para além de indicações verbais, a agente dessa função pode provocar a cena
e suas jogadoras pela utilização de equipamentos técnicos – geradores de imagens e
sons, por exemplo –, promovendo respostas e interações a partir do encontro entre
estímulo e jogadora.

60 O projeto de pesquisa já contou com apoio do Programa de Incentivo à Pesquisa ao Servidor Mestre
(PEIPSM/PRPGP/UFSM), do Fundo de Incentivo à Pesquisa (FIPE-ARD/CAL/PRPGP/UFSM), do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq), do Programa Institucional de Bol-
sas de Iniciação Científica – Ações Afirmativas (PIBIC-AF/CNPq) e do Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação Científica (PROBIC/FAPERGS).

363
No campo dos estudos cênicos existem diversas discussões sobre a terminologia ade-
quada para se falar da função responsável pelos aspectos visuais da cena. Hoje em dia,
nas oficinas, optamos por utilizar Design de cena/Designer de cena, diferentemente de como
tratamos no início das práticas: a função da técnica/a técnica. Essa mudança ocorreu, princi-
palmente, por querermos desvincular a ideia de algo ou alguém subordinado a outro no pro-
cesso e destacar a autonomia criativa de cada um dos componentes. Por considerarmos que

[a] cultura moderna, burguesa, fez uma separação brusca entre o mundo das artes
e o mundo da técnica e das máquinas, de modo que a cultura se dividiu em dois
ramos estranhos entre si: por um lado o ramo científico, quantificável, “duro”, e por
outro o ramo estético, qualificador, “brando”. Essa separação desastrosa começou
a se tornar insustentável no final do século XIX. A palavra design entrou nessa
brecha como uma espécie de ponte entre esses dois mundos. E isso foi possível por-
que essa palavra exprime a conexão interna entre técnica e arte. E por isso design
significa aproximadamente aquele lugar em que arte e técnica (e, consequentemen-
te, pensamentos valorativo e científico) caminham juntas, com pesos equivalentes,
tornando possível uma nova forma de cultura (FLUSSER, 2007, p. 183-84).

Percebemos que optar pela alteração da terminologia que utilizamos por algum tempo
estava de acordo com nossos objetivos, compreendendo que há técnica implícita em qual-
quer trabalho desenvolvido pelas funções da cena. Ainda, destacamos que não utilizamos
a tradução para a língua portuguesa – desenho de cena – pela fronteira linguística da defi-
nição da palavra no inglês, que tem um sentido mais ampliado do que em nossa língua e
por ser um termo integrado à nossa cultura.
Tendo entendido a utilização da terminologia, a designer de cena, no contexto das ofi-
cinas tem a função de operar técnica e criativamente os equipamentos disponíveis em seu
espaço para composição, sendo: notebook, filmadora, projetor de vídeo e imagem, aparelho
de som e alguns recursos alternativos de iluminação. Para além do objetivo compartilhado
entre todas as agentes, de alimentar e promover o jogo, destacamos ainda algumas deman-
das compartilhadas entre designer e encenadora, a partir do estudo desenvolvido em 2018,
por Tieppo e Berselli, que apresenta seis funções e competências da encenadora na oficina.
Das seis, quatro são consideradas responsabilidade de ambas as funções, quais sejam:

2. Nutrir. Impulsionar e contribuir para a criação, ao alimentar o jogo através de


estímulos e propostas, não apenas convergentes ao que a atriz está propondo, mas
também divergentes, criando obstáculos (contrastes e conflitos) às atrizes; [...]
4. Observar. Estar atento às possibilidades e potencialidades que emergem da
cena e do jogo;
5. Mobilizar: Deslocar o centro de gravidade do jogo, atualizando o conflito;
6. Sugerir. Propor relação com os outros elementos que podem contribuir para a
cena (TIEPPO; BERSELLI, 2020, p. 455-456).

Todavia, mesmo existindo esse compartilhamento de responsabilidades, os meios e as


maneiras utilizados por cada função são distintos. De modo geral, nas oficinas os estímu-
los vindos da encenação são indicações verbais durante a composição, proposições de jo-
gos ou experimentações específicas anteriores à criação, enquanto os estímulos da designer

364
aparecem materializados na cena pela utilização dos recursos disponíveis, que atingem as
participantes por diversos canais sensoriais.
Quando a designer alimenta o jogo, ela pode estar projetando um vídeo no espaço da
atuação e as atrizes podem ou não o perceber, interagir direta ou indiretamente com ele
ou negar sua presença. A qualidade de sua observação está diretamente vinculada àquilo
que ela pode promover utilizando de seus equipamentos, esses são os parâmetros para as
possibilidades de interação e potencialidades do jogo que ela procura. Quando uma ação
advinda do design de cena ganha destaque na composição, rapidamente o centro de gravi-
dade do jogo é deslocado, estimulando constantemente a relação entre os elementos cênicos
e as atrizes, sendo a função que tem maior destaque em sugerir esse tipo de interações, mes-
mo que sua intervenção não tenha o intuito de promover uma relação com a ação da atriz.

SENSORIALIDADE NOS ESTÍMULOS ADVINDOS


DA AÇÃO DA DESIGNER DE CENA

Na prática das oficinas, as colaboradoras pensam proposições a partir das perspectivas


que assumem antes de ou ao ocupar as funções da cena, sem necessariamente focar no
resultado pelo viés da união com os outros elementos, ou da interação com outras agentes.
Isso estabelece um espaço de exploração com foco no que a participante quer experimentar
no momento, destaca sua autonomia e reforça a presença de diversas inteligências criativas
que compartilham o processo, sem a necessidade de que uma esteja subordinada a outra.
Nesse aspecto, podemos fazer uma aproximação com o olhar de Robert Wilson em sua
proposição de trabalho. No contexto proposto pelo encenador norte-americano,

[o]s designers começam sua pesquisa durante o trabalho de mesa. [...] As vá-
rias colaborações são eventualmente colocadas juntas coerentemente. Entretanto,
Wilson trata os elementos em questão como entidades separadas desde o princí-
pio para que, nas suas próprias palavras, “eles não arrisquem ilustrar um ao outro
mutuamente, não são dependentes um do outro” (Grillet and Wilson, 1992: 13).
Ao respeitar sua autonomia, Wilson convém a eles igual importância (SHEVT-
SOVA, 2007, p. 47/8, tradução nossa).

Como já comentado, os estímulos não partem somente da encenação, o que promove


uma dinâmica específica de jogo nas funções flutuantes, sendo que esses estímulos, justa-
mente por contarmos com a função do design, ganham características sonoras e visuais que
passam a ser apreendidas por todas as participantes em jogo.
O investimento no estudo dos fazeres da designer de cena nos levou à percepção de
que estimular a sensorialidade das criadoras – a partir das indicações e do lançamento
de proposições como alimento criativo para o jogo cênico – poderia ampliar a acessibi-
lidade de nossas práticas. Tomemos como exemplo um dos momentos composicionais
do primeiro semestre de 2019, que posteriormente nomeamos como Super Mario, para
destacar os fatores da acessibilidade.

365
O start para dar início ao jogo era simples: uma das participantes escolhe um dos obje-
tos destinado às experimentações, entra no espaço da atuação e se relaciona com ele. Uma
das jogadoras, então, escolheu um mouse de computador antigo. Ao entrar no espaço da
atuação conectou o fio à parede e iniciou uma sequência de vários cliques nos botões do
mouse, que imprimiam um som específico. A partir da observação dessa ação, a designer
de cena do momento projetou o jogo Super Mario na quina da parede, e a atriz então pas-
sou a se relacionar com o vídeo e a reagir às movimentações de Mario no jogo, às quedas,
às coletas de cogumelos, aos esmagamentos de Goombas e às passagens de fase. A ence-
nadora, então, indicou à atriz: agora, paralelamente, você está em uma chamada de voz
online com um amigo, vocês conversam sobre seu dia. A atriz manteve-se em contato com
a projeção, mesclando as reações ao jogo com a conversa e respostas ao “amigo”; ela falou,
sem preocupação alguma, sobre assuntos sérios, como a morte do tio enquanto comemora
ou reclama sobre o seu desenvolvimento no game.
A ação da designer esteve relacionada a selecionar o vídeo e a projetá-lo em determinado
local do espaço de atuação (utilizando a frontalidade já proposta pela atriz). O estímulo aqui
foi concretizado espacialmente por meio de imagem e som, utilizando os canais auditivo
e visual para então gerar uma resposta. A partir das indicações apresentadas no exemplo,
identificamos que a jogadora que ocupava o espaço da atuação precisou aceitar, negar ou
manipular o estímulo da encenadora. No caso, realizou a indicação ouvida em concordân-
cia. Por outro lado, o estímulo da designer de cena foi promovido pelo vídeo, sem informar a
relação a ser estabelecida, traçando um caminho ampliado se comparado ao da encenação.
Nesse sentido, podemos inferir que a jogadora reconhece os estímulos presentes no am-
biente (a partir de sua materialização quando da ação da designer) e responde a eles com
sua ação imediata. Essa ação imediata parte de seu repertório prévio – não só relativo ao
campo do teatro, mas de suas experiências no mundo – em relação com os recursos dispo-
níveis no ambiente. Se há implicação direta do ambiente na proposição de criação, pode-
mos nos aproximar do conceito de affordance. De acordo com Gibson (1986), affordance
são as possibilidades que um ambiente ou objeto oferece a um agente particular. Para Gib-
son, aquilo que percebemos em um ambiente são suas affordances, e não suas dimensões ou
propriedades. Assim, na relação pessoa-ambiente a pessoa percebe possibilidades de ação.
Se é nessa interação que emergem possibilidades de ação, entende-se que cada pessoa, a
partir de diferentes referências e repertórios, poderá perceber possibilidades múltiplas e,
então, agir sobre ou em relação ao ambiente de modos diversos.
É possível identificar que os estímulos advindos da função design de cena criam uma
rede de comunicações entre os canais verbal, visual e auditivo que desencadeia no sistema
de percepção sensorial de cada pessoa maiores afetos, gerando, consequentemente, um
espaço de jogo fértil e flexível que germina respostas singulares em conexão com a sensi-
bilidade de cada participante. O enfoque nas experiências perceptivas, a partir da afetação
desses estímulos às participantes, possibilita amplas relações das jogadoras com os recur-
sos disponíveis para ação, uma vez que processos associativos levam a uma atualização de
seus repertórios, evidenciando uma abertura maior de sua agência.

366
De certo modo, o que observamos indica a noção explorada por Lisa Nelson de que
compomos a percepção através da ação, a partir de uma proposição de que o que vemos
está relacionado ao como vemos. Ou seja, nossa leitura e percepção do que está no exterior
passa pelo modo como nos relacionamos com esses elementos externos. Nelson (2004)
afirma que o corpo é um instrumento de afinação composto por diferentes antenas, que
seriam nossos sentidos. Nascemos e aprendemos a focar os sentidos para manutenção da
vida para nossa sobrevivência. A cultura em que crescemos vai também moldar nossos
sentidos, com filtros modelando formas como devemos perceber e, então, agir no mundo.

Estamos constantemente recompondo nosso corpo e nossa atenção em resposta


ao meio ambiente, às coisas conhecidas e desconhecidas. Essa dança interior é
uma improvisação mais básica - ler e responder aos roteiros do ambiente. É o
diálogo do nosso corpo com a nossa experiência (NELSON, 2004, s/p.).

Ao investir nas respostas ao jogo pelos diversos canais sensoriais, abrindo mão de dire-
cionamentos puramente verbais, passamos a observar a potencialidade de abertura dos estí-
mulos para a criação que, sem uma definição prévia da ação a ser realizada, convidaram as
participantes a responder ao jogo a partir de sua relação primeira com o estímulo. Essa pode
parecer uma consideração simplista, contudo, ao atentarmos aos modos diversos de relação
das pessoas com o mundo, por meio de percepções particulares relativas aos seus modos de
existência, especialmente se tratando de um grupo híbrido, essa nos pareceu uma possibili-
dade bastante reveladora, indicando modos mais acessíveis de criação pelo reconhecimento
das particularidades sensoriais e pelo investimento nessas particularidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relevância deste estudo se centra na ampliação do acesso às práticas cênicas, estimu-
lando a participação de pessoas nas diversas funções da cena e deslocando a centralidade
da atuação. Tendo como característica central do grupo a presença de pessoas com e sem
deficiência, a interação e o convívio são chaves para compreender os objetivos do grupo
em relação à circulação de saberes e à valorização dos diferentes repertórios.
Nas oficinas, compreendemos que cada função da cena tem suas próprias demandas a
serem executadas de maneiras e modos particulares a fim de promover o jogo por diversos
canais sensoriais. Especificamente, a atenção à pluralidade de estímulos às jogadoras – re-
conhecida a partir do investimento na função design de cena – pode ser um caminho interes-
sante para artistas em formação, reconhecendo os modos de percepção sensorial que geram
materiais criativos diversos de acordo com o repertório de cada colaboradora e colaborador.
O design de cena pode potencializar o processo criativo através de estímulos próprios do
seu fazer, relacionado aos equipamentos e elementos manipulados, bem como na articula-
ção desses com o jogo em curso no tempo presente da sala de ensaio. O fato de o/a designer
esteja presente no processo de criação, em espaço aberto à livre exploração, assim como
os e as demais agentes criativas pode estimular a cena e seus (suas) agentes, em contexto

367
de retroalimentação próprio do jogo – no agir e reagir, respondendo às ações previamente
executadas sem uma lógica previamente definida. Investir em aspectos formativos do e da
designer de cena, em uma abordagem acessível, resultará na ação de usar as percepções
sensoriais particulares das pessoas que compõem processos criativos co-criando ambientes
mais convidativos e generosos ao coletivo.
Ampliando o debate sobre formação, tendo em vista o coletivo híbrido que é público
da prática aqui analisada, é enfatizada a importância e a necessidade de serem realizados
estudos no campo das artes cênicas que abordem a encenação, design de cena, atuação
e expectação pela perspectiva da acessibilidade. Faz-se necessário pensar a participação
igualitária das pessoas nos processos de criação para além do exercício na função da atua-
ção, mas ampliando e difundindo as possibilidades nas demais áreas criativas. Como des-
tacado neste estudo, o grupo participante das oficinas era formado por pessoas com e sem
deficiência física, tendo a verbalização como forma de comunicação, assim como o uso de
imagens projetadas sem descrição. Em termos de análise de interações entre as diferentes
funções pelos canais sensoriais, seria pertinente a existência de estudos que investigassem
grupos com outras características, ampliando as compreensões sobre processos acessíveis
com atenção à ocupação das diferentes funções da cena por artistas com deficiência.
Durante os anos de realização das oficinas aqui apresentadas, várias participantes con-
tribuíram para as práticas a partir de seus interesses diversos, qualificando o coletivo en-
quanto grupo híbrido em interesses e características corporais, sociais e culturais diversas.
A escassez de espaços que promovem o convívio entre pessoas com e sem deficiência e
grupos com características distintas por meio de atividades artísticas é um fator que pode
reforçar a exclusão social de pessoas que não estejam enquadradas em um padrão histori-
camente imposto pela sociedade hegemônica. Além disso, a interação nos parece uma cha-
ve para a revisão de questões relativas à deficiência em nossa sociedade. A acessibilidade
como direito só se efetiva por meio da alteridade, uma mudança de lentes que reposiciona
as ideias previamente concebidas a respeito da separação eu/outro. Nesse sentido, encami-
nhamos a finalização do texto com o reconhecimento da importância da relação dialógica
entre universidade e comunidade, reforçando que o caminho para a construção da equida-
de social passa pelo reconhecimento da diversidade e da pluralidade de saberes. Assim, é
preciso agradecer ao ODH da UFSM que viabiliza a continuidade do projeto apresentado
neste capítulo, assim como contribui para a ampliação do debate sobre o tema dos direitos
humanos no ambiente universitário e fora dele a partir de ações extensionistas articuladas
com a comunidade de Santa Maria.

368
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ners, 2004.

371
UM MEMORIAL EM HOMENAGEM ÀS VÍTIMAS
DA TRAGÉDIA DA BOATE KISS

Virgínia Vecchioli
Laura Lucca
INTRODUÇĀO

Este capítulo busca compartilhar as atividades desenvolvidas no marco do projeto de


extensão Arte e Memória em Santa Maria: em prol da criação de um memorial em homenagem às
vítimas da tragédia da Boate Kiss, sediado na Pró-reitora de Extensão e no ODH/UFSM no
ano de 2019. O projeto almejou propor diversas estratégias que possibilitem preservar as
memórias da tragédia que provocou a morte das 242 pessoas na madrugada do dia 27 de
janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria, RS.
Com esse objetivo, foram desenvolvidas várias atividades que visaram produzir reper-
tórios de intervenção voltados especificamente para a construção de uma narrativa que
pudesse comunicar a tragédia ao público visitante do futuro memorial às vítimas que será
construído no centro da cidade. Esse memorial é visto como um espaço de homenagem
permanente às vítimas, de acolhimento de sobreviventes e familiares, assim como um local
de referência sobre a tragédia para às futuras gerações. As intervenções realizadas pela
equipe do projeto – que serão descritas neste capítulo – tiveram como propósito colaborar
para criar uma narrativa pública que sirva para transmitir os fatos que envolvem dor, so-
frimento, falta de justiça e descaso, além de transmitir a importância de realizar ações de
prevenção e preservação da vida.
O projeto surgiu de uma demanda apresentada pela própria Associação dos Familiares
de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) à professora Virginia
Vecchioli da UFSM. Em resposta, foi articulada uma equipe envolvendo especialistas do
Programa Memória Social e Patrimônio da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL),
coordenado por Virginia Vecchioli, Juliane Serres e Maria Leticia Mazzucchi. A equipe
integrou bolsistas e estudantes voluntários de ambas as instituições61 e um comité cientí-
fico internacional de assessoria integrado por especialistas de renome como: Joel Candau
(França), Luís Carlos Toro Tamayo (Colômbia), Ruben Chababo, (Argentina), o Núcleo
de Estudios sobre Memoria (Argentina) e os colegas do Brasil Marcio Seligmann-Silva
(Campinas), Francisco Cougo (UFSM) o jornalista Marcelo Canellas e Felipe Zene Motta,
o arquiteto responsável pelo desenho do proposta arquitetônica do futuro memorial. Des-
sarte, o projeto contemplou os eixos do tripé Ensino-Pesquisa-Extensão através de ações
desenvolvidas por uma equipe de profissionais da UFSM, em parceria com a própria AVT-
SM, outras universidades e institutos de pesquisa do Brasil e do exterior que seguem orien-
tando o desenvolvimento do espaço museológico do futuro memorial.
O objetivo deste capítulo é produzir um texto compreensível sobre patrimônio e direitos
humanos, em busca de transcender as fronteiras dos textos eruditos produzidos para um
número restrito de leitores com o intuito de colocar as ações desenvolvidas nas universi-
dades públicas em diálogo com a sociedade. Partindo da ideia que a memória precisa ser
ativada para ela existir, consideramos que a Universidade tem muito para contribuir nesse
caminho. Interessa-nos, portanto, disponibilizar essas experiências para que outros possam
61 Danilo Rangel (Museologia – UFPEL), Rafael Nascimento (Computação – UFPEL), Leonardo Mon-
teiro Alves (Museologia – UFPEL) e Lucas Back de Araújo e Laura Perin Lucca (Ciências Sociais – UFSM).

373
replicá-las, contribuindo com novas iniciativas e com esforços coletivos de preservar a me-
mória da tragédia62 para as futuras gerações.

OS PERIGOS DO ESQUECIMENTO

Tragédias envolvendo a perda de grande número de vidas geram fortes sentimentos


de comunhão com os sobreviventes e de empatia com a dor dos familiares que sofre-
ram perdas irreparáveis. Esses sentimentos mobilizam as comunidades que, como re-
sultado, mantêm viva a lembrança do acontecido no espaço público. Muitas das vezes,
elas suscitam também fortes sentimentos de indignação moral perante o absurdo da
perda de vidas, o descaso dos poderes públicos e o privilégio do lucro em relação ao
bem-estar de toda uma comunidade.
Porém, passado um tempo, a vida regressa as suas rotinas e a memória do acontecido vai
se perdendo aos poucos. A tragédia corre o risco de acabar sendo esquecida pelos contem-
porâneos e, inclusive, ela pode acabar sendo desconhecida pelas novas gerações. Muitas
das vezes, os diretamente afetados pela tragédia estão apinhados de demandas e precisam
dar prioridade à luta por justiça para evitar que o crime se mantenha impune. Outras for-
ças, que não o simples passar do tempo, contribuem também para produzir esquecimento.
O silêncio pode acabar se impondo como forma de desviar as responsabilidades daqueles
que encontram na lembrança da tragédia uma face na qual não querem se reconhecer.
Como consequência, o trabalho em prol da memória vai perdendo fôlego, e o esque-
cimento pode acabar se impondo na vida coletiva, acarretando, por sua vez, uma grande
incompreensão da situação de todos aqueles que estão diretamente atravessados pelo luto
e pelo sofrimento. Esse olvidar cria a oportunidade para o exercício de uma nova forma de
violência, desta vez simbólica, para com as vítimas e seus familiares. Vítimas, sobreviven-
tes e familiares das vítimas precisam levar em frente uma outra luta contra a incompreen-
são, o preconceito, o silêncio e, quando não, a impunidade. O risco da tragédia se repetir
é o maior perigo. Essa ameaça explica a necessidade de preservar a memória da tragédia
e reverter o sofrimento em um conjunto de aprendizados para o futuro de forma que a
tragédia não se repita, levando a diante ações de preservação da vida que reconhecem o
valor pleno da vida de cada um de nós, assim como reconhecem o valor do movimento dos
familiares que se mobilizam exigindo justiça e colocando em pauta questões caras à defesa
dos direitos humanos e para a nossa vida coletiva.
As feridas da violência simbólica empregada pelo Estado na demora em levar justiça às
vítimas, e a da sociedade mais ampla, na forma de desmobilização e dessensibilização com
62 Expressamos nosso agradecimento à UFSM, em especial ao Pró-Reitor de Extensão Flavi Ferreira Lis-
boa, ao Observatório de Direitos Humanos, coordenado por Victor De Carli Lopes e ao diretor do CCSH
Mauri Leodir Löbler pelo apoio permanente a esta iniciativa, possibilitando contar com recursos e bolsistas.
Agradecemos também a todos os colegas que se somaram ao projeto, em especial à Leticia Mazzucchi e
Juliane Serres. E por último, nosso maior agradecimento é para os familiares da AVTSM que nos acolheram
com grande disponibilidade e generosidade, nos permitindo conhecer e compartilhar a coragem e inteireza
para levar a frente suas lutas.

374
a tragédia da Boate Kiss se fizeram presentes ao longo dos diversos espaços de conversa
sobre o memorial. É doloroso perceber que, para quem não revive a dor da perda cotidia-
namente, esse tema vai perdendo importância, como fica claro na fala da mãe de uma das
vítimas da tragédia da Boate Kiss:

no início as pessoas se envolveram muito e depois começou a haver o afastamen-


to, eu acho que isso é assim uma coisa natural da passagem do tempo, é uma coisa
natural da vida. As pessoas não ficam estagnadas, elas vão continuar caminhan-
do, então esses afastamentos se dão por motivo que a pessoa talvez até gostaria
de ficar sempre ali, mas não dá, não dá, a vida te empurra, tu tens tuas coisas pra
fazer, outras… enfim, é a própria caminhada do mundo.63

Certamente, a memória permanece entre os familiares e amigos diretos que vivem em


contato com o luto. No marco deste projeto e a partir do convívio com muitos dos familia-
res, aprendemos que eles revivem as lembranças dos entes queridos cotidianamente através
de formas múltiplas: “Final de semana achei um vídeo dela, da formatura do segundo grau
[...] nem me lembrava desse vídeo, foi a coisa mais maravilhosa do mundo tu ouvir ela
falando…ouvir a voz dela”64.
Por sua vez, o trabalho da AVTSM em prol da memória é incessante. A Associação
contribui em forma decisiva à manutenção ativa da memória no espaço público, seja por
meio de encontros semanais na Tenda da Vigília, localizada na frente da praça central,
seja através das cerimônias de homenagem às vítimas a cada 27 de janeiro, aniversário da
tragédia. Essas ações funcionam também como ocasiões para reivindicar a luta pela justiça
e o fim da impunidade.
Contudo, o processo de gradual esquecimento se verifica aqui, como em outras
tragédias. As exigências do trabalho da memória ultrapassam as forças das famílias
e da própria Associação. Como a experiência histórica mostra, a importância de um
acontecimento na sua época e nas décadas seguintes não oferece garantia nenhuma de
que esse evento seja lembrado no futuro. Perante essas condições que contribuem para
o desvanecer, faz-se evidente a necessidade de garantir um trabalho continuado no
tempo em prol da memória – não ocasional – que consiga ter um suporte institucional,
indo além da vocação e da boa vontade de um grupo de pessoas, de forma a envolver
também as futuras gerações no dever de memória.

A MEMÓRIA PÚBLICA COMO COMPROMISSO COLETIVO

Levando em consideração os aspectos mencionados nas seções anteriores, é preciso res-


saltar que a memória precisa ser ativada para acontecer. Como assinala o historiador Pierre
Nora, “os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não existe memória

63 Familiar 1. Fala produzida no contexto do projeto, em 2019. Neste capítulo os familiares participantes
dos espaços de conversas fechadas do projeto serão mantidos no anonimato para fins de preservação.
64 Familiar 2. Fala produzida no contexto do projeto, em 2019.

375
espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar cele-
brações [...], porque essas operações não são naturais” (NORA, 1993. p. 13. grifos nossos).
A memória vence o esquecimento quando se articula em um trabalho coletivo. Quan-
do uma multiplicidade de atores e instituições da comunidade assume isso como uma
causa comum e traduzem a lembrança, a dor e o sofrimento em ações concretas, ou seja,
quando eles se tornam “empreendedores de memória” (POLLACK, 2006). Ela não surge
de maneira espontânea, pois a memória pública é um produto do esforço coletivo, um
esforço orientado ao dever de resgatar a dignidade das vítimas que tiveram as suas vidas e
seus sonhos ceifados, bem como um esforço orientado ao dever de tentar reparar a dor de
sobreviventes e familiares, resgatando seu sofrimento para que eles adquiram um lugar de
reconhecimento na vida pública.
Os familiares que compõem a AVTSM sabem do caráter coletivo da memória e do seu
valor ao futuro. Nas suas falas, é tocante a preocupação em evitar que outras famílias pas-
sem pela dor que eles experienciam até hoje:

Acontece todo dia, a minha preocupação e do pessoal aqui é evitar novas tragé-
dias. Que a justiça seja feita pelos nossos filhos e evitar que volte acontecer. Sei
que 100% é impossível, mas a gente tem que lutar pra que não aconteça de novo.
E a gente está fazendo65.

Os familiares compreendem a necessidade de contar suas histórias para que a memória


da tragédia não se perca. Assumem para si o dever de memória, o compromisso não só de
manter viva a memória de seus entes queridos perdidos na tragédia, mas de evitar que ou-
tras pessoas passem por isso. Na perspectiva das mães e dos pais da Associação, a memória
claramente se associa à possibilidade de construir um futuro melhor: “...se precisam de
ações preventivas, porque esses que não participaram de nada [da tragédia] saberem, poxa
temos filhos, netos e se não prestar atenção nisso pode acontecer de novo”66. A memória
pública precisa de uma ação decidida e mantida ao longo do tempo para que ela alcance
a comunidade toda. Ao encontro disso, o projeto visou a dar os primeiros passos nessa
direção, atingindo resultados importantes que serão detalhados aqui.

MEMORIAIS: CONJURO CONTRA O ESQUECIMENTO

Os memoriais se apresentam como espaços que permitem reviver e reconstruir o


passado para que esse seja lembrado no presente e no futuro (HALBWACHS, 1990).
São espaços fundamentais para evitar seu apagamento, já que a memória coletiva pre-
cisa, para perdurar, de um ponto de apoio permanente no espaço físico. Seria impos-
sível resguardar o passado, se ele não se conservasse no meio material que nos cerca,
naqueles espaços que ocupamos ou pelos quais passamos pela frente nos nossos des-
locamentos cotidianos. Como nos ensina Halbwachs (1990), os espaços associados ao
65 Familiar 3. Fala produzida no contexto do projeto, em 2019.
66 Familiar 4. Fala produzida no contexto do projeto, em 2019.

376
sofrimento devem virar lugares de memória para que a lembrança da tragédia possa se
fixar (HALBWACHS, 1990).
O memorial físico ressignifica esse espaço de tragédia, ou seja, atribui ao espaço físico
novas possibilidades, a saber: conta sobre a dor dos sobreviventes, familiares e das vítimas,
manifesta o luto e adverte sobre a necessidade de preservar a vida por meio de mudanças
sociais e ações coletivas. A memória edificada é uma forma de reparação simbólica não
só da violência sofrida na tragédia, mas das violências subsequentes, os silenciamentos, os
apagamentos, os estigmas e as perseguições. Ela possibilita que os pais, familiares e amigos
tenham a chance de contar a todos a tragédia, as histórias dos seus entes queridos e de tudo
que aconteceu desde então. A lembrança dessas dores compartilhadas coletivamente serve
como medida de reparação simbólica aos atingidos diretamente por uma tragédia e atua
também como conscientização e lembrete constante para que tragédias como essa não se
repitam (SCHMITZ, 2021). A partir dos memoriais, a experiência vivida por um segmento
da sociedade passa a ser compartilhada por uma maioria que não viveu diretamente essa
experiência (NORA, 1993).
Os passados de sofrimento acabam deixando marcas no espaço urbano que podem ser
incorporadas ao trabalho coletivo de memória (VECCHIOLI, 2014). Os lugares associa-
dos a tragédias podem virar lugares de homenagem, lugares de congregação da comuni-
dade, lugares onde se ensine a preservar a vida. O que requer um trabalho coletivo entre
familiares, sobreviventes e profissionais de diversas áreas como arquitetos, especialistas em
patrimônio, cientistas sociais, comunicadores, artistas, etc.

UM MEMORIAL ÀS VÍTIMAS DA BOATE KISS

A iniciativa do memorial surgiu da AVTSM que, em parceria com o Instituto de Arqui-


tetos do Brasil (IAB-RS), da Prefeitura de Santa Maria e do Escritório das Nações Unidas
de Serviços para Projetos (UNOPS - ONU) realizou um concurso nacional de projetos em
2018. O concurso foi levado à frente através de um grande esforço coletivo de arrecadação
de recursos. O projeto do arquiteto Felipe Zena Motta foi escolhido como ganhador. De
acordo com os desejos da AVTSM, a estrutura da boate será totalmente destruída – uma
vez que os responsáveis pela tragédia sejam julgados – para abrigar o futuro memorial, no
mesmo local onde aconteceu a tragédia, na Rua das Andradas n.º 1925. Por sua vez, a As-
sociação conseguiu a transferência do prédio da boate para a prefeitura, garantindo, assim,
a disponibilidade do sítio para o futuro memorial físico.

377
Figura 1 – Proposta vencedora do Concurso. Arq. Felipe Zena Motta

Fonte: Divulgação/IAB RS (2018).

Contando já com o prédio e com o projeto arquitetônico definido, era preciso definir
outro conjunto de questões tão importantes quanto as anteriores: Como narrar a tragédia
para o visitante do futuro memorial? Através de quais recursos? Como utilizar os diferentes
espaços disponíveis dentro do memorial físico? Que tipo de atividades ele poderia sediar?
Como atingir distintos tipos de público? Qual seria o modelo de gestão? Como transcender
as fronteiras físicas da cidade e atingir um público mais amplo? Qual seria a participação
dos familiares das vítimas e dos sobreviventes neste processo de definições? Como tradu-
zir a tragédia em uma oportunidade de produzir consciência a respeito do valor da vida?
Como poderiam ser aproveitadas as experiências prévias de patrimonialização do sofri-
mento desenvolvidas em outros países?67
As ações desenvolvidas ao longo do projeto visam dar resposta a esse conjunto amplo
de desafios, descritos a seguir:

OS ESPAÇOS: SUAS FUNCIONALIDADES

A partir do plano arquitetônico desenvolvido por Felipe Zene Mota, a equipe do proje-
to se dedicou ao planejamento dos usos dos espaços e ao desenvolvimento das propostas
vinculadas a eles. A maior parte da superfície será ocupada por um jardim central. A su-
perfície coberta é de 450 m2, como se observa no plano (Figura 2):

67 Vale a pena clarificar a confusão que existe sobre o termo memorial. No uso cotidiano, às vezes tende-
-se a equiparar memorial com o espaço arquitetônico. O espaço arquitetônico é fundamental ao ponto que
existe uma disciplina dentro do urbanismo voltada para a reflexão e produção de espaços memoriais. Porém,
um memorial não é apenas o espaço físico, mas o conjunto de ações pedagógicas, culturais, museológicas e
políticas levadas à frente ao longo do tempo dentro desse espaço físico.

378
Figura 2 – Planejamento dos usos dos espaços

Fonte: Divulgação/IAB RS (2018).

Nesse espaço, foram distribuídas as salas das exposições permanentes e temporárias,


a estrutura administrativa de gestão do memorial, a área de reserva técnica, o centro de
documentação, o espaço de usos múltiplos, um espaço de convivência, os banheiros e o
espaço de almoxarifado.

AS EXPECTATIVAS: ESTRATÉGIAS COLABORATIVAS

Ainda que a criação do memorial seja uma condição necessária para a preservação da
memória em longo prazo, os memoriais per se não garantem que essa memória perdure no
sentimento das pessoas da comunidade. Se eles não têm significação para a vida da co-
munidade onde se inserem, se não engajar a comunidade toda, são esvaziados de sentido
e acabam sendo abandonados, podendo – paradoxalmente – se tornar lugares de esqueci-
mento. A condição para a memória fazer seu trabalho é que o memorial seja um lugar sig-
nificativo para toda a comunidade, tanto para os familiares das vítimas e os sobreviventes,
quanto para as futuras gerações. Em uma perspectiva ampla, esses sítios devem apresentar
significativa importância para o presente e o futuro da comunidade local, mas também da
humanidade como um todo (UNESCO, 2003).
Por esse motivo, uma das primeiras tarefas que a equipe do projeto assumiu foi conhecer
as expectativas em torno do futuro memorial de maneira a poder elaborar uma narrativa
que apresente os fatos da tragédia que seja próxima dos sentimentos das famílias das víti-
mas como da comunidade mais ampla. Precisávamos dessas informações para poder trans-
formar as expectativas em uma missão para o memorial, em uma narrativa e em diversas
estratégias expográficas.
No entendimento da equipe do projeto, a interação com as famílias, os sobreviventes e
a comunidade como um todo é uma das pedras fundadoras já que oferece estrutura e em-

379
basamento ao projeto. Com esse intuito abrimos o projeto para que ele contemplasse esses
anseios e expectativas, abarcando distintas estratégias colaborativas: oficinas de trabalho
junto aos familiares das vítimas, elaboração de um questionário anônimo para os fami-
liares e realização de uma roda de conversa para que os familiares de vítimas pudessem
dialogar com especialistas em memória e patrimônio.
Para conhecer as expectativas da comunidade não diretamente envolvida na tragédia,
aplicamos um questionário online anônimo e um outro questionário anônimo e presencial
que foi ministrado entre estudantes de diversos cursos da UFSM. Esses questionários per-
mitiram conhecer variáveis importantes a serem consideradas no desenho das estratégias
museográficas. Os resultados de todas essas atividades foram utilizados como subsídio no
desenho das bases conceituais do memorial.
O questionário online e anônimo foi lançado no aniversário do 27 de janeiro de 2019
durante os atos de homenagem às vítimas que tiveram lugar na praça Saldanha Marinho
no centro da cidade.

Figura 3 – Apresentação da proposta do projeto. Virgínia Vecchioli (2019)

Fonte: acervo pessoal.

Ao longo de três meses foram coletadas mais de 300 respostas (313). Entre os dados
coletados, destacam-se: 1) interesse em visitar o memorial e participar de atividades: a
maioria das pessoas tem interesse pelo memorial e visitaria mais de uma vez, totalizando
um 40,3% de interesse em visitar e, desse total, um 57,2% também tem interesse em partici-
par de atividades propostas pelo memorial. Uma minoria de pessoas se pronunciou a favor
de não visitar o memorial (2,6%) por motivos como não poder lidar com o luto, motivos
religiosos ou distância física com a cidade; 2) frequência de visitação: 48,5% afirmou que
visitaria mais de uma vez por ano, 13,4% afirmou que visitaria uma vez ao ano, 14,4%
afirmou que iria uma vez para conhecer e 18,7% não souberam responder; 3) conteúdos:
para a maioria das pessoas, a tragédia deve ser lembrada através dos nomes das vítimas
(prioridade alta, 246 respostas, equivalentes a 78,5%), seguido das lutas dos pais após a
tragédia (prioridade alta 212 equivalente a 67,7%) e das imagens dos jovens (prioridade
alta 191, equivalente a 61%). Esses três itens são os que têm maior representatividade. As
pessoas almejam como expectativa encontrar objetos que pertenciam às vítimas (28%). Se

380
existe consenso sobre esses pontos, isso muda em relação aos responsáveis pela tragédia:
enquanto 37% das respostas apontam a importância de ter referências a eles, 30% das
pessoas não concordam com essa proposta; 4) público alvo: os familiares das vítimas e so-
breviventes (69% das respostas); os estudantes de Ensino Médio e Ensino Superior (60%);
os trabalhadores responsáveis por áreas de segurança e saúde (57%); turistas que visitam
Santa Maria (48,5%) e vizinhos de Santa Maria (45,4%).

Gráfico 1 – Missão do memorial segundo respostas do questionário (2019)


Um instrumento Um espaço pedagó- Um instrumento Um espaço para
de homenagem às gico que ensine às explicativo da tra- sinalizar os respon-
vítimas, incluindo pessoas a importân- gédia.
os sobreviventes. cia de preservar a sáveis.
vida.

Fonte: autoras.

Esses resultados, expressados na tabela acima, concordam em um todo com a principal


manifestação dos familiares no sentido de evitar uma narrativa centrada na morte: “É
doloroso ver imagens da tragédia, era bom evitar essa sensação de morte, tragédia, deses-
trutura os pais”68. Quanto à definição da missão do futuro espaço de memória, a maioria
o vê enquanto “um instrumento de homenagem às vítimas, incluindo as sobreviventes”.
Grande parte entende que seria também “um espaço pedagógico que ensina às pessoas
a importância das ações de preservação da vida” e “um instrumento explicativo sobre a
tragédia.” Como foi salientado acima, o maior grau de discordância foi observado quando
questionados se o espaço seria também “um espaço que permita sinalizar os responsáveis
da tragédia e puni-los publicamente” (Questionário, 2019).
A partir dos dados dos questionários anônimos aplicados à comunidade em 2019, cria-
mos um espaço de interação entre a equipe do projeto, a AVTSM e os parceiros internos e
externos, com o objetivo de discutir esses resultados visando às possíveis estratégias para
as exposições do memorial. Por meio dessa análise, criamos uma base de dados que nos
permite compreender melhor de que forma a comunidade espera que a tragédia seja narra-
da no espaço público, qual seria a missão do memorial, e as possibilidades de contar com
o auxílio da comunidade na construção da proposta.

O DIÁLOGO:
ESTRATÉGIAS DE DIFUSÃO

Desde o início se desenvolveram propostas para criar e manter ativo o vínculo entre o
projeto e a comunidade. Com esse objetivo, foram implementadas estratégias de comu-
nicação com a participação da imprensa local e estadual, no Facebook, Instagram, etc. Foi

68 Familiar 5. Fala produzida no contexto do projeto, em 2019.

381
criado especialmente um site para dar visibilidade à iniciativa69, que foi apresentado ao
público no evento de aniversário dos seis anos da tragédia, em 27 de janeiro de 2019.
Ele possui uma galeria de fotos, informações sobre a tragédia e sobre a AVTSM, assim
como um link de novidades e notícias do projeto. O site permite difundir e comunicar
à população sobre a importância do memorial e criar vias para que as pessoas possam
fazer sugestões, comentários e críticas, sempre com o intuito de conseguir que a socie-
dade se aproprie do projeto.

Figura 4 – Site do memorial (2019)

Fonte: acervo pessoal.

A EQUIPE: A PARTICIPAÇÃO DOS FAMILIARES

Foi criada uma comissão de familiares para garantir a participação e o envolvimento


dos integrantes da AVTSM. No início era composta por quatro pessoas, mas foi ampliada
depois para acolher um número maior de familiares.

A EQUIPE: A REDE DE APOIO TÉCNICO

A iniciativa do memorial foi inscrita dentro de uma rede de apoio técnico criada es-
pecialmente para a AVTSM. Ela se compõe de pesquisadores e gestores de espaços de
memória que se disponibilizaram a prestar assessoria em todas as questões vinculadas ao
desenvolvimento do projeto museográfico, aos usos dos espaços e das ferramentas de ges-
tão do futuro memorial.

69 Disponível em: https://memorialkiss.org/. Também foi disponibilizado um e-mail para contato memo-
rialkissconsultas@gmail.com

382
O MEMORIAL VIRTUAL: ATRAVESSANDO FRONTEIRAS

Ainda que cientes da importância do memorial físico, criamos também um memorial


virtual. Hoje em dia, as tecnologias digitais permitem desenvolver estratégias inéditas que
permitem transcender as fronteiras da cidade e conseguir atingir um público maior, para
que a tragédia seja conhecida em detalhe no âmbito nacional e internacional. Essas tecno-
logias permitem aos interessados participar do trabalho da memória, como por exemplo,
aqueles familiares que se encontram residindo longe de Santa Maria. Ao mesmo tempo,
o memorial virtual contribui para reforçar a memória, ao reunir em um único espaço as
biografias das vítimas e uma infinidade de lembranças que estão espalhadas pela cidade
entre as recordações das famílias, amigos e vizinhos. O memorial virtual se torna, assim,
uma ferramenta chave de consolidação da memória coletiva:

A minha expectativa é que a gente receba coisas assim, fotos até mais assim,
como a minha filha que trabalhou aqui na universidade, poder manter contato
com os colegas. Daqui a pouco tem fotos maravilhosas de momentos bons que
eu nem sei que ela viveu. Eu acho que aquilo vai me fazer bem, pra nossa família
ver que enquanto ela esteve aqui ela socializou, ela teve momentos felizes, ela foi
participativa, ela foi feliz… pra mim esse memorial é o mais importante, acho que
vai permitir reviver momentos como esses70.

Para alimentar as histórias de vida, foi realizado um levantamento de seus dados em


todas as matérias aparecidas no Diário de Santa Maria e no jornal A Razão entre 2013 e
2019. Os familiares foram convocados a participar e realizamos oficinas para explicar o
funcionamento da ferramenta. No site, foram criadas distintas “abas” para compartilhar
detalhes das vidas pessoais, como recordações em forma de textos, fotografias, vídeos,
documentos e outras informações. O memorial oferece a possibilidade de inserir vídeos ou
áudios, assim como outros conteúdos no link: “Ajude-nos a melhorarmos a descrição da
Luana, enviando informações como...”. A seguir, apresenta-se um detalhe dos conteúdos
que podem ser compartilhados no memorial virtual através da aba: “Faça uma contribui-
ção para o perfil de Luana”.

Figura 5 – Aba de lembrança de Luana Ferreira – vítima da Boate Kiss (2019)

Fonte: Acervo pessoal.

70 Familiar 3. Fala produzida no contexto do projeto (2019).

383
Através do memorial virtual, os visitantes que percorrerem a “galeria de lembran-
ças” podem conhecer as histórias das vítimas, e os familiares, amigos ou conhecidos
podem compartilhar detalhes sobre a vida delas, a exemplo: qual era sua música favo-
rita? Como se conheceram?

Figura 6 – Aba de lembrança de Andrielle Silva – vítima da Boate Kiss (2019)

Fonte: Acervo pessoal.

No futuro, esse esforço vai poder ser integrado ao memorial físico. Os visitantes po-
derão ter acesso às biografias no espaço virtual através de Quick Response Code (QR code)
quando percorrerem o memorial da Rua das Andradas.

O MEMORIAL:
A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL

Levando em conta que existe uma ampla experiência internacional que pode ser uti-
lizada como inspiração na criação do repertório de ações em prol da memória, foram
realizados dois encontros internacionais, um intitulado Produzindo memória em Santa
Maria: A tragédia da Boate Kiss na UFSM e o outro no 9º Simpósio Internacional Memória
e Patrimônio, organizado na UFPEL. Essas atividades foram propostas como espaço
de interlocução sobre as caraterísticas que terá o futuro memorial com base em expe-
riências internacionais. Tratou-se de uma experiência inédita para Santa Maria e para
Pelotas, já que reuniu familiares e sobreviventes da tragédia com renomados especia-
listas nacionais e internacionais e com gestores de ambas as universidades, interagindo
e debatendo sobre o futuro memorial71.

71 As contribuições dos especialistas que participaram do evento na UFSM se encontram disponíveis


no seguinte link: https://farol.ufsm.br/transmissao/transmissao-do-evento-produzindo-memoria-em-santa-
-maria-a-tragedia-da-boate-kiss

384
Figura 7 – 9.º Simpósio Internacional Memória e Patrimônio organizado na
UFPEL (2019)

Fonte: Acervo pessoal.

Acompanhando o encontro na UFPEL, foi realizada também a mostra fotográfica Um


massacre anunciado, com fotografias do interior da boate de Dartanhan Baldez Figueiredo.
No marco do evento, foi formalizada a parceria entre a AVTSM e a UFSM a partir da as-
sinatura de um acordo de cooperação.

Figura 8 – Assinatura do acordo de cooperação entre AVTSM e UFSM. Na foto o


vice-reitor Luciano Schuch e Flávio da Silva, presidente da AVTSM (2019)

Fonte: acervo pessoal.

385
OS ARQUIVOS: UM CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E PESQUISA

Foram dados os primeiros passos para criar um centro de referência sobre a tragédia no
futuro memorial, que sirva para pesquisadores e visitantes. Começou-se a fazer um levan-
tamento do acervo documental existente (materiais fotográficos e fílmicos, arquivos paro-
dísticos, hospitalares, de associações, da administração do Estado ao nível local e estadual,
matérias judiciais, da própria AVTSM, dos familiares, dissertações e teses, etc.) disponível
sobre a tragédia. Com o propósito de ter um diagnóstico inicial a respeito desses acervos,
foram realizadas entrevistas com pessoas da comunidade. Foi desenhada uma ficha que
possibilite objetivar esses documentos. Trabalhou-se também no modelo de termo de ou-
torga do material, nas possibilidades de digitalização dos materiais e dos critérios de acesso
público e restrição dos documentos. Da mesma forma que o Memorial Virtual trata-se
de uma área que pode ser desenvolvida em grande parte sem necessidade de ter o espaço
arquitetônico construído, esse levantamento vai permitir identificar a necessidade de pro-
duzir novos registros e materiais, assim como servir de subsídio para as futuras tarefas do
projeto, como a definição das exposições temporárias (exemplo: entrevistas a familiares de
vítimas e sobreviventes, pertences das vítimas, etc.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das várias atividades aqui descritas foi possível desenvolver uma série de ini-
ciativas que resultaram de importância crítica na hora de produzir recomendações para o
futuro memorial às vítimas da tragédia de Santa Maria. Trata-se de um esforço coletivo
que priorizou as demandas da sociedade civil, possibilitando a realização de uma ação de
transferência de conhecimento para a sociedade como um todo, contribuindo para a pro-
dução de conhecimentos de impacto direto na sociedade.
Essas recomendações foram apresentadas a todos os colaboradores no contexto de uma
oficina de trabalho realizada pela equipe do projeto junto à AVTSM em novembro de
2019. O relatório do projeto foi disponibilizado para a AVTSM, contendo vários docu-
mentos técnicos, finalmente integrados nas bases prático-conceituais para a criação do
Memorial dedicado às Vítimas da Tragédia de Santa Maria.
Do ponto de vista da UFSM, o projeto também funcionou como um espaço de forma-
ção de recursos humanos, pois os estudantes receberam bolsas do Fundo de Incentivo de
Extensão (FIEX) e do ODH da UFSM, participaram de palestras e de eventos acadêmicos
internacionais e regionais, como a JAI, ao apresentarem alguns dos resultados do projeto.
Finalizado o projeto, ainda continuamos trabalhando e colaborando junto aos pais, aos
familiares, aos sobreviventes e à comunidade mais ampla na promoção do memorial às
vítimas a fim de traduzir as expectativas e os anseios em uma narrativa que seja capaz de
contar a tragédia e todos seus desdobramentos. Os resultados apresentados aqui são um
primeiro e importante passo nesse caminho.

386
REFERÊNCIAS

BASTIDE, R. “Mémoire collective et sociologie du bricolage”. L’Année sociologique.


1970. p. 65-108.

BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Memória e Sociedade. Tradução de Fernando To-


maz. Ed. DIFEL. 1989.

GOFFMAN, E. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Ed.


Guanabara koogan. Rio de Janeiro. 1988.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. Edições vértice. Editora revista dos tribunais


ltda. São Paulo. 1990.

NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São
Paulo: PUC-SP. N° 10. 1993.

POLLAK, M. “Memória, esquecimento, silêncio”. In: Estudos Históricos. Rio de Janei-


ro: v. 2, n. 3, 1989.

SCHMITZ, M. E. Produção do Espaço e Memória Coletiva na cidade de Santa Rosa/


RS. In: Memória Coletiva: entre lugares, conflitos e virtualidade. Porto Alegre/Pelotas.
2021.

UNESCO. Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Portal


IPHAN. Paris. 2003.

VECCHIOLI, V. “La monumentalización de la ciudad: los sitios de memoria como espa-


cios de intervención experta de los hacedores de ciudad”. In: Revista Estudios Sociales
Contemporáneos, n. 10. Editorial Universidad Nacional de Cuyo. FFyL. ISSN: 1850-
6747. 2014. p. 33-44.

VECCHIOLI, V. “Usos del documental interactivo y las tecnologías transmedia en la


recreación de los centros clandestinos de detención de la dictadura argentina”. In: An-
típoda - Revista de Antropología y Arqueología. Universidad de los Andes. Colombia.
33. 2018. p. 79-100.

VECCHIOLI, V. “Políticas de la Memoria y Formas de Clasificación Social. ¿Quiénes


son las ‘Víctimas del Terrorismo de Estado’ en la Argentina?”. In: GROPPO, B.; FLIER,
P. (comp). La Imposibilidad del Olvido. Recorridos de la Memoria en Argentina, Chile
y Uruguay. Ed. Al Margen. Argentina. La Plata. 2001.

387
AUTORES

Ademar Pozzatti
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) e do Programa de Pós-
-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM/Brasil), onde coordena o NPPDI - Núcleo de Pesquisa e Práticas em Di-
reito Internacional (CNPq/UFSM). Possui Mestrado e Doutorado pelo Programa de Pós-
-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/Brasil). Em
2020/2021foi professor visitante junto à École de Droit do Institut d´Études Politiques de
Paris (SciencesPo/França). E-mail: ademar.pozzatti@ufsm.br

Alexssandro de Freitas de Morais


Engenheiro Agrônomo na Empresa Buena Onda Agroflorestal. Formado em Agronomia
na UFSM.

Aline Cardoso Siqueira


Psicóloga pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Mestre e Doutora em Psi-
cologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Docente do Departamento de
Psicologia da UFSM, orientadora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e de
Ciências da Saúde da UFSM. E-mail: alinecsiq@ufsm.br

Aline de Souza Caramês


Graduação em Educação Física (UFSM), especialização em Educação Física Escolar
(UFSM), mestrado em educação física na linha de Estudos Socioculturais e Pedagógicos
da Educação Física (UFSM). Professora da rede estadual do Rio Grande do Sul.
E-mail: aline.geralda@gmail.com

Alice Lameira Farias


Técnica administrativa em educação da UFSM, atuando como secretária no Curso de
Ciências Contábeis, licenciada em Matemática (UFSM), mestre em Tecnologias Educa-
cionais em Rede (UFSM). É voluntária do Grupo de Apoio e Incentivo à Adoção de Santa
Maria.É coordenadora do projeto Esperançando/CCSH. E-mail: alicefarias@gmail.com

Aline Pacheco Posser


Acadêmica de Educação Física pela UFSM, Membro do NIEEMS.

Ana Luisa Soubhia


Professora adjunta da Universidade Federal de Santa Maria / Campus Cachoeira do Sul.
Graduada em Matemática e Pós-doutoradoem Engenharia Mecânica pela Universidade
Estadual de Campinas - Unicamp. E-mail: ana.soubhia@ufsm.br

388
Ana Luiza Lopes Koech
Advogada formada pela UFSM. Acadêmica de Licenciatura em Ciências Sociais na
UFSM e de Letras-Inglês na Universidade Estácio de Sá. Voluntária no Projeto Esperan-
çando. E-mail: anakoech@gmail.com

Andrea Nárriman Cezne


Doutora em Direito (UFRGS). Professora do Departamento de Direito (UFSM). Orienta-
dora do Projeto Direito e Gênero. E-mail: ancezne@gmail.com

Andreia Machado Oliveira


Professora associada do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-gradua-
ção em Artes Visuais. Pesquisadora PQ2 do CNPq e PQG da FAPERGS. Coordenadora
do LabInter/PPGART/UFSM e líder do gpc.InterArtec/CNPq. Doutora pela UFRGS –
Bolsista CNPq, com estágio doutoral na Université de Montreal/UdM - Canadá (2010)
e Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS (2006). Artista multimídia.
E-mail: andreiaoliveira.br@gmail.com

André Luis R. Soares


Professor Associado do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em His-
tória da Universidade Federal de Santa Maria. Responsável pelas disciplinas de Arqueologia,
Pré-história e História da América A. É professor visitante Erasmus Mundus, do programa
de Mestrado em Quaternário e Pré-História, do Instituto Politécnico de Tomar, Portugal.

André Morgental Weber


Psicólogo (UFN), Licenciado em Sociologia (UFSM), Pós Graduado em Clínica Psicanalí-
tica (ULBRA), Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). Integrante da Rede de Estudos e Pesquisas sobre Desenvol-
vimento na Infância, Adolescência e Juventude. E-mail: andremweber@hotmail.com

Amanda Schreiner Pereira


Doutora e Mestre em Distúrbios da Comunicação Humana pela UFSM. Especialização
em Atendimento Clínico com Ênfase em Psicanálise pela UFRGS. Especialista em Psico-
logia Clínica pela CFP. Psicanalista Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
(APPOA), Psicóloga do Curso de Psicologia da UFSM. Líder da Linha Psicanálise e Mi-
grações: efeitos clínico-políticos dos deslocamentos do Migraidh no CNPq.

Amara Lúcia Holanda Tavares Battistel


Terapeuta Ocupacional/UFPE. Mestre e Doutora em Educação/UFSM. Professora Ad-
junta do Departamento de Terapia Ocupacional/UFSM. Coordenadora do Projeto de Ex-
tensão “UFSM nas Ruas: mais portas, menos muros para catadores de materiais reciclá-
veis e pessoas em situação de rua”. E-mail: amarah@gmail.com

389
Anna Júlia Carlos da Silva
Graduada em Jornalismo – Bacharelado pela Universidade Federal de Santa Maria – cam-
pus Frederico Westphalen (UFSM/FW). E-mail: annajuliacarlos@outlook.com

Annie Caroline Ebani Jacques


Graduação em Serviço Social (UNIPAMPA), Especialização em Estudos de Gênero
(UFSM), Assistente Social no Centro de Referência Especializado da Assistência Social
de Santa Maria/RS. E-mail: anniejacques04@gmail.com

Bruna Bonadeo
Pós-Graduada em Liderança e Sustentabilidade pela Universidade Estadual do Rio Grande do
Sul – unidade de Frederico Westphalen (UERGS). Graduada em Jornalismo – Bacharelado
pela Universidade Federal de Santa Maria – campus Frederico Westphalen (UFSM/FW). Es-
tudante de Relações Públicas – Bacharelado na UFSM/FW. E-mail: bbbonadeo@gmail.com

Bruna de Vargas Bianchim


Doutoranda em Administração pelo Programa de Pós-Graduação em Administração na
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestra em Administração pela Universi-
dade Federal de santa Maria na linha de Gestão de Pessoas e comportamento organizacio-
nal, Bacharela em Administração pela Universidade Federal de Santa Maria.

Catiane da Silva Marques


Psicóloga pela Universidade Franciscana (UFN), mestranda no programa de pós gradua-
ção em Ciências da Saúde (UFSM). Psicóloga clínica, com atendimentos voltados para o
universo da parentalidade, público alvo mulheres, homens, casais e crianças.
E-mail: catianemarques.psi@gmail.com

César Teixeira Pacheco


Discente de Engenharia Elétrica, Universidade Federal de Santa Maria / Campus Cacho-
eira do Sul. E-mail: cesartp22@gmail.com

Crystian Danny da Silva Castro


ORCID: 0000-0002-4306-5758. Mestre em Artes Visuais – Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Licenciado em Dança
pela mesma instituição. Santa Maria, RS. E-mail: crystiandcastro@gmail.com

Daniela Porto Giacomelli


Psicóloga graduada pela UFSM. Atualmente é mestranda do Programa de Pós-graduação
em Psicologia da UFSM. E-mail: danocaa@gmail.com

390
Dione Raquel Zoch Viñas
Pedagoga/UFN, especialização em Psicopedagogia Clínica e Escolar / FSG, trabalhou
como Assistente de Direção na Fundação de Atendimento Socioeducativo/ FASE -RS,
atualmente Servidora Pública Municipal de Santa Maria/ CREAS.

Dorian Mônica Arpini


Psicóloga, Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP; Professora Titular do Depto de
Psicologia da UFSM. Atua no Programa de Pós-Graduação em Psicologia e como Tutora
da Residência Multiprofissional Integrada em Sistema Público de Saúde da UFSM. Mem-
bro do GT da Anpepp: A psicologia sócio-histórica e o contexto brasileiro de desigualdade
social. Coordena o Núcleo de Estudos em Infância, Adolescência e Família (NEIAF).
E-mail: monica.arpini@gmail.com

Eliana Rosa Sturza


Pós-Doutora pela UDELAR. Doutora em Linguística pela Unicamp. Mestre em Educa-
ção. Professora do Pós-graduação em Letras na área dos Estudos Linguísticos e do Curso
de Graduação Letras -Espanhol. Líder da Linha Política Linguística e Português Língua
de Acolhimento do Migraidh no CNPq.

Elisa Vanessa Heisler


Enfermeira graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em
Saúde Publica com Enfase em Saúde da Família. Pós-graduada em Acupuntura. Mestre
em Enfermagem e Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Enfermagem da
UFSM. Membro do grupo de pesquisas Laboratório multidisciplinar de pesquisas em Prá-
ticas Integrativas e Complementares em Saúde (LAPICS) – UFSM.
E-mail: elisaufsm@gmail.com

Elisete Kronbauer
Economista na Universidade Federal de Santa Maria. Possui graduação em Ciências
Econômicas (UFSM), especialização em Contabilidade Pública e Responsabilidade Fis-
cal (Grupo Educacional UNINTER) e mestrado em Gestão de Organizações Públicas
(UFSM). Tem experiência na área de projetos, convênios, orçamento, gestão de processos
e gestão de riscos. E-mail: elisete.kronbauer@ufsm.br

Eliseu Balduino
Nome artístico Vicent Solar, mestrando em Artes Visuais, na linha de Arte e Tecnologia
com ênfase em fotografia urbana, pela Universidade Federal de Santa Maria. Graduado
em Licenciatura em Artes Visuais pela mesma Instituição. Membro do Laboratório In-
terdisciplinar Interativo LabInter/UFSM e Grupo de Pesquisa em Fotografia LabFoto/
UFSM. Portifólio: http://vicentsolar.com/. E-mail: vicent.lyh@gmail.com

391
Felipe Barroso de Castro
Graduado em Educação Física Licenciatura plena, Especialista em Educação Física Esco-
lar e Mestre em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Maria. É professor de
Educação Física da Rede municipal de ensino de Santa Maria/RS.
E-mail: felipecastro99@yahoo.com.br

Felipe Bueno da Silva


Poeta, escritor e estudante de Ensino Médio no Colégio Estadual Tancredo Neves. Inte-
grante da Rede de Estudos e Pesquisas sobre Desenvolvimento na Infância, Adolescência
e Juventude (REDIJUV). E-mail: felipebuenodasilva@trapps.com.br

Felipe Machado
Acadêmico do Curso de Educação Física Licenciatura. Bolsista do Projeto LGBTCHÊ.
E-mail:limadope@hotmail.com

Fernando Bellé
Acadêmico do Curso de Administração pela Universidade Federal de Santa Maria.
E-mail: fernandorbelle@gmail.com.

Flavia Grützmacher dos Santos


Graduanda em Licenciatura em Teatro pela  Universidade Federal de Santa Maria. Bolsis-
ta de Iniciação Científica (PROBIC/FAPERGS). Artista da cena.
E-mail: flavia.grutz@gmail.com

Gabriela Schneider
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/Subseção de Santa Maria/RS
(2020-2021). Professora da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA). Douto-
randa em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestra em
Direito (2014) pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Advogada crimi-
nalista (OAB/RS). E-mail: schd.gabriela@gmail.com

Gabriel Lautenschleger
Jornalista. Licenciado do Programa Especial de Graduação de Formação de Professores
para a Educação Profissional UFSM. Discente do curso de Enfermagem da UFSM. Bol-
sista de Iniciação Científica do Laboratório de Práticas Integrativas e Complementares em
Saúde e membro do grupo de pesquisa CNPq Laboratório multidisciplinar de pesquisas
em Práticas Integrativas e Complementares em saúde. Experiência em Comunicação Pú-
blica e Saúde, e interesse nas linhas de pesquisa de PICS na esfera do Sistema Único de
Saúde. E-mail: gabriel.lauten20@gmail.com

392
Gabriel Masarro de Araujo
Graduado em Jornalismo – Bacharelado pela Universidade Federal de Santa Maria – cam-
pus Frederico Westphalen. E-mail: gabriel.masarro@hotmail.com

Gilnei Candinho
Sou acadêmico indígena do curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria,
residente na Aldeia Indígena Ventarra Alta, da etnia Kaingang. Tenho 30 anos, filho de
agricultor e artesã indígenas, pai de três filhos maravilhosos e marido de uma esposa excep-
cional. Família esta, da qual orgulhosamente faço parte, que incentiva e renova minhas for-
ças a cada dia, inclusive para fazer parte deste projeto. E-mail: gilneicandinho@gmail.com

Giuliana Redin
Pós-Doutora em Psicologia Social pela USP. Doutora em Direito pela PUC-PR. Professo-
ra do Programa de Pós-Graduação em Direito e Departamento de Direito da Universidade
Federal de Santa Maria. Coordenadora do Migraidh/Cátedra Sérgio Vieira de Mello da
UFSM. Líder do Grupo Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional (MI-
GRAIDH) e da Linha Proteção e Promoção dos Direitos Humanos de Migrantes e Refu-
giados no Brasil no CNPq.

Graziela Escandiel de Lima


Graduada em Pedagogia/UFSM, Mestra em Educação/UFSM, Doutora em Educação/
PUC-RS. Professora no Departamento de Metodologia do Ensino/Centro de Educação/
Universidade Federal de Santa Maria/RS. Professora no Programa de Pós Graduação em
Políticas Públicas e Gestão Educacional – Mestrado Profissional.  Líder do Grupo de Pes-
quisa TRAVESSIAS. Integrante do Projeto Institucional Inspira.
E-mail: graziescandiel@gmail.com

Gustavo de Oliveira Duarte


Graduado em Educação Física. Mestre (UFSM) e Doutor em Educação (UFRGS). É pro-
fessor do Centro de Educação Física e Desportos da UFSM. Atua no Mestrado em Ge-
rontologia e na Especialização em Estudos de Gênero. Coordenador do GEEDAC e do
LICOR. Pesquisador das relações de Gênero, Sexualidade, Educação, Arte e Envelheci-
mento. E-mail: guto.esef@gmail.com

Gustavo Lenhardt Steffen


Discente de Engenharia Elétrica, Universidade Federal de Santa Maria / Campus Cacho-
eira do Sul. E-mail: gustavo97_steffen@hotmail.com

Igor Martins Barbosa


Professor do Centro de Educação Física e Desportos da UFSM, Membro do NIEEMS.

393
Íngrid Schmidt Visentini
Bolsista FIEX do Projeto Direito e Gênero (2019). Bacharel em Ciências Sociais (UFSM).
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais UFSM.
E-mail: ingridvisentini@hotmail.com

Jafé Emanuel Chaves Ribeiro


Sou da etnia Kaigang, natural da Terra Indígena do Guarita, a maior Terra Indígena do
RS. Fui acadêmico no curso de Direito, na Universidade Federal de Santa Maria, atual-
mente atuo em escritório de advocacia em Passo Fundo/RS. Sou um dos vários indígenas
que sonham em colar grau em algum curso para poder dar retorno para as comunidades,
porque é de lá que saímos. Sempre busco conselhos dos líderes das comunidades para que
eu possa ser ainda melhor no que eu faço, que é buscar os direitos que são assegurados aos
povos indígenas. E-mail: jafe.chaves.ribeiro95@gmail.com

Jana Gonçalves Zappe


Psicóloga, Mestra (UFSM) e Doutora em Psicologia (UFRGS). Professora Adjunta no
Departamento de Psicologia e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psico-
logia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Integrante da Rede de Estudos e
Pesquisas sobre Desenvolvimento na Infância, Adolescência e Juventude.
E-mail: jana.zappe@ufsm.br

Jana Rossato Gonçalves


Relações Públicas. Mestre e Doutoranda em Extensão Rural na Universidade Federal de
Santa Maria. Pesquisadora nas áreas de juventude rural, suicídio, comunicação virtual,
redes sociais e identidade midiática. Membro do grupo de pesquisa e extensão do Labo-
ratório de Práticas Integrativas e Complementares em saúde da UFSM, onde atua como
terapeuta e colaboradora, auxiliando seus usuários a expandir a consciência, diminuir es-
tresse, equilibrar a energia proporcionando mais foco e qualidade de vida.

Janaina Daniele Cruz


Acadêmica do curso de Gestão Ambiental/UFSM, bolsista do NEAP/UFSM.

Jéssica Dalcin da Silva


Doutoranda em Educação, pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Servidora
Pública da UFSM. Graduada em Desenho Industrial - Programação Visual pela UFSM
(Bacharela e Licenciada). Possui Pós-Graduação Lato Sensu em Comunicação e Projetos
de Mídia pelo Centro Universitário Franciscano - UFN. Membro do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Educação e Imaginário Social (Gepeis). E-mail: bertoljessica@gmail.com

394
Jéssica Pereira Righi
Graduanda do curso de Pedagogia na Universidade Federal de Santa Maria.Integrante do
Projeto Institucional Inspira. E-mail: jessicaprighi@gmail.com | jessica.righi@acad.ufsm.br

Joana Missio
Psicóloga e Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria. Especialista
em Gestão e Organização da Escola com Ênfase em Coordenação e Orientação Escolar
pela Unopar. Atua em clínica em Santa Maria/RS, realizando atendimentos clínicos de
crianças, adolescentes e adultos. E-mail: joanamissio@hotmail.com

José Luiz de Moura Filho


Professor Associado II, do Departamento de Direito, da UFSM, onde graduou-se em Ciên-
cias Jurídicas e Sociais, a partir do qual atua junto ao PPGOP (permanente) e ao PPGAUP
(colaborador), além de coordenar o NIIJuC; sendo Mestre em Direito pela UNISINOS;
Doutor em Desenvolvimento Regional pela UNISC e Pós Doutor em Cidades, Culturas e
Arquitetura pela Universidade de Coimbra/PT.

Josiane Bertoldo Piovesan


Terapeuta Ocupacional pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre em Edu-
cação Profissional e Tecnológica (UFSM). Graduanda em Programa Especial de Formação
de Professores para a Educação Profissional e Tecnológica (UFSM). Coorientadora do Pro-
jeto de Extensão “UFSM nas Ruas: mais portas, menos muros para catadores de materiais
recicláveis e pessoas em situação de rua”. E-mail: josiane_piovesan@hotmail.com

Juliana da Rosa Marinho


Psicóloga, especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional em
Saúde Mental (Universidade Franciscana), discente de Mestrado no Programa de Pós-Gra-
duação em Psicologia (UFSM). Integrante da Rede de Estudos e Pesquisas sobre Desenvol-
vimento na Infância, Adolescência e Juventude. E-mail: julianamarinhopsi@gmail.com

Kalinka Lorenci Mallmann


Artista multimídia, doutoranda em Artes Visuais (UFSM), com apoio da bolsa CAPES.
Mestre em artes visuais (UFSM/2018). Bacharel em Artes Visuais (UFSM/2010). Atual-
mente é membro do LabInter/PPGART/CAL/UFSM. Autora do projeto de extensão in-
titulado “Ativação da cultura indígena por meio de práticas colaborativas em arte, ciência
e tecnologia”. E-mail: kalinkamallmann@gmail.com

Karine Almeida Pacheco


Psicóloga, especialista em Psicologia Jurídica e Avaliação Psicológica. Experiência nas
áreas clínica, organizacional, institucional, e em saúde e assistência social de média e alta
complexidade. E-mail: karine.alpacheco@gmail.com

395
Kessia Abich Rodrigues
Acadêmica do curso de Gestão Ambiental/UFSM, bolsista do NEAP/UFSM

Laura Lucca
Arquiteta e Urbanista pela UFN (2015), atualmente é mestranda no PPGCS na UFSM.
Foi bolsista no projeto Arte e memória em Santa Maria: Em prol da criação de um memo-
rial em homenagem às vítimas da tragédia da Boate Kiss no ano de 2019. Suas pesquisas
tratam do patrimônio edificado, querelas públicas em torno da patrimonialização, memó-
ria e identidade. E-mail: llucca.arq@gmail.com

Liliane Dutra Brignol


Doutora e Mestre em Ciências da Comunicação pela UNISINOS. Professora do Depar-
tamento de Ciências da Comunicação da UFSM e do Programa de Pós-graduação em
Comunicação, linha de pesquisa “Mídia e identidades contemporâneas”. Líder do Grupo
de Pesquisa Comunicação em Rede, Identidades e Cidadania no CNPq. Líder da Linha
Comunicação Midiática e Migrações Transnacionais do Migraidh no CNPq.

Luana da Costa Izolan


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria. Integrante da Rede
de Estudos e Pesquisas sobre Desenvolvimento na Infância e Adolescência (REDIJUV).
E-mail: lu.izolan@hotmail.com

Lucas Gavioli Ganciné


Engenheiro Florestal na Empresa Buena Onda Agroflorestal. Formado em Engenharia
Florestal na UFSM.

Luciana Davi Traverso


Tecnóloga em Hotelaria (UCS), mestre em Turismo e Hotelaria (Univali), doutora em
Administração de Empresas (Mackenzie). Professora do departamento de ciências admi-
nistrativas do CCSH/UFSM. E-mail: luciana.traverso@ufsm.br

Luiz Fernando Cuozzo Lemos


Professor do Centro de Educação Física e Desportos da UFSM, Coordenador do NIEEMS.

Marcia Berselli
Professora do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria.
Líder do Grupo de Pesquisa Teatro Flexível: práticas cênicas e acessibilidade (CNPq/
UFSM) e Coordenadora do Programa de Extensão Práticas Cênicas, Escola e Acessibili-
dade. Artista da cena. E-mail: marcia.berselli@ufsm.br

396
Márcia Paixão
Graduada em Pedagogia, Dra em Educação. Docente da UFSM, Professora no Departa-
mento Fundamentos da Educação, do Centro de Educação. Líder dos grupos de estudos
e pesquisas feministas Elas e Metamorfose. Integrante do Projeto Institucional Inspira.
E-mail: marcia.paixao@ufsm.br

Marcio Rossato Badke


Enfermeiro. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de Pelotas. Mestre em Enfer-
magem pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Bolsista doutorado Sanduí-
che na Universitat Rovira i Virgili - Espanha (CNPq -2015/2016). Professor Adjunto da
UFSM, Líder do grupo de pesquisa CNPq Laboratório multidisciplinar de pesquisas em
Práticas Integrativas e Complementares em saúde, coordenador do LAPICS/UFSM e Rei-
kiano nível III. Experiência em Enfermagem com ênfase em Terapias Integrativas.

Maria Catarina Chitolina Zanini


Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Pós-doutora pelo Mu-
seu Nacional-UFRJ. Professora do Departamento de Ciências Sociais da UFSM e do Pro-
grama de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSM. Visiting Schoolar na Universitá
Cá´Foscari Venezia, na Itália. Coordenadora do NECON/UFSM. Líder da Múltiplas Ci-
dadanias e Processos Migratórios do Migraidh no CNPq.

Maria Clara Mocellin


Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Mestre em Antropologia Social pela UFRGS.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e do Departamento de Ci-
ências Sociais da UFSM. Líder da Fluxos Migratórios Internacionais, Projeto Migratório
e Alteridades do Migraidh no CNPq.

Maria Ramires Conrado


Graduação em Psicologia (UFN), Especialização em Psicologia Clínica da Infância
(UFN), Especialização em Estudos de Gênero (UFSM), Mestranda em Ciências Sociais
(UFSM), Psicóloga no Centro de Referência Especializado da Assistência Social de Santa
Maria/RS. E-mail: psimariaconrado9@gmail.com

Mariana Mozzaquatro
Graduanda de Terapia Ocupacional na Universidade Federal de Santa Maria. Integrante
do projeto UFSM nas ruas: mais portas, menos muros para catadores de materiais reciclá-
veis e pessoas em situação de rua. E-mail: mozzaquatromariana@gmail.com

397
Mariana Selister Gomes
Coordenadora do Programa de Extensão GIDH/ODH/UFSM. É Professora e Pesquisa-
dora no Departamento de Ciências Sociais e nos Programas de Pós-Graduação em Ciên-
cias Sociais, Relações Internacionais e Estudos de Gênero da Universidade Federal de San-
ta Maria. É Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL),
Mestre em Sociologia e Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. E-mail: mariana.gomes@ufsm.br

Marília de Araujo Barcellos


Professora Associada do Departamento de Ciências da Comunicação da UFSM. Coorde-
nadora do laboratório Editora Experimental do Curso de Comunicação Social - Produção
Editorial pE.com UFSM. Tem doutorado em Letras | Estudos de Literatura na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: mariliabarcellos@gmail.com

Mônica Corrêa de Borba Barboza


ORCID: 0000-0002-7764-4459. Doutora e Mestra em Educação (UFPel), Especialista em
Psicopedagogia (UCPel), Pedagoga e Licenciada em Dança (UFPel). Professora Assisten-
te no Departamento de Desportos Individuais, na Universidade Federal de Santa Maria.
E-mail: monica.cborba@gmail.com

Nuncia Gabriele Guimarães Escobar


Mestranda e Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria.
Foi bolsista de extensão através do Observatório de Direitos Humanos/PRE/UFSM no
Programa de Extensão GIDH. É integrante do Coletivo Dandaras de Mulheres Negras.
E-mail: nunciage@gmail.com

Odailso Berté
ORCID: 0000-0002-8726-5591. Pós-Doutor em Arte – Universidad Iberoamericana Ciu-
dad de México; Doutor em Arte e Cultura Visual – UFG; Mestre em Dança – UFBA; Li-
cenciado em Filosofia – UPF. Professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
Santa Maria, RS, coordenador do Laboratório Investigativo de Criações Contemporâneas
em Dança (LICCDA). E-mail: odailso.berte@ufsm.br

Pamella Giovanella Scalcon Keller


Tecnóloga em Estética e Cosmética pela Universidade Luterana do Brasil, campus Santa
Maria, RS. Especialista em Cosmetologia Clinica. Mestre em Reiki Xamanic Healing,
Mestre em Reiki Usui. Membro do grupo de pesquisas Laboratório Multidisciplinar de
pesquisas em práticas Integrativas e complementares em Saúde (LAPICS) - UFSM. Res-
ponsável pelo trabalho desenvolvido no CASE- SM em conjunto com o LAPICS, durante
o ano de 2019 a 2020.

398
Paula Balardin Ribeiro Aragão
Mestre em Gestão Pública pelo Programa de Pós-Graduação em Gestão de Organizações
Públicas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em Finanças Em-
presariais pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC); Bacharel em Ciências Contá-
beis pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).

Pedro Henrique Silva dos Santos


Graduando em Comunicação Social habilitação em Relações Públicas.

Rafael Foletto
Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Uni-
sinos. Professor do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Federal
de Santa Maria – Campus Frederico Westphalen (UFSM/FW). Docente Permanente do
Programa de Pós-graduação em Comunicação e Indústria Criativa da Universidade Fede-
ral do Pampa (UNIPAMPA). Coordenador do Projeto. E-mail: rafoletto@gmail.com

Raquel Bevilaqua
Professora de Linguagens do Colégio Técnico Industrial de Santa Maria. Doutora em Le-
tras (UFSM). Atua em diferentes projetos de pesquisa, ensino e extensão. Está no Projeto
Esperançando desde 2020. E-mail: raquel@ctism.ufsm.br

Raquel Mortari
Enfermeira graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialista em
Saúde Pública. Enfermeira da Fundação de Atendimento Sócio Educativo do Rio Grande
do Sul – FASE/RS. E-mail: raquel-mortari@fase.rs.gov.br

Renata dos Santos da Costa


Psicóloga, discente de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Univer-
sidade Federal de Santa Maria (UFSM). Integrante da Rede de Estudos e Pesquisas sobre
Desenvolvimento na Infância, Adolescência e Juventude (REDIJUV).
E-mail: rennatascoosta@gmail.com

Rodrigo Mariano
Sou Guarani Mbya, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria, natu-
ral de Planalto RS, militante indígena na luta pelo direito dos povos indígenas, principal-
mente pela demarcação das terras indígenas. E-mail: rodrigomariano157@gmail.com

399
Sabrina Copetti da Costa
Graduada em Pedagogia, pela Universidade Federal de Santa Maria, especializanda em
Educação, pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense.
Atua como professora municipal de Educação Infantil, no Município de Nova Palma - RS.
E-mail: copettidacostasabrina@gmail.com

Sara Peres Dornelles Almeida


Psicóloga, especialista em Rede de Atenção Integral em Saúde Mental (UFN), Mestra
em psicologia (UFSM). Especialização em andamento em clínica psicanalítica (ULBRA).
Integrante da Rede de Estudos e Pesquisas sobre Desenvolvimento na Infância, Adolescên-
cia e Juventude. E-mail: sara@trapps.com.br

Samuel Klippel Prusch


Mestre em Educação Física pela UFSM, Membro do NIEEMS.

Sirlei Glasenapp
Doutorado em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O doutorado sanduíche foi desenvolvido na Universidade de Évora, Portugal. É professora
do Departamento de Ciências Administrativas da Universidade Federal de Santa Maria.
E-mail: sirlei.glasenapp@ufsm.br

Solange Regina Marin


Doutorado em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná (2005).
O Doutorado Sanduíche foi realizado na Marquette University, Wisconsin/USA, sob a su-
pervisão do Professor John Bryan Davis. Mestrado em Desenvolvimento Rural pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (2001). Possui graduação em Ciências Econômi-
cas pela Universidade Estadual de Maringá (1998). É professora da Universidade Federal
de Santa Catarina. E-mail: solmarin@gmail.com

Stéfany dos Santos do Amaral


Graduanda do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal de
Santa Maria, atua como Extensionista na área dos Direitos Humanos de Crianças e Ado-
lescentes em situação de acolhimento institucional desde 2017.
E-mail: stefanydoamaral.ufsm@gmail.com

Suane Pastoriza Faraj


Psicóloga pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Mestre em Psicologia pela Uni-
versidade Federal de Santa Maria – UFSM. Doutoranda do Programa de Pós Graduação
em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (2014).
E-mail: suanef@yahoo.com.

400
Suzane Bevilacqua Marcuzzo
Professora Adjunto no curso de gestão ambiental - UFSM, Mestre em Biologia, Doutora
em Engenharia Florestal, Pós-doutora pela Universidade do Minho, Portugal. Coordena
o Núcleo de Estudos em Áreas Protegidas- NEAP, onde atua desenvolvendo pesquisa e
extensão com Áreas Protegidas e Populações Tradicionais.

Talita Gonçalves Posser


Doutoranda em Administração pelo Programa de Pós-Graduação em Administração na
Universidade Federal de Santa Maria (PPGA/UFSM) e acadêmica do curso de Ciências
Contábeis (UFSM). Mestre em Administração (PPGA/UFSM) e Bacharel em Adminis-
tração pela Universidade Federal de Santa Maria

Tania Micheline Miorando


Doutora e mestre em Educação, pela Universidade Federal de Santa Maria. É especialista
e graduada em Educação Especial - Educação de Surdos, pela Universidade Federal de
Santa Maria. É vice-líder do Gepeis (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Imagi-
nário Social), da Universidade Federal de Santa Maria e Professora Adjunta no Departa-
mento de Educação Especial, da Universidade Federal de Santa Maria.
E-mail: tmiorando@gmail.com

Thaiane Bonaldo do Nascimento


Graduada em Educação Física Licenciatura plena, Especialista em Pesquisa em Movi-
mento Humano, Sociedade e Cultura, Especialista em Educação Física Escolar e Mestra
em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Maria. É professora de Educação
Física da Rede municipal de ensino do município de Toropi/RS.
E-mail: thaianebonaldo@yahoo.com.br

Valeska Maria Fortes de Oliveira


Doutora em Educação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Edu-
cação e graduada em Pedagogia, pela Universidade Federal de Santa Maria. Realizou Pós-
-Doutorado na Faculdade de Ciências da Educação, da Universidade de Buenos Aires,
Argentina. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Imaginário Social
(GEPEIS). Professora Titular do Departamento de Fundamentos da Educação, do Centro
de Educação da UFSM, desde 1997. E-mail: vfortesdeoliveira@gmail.com

Vanessa Corso Bressan


Mestranda junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul. Graduada em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Santa
Maria. Atriz. E-mail: vcorsobressan@gmail.com

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Vânia Medianeira Flores Costa
Graduada em Administração pela Universidade Federal de Santa Maria, mestrado em Ad-
ministração pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutorado em Administração
pela Universidade Federal da Bahia. Professora Associada do Departamento de Ciências
Administrativas da Universidade Federal de Santa Maria.

Virginia Vecchioli
Dra. em Antropologia Social (PPGAS-Museu Nacional). Professora do PPGCS e do PP-
GPC da UFSM. É especialista em memória de lugares de sofrimento, com trabalhos pu-
blicados em revistas nacionais e internacionais. Responsável pela criação de um memorial
virtual às vítimas da ditadura argentina, que obteve menção de honra do Ministério Federal
de Cultura da Argentina na categoria patrimônio imaterial. E-mail: vvecchioli@gmail.com

Vítor Jochims Schneider


Sou professor adjunto do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de
Santa Maria. Atualmente estou coordenando os projetos de extensão Inteŕeptes indígenas:
pluralidade linguística e acesso à justiça e Vídeos na aldeia e na escola mbyá guarani: fer-
ramentas para educação intercultural bilíngue. E-mail: vitorjochims@ufsm.br

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