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A REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO DE PEDAGOGAS/OS, A LUTA EM

CONSTRUÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA DE ORGANIZAÇÃO NO ESTADO DA


BAHIA
Adauto Leite Oliveira1
Bárbara Cristina de Oliveira2

O presente trabalho apresenta o relato de experiência de como um grupo de


pedagogas e pedagogos da cidade de Salvador-Ba, resolveram se organizar para lutar
por ter a sua profissão regulamentada, tendo em vista a compreensão de que a não
regulamentação tem imposto à essa categoria algumas inseguranças jurídicas, além de
espaço propício para distorções nos fundamentos teóricos e práticos a respeito da sua
atuação na condição de profissional e cientista da e para a educação, quer seja em
espaços escolares ou não escolares. Queria-se colocar os “pedagogos em cena”
(MAGALHÃES; SOUZA; RAMOS & LETICIA, 2019) que atuam nas mais diversas
atividades suportadas pelo conhecimento pedagógico.
Esse é um estudo de caso, com base em pressupostos etnográficos (MACEDO,
2004), no sentido de que se constrói a partir de fragmentos de vida e falas sobre as
experiências cotidianas muito peculiares dos sujeitos envolvidos, com suas crises
identitárias, geradas por causa de uma compreensão teórica mal resolvida até os dias
de hoje, sobre quais são as atribuições a serem exercidas por esses profissionais e, por
conseguinte, sobre seus componentes formativos adequados. Tais incompreensões se
mostram presentes tanto entre os pedagogos quanto entre quem os emprega.
Compõe ainda o relato, algumas conclusões retiradas de um levantamento feito a
partir de um formulário eletrônico, destinado a caracterizar, mesmo que com curto
alcance do ponto de vista quantitativo, o perfil dos profissionais de pedagogia em um
grupo de 82 respondentes. Essa escrita se conecta especialmente às contribuições
de pensadores contemporâneos da Pedagogia, a exemplos Libâneo (2010),
Pimenta (1998) e Franco (2008), para fundamentar as perspectivas que têm norteado
a experiência aqui relatada.
Inicia-se este relato reconhecendo que não é recente o debate a respeito do lugar
do pedagogo no contexto educacional e na sua formação (CRUZ, 2011). Há quem

1
Doutor em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Membro da
Associação de Pedagogas/os do Norte e Nordeste – ASPENN. E-mail: adautoleite@hotmail.com.
2
Especialista em gestão governamental pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. E-mail:
barbolli@yahoo.com.br.

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defenda a sua formação restrita ao fazer docente, compreendendo que, sendo a docência
sua base epistemológica, não há que se configurar um profissional com outras
habilidades e atribuições que não se prestem, exclusivamente, ao trabalho de professor.
Esse ponto de vista desconsidera que a docência enquanto prática, se não é apartada dos
estudos de como se conformam os planos educacionais na dimensão de políticas
públicas, também não se ocupa de contribuir na tarefa técnica de construir esses planos,
que interferem diretamente na sua prática cotidiana e na construção de uma educação
verdadeiramente emancipatória ou não. O professor não é um técnico em assuntos
educacionais, mas o pedagogo, sim. Em outras palavras, pode-se dizer que “todo
trabalho docente é trabalho pedagógico, mas nem todo trabalho pedagógico é trabalho
docente” (LIBÂNEO, 2010, p. 39).
Essas primeiras reflexões levou um jovem na década de 90, estudante de
Pedagogia e autor do presente relato, a abraçar a causa pela regulamentação do
exercício da profissão de pedagogo. O então formando na Faculdade de Educação da
Bahia, das Faculdades Integradas Olga Mettig, hoje extinta, foi membro do diretório
acadêmico e das executivas estaduais e nacionais do curso. No Congresso Nacional de
Estudantes de Pedagogia, realizado na Universidade Federal da Paraíba, na cidade de
João Pessoa, em 1998, ano em que colaria grau, encantou-se com a fala em tom grave,
de um palestrante chamado José Carlos Libâneo, sobre a identidade do pedagogo. Nesse
momento, pôde ouvir pessoalmente aquele que o inspirou no seu livro “Pedagogia e
pedagogos, para quê?” a ver a Pedagogia em uma perspectiva que gera orgulho.
Com a formatura e a realidade econômica pessoal precária, esse jovem que
sonhava em ter sua profissão reconhecida formalmente, precisou partir para outra luta, a
da sua sobrevivência material. Entretanto, no ano de 2021, no mês de outubro, a
representação sindical local dos professores, da qual faz parte, realizou um evento
intitulado “Encontro Estadual de Pedagogas e Pedagogos” para comemorar o dia do
professor. A participação remotamente desse evento fez com que o homem já maduro se
questionasse sobre a luta que abandonara há mais de duas décadas, fazendo questões aos
demais participantes sobre a regulamentação da sua profissão, sem obter respostas
satisfatórias. Via-se, portanto, indignado em perceber que essa situação não havia sido
resolvida, pelo contrário, que os ataques ao curso de Pedagogia e ao pedagogo se
aprofundaram. Estava ali posta uma motivação clássica para surgir um movimento
social.

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Na linguagem comum, os movimentos sociais são esforços persistentes
e intencionais para promover ou obstruir mudanças jurídicas e sociais
de longo alcance, basicamente fora dos canais institucionais normais
sancionados pelas autoridades (JASPER, 2016, p. 23).

A partir desse momento, decidiu-se criar um grupo de WhatsApp intitulado


REGULAMENTAÇÃO JÁ, incluindo colegas após conversas apresentando os
objetivos que se pretendia alcançar, a retomada da luta pela regulamentação do
exercício da profissão de pedagogo. Esse grupo se iniciou com cerca de 90 pessoas e até
a finalização desse relato conta com mais de 260 participantes. Essa movimentação
atraiu pessoas interessadas em somar na luta, por conta das suas experiências em seus
locais de trabalho que lhes geram um sentimento de desvalorização profissional. Muitas
denúncias surgiram, demonstrando o quanto se sentem afetadas/os emocionalmente.
“Os especialistas dizem que não tenho nada que opinar no trabalho dele,
já que não conheço da sua disciplina” ; “Tenho que brigar para
demarcar meu lugar de autoridade nos assuntos pedagógicos” ; “Nos
pagam qualquer coisa e inclusive estou com meu salário atrasado”
(Declarações de pedagogas/os das redes pública e privada de ensino,
2022).

Com a adesão mais ativa, criou-se um subgrupo de WhatsApp, responsável pelos


trabalhos de organização e construção de estratégias. Daí foi abraçada a ideia de se criar
uma associação, entendendo que a natureza jurídica propiciaria se apresentar nos
espaços de controle social com mais força política, lutando por ocupar cadeiras e
defender a pauta do reconhecimento do pedagogo enquanto profissional. Esses
movimentos pretendem colocar o coletivo em evidência e isso deve reverberar nas casas
legislativas, demonstrando que há uma categoria organizada que clama por sua
regulamentação.
Na busca por parceiros com afinidades, houve a aproximação com a Rede
Nacional de Pesquisadores em Pedagogia – RePPed. Espaço onde se discutiu e elaborou
a minuta do PL que deverá ser protocolado este ano de 2023. Essas construções foram
motivando ainda mais o grupo, que já estabelecera como meta a criação de uma
associação, promovendo debates e a construção coletiva da minuta do estatuto que
regeria a entidade. Ocorreu, portanto, no dia 04 de março de 2023, sua a assembleia de
fundação, tendo a leitura e aprovação do estatuto, bem como as eleições da sua primeira
diretoria e Conselho fiscal e consultivo, dando vida à Associação de Pedagogas/os no
Norte e Nordeste – ASPENN, que se oferece como um instrumento político de tensão
social, visando motivar os parlamentares a apoiarem o processo de regulamentação,

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através de mobilizações, formação da categoria e ocupação de espaços oficiais onde se
debate e se decide sobre a educação.
Essa associação pretende dar respostas a uma categoria que é majoritariamente
feminina e negra, que em sua maioria conhece pouco das questões que afetam a
formação e a profissão de pedagogo, que entende pouco a respeito dos alcances da
Pedagogia, percebe-se individualmente mais enquanto professor do que pedagogo, mas
que também vê a regulamentação como algo necessário e se mostra inclinada ao
associativismo para esse fim.
Esse breve perfil implica em reconhecer que a regulamentação pode ser um
excelente ponto de partida para se repensar a matriz curricular dos cursos de Pedagogia,
respondendo todas as dimensões que o fazer pedagógico comporta. Como sinaliza
Franco (2008):
[…] Questões fundamentais, tais como: o que pode e deve ser hoje a
pedagogia? A que necessidades sociais ela deve responder? A que
específico objeto deve focar sua ação? De que métodos de investigação
precisará se utilizar, para tornar pertinente sua ação, no sentido de
concretizar seu papel social? Sem respostas a tais questões fica difícil
trabalhar. Como se pode, por exemplo, organizar um curso de
pedagogia sem ter respostas consensuais, científicas e aprofundadas a
essas questões? Como fazer frente às investidas oficiais que insistem
em demonstrar a desnecessidade da pedagogia sem clareza de seu
específico epistemológico? A quem destinar a formação de docentes, se
não houver uma ciência com saberes consistentemente estruturados a
dar suporte aos pressupostos formativos desejados? (p.21).

Como se pode perceber, diferentemente dos que propagam ter solucionado o


lugar do pedagogo restringindo seu fazer à docência, o debate sobre a conformação de
um curso que implique da formação de um profissional pedagogo com características de
licenciado, de bacharel ou de licenciado com bacharelado, não está sob nenhum aspecto
superado. Quer seja na estruturação de uma matriz curricular, quer seja na definição de
uma identidade profissional, sendo uma coisa atrelada a outra. Há, sobretudo por parte
dos não pedagogos, o desejo de ditar sobre um lugar e fazer desse profissional sem
sequer considerar as perspectivas do próprio profissional pedagogo.
Há uma multidão de pessoas bem-intencionadas para pensar a
pedagogia (fora de si mesma), mas muito poucas para aceitar que o
pedagogo pensa e se pensa. Ora, o pedagogo é um intelectual,
desenvolve ideias em relação aos seus próprios atos, produz finalidade
ligada aos atos. [....] Não produz apenas um saber da educação, mas
também, nesse movimento, um saber sobre a educação, ou seja, um
sistema e um sentidos (HOUSSAYE; SOËTARD; HAMELINE &
FABRE, 2002, p. 25).

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Nessa perspectiva, a Pedagogia ganha um locus mais abrangente, situando-se
não apenas no fazer, mas também no pensar sobre o fazer educativo, que se estende para
além de um espaço determinado de atuação, no caso da docência, da escola
tradicionalmente instituída, o que requer desse profissional outras habilidades e
competências aplicáveis em outras atividades adjacentes (coordenar, orientar,
selecionar, assessorar, supervisionar, pesquisar, gerir…). Portanto, o pedagogo deve
incorporar as habilidades que lhe possibilite atuar sendo técnico, docente e/ou cientista
da educação. Não havendo nenhum motivo plausível para entender que a
regulamentação da profissão terá o fito de gerar dicotomias prejudiciais à categoria, pois
esse argumento não é verdadeiro pela própria natureza multifacetada e ao mesmo tempo
única que tem a Pedagogia.
Para concluir, cabe acentuar que a consolidação da profissão de pedagogo
enfrenta barreiras mais difíceis de serem superadas no campo político do que no campo
teórico, considerando que não se trata mais de se ter obscurantismo quanto ao objeto da
Pedagogia e da identidade profissional do pedagogo, trata-se de uma disputa por
territórios de poder, ocupados por diversos segmentos tradicionais, com interesses
políticos e econômicos, que desejam manter a autoridade do debate sobre a educação
restrita aos grupos e indivíduos que vêm dominando a narrativa nos espaços oficiais de
decisão. Cumpre aos pedagogos reivindicar, como assinala Ribeiro (2019), o seu “lugar
de fala”, tanto no campo do conhecimento científico, quanto no campo do exercício
profissional.

Palavras-chave: Regulamentação; Pedagogia; Profissão; Educação; Associação

REFERÊNCIAS

CRUZ, Giseli Barreto da. Curso de pedagogia no Brasil: história e formação com
pedagogos primordiais. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2011.
FRANCO, Maria Amélia Santoro. Pedagogia como ciência da educação. 2 ed. São
Paulo: Cortez, 2008.
HOUSSAYE, Jean; SOËTARD, Michel; HAMELINE, Daniel & FABRE, Michael.
Manifesto a favor dos pedagogos. Porto Alegre: Artmed, 2004.

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JASPER, James M. Protesto: uma introdução aos movimentos sociais (tradução
Carlos Medeiros). Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê?.12. Ed. São Paulo: Cortez,
2010.
MACEDO, Roberto Sidnei. Etnopesquisa crítica e multirreferencial nas ciências
humanas e na educação. 2 ed. Salvador: EDUFBA, 2004.
MAGALHÃES, Jonas; SOUZA, Renata; RAMOS, Moacyr & LETICIA, Ana
(Orgnizadores). Pedagogos em cena: espaços de atuação e experiências
profissionais. Jundiaí: Paco, 2019.
PIMENTA, Selma Garrido (coordenação). Pedagogia, ciência da educação?. 2 ed. São
Paulo: Cortez, 1998.
RIBEIRO, Djamila; CARNEIRO, Sueli. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019.

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