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Como Fazer Marcações Em Um Livro

Mortimer Adler

Tradução: Felipe A. V. de Bragança Alves


 
Já sabes que é preciso “ler nas entrelinhas” para obter o máximo de qualquer livro. Agora quero persuadir-te
a fazer algo igualmente importante no decorrer de tua leitura. Quero persuadir-te a “escrever nas
entrelinhas”. Se não o fizeres, provavelmente não farás o tipo mais eficiente de leitura.
Afirmo, sem rodeios, que fazer marcações em um livro não é um ato de mutilação, mas de amor. Não deves
fazer marcações em um livro que não é teu. Bibliotecários (ou amigos) que te emprestam livros esperam que
os mantenhas limpos, e é o que deves fazer. Se te persuadires que estou certo sobre a utilidade de fazer
marcações em livros, terás de comprá-los. A maioria dos grandes clássicos está disponível hoje em edições
reimpressas.
Há duas maneiras de se possuir um livro. A primeira é o direito de propriedade que adquires pagando pelo
livro, assim como quando compras roupas e móveis. Mas este ato de compra é somente o prelúdio da
“possessão”. A posse completa só acontece quando o livro se torna parte de ti, e a melhor maneira de te
tornares parte do livro é escrevendo nele. Uma ilustração pode clarear isso. Tu compras um bife e o
transferes da geladeira do açougueiro para a tua. Mas ainda não possuis o bife na maneira mais importante
até que o consumas e ele chegue à tua corrente sanguínea. Meu argumento é que livros também devem ser
absorvidos no teu sangue para efetivamente fazer algum bem.
Confusões no significado de possuir um livro levam as pessoas a uma falsa reverência ao papel,
encadernação e tipografia — um respeito pela coisa física — o trabalho do editor ao invés do gênio do autor.
Esquecem que é possível adquirir a ideia — a beleza — que um grande livro contém, sem estacar uma
reivindicação colando seu ex-libris no interior da capa. Ter uma boa biblioteca não prova que seu dono tem
a mente enriquecida pelos livros; prova nada mais que, ele, sua mulher, ou seu pai, foi rico suficiente para
comprá-la.
Há três tipos de donos de livros. O primeiro tem todos os conjuntos padrões e best sellers — não lidos,
intocados (este iludido indivíduo possui celulose e tinta, não livros). O segundo tem um grande número de
livros — alguns foram lidos rapidamente, a maioria profundamente, mas todos limpos e brilhantes como no
dia em que foram comprados. (Esta pessoa provavelmente gostaria de possuir seus livros, mas está contida
por um falso respeito à aparência física dos mesmos.) O terceiro tem poucos livros ou muitos — todos “com
orelha” e arruinados, tortos e soltos pelo uso contínuo, com marcações e rabiscos do começo ao fim. (Este
homem possui os livros.)
É falso respeito, poderias perguntar, preservar intacto e imaculado um livro muito bem impresso, uma
edição encadernada elegantemente? Claro que não. Eu rabiscaria a primeira edição de “Paraíso Perdido”
tanto quanto daria ao meu filhinho uma caixa de lápis de cor e um Rembrandt original. Eu não faria
marcações em uma pintura ou uma estátua. Sua alma, por assim dizer, é inseparável do seu corpo. E a beleza
de uma edição rara ou de um volume ricamente preparado é como a de uma pintura ou estátua.
Mas a alma de um livro pode ser separada de seu corpo. O livro é mais parecido com uma partitura de uma
obra musical do que com uma pintura. Nenhum grande músico confunde uma sinfonia com as folhas
impressas da música. Arturo Toscanini reverencia Brahms, mas sua partitura da Sinfonia em Sol menor é tão
rabiscada que ninguém, exceto o maestro mesmo, consegue lê-la. A razão de um grande condutor fazer
anotações nas suas partituras — as rabisca de novo e de novo todas as vezes que volta a estudá-las — é a
mesma razão do porque deves fazer marcações nos teus livros. Se o teu respeito por uma encadernação ou
tipografia magnífica se colocar no caminho, compres uma edição barata e homenageie devidamente o autor.
Por que fazer marcações em um livro é indispensável para a leitura? Primeiro: isto te mantém desperto (E eu
não quero dizer meramente consciente; quero dizer desperto). Em Segundo lugar; leitura, se feita
ativamente, é pensar, e pensamentos tendem a ser expressos em palavras, ditas ou escritas. O livro com
anotações é, normalmente, o livro meditado. Finalmente, escrever te ajuda a lembrar os pensamentos que
tiveste, ou os pensamentos que o autor expressou. Permita-me desenvolver estes três pontos.
Se a leitura é feita buscando algo mais do que somente passar o tempo, ela precisa ser ativa. Tu não podes
deixar teus olhos deslizarem sobre as linhas de um livro e passarem sem a compreensão do que leste. Agora,
uma peça ordinária, de ficção light, como, digamos, “E o Vento Levou”, não requer um tipo muito ativo de
leitura. Os livros lidos por prazer podem ser lidos num estado de relaxamento sem nada a perder. Mas um
grande livro, rico em ideias e beleza, um livro que levanta e tenta responder grandes questões fundamentais
demanda o tipo mais ativo possível de leitura que fores capaz de realizar. Não se absorve as ideias de John
Dewey da mesma maneira que se absorve as canções de Mr. Vallee. É preciso esforçar-se para alcançá-las.
Isso não podes fazer enquanto estiveres sonolento.
Se, ao terminares o livro, suas páginas estiverem cheias de anotações, saberás que fizeste uma leitura ativa.
O “leitor ativo” mais famoso que conheço é o Presidente Hutchins, da Universidade de Chicago. Ele tem
também a agenda mais compromissada com negócios que conheço. Ele sempre lê com um lápis na mão, e,
eventualmente, quando pega um livro e um lápis de noite, se surpreende, em vez de fazendo anotações
inteligentes, desenhando o que ele chama de “fábricas de caviar” nas margens do livro. Quando isto
acontece ele deixa de lado o livro. Ele sabe que está muito cansado para ler e que está somente perdendo
tempo.
Mas, poderias perguntar, por que escrever é necessário? Bem, o ato físico de escrever, com tuas próprias
mãos, torna as palavras e frases mais acentuadas à tua mente e as preserva melhor na memória. Anotar tuas
reações às frases e palavras importantes que leste, as questões que elas te sugeriram, é preservar e acentuar
essas questões.
Mesmo que escrevas num rascunho e, assim que terminares de escrever, jogues fora o papel, tua
compreensão do texto será maior. Mas não é necessário que jogues fora o papel. As margens (superiores e
inferiores, assim como as laterais), as folhas de final de capítulo, até os espaços entre as linhas, estão todos
disponíveis para anotações. Estes espaços não são sagrados. E o melhor de tudo é que tuas marcações e
anotações se tornam parte integral do livro, ficam lá para sempre. Podes pegar o livro na semana ou no ano
seguinte, e lá estão teus pontos de acordo, desacordo, dúvida, e de investigação. É como reiniciar uma
conversa interrompida, com a vantagem de retomá-la do ponto no qual a interrompeste.
E é exatamente isto que a leitura de um livro deve ser: uma conversa entre ti e o autor. Presumivelmente ele
sabe mais do assunto do que ti; naturalmente, terás a humildade devida ao te aproximares dele. Mas não
deixes ninguém te dizer que o leitor deve ser somente um receptor. O entendimento é uma operação de
“duas mãos”, aprender não consiste em ser um receptáculo vazio. O aprendiz deve questionar-se e
questionar o professor. Ele deve até discutir com o professor, uma vez entendido o que ensina. E fazer
marcações em um livro é, literalmente, uma expressão das diferenças ou dos acordos de opinião com o
autor.

Há diversas maneiras de fazer marcações em um livro de maneira inteligente e frutífera. Eis como eu o faço:
 Sublinhando (ou usando marca-texto): pontos principais, de declarações fortes ou importantes.
 Linhas verticais na margem: Para enfatizar uma declaração já sublinhada.
 Estrela, asterisco, ou outro símbolo na margem: deve ser usada com moderação, para enfatizar as
dez ou vinte declarações mais importantes no livro. (Podes fazer uma orelha no canto inferior das páginas
nas quais aparecem estas marcações. Isto não machucará as folhas grossas dos quais a maioria dos livros são
feitos hoje em dia, e, com isto, poderás tirar o livro da prateleira a qualquer momento e, abrindo na página
dobrada, refrescar teu entendimento do livro).
 Números na margem: para indicar a sequência de pontos que o autor faz ao desenvolver um mesmo
argumento.
 Número de outras páginas na margem: para indicar onde mais o autor diz pontos relevantes ao
ponto em questão; para ligar as ideias no livro que, embora separadas por muitas páginas, são conectadas.
 Circulando ou destacando palavras-chave ou frases.
 Escrevendo na margem, ou na parte superior ou inferior da página: para recordar perguntas (e
talvez respostas) que uma passagem tenha levantado em tua mente; reduzindo uma discussão complicada a
uma declaração simples; recordando a sequência dos pontos principais pelo livro. Eu uso as folhas em
branco no final do livro para fazer um índice pessoal dos pontos do autor na ordem em que apareceram.

As páginas em branco no começo do livro são as mais importantes para mim. Algumas pessoas reservam-
nas para um ex-libris sofisticado. Eu as reservo para um pensamento sofisticado. Após terminar o livro e
fazer um índice pessoal nas páginas finais, eu retorno às iniciais e tento delinear o livro, não página por
página, ou ponto por ponto (já o fiz nas páginas finais), mas como uma estrutura integrada, com uma
unidade básica e uma ordem em suas partes. Este delineamento é, para mim, a medida do meu entendimento
da obra.
Se és um radical anti-marcações em livros, podes objetar que as margens, o espaço entre as linhas, e as
páginas finais não te dão espaço suficiente. Tudo bem. Que tal usares um bloco de rascunho ligeiramente
menor que o tamanho da página do livro, de modo que as bordas do rascunho não apareçam? Faças teu
índice, delineamento, e até tuas anotações no rascunho, e, depois, insere os rascunhos permanentemente no
começo e no final do livro.
Ou, podes dizer, este negócio de fazer marcações em livros irá tornar tua leitura mais lenta. De fato,
provavelmente irá. E esta é uma das razões para fazê-lo. A maioria de nós se impregnou da idéia de que a
velocidade de leitura é uma medida de nossa inteligência. Não existe tal coisa como a “velocidade correta”
para se fazer uma leitura inteligente. Algumas coisas devem ser lidas rapidamente e sem esforços e outras
devem ler lidas lentamente e até laboriosamente. O sinal de leitura inteligente é a habilidade de
ler diferentes coisas diferentemente de acordo com seu valor. No caso de livros bons, o objetivo não é ver
por quantos consegues passar; mas sim quantos permanecem em ti — quantos consegues possuir. Ter alguns
poucos amigos é melhor que ter milhares de conhecidos. Se este é teu objetivo, como deveria ser, não te
impacientarás se te exigir mais tempo e esforço ler um grande livro do que te exige ler um jornal.
Podes ainda ter uma objeção final a fazer marcações nos livros: não podes emprestá-los aos teus amigos
porque ninguém pode lê-los sem distrair-se com tuas notas. Além do mais, não quererás emprestá-los porque
um livro com anotações é como um diário intelectual, e emprestá-los é expor a público tua mente.
Se um amigo deseja ler teu “Vidas Paralelas” de Plutarco, Shakespeare, ou “O Federalista”, digas-lhe gentil,
mas firmemente, que compre uma cópia. Emprestarias teu carro ou teu casaco, mas teus livros são tão parte
de ti quanto tua cabeça ou teu coração.

Título original: How to mark a book


Publicado em: The Saturday Review of Literature, July 6, 1941
 
 
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