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DESCRIÇÃO

Construção de práticas de cuidado para profissionais da saúde no âmbito da diversidade das


configurações dos sexos, dos gêneros e das orientações sexuais dos usuários das políticas
públicas.

PROPÓSITO
É primordial que profissionais da área da assistência, da saúde, da educação e de qualquer
outra política pública estejam munidos de conceitos e reflexões que promovam o respeito e a
valorização da diversidade humana, realizando uma prática interventiva sem qualquer
preconceito ou discriminação, visando à garantia de direitos da população em toda a sua
pluralidade.

OBJETIVOS

MÓDULO 1

Identificar as políticas de saúde direcionadas para a população LGBTQIA+

MÓDULO 2

Reconhecer a sexualidade humana como processo de construção biopsicossocial


MÓDULO 3

Localizar as políticas públicas de saúde da mulher e do homem

MÓDULO 3

Empregar a ética no cuidado em saúde frente à diversidade sexual

INTRODUÇÃO
Como profissionais do cuidado e da assistência em saúde, todos nós teremos que lidar com a
diversidade humana, o que implica estar em contato com corpos, desejos, afetos e
sexualidades muito diferentes. E essa diferença nunca poderá ser critério para que balizemos a
qualidade do nosso trabalho! Um profissional de saúde precisa se formar de maneira crítica e
respeitosa, embasando-se, única e exclusivamente, nas dimensões científicas, éticas e
humanísticas de suas construções acadêmicas e profissionais.

Neste conteúdo, portanto, veremos algumas políticas de saúde que têm como foco a garantia
dos direitos à comunidade LGBTQIA+, bem como seremos capazes de compreender a
sexualidade humana como um processo simbólico e cultural. Em seguida, localizaremos
algumas estratégias para homens e mulheres no âmbito da política pública de saúde e, por fim,
apresentaremos um debate ético acerca do cuidado em diversidade sexual.

MÓDULO 1

 Identificar as políticas de saúde direcionadas para a população LGBTQIA+


SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E A GARANTIA
DE DIREITOS
Desde a institucionalização do SUS, em 1990, o Brasil vem aos poucos construindo frentes de
políticas inclusivas que vejam os usuários do sistema público de saúde para além da doença e,
sobretudo, como sujeitos de direitos. Isto é, mais do que pensar que um sistema de saúde tem
caráter unicamente curativo e medicamentoso, a reforma sanitarista brasileira e o campo da
Saúde Coletiva alteraram a lógica do cuidado no Brasil.

A partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e com a finalidade de garantir o


acesso universal e igualitário, baseado em uma perspectiva integral de saúde, houve uma
reorganização assistencial que foi garantida pela Lei Orgânica da Saúde ― Lei nº 8.080 de 19
de setembro de 1990 ― elaborada para regulamentar o SUS, criado pela Constituição Federal
de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã. Com o tripé assistência social, saúde e
previdência, a Seguridade Social brasileira abriu caminho para o combate à pobreza extrema, à
desigualdade social e à degradação humana, trazendo para o cerne do debate o campo da
cidadania para a estrutura central de organização de um novo projeto de Brasil.
Desde então, a implantação de um modelo que contemple os princípios e as diretrizes do SUS
e a execução das normas de seu arcabouço legal são consideradas um dos maiores desafios
do setor saúde.

 EXEMPLO

A Promoção em Saúde Pública não está dirigida para dada doença ou agravo, mas serve para
incrementar a saúde e o bem-estar da população. É nesse sentido que o cuidado emerge como
uma política de saúde.

CUIDADO: CONCEITO E PRÁTICA DE


HUMANIZAÇÃO
O cuidado em saúde requer responsabilidades entre serviços e população. Faz-se importante o
vínculo entre os profissionais de saúde e a população atendida, uma vez que se deve
reconhecer a saúde como um direito de cidadania. Ou seja, o cuidado em saúde é o
tratamento respeitoso, o acolhimento ao ser humano em sofrimento. É a dignificação do
processo de saúde e da doença. Trata-se, principalmente, de compreender o sujeito
biopsicossocialmente, de modo que suas fragilidades e suas potências sejam consideradas ao
se prestar um cuidado assistencial em saúde.
 EXEMPLO

Uma série de atitudes, nesse sentido, pode apontar para o cuidado em saúde, como a oferta
de um tratamento digno e respeitoso, com qualidade, vínculo e acolhimento singular.

O cuidado com o usuário de um sistema de saúde tem como pressuposto a autonomia, a


liberdade e a capacidade de negociação do sujeito diante das propostas de saúde que lhe são
feitas.

O objetivo desse cuidado é reduzir os efeitos do adoecimento e reconhecer o sujeito para além
do modelo biomédico e medicamentoso.
A ideia aqui não é abandonar o modelo biomédico, mas pensar o sujeito para além de uma
matriz biológica. Somos seres sociais! E, portanto, na contramão de uma postura de abandono
e desamparo, o cuidado em saúde assume o sujeito humano como um ser histórico e o
interpreta e o acolhe para além de sua funcionalidade biológica.

O cuidado em saúde, portanto, faz cumprir os princípios básicos do tripé do SUS:

UNIVERSALIDADE

Refere-se ao acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de atenção: primário,


secundário e terciário.

INTEGRALIDADE

Refere-se à assistência integral ao sujeito, o que é compreendido como um conjunto de ações


e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, que deve funcionar de forma
articulada em todos os níveis de atenção.
EQUIDADE

Refere-se à assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer natureza.

O objetivo do SUS não é tratar todos igualmente. Sabe por quê? Porque isso seria impossível,
já que todos somos seres sociais muito diferentes!

O problema não é a diferença, e sim a desigualdade de tratamento e cuidado em saúde


em função de critérios normativos que desvalorizam a diferença ao tomar algumas
existências como modelo padrão de humanidade.

Tendo em vista isso, o melhor termo para o tratamento digno a toda a diversidade de
existência, pelo sistema de saúde pública, não é igualdade, mas, sim, equidade. Ninguém
precisa ser tratado pela mesma norma, afinal há pessoas que diferem da norma padrão de
humanidade que se hegemonizou na construção da heterocisnormatividade como modelo de
vida.

HETEROCISNORMATIVIDADE

É o padrão de conduta afetivo-sexual que naturaliza como “normal” o desejo heterossexual e


os corpos não transexuais: os chamados corpos cis.

Enquanto a igualdade busca tratar todos da mesma maneira, independentemente da sua


necessidade, a equidade trata as pessoas de formas diferentes, mas em condições
equitativamente dignas e humanas, considerando o que elas precisam, suas singularidades e
particularidades.
 EXEMPLO

A vida de um sujeito heterossexual com um emprego em uma multinacional é bem diferente da


vida de uma prostituta transexual na periferia de algum centro urbano. Nós não somos iguais,
mas devemos ser respeitados da mesma forma em nossas diferenças!

É justamente para evitar que esses grupos sejam violados pelas instituições de saúde que os
planejamentos em saúde começaram a considerar estratégias transversais a diversas áreas
para garantir a temática da inclusão e da diversidade como pontos de partida e horizonte de
uma prática cuidadosa.

É preciso pensar a formação dos profissionais do SUS para que temáticas sobre sexo, gênero
e orientação sexual sejam centrais na construção de uma postura profissional do cuidado. Isso
só será feito com a sensibilização científico-política ao tema da diversidade sexual. E é por isso
que você está acessando este conteúdo.

ALGUNS CONCEITOS BÁSICOS DE


DIVERSIDADE SEXUAL
Para que possamos avançar em nossa discussão, é importante garantir que estejamos
partindo de definições conceituais comuns. Definições que, no senso comum, provocam
bastante confusão e dificuldade de entendimento, mas que, no campo da ciência da saúde,
requerem fundamentação e compreensão.
Identidade sexual (sexo): Refere-se à matriz genital biológica que nasce com os corpos
humanos. Exemplos:

É aquele que possui cromossomicamente as marcas que desenvolverão


Corpo
caracteres, gônadas e genital dos machos, como pênis, próstata, testículos
macho
etc.

Corpo É aquele que possui cromossomicamente as marcas que desenvolverão


fêmeo caracteres, gônadas e genital da fêmea, como seios, útero, vagina etc.

Os corpos intersex fogem do binarismo sexual e não se conformam ao


Corpos macho ou à fêmea. Em vez disso, eles são marcados pela presença de
intersex caracteres de ambos os sexos. Desse modo, pode haver um corpo que
possua uma cavidade vaginal da qual emerge um pênis, por exemplo.

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Identidade de gênero: Refere-se às construções simbólicas e materiais do corpo referentes à


masculinidade, à feminilidade, entre outros elementos. Exemplos:

Homem Pessoa identificada com o gênero masculino.


Mulher Pessoa identificada com o gênero feminino.

Andrógino Pessoa que possui identificação com o gênero masculino e o feminino.

Não Pessoa que duvida do masculino e do feminino como coisas distintas,


binário opostas e obrigatórias.

Homem Corpo nascido com genitália designada feminina e que se identifica com
Trans o gênero masculino.

Mulher Corpo nascido com genitália designada masculina e que se identifica


Trans com o gênero feminino.

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Orientação sexual: Corresponde ao desejo afetivo-sexual que as pessoas constroem em suas


vidas, o qual pode variar ao longo do espaço-tempo. Exemplos:

Heterossexual Pessoa que sente desejo por outra do gênero oposto.

Pessoa que sente desejo por outra do mesmo gênero (gays e


Homossexual
lésbicas).

Pessoa que sente atração afetivo-sexual por pessoas dos dois


Bissexual
gêneros.

Pessoa cujo desejo se estende a mais de um gênero


Pansexual independentemente da identidade de gênero e da orientação
afetivo-sexual. O prefixo pan significa todos.

Assexual Pessoa que não tem atração sexual, e sim desejo de afeto.
Diferencia-se de abstinência sexual e celibato – inclusive do celibato
compulsório.

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A sigla LGBTQIA+ se refere às identidades de gênero e às diversas orientações sexuais,


apontando para existências diversas de arranjos entre genitálias, gêneros e desejos. Tais
existências não se resumem ao campo da heterossexualidade cisnormativa, historicamente
tomada como padrão de normalidade. Por fim, a sigla, ao fazer uso do sinal +, mostra-se
aberta a uma infinidade de possibilidades de construções de corpos e desejos que os seres
humanos empreendem para se relacionarem e terem prazer entre si.

POLÍTICAS DE CUIDADO AOS LGBTQIA+:


CONQUISTAS E DESAFIOS
Todos nós, em alguma medida, reproduzimos preconceitos e discriminações aos LGBTQIA+
justamente porque a heterocisnormatividade constrói um modelo de mundo em que tudo o que
rompe com o binarismo de gênero e com as sexualidades heterossexuais é tomado como
desvios, patologias e até mesmo crimes em algumas sociedades.

Em função dessa lógica violenta, todos aqueles que não correspondem às expectativas desse
modelo sexo-gênero-orientação sexual padrão podem, porventura, ter os seus direitos negados
e usurpados. Vários profissionais de saúde se deixam envolver por suas concepções morais e
religiosas e penalizam pessoas LGBTQIA+ fazendo piadas e comentários violentos ou
negligenciando atendimentos a elas.
 Imagem de jovem mulher trans

Vários movimentos foram feitos no sentido de se demandar do Estado a garantia à qualidade


de vida e à assistência em saúde aos LGBTQIA+ por meio de políticas públicas.

Políticas públicas são os dispositivos do Estado por meio do qual programas, ações e
propósitos coletivos e comunitários são levados a cabo pelas sociedades para produzir
mudanças no mundo real e garantir um projeto de sociedade que faça garantir o Estado de
bem-estar social. Em âmbito mais específico, a política pública de saúde congrega diretrizes
relacionadas à produção de programas no âmbito da atenção em saúde (MELLO, 2011).
É importante entender que a sigla LGBTQIA+ variou e variará quanto mais a sociedade
entender que a diversidade sexual não se resume em palavras, afinal, a sexualidade humana é
pura criatividade. Acompanhe a seguir as variações que a sigla já teve:

GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) – Uma sigla mais mercadológica.

GLBT – Que retira o simpatizante por entender que ele não é, exatamente, um sujeito da luta.

LGBT – Que traz o L para frente para dar visibilidade às mulheres lésbicas.
LGBTT – Que engloba travestis e transexuais.

LGBTQ – Que traz o queer para a sigla e reúne travestis e transexuais em transgêneros.

LGBTEQI – Que traz os intersex.

LGBTQIA+ – Que traz os assexuados e o sinal de adição (+) para sinalizar a infinidade de
possibilidades etc.

Partindo-se desse pressuposto, o ano de 2004 foi um marco para a produção de políticas de
cuidado em saúde para a população LGBTQIA+, haja vista o lançamento pelo governo federal
do "Programa Brasil sem homofobia - Programa de combate à violência e à discriminação
contra GLTB e de promoção da cidadania homossexual".

Outra iniciativa voltada a essa comunidade foi a Carta dos direitos dos usuários da saúde,
aprovada por meio da Portaria nº 675, de 30 de março de 2006, na qual está presente o direito
ao cuidado, ao tratamento e ao atendimento no âmbito da saúde pública, sem qualquer
discriminação por orientação sexual e identidade de gênero.

SAIBA MAIS

Nessa mesma carta, enuncia-se, também, o fato de que as pessoas têm o direito de serem
nomeadas e publicamente chamadas pelo nome que preferirem ― o nome social ―,
independentemente do registro civil (MELLO, 2011).

Também em 2004, o governo federal lançou o documento Política nacional de atenção integral
à saúde da mulher: princípios e diretrizes, no qual se dá atenção às diversidades de ser mulher
no Brasil, a partir de distintos marcadores como raça, etnia e sexualidade que produzem
comuns, mas também distintas, experiências para mulheres negras, indígenas e lésbicas
(MELLO, 2011).

Na segunda metade dos anos 2000, outros projetos não voltados exclusivamente para a
população LGBTQIA+ foram capazes de mobilizar recursos e estratégias que contemplaram
demandas para alguns desses segmentos. Dentre esses movimentos, destaca-se a 13ª
Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2007, que levantou o debate da revogação da
Portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que, até então, proibia gays e
outros HSH (homens que fazem sexo com homens) de doarem sangue. Algo que, de fato, só
foi juridicamente revogado em 2020.

Em maio de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional a “regra” que
impedia um homem que fez sexo com outro homem de doar sangue antes de completar 12
meses da relação sexual. Após essa decisão do Supremo, a Anvisa revogou restrição à
doação de sangue por homens gays.
Ainda em 2007, houve forte incentivo à pesquisa e à produção de conhecimentos sobre o SUS
e o fomento a uma política nacional de saúde integral à comunidade LGBTQIA+. Nesse mesmo
ano, houve também o Plano integrado de enfrentamento da feminização da epidemia de AIDS
e outras DST e o Plano nacional de enfrentamento da epidemia de AIDS e DST entre gays,
outros homens que fazem sexo com homens e travestis.

No ano de 2009, pudemos acompanhar o Plano nacional de promoção da cidadania e direitos


humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais e o III Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH 3), no qual o tema da atenção à saúde da população LGBTQIA+ foi
protagonizado. Em 2010, foi divulgada a Política nacional de saúde integral de LGBT com
diretrizes que consideravam a construção de um cuidado atravessado pelos marcadores
sociais como orientação sexual, identidade de gênero, ciclos de vida e raça-etnia (MELLO,
2011).

DST

Respeita-se o termo utilizado pela política à época, mas o termo atual, utilizado pelas políticas
de saúde, é Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), já que nem toda infeção configura
um processo de adoecimento.
Mais recentemente, o Ministério da Saúde, em 2013, lançou algumas campanhas em parceria
com as Secretarias de Direitos Humanos (SDH) e de políticas para as mulheres com o objetivo
de conscientizar sobre a saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais para a
valorização da saúde como um direito humano de cidadania. Isso ressaltou, por fim, que a
população LGBTQIA+ tem direito a receber atendimento livre de qualquer discriminação,
restrição ou negação em virtude da orientação sexual e identidade de gênero.

Apesar da existência de vários projetos, programas e outros compromissos do governo federal


relativos ao tema da saúde da população LGBTQIA+, até hoje perduram desafios para a
efetivação da cidadania e dos direitos a essa população historicamente subalternizada.

Há uma distância entre a proposta da política e o fato de que ela se torne orgânica aos
profissionais de saúde e aos usuários. Inúmeros profissionais ainda patologizam trajetórias não
heterocisnormativas e tratam mal ou desdenham das trajetórias LGBTQIA+. Alguns
profissionais insistem em não chamar os sujeitos travestis e transexuais pelos seus nomes
sociais, alegando que o registro civil se sobrepõe a suas autodeterminações, entre outros
problemas.

O caminho para a construção de um cuidado à comunidade LGBTQIA+ foi aberto, mas ainda
perduram os desafios que precisamos enfrentar para garantir dignidade e direitos a um grupo
que, historicamente, foi vinculado a uma semântica degradante e desumanizante. O cuidado
em saúde para a comunidade LGBQTIA+ se trata apenas de fazer garantir que, como qualquer
outro grupo cidadão, ela tenha respeito, reconhecimento e atendimento de qualidade que
promova saúde e bem-estar biopsicossocial.
Bem-estar em todas as esferas da vida e não só naquelas que apontam para o desejo e as
práticas corpóreas sexuais desses sujeitos. Por que reduzimos os sujeitos LGBTQIA+ às
questões do corpo e do desejo sexual? Será que esse não é um preconceito que nos impede
de enxergar sujeitos não heterocisnormativos para além de suas genitálias e práticas sexuais?
AS CONQUISTAS E OS DESAFIOS DAS
POLÍTICAS LGBTQIA+ AO LONGO DO
TEMPO
Neste vídeo, o professor reflete sobre as diversas mudanças que aconteceram nas políticas de
cuidado à população LGBTQIA+, conquistas, desafios e impasses.

VEM QUE EU TE EXPLICO!


Igualdade x Equidade

As siglas LGBTQIA+ e suas definições

VERIFICANDO O APRENDIZADO

MÓDULO 2

 Reconhecer a sexualidade humana como processo de construção biopsicossocial


SEXUALIDADE PARA ALÉM DO SEXO
A sexualidade humana é um campo de construções biopsicossociais que comprovam que os
sentidos sobre nossos corpos, nossas práticas e nossos desejos sexuais são um processo, e
não uma instância física perene. Os processos da sexualidade são movimentações subjetivas,
complexas, contraditórias, paradoxais e embebidas em uma negociação constante do sujeito
com a sua comunidade e do sujeito consigo. Com isso, queremos dizer que a sexualidade não
pode ser compreendida, unicamente, por uma via racional e descritiva.

Será que a sopa de letrinhas da diversidade é capaz de abarcar todos os arranjos de sexo-
gênero-desejo? Nunca se esqueça do sinal + da sigla. A diversidade é infinita. A sexualidade é
fluxo, assim como a experiência de ser humano, e esse fluxo se inicia antes mesmo do nosso
nascimento!

Mais do que entender a sexualidade humana como um campo unicamente da experiência


sensível pessoal, é preciso compreender a sexualidade como campo científico de estudos
transdisciplinares que investigam a experiência do corpo, do prazer e das criações que o ser
humano empenha para se relacionar com o outro afetivo e sexualmente.

SEJA COMO FOR, AS ABORDAGENS


CONTEMPORÂNEAS DA SEXUALIDADE EM
ANTROPOLOGIA MANTÊM OS PRESSUPOSTOS DA
DISCIPLINA RELATIVOS À ANÁLISE SISTÊMICA DOS
SÍMBOLOS CULTURAIS DUMA SOCIEDADE OU GRUPO
SOCIAL, DO RELATIVISMO CULTURAL (A NÃO
CONFUNDIR, TODAVIA, COM RELATIVISMO MORAL) E
DA COMPARAÇÃO INTERCULTURAL. POR FIM, SE O
CAMPO DA SEXUALIDADE TEM VINDO A
AUTONOMIZAR-SE NA NOSSA SOCIEDADE – E, POR
ISSO, NAS CIÊNCIAS SOCIAIS –, A SUA ABORDAGEM
EM ANTROPOLOGIA É NECESSARIAMENTE TAMBÉM
UM ESFORÇO DE LEITURA, DESCONSTRUÇÃO E
CRÍTICA DAS ABORDAGENS PASSADAS DO TEMA NA
DISCIPLINA.

(ALMEIDA, 2003, p. 2-3)

Isso quer dizer que os estudos sobre a sexualidade humana são pensamentos críticos e
reflexivos sobre como abordagens antigas da experiência afetivo-sexual humana foram
moralizantes e patologizantes acerca da diversidade sexual.

Atualmente, o esforço acadêmico-político visa colaborar para a construção de saberes e


práticas em saúde que lidem com a sexualidade humana como uma produção simbólica e
cultural e, portanto, criativa e inventiva.

Onde habita o consenso afetivo-sexual entre figuras adultas não deveria haver espaço para
preconceito e discriminação! Mas você já reparou como a nossa própria sexualidade e a dos
outros são tomadas como um campo de vigília por grande parte da comunidade social e
política?

A questão aqui não é negar a matriz biológica. Todos compartilhamos pontos de partida para a
construção do corpo e da existência que são inegavelmente herdados. Mas, além da biologia,
existe uma cultura que nos constrói e nos inventa nesse mundo. Que cultura poderosa é essa?

A seguir, compreenderemos melhor a importância de se considerar não só a influência


biológica, mas também a cultural para nossa construção humana.
O QUE É GÊNERO?
O gênero é parte fundamental da nossa cultura!

Trata-se de um campo da ciência – também chamado de Estudos de Gênero – que pretende


investigar o sujeito e a sociedade a partir do lugar epistemológico do indivíduo no mundo.
Nesse sentido, o gênero é uma categoria de análise sócio-histórica que se recusa a enxergar
as diferenças e as desigualdades entre homens e mulheres apenas como questões biológicas
assim como, historicamente, muitas leituras patriarcais o fizeram.
Em outras palavras, gênero é uma “lente de análise” para enxergar as relações sociais e como
elas padronizam, em um contexto histórico e político, papéis sociais distintos e desiguais para
homens e mulheres.

As expectativas de gênero seriam todas essas prescrições – algumas mais e outras menos
implícitas – que criam modelos tradicionais que se pretendem biológicos, mas são ensinados
cotidianamente para produzir o que um homem ou uma mulher é na sociedade.

Veja um exemplo de como o gênero muda ao longo do tempo:


 Louis XV

Na época do Antigo Regime francês até a Revolução Francesa, entre os séculos XVII e XIX,
era comum que homens da realeza usassem perucas e maquiagens, as quais significavam
poder econômico e, portanto, virilidade e poder.

Atualmente, maquiagem e peruca são mais associadas às feminilidades. Provavelmente, nas


ruas de qualquer cidade brasileira, homens que usassem esses utensílios seriam hostilizados.

Assim como há expectativas de gênero, há também expectativas em relação às orientações


sexuais.

Grande parte da sociedade não deseja de modo algum que seus filhos sejam LGBTQIA+
porque naturalizamos que o destino de qualquer corpo-desejo é o corpo heterocisnormativo.

Essa expectativa é subjetiva, social, histórica e política, e impede que tenhamos como projeto
de vida o desejo de que as pessoas sejam o que elas quiserem ser. Muito pelo contrário,
fantasiamos gostos, estéticas, casamentos, parceiros, filhos e um modelo de organização da
vida privada, familiar e pública do nascimento até o último dia de vida de uma pessoa.

Nessa direção, a sexualidade é central na organização das subjetividades modernas e


contemporâneas. Todos nós pensamos em pessoas a partir das categorias do gênero e da
orientação sexual e áreas relacionadas.

Heterossexualidade compulsória é, justamente, o modelo normativo de vida, o desejo e as


instituições que colocam como destino natural o casamento heterossexual, as divisões sociais
de trabalho e gênero, a monogamia e a reprodução como modelos únicos e padronizados de
existência (RICH, 2010).

Essa discussão não objetiva impedir que as pessoas assumam orientações heterossexuais.
Isso é impossível. Durante a vida, cada um vai desejar o que quiser (e puder) desejar! A
discussão sobre o caráter construcionista da sexualidade visa garantir que quem assumir
outra forma de desejo afetivo-sexual, diferentemente da heterossexual, possa existir sem ser
exterminado por isso.

 ATENÇÃO

A normalização da heterossexualidade como modelo único de desejo sexual é reforçada por


discursos religiosos, midiáticos e, até mesmo, científicos.

Ainda que isso esteja mudando atualmente, muitas gerações de jovens adultos atravessaram a
puberdade e fase adulta sem terem acesso à literatura, à mídia, aos filmes e aos
documentários que mostrassem a vida LGBTQIA+ como um modelo de vida. E quando se
referiam a essa comunidade, historicamente isso foi feito com desrespeito e humor, no mínimo,
controverso.

INTERSECCIONALIDADE
As décadas de 1960 e 1970 são, marcadamente, um período histórico de bastante
mobilizações e reivindicações por direitos sociais e políticos para além das questões de classe
relacionadas às condições trabalhistas. Certos de que a desigualdade econômica é um grave
problema no mundo, vários movimentos, também no período de 1960 e 1970, introduziram
elementos e categorias relacionadas a lutas por reconhecimento ― como as questões de raça,
gênero e sexualidade ― nas pautas sobre justiça social econômica. A ideia que começou a ser
construída é a de que nenhuma experiência de exploração se sobrepõe à outra. Classe e
problemas econômicos são tão centrais para a compreensão do mundo quanto outros sistemas
de poder e exclusão.

Nesse período, mulheres negras organizadas, por exemplo, tiveram dificuldade em encontrar
algum movimento social que as representasse de modo mais efetivo. Isso porque, em função
do racismo estrutural, era difícil para elas reconhecerem pautas antirracistas em um movimento
feminista branco e da classe média. Ao mesmo tempo, ao procurarem solidariedade com o
movimento negro, os sexismos dos companheiros homens de luta antirracista também
colocavam limites às parcerias a qualquer custo.

Qual o lugar da mulher negra na luta por um mundo mais justo?

A interseccionalidade é compreendida como um movimento teórico-político


protagonizado, sobretudo por mulheres negras, o qual empreende um projeto de justiça
social que intersecciona vários marcadores sociais – classe, raça, gênero, sexualidade e
outros – para compreender as lógicas de opressão da sociedade. Ao mesmo tempo, esse
movimento defende a importância de se pensar vários sistemas de opressão juntos – pobreza,
racismo, LGBTQUIA+fobia, sexismo e outros – para empreender lutas e processos de combate
à desigualdade social que assola o mundo (MAYORGA, 2014).

A interseccionalidade não é uma soma exata de características individuais e coletivas desses


distintos grupos, mas, sim, uma forma de olhar para os problemas do mundo com mais
complexidade e produzir justiça social.
NÃO SE TRATA DE AFIRMAR SIMPLESMENTE A
NECESSIDADE DE TRABALHAR COM A
MULTIPLICIDADE DE DIFERENÇAS QUE
CARACTERIZAM AS MULHERES A PARTIR DE UMA
SOMATÓRIA DE OPRESSÕES. É MUITO IMPORTANTE
COMPREENDER COMO ESSAS DIFERENÇAS SE
INSTITUEM COMO DESIGUALDADE E DEVEM-SE
ANALISAR QUAIS SISTEMAS AS PRODUZEM E
TAMBÉM COMO ESTÃO EM INTERSEÇÃO. ISSO
PORQUE PRINCIPALMENTE CATEGORIAS COMO
GÊNERO, RAÇA, CLASSE E SEXUALIDADE SE
EXPRESSAM, MUITAS VEZES, ATRAVÉS DE
ANTAGONISMOS. DESSE MODO, A NOÇÃO DE
INTERSECCIONALIDADE SERÁ TOMADA COMO UMA
RESPOSTA À NECESSIDADE EVIDENTE EM NOSSAS
SOCIEDADES PARA COMPREENDER AS FORMAS DE
OPRESSÃO DE FORMA ARTICULADA,
CONSIDERANDO A COMPLEXIDADE DAS
SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS, BEM COMO PARA
CONSTRUIR ENFRENTAMENTOS QUE POSSAM SER
NÃO FRAGMENTADOS.

(MAYORGA, 2014, p. 228)

Várias expectativas de gênero e sexualidade, ao serem atravessadas por esses outros


marcadores sociais, como raça e classe, produzem novas e distintas violências e
desumanizações para alguns corpos.
Interseccionar o pensamento é pensar classe, gênero, raça e sexualidade de forma conjunta.
Durante aproximadamente três séculos, os corpos negros foram associados a um produto que
pertencia ao poder luso-europeu. Corpos vendáveis, bestializados, “sexualmente salientes”,
bons para o trabalho braçal, não pensantes. Negros eram corpos para o poder colonial.

Toda essa lógica de poder colaborou para um processo de sexualização dos corpos negros,
que foram associados a uma força física e sexual tão brutal que, até hoje, circula no senso
comum a ideia de que mulheres negras são mais assanhadas e que homens negros possuem
melhores performances sexuais e genitálias maiores do que homens brancos. Esse senso
comum é um dispositivo do sistema moderno colonial de gênero que criou a ideia da
humanidade dos europeus, fossem homens ou mulheres, em detrimento da bestialidade e
animalização dos povos colonizados, como indígenas, aborígenes e africanos, os quais foram
mais enquadrados como machos e fêmeas do que como homens e mulheres.

 Imagem ilustrativa do mercado de escravos do livro Revelações de um contrabandista de


escravos, publicado em 1860.

Em função da lógica colonial de gênero, mulheres brancas foram historicamente associadas à


virgindade, à castidade e ao casamento. Mulheres negras, por outro lado, foram associadas à
fornicação e ao sexo selvagem. Compreender as construções simbólicas da sexualidade exige
de nós, profissionais da saúde, do cuidado e da assistência, complexidade para analisar os
fatos conforme foram produzidos ao longo da história.

Os sistemas de saúde estão atravessados por ideias preconceituosas e discriminatórias. Por


isso mesmo, os dados mostram que mulheres negras são mais vítimas de estupros e
feminicídios no Brasil. Há relatos que mostram como médicos, na década de 80, realizaram
esterilizações compulsórias em mulheres negras sem que elas tivessem desejado isso. Por fim,
há também denúncias de como mulheres negras recebem menos anestesias para
procedimentos biomédicos que causam dor (GONZAGA; MAYORGA, 2019).

Qual a lógica por trás dessas atitudes violentas?

O fato de que, historicamente, o corpo da mulher negra foi considerado uma aberração, um
problema e uma máquina que tudo pode aguentar. O que sustenta todo esse processo de
desumanização às mulheres negras é a ideia de que o corpo da mulher preta, principalmente
pobre, é forte, não sofre, não sente dor e, por isso, não merece sequer reproduzir
descendentes no mundo.

No entanto, retomando o que foi afirmado na definição de interseccionalidade, não se esqueça


de que grupos sociais, historicamente, sempre tiveram condições de lutar contra essas
condições de exploração e opressão. Movimentos sociais de mulheres negras, faveladas,
lésbicas, mães etc. têm se empenhado em questionar o racismo-patriarcado-elitismo
institucional que embebe a saúde de violências aos seus corpos e aos de outros grupos sociais
vulnerabilizados, como, por exemplo, pessoas com deficiência.

Portanto, os profissionais da saúde e do cuidado precisam, definitivamente, atentar-se para as


ficções em torno da sexualidade, do gênero, da raça e da classe. Só assim estaremos
vigilantes para que nossas práticas não reproduzam violências e hostilizações a grupos
historicamente subalternizados.

O SUS ganha muito ao ouvir as propostas dos movimentos sociais, o que é previsto como um
dos princípios do SUS: o controle social. Esse controle garante a participação da sociedade
civil no processo de formulação, crítica, controle e reivindicação das políticas públicas de
saúde.
MOVIMENTOS SOCIAIS, SUS E AS
PRÁTICAS DE CUIDADO
Neste vídeo, o professor reflete sobre a negativa influência de construções em torno da
sexualidade, do gênero, da raça e da classe nas práticas de cuidado na saúde e a importante
atenção à justiça social.

VEM QUE EU TE EXPLICO!


O gênero e o caráter construcionista da sexualidade

Formas de opressão e interseccionalidade


VERIFICANDO O APRENDIZADO

MÓDULO 3

 Localizar as políticas públicas de saúde da mulher e do homem

GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS


O campo da saúde foi mudando ao longo do tempo e, atualmente, ele se ancora em uma
perspectiva mais ampliada de modo que, além dos aspectos biológicos, outros fatores são
considerados nas demandas da saúde-doença. Marcadores como gênero, raça, etnia, cultura,
entre outros, são considerados ao se pensar a construção de políticas públicas. Nesse sentido,
para que a política pública seja eficiente e eficaz, é preciso pensar estrategicamente em como
abarcar as singularidades dos grupos público-alvo.

Para pensar de modo estratégico em como aproximar e garantir cuidados em saúde para
homens e mulheres, o SUS foi se embebendo da perspectiva do gênero na organização de
seus serviços. Se gênero é uma categoria para interpretarmos a sociedade como um todo,
nesse momento, estamos interessados em lançar luz à relação entre essa categoria e o campo
das políticas públicas.
AO ANALISAR POLÍTICAS PÚBLICAS E PROGRAMAS
GOVERNAMENTAIS A PARTIR DA PERSPECTIVA DE
GÊNERO, PRETENDE-SE IR ALÉM DA IDENTIFICAÇÃO
DE POLÍTICAS E PROGRAMAS QUE ATENDAM A
MULHERES, EMBORA A IDENTIFICAÇÃO DE TAIS
POLÍTICAS SEJA UM MOMENTO NECESSÁRIO DA
PRÓPRIA PESQUISA. AO ADOTAR O CONCEITO DE
GÊNERO COMO REFERÊNCIA PARA A ANÁLISE,
PROCUROU-SE CHAMAR A ATENÇÃO PARA A
CONSTRUÇÃO SOCIAL E HISTÓRICA DO FEMININO E
DO MASCULINO E PARA AS RELAÇÕES SOCIAIS
ENTRE OS SEXOS, MARCADAS EM NOSSA
SOCIEDADE POR UMA FORTE ASSIMETRIA.

(FARAH, 2004, p. 47-48)


Dito isso, precisamos, primeiramente, entender que, ao falarmos de políticas públicas a partir
do gênero, é imprescindível dar-se conta das questões particulares de homens e de mulheres.
E não só de mulheres! Gênero é relação e, portanto, diz sobre todos e todas. Homens e
mulheres, ao longo da vida, em função de questões sociais e culturais, tendem a estar mais ou
menos vulneráveis a algumas questões.

Precisamos interseccionar gênero e outros marcadores para compreender como um fenômeno


psicossocial produz práticas, políticas e dispositivos sociais diferentes entre homens e
mulheres.

 EXEMPLO

É interessante refletir sobre por qual motivo o seguro de carros de homens jovens é mais caro
que os planos para mulheres. Mas vamos entender como isso aparece no caso da saúde.

GÊNERO E SAÚDE
As políticas públicas de saúde, que tomam o gênero como um marcador, dividem-se em dois
grandes blocos. A saúde da mulher e a saúde do homem.

A saúde da mulher é pensada a partir das fases da vida das mulheres e, no âmbito da
Estratégia Saúde da Família (ESF), esse sistema implica pensar a mulher para além da
materialidade biológica, reconhecendo que na trajetória de existência da mulher brasileira
encontram-se dificuldades, preconceitos, discriminações e violências que precisam ser
considerados. Também precisamos estar atentos a toda a potência de vida que essas mulheres
constroem em seus itinerários.

A atenção à saúde da mulher precisa, portanto, estar embebida em interseccionalidade para


que a política pública seja eficaz. Afinal, todas as marcas sociais, econômicas, culturais e
raciais construirão essa mulher. Isso prova que, para compreender a vulnerabilidade de risco a
algumas complicações em saúde, o gênero é imprescindível!
Em linhas gerais, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, de 2004,
pretende melhorar as condições de vida e saúde das mulheres brasileiras por meio da
promoção, prevenção, assistência e recuperação da saúde, contribuindo para a redução da
morbidade e mortalidade feminina no Brasil, especialmente por causas evitáveis, em todos os
ciclos de vida e nos diversos grupos populacionais.

Ressaltamos que a saúde da mulher não pode ficar restrita a questões gineco-obstétricas, uma
vez que ela está para além do seu útero.

Foi por meio do debate de gênero protagonizado pelas feministas que a saúde da mulher não
ficou centrada unicamente nas questões de saúde materno-infantil. Muito pelo contrário, a
saúde da mulher é organizada também tendo em vista o prazer, o desejo e a autonomia sexual.
No entanto, essa autonomia tem limites culturais e estatais.

 EXEMPLO

Pense no aborto. Ele está diretamente relacionado com questões genitais e sexuais, mas não
só. Isso porque, se você vive no Brasil, certamente sabe que o aborto permanece sendo um
tema político, religioso e moral.

ABORTO E SAÚDE
Mulheres interrompem a gravidez desde sempre. E, mais do que isso, no caso do Brasil, o
abortamento representa uma das principais causas de mortalidade materna, configurando-se
como um problema de saúde pública.

No Brasil, dados indicam que o aborto provocado é um fenômeno frequente e persistente entre
as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões: em
2016, quase 1 em cada 5 mulheres aos 40 anos já realizou, pelo menos, um aborto. Em 2015,
foram, aproximadamente, 416 mil mulheres. Há, no entanto, heterogeneidade dentro dos
grupos sociais. Como já mostrado em pesquisas, metade das mulheres utilizou medicamentos
para abortar, e quase metade das mulheres precisou ficar internada para finalizar o aborto
(DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017).

CONTRÁRIO AOS ESTEREÓTIPOS, A MULHER QUE


ABORTA É UMA MULHER COMUM. O ABORTO É
FREQUENTE NA JUVENTUDE, MAS TAMBÉM OCORRE
COM MUITA FREQUÊNCIA ENTRE ADULTAS JOVENS.
ESSAS MULHERES JÁ SÃO OU SE TORNARÃO MÃES,
ESPOSAS E TRABALHADORAS EM TODAS AS
REGIÕES DO BRASIL, TODAS AS CLASSES SOCIAIS,
TODOS OS GRUPOS RACIAIS, TODOS OS NÍVEIS
EDUCACIONAIS E PERTENCERÃO A TODAS AS
GRANDES RELIGIÕES DO PAÍS. ISTO NÃO QUER
DIZER, PORÉM, QUE O ABORTO OCORRA DE FORMA
HOMOGÊNEA EM TODOS OS GRUPOS SOCIAIS. HÁ
DIFERENÇAS QUE MERECEM ATENÇÃO DE ANÁLISES
ADICIONAIS, EM PARTICULAR AS MAIORES TAXAS
ENTRE MULHERES DE BAIXA ESCOLARIDADE E
RENDA, PRETAS, PARDAS E INDÍGENAS, ALÉM DAS
EXPRESSIVAS DIFERENÇAS REGIONAIS.

(DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017, p. 659)

Mulheres sem muitas condições financeiras recorrem a procedimentos ilegais, sem qualidade,
que colocam em risco as suas próprias vidas. Quem morre pela ilegalidade do aborto no Brasil
são as mulheres pretas e pobres. O aborto, portanto, é um problema social, econômico e
cultural.

Mulheres abortam. A questão é como reduzir os danos, e não como impedir a sua prática, uma
vez que, como falamos, mulheres interrompem gravidezes desde sempre. Nesse contexto,
como profissionais da saúde, devemos garantir bem-estar e acolhimento a essas mulheres, as
quais já estão fragilizadas pelas escolhas que fizeram.

No Brasil, o aborto induzido só é legalizado e, portanto, realizado por médico em três


condições: risco de vida à mãe, gravidez resultado de estupro e anencefalia fetal. Em qualquer
outro caso, o aborto induzido é crime, com pena prevista de 1 a 3 anos de detenção para a
gestante, e de 1 a 4 anos de reclusão para o médico ou qualquer outra pessoa que tenha
realizado o procedimento de retirada do feto.

A cena do aborto nunca será confortável para uma mulher, e é preciso que estejamos
preparados como equipe de saúde para lidar com isso, seja nos casos legalizados ou em
outros.

É preciso lembrar que somos profissionais da saúde, e não operadores morais de


condutas alheias.

Em 2005, o Ministério da Saúde publicou a Norma técnica de atenção humanizada ao


abortamento como resposta a esse problema de saúde pública. O que sabemos, no entanto, é
um pouco alarmante: várias mulheres que apresentam complicações em função do aborto são
tratadas como criminosas por profissionais de saúde e, em inúmeros casos, elas não são
atendidas por profissional da Psicologia ou do Serviço Social como preconiza a norma técnica
(GONZAGA; ARAS, 2016).

Não se trata de ser a favor ou não do aborto, mas, sobretudo, de garantir cuidados em saúde a
quem precisar deles. Precisamos fazer valer a norma técnica em questão. Só assim seremos,
de fato, profissionais responsáveis e mantenedores de saúde. Isso porque essa normativa
aponta os procedimentos que devem ser realizados para garantir o direito à saúde, à
informação e à autonomia das mulheres que buscam realizar um aborto legal ou sanar
complicações decorrentes de um aborto provocado em situações inseguras (GONZAGA;
ARAS, 2016).

 ATENÇÃO

O SUS serve para garantir saúde a todas! Até para as pessoas das quais, individualmente,
discordamos.

SAÚDE DO HOMEM
Assim como na saúde da mulher, a saúde do homem responde a uma infinidade de
atravessadores biopsicossociais que trazem algumas especificidades ao se pensar uma
política pública de cuidado e assistência a ele.

As várias modificações no decorrer da vida de sujeitos do gênero masculino mostram que


variáveis culturais e atravessamentos de gênero potencializam uma série de crenças e valores
do que é ser homem que os tornam mais vulneráveis às doenças, sobretudo às enfermidades
graves e crônicas. Em linhas gerais, isso prova que os homens morrem mais precocemente
que as mulheres (BROLEZI; MARQUES; MARTINEZ, 2014).

As políticas públicas de saúde voltadas para esse grupo são produzidas para reduzir o impacto
social das mortes em homens.
DADOS DE PESQUISAS DO ANO DE 2011 REVELARAM
QUE DOENÇAS DO APARELHO CIRCULATÓRIO,
CAUSAS EXTERNAS, NEOPLASIAS E DOENÇAS DO
APARELHO RESPIRATÓRIO FORAM AS QUATRO
PRINCIPAIS CAUSAS DE MORTE ENTRE HOMENS.
CONTUDO, COMPLICAÇÕES DESSE GÊNERO
PODERIAM SER EVITADAS SE OS HOMENS
REALIZASSEM MEDIDAS DE PREVENÇÃO PRIMÁRIA.

(BROLEZI; MARQUES; MARTINEZ, 2014, p. 3)

No entanto, apesar de as taxas masculinas assumirem um peso significativo nos perfis de


morbimortalidade, observa-se que a presença de homens nos serviços de atenção primária à
saúde é menor do que a das mulheres (BROLEZI; MARQUES; MARTINEZ, 2014).

As doenças cardiovasculares são uma das principais causas de morte dos homens, e isso se
relaciona aos fatores de risco provenientes de hipertensão arterial, obesidade, diabetes mellitus
e alguns hábitos de estilos de vida menos saudáveis como dieta rica em calorias, gorduras
saturadas, consumo de bebida alcoólica, tabagismo e sedentarismo.
Por causalidade externa, o que significa traumatismos, lesões ou quaisquer outros agravos à
saúde como consequência direta de violência ou outra causa exógena, os homens também
lideram o ranking de mortes. O aumento da taxa de homicídio nos últimos anos tem levado
adolescentes e adultos jovens a perderem potenciais anos de vida.

Por fim, homens vão à óbito por câncer de próstata, tumor de testículo e câncer de pênis, ainda
que este último seja bastante raro. No entanto, ainda que raro, tal prevalência é explicada por
diversos fatores de risco, sendo os principais: má higiene íntima e presença do HPV.

Por qual razão os homens se colocam em situações de risco, fazendo com que morram por
causas externas? E, ainda, por que se cuidam tão pouco a ponto de morrerem por causas
evitáveis?

A resposta a essa pergunta, certamente, perpassa as próprias expectativas do que é ser


homem na sociedade. Para parte da cultura masculina, características como dor, fraqueza,
medo, ansiedade, insegurança e necessidade de cuidados são antagônicas à ideia de ser
homem.

O Ministério da Saúde, ao se dar conta disso, a partir de agosto de 2009, institucionalizou a


Política nacional de atenção integral à saúde do homem, o que está diretamente associado à
agenda com as demais políticas públicas voltadas para a promoção da equidade de gênero.

Isto é, em função da maior resistência dos homens em buscar os serviços no nível da atenção
básica por associarem prevenção e autocuidado à fragilidade, agravam-se a saúde e a morte
precoce do grupo masculino. Isso requer atenção de toda a rede de saúde para
conscientização dos homens na construção de suas autonomias em saúde.

 EXEMPLO

Uma política que considera a diversidade de gênero masculina é a utilização do termo


homens que fazem sexo com homens (HSH) junto a bissexual e gay/homossexual
masculino.

Para muitos homens que realizam práticas de afetividade e sexualidade com outros homens, o
termo homossexual/gay/bissexual seria demasiado, forte e taxativo, e poderia trazer questões
afetivas e pessoais desconfortáveis para o sujeito que prefere não se identificar a uma cultura
LGBTQIA+. Estariam inclusos homens gays não assumidos, homens heterossexuais casados
que praticam sexo com outros homens, presidiários e egressos do sistema prisional que,
eventualmente, fazem sexo com outros homens etc.

O desafio de uma campanha em saúde para que os homens acessem o SUS deve considerar
que nem todo homem que faz sexo com homem se identifica aos termos colocados política e
culturalmente ao campo LGBTQIA+. O termo HSH é um dos exemplos que fazem com que a
política de saúde dos homens seja possível para prevenção e cuidados ao HIV e a outras ISTs.
Interseccionar a categoria da masculinidade é muito importante. Não há um jeito único
de ser homem no mundo!
Pensar a masculinidade de jovens negros e periféricos é primordial para se construir cuidado
em saúde. Afinal, no Brasil, um jovem negro tem mais chance de perder a vida do que um
jovem branco, portanto a saúde do jovem negro e a do jovem branco não são iguais. Isso nos
obriga a compreender saúde para além de dimensões biomédicas. Sem pensar raça, gênero,
classe e sexualidade, podemos cair na armadilha de acreditar que existe um sujeito universal
do SUS, o que não é verdade!

Somos diferentes, e nossas diferenças nos colocam em lugares distintos de qualidade de vida
e de adoecimento. É central que pensemos a saúde de forma interseccionada com marcadores
da diferença-desigualdade para que possamos produzir condições e desejo de vida na maior
parte da população.
ATENÇÃO HUMANIZADA AO
ABORTAMENTO E ATENÇÃO À SAÚDE DO
HOMEM
Neste vídeo, o especialista reflete sobre a importância da Norma técnica de atenção
humanizada ao abortamento e a Política nacional de atenção integral à saúde do homem na
interseccionalidade gênero e saúde no Brasil.

VEM QUE EU TE EXPLICO!


Políticas públicas a partir do gênero

Saúde da mulher além do seu útero

VERIFICANDO O APRENDIZADO

MÓDULO 4

 Empregar a ética no cuidado em saúde frente à diversidade sexual

POR UMA PRÁTICA PROFISSIONAL DE


CUIDADO SEM MORALIZAÇÕES
Várias pessoas se referem à sexualidade como tema tabu ou polêmico, como se a discussão
de questões referentes a esse campo tivesse que permanecer no espaço privado e estas
jamais pudessem ser alçadas como coletivas e públicas.

Provavelmente, você já deve ter escutado que não se discute religião, política e futebol no
Brasil. Mas, enquanto, de fato, religião e futebol apontam para questões individuais, a política é
a esfera de decisão sobre o bem público.

Como é possível decidir sobre os bens compartilhados de uma sociedade sem debate?
Ficaremos reféns das pessoas que decidem sobre o destino de nossa comunidade e sociedade
sem que possamos disputar o que é bom para nós e para o mundo? O debate é parte central
da política!

Não queremos fazer uma discussão panfletária da sexualidade humana, mas é preciso
reconhecê-la dentro de um debate ético para que não localizemos os estudos sobre
sexualidade no âmbito de opiniões individuais e morais.

A MORAL, PORTANTO, REFERE-SE À


NORMATIVIDADE ORIUNDA DA SOCIEDADE, REFERE-
SE AOS COSTUMES, ÀS NORMAS E ÀS REGRAS QUE
PERMEIAM O COTIDIANO E QUE VISAM REGULAR AS
RELAÇÕES ENTRE OS SUJEITOS. A ÉTICA É A
REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE A MORAL, OU SEJA,
PENSAR NAQUILO QUE SE FAZ, REPENSAR OS
COSTUMES, AS NORMAS E AS REGRAS VIGENTES
NA SOCIEDADE. AO REFLETIR CRITICAMENTE
SOBRE A MORAL, O SUJEITO ASSUME UMA
POSTURA ATIVA ― CONDIÇÃO ESSENCIAL PARA A
EXISTÊNCIA DO SUJEITO ÉTICO ― POIS NÃO LIMITA
SUA AÇÃO ÀS CIRCUNSTÂNCIAS, À VONTADE DE UM
OUTRO OU AQUILO QUE É CONSIDERADO
MORALMENTE COMO SENDO CERTO OU ERRADO. O
SUJEITO ÉTICO/ATIVO INDAGA, PROBLEMATIZA,
AVALIA, DEBATE ANTES DE PARTIR PARA A AÇÃO.

(MEDEIROS, 2002, p. X)
Ao assumirmos o lugar das ciências em saúde, precisamos garantir que a ética seja nosso
horizonte de partida e de chegada para os saberes e fazeres que produzimos para cuidar. O
campo da saúde precisa ter uma postura ética e de respeitabilidade diante do outro,
entendendo a diversidade sexual e a diferença como inerentes à experiência humana e jamais
como aspectos que são “aceitáveis” de um lado ou “anormais” do outro.

 COMENTÁRIO

Se os padrões de sexualidade que atualmente sustentamos foram definidos pelas crenças e


pelos valores da sociedade, precisamos de uma base ética que nos ajude a fortalecer uma
prática profissional de cuidado sem moralizações.

O histórico religioso das profissões da assistência e do cuidado já foi abandonado pelos atuais
e críticos projetos ético-políticos dessas profissões. Se é certo que o Estado brasileiro é laico,
todos podem professar a religião que bem entenderem; se é certo também que o Brasil não é
uma teocracia, nenhum modelo religioso pode nos organizar como cidadãos. Pela perspectiva
ética do cuidado, nenhum profissional da saúde pode assumir comportamento religioso ou
julgamento direcionado às questões sexuais dos usuários das políticas públicas.

O caráter familista das políticas de cuidado, assistência e saúde no Brasil, portanto, preveem
que todos os membros da família brasileira sejam assistidos em cuidados em toda a sua
diversidade. Falaremos um pouco mais sobre família para, em seguida, tecermos algumas
relações imprescindíveis com o campo da sexualidade.

POLÍTICAS PÚBLICAS E FAMÍLIA


O foco das políticas públicas brasileiras precisa considerar a relação do Estado com a família
― uma instituição social ―, que é central na organização da vida afetiva e comunitária de
todos nós. A família é um dos principais locais em que nos re(produzimos) como seres sociais
e cidadãos. É nela que construímos interesses, desejos, projetos, competências e habilidades,
pensamentos, visões de mundo etc. Evidentemente, as prescrições da família não precisam
ser nosso destino, e podemos, durante a vida, discordar ou criar outros parâmetros de
existência para nossa caminhada. No entanto, é inegável o papel que a família tem como
instituição socializadora e estruturante das nossas subjetivações.

A instituição família, para muito além dos atravessamentos de uma transmissão genética
comum, desempenha influência na construção de possibilidades e limites para o que podemos
ser. Mais do que uma herança biológica, a família nos impõe uma herança social, transmitindo
para seus descendentes as posições de classe, os privilégios ou as dificuldades que marcam a
trajetória dela.

Não há destino biológico nisso e descendentes de famílias pobres, por exemplo, podem
ascender economicamente. No entanto, a origem popular permanece sendo um operador de
subjetivação, ainda que seja pela via de sua negação.

A TEORIA SOCIAL TEM, PORTANTO, LOCALIZADO NA


FAMÍLIA O CENTRO DO PROCESSO DE REPRODUÇÃO
SOCIAL E, PORTANTO, UM LUGAR DECISIVO PARA
INTERVIR EM REALIDADES SOCIAIS INDESEJÁVEIS,
COMO A POBREZA E O BAIXO CAPITAL HUMANO. O
FOCO TEM SIDO, SOBRETUDO, A REFLEXÃO SOBRE
OS DESTINOS DAS GERAÇÕES FUTURAS, PENSANDO
A ORGANIZAÇÃO E OS RECURSOS FAMILIARES EM
SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA A SOCIALIZAÇÃO DOS
FILHOS.

(ITABORAÍ, 2005, p. 2)

O Estado liberal e moderno, ao construir a ideia de família como guardiã da propriedade


privada, assumiu também que a família seria um lugar de proteção social e de asseguramento
de direitos para seus descendentes. No entanto, as crises do capitalismo liberal mostraram as
fragilidades da família como uma instituição total e perfeita. E, nessa direção, a sociedade civil
organizada exigiu que o Estado cumprisse com uma função de bem-estar social e investisse
em seu povo na garantia de direitos que algumas famílias ― mais fragilizadas econômico,
cultural e politicamente ― não seriam capazes de prover por si mesmas.

A ideia de cidadania começa a se deslocar da família e da contribuição previdenciária – que


durante muito tempo foi o critério para o acesso a serviços da população –, tornando-se
universal, e não mais focalizada a situações específicas. Todo cidadão brasileiro teria acesso a
serviços considerados básicos. Estava aí construído o tripé da Seguridade Social brasileira, no
intuito de reduzir a violência, a pobreza e a desumanização do povo brasileiro:

Assistência social

Saúde

Previdência

Historicamente, a família tem sido tomada como mantenedora da paz ou, pelo menos, como
uma aliada na construção de bons princípios e valores para a maximização da cidadania de
seus descendentes.

Mas isso é uma verdade absoluta?

Pense na sua família. Há uma coerência absoluta nos laços sociais que vocês estabelecem?
Todos se amam e se respeitam igualmente? Todos colaboram para que tenham seu
desenvolvimento humano garantido ao máximo?

Se, nas sociedades pré-modernas, a segurança provinha do pertencimento a grupos sociais


dentro dos quais o sujeito precisava se submeter a laços de dependência, o Estado providência
― o Estado de bem-estar social garantido pelo Estado brasileiro pós-Constituição de 1988 ―
assegura aos indivíduos alguns direitos por meio da visão de um cidadão individualizado, mas
também coletivo.

O Estado reconhece que todas as famílias se estruturam segundo relações de poder que não
garantem uma redistribuição equânime de recursos simbólicos e materiais aos seus
descendentes. Ainda assim, entende que não conseguirá, jamais, colaborar com a manutenção
de um projeto cidadão sem o apoio das famílias. E, por isso, por meio da promoção de políticas
públicas, pede apoio à família: uma instituição social, inevitavelmente central na formação de
qualquer sujeito que habita o mundo ocidentalizado e capitalista-liberal.

Percebe que, no âmbito das políticas públicas, essa contradição move o cuidado e a
assistência?

Se a família, portanto, é uma grande contradição ― como qualquer outra instituição social ―, é
justamente nesse local em que se espera amor que cenas violentas despontam como um
problema público. Você sabia, por exemplo, que a maior parte de estupros, feminicídios e
abusos sexuais infantis é realizada por membros da família? (GASPAR; PEREIRA, 2018). Já
parou para pensar que essa família violenta é a mesma que se recusa a debater gênero e
sexualidade humana com seus descendentes e se opõe à presença desse debate no espaço
da escola? Se a família que violenta seus membros se recusa a ensinar sobre gênero e
sexualidade e não deseja que isso seja debatido na escola, onde mais crianças e adolescentes
aprenderão sobre ISTs, autonomia do desejo, consentimento, auto-higiene, prevenção ao
abuso sexual etc.?

Com base na acusação de que a discussão de gênero e sexualidade geraria uma “ideologia de
gênero” que acabaria com os princípios da família tradicional, parte da sociedade brasileira tem
se colocado contra o ensino crítico sobre sexualidade nas escolas.
“IDEOLOGIA DE GÊNERO”: UM CONCEITO
IMPOSSÍVEL CIENTIFICAMENTE
O gênero é uma categoria de análise sócio-histórica que se recusa a enxergar as diferenças e
as desigualdades entre homens e mulheres apenas como questões biológicas como,
historicamente, muitas leituras patriarcais assim o fizeram. Em outras palavras, gênero é uma
“lente de análise” para enxergar as relações sociais e como elas padronizam, em um contexto
histórico e político, os papéis sociais distintos e desiguais para homens e mulheres.

Se gênero é um campo de estudos que visibiliza processos invisíveis e ideologia é um conceito


que mostra como somos impedidos de ver a realidade, você percebe que o termo ideologia de
gênero não faz nenhum sentido científico?

A ideologia é um sistema de poder que nos faz tomar processos históricos como realidades
verdadeiras e naturais da sociedade. Assim, alienamo-nos de vários processos violentos e os
tomamos como natureza e destino. E, nessa direção, não questionamos absolutamente nada.
A ideologia nos faz ver o mundo sem história e, portanto, sem possibilidade de mudança,
tornando-nos submissos às escolhas daqueles que possuem poder, afinal, nada poderia ser
feito. O mundo é assim e ponto final!
O gênero atua, justamente, no sentido contrário. Ele é o movimento teórico-político que nos
torna conscientes de processos de construção de masculinidades e feminilidades não como
horizontes biológicos, mas, sobretudo, como construções políticas e culturais que mantêm
homens e mulheres em posições de desigualdade. Uma vez munidos do debate do gênero,
reconhecemos que podemos nos transformar.

Assim, ideologia e gênero são termos excludentes e, portanto, a expressão não faz,
absolutamente, nenhum sentido científico. Ideologia, para as Humanidades, não é qualquer
ideia ou valor em geral, mas ideias e valores que nos mantêm cegos no que diz respeito à
compreensão dos sistemas de poder que degradam o mundo. O gênero é um sistema de poder
que, inevitavelmente, ensina-nos o que seria propriamente dos homens e, por outro lado, o que
pertenceria ao mundo das mulheres, ainda que esses ensinamentos sejam frágeis para alguns
e uma verdade absoluta para outros.

Ideologia é alienação. O estudo de gênero é crítico!

Não seria interessante que todos pudessem saber que algumas prescrições de gênero e
sexualidade não são verdades universais e que existem outros modos de organizar o desejo?
Aprender isso não implica tornar heterossexuais em homossexuais ou pessoas cis em pessoas
trans. Significa, apenas, reconhecer que há uma diversidade no mundo que merece ser
garantida e valorada.
EDUCAÇÃO SEXUAL: CONSTRUINDO UMA
ÉTICA DA DIVERSIDADE
Já ouviu falar de crianças que conseguiram se dar conta de que passavam por abusos sexuais
porque elas tiveram aulas de educação sexual e de prevenção ao abuso no ambiente escolar?

Nesse caso, as políticas públicas voltadas para o gênero e a sexualidade são primordiais como
dispositivo educador por meio dos cuidados em saúde em qualquer nível de atenção; em
todos os equipamentos da Assistência Social e, também, na escola.

É para a ordem do dia a necessidade de se pensar estratégias de intervenção, em todos os


âmbitos em que se possa imaginar, em que a temática do gênero e da diversidade seja
utilizada para se garantir a construção de um mundo que respeite a diversidade sexual e
impeça violências e abusos infantojuvenis.

CONSTRUINDO UMA ÉTICA DA


DIVERSIDADE
Neste vídeo, o especialista reflete sobre como as políticas públicas voltadas para o gênero e a
sexualidade são primordiais como dispositivo educador por meio dos cuidados em saúde em
qualquer nível de atenção.

VEM QUE EU TE EXPLICO!


A contradição que move o cuidado e a assistência

Ideologia e gênero são termos excludentes

VERIFICANDO O APRENDIZADO

CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste conteúdo, vimos que a sexualidade é um processo biopsicossocial e, portanto, requer
forte investigação científica para que possamos compreendê-la em toda a sua complexidade.

Dentro desse contexto, foi possível localizar a importância de políticas de inclusão e cuidado
para a população LGBTQIA+ de modo que essa comunidade tenha acessos e direitos em
saúde garantidos pelo Estado conforme prediz a Constituição de 1988.

Ao mesmo tempo, avaliamos algumas políticas de saúde específicas para homens e mulheres,
reconhecendo que as demandas do processo de saúde-doença são atravessadas por questões
simbólicas e culturais.

Por fim, defendemos o campo da educação sexual como um caminho para o autocuidado, a
autonomia no desejo e a proteção de abusos e violências relacionados à sexualidade.

 PODCAST
Neste podcast, o especialista irá destacar a importância da consciência por parte do
profissional de saúde para compreender a sexualidade humana como um processo simbólico e
cultural.

AVALIAÇÃO DO TEMA:

REFERÊNCIAS
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RICH, A. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas-Estudos gays:


gêneros e sexualidades, v. 4, n. 5, 2010.

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Para saber mais sobre o conteúdo estudado, recomendamos:

Assista ao vídeo Psicologia e relações de gênero e sexualidade, do Conselho


Regional de Psicologia de São Paulo, disponível no YouTube.

Assista ao vídeo Gênero e saúde, de PAHO TV, disponível no YouTube.

Assista ao vídeo Papo saúde - violência de gênero, de Telessaúde SC, disponível no


YouTube.

CONTEUDISTA
Ricardo Dias de Castro

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