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Suely Figueiredo
O mesmo podemos dizer das informações com que trabalham programadores digitais e
engenheiros eletrônicos. Eles montam algoritmos com base na regularidade com que pulsos de
energia – eletromagnéticos ou fótons ou unidades de calor ou quânticas -, quando controlados e
conduzidos, carregam informações identicamente controladas e transmissíveis. Vejam que o que
eles dominam é a relação de regularidade entre tipos de pulso e a resposta que provocam, ou
seja, a informação que carregam. É um tipo de relação mágica, como a atração entre corpos,
que, por ser constante e mensurável, chamamos de lei da natureza.
Esses exemplos, entre tantos outros que poderíamos reivindicar, mostram como a
trajetória do conhecimento nos levou a reconhecer, por exigências explicativas, a informação
como um componente da natureza. Porém, embora o seu reconhecimento e suas tantas
definições restritas a cada área permitam que realizemos ações vantajosas para a humanidade, a
informação ela mesma, sua natureza e existência, ainda são, para nós, um mistério.
Parece que a informação existe, mas é virtual. Sua presença é real, embora ela mesma
não seja matéria nem energia. Essa constatação, inexorável a essa altura, nos sitia e exige
mudanças epistemológicas. O homem contemporâneo exibe familiaridade com a natureza
fugidia da informação e adquire uma capacidade de raciocinar sobre entidades que não cabem
no entendimento estanque até então praticado. Se nos tornamos capazes de compreender o que é
a informação, então devemos ser capazes de conceber algo que a princípio não é, mas que,
percorrido um processo, passa a ser.
Parece muito estranho, eu concordo, quando colocado desta forma. Mas o que a
epistemologia contemporânea demonstra estar madura para conceber é algo que, com certeza,
gera estranhamento para os ainda não familiarizados. Assim são os avanços epistêmicos.
Imagine a dificuldade de Newton para convencer os acadêmicos de sua época que uma suposta
atração entre os corpos seria a responsável pela gravidade: uma força invisível que puxa a
matéria para próximo de onde há mais matéria. Foi preciso muito cálculo, muita explicação,
muitos exemplos e constatações para que pudéssemos citar a lei de atração dos corpos com tanta
naturalidade.
É algo assim que filósofos e cientistas esperam que aconteça em relação à informação.
A informação não se limita a commodity, como a trata a Biologia, nem à medição de grandezas,
como a trata a Física. Ela não é uma entidade estanque, e sim o que o bioantropólogo e cientista
cognitivo de Berkeley Terrence Deacon chama de entidade entencional: algo que a princípio
não existe mas que já aponta para um fim específico, e que só será (só poderá ser reconhecido)
quando tal fim for atingido. Ou seja, um processo.
O mesmo processo pode ser percebido na forma de pensar que demonstramos ter da
primeira era histórica a nossos dias. Os mitos já foram nossas melhores explicações. Mas,
depois que os filósofos gregos nos chamaram a atenção para os poderes da razão, as explicações
míticas já não nos pareceram tão boas. Historicamente, fomos substituindo nossas explicações
infantis por explicações mais resistentes à reflexão e adequação material.
A forma de pensar determinista, que põe tudo em termos de causa e efeito, teve seu
auge no acelerado progresso científico que o século 18 e 19 nos legaram. Porém, com o advento
das Grandes Guerras frustrando as mais nobres aspirações iluministas e positivistas que uma
epistemologia excessivamente racional havia projetado, o homem contemporâneo novamente
investe na qualificação de seu entendimento, numa capacidade de compreender o que nos cerca
de um ponto de vista mais equilibrado, reconhecendo o inescapável mundo do determinismo
mas conseguindo perceber, para além dele, processos de auto-organização, de evolução e de
outros fenômenos desta natureza, cujo comportamento não se limita à causa-e-efeito, mas
agrega, à dinâmica determinista, a realização de algumas possibilidades fenomenológicas e o
impedimento de outras.
Só no século 20 a evolução foi admitida como científica, foi possível conceituar a auto-
organização, conceber o uso de características quânticas de partículas para gerar efeitos
materiais controlados (para nossos padrões perceptíveis, é claro) como o comportamento de
fótons na tela eletrônica; conceber uma matemática dos sistemas complexos, uma teoria do
caos, uma física não-newtoniana e uma geometria não-linear. O século passado explorou várias
tentativas de compatibilização entre processamento algorítmico de informação e dispositivos
neuronais da cognição, e fez investimentos volumosos em inteligência artificial. Foi o século
que desembocou na ‘virada informacional da filosofia’, anunciada pelo filósofo Frederick
Adams, e nos legou novos comportamentos sociais propiciados pela internet. São questões que
só se revelaram ao homem contemporâneo, pois só ele reúne bagagem e disposição cognitiva
para tal.
A Virada Informacional da Filosofia
Teorias referentes aos três tópicos acima permearam os últimos cem anos. Sobre a
natureza e comportamento da informação, a teoria matemática da comunicação, de Shannon,
publicada em 1947, pode ser considerada um marco. Apesar de Shannon ser um engenheiro e
estar apenas interessado em desenvolver um modo eficiente de transmitir mensagens eletrônicas
com fidedignidade, rapidez e perda mínima, seu modelo matemático revelou muito sobre
informação.
Uma das vertentes dessa teorização aderiu à ideia de informação enquanto elemento
presente no mundo. Debateu-se muito a respeito da informação não ser matéria nem energia.
Chegou a ser sugerido, em 1948, pelo pai da cibernética Norbert Wiener, que o mundo seria
feito de matéria, energia e informação. Explicações mais radicais aboliram a matéria e a energia
e adotaram apenas a informação como o constituinte fundamental de tudo o que existe. Esse
impasse, ainda em discussão, é uma forte evidência da virada informacional que desejamos
explicitar.
O aperfeiçoamento de máquinas inteligentes, inspiradas no modelo algorítmico de
Turing, que desconstrói as ações num passo-a-passo binário e torna a integrá-las em novos
suportes, transferindo, assim, a capacidade de realizarem funções e de se retroalimentarem em
busca de uma aproximação com o universo de geração de organismos vivos, contaminou a
segunda metade do século.
Porém, essa ideia não floresceu sem a devida crítica, advinda principalmente do campo
da Filosofia com Searle, Dretske e outros que rapidamente perceberam que o fenômeno da
intencionalidade envolve algo mais que a complexificação de algoritmos. Esse também é, com
certeza, um debate-consequência da virada informacional.
Vale observar que o desconforto dos pensadores e cientistas modernos com a metafísica
da subjetividade herdada de Descartes também tem peso nessa virada. A ânsia de que o ser
humano seja mais do que seu corpo mortal e a experiência de um ‘algo que falta’ frente a um ser
sem vida acalentaram por milênios um dualismo fenomenológico que simplesmente não se
confirmou em nenhuma instância da ciência.
Pelo contrário, o conhecimento de alguns sistemas funcionais dos neurônios, dos genes
e dos sistemas orgânicos em geral direcionaram o olhar criterioso do cientista para a falência
total do dualismo cartesiano. Ao mesmo tempo, dado tal contexto, a possibilidade de uma
explicação pelo viés da informação vem atender em cheio as exigências desse enfoque
contemporâneo e encontra, entre os acadêmicos, uma disposição ao entendimento muito
favorável.
A virada informacional, para filósofos como Gonzalez, Broens e Morais, no entanto,
manter-se-á tímida e conservadora se não questionar o caráter representacional que
historicamente pautou as reflexões filosóficas sobre a mente e linguagem, e que pode estar
viciando nosso olhar, como desconfiam esses filósofos. A questão primordial gira em torno da
forma como incorporamos as informações. Informações são semânticas e precisam de um
sistema de signos mediador para serem processadas ou informações podem ser captadas
diretamente dos sentidos para a mente, sem mediação linguística ou de nenhuma natureza?
Esclarecendo: caso a informação exista na natureza e, num contexto de comunicação,
precise ser decodificada antes de entendida, ou seja, ela representa algo que nos seria revelado
após a decodificação, caberia à mente todo o trabalho e o entendimento seria um processo
interno. Caso a informação seja criada a partir da relação do organismo com o ambiente e
absorvida diretamente pela percepção ou ação, estaríamos num patamar não-representacional, a
informação seria um elemento dinâmico e o entendimento habitaria a interface interior x
exterior. Eis mais um problema descortinado pela virada.
Queremos finalizar a caracterização de uma virada informacional na Filosofia
lembrando que, mesmo sem apontar, a princípio, algumas questões relevantes relacionadas à
representação e à semântica, uma guinada de foco como esta, capaz de contaminar tantas linhas
de pesquisa, é uma ruptura epistemológica e, como tal, nos revela fontes inéditas de
conhecimento confiável.
Das reflexões sobre a ontologia e metafísica da informação às discussões sobre o caráter
internalista ou externalista da comunicação realizada pela troca de mensagens cuja unidade é a
informação, das teorias cognitivas que investem no ‘pensar é computar’ às que negam a
possibilidade de uma explicação algorítmica da intenção, todas são questões atuais, intrigam
uma rede enorme de pesquisadores e se mantêm em pauta por que a virada informacional da
Filosofia é uma realidade e as respostas sobre o universo informacional que nos cerca, a
infosfera, como o chamam alguns autores, se fazem urgentes não só para a ciência e tecnologia,
mas também para a dimensão cotidiana, ética e psicológica do humano.
Referências:
ADAMS, F. The Informational turn in philosophy. Minds and Machines. Netherlands: Kluer Academic Publishers, v.
13, p. 471-501, 2003.
DECON, T. Incomplete Nature: How mind emerge from matter. W. W. Norton & Company; 1 edition, 2011.