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Contextualizando a Filosofia da Informação

Suely Figueiredo

Eu arriscaria dizer, na esteira daqueles que vinculam a tradição ao foco principal da


humanidade até o século 18, a razão ao século 19 e a linguagem ao século 20, que o século 21
está sendo o século da informação.

Todos já nos acostumamos com entidades como informação genética, nuvem de


informações, internet das coisas e outras tantas expressões e situações que demandam uma
concepção de informação e que utilizamos, manipulamos e compreendemos satisfatoriamente
sem problemas. Mas, se paramos para pensar, ou nos perguntam o que é mesmo uma
informação, somos imediatamente tomados por certa reticência.

A informação é um daqueles componentes do mundo que somos capazes de manipular e


utilizar, mas não de dizer do que se trata ou qual a sua natureza. Magnetismo, força e liberdade
são outros exemplos.

Durante o século 20, vários campos da ciência e da tecnologia referendaram suas


teorizações admitindo um componente talvez virtual, mas extremamente funcional, denominado
informação. A genética de Mendel deu origem a uma engenharia genética capaz de decompor o
genoma humano em sequências de informações reconhecíveis e aplicáveis. Com a informação
genética, que é algo que certas proteínas e outros arranjos químicos, em certas posições e
condições ambientais, repassam como ordens capazes de provocar direcionamentos e alterações
nos fenômenos e materialidade circundantes, curamos doenças, reconstruímos organismos e
produzimos clones. Mas nenhum geneticista conhece a natureza ontológica da informação. Para
ele, é apenas algo que, dada tais matérias e condições, imprime um direcionamento ao
fenômeno que for o caso.

O mesmo podemos dizer das informações com que trabalham programadores digitais e
engenheiros eletrônicos. Eles montam algoritmos com base na regularidade com que pulsos de
energia – eletromagnéticos ou fótons ou unidades de calor ou quânticas -, quando controlados e
conduzidos, carregam informações identicamente controladas e transmissíveis. Vejam que o que
eles dominam é a relação de regularidade entre tipos de pulso e a resposta que provocam, ou
seja, a informação que carregam. É um tipo de relação mágica, como a atração entre corpos,
que, por ser constante e mensurável, chamamos de lei da natureza.

A informação também está na base de toda termodinâmica, tendo em vista que


grandezas como pressão e dispersão são calculadas a partir de uma mecânica estatística, ou seja,
um cálculo de probabilidades de tipos de choque entre as unidades da matéria. Aqui a relação
mais mágica da informação está nas similaridades estruturais e energéticas - comprovadas a
ponto de se tornarem cálculos científicos – entre o comportamento das amostras e o
comportamento do todo.

Esses exemplos, entre tantos outros que poderíamos reivindicar, mostram como a
trajetória do conhecimento nos levou a reconhecer, por exigências explicativas, a informação
como um componente da natureza. Porém, embora o seu reconhecimento e suas tantas
definições restritas a cada área permitam que realizemos ações vantajosas para a humanidade, a
informação ela mesma, sua natureza e existência, ainda são, para nós, um mistério.

Parece que a informação existe, mas é virtual. Sua presença é real, embora ela mesma
não seja matéria nem energia. Essa constatação, inexorável a essa altura, nos sitia e exige
mudanças epistemológicas. O homem contemporâneo exibe familiaridade com a natureza
fugidia da informação e adquire uma capacidade de raciocinar sobre entidades que não cabem
no entendimento estanque até então praticado. Se nos tornamos capazes de compreender o que é
a informação, então devemos ser capazes de conceber algo que a princípio não é, mas que,
percorrido um processo, passa a ser.

Parece muito estranho, eu concordo, quando colocado desta forma. Mas o que a
epistemologia contemporânea demonstra estar madura para conceber é algo que, com certeza,
gera estranhamento para os ainda não familiarizados. Assim são os avanços epistêmicos.
Imagine a dificuldade de Newton para convencer os acadêmicos de sua época que uma suposta
atração entre os corpos seria a responsável pela gravidade: uma força invisível que puxa a
matéria para próximo de onde há mais matéria. Foi preciso muito cálculo, muita explicação,
muitos exemplos e constatações para que pudéssemos citar a lei de atração dos corpos com tanta
naturalidade.

É algo assim que filósofos e cientistas esperam que aconteça em relação à informação.
A informação não se limita a commodity, como a trata a Biologia, nem à medição de grandezas,
como a trata a Física. Ela não é uma entidade estanque, e sim o que o bioantropólogo e cientista
cognitivo de Berkeley Terrence Deacon chama de entidade entencional: algo que a princípio
não existe mas que já aponta para um fim específico, e que só será (só poderá ser reconhecido)
quando tal fim for atingido. Ou seja, um processo.

Apesar da dificuldade aparente, precisamos aprender a pensar em termos dinâmicos


para penetrar nos desafios epistemológicos de hoje. Se sabemos que informação não pode ser
classificada em termos de matéria e energia e temos certeza do quanto fundamental é trabalhar
com a informação no mundo científico, tecnológico e comunicacional em que vivemos, então
estamos desafiados a inventar uma metodologia que adicione fidedignidade a essa relação e nos
permita utilizar ao máximo o mundo de possibilidades que esse conhecimento nos oferece.
Essa metodologia deve, a priori, reconhecer que a humanidade percorre uma trajetória
epistemológica que amadurece sua capacidade de entendimento e argumentação da mesma
forma que uma criança amadurece rumo à vida adulta. A princípio explicações como ‘o bicho
papão escondido lá fora’ ou ‘o Papai Noel entrando em todas as casas do mundo ao mesmo
tempo’ não causam nenhuma estranheza à epistemologia infantil. Mas, conforme ela amadurece,
seus critérios de entendimento vão tornando-se exigentes e o embate entre argumentação e
contra-argumentação inteligente vai substituindo a crença ou a explicação superficial.

O mesmo processo pode ser percebido na forma de pensar que demonstramos ter da
primeira era histórica a nossos dias. Os mitos já foram nossas melhores explicações. Mas,
depois que os filósofos gregos nos chamaram a atenção para os poderes da razão, as explicações
míticas já não nos pareceram tão boas. Historicamente, fomos substituindo nossas explicações
infantis por explicações mais resistentes à reflexão e adequação material.

A forma de pensar determinista, que põe tudo em termos de causa e efeito, teve seu
auge no acelerado progresso científico que o século 18 e 19 nos legaram. Porém, com o advento
das Grandes Guerras frustrando as mais nobres aspirações iluministas e positivistas que uma
epistemologia excessivamente racional havia projetado, o homem contemporâneo novamente
investe na qualificação de seu entendimento, numa capacidade de compreender o que nos cerca
de um ponto de vista mais equilibrado, reconhecendo o inescapável mundo do determinismo
mas conseguindo perceber, para além dele, processos de auto-organização, de evolução e de
outros fenômenos desta natureza, cujo comportamento não se limita à causa-e-efeito, mas
agrega, à dinâmica determinista, a realização de algumas possibilidades fenomenológicas e o
impedimento de outras.

Só no século 20 a evolução foi admitida como científica, foi possível conceituar a auto-
organização, conceber o uso de características quânticas de partículas para gerar efeitos
materiais controlados (para nossos padrões perceptíveis, é claro) como o comportamento de
fótons na tela eletrônica; conceber uma matemática dos sistemas complexos, uma teoria do
caos, uma física não-newtoniana e uma geometria não-linear. O século passado explorou várias
tentativas de compatibilização entre processamento algorítmico de informação e dispositivos
neuronais da cognição, e fez investimentos volumosos em inteligência artificial. Foi o século
que desembocou na ‘virada informacional da filosofia’, anunciada pelo filósofo Frederick
Adams, e nos legou novos comportamentos sociais propiciados pela internet. São questões que
só se revelaram ao homem contemporâneo, pois só ele reúne bagagem e disposição cognitiva
para tal.
A Virada Informacional da Filosofia

Falar de uma virada informacional na Filosofia é voltar ao tema da trajetória


epistemológica da humanidade. Só um filósofo como Adams, que viu o século passado começar
com Freud tentando explicar o funcionamento mental sem apelo a entidades transcendentais;
que se surpreendeu com as realizações da comunicação de massa e com o potencial da
inteligência artificial – inclusive utilizados nas guerras -, propiciados pela teoria matemática da
informação de Shannon, pelas máquinas algorítmicas de Turing e pelas teorias cibernéticas de
Wiener; que viu a genética gerar clones e a ciência cognitiva produzir modelos naturalizados
para o funcionamento mental, poderia perceber que tudo isso se apoia no ganho epistemológico
da noção de informação.
Uma vez percebido o locus epistêmico da informação, mesmo revelando naturezas
aparentemente incompatíveis, se compararmos uma mensagem genética e uma eletronicamente
transmitida, por exemplo, percebe-se que estamos construindo conhecimento sobre um novo
paradigma e estabelecendo linhas de raciocínio não disponíveis a nossos antecessores.
Esse é o contexto da virada informacional da Filosofia. Trata-se da constatação de que,
após evidenciado o algo que denominamos informação (ou seja, o algo que de alguma forma
conseguimos delimitar e compartilhar, algo cujo conceito faz sentido), vemos o quanto essa
percepção potencializa nossa capacidade de entendimento. Isso é amadurecimento
epistemológico.
Tanto nas tentativas de conceituar a informação, desafio interdisciplinar que não aponta
para uma unificação, quanto nas teorias e concepções naturalizadas na mente, herdeiras mais
próximas da biologia evolutiva, chegando a teorias de cunho social, como os reflexos éticos da
instantaneidade da comunicação e a redefinição das relações entre agentes e seus ambientes, o
paradigma informacional marca seu momento de influência no século 20 ao tornar impossível,
para os pensadores contemporâneos, realizarem análises que não incorporem tal influência. O
amadurecimento cognitivo exigido pela vivência – de um homem ou de toda a humanidade - é
inevitável.
Para alguns pesquisadores da área, a virada informacional é uma atualização, um
upgrade de uma forma de entendimento fisicalista, base de toda a ciência, incrementada
significativamente pelo darwinismo. O evolucionismo de Darwin destacou funções adaptativas
e produtivas da natureza que nos permitiram entender as mutações acorridas no mundo real
como o resultado de relações deterministas e ações do acaso imbricadas mutuamente. Mundo
real é o que sobra das múltiplas alterações instanciadas e submetidas permanentemente aos
testes e modelagens do decorrer do tempo.
Nesta trajetória de naturalização do fenômeno humano descrita por Adams em seu
artigo supra citado, a hipótese de que o pensamento é um processamento de informação e,
portanto, a ação intencional também o é, dominou o cenário da pesquisa em ciência cognitiva e
filosofia da mente. Trata-se, agora, de perseguir uma explicação que englobe
1- o status existencial da informação, sua ontologia, seu vínculo às noções de ordem e
desordem e os métodos que permitem sua manipulação;
2- uma abordagem científica da intencionalidade como sistema de processamento de
informações avançado, capaz de administrar as exigências do determinismo e as
intervenções do acaso sob a dinâmica espontânea da auto-organização; e
3- a geração de informações, a partir da relação agente/ ambiente, que efetivamente
implementam o projeto evolutivo de adaptar os agentes ao mundo, selecionando as
mutações instanciadas, e o mundo aos agentes, transformando os ambientes em
nichos.

Teorias referentes aos três tópicos acima permearam os últimos cem anos. Sobre a
natureza e comportamento da informação, a teoria matemática da comunicação, de Shannon,
publicada em 1947, pode ser considerada um marco. Apesar de Shannon ser um engenheiro e
estar apenas interessado em desenvolver um modo eficiente de transmitir mensagens eletrônicas
com fidedignidade, rapidez e perda mínima, seu modelo matemático revelou muito sobre
informação.
Uma das vertentes dessa teorização aderiu à ideia de informação enquanto elemento
presente no mundo. Debateu-se muito a respeito da informação não ser matéria nem energia.
Chegou a ser sugerido, em 1948, pelo pai da cibernética Norbert Wiener, que o mundo seria
feito de matéria, energia e informação. Explicações mais radicais aboliram a matéria e a energia
e adotaram apenas a informação como o constituinte fundamental de tudo o que existe. Esse
impasse, ainda em discussão, é uma forte evidência da virada informacional que desejamos
explicitar.
O aperfeiçoamento de máquinas inteligentes, inspiradas no modelo algorítmico de
Turing, que desconstrói as ações num passo-a-passo binário e torna a integrá-las em novos
suportes, transferindo, assim, a capacidade de realizarem funções e de se retroalimentarem em
busca de uma aproximação com o universo de geração de organismos vivos, contaminou a
segunda metade do século.
Porém, essa ideia não floresceu sem a devida crítica, advinda principalmente do campo
da Filosofia com Searle, Dretske e outros que rapidamente perceberam que o fenômeno da
intencionalidade envolve algo mais que a complexificação de algoritmos. Esse também é, com
certeza, um debate-consequência da virada informacional.
Vale observar que o desconforto dos pensadores e cientistas modernos com a metafísica
da subjetividade herdada de Descartes também tem peso nessa virada. A ânsia de que o ser
humano seja mais do que seu corpo mortal e a experiência de um ‘algo que falta’ frente a um ser
sem vida acalentaram por milênios um dualismo fenomenológico que simplesmente não se
confirmou em nenhuma instância da ciência.
Pelo contrário, o conhecimento de alguns sistemas funcionais dos neurônios, dos genes
e dos sistemas orgânicos em geral direcionaram o olhar criterioso do cientista para a falência
total do dualismo cartesiano. Ao mesmo tempo, dado tal contexto, a possibilidade de uma
explicação pelo viés da informação vem atender em cheio as exigências desse enfoque
contemporâneo e encontra, entre os acadêmicos, uma disposição ao entendimento muito
favorável.
A virada informacional, para filósofos como Gonzalez, Broens e Morais, no entanto,
manter-se-á tímida e conservadora se não questionar o caráter representacional que
historicamente pautou as reflexões filosóficas sobre a mente e linguagem, e que pode estar
viciando nosso olhar, como desconfiam esses filósofos. A questão primordial gira em torno da
forma como incorporamos as informações. Informações são semânticas e precisam de um
sistema de signos mediador para serem processadas ou informações podem ser captadas
diretamente dos sentidos para a mente, sem mediação linguística ou de nenhuma natureza?
Esclarecendo: caso a informação exista na natureza e, num contexto de comunicação,
precise ser decodificada antes de entendida, ou seja, ela representa algo que nos seria revelado
após a decodificação, caberia à mente todo o trabalho e o entendimento seria um processo
interno. Caso a informação seja criada a partir da relação do organismo com o ambiente e
absorvida diretamente pela percepção ou ação, estaríamos num patamar não-representacional, a
informação seria um elemento dinâmico e o entendimento habitaria a interface interior x
exterior. Eis mais um problema descortinado pela virada.
Queremos finalizar a caracterização de uma virada informacional na Filosofia
lembrando que, mesmo sem apontar, a princípio, algumas questões relevantes relacionadas à
representação e à semântica, uma guinada de foco como esta, capaz de contaminar tantas linhas
de pesquisa, é uma ruptura epistemológica e, como tal, nos revela fontes inéditas de
conhecimento confiável.
Das reflexões sobre a ontologia e metafísica da informação às discussões sobre o caráter
internalista ou externalista da comunicação realizada pela troca de mensagens cuja unidade é a
informação, das teorias cognitivas que investem no ‘pensar é computar’ às que negam a
possibilidade de uma explicação algorítmica da intenção, todas são questões atuais, intrigam
uma rede enorme de pesquisadores e se mantêm em pauta por que a virada informacional da
Filosofia é uma realidade e as respostas sobre o universo informacional que nos cerca, a
infosfera, como o chamam alguns autores, se fazem urgentes não só para a ciência e tecnologia,
mas também para a dimensão cotidiana, ética e psicológica do humano.

Referências:
ADAMS, F. The Informational turn in philosophy. Minds and Machines. Netherlands: Kluer Academic Publishers, v.
13, p. 471-501, 2003.

DECON, T. Incomplete Nature: How mind emerge from matter. W. W. Norton & Company; 1 edition, 2011.

FLORIDI, L. The Philosophy of Information. Oxford: Oxford University Press, 2011.

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