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PALAVRA – EXEGESE E COMENTÁRIO DENTRO DO ANO

LITURGICO A –
Pe. José Antônio Bertolin OSJ

EPIFANIA DO SENHOR

01) Leitura - Is 60,1-6 Todas as nações virão adorar o Senhor.


Na primeira parte deste texto, o autor se refere de um lado a toda a terra
com as nações envolvidas na escravidão, símbolo da negação de Deus. De
outro, temos Jerusalém cheia de glória, o farol das nações, que representa a
presença de Deus. A segunda parte descreve o destino da Jerusalém futura,
para a qual todos os povos são atraídos por sua luz.
O texto é um apelo cheio de entusiasmo, um verdadeiro grito de alegria.
Embora o destinatário não seja explicitado no texto, podemos dizer que é
Jerusalém, partindo da análise de alguns textos de Isaías que falam de uma
mulher em aflição que é convidada a trocar de roupas devido ao fim do luto e
início de uma nova situação1.
A situação de Jerusalém era desanimadora. Estamos no período do pós-
exílio babilônio em 538 aC2. Tudo está para ser reconstruído com grandes
dificuldades. A situação de pobreza é grande3, com a hostilidade dos
samaritanos4. Jerusalém está prostrada por causa da diminuição da sua
população, da falta de recursos, da dominação estrangeira (persas). Estava
envolvida na escuridão.
Diante disso, o profeta suscita o ânimo do povo anunciando que Javé não
abandonou a cidade e, por causa do seu amor fiel, Jerusalém será transformada
em ponto de convergência das nações. O próprio Javé, como esposo, vai
ornamentá-la com esplendor, torná-la fecunda. Ela se tornará uma referência
universal, um farol, uma torre que lança a luz que orienta. Ela surgirá como o sol
que se levanta para os povos, a fim de orientá-los. A sua universalidade não é
representada apenas pela pluralidade, isto é, pelo número de povos iluminados
e colocados em movimento, mas também em sentido qualitativo, do maior ao
menor. Seus reis também estarão na frente dos povos.
Javé continua sendo o esposo de Jerusalém e a adorna de esplendor,
torna-a fecunda em filhos e rica em presentes. Jerusalém será uma só luz
resplandecente, enquanto o mundo vive nas trevas. “O sol não surgirá mais no
Oriente, mas nela, porque Javé, com a sua presença, é o seu próprio esplendor.”
Depois de descrever o esplendor de Jerusalém, o profeta convida o povo
a levantar-se e contemplar a romaria que se dirige a ela, tornando-a mãe de
muitos filhos, e os primeiros a se dirigir a essa cidade iluminada são os filhos do
exílio5, que nas extremidades chegam com seus presentes. Eles não conhecem
o cansaço, e as mulheres mais frágeis são carregadas no colo. Todos trazem a
ela presentes que a comovem. São as riquezas do mar que vêm do Oeste, da
Fenícia e da Grécia6, da costa norte-ocidental, da Península Arábica, onde se

1
Is 49,18; 51,17; 52,1; 54,1
2
Esdras 1,1-4 ; 6,3-5
3
AG 1-2; Zc 3
4
Esdras 4; Ne 4-5
5
Is 49,18; Bar 5,5-6
6
Sl 72,10
encontram Madian e Efa7, e do nordeste da Arábia, onde se encontra Saba,
famosa por seu incenso8 e por seu ouro9, presentes que servirão para o culto no
Templo.
A realização desta visão profética está prevista para os tempos
messiânicos e Mateus a vê realizar-se com os magos.

02) LEITURA - Ef 3,2-3a.5-6 Os gentios também são chamados à salvação.


Esta carta foi escrita por Paulo ou por um discípulo dele às várias
comunidades da região. Se foi escrita por Paulo, foi durante a sua prisão em
Roma entre 61 e 63 dC. As cópias desses textos devem ter sido lidas nos grupos
de cristãos de Éfeso e arredores. Paulo não conheceu esses grupos. Éfeso era
um centro urbano importante da época, e Paulo esteve lá fundando a
comunidade10.
O apóstolo fala de “Mistério”, que quer dizer a revelação do plano de Deus
realizado na prática e na pregação de Jesus, condensados naquilo que ele
chama de “Evangelho” e através dele todos são chamados à vida e à liberdade
trazidas por Jesus.
É deste Evangelho que Paulo se tornou anunciador missionário,
dedicando-se à evangelização dos gentios, os quais pela adesão a Cristo não
são mais estrangeiros, mas concidadãos do céu, membros da família de Deus.
Paulo foi destinatário da revelação, isto é, de um dom divino particular,
que lhe abriu o acesso ao mistério, um plano secreto de salvação projetado e
querido pelo Pai e proclamado pelo Evangelho11.
Este mistério de salvação deseja a separação de uma visão da
humanidade segundo as coordenadas religiosas do hebraísmo que previam uma
separação clara entre o povo eleito e o resto da humanidade, isto é, os pagãos.
Entende-se esse mistério lendo Ef 2,14-18. No centro do mistério está a
reconciliação operada por Cristo, que elimina qualquer barreira em nível pessoal,
que impede o homem de elevar-se até Deus, e em nível horizontal elimina o
muro que impede a comunicação e a confraternização. Assim, o fruto do
sacrifício de Jesus é o surgimento desta nova humanidade. Jesus se torna o
ponto de encontro de todos os homens, o espaço vital desta comunhão.
As conseqüências da nova realidade operada em Cristo estão
condensadas no versículo 6. Daí resulta que os pagãos são co-herdeiros, não
apenas Israel e os judeus convertidos. Os pagãos são membros do mesmo corpo
que é a Igreja. São participantes da promessa em Cristo, pois a salvação é um
oferecimento gratuito de Jesus para todos sem distinção. Realiza-se assim a
promessa feita a Abraão (12,39), pela qual todos entrariam na descendência do
patriarca, participando de suas bênçãos. Basta para isso conferir a perspectiva
universalista da salvação em Isaías 2,2-5; Mq 4,1-3; Is 42,1-4; 49,6; 56,6-8; 60,1-
14; Zc 8,20-23.

03) EVANGELHO - Mateus 2,1-12 Estrangeiros pagãos (“magos”) encontram o


Salvador.

7
Gn 25,1-4
8
Jr 6,20
9
1Rs 10,2; Ez 27,22
10
At 19, 20
11
1Cor 1,23; 2,2
Este capítulo quer mostrar a missão de Jesus que se concentra na
salvação dos pagãos, aqui representados pelos magos. O texto indica o
cumprimento das profecias messiânicas em Jesus e também aponta a escolha
ou a negação dele.
O versículo 1 põe em cena os principais personagens: Jesus e Herodes,
Jerusalém e Belém.
Já no versículo 2 os magos chamam Jesus de “rei dos judeus”, que
querem adorar. Ele não é um rei violento, prepotente e politiqueiro como
Herodes, o idumeu, lacaio do poder opressor romano, mas um recém-nascido
que tem suas raízes no poder popular, isto é, é Rei à semelhança do rei Davi.
De fato, Mateus destaca que a salvação não vem de Jerusalém, onde mora o
tirano, mas de Belém, cidade do pastor Davi.
O versículo 6 reúne dois textos bíblicos, o de Miquéias 5,1 e o de 2Samuel
5,2, os quais situam o nascimento do rei dos judeus em Belém e caracterizam a
função desse rei: um chefe que apascentará o povo de Israel. A salvação,
portanto, não vem da ação violenta dos poderosos, nem da falsa religião
patrocinada pelos líderes religiosos a serviço do prepotente Herodes, mas sim
da periferia de Jerusalém.
A pergunta que os magos fizeram ao chegar em Jerusalém contém uma
definição importante sobre Jesus. Ele é o “Rei dos judeus”. A importância dessa
afirmação está ligada à identidade messiânica de Jesus, que foi apresentada por
ocasião do seu ingresso triunfal em Jerusalém. Na ocasião, Mateus lembra o
oráculo messiânico de Zc 9,9 (Mt 21,5), que permite identificar Jesus como
aquele que é reconhecido como Messias na aclamação do povo: “Hosana ao
filho de Davi.” Este apelativo volta outras vezes em Mateus para mostrar a
mansidão de Jesus, isto é, a sua identidade de pacífico que se preocupa com os
sofredores e os últimos. Com esse titulo o invocam os cegos para serem
curados12, suplica a cananéia a cura de sua filha endemoniada13, saúdam-no as
crianças no Templo14, usa-o o povo no ímpeto da admiração15, e com esse título
será apresentado Jesus crucificado16.
A referência indireta pode ser percebida na afirmação dos magos: “Vimos
uma estrela.” É uma referência a Nm 24,17, onde Balaão pronuncia o seu oráculo
de bênção sobre Israel. Balaão, assim como os magos, vem do Oriente, tem
poderes mágicos e foi enviado por Barak, rei de Maob, para amaldiçoar os
israelitas acampados em seu território. Balaão sente, porém, um impulso interior
para abençoar em vez de amaldiçoar, e diz que viu uma estrela que desponta de
Jacó e um centro que surge em Israel. Esta profecia coloca-se em relação com
o nascimento de Jesus em Belém.
Além desta referência, a estrela também desempenha uma função na
narração. É um simples elemento natural e, olhando para ela, os magos, pagãos,
colocam-se a caminho para encontrar o Salvador. Como Paulo dirá em Romanos
1,19-20; 2,14-15, a criação é um livro aberto diante dos pagãos para que
cheguem ao conhecimento de Deus. Porém, os magos não podem encontrar o
Salvador apenas com a indicação da estrela. Assim, a parada em Jerusalém
representa para eles o encontro com as Escrituras. Ali lhes virá comunicar a

12
Mt 9,27; 20,30-31
13
Mt 15,22
14
Mt 21,14
15
Mt 12,33
16
Mt 27,37
profecia17. Não é possível chegar a um autêntico conhecimento do Cristo sem o
encontro com as Escrituras, que anunciaram e prepararam a sua vinda.
Em Jerusalém, a busca dos magos tem um salto de qualidade. Ali
encontram o indispensável para encontrar e reconhecer o Messias. Por outro
lado, este fato nos mostra um paradoxo, próprio daqueles que têm as Escrituras
nas mãos: os sacerdotes, os escribas e os judeus não reconhecem o Messias,
enquanto os pagãos sim. O paradoxo é real. É a situação da evangelização pós-
pascal que se reflete na narração de Mateus.
No centro do relato está a citação de Mq 5,1, ligeiramente reelaborada por
Mateus e com o acréscimo no final de um dístico tomado de 2Sm 5,2. Na carta
de identidade do Messias, o lugar do nascimento tinha importância máxima,
aliás, não podia apresentar-se como Messias quem não tivesse origem
betlemita. Colocar Belém na origem da sua narração equivale para Mateus a
oferecer uma prova incontestável da realeza e messianidade de Jesus. As
citações antigas foram reelaboradas por Mateus de maneira a colocar em
evidência duas características: Chefe e Pastor. Estas eram justamente as
qualidades de Davi. Jesus é o verdadeiro Messias, porque, além da proveniência
de Belém, possui também as qualidades do fundador da dinastia.
O evangelista ressalta que os magos foram tomados por uma grande
alegria, um sentimento previsto para os tempos messiânicos18, e deste
sentimento participam os pagãos. Tanto Mateus como Lucas destacam a
presença de Maria, enquanto José, que segundo Mateus é o protótipo do judeu
justo19, não é lembrado.
A adoração dos magos, com a prostração, era um gesto de homenagem
máxima aos personagens de grandíssimo nível. É o significado do
reconhecimento da divindade de Jesus.
No que diz respeito aos presentes oferecidos – ouro, incenso e mirra –,
eles fazem parte dos costumes orientais que previam a oferta de presentes numa
visita de cortesia. O ouro de Ofir era muito procurado, assim como o incenso da
Arábia. Da mesma forma era muito apreciada a mirra da Etiópia. A tradição que
associa os três dons à realeza, divindade e sofrimento de Jesus é do tempo de
Irineu de Lião e foi acolhida e cultivada pelos textos litúrgicos, mas não há
certeza de que tenha sido esta a idéia de Mateus. É melhor limitar-se ao fato de
que esses dons ressoam o texto de Is 50,5-6, que descreve dons universais. O
certo é que Mateus usa o texto do AT para evidenciar o cumprimento das
profecias messiânicas.
Com a presença de Herodes delineia-se o tema de Jesus, novo Moisés,
perseguido por um tirano, novo faraó. O autor da verdadeira infância análoga à
do primeiro libertador e legislador.
O texto termina mostrando que o caminho da salvação não passa por
Jerusalém, e menos ainda tem a ver com o aparato político repressor do
despótico Herodes. Os magos voltam para casa por outro caminho, rompendo
com Herodes e Jerusalém. O texto diz que foram avisados em sonhos. Foi uma
intuição profunda, iluminada pela presença do Messias que adoraram.

17
Mq 5,1; Mt 2,6
18
Sf 3,14 ; Zc 9,9
19
Mt 1,19
REFLEXÃO

Se observarmos bem, um fio liga as leituras do Salmo responsorial de hoje


e toda a liturgia da Epifania.
1º) A salvação é para todos os povos, coisa que para nós pode parecer uma
banalidade, mas não era para Paulo; esta é um mistério de Deus revelado.
Mistério revelado pelo Terceiro Isaías, que vê Jerusalém como cidade mãe da
nossa Aliança: “Te adorarão, Senhor, todos os povos da Terra20”. No Evangelho
os magos são as primícias dos povos que chegam a Jesus.
2º) A evangelização, isto é, a adesão a Jesus Cristo comporta a aceitação da
cruz, a negação do poder do stablishment judaico.
3º) Todos os povos são chamados a caminhar na Luz. Esta profecia de Isaías
parece uma miragem no nosso tempo de confusão. Contudo, este é o desejo de
Deus evidenciado na Epifania. É preciso buscar antes de tudo um empenho pela
unidade, rezando para que tudo não se resuma apenas à concórdia e ao bom
entendimento.
Jesus pediu ao Pai a unidade dos que Nele crêem modelada na
comunhão divina da Trindade, pela qual Ele e o Pai, na unidade do Espírito
Santo, são uma só coisa21. Esta é uma meta que só pode ser atingida com a
ajuda divina, daí a necessidade da oração. Além disso, é preciso um empenho
ativo para conhecer os problemas, debatê-los, valorizando o diálogo respeitoso,
e neste caminho corajoso para a unidade ter a lucidez e a providência da fé que
nos impõe evitar o falso “irenismo” e a não observância das normas da Igreja.
Finalmente, a estrada para a unidade não pode ser concretizada sem a
capacidade que é a confiança, a paciência, o encorajamento, a alegria e o amor.
O evangelho de Mateus que ouvimos é permeado pelo gênero
“Midrashico”, isto é, por uma meditação eficiente sobre um texto sagrado do AT.
É uma reinterpretação do texto bíblico aplicado ao presente. Por isso, a presença
dos magos, mais do que um dado histórico, é vista com um significado moral.
A vinda dos magos à Palestina é pelo lado histórico algo admirável, pois
os hebreus viviam em todos os lugares do Oriente e nada impede que os magos,
membros da aristocracia oriental e dedicados ao estudo religioso-astrológico,
estivessem ao par das expectativas messiânicas israelitas. Por outro lado, era
viva naquele tempo em todo o mundo a expectativa de um Salvador, por isso é
possível que uma caravana de magos tivesse ido à Judéia à procura do
Salvador.
A estrela é interpretada não tanto como um fenômeno natural, mas como
um símbolo teológico da vontade divina ou da realeza do recém-nascido.
Certamente, as coisas aconteceram em tom menor do que aquilo que Mateus
apresentou, pois ele quis destacar Belém como o lugar profético do nascimento
do Messias, assim como a atitude de negação e de indiferença dos
representantes do povo e também para apresentar Jesus na sua realidade
transcendente, anunciada por Isaías 60 e realizada historicamente nos três dons
dos magos.
A fé nos faz encontrar o Salvador, Jesus Salvador, que reúne todos os
povos sem distinção. Assim também o período natalino tem a tarefa de nos
mostrar o mistério do amor infinito de Deus na pessoa de Cristo. Por isso, hoje

20
Sl 71
21
Jo 17,20-21
a liturgia nos convida a responder a este amor universal de Deus e cooperar com
ele.
Na primeira leitura, o profeta da escola isaiana revela o desejo divino de
reunir todos os povos no Reino, superando a barreira do ódio e a divisão. O
hagiógrafo, ao escrever esta idéia, provavelmente estava sendo tomado por um
sol brilhante sobre Jerusalém, um grande espetáculo cheio de contraste diante
dos vales que circundam a cidade ainda tomados pelas sombras e os muros de
Jerusalém já iluminados pelos reflexos do sol. Assim, ele transportou este fato
natural e visual para a descrição da cidade santa sob a ação vivificante de Javé
como luz para toda a humanidade.
A Epifania é a festa da pré-evangelização, seja porque se verifica antes
da vida pública de Jesus, seja porque os protagonistas se colocam fora da
estrutura explícita da salvação.
Os magos eram homens sábios e se deram conta de que lhes faltava algo
na vida, e chegaram à conclusão de que o que lhes faltava estava em Deus. Por
isso o procuraram através dos sinais e assim iniciaram uma caminhada difícil
pelo deserto, cheia de obstáculos, viagem feita com a mente e o coração
sedento de salvação, e assim saborearam a felicidade ao ver o rosto de Deus.
Como os magos, devemos procurar a Deus.
Tagore, para exemplificar a nossa tarefa de buscar a Deus, conta que
numa manhã um grupo de ascetas se dispuseram a procurar a Deus pelas
estradas sem nem mesmo se aperceber das pessoas que nela encontravam. Já
era meio-dia e estavam firmes na busca, e assim o tempo passava e mais eles
se esforçavam. Um deles, cansado de tanto caminhar, ao ver um pastor
dormindo tranqüilo à beira da estrada, parou e deitou-se à sombra, ao lado do
pastor. Os companheiros irrequietos insistiram com ele para prosseguir o
caminho, e por fim o deixaram e continuaram buscando a Deus. A sombra, a paz
e a meditação difundiram-se no coração daquele asceta, de forma que, quando
ele acordou, viu Deus ao longo da estrada e exclamou: “Deus, eu pensava que
o caminho fosse longo e cansativo, que a caminhada para chegar até vós era
dura. Eu imaginava encontrá-lo ao longo das estradas a percorrer, mas estás tão
perto do meu coração e da minha vida.”
Assim, o nosso coração de filhos tem em si o fruto do sangue de Deus.
Na nossa carne estão as impressões digitais do Criador, como a nossa vida tem
uma bússola do amor que a estrela de Deus não nos engana. Encontramos a
Deus na pessoa do irmão, e doamos Deus ao outro com a nossa pessoa.
O jovem Marcos Riva, antes de suicidar-se, escreveu este bilhete: “Não
peço perdão pelo que fiz. Foi uma decisão meditada, uma escolha precisa, a
única alternativa que restava para a minha vida, que era só de angústias, dores,
sem significado... Acho que cada um tem o direito de dispor de sua vida. Há
situações em que é melhor morrer do que continuar com a vida que é um inferno.
Eu tinha muita vontade de viver, amar e ser amado. Não foi a negação da minha
vida, mas a impossibilidade da minha vida, a minha realidade que me fez
escolher a morte. Tenho 20 anos e não permitirei que ninguém diga que esta
idade é a mais bonita da vida. Gostaria que esta frase de Paul Nizon fosse escrita
na lápide do meu túmulo. “Hoje as trevas cobrem a terra, são situações difíceis,
problemas materiais, desemprego, dificuldade de relações de amizade,
hostilidades... Falta de sentido para a vida, desorientação dos valores... Tudo
isso esvazia o coração e a inteligência.”
Santo Irineu tinha razão ao dizer que “a Glória de Deus é que o homem
seja pleno de vida e a verdadeira vida é conhecer a Deus”. Encontramos o
verdadeiro sentido da nossa vida no coração do Filho de Deus, como os magos.
Por isso, “reconheçamos nos magos que adoram Cristo as primícias da nossa
vocação na fé e celebremos cheios de alegria o início da nossa esperança”.
(Leão Magno).
Todo homem possui em seu coração um potencial para possuir a Luz de
Deus e espalhá-la. Se numa praça escura todos têm uma vela na mão, mas não
um fósforo para acendê-la, todos ficarão na escuridão. Basta que alguém tenha
um fósforo e toda a praça pode transformar-se num mar de luz. Por isso,
devemos comunicar a nossa luz ao coração do outro. A nossa luz pode ser um
pontinho ínfimo, mas produzirá efeito como o grande pintor Rafael ao pintar
Nossa Senhora de São Sixto. Ele não pensava que aquela obra se tornaria causa
da conversão de Zacarias Weuner (1768-1823), que se converteu tornando-se
sacerdote, escritor e poeta, pois um dia, ao visitar a galeria da pinacoteca de
Dresdem, ficou fascinado com o olhar de Nossa Senhora estampado naquela
obra.
A estrela do mundo antigo era identificada com alguma divindade
humana. Era o símbolo das rainhas e representava uma série complexa de
significados no mundo da astrologia. No Evangelho adquiriu função simbólica de
luz, sinal, orientação. Os magos eram chefes religiosos da antiga Pérsia (Irã),
que se dedicavam aos estudos astronômicos e à prática da astrologia. Foi com
base em alguns versículos de Isaías 49,23 e do Salmo 71,10 que foram
chamados de reis. Eles simbolizam os sábios e chefes religiosos do mundo
antigo e não dos hebreus. O ouro, o incenso e a mirra eram na antigüidade
presentes trocados entre os reis. Comumente tinham função alegórica e de
augúrio. Com o ouro se auguravam riquezas, preciosidade solar, valor e poder.
Com o incenso se indicava um futuro de alegria, prazer e honras. Com a mirra
desejava-se saúde, beleza e um futuro feliz na imortalidade. “Os magos com o
incenso reconheceram Jesus como Deus, com o ouro o aceitaram como rei e
com a mirra exprimiram a fé; aquele que deveria morrer” (Pedro Crisólogo, PL
52,620.621).
Com o reconhecimento de Jesus pelos magos, Deus se tornou visível em
Jesus. Para expressar melhor esta idéia, lembremos que uma professora na sala
de aula de religião pediu a seus alunos que pensassem como desenhar ou
esculpir Deus. Eis as respostas:
Pedro - “Eu pintaria Deus como um homem muito alto e esbelto, porque
Deus é semelhante a nós, mas muito mais forte e maior.”
Ana - “Eu pintaria Deus como um rei, porque Ele governa todo o mundo e
todos os homens.”
Henrique - “Eu pintaria Deus numa folha com muitas pontas coloridas,
para significar que Deus é bonito e maravilhoso.”
Andréia - “Eu não o pintaria. Devolveria a folha em branco, porque Deus
não pode ser representado.”
Camila - “Eu desenharia Jesus Cristo, porque Deus veio a nós na sua
pessoa. Quem vê Jesus vê a Deus.”
A catequista achou todas as respostas interessantes. Todas exprimiam
uma qualidade de Deus: força, grandeza, beleza, proteção... Mas a resposta
mais bela foi a de desenhar Jesus.
Uma menina estava desenhando com um giz e sua mãe perguntou-lhe:
“O que está desenhando de bonito?” “Estou desenhando Deus”, disse a menina.
“Mas Deus ninguém nunca viu”, respondeu a mãe. “É verdade, respondeu-lhe,
que ninguém viu a Deus, mas Jesus é o seu Filho, por isso Ele é semelhante.”
Deus é uma luz inextinguível, conta-nos um velho patriarca que estava
contemplando o céu em frente de sua tenda. Quando veio a noite, ele viu uma
estrela brilhante e disse: “Esta será o meu senhor!” Mas, quando a estrela se
escondeu, exclamou: “Não amarei quem se esconde!” Viu depois a lua prateada
despontar com sua luz branca iluminando a terra e disse: “Esta será o meu
senhor!” Porém, a luz também desapareceu e ele disse novamente: “Se este
senhor desaparece, não saberei orientar o meu caminho e me perderei.” Viu
depois o sol levantar-se glorioso, mas também este escondeu-se, e o patriarca
concluiu: “Voltarei o meu rosto para aquele que fez o céu e a terra, e não servirei
outro além Dele. Ele é a Luz que não conhece ocaso.”
Na liturgia de hoje, Mateus narra e interpreta um acontecimento de Jesus
em forma de Midrash haggádico, isto é, enriquece a narrativa com referências e
citações do AT. O dado da estrela vista pelos magos é uma referência à estrela
de Jacó profetizada por Balaão, um pagão não judeu22. A estrela de Balaão
passou na tradição judia a ser a estrela de Davi com um sentido nacionalista.
É importante lembrar que o evangelho de Mateus é datado dos anos 80
dC, após a destruição de Jerusalém e do Templo por Tito (ano 70), quando a
ruptura entre a Sinagoga judaica e a Igreja cristã já estava consumada e nas
comunidades já se conhecia a eclesiologia e a cristologia de Paulo. Portanto, os
magos representam os pagãos que aceitaram a fé em Jesus, enquanto as
autoridades religiosas o recusam. Para Mateus, Jesus é o Messias, rejeitado
pelos judeus e aceito pelos pagãos que constituíram o novo povo de Deus.
Na verdade, os temas do nascimento e da infância de Jesus, isto é, a sua
origem, foram incluídos no anúncio da catequese da fé, por um lado, em razão
da reflexão das primeiras comunidades cristãs que à luz da Páscoa
questionavam a origem de Jesus e o cumprimento das profecias do AT
principalmente entre os cristãos de origem judaica que viviam a tensão inicial
com a Sinagoga; por outro lado, em razão das polêmicas cristológicas suscitadas
pelos agnósticos sob a influência do platonismo e do docetismo por sua aversão
ao campo e à matéria que apresentavam dificuldades sobre a humanidade de
Cristo, Messias Filho de Deus, isto sobretudo entre os cristãos convertidos do
paganismo ou dos gentios herdeiros da cultura helenista. Diante disso, o
Evangelho da Infância de Jesus em Mateus e em Lucas colocam os sinais da
messianidade e divindade de Jesus conforme um gênero literário chamado
“Midrash”, um estilo freqüente na literatura semita de tradições rabínica e
sinagogal, que consistia em reelaborar ou reinterpretar com liberdade um texto
ou um fato, enriquecendo-o com novas referências devido a uma finalidade
didática ou catequética. São referências simbólicas e tipológicas, isto é, em
conexão com os fatos, situações ou pessoas do AT, em particular Adão, Jacó,
Moisés, a saída do Egito, Davi, Salomão...
Portanto, aqui a intenção do evangelista não é escrever história, mas
transmitir um testemunho de fé na história da salvação realizada em Cristo a
partir do kérigma. Isto não quer dizer que o Evangelho da Infância seja um mito
enriquecido com referências históricas ou profecias antigas. Há um fundo
histórico (Jesus, José, Maria, Herodes...), assim como detalhes cronológicos (a
22
Nm 24,17
dominação romana) e geográficos (Belém, Nazaré...), e neste fundo básico está
a intencionalidade teológica e o significado messiânico e salvador de Jesus.
Embora o Anjo do anúncio, sonhos e aparições, pastores, estrela, magos etc.
pertençam ao gênero literário midrástico, isso não afeta o conteúdo essencial da
revelação, que continua sendo a encarnação de Jesus, Filho de Deus, no seio
de Maria, o seu nascimento e a sua vida na Palestina, a sua messianidade e
divindade e o cumprimento das profecias à universalidade da salvação, a sua
solidariedade com a humanidade etc.
Muitos em Belém viram Jesus como uma simples criança. Os magos, ao
contrário, viram nele o Menino Deus esperado. Por isso, foram os primeiros entre
os gentios a adorá-lo. Encontraram Deus na normalidade da vida. Por isso o
adoraram como o Messias, o mesmo Deus que encontramos na Eucaristia.
Os magos lhe ofereceram seus presentes. Também nós devemos
oferecer-lhe o ouro fino de nossas boas ações, o incenso, isto é, nossos desejos
que sobem até ao Senhor de levar uma vida nobre da qual se desprende o
perfume de Cristo23, isto é, com a prática da justiça, fidelidade, generosidade,
alegria... Como os magos devemos oferecer-lhe também a mirra, que se traduz
em pequenos sacrifícios como sorrir para quem nos aborrece, suprimir o
supérfluo, ouvir o outro etc.

23
2Cor 2,15

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