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Dilema da Reserva Extrativista das Mangabeiras

vai da além do “ou a casa ou a mangabeira”

Disponível em: <https://jlpolitica.com.br/entrevista/chris-campos-nao-ha-uma-politica-


para-povos-e-comunidades-tradicionais-de-aracaju>

A Prefeitura Municipal da capital de Sergipe e uma comunidade tradicional e


extrativista de mangabas encravada entre os fundos do Aeroporto Internacional
de Santa Maria e o bairro de Santa Maria, na zona sul de Aracaju, vive uma
histórica queda de braços.
É uma tentando preservar e manter viva a Reserva Extrativista de Mangaba do
Santa Maria e suas tradições e a outra querendo passar o trator por sobre as
árvores símbolo e patrimônio imaterial do Estado para no lugar delas construir
o Conjunto Irmã Dulce dos Pobres.
Nesse conjunto que homenageia a única santa brasileira, o Governo de
Aracaju quer assentar 1.102 famílias de sem teto que já foram alvo da
demolição da Ocupação da Mangabeira, ali mesmo, em julho de 2020 e que
hoje vivem do tal aluguel social, subsidiado pela gestão municipal.
O impasse bota em campos opostos a pequena e ativa Associação de
Catadoras e Catadores de Mangaba Padre Luiz Lemper e o graúdo e poderoso
Governo Municipal de Aracaju.
O discurso básico é o de que a intenção da Prefeitura põe sob ameaça a última
reserva de mangabeiras de Aracaju e soterra as vivências e sabedorias
seculares acumuladas por uma comunidade que vive há décadas do trabalho
extrativista naquela região. A Prefeitura alega que necessita do espaço para
atender às demandas de moradias populares.
No meio desse bangue-bangue, as cerca de 260 pessoas que fazem parte dos
11 grupos familiares que constituem a Associação de Catadoras e Catadores
de Mangaba Padre Luiz Lemper ganharam uma verdadeira fada madrinha.
E melhor: com consequente conhecimento e domínio de causa e ainda
capacidade de sensibilização e persuasão. Trata-se da economista, jornalista,
geógrafa e professora da Universidade Federal de Sergipe Chris Campos, 51
anos.
Claro que a capacidade de persuasão dessa Chris Campos não foi o suficiente
para deter o ronco dos tratores municipais que têm avançado sobre o Parque
das Mangabeiras e lavado muitos arvoredos ao chão, e ao desespero os
extrativistas que vivem de zelar por essa micro floresta e pela vitalidade e
sobrevivência de seus de frutos.
Mas isso está longe de desanimar a professora Chris Campos e muito menos
de fazê-la bater em retirada. “Não é um trabalho de mão única, no qual a
universidade ensina e a comunidade aprende”, pondera Chris.
“É uma via de mão dupla. Aprendemos muito com as comunidades, com a
relação sociedade-natureza em que os bens naturais são preservados pelo uso
comum em que todos cuidam do que é de todos”, insiste a docente.
“Nesse processo, vamos contribuindo com a luta deles pelos seus territórios de
vida e eles vão oxigenando a produção de conhecimento na academia. Esse
tipo de trabalho me realiza não apenas como docente, mas sobretudo como ser
humano”, complementa Chris Campos.
Nesta Entrevista, Chris Campos vai fundo nas questões sociais, ambientais,
econômicas e jurídicos relativos à Reserva Extrativista de Mangaba do Santa
Maria. Fundo cientificamente e sem concessões.
“Há um falso dilema alimentado pela forma como a Prefeitura de Aracaju
interviu naquele território das mangabeiras. O direito à moradia não se
contrapõe ao direito territorial da comunidade tradicional. Tanto os sem teto
quanto os extrativistas têm direito à cidade”, diz ela.
São diretamente afetadas aproximadamente 260 pessoas, que fazem parte dos
11 grupos familiares que constituem a Associação de Catadoras e Catadores
de Mangaba Padre Luiz Lemper.
“O extrativismo não é somente uma fonte de renda para se sustentarem. Trata-
se de um trabalho articulado a um modo de vida que implica em uma relação
sociedade-natureza muito diferente da que predomina em nossa organização
social”, diz a professora.
Christiane Senhorinha Soares Campos nasceu no dia 21 de março de 1971 em
Salvador, na Bahia. Ela é filha Pedro de Oliveira Campos e de Rita Soares de
Brito Campos.
“Mas só nasci lá. Minha família migrou para muitos lugares e eu me considero
goiana, por ter vivido em Goiânia parte da infância, a adolescência e por ter
feito os estudos de graduação e mestrado”, diz.
Solteira, Chris Campos é mãe de duas adolescentes - Luíza, de19 anos, e
Júlia, de 13 anos.
Chris Campos tem formação acadêmica em Ciências Econômicas pela
Universidade Católica de Goiás - atual PUC-Goiás - e em Comunicação Social,
com habilitação em Jornalismo, pela UFG - Universidade Federal de Goiás.
Ela tem doutorado em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e mestrado em Geografia pelo Instituto de Estudos Socioambientais da
UFG.
Está desde 2013 no Departamento de Economia na UFS, onde foi e é
professora de uma série de disciplinas. Ela chegou na UFS por um processo de
redistribuição - antes era docente da Universidade Federal de Santa Maria -
UFSM -, no Rio Grande do Sul.
“Sempre pautei minha atuação na Universidade no tripé ensino, pesquisa e
extensão. Desde 2017 participo da coordenação Acadêmica de um programa
de pesquisa e extensão, chamado Programa de Educação Ambiental com
Comunidades Costeiras - Peac -, que é desenvolvido pela UFS como exigência
do licenciamento ambiental federal conduzido pelo Ibama, nos processos de
exploração de petróleo e gás no mar - offshore”, diz a moça.
Este evento marcou a entrega do relatório técnico do Peac-UFS à Associação de
Catadoras e Catadores de Mangaba Padre Luiz Lemper
Na universidade, Chris Campos tem participação ativa na
militância sindical, já esteve na gestão da Associação dos
Docentes da UFS - Adufs - e atualmente participa do
Conselho de Representantes do Sindicato.
“O prejuízo da derrubada de mangabeiras para a
comunidade tradicional precisa ser analisado do ponto de
vista quantitativo, mas sobretudo qualitativo. A perda de
muitas árvores implica em menos frutos para catar e
comercializar, portanto em redução de renda para as
famílias que já vivem em condições socioeconômicas
precárias”, pontua.
A Entrevista com Chris Campos vale o tempo da leitura,
sobretudo porque tem muita informação técnica que nem
sempre é disponibilizada às pessoas no a dia a dia dos
meios de comunicação.
Professora Chris Campos, Zenaide, a catadeira-símbolo, e os descendentes das
mangabeiras: a academia fazendo docência real
JLPolítica - Professora, é irreversível o avanço que o
Governo de Aracaju faz sobre a Reserva Extrativista de
Mangaba do Santa Maria, no sul da capital, para a
conversão da área em um conjunto habitacional?
Chris Campos - Danos ambientais são difíceis de serem revertidos,
porque são multidimensionais e produzem efeitos cumulativos, diretos e
indiretos, sinérgicos, que perduram no tempo e espaço, podendo perpassar
gerações e atingir diferentes escalas - local, regional, nacional. Portanto, uma
retirada de vegetação como ocorreu no entorno da área das mangabeiras
reduz não somente a diversidade de espécies da flora daquela localidade, mas
afeta também o microclima, com elevação da temperatura, amplia
compactação e a perda de fertilidade do solo, impacta a fauna local e
migratória, com redução de polinizadores, compromete funções hidrológicas ao
reduzir as áreas permeáveis que absorvem o excedente de chuvas, e suprimir
lagoas intermitentes com os trabalhos de terraplanagem, além dos impactos
para a comunidade extrativista que tem seu trabalho afetado pelas obras,
reduzindo a renda e provocando adoecimento físico e mental pelas constantes
violações de direito. A devastação daquela área, que vem se intensificando em
um ritmo assustador a partir de janeiro de 2022, quando a Prefeitura obteve a
liminar judicial para construir o conjunto habitacional, provoca esse conjunto de
danos socioambientais.

JLPolítica - Mas é não ou irreversível?


CC - Ainda há tempo para reduzir esses danos, mas vai exigir muito trabalho
de diferentes profissionais e da comunidade e um tempo de uns cinco anos ou
mais para que se possa recompor o que foi devastado. A zona de
amortecimento é imprescindível para criar uma estabilidade ecológica dentro
do fragmento florestal que constitui a área extrativa. A grande questão é que o
atual governo de Aracaju não tem se mostrado disposto a reduzir danos
socioambientais e os conflitos sociais. Muito pelo contrário.
No último 8 de março, o Dia Internacional da Mulher foi festejado no Parque das
Mangabeiras por Chris Campos e uma série de pessoas

JLPolítica - Qual é o real histórico daquela área


extrativista das mangabeiras?
CC - No segundo semestre de 2020 participei de um amplo estudo sobre
aquela área. O trabalho técnico foi realizado por uma equipe multidisciplinar,
por meio de uma parceria do Peac-UFS com a Associação dos Geógrafos
Brasileiros - AGB -, secção de Aracaju. Nesse estudo destacamos que o
crescimento urbano na Zona de Expansão da capital sergipana ocorreu com a
devastação de áreas de restinga. De modo que aquela área, que agora está
sendo ameaçada com a construção do Conjunto Irmã Dulce dos Pobres,
constitui a última reserva de mangabeiras com uma comunidade vivendo do
trabalho extrativista na cidade de Aracaju.

JLPolítica - A área pertence ou pertencia a quem?


CC - Aquela é uma terra pública, pertencia à Secretaria de Patrimônio da
União - SPU. Na gestão da professora Jovanka Leal como superintendente da
SPU em Sergipe, foi realizada a doação para a Prefeitura Municipal de Aracaju,
definindo que 92 mil metros quadrados de mangabeiras deveriam ser
preservados, mas sem nenhum estudo técnico embasando essa limitação de
área. A concessão da área para o município já previa a construção do conjunto
habitacional. A prefeitura publicou em meados de 2020 o decreto 6.175,
criando a reserva extrativista no tamanho definido pela SPU, mas também sem
nenhum estudo técnico mostrando que este tamanho viabiliza a preservação
da área de restinga e da comunidade extrativista.
DANOS AMBIENTAIS E A IRREVERSIBILIDADE
“Danos ambientais são difíceis de serem revertidos,
porque são multidimensionais e produzem efeitos
cumulativos, diretos e indiretos, sinérgicos, que
perduram no tempo e espaço, podendo perpassar
gerações e atingir diferentes escalas - local, regional,
nacional”

Esta imagem celebra a I Festa da Colheita da Mangaba, evento de resistência que foi
realizado em janeiro deste ano

JLPolítica - De quantos metros quadrados ela é


constituída ao todo?
CC - A equipe UFS-AGB realizou em 2021 um novo estudo que resultou
nesse mapa definindo o tamanho mínimo para assegurar a área das
mangabeiras. O tamanho que estabelecemos a partir do trabalho técnico
realizado com a participação ativa da comunidade é de 140.504,31 metros
quadrados. Enquanto o decreto do município que cria a reserva extrativista
estabelece o limite de 92.125,81. Mas, esse tamanho definido pelo governo
municipal, além de não considerar a zona de amortecimento, que é uma
exigência legal, ainda implica na retirada de muitas mangabeiras, inviabilizando
o trabalho extrativista do conjunto das famílias que utilizam a área. Difícil
entender essa política ambiental do município que, ao invés de preservar,
coloca em risco uma área que é um patrimônio ambiental e sociocultural de
Aracaju.
JLPolítica - Quantas famílias sobrevivem do
extrativismo da mangaba no Santa Maria e quantas
famílias estão sendo afetadas com a derrubada dessas
árvores mangabeiras, cajueiros e outros?
CC - São diretamente afetadas aproximadamente 260 pessoas, que fazem
parte dos 11 grupos familiares que constituem a Associação de Catadoras e
Catadores de Mangaba Padre Luiz Lemper. O extrativismo não é somente uma
fonte de renda para se sustentarem. Trata-se de um trabalho articulado a um
modo de vida que implica em uma relação sociedade-natureza muito diferente
da que predomina em nossa organização social. O catador de mangaba mais
antigo do grupo é o senhor Hildo, que tem 75 anos, está há 60 trabalhando
com extrativismo naquela área. A senhora Rosenaide, conhecida como dona
Zenaide, tem 64 anos, está há 40 anos se dedicando cotidianamente a catar
mangabas e outros frutos de restinga. Foi assim que ela criou os nove filhos e
está ajudando a criar netos. As mulheres pretas são maioria entre as pessoas
que estão envolvidas na coleta da mangaba nessa área, e muitas delas
garantem sozinhas o sustento das famílias.

JLPolítica - A destruição das mangabeiras desserve,


então, a muita gente?
CC - A destruição dessa área implica em um enorme prejuízo socioambiental
e no aprofundamento de desigualdades ao impactar sobretudo mulheres e
crianças. Convém lembrar que desde 2010 as catadoras de mangaba são
reconhecidas por legislação estadual como um grupo culturalmente
diferenciado que deve ser protegido, o que implica em assegurar os territórios e
os recursos naturais indispensáveis a sua reprodução física e sociocultural.
Esse foi um dos motivos que fizeram com que no 8 de março deste ano a
manifestação das mulheres ocorresse nessa comunidade.

DA SPU À PREFEITURA, MAS SEM ESTUDOS


“Aquela é uma terra pública, pertencia à Secretaria de
Patrimônio da União, foi realizada a doação para a
Prefeitura de Aracaju, definindo que 92 mil metros
quadrados de mangabeiras deveriam ser preservados,
mas sem nenhum estudo técnico embasando essa
limitação de área. A concessão para o município já
previa a construção do conjunto habitacional”
Área do entorno das mangabeiras, que funcionava como zona de amortecimento à
vegetação, foi devastada e agora acumula água

JLPolítica - Qual é a real tradução de “população


tradicional” que nomina as catadoras de mangaba?
CC - O decreto 6.040 de 2007, que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais define
essas populações como “grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social,
que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. Do
ponto de vista antropológico, tem o sentido dos que estavam antes. São
populações cujos modos de existência, se baseiam em processos de trabalho
comunitários, adaptados a nichos ecológicos.

JLPolítica - Comunidade tradicional não implica uma


vivência apenas rural.
CC - Em geral, quando se fala em uma comunidade tradicional se pensa em
grupos isolados, que desenvolvem suas atividades em áreas rurais. No
entanto, com o crescimento da urbanização e o espraiamento de diferentes
empreendimentos produtivos por todos os espaços, encontramos populações
tradicionais nas cidades. As catadoras e catadores de mangaba do Santa
Maria são um exemplo disso, mas também temos em Aracaju grupos de
pescadores e marisqueiras em vários bairros da cidade. Essas populações
asseguram sua reprodução social por meio do manejo do meio ambiente,
utilizando saberes e práticas que são transmitidos de uma geração a outra,
pela oralidade e sobretudo pelo trabalho comunitário. Nesse sentido, a posse
dos territórios, entendidos como espaços apropriados do ponto de vista
material e simbólico, são essenciais para que povos e comunidades
tradicionais continuem existindo.
JLPolítica - Em quantos anos uma mangabeira dá
frutos e qual o impacto da derrubada de centenas de
mangabeiras para comunidade tradicional de catadoras
de mangabas e para o meio ambiente?
CC - O tempo para que a mangabeira consiga produzir vai depender de
muitas variáveis. Em geral, varia de três a cinco anos, dependendo do solo, da
água, do manejo, da diversidade de polinizadores, da proteção de uma zona de
amortecimento que reduza os danos causados pela poluição, pela
impermeabilização, entre outros aspectos. O prejuízo da derrubada de
mangabeiras para a comunidade tradicional precisa ser analisado do ponto de
vista quantitativo, mas sobretudo qualitativo. A perda de muitas árvores implica
em menos frutos para catar e comercializar, portanto em redução de renda
para as famílias que já vivem em condições socioeconômicas precárias.

DESTRUIÇÃO DA RESERVA AGRIDE PROTEGIDOS


“A destruição dessa área implica em um enorme
prejuízo socioambiental e no aprofundamento de
desigualdades ao impactar sobretudo mulheres e
crianças. Convém lembrar que desde 2010 as
catadoras de mangaba são reconhecidas por legislação
estadual como um grupo culturalmente diferenciado
que deve ser protegido”

Todo primeiro sábado do mês a Associação faz um café compartilhado com várias
pessoas de Aracaju
JLPolítica - Mas aqui pontua bem a questão
qualitativa?
CC - Pois é: o dano maior é do ponto de vista qualitativo. Uma vez ouvi uma
liderança comunitária dar uma aula sobre essa questão durante a segunda
edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em 2002. Ela disse mais ou
menos assim: para a sociedade capitalista, a natureza é um recurso que deve
ser explorado para produzir riqueza, mas para os povos indígenas e as
comunidades tradicionais a natureza já é a riqueza. Para essas populações, há
uma simbiose entre suas vidas e a natureza. Elas não se separam. Por isso a
dona Zenaide costuma dizer que “destruir as mangabeiras é destruir minha
vida, é como arrancar uma parte de mim”. É esse sentido de que o ambiente é
uma extensão do próprio corpo que faz as pessoas das comunidades
tradicionais se sentirem profundamente agredidas quando seus territórios são
ameaçados. Por isso quando a Prefeitura derruba as árvores naquele território
extrativista, as pessoas se sentem violadas.

JLPolítica - Caso a reserva seja extinta, como estas


famílias extrativistas da mangaba vão viver no futuro?
CC - Nos trabalhos de campo junto à comunidade extrativista do Santa Maria
eu soube da história de seu Louro, um catador de mangaba de uma área do
Bairro 17 de Março em Aracaju. Quando foram abrir avenidas no bairro,
literalmente passaram o trator e derrubaram centenas de mangabeiras do
terreno em que seu Louro trabalhava. Ele se sentou no chão e passou o dia
vendo levarem aquelas árvores carregadas de mangabas. Dali não se levantou
mais: foi levado para o hospital e de lá saiu morto.

JLPolítica - Isso é emblemático e confirma o


pensamento de dona Zenaide...
CC - Acho que essa história sintetiza o que pode ocorrer com os extrativistas
mais idosos da comunidade. As pessoas mais jovens vão buscar outras formas
de garantir seu sustento. Todavia, se perderá o conhecimento popular sobre o
meio ambiente acumulado e transmitido de geração em geração e se perderá a
riqueza natural que constitui aquela área de mangabeiras. Nisso consiste a
negação dos direitos territoriais das comunidades tradicionais, pois sem o
território se inviabiliza a reprodução dessas populações e do ambiente que elas
preservam.

PERDAS QUANTITATIVAS E QUALITATIVAS


“O prejuízo da derrubada de mangabeiras para a
comunidade tradicional precisa ser analisado do ponto
de vista quantitativo, mas sobretudo qualitativo. A
perda de muitas árvores implica em menos frutos para
catar e comercializar. O dano maior é do ponto de vista
qualitativo”
No evento café compartilhado, uma cruz feita com as primeiras mangabeiras
derrubadas de dona Maria: clemência

JLPolítica - Mas a Prefeitura de Aracaju irá construir


um conjunto habitacional no local. Nesse sentido, não
será um benefício maior para a população, ou haveria
um outro espaço para se fazer esse empreendimento?
CC - Há um falso dilema alimentado pela forma como a Prefeitura de Aracaju
interviu naquele território das mangabeiras. O direito à moradia não se
contrapõe ao direito territorial da comunidade tradicional. Tanto os sem tetos
quanto os extrativistas têm direito à cidade. A Constituição brasileira define que
todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como
garante que a moradia como um direito social dos cidadãos. E cabe ao poder
público assegurar todos esses direitos. Portanto, esses direitos não são
opostos, se complementam e são necessários para a qualidade de vida da
cidade.

JLPolítica - Qual seria a solução?


CC - Quando se coloca a questão de uma forma simplista, a resposta parece
óbvia: a prefeitura estaria prejudicando somente 11 famílias extrativistas para
beneficiar 1.102 famílias sem teto. Mas a questão é muito mais complexa. Os
estudos técnicos mostram que aquela região possui solos instáveis, com a
presença de cordões litorâneos, são solos arenosos e com a cobertura vegetal
contribuem para a retenção do excedente hídrico, reduzindo alagamentos e
erosões. Essas características colocam em risco a construção das moradias.
Por isso o estudo técnico do qual participamos em 2020 sugere a construção
do conjunto em outra área e recomenda a preservação do conjunto da área de
mangabeiras da região.
JLPolítica - A senhora acha que houve uma discussão
ampla e estudos aprofundados sobre direito à moradia
e sobre meio ambiente ecologicamente equilibrado
integrado por uma comunidade tradicional catadora de
mangabas?
CC - Esse conflito das mangabeiras reflete a ausência de uma política
habitacional no município que de fato busque combater o déficit habitacional,
por meio de mecanismos que restrinjam a especulação imobiliária e priorizem
as necessidades da população, sobretudo a de baixa renda. E revela também a
inexistência de uma política ambiental que leve em conta o uso dos bens
comuns pelas populações tradicionais que existem na capital e que o poder
público insiste em invisibilizar.

FALSO DILEMA DO OU A CASA OU A MANGABEIRA


“Há um falso dilema alimentado pela forma como a
Prefeitura de Aracaju interviu naquele território das
mangabeiras. O direito à moradia não se contrapõe ao
direito territorial da comunidade tradicional. Tanto os
sem tetos quanto os extrativistas têm direito à cidade”
Dona Zenaide, símbolo de resistência e preservação das mangabeiras: com a
frutinha, ela criou os nove filhos e está ajudando a criar os netos

JLPolítica - Essa ausência é plausível?


CC - A ausência dos estudos técnicos ficou evidente no debate público sobre
o conjunto habitacional. Eu participei da audiência pública realizada em
novembro de 2021 no Bairro Santa Maria. Foram muitas falas de pessoas que
estão no aluguel social reclamando que o modelo de casas era impróprio para
quem trabalhava com reciclagem e muitas falas de pessoas da comunidade
extrativista apelando para que não sejam destruídas as mangabeiras.

JLPolítica - E o que diziam os representantes do poder


público?
CC - Os representantes do poder público não apresentaram estudos que
mostrassem que o perfil do público foi levado em conta no projeto das casas, e
nem estudos comprovando que o tamanho que estabeleceram para a reserva
garante a preservação das mangabeiras e do trabalho extrativista. Mesmo com
todas as contestações a prefeitura não alterou o projeto. No dia, o secretário de
Infraestrutura, Antônio Sérgio Ferrari, disse que tudo que tinha sido colocado
seria avaliado e se chamaria uma nova audiência. Mas isso não aconteceu e o
projeto seguiu como se tivesse havido plena aprovação social. Ou seja, a
audiência pública foi um procedimento meramente protocolar.

UM CONFLITO EM DUAS DIMENSÕES


“Esse conflito reflete a ausência de uma política
habitacional que combata o déficit habitacional por
meio de mecanismos que restrinjam a especulação
imobiliária e priorizem as necessidades da população
de baixa renda. E revela também a inexistência de uma
política ambiental que leve em conta o uso dos bens
comuns pelas populações tradicionais”
Uilson de Sá da Silva, filho de Zenaide e presidente da Associação de Catadoras:
uma grande articulador

JLPolítica - Quando a União cedeu o terreno à


Prefeitura não houve a devida contestação judicial por
parte dos extrativistas dali?
CC - Na época o Ministério Público Federal, através da procuradora Lívia
Tinoco, alertou a SPU que havia uma comunidade extrativista ali, que tem
prioridade na concessão das terras da instituição e que não deveria ocorrer a
doação ao município. Contudo, a SPU ignorou a recomendação do MPF e fez a
doação. O MPF, com apoio da Comissão de Direitos Humanos da OAB,
ingressou com ação judicial defendendo os direitos da comunidade extrativista.

JLPolítica - Alegando o quê?


CC - Um dos argumentos utilizados foi o de que a Prefeitura não cumpriu a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT -, da qual o
Brasil é signatário. Essa convenção assegura que os povos indígenas e
comunidades tradicionais têm direito a uma consulta prévia, livre e informada
sobre os empreendimentos que afetem seus territórios. A ação do MPF
também usou como subsídio o estudo técnico realizado pela equipe do Peac-
UFS e AGB, mostrando as características ambientais da área, o processo de
ocupação da região, as características socioeconômicas da comunidade
extrativista e um conjunto de mapas apontando que a área que deveria ser
preservada. Esse estudo está disponível na página da AGB, secção Aracaju. O
MPF conseguiu suspender a construção do conjunto na justiça, mas a
Prefeitura recorreu para a instância regional. O mérito da ação ainda vai ser
julgado, mas enquanto isso as máquinas do poder público avançam
concretamente sobre o território da comunidade extrativista.

MÁQUINAS AVANÇAM SOBRE A LENTIDÃO DA


JUSTIÇA
“O MPF conseguiu suspender a construção do
conjunto na justiça, mas a Prefeitura recorreu para a
instância regional. O mérito da ação ainda vai ser
julgado, mas enquanto isso as máquinas do poder
público avançam concretamente sobre o território da
comunidade extrativista”
A professora Chris Campos e uma série de alunos orientados por ela em projetos da
UFS durante o ano de 2018

JLPolítica - Quando a União cedeu o terreno à


Prefeitura não houve a devida contestação judicial por
parte dos extrativistas dali?
CC - Na época o Ministério Público Federal, através da procuradora Lívia
Tinoco, alertou a SPU que havia uma comunidade extrativista ali, que tem
prioridade na concessão das terras da instituição e que não deveria ocorrer a
doação ao município. Contudo, a SPU ignorou a recomendação do MPF e fez a
doação. O MPF, com apoio da Comissão de Direitos Humanos da OAB,
ingressou com ação judicial defendendo os direitos da comunidade extrativista.

JLPolítica - Alegando o quê?


CC - Um dos argumentos utilizados foi o de que a Prefeitura não cumpriu a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT -, da qual o
Brasil é signatário. Essa convenção assegura que os povos indígenas e
comunidades tradicionais têm direito a uma consulta prévia, livre e informada
sobre os empreendimentos que afetem seus territórios. A ação do MPF
também usou como subsídio o estudo técnico realizado pela equipe do Peac-
UFS e AGB, mostrando as características ambientais da área, o processo de
ocupação da região, as características socioeconômicas da comunidade
extrativista e um conjunto de mapas apontando que a área que deveria ser
preservada. Esse estudo está disponível na página da AGB, secção Aracaju. O
MPF conseguiu suspender a construção do conjunto na justiça, mas a
Prefeitura recorreu para a instância regional. O mérito da ação ainda vai ser
julgado, mas enquanto isso as máquinas do poder público avançam
concretamente sobre o território da comunidade extrativista.

VACÂNCIA DE PROTEÇÃO GERA CAOS


“Não me parece haver política do governo para
comunidades tradicionais e não há espaço para o
vazio. Não ter uma política que atenda às necessidades
das comunidades tradicionais deixa os espaços
utilizados por esses povos como bens comuns -
mangues, rios, estuários, áreas de restinga - possíveis
de serem apropriados por empreendimentos
imobiliários”

Chris Campos com Alessandra Munduruku, liderança indígena do Pará, e Maria


Izaltina Santos, liderança quilombola de Sergipe, num Simpósio de Geografia
Agrária no Recife, em 2019

JLPolítica - Já houve derrubada significativa de árvores


de mangabeiras?
CC - Sim. Quando a Prefeitura retirou os barracos da ocupação dos sem
tetos em 2020 arrancou aproximadamente 70 árvores, sobretudo mangabeiras,
mas também havia cajueiros e outras espécies. Esse crime ambiental também
foi denunciado pelo MPF, mas a justiça aceitou a justificativa da Prefeitura que
não teve intenção de arrancar. Coincidentemente, essa área, que no âmbito da
divisão interna da comunidade é o território da Dona Maria, aparece no projeto
da Prefeitura como área para construção de casas, como se não fosse parte da
área de extrativismo. A comunidade reivindica que essa área seja replantada.
Isso é possível, porque a Embrapa tem um banco de sementes que
possibilitaria sua recomposição. Evidentemente que isso implica em um tempo
longo, de cerca de 5 anos para as mangabeiras que forem plantadas
possibilitarem o trabalho extrativista. No entanto, o projeto da Prefeitura não é
de reduzir, mas de ampliar os danos socioambientais porque a construção de
todo o projeto do conjunto implicará na retirada de dezenas de mangabeiras.
No dia 8 de março a manifestação das mulheres na capital começou na área
das mangabeiras, e foi realizado um ato junto a um pé de cajueiro que teve
parte de seus galhos arrancados no dia anterior. A comunidade que impediu a
derrubada completa, mas é um risco enorme esses homens e mulheres terem
que proteger cada árvore com suas vidas.

JLPolítica - A senhora consegue detectar com clareza


qual é a proposta do município de Aracaju para as
famílias extrativistas da mangaba?
CC - Da forma como está agindo até agora, a Prefeitura não demonstra
reconhecer a comunidade extrativista. Não foi realizada a consulta prévia livre
e informada, prevista na convenção 169 da OIT. O decreto municipal que cria a
reserva extrativista diz que a população extrativista será identificada pela
Secretaria Municipal da Família e da Assistência Social, quando na verdade a
unidade de conservação de reserva extrativista deve ser criada em função da
existência de uma comunidade, que vive do extrativismo com o objetivo de
proteger tanto o ambiente quanto essa população tradicional. Isso deixa
evidente que a comunidade não foi ouvida pelo poder público municipal. Não
me parece haver uma política do governo municipal para os povos e
comunidades tradicionais de Aracaju.

DA FALTA DE DIÁLOGO ENTRE AS PARTES


“Durante a maior parte do tempo, a Prefeitura ignorou a
comunidade de extrativismo. Somente no dia 19 de
janeiro desse ano o prefeito Edvaldo Nogueira fez uma
visita surpresa na comunidade, tirou fotos e se
comprometeu com a comunidade que iria garantir a
manutenção da área”
Olha a mangaba aí: com o Residencial Irmã Dulce dos Pobres, a frutinha que
alimenta os

JLPolítica - No que isso implica?


CC - Quem estuda essas questões sabe que não há espaço para o vazio
institucional. Não ter uma política pública que atenda às necessidades das
comunidades tradicionais, deixa os espaços que são utilizados por esses povos
como bens comuns - mangues, rios, estuários, áreas de restinga, etc -
possíveis de serem apropriados por empreendimentos imobiliários, industriais,
de turismo, entre outros, comprometendo o meio ambiente e a reprodução
social das populações que dependem dele. No caso Aracaju o poder público ao
invés de proteger essas populações tradicionais, como determinam as
legislações, é o primeiro a desrespeitar os direitos territoriais delas. Nesse
sentido é que o senhor Uilson Sá, presidente da Associação de Catadoras e
Catadores de Mangaba do Bairro Santa Maria, afirma reiteradamente que
todos os dias a comunidade precisa dizer que existe. Com o intuito ampliar a
mobilização da sociedade para assegurar a preservação daquele território
extrativista, foi lançada no dia 8 de março a campanha “SOS Mangabeiras”,
cuja mensagem principal é “Mangabeiras são vidas que salvam outras vidas”.

JLPolítica - Pelas noções do chamado efeito de borda


previsto na lei do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza - SNUC -, o terreno seria
apropriado para abrigar um conjunto habitacional?
CC - O decreto municipal está em desacordo com o que determina o SNUC
em vários aspectos. Uma das normas do SNUC que o governo municipal
descumpriu está no artigo 25 dessa legislação, que define que a maioria das
unidades de conservação, incluindo a reserva extrativista, deve ter uma zona
de amortecimento. No entanto, a Prefeitura de Aracaju devastou a vegetação
do entorno das mangabeiras que constituía essa zona de amortecimento. A
delimitação da área da reserva não pode se restringir ao local exato em que há
mangabeiras, sem considerar os efeitos de borda. As construções na fronteira
da área a ser preservada geram impactos diretos nas árvores que estão nas
extremidades, que ficarão expostas a mudanças no clima, a parasitas e outros
fatores biológicos e químicos que provocam o adoecimento e morte dessas
árvores. E à medida que as árvores das extremidades morrem as
remanescentes vão sofrendo os efeitos. De modo que, quanto menores os
fragmentos de áreas de restinga cercados por construções como é a proposta
desse empreendimento, maiores tendem a ser os efeitos de borda. Desse
modo, se o projeto seguir como está proposto pelo governo municipal não
estará assegurada a continuidade da atividade extrativista. Uma situação que
vai na contramão dos objetivos do SNUC, e teremos uma reserva que
provocará a redução ou até eliminação de uma comunidade tradicional de
extrativismo.

DOS GANHOS DE SER PRESERVAR A ÁREA


“No âmbito científico e cultural, esta área pode cumprir
importantes papeis em distintas áreas de
conhecimento, tanto das ciências da natureza quanto
das humanidades, além de poder desenvolver
atividades turísticas e culturais com a possibilidade de
criação do Museu da Mangaba”
Mangabeira boa e social nunca foi mangabeira decepada e morta

JLPolítica - E qual é o impacto do empreendimento da


forma como está sendo feita para drenagem pluvial
daquela região?
CC - No relatório técnico de 2020 destacamos alguns impactos,
particularmente a redução das áreas permeáveis devido a supressão da
cobertura vegetal e ampliação de edificações e das estruturas de circulação.
Comprometimento das funções hidrológicas e recarga de aquíferos e de
regulação do lençol freático com provável crescimento da superfície suscetível
a alagamentos nos períodos de chuva. Além disso, as alterações decorrentes
da supressão de corpos hídricos reguladores da rede de drenagem natural,
como as lagoas intermitentes que estão sendo eliminadas no processo que a
Prefeitura está chamando de “limpeza da área”, tendem a sobrecarregar os
canais, promovendo acréscimo na vazão dos canais artificiais de drenagem,
que já são insuficientes para dar conta deste aporte hidráulico sobretudo em
períodos de máximos pluviométricos.

JLPolítica - Qual é o nível de diálogo existente entre as


lideranças da Reserva das Mangabeiras e o Governo de
Aracaju?
CC - Durante a maior parte do tempo, a Prefeitura ignorou a comunidade de
extrativismo. Somente no dia 19 de janeiro desse ano o prefeito Edvaldo
Nogueira fez uma visita surpresa na comunidade, tirou fotos e se comprometeu
com a comunidade que iria garantir a manutenção da área. No dia seguinte,
houve uma reunião na Prefeitura municipal que parecia de fato ser o início de
um processo de negociação. Algo que já começava bem atrasado. Se
houvessem sido respeitadas as legislações ambientais e os direitos de povos e
comunidades tradicionais, essa negociação teria que ter ocorrido antes da
publicação do decreto municipal de 2020 e do anúncio do conjunto
habitacional. Ainda assim, a comunidade extrativista se colocou à disposição
para negociar. Estavam presentes, representando o poder municipal, o
secretário de Governo, Evandro Galdino, o de Meio Ambiente, Alan Lemos, o
procurador do município Sidney Cardoso e a diretora de Habitação da Emurb,
Tereza Cristina Goes. Participei dessa reunião como convidada da comunidade
extrativista juntamente com advogado da associação, Robson Barros. Nesse
diálogo, ficou evidente que o tamanho da área era um dos pontos polêmicos,
foi solicitada a suspensão ou alteração do decreto e ficou agendada uma nova
reunião para o dia 3 de fevereiro na Emurb. No entanto, em função de pessoas
da gestão testarem positivo para Covid, a reunião foi adiada e não entraram
mais em contato com a Associação. Enquanto isso, a obra só avança. A
pergunta que não quer calar é: a Prefeitura vai criar a reserva extrativista para
quem, se está ignorando a comunidade extrativista que é responsável pela
existência das mangabeiras? Reserva extrativista não pode ser uma praça
cercada de construções, como consta no projeto do município. O fundamento
desse tipo de unidade de conservação é a preservação da área e do trabalho
extrativista. E isso só se viabiliza com ampla participação da comunidade em
cada passo. E nada disso ocorreu até agora.

JLPolítica - Mas para quem é leigo em mangabeiras e


em urbanismos, é possível medir com que régua ou
bitola os benefícios para Aracaju da preservação das
mangabeiras do Santa Maria e do 17 de Março?
CC - Os benefícios são amplos e em múltiplos aspectos. No que tange aos
aspectos ambientais, essa área traz grandes contribuições ao realizar a
proteção do solo, prevenindo a ocorrência de desastres associados ao uso e à
ocupação inadequados. A proteção dos corpos d’água, evitando enchentes,
poluição das águas e assoreamento dos rios. A manutenção da permeabilidade
do solo e do regime hídrico, prevenindo contra enxurradas e inundações,
colaborando com a recarga de aquíferos e evitando o comprometimento do
abastecimento público de água em qualidade e em quantidade. Favorecendo a
função ecológica de refúgio para a fauna silvestre e de corredores ecológicos e
atenua desequilíbrios climáticos, tais como o excesso de aridez, o desconforto
térmico e ambiental e o efeito “ilha de calor”.

JLPolítica - E têm também os aspectos sociais...


CC - Sim. Múltiplos também são os benefícios sociais da reserva das
mangabeiras, com a preservação da cultura e do meio de vida da comunidade
extrativista, assegurando direitos territoriais a uma população tradicional,
conforme preveem as legislações, contribuindo para a materialização das leis
que reconhecem a necessidade e o respeito à diversidade sociocultural de
todos que constroem a sociedade. No âmbito científico e cultural, esta área
pode cumprir importantes papeis em distintas áreas de conhecimento, tanto
das ciências da natureza quanto das humanidades, além de poder desenvolver
atividades turísticas e culturais com a possibilidade de criação do Museu da
Mangaba, proposto pela Associação de Catadores e Catadoras de Mangaba
Padre Luiz Lemper.
Não custa lembrar que, por lei, a mangabeira é uma árvore símbolo e patrimônio
imaterial do Estado de Sergipe

JLPolítica - Para além desse caso do Santa Maria e de


outros que a senhora conheça, é possível detectar uma
negação da ciência, das legislações ambientais e dos
direitos territoriais de povos tradicionais nos
empreendimentos públicos?
CC - Há uma ideologia do desenvolvimento, que difunde a retórica de que
empreendimentos são bons para tudo e para todos. Mas aí não são levados
em conta os impactos para a natureza e para as populações cujos modos de
vida dependem diretamente dos ambientes que vem sendo devastados. A
termelétrica em Barra dos Coqueiros, por exemplo, provocou a remoção de
famílias que viviam da pesca e de agricultura de subsistência para áreas em
que não é possível desenvolver essas atividades. A população que segue nas
proximidades vem sofrendo problemas respiratórios devido a poluição - o navio
que abastece a usina está em cima do que as comunidades costeiras
consideravam um dos maiores bancos pesqueiros da região, o que impactou
na atividade pesqueira. Ainda no município de Barra, vemos a drástica redução
das áreas de mangabeiras, impactando diretamente sobretudo de mulheres
que vivem do extrativismo da mangaba nos povoados. Em outras localidades
do litoral sergipano são os tanques de carcinicultura que vêm destruindo
manguezais e contaminando os rios. Em outros são os dejetos das usinas de
cana, que impedem comunidades de viver da pesca. Toda a sociedade sofre
com os impactos socioambientais produzidos pelas atividades econômicas, no
entanto, povos e comunidades tradicionais, via de regra, são mais afetados,
uma vez que suas atividades produtivas são dependentes dos bens comuns,
como terra, águas, mangues, áreas extrativistas. E são essas populações e os
povos indígenas os verdadeiros guardiões de nossa biodiversidade. Por isso é
fundamental assegurar os territórios de vida desses povos e comunidades
tradicionais.

JLPolítica - Que tipo de consultoria a UFS, através da


senhora, presta nesse caso da Reserva do Santa
Maria?
CC - O trabalho que realizamos nas comunidades tem como alicerce teórico
a educação ambiental crítica, que se constrói no Brasil no contexto da
redemocratização. Em linhas gerais, essa perspectiva está ancorada em uma
abordagem de totalidade, uma vez que a maioria dos problemas caracterizados
como ambientais resultam de processos produtivos que afetam de diversas
formas os ambientes e os seres que os constituem. Essa análise possibilita
evidenciar as múltiplas escalas espaciais dos processos produtivos e dos
rebatimentos que produzem, uma vez que os ambientes, bem como as
culturas, não podem ser delimitados pelas fronteiras políticas de municípios,
estados, países. Via de regra, os problemas gerados em um lugar impactam
muitos outros. Nosso trabalho com as comunidades é fomentar essa
compreensão ampla e complexa dos problemas que enfrentam. Populações
tradicionais já tem uma forma de vida que problematiza a dinâmica social que
temos, produzem e vendem os frutos de seu trabalho, detém o conhecimento
do que fazem e do ambiente no qual se inserem, se relacionam com o
mercado, mas não são subsumidos à lógica da acumulação contínua e
crescente. Por isso são uma voz dissonante diante do processo de
desenvolvimento que, na melhor das hipóteses, gera emprego e renda, mas
não qualidade de vida, à medida que se sustenta na exploração cada vez mais
intensa do trabalho e da natureza. Não é um trabalho de mão única, no qual a
universidade ensina e a comunidade aprende. É uma via de mão dupla.
Aprendemos muito com as comunidades, com a relação sociedade-natureza
que constroem em que os bens naturais são preservados pelo uso comum, em
que todos cuidam do que é de todos. Nesse processo, vamos contribuindo com
a luta deles pelos seus territórios de vida e eles vão oxigenando a produção de
conhecimento na academia. Esse tipo de trabalho me realiza não apenas como
docente, mas sobretudo como ser humano.

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