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As imensas Cumulonimbus se apinhavam e se acotovelavam no céu.

Titãs caóticos
irritadíssimos feitos de algodão cinza beirando um ataque de nervos se desentendiam lá
em cima, nas alturas. A luta era intensa, e as perdedoras eram engolidas pelas vencedoras,
formando uma só entidade de metal contundente. E no meio disso tudo, exatamente no
meio de toda a violência e fagocitose celeste, um espetáculo de cores afiadíssimas e
frenéticas podia ser visto. Violetas ofuscantes, brancos impossíveis, vermelhos irados e
verdes tóxicos eram vistos dentro e fora das nuvens, como um agitado e animado clube
noturno cujo insulfilm não é mais tão breu assim. Em cima das nuvens, eles se reuniam.
Faziam seu conclave, sua assembléia estrobosfóbica indiferentes ao que acontecia no
mundo debaixo das nuvens. Chegavam aos montes, de todos os lados. Raios e relâmpagos.
Os raios rugiam em uma tentativa de intimidação e de acasalamento. Cada rugido mais
alto, mais gutural e imponente que o outro.

As nuvens continuavam a se assimilar, e com cada pancada mortal e homérica, um


ribombar imenso se seguia. Os relâmpagos eram muito sincronizados, e faziam uma
algazarra assustadora. Mas no meio deles, em um canto ainda sem um sinal sequer de
psicodelia colorida, estava uma mamãe raio atenciosa e seu filhote tímido e assustado.

- Mamãe, - disse o pequeno raio com sua voz estalada enquanto tapava suas orelhas
imaginárias. - Você ouviu esse? Foi tão alto, tão rouco. Eu tenho medo, mamãe. Meus
ossos tremem tanto.

- Você não tem ossos, faísca, - sussurrou uma voz rouca e levemente feminina a paciente
mamãe relâmpago para seu filhote enquanto tirava as mãos de suas orelhas inexistentes. -
nem orelhas. São coisas dos carnados, somente. Nós não somos assim, não temos esses
defeitos, vai entender.
- Então por que tremo tanto? - protestou indignado – Se não tenho carne, eu não sinto
frio, não vem me dizer que é frio, mamãe.

- Não é frio, pequena faísca. É eletricidade. Nós somos assim, feitos de energia. Estamos
sempre em movimento, por mais parados que pareçamos estar. Olha, lá embaixo, caíram
dois, está vendo? - Apontou a mamãe para dois relampâgos que desciam em velocidade
incalculável em direção ao solo, traçando um irregular trajeto branco e roxo vivo.
- SIM! Por que cair? Ah não... agora vem o rugido. Ih, eles bateram... - disse o pequeno raio
enquanto, novamente, tapava seus ouvidos imaginários.
- Isso, por que saltaram juntos. Nossos arcos voltaicos nos chamam, meu bem. Os mais
velhos entre nós dizem que somos partes diferentes da mesma coisa. O que ela é, não sei
ainda. Mas acho que descobrimos no momento em que saltamos. Não tem curiosidade?
Os trovões te chamam, querido. Isso que fazemos aqui em cima, chamamos de relampejar.
Somos relâmpagos aqui em cima, nos tornamos raios enquanto saltamos, deixamos de
trovejar para viver quando saltamos. Cumprimos nosso papel ao rugirmos o rugido mais
forte que conseguimos dar, e marcamos nossas poses em minúsculos momentos eternos
na cara do céu, fazendo-o sorrir, zangar, ou entristecer. Tudo isso, é de nossa alçada.
Entende agora o que tem dentro de você, pequena fagulha? Você é a expressão, a voz do
céu. A alegria, felicidade ou raiva dele é você quem faz. É por isso que treme, é o chamado
do trovão, o chamado para brilhar, pra ter sentido. Mas o que você vai ser, exatamente, só
vai descobrir saltando.
- E se eu me machucar? Eu posso acertar alguma ovelha, ou algum carnado de duas
pernas...
- Não pense nessas coisas, fagulha. Só não olhe para as pontas de lança ou topos de igrejas
e tudo vai ficar bem, por vezes, na queda, confundimos nossos reflexos nessas coisas
brilhantes, e lembra do que disse de nossos arcos voltaicos, não é? Mesmo não estando lá,
achamos que está, é a intensidade do salto. Às vezes nos sentimos tentados a tocar os
carnados. Você sabe, somos tão curiosos, queremos ver o que há por debaixo dos guarda-
chuvas, por que se escondem sob as árvores quando ele chora. Mas evite olhar demais
para o que te disse, e sua passagem, seu momento será eterno e brilhante, filhote. Não
rubro e fincado no solo como um machado abandonado.
- Machado abandonado?

- Sim, bebê. É um parente das lanças que te disse a pouco. Servem para partir árvores, as
coisas verdes que vemos daqui de cima, um tipo diferente de carnado, mas tem muito da
gente. E também servem para partir elmos, para que cabeças possam ser partidas por
martelos e perfuradas por lanças. É confuso, eu sei, pequenino. Mas esse é o mundo deles,
não o nosso. Por isso não podemos tocar o solo. Olha, lá embaixo! - apontou a mamãe raio
enquant outro raio subia em velocidade absurda em direção à imensa nuvem tempestuosa
que agora se apresentava. - Viu? Alguns que tocam o fundo conseguem ficar presos,
perdidos. Alguns, dizem os mais velhos, tentam até caminhar por entre os carnados. Como
se fossem um deles. Mas se passam por carnados muito arredios, vívidos demais, sempre
rugindo, trovejando. Porém, em momentos de tempestade, nos momentos de nossa
reunião, eles ouvem o chamado de novo. E nessa hora, eles vivem! Saltam para cima,
abandonam o solo duro e alçam vôo. Vivendo em um clarão, como jamais estiveram
enquanto perdidos.

- Que família complicada essa... marletos e lanços.

- Muito, meu amor. Mas e agora? Vamos saltar? Não acha que é hora de você rugir? Você
não vai cair, centelha. Vai voar! Voar e sorrir o sorriso do céu. Vai urrar para as montanhas.
Abraçará o vento, mudará o curso, fará desenhos fantásticos. Viverá uma imensidão em
uma fração de segundos. Carnado algum viverá assim, querido. Vivem mais do que a
gente, alguns até mesmo vivem mais de uma vez. Mas acredite em mim, viveremos
milhões de vidas, milhões de possibilidades em nosso salto.

- Mamãe raio estendeu uma elétrica mão materna para o raio pequenino, - Vamos? Estou
ficando cansada, filhote. Não vamos ser um fio no céu. E se tocarmos o verde oceano... ah,
querido, seremos tantos, mas tantos...em tantos lugares. Viveremos vidas incontáveis!

De modo tímido, o pequeno raio alcança a mão de sua mãe. Seus arcos voltaicos agitando-
se como incontroláveis serpentes de neon. Arrisca, então, um olhar para baixo da beirada
da gigantesca nuvem de chumbo, fitando o remendado solo no fundo. Um pequenino
sorriso eletrizante percorre, irrefreável, o rosto do raio.

- Podemos rugir juntos, mamãe? - Suplicou o pequeno raio.

Com um sorriso avassalador, e pequenas faíscas que percorriam por seus olhos estáticos,
mamãe raio concorda com a cabeça.
- Juntos, meu amor, podemos fazer qualquer coisa!

Todos os relâmpagos pareceram saltar ao mesmo tempo em uma selvagem dança elétrica.
Desenhos, círculos revoltados, arcos e teias elétricas se desenvolviam no alto. Vermelhos,
púrpuras, a multitude de cores metálicas e cintilantes era quase sem fim. E que desenhos
formavam, quantas expressões ganhavam o céu. A vida explodia como nunca enquanto o
pequeno raio saltava. O pequeno raio rugia como um leão celeste quando tomou coragem
para viver. Quando o pequeno raio descobriu que para viver a vida de explosão, de luzes e
cores fantásticas, era necessário voar, era necessário não ter medo de cair.

FIM

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