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MUSICOTERAPIA E TERAPIA OCUPACIONAL: Um estudo genealógico

Rogério Jorge Ferreira da Silva

[Bacharel em Terapia Ocupacional pela Universidade Ceuma, Especializando em Musicoterapia no Conservatório Brasileiro de Música]

Resumo

O presente artigo faz uma análise genealógica sobre a musicoterapia e a terapia ocupacional destacando pontos em comuns e estreitas afinidades entre as duas áreas. Em nossa
metodologia fizemos uma revisão bibliográfica pesquisando aspectos históricos de cada profissão, posteriormente fizemos uma análise reflexiva sobre seus objetos de estudo
destacando as atividades humanas como objeto inespecífico da terapia ocupacional, e a música como objeto específico da musicoterapia. Refletimos também sobre o fazer
musical, transpondo alguns conceitos de terapia ocupacional ao sonoro/musical, agregando elementos da terapia ocupacional ao processo musicoterápico. Na pesquisa evidencia-
se, em alguns momentos, a tênue fronteira entre as duas profissões, instituída principalmente pela afinidade entre arte e ciências estabelecida historicamente. É considerado
também os estudos realizados a cerca do fazer musical como ferramenta da prática clínica de terapeutas ocupacionais e musicoterapeutas, destacando os aspectos e /ou elementos
sonoro-musicais que levam ao estabelecimento de uma relação terapêutica e as especificidades das duas profissões.

Palavras-chaves: Análise Genealógica. Musicoterapia. Terapia Ocupacional.

1 Introdução

As motivações para a referida pesquisa surgiram durante o estágio curricular do pesquisador no curso da especialização em musicoterapia, na área de saúde

mental, atendendo psicóticos adultos num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), onde é terapeuta ocupacional. O CAPS fica localizado no Bairro Seriema, na

cidade de Caxias no interior do Estado do Maranhão.

Durante o processo de atendimentos percebeu-se muitas semelhanças entre a terapia ocupacional e a musicoterapia no que diz respeito aos procedimentos clínicos,

detectando os muitos pontos em comum, e estreitas afinidades entre essas duas arteciências. Essas semelhanças foram catalisadoras de indagações que levaram a

essa pesquisa, isto é, as relações de limites, possibilidades e complentaridades entre a música como recurso terapeutico ocupacional e a musicoterapia.

Por ser uma área de conhecimento que está sempre em construção, devido a sua complexidade, a musicoterapia continua constantemente produzindo novas teorias

que definem sua prática clínica, sofrendo em muitas de suas construções teóricas, grande influência da musicologia e da psicologia da música em sua

fundamentação conceitual sobre o fazer musical.

A terapia ocupacional utiliza diversos conceitos ligados ao fazer humano como recurso terapêutico. Constantemente se fundamenta nos conceitos de desempenho

ocupacional, de labor, de práxis, que possibilitam pensar a utilização, na prática clínica, de ocupações significativas para o paciente para que possam atingir o

retorno a suas vidas cotidianas de forma autônoma, sendo este o objetivo central do tratamento do terapeuta ocupacional.

Percebe-se que apesar de distintas, ambas as profissões tem como centro de investigação o fazer humano que perpassa por temas como criação, ação, sentidos

existenciais, memórias de vida, dentre outros. Esses pontos são interessantes de serem analisados nessa aproximação entre musicoterapia e terapia ocupacional.

Para o trabalho realizou-se a pesquisa bibliográfica e descritiva, para análise reflexiva dos dados coletados, foi feito um levantamento histórico da terapia

ocupacional, da musicoterapia no Brasil e no exterior com o objetivo de encontrar aspectos genealógicos comuns entre as duas áreas de conhecimento.

Diferente da história monumental que destaca fatos, datas e personagens históricos, a genealogia procura trazer à tona ideias, mentalidades, pragmáticas e redes de

sentidos que foram recalcadas e não expressas linearmente e de forma evidente.

A genealogia parte, desse modo, da análise e interpretação de discursos diversos e recolhidos de várias formas e de materialidades distintas (literatura, imagens,

entrevistas). Observou-se os objetos de estudo das duas áreas, analisando a atividade humana como um objeto inespecífico da terapia ocupacional e a fruição

musical como um objeto específico em musicoterapia.


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Utilizou-se como fontes: livros, artigos, monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado de teóricos e pesquisadores da terapia ocupacional e da

musicoterapia.

Assim, o artigo está organizado da seguinte maneira, no primeiro momento concentra-se esforços nos aspectos históricos das duas arteciências, num segundo

momento, aborda-se uma perspectiva de conhecer o objeto da terapia ocupacional e suas relações com a música.

No terceiro ponto, trata-se das atividade significativas do terapeuta ocupacional no âmbito das relações com a musicoterapia, o que no quarto ponto concentra-se

no objeto da musicoterapia, tomando a música como uma dessas atividades e as possibilidades desta, na produção de sentidos e significados.

Por fim, no quinto e último ponto apresenta-se algumas reflexões nas conclusões do referido trabalho.

2 Antecedentes históricos

2.1 Terapia ocupacional

Na virada do século XVIII e XIX, ou seja, no período do Humanismo, “a ocupação passa a ser utilizada em tratamentos de doença mental, no asilo Bicêtre, na

França, em meados de 1791, sob a direção de Philipe Pinel, esse tratamento ficou conhecido como tratamento moral” (FRANCISCO, 2001, p. 22).

Com o tratamento moral surge pela primeira vez na história ocidental a noção que os fazeres poderiam ser usado como tratamento, como cura. Aqui é importante

perceber que se a terapia ocupacional coloca Pinel como marco na história da profissão, não resta dúvida que a história da musicoterapia também se vincula de

forma bastante evidente a este fato, uma vez que lida com o fazer musical.

Algumas décadas depois de Pinel, em decorrência da Revolução Industrial, surge o Positivismo, que foi uma corrente filosófica muito influente na consolidação

do pensamento científico e que irá influenciar as primeiras escolas de terapia ocupacional.

A concepção filosófica estava sendo mudada pelo impacto da tecnologia. Os valores tecnológicos de produção iam assumindo um papel de destaque na visão do mundo, em
detrimento dos valores humanitários. Na área de saúde, em vez do ambiente, o cérebro é que era objeto de explicação e tratamento da doença mental. Os doentes mentais
passaram a ser tratados por meio de quimioterápicos e cirúrgicos. As instituições de atendimento aos doentes mentais tornaram-se grandes laboratórios experimentais.
(FRANCISCO, 2001, p. 23).

Esta concepção positivista retira o valor moral que Pinel havia dado ao trabalho, aos fazeres. Logo, a terapia ocupacional passa a lógica reducionista da atividade,

entendendo a propriedade a priori de cada fazer, seja na reabilitação física seja na psiquiatria.

Na virada do século XIX para o XX surge na Inglaterra, liderados por William Morris, um movimento estético, ético e politicamente de esquerda, denominado

Artes e Ofícios que entendia que a Revolução Industrial estava alienando de forma violenta o cotidiano e os corpos dos operários, bem como privando-os da

experiência estética, considerada vital.

Para os líderes do movimento, com o fim das antigas comunidades rurais de artesãos e a ida deste artista popular para as cidades, para trabalhar nas fábricas, a

experiência criadora, produzida de forma coletiva e solidária do artesanato, sucumbia e a vida e os sentidos existências destes trabalhadores eram perdidos.

Crepeau (2011) no importante livro de Willard e Spackman dizem que um dos grandes princípios desenvolvidos por este movimento, está na ideia de que o

processo de fazer é muito mais importante de que o objeto produzido e de que o fazer criativo é uma necessidade existencial.

A terapia ocupacional é herdeira direta do movimento de Artes e Ofícios, contudo também pode-se verificar fortes afinidades com os pensamentos da

musicoterapia, pois ambos valorizam em sua clínica o processo de fazer em detrimento de uma obra produzida e, nesta lógica, ambos podem trabalhar com

estéticas precárias, porém potencializadoras da vida.

No Brasil, no inicio do século XX, é criado no Rio de Janeiro a colônia para mulheres do Engenho de Dentro, no ano de 1941, nesta colônia é fundado o setor de

terapêutica ocupacional com a Drª Nise da Silveira frente aos serviços, criando o primeiro setor de Terapêutica Ocupacional no Brasil e o Museu de Imagens do
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Inconsciente, este, posteriormente, passa a ser reconhecido também na Europa e em outros países. Nesse período, acredita-se que os terapeutas ocupacionais

começam a se consolidar no Brasil como profissionais da área de saúde mental. É importante ressaltar que Nise empregava a música constantemente em suas

atividades. E depois, no Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil, seguindo as inspirações da Drª. Nise, Elso Arruda (1962) também inicia a terapêutica

ocupacional e destaca a musicoterapia como uma forma de terapia ocupacional. Acredita-se que esta talvez seja a primeira referência nacional que aparece o

termo musicoterapia.

Em 1940, iniciam no Brasil os primeiros programas de incapacitados físicos em decorrência do Movimento Internacional de Reabilitação (MIR). Estes serviços

“eram oferecidos em entidades governamentais e não-governamentais que implantaram programas especiais para essa população” (PRADO DE CARLO;

BARTALOTT, 2001, p.31). O MIR originou-se em países que participaram das duas Grandes Guerras, devido ao elevadíssimo número de mutilados nos

conflitos.

Em 1963, na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR) é aprovado o currículo de um curso de Terapia Ocupacional com carga horária de 2.160

horas cumpridas em 3 anos em nível universitário.

A partir de 1964, o curso de Terapia Ocupacional da USP passou a ter duração de três anos, mas com a formação muito voltada para a atuação em reabilitação

física, e somente depois de um longo período, é que surgiram estágios supervisionados em psiquiatria, mesmo com todo histórico das ocupações como forma de

tratamento para doentes mentais.

Em 1969 a terapia ocupacional, juntamente com a fisioterapia, é reconhecida como profissão em nível de graduação, representando o ano oficial de emancipação

da profissão.

Hoje a profissão está se estabelecendo de maneira satisfatória, com diversas portarias do SUS que obrigam a presença do profissional em inúmeras ações, bem

como a indicação da profissão no SUAS. Destaca-se ainda a existência de 50 cursos de terapia ocupacional no Brasil, sendo 21 em instituições públicas,

destacando-se a USP, Unicamp, UNESP, UFRJ, UFMG, UNB, UFPR, UFPB e UFPE. Em 2010, foi criado o primeiro mestrado específico em terapia ocupacional

na Universidade Federal de São Carlos.

2.2 Musicoterapia

Anteriormente foi apresentado que possivelmente tanto o tratamento moral de Pinel como o movimento de Artes e Ofícios devem ter sido importantes para a

estruturação das bases epistemológicas e ideológicas da terapia ocupacional. E como no caso da terapia ocupacional, o fenômeno das guerras também motivou a

criação da musicoterapia.

No século XX, mas precisamente após a Segunda Guerra Mundial, houve em todas as culturas uma sequela sem antecedentes na humanidade, econômica e

socialmente. Tais sequelas influenciaram nos homens relações intersubjetivas, em decorrência dos ferimentos psicológicos e físicos. Em meio à complexidade que

o pós-guerra trouxe, surge a musicoterapia.

Nos Estados Unidos, Ira Altshuler escreve em 1944, um artigo que serviu de fundamentação para o surgimento do Principio do ISO, este, sofre algumas

modificações e torna-se principio básico para a prática em musicoterapia em vários modelos de atuação. Ainda no país americano, “desde 1952 eram

desenvolvidas pesquisas sobre o efeito terapêutico da música” (COSTA, 2005, p.11).

Nesse período o Journal of Music Therapy, da National Association for Music Therapy (NAMT), de Kansas, é publicado e os Yearbooks da NAMT são

disponíveis desde 1951.


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Na Inglaterra em 1958, é fundada a Society for Music Therapy and Remedial Music, a instituição publicava o Journal of Music Therapy. Anos mais tarde

associação inglesa muda de nome e passa a chamar-se British Society for Music Therapy.

No Brasil, o acesso a bibliografia estrangeira no período do pós-guerra era muito difícil “e aqueles que começaram a utilizar a música com propósitos terapêuticos,

muito antes da fundação do curso e até da associação, eram autodidatas” (ibid).

A primeira experiência data de 1955, quando Ruth Loureiro Parames foi contratada como técnico em musicoterapia, “ mesmo tendo formação de educadora

musical, no Centro Psiquiátrico Nacional para atender seus pacientes na Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR), fundada por Nise da Silveira,

atuando até 1987” (ibid).

Inicialmente o trabalho “era preparar festas e eventos, rapidamente foi percebida a importância terapêutica da música e suas atividades” (op cit, p.45). As

atividades desenvolveram-se tanto na STOR, com adultos, como com crianças no Hospital de Neuropsiquiatria Infantil. Percebe-se aqui como, anteriormente, em

Elso Arruda, a musicoterapia inserida dentro do contexto da terapia ocupacional.

No Rio de Janeiro, durante a década 40, a professora Liddy Mignone fundou e coordenou um curso de especialização de professores de iniciação musical para

formar profissionais para a aplicação e difusão das novas técnicas. O curso tinha duração de dois anos e tinham estágios supervisionados desenvolvidos no

Conservatório Brasileiro de Música e em instituições de ensino voltado a crianças excepcionais, como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) e

a Sociedade Pestalozzi do Brasil.

Dentre as primeiras alunas tem-se Ruth Loureiro Parames (mencionada anteriormente), Doris Hoyer de Carvalho, Cecília Conde e Gabriele de Souza e Silva,

estas, são responsáveis por iniciar a musicoterapia no Rio de Janeiro. Cecília Conde, de 1963 a 1966 atendeu, na Casa das Palmeiras, uma instituição psiquiátrica

dirigida pela Drª Nise da Silveira.

Em 1957 Doris Hoyer de Carvalho, entra na sociedade Pestalozzi, no Rio de Janeiro e “transforma as atividades musicais oferecidas aos aprendizes, em

musicoterapia (op., cit., p. 47)”. Anos mais tarde, em 1970, Doris monta um curso intitulado: Atividades Musicais para Excepcionais. O curso funcionou durante

três anos e vinham alunos de todo o Brasil.

Em 1964, a Associação Beneficente de Reabilitação (ABBR) contrata Gabriele Souza e Silva “como habitualmente ocorria, para formar uma “bandinha” de

crianças, mas no decorrer do tempo conseguiu montar um setor de musicoterapia, com salas para atendimentos de crianças e adultos” (op. cit, p. 47).

Em 1962, aproximadamente na mesma ocasião em que se amplia a atuação dos primeiros profissionais brasileiros, Dr. Rolando Benenzon, psiquiatra argentino,

“começa suas experiências sobre o uso do som como possibilidade regressivo-genética no Hospital Neuropsiquiátrico de Buenos Aires” (op cit, p. 12).

Durante o ano de 1966, Dr. Benenzon e outros colaboradores criam a Comissão de Estudos de Musicoterapia e a Associação Argentina de Musicoterapia

(ASAM), fundando também a Escola de Formação de Musicoterapeutas na Faculdade de Medicina da Universidade de Salvador, na Argentina, da qual foi diretor

até 1982.

Em 1970, A Universidade do Brasil, atual UFRJ, reconhece o poder terapêutico da música, “não só no Instituto de Psiquiatria, onde foi fundada a Associação

Brasileira de Musicoterapia” (op,cit, p. 47). Em 1972, as educadoras musicais Cecília Fernandez Conde, Diretora Cultural do Conservatório Brasileiro de Música,

Doris Hoyer de Carvalho e Gabrielle Souza e Silva fundam o primeiro um curso de formação de técnicos de musicoterapia, com o Dr. Benenzon dando a

orientação técnica. Hoje a profissão ainda luta para sua emancipação, já possui desde 2009 o seu Código Brasileiro de Ocupações (CBO), n° 2239-15 na família

dos terapeutas ocupacionais e afins. Em 2011 foi incluída no sistema Único de Assistência social (SUAS), como profissional obrigatório em seu quadro.
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Para se obtiver o titulo de musicoterapeuta é obrigatório ter o curso de bacharelado e/ou especialista em musicoterapia, espalhados por todo país em universidades

federais como a UFG, UFPI, UFPEL, UFMG, FAP, além do Conservatório Brasileiro de Música. Se na história das duas profissões percebe-se muitas

aproximações e inter-relações, entretanto elas ganham cada vez mais seus saberes específicos, delimitando seus campos. Mas é impossível não afirmar que elas

guardam princípios.

Acredita-se que o credo no fazer como potência transformadora do homem seja um dos pontos que mais as aproximas. A musicoterapia com seu fazer musical e a

terapia ocupacional com o estudo dos fazeres cotidianos em geral.

3 Terapia ocupacional e o objeto inespecífico: atividade e ocupação humana

3.1 Atividade humana e o processo criativo

As primeiras concepções mais acadêmicas da terapia ocupacional voltaram seus esforços para o estudo das atividades humanas. Nesta direção, caberia ao

terapeuta ocupacional ser o profissional responsável para análise das atividades humanas. Mesmo se a atividade prescrita ao paciente for a música, estas análises

partem de critérios que não necessariamente se baseiam nas estruturas e elementos sonoros.

Aqui aparece uma diferença importante entre o terapeuta ocupacional e o musicoterapeuta. Se na terapia ocupacional as atividades são analisadas a partir de

categorias mais gerais e relativamente inespecíficas para cada fazer, na musicoterapia, a produção sonora e musical é avaliada tomando, sobretudo os próprios

elementos constitutivos do som e da música, é imprescindível um conhecimento técnico musical na formação do profissional musicoterapeuta.

Obviamente que o terapeuta ocupacional pode cantar em um jogo de roda com crianças e avaliar os aspectos motoros, cognitivos, interacionais, afetivos que tal

atividade produz, mas analisar estes mesmos aspectos tomando a fisicalidade do som, é tarefa do musicoterapeuta.

Usando sempre sua criatividade, o ser humano vem ao longo de sua existência evoluindo e produzindo expressões artísticas que acompanham a humanidade

historicamente, tais expressões são normalmente manifestadas seguindo padrões de uma época, entretanto, sempre há um espaço para a liberdade e a criatividade.

“A principal importância da terapia ocupacional reside no fato de se oferecerem ao paciente, oportunidades de intervir na realidade segundo sua intenção, vontade

e com liberdade” (JORGE, 1990, p.13). Para o autor, essas atividades são livres e criativas, tal termo “empregado como sinônimo de ocupação/trabalho mantém o

sentido original de qualidade de ativo, aquilo que se opõe ao passivo” (ibid).

Entende-se então que a criatividade é um critério importante para que a atividade seja significativa para o sujeito e consequentemente terapêutica. Este mesmo

critério é fundamental para a musicoterapia.

Através de atividades artísticas, artesanais e outras experiências estéticas o ser humano “se percebe e desperta a consciência de si através da obra de arte, esta é o

outro-ele-próprio e que o homem adquire pela atividade reflexionante do pensamento” (ibid).

A consciência manifestada por nossos pensamentos envolve também a percepção do paciente e do seu corpo humano dentro de suas relações com o mundo, pois

encontra-se ativo em plena atividade e “a cada nova experiência o corpo se remodela, possibilitando novas percepções do mundo,e consequentemente, produz

uma força política e transformadora” (ALMEIDA,2004,p.11).

Assim, entende-se que a terapia ocupacional acredita que a criatividade, expressa de forma bastante evidente na arte, é parte importante da constituição humana e

pode manifestar-se de diversas formas nas ocupações cotidianas. Caberia ao terapeuta ocupacional entender em que fazeres e atividades o homem ganha seu

potencial expressivo e criativo, necessário a manutenção da vida e da saúde. Expressão e criatividade, como outrora mencionado, não são um atributo específicos

das artes, mas cada sujeito dá as suas atividades cotidianas seus valores próprios. Na vida ocupacional da cozinheira, por exemplo, seus pratos são suas ações mais

criativas e expressivas, da mesma forma que um pintor usa suas tintas e telas. É entendido aqui que nenhuma atividade tem privilégio a priori para o processo
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clínico. Cabe ao terapeuta entender quais atividades que preenchem significativamente o desempenho ocupacional, dando possibilidade de que elas ocorram de

modo autônomo e harmonioso em cada sujeito. Assim, a música aparecera como atividade importante se ela for significativa para o cotidiano do indivíduo.

Deve-se também atentar que o conceito de ocupação aproxima imensamente a terapia ocupacional do conceito de cultura, logo toda atividade é um fazer humano

significativo para o indivíduo nesta dimensão. Nesta direção, não seria o som em si ou a música em si terapêutica, mas o fazer musical, realizado por um homem

concreto, histórico e cultural.

3.2 Música em terapia ocupacional:

A música em um contexto clínico, utilizada por profissionais de saúde qualificados, pode servir como meio de possibilitar melhorias à qualidade de vida, tendo em

vista o efeito que este elemento impulsiona quando significativa para o indivíduo. Além disso, é quase impossível (música) não estar presente em nosso cotidiano,

na medida em que aproxima pessoas, expressa a cultura de um povo e faz parte de diversos momentos da vida de qualquer indivíduo. Para a terapia ocupacional,

por sua forte presença no dia-a-dia das pessoas, a música é um elemento importante das paisagens ocupacionais.

O terapeuta ocupacional pode ser um dos profissionais a utilizar música como recurso, pelo fato de utilizar a atividade humana como objeto de trabalho,

preenchendo as esferas do desempenho ocupacional, analisando-a de forma científica e procurando integrar o indivíduo com o fazer humano, as atividades

humanas são:

[...] atividades saudáveis próprias do cotidiano e habitat humano e podem ser estudadas pelo tipo- trabalho, lazer, arte, ciência, esporte, etc. Pela característica- criativa, lúdica,
prazerosa, etc. Pela utilidade- exercitativa, decorativa, educativa, utilitária etc. Não sendo consideradas atividades biológicas comuns a todos os animais. (CANIGLIA, 2005, p.
87)

Sendo assim, frequentemente pode-se tomar a música como um evento do cotidiano do homem desde o período fetal até o fim de sua vida, ela, a música, pode ter

uma função inclusive biológica por se tratar de um elemento físico que interfere no bios.

Questiona-se também, se a música é manifestada somente pelos seres humanos. Se for comum a outros animais, por determinada definição, pode-se dizer que a

música é uma atividade humana? Se não for atividade humana, a música não pode ser ferramenta do terapeuta ocupacional? Mas adiante se retoma a esses

questionamentos, por enquanto observam-se como as ocupações, as atividades e o trabalho podem ser ferramentas da terapia ocupacional.

3.3 Atividades significativas

Em sua prática clínica o terapeuta ocupacional prescreve uma atividade que possa intervir na realidade deste paciente, ou seja, atividade deve ser significativa para

o individuo, procurando reorganizar os seus papeis ocupacionais desempenhados no cotidiano, compostos por lazer e expressão sexual, trabalho e AVD (atividade

da vida daria). Entende-se por atividades significativas aquelas que o paciente sente-se envolvido e com interesse de realizá-la em seu cotidiano.

A terapia ocupacional procura melhorar a qualidade das atividades das pessoas por meio da redução de suas limitações, dificuldades e barreiras; da investigação das suas
habilidades e aptidões; da viabilização de seus projetos e objetos de desejo de realização; da inclusão da criatividade, da expressividade e da ludicidade em suas atividades
rotineiras; da promoção da relação saudável com suas atividades produtivas; da vivência das fases do desenvolvimento da vida (op cit p. 73).

Tratando-se de música como um elemento que pode compor o cotidiano, é necessário que o terapeuta ocupacional seja capaz de restabelecer esta função quando

importante para a vida de um sujeito. Aqui o que importa é analisar os aspectos cognitivos, motores, sensoriais, afetivos que são necessários para que a expressão

musical do indivíduo possa compor seu cotidiano, seja como trabalho, lazer ou elemento participativo de suas atividades da vida diária (AVDs). Logo, um utilizar

a música sem fazer música não é importante para a terapia ocupacional, já que uma atividade nos induz a imaginar um individuo realizando-a. Mas é importante

ainda esclarecer que para nós a música em si mesma não é uma atividade humana, mas sim o fazer - música, pois este necessita de um individuo em atividade,

podendo ser vista, neste caso, como uma ocupação.


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4 Objeto específico da musicoterapia: a música

4.1 Música em musicoterapia

Em musicoterapia a música é o objeto especifico de trabalho, e não apenas um recurso como na terapia ocupacional. Outra diferença é que o profissional

musicoterapeuta deve obrigatoriamente dominar basicamente técnicas de instrumentos musicais, bem como conhecimento de teoria, harmonia, história, acústica

etc. Estes elementos podem ser avaliados de diversas formas na clínica, diferentemente do terapeuta ocupacional, que não necessariamente precisa ter

conhecimentos técnicos de música.

Para Benenzon (1985), o profissional musicoterapeuta deve ter uma formação híbrida com conhecimentos nas áreas de medicina, pedagogia e música. Porém, não

deve ser nem médico, nem professor e nem músico e sim um profissional exclusivamente musicoterapeuta. Vale ressaltar que o autor refere-se a necessidade de

uma formação aberta e plural não se vinculado exclusivamente ao músico erudito.

Um músico formado como tal tem, intrinsecamente, o pré-juízo musical estético de sua evolução e desenvolvimento musical. Este pré-juízo musical é o que o impedirá de aceitar
com inteira liberdade os ritmos ”não-estéticos” de um determinado paciente ou “desafinado” de outro. (op cit, p.61)

Portanto em musicoterapia a música, em seus diversos aspectos (execução, harmonia, acústica etc.) é utilizada a fim de promover e facilitar mudanças que

alcancem as necessidades do paciente e os objetivos do musicoterapeuta.

Musicoterapia é a utilização da música e/ou de seus elementos (som, ritmo, melodia e harmonia) por um musicoterapeuta qualificado com um cliente ou grupo, em um processo
para facilitar e promover a comunicação, relação, aprendizagem, mobilização, expressão, organização e outros objetivos terapêuticos relevantes, no sentido de alcançar
necessidades físicas, emocionais, mentais, sociais e cognitivas. (UBAM, 1996, p. 4)

Mas como se dá o processo musicoterápico? O que faz da música um objeto especifico em musicoterapia utilizada para alcançar o bem estar biopsicossocial do ser

humano? Como ela age sobre o encéfalo? Assim como as ocupações em terapia ocupacional, o objeto específico de trabalho do musicoterapeuta (a música)

precisa ter um sentido e um significado para o paciente? Acredita-se que sim, ele precisa também se sentir envolvido e interessado no processo, pois o sentido da

música é dado pelo próprio paciente.

4.2 Música e a produção de sentidos e significados

Segundo Barcellos (2009), a musicoterapia tem mostrado a necessidade de um estudo mais aprofundado sobre o sentido e significado, e assim como a autora,

vários outros musicoterapeutas vem estudando o assunto comprovando a importância do tema em musicoterapia.

Os signos e a construção e recepção de significados e sentidos, tem resultado em investigações de estudiosos de várias áreas tais como linguistas, lógicos,

filósofos, psicólogos, biólogos, antropólogos, psiquiatras, estetas, musicólogos e recentemente os que se dedicam a comunicação multimídia. Diante de tantas

áreas interessadas no estudo do sentido e significado, pode-se perceber a importância do assunto.

Barcellos cita também, em sua tese de doutorado, o professor de musicologia da Universidade de Montreal no Canadá, Jean-Jaques Natiezz, que em seu livro

Music and discourse, volta para o estudo do signo. Para a autora, Nattiez nos mostra que o signo vem sempre seguido de uma tradução verbal precisa e literal, e

não se define significado em música unicamente como um reflexo do significado linguístico. Porém não fica explicita a diferença entre sentido e significado,

embora Natiezz aponte uma diferença entre significado nos dois domínios: o verbal e o musical. Apesar de todos estes estudos sobre significado na música tenham

clarificado muitas questões importantes, ainda não foram suficientes para dar subsídios e segurança para articular isso à musicoterapia, sendo necessário que

alguns aspectos fossem mais explicitados, uma vez que “o signo é uma coisa que remete a outra, dele mesmo, estando presente o par significante + significado.

Então, trabalhar com signos é trabalhar com relações e com desdobramento, tratando-se de um assunto de extrema complexidade” (BARCELLOS, 2009, p. 163).
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Nesse contexto, faz-se necessária uma análise musical que é realizada a partir da escuta, esta por sua vez, envolve a descrição, a compreensão e a interpretação da

música trazida/criada pelo paciente durante o processo musicoterápico. Para a escuta, o musicoterapeuta se valerá de várias perspectivas que possam discernir qual

o significado que determinada canção, levando-se em consideração o sentido que o paciente atribui à música.

Mesmo sendo constituída de sistemas e grafias, a música, não é de signos, pois o som não é um signo. A grafia musical é composta de signos por que uma nota

escrita representa um som, mas o som não representa nada, pois a música só tem sentido no contexto cultural.

Portanto, também algumas músicas podem ter um significado para as pessoas quando, ligadas a algum fato, pessoas ou circunstâncias das suas vidas, adquirem um sentido único
ou passam a ter uma referência. Mas deve-se pensar que o contrário também acontece: o significado pode se transformar em sentido. Uma privada ou vaso sanitário, se retirado
de um banheiro e colocado numa exposição de arte, pode ir de significado para sentido. Penso que em música isto raramente acontece, ou seja, uma música que tem um
significado para uma determinada pessoa dificilmente deixa de tê-lo (op cit., p. 165).

A partir daí, acredita-se que a música é um sistema semiológico, pois produz sentido. Para a construção desse sentido deve-se levar em consideração o contexto

cultural do paciente, igualmente como na terapia ocupacional. Tal contexto é estudado durante a análise musical em musicoterapia.

Estende-se então que, mesmo a musicoterapia trabalhando com uma atividade especifica, ao invés de um conceito aberto e vazio como o desempenho

ocupacional, a música na musicoterapia também é entendida em seu significado de fazer musical, necessitando de possuir sentidos para aquele que a faz. Logo, é

no jogo do cotidiano de cada indivíduo, que se deve perceber como o universo sonoro de cada um se estabelece. Há aqui novamente fortes aproximações entre

terapia ocupacional e musicoterapia. Ambas valorizam o fazer em sua relação de significação existencial e não um fazer ou um recurso em si. Esta lógica as

afastam de um clínica semelhante às ciências curas que seguem as lógicas causa e efeito, semelhante a lógica medicamentosa.

5 Reflexões Conclusivas

Aqui nesse trabalho se propôs desde o inicio defender uma transdisciplinaridade entre a terapia ocupacional e a musicoterapia, para isso, a genealogia das duas

profissões foram analisadas reflexivamente abordando seus aspectos históricos, suas especificidades e seu modo de operar a clínica.

Historicamente constata-se que a primeira experiência em musicoterapia no Brasil foi com a educadora musical Ruth Loureiro Parames, no Centro Psiquiátrico

Nacional para atender seus pacientes. A própria Drª Nise da Silveira foi responsável de solicitar a Liddy Mignone alguém que desenvolvesse atividades musicais

com os pacientes no Setor de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR). A Drª. Nise utilizava as atividades musicais para os pacientes expressarem suas

imagens do inconsciente e posteriormente era trabalhada a ressocialização, fatos que por si só colocam as duas profissões inter-relacionadas.

As duas profissões em suas dimensões de arte e ciência e em suas práticas clinicas trabalham numa tríade terapeuta-atividade-paciente em terapia ocupacional, e

terapeuta-música-paciente em musicoterapia, que somente é estabelecida através do vínculo terapêutico e do sentido dado à atividade musical, pois as

necessidades do paciente e os objetivos do terapeuta dependem diretamente do resultado desta relação homem a homem e homem- fazer no setting terapêutico.

Nossas reflexões conclusivas sobre o trabalho apontam para o diferencial que as aproxima, as chamadas análise de atividades em terapia ocupacional e a análise

musical (escuta musicoterápica) em musicoterapia. Tais análises tem seu foco sobre o sentido e o significado tanto nas atividades significativas prescritas pelo

terapeuta ocupacional e que fazem parte do histórico ocupacional do cliente, como nas músicas propostas pelo musicoterapeuta, que fazem parte da historia

sonoro/musical do paciente.

A música e as ocupações utilizadas clinicamente estão envoltas a um simbolismo capaz de produzir sentidos, estes são analisados constantemente através de um

estudo detalhado, orientando os profissionais para que alcancem os objetivos do tratamento. Tais sentidos, são produzidos pelo que, ao final desse estudo,

acredita-se ser o principal elo que possivelmente justifique as afinidades entre as duas artes ciências estudadas na referida pesquisa: a cultura.
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Portanto, a influência da cultura na produção de sentidos nas práticas clínicas do musicoterapeuta e do terapeuta ocupacional é inevitável, se tomar por base as

relações históricas do homem com suas ocupações e com a música, pois tais relações são instituídas culturalmente. Mas esta aproximação não significa dizer que

o trabalho de um profissional deve e possa ser executado pelo outro, cada qual tem suas especificidades, mas ambos lutam por ressignificar os sentidos

existenciais cotidianos, seja pelas áreas do desempenho ocupacional, seja pelo fazer musical.

Referências Bibliográficas

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