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artigo de revisão
COMO ESPAÇO DE AFILIAÇÃO
ESTUDANTIL E O BIBLIOTECÁRIO COMO
EDUCADOR E AGENTE INCLUSIVO
O
ensino superior público brasileiro sempre Partimos do princípio de que a
foi marcado por um certo elitismo e universidade é local privilegiado para
muitas vezes servindo como instrumento construção de redes de sociabilidades e
à reprodução dos padrões culturais dominantes. de interações entre práticas culturais e,
No entanto, internamente, a universidade consequentemente, construção de redes de
pública sempre conviveu com o embate entre produção de conhecimento que contribuam
grupos que defendem a permanência de para a formação holística de seus estudantes.
sua “tradicional vocação para a excelência” Nesse sentido, a formação acadêmica não é
e aqueles que defendem sua abertura e sua dissociada da formação humanista-cultural e,
democratização, particularmente no que diz a partir de uma concepção dialógica entre os
respeito à diversificação do perfil do público diversos grupos que formam o corpo discente,
discente que recebe. docente e administrativo das universidades,
As políticas de Estado ligadas à poder-se-á encontrar mecanismos para que tais
Democratização do acesso e à ampliação do novas práticas sirvam de ponte na formação
sistema federal de Ensino Superior trouxeram interdisciplinar e multicultural dos estudantes.
novas realidades. A adesão integral ao ENEM/ Apesar da sociedade, de um modo
SISU, associada às políticas de Ação Afirmativa, geral, ver o sistema escolar como um fator
com inclusão crescente de alunos egressos de para mobilidade social, Bourdieu (2002, p. 20)
escolas públicas e/ou com renda per capita subverte esse conceito ao considerá-la como um
de um salário mínimo nacional, trouxeram dos legitimadores das desigualdades sociais
um novo perfil de aluno às universidades ao atribuir aos dons e talentos predicativos
federais que demandará da instituição novas que são próprios e cultivados pelo convívio
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O papel da biblioteca universitária como espaço de afiliação estudantil e o bibliotecário como educador e agente inclusivo
conta do processo seletivo. Porém, possibilitar rito de passagem ao final do qual supostamente
o acesso efetivo desses alunos requer uma nova o jovem terá a oportunidade de ingressar na
postura acadêmica / institucional, a fim de vida adulta ativamente produtiva e reconhecida
oferecer-lhes subsídios para superarem suas por sua função. Atualmente, um dos principais
dificuldades acadêmicas e de adaptação ao motivos pelos quais a maioria dos jovens é
ambiente universitário. As autoras ressaltam impulsionada a empreender todo esforço para
que os estudantes, com origem em segmentos ingressar e se formar no Ensino Superior é a
historicamente segregados, requerem da lógica de mercado, que geralmente eles tentam
instituição universitária uma atenção especial seguir. Isso muitas vezes pode gerar frustrações,
para maior adaptação às tarefas acadêmicas. pois nem sempre sua escolha, tendenciosamente
a mais provável por diversos fatores, se baseia
Isso implica enfrentar, com novas em seus desejos e anseios.
estratégias, o abandono e o fracasso
Muitos ritos de passagem se constituem
na educação superior. A perda de um
contingente de estudantes que não se numa forma de superação de limites ou porta
mantém na universidade é um resultado de entrada para um novo grupo ou status
que custa caro, tanto no plano humano, social no qual o sujeito deseja ver-se inserido
como no plano socioeconômico. e reconhecido. Para maioria dos jovens
No plano humano, isso produz
universitários, e principalmente após as políticas
desmotivação, o medo do futuro, um
déficit de formação e, frequentemente, de ampliação de acesso através das cotas, a
menores chances de emprego num aprovação, a conquista de uma vaga (apesar de
mundo extremamente competitivo, nem sempre ser a mais desejada) e o ingresso
com consequências sobre a qualidade na instituição universitária, atende a todos os
do nosso desenvolvimento como nação.
pressupostos e propósitos de um ritual.
Sobre o plano socioeconômico, os
investimentos públicos tornam-se “não O desejo e a importância de pertença são
produtivos”, ou seja, não repercutem, explicitados no processo pelo qual o estudante
como deveriam, na redução das passa, podendo culminar na afiliação, quando
desigualdades e na inclusão das novas ele se apropria dos conceitos inerentes ao
gerações no sistema produtivo e de
campo universitário e incorpora o habitus
serviços. (SAMPAIO; SANTOS, 2014,
p.2) academicus. De uma forma geral, isso ocorre
progressivamente entre o primeiro e segundo
Assim, elas destacam que a entrada semestre do seu ingresso na universidade.
para a vida acadêmica acarreta uma série Quando isso não acontece, ele tende a abandonar
de mudanças profundas na vida dos alunos, os estudos logo no início, ou troca de curso ou
impactando no seu desenvolvimento psicológico de instituição. Assim, o processo de afiliação
e psicossocial, principalmente nos mais jovens. estudantil requer do estudante sua adaptação às
Esse momento pode ser o primeiro em que eles exigências universitárias, em termos de conteúdo
têm oportunidade de exercer sua autonomia intelectual, de métodos de exposição do saber e
através da escolha da futura profissão, em qual de adequação aos habitus estudantis, incluindo a
universidade irá ingressar, se curso integral percepção e domínio do novo espaço geográfico;
ou em tempo parcial, dentre outras possíveis identificação das atribuições dos mesmos e da
escolhas. Porém, esse não parece ser o único ato, maximização do uso de seu tempo; compreensão
nem o mais importante nessa etapa transitória dos códigos e regras do jogo no campo social e
para a vida adulta; muitas vezes, o ingresso na intelectual universitário.
universidade significa ter que deixar de residir Coulon (2008) estudou o impacto do
com seus responsáveis, e até mesmo em outra ingresso à instituição universitária na vida
região, impondo assim que eles assumam uma cotidiana do aluno e de seu processo de afiliação,
responsabilidade sobre o cuidado de si mesmos condição para sua transformação em estudante.
e seus atos, quando antes estavam acostumados Para desenvolver seus trabalhos sobre a temática,
aos cuidados e ao “tutelamento” de um adulto. o sociólogo utilizou reflexões baseadas na
Podemos considerar o ingresso à etnometodologia sobre os processos intelectuais,
universidade, cujo privilégio não contempla a institucionais e culturais que cercam a adaptação
todos, nem no mesmo período de vida, como um dos estudantes à educação superior. Esse
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transcurso, estudado por Coulon, foi resumido decorreu após sua conclusão do ensino básico,
por Nery (2011, p. 36) da seguinte forma: têm pouca familiaridade com o espaço biblioteca
e com os hábitos de leitura. Com o uso cada vez
A passagem para a universidade também mais intensivo das tecnologias da informação
solicita do jovem que organize três
e comunicação (TIC) e, tento a população mais
aspectos fundamentais da sua vida: o
tempo, pois é preciso compreender que jovem como foco, podemos trazer a problemática
as aulas não têm mais a mesma duração, da literácia ou competência em informação e os
que o volume e o tipo de trabalho a ser usos não críticos das tecnologias da informação
realizado demandarão um maior esforço e comunicação para o campo universitário. A
intelectual e uma melhor organização;
geração atual utiliza intensamente as TIC para
o espaço, pois a estrutura de uma
universidade é consideravelmente suprir as suas necessidades de informação e
maior do que a de uma escola de ensino de relacionamento com os outros. São jovens
médio e, por isso, os estudantes devem nascidos depois de 1993, que cresceram num
aprender a localizar espaços como mundo dominado pela internet, e conhecidos
departamentos, secretarias e bibliotecas,
como a ‘geração Google’. Manipulam com
que freqüentarão cotidianamente; e
as regras e o saber, pois eles devem destreza as novas tecnologias, porém, apesar
desenvolver uma capacidade de dessa familiaridade, não desenvolveram a
interpretação das normas institucionais, literácia necessária para ir além do copy/paste.
porque a não compreensão de algumas Esses usuários demonstram não possuírem a
delas gera uma ignorância em relação
competência em informação necessária e exigida
a uma quantidade desconhecida de
situações problemáticas que eles terão pelo meio acadêmico para explorar corretamente
que solucionar. (NERY, 2011, p. 36) (de forma ética, eficiente e eficaz) os recursos
informacionais, em especial os de acesso à
Essas novas experiências são fundamentais informação promovido pelas TIC (MENDONÇA,
e impactantes na formação do estudante 2010, p. 28-35).
universitário como sujeito de sua própria Segundo Mendonça (2010, p. 32), a falsa
história acadêmica. Assim, quanto maior for «literácia informacional» dos jovens de hoje,
sua prontidão para responder positivamente como exímios utilizadores dos computadores
a essas mudanças e quanto maior for seu grau e da internet, “está a reduzir os estudantes a
de resiliência para superar problemas, mais níveis mínimos de sobrevivência em termos
capaz ele será de aproveitar as oportunidades de informação”. O agravante é que a maioria
proporcionadas pela e na vida universitária como considera sua capacidade de buscar, avaliar e
pessoa e como graduando. Mas este estudante selecionar informações como suficientes para
não está só: encontrar, na vida universitária, responder às necessidades pessoais e escolares,
profissionais que facilitem seu processo de porque “sentem-se auto-suficientes [...] dominam
afiliação poderá ser um grande diferencial. o acesso e as condições de acesso tecnológico.”
Aqui surge nossa perspectiva do novo papel A universidade deve ser um espaço
que também deverá ser desempenhado pelo de ensino, aprendizagem, produção e
profissional bibliotecário: o bibliotecário compartilhamento de conhecimento que vão
educador. além do cumprimento de tarefas acadêmicas
previamente estipuladas para atender
determinados quesitos de avaliação. E, ao realizar
suas tarefas cotidianas, espera-se do estudante
uma visão crítica na busca das informações no
que tange sua veracidade, pertinência, validade
da fonte de informação e questões éticas. Assim,
É papel de extrema importância a estudar e pesquisar não se resume em encontrar
conscientização das bibliotecas universitárias um dado ou informação, compilá-lo e replicá-
sobre a necessidade de se conhecer seus diversos lo, espera-se uma postura crítica e investigativa
usuários, reais e potenciais, pois muitas vezes diante do fazer acadêmico e do ser pesquisador.
os estudantes oriundos do ensino médio, ou Veríssimo (2012, p. 23) critica a postura
que deles estão distanciados pelo tempo que de usuários, do ensino básico e superior, que
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[...] a biblioteca do futuro será um Deve haver uma ligação intelectual mais
serviço de inteligência da comunidade. elevada. Sim, do ponto de vista nacional,
Exigirá pessoal altamente especializado, e afinal de contas é o tesouro nacional
que deverá, assim como os professores que a mantém, este serviço é, aos ex-
de uma faculdade, estar familiarizado alunos essencial, se não quiser jogar fora
com a literatura de um campo o dinheiro gasto no ensino de graduação
estritamente delimitado e ter além disso por falta de acompanhamento dos
aquela aptidão que frenquentemente alunos formados. (RANGANATHAN,
falta por completo ao professor, qual 2009, p. 91)
seja a capacidade de rapidamente
captar a bagagem intelectual do
consulente e entender intuitivamente Sendo assim, evidenciamos a biblioteca
a natureza de sua necessidade pessoal. universitária como um espaço e instrumento
(RANGANATHAN, 2009, p. 47). de inclusão intelectual, cultural e social
cuja efetividade maior será quanto mais
Para complementar a importância necessária se der sua intervenção e participação
dos aspectos pedagógicos na atuação dos no processo acadêmico e de afiliação do
bibliotecários e dos impactos que a biblioteca estudante contribuindo no seu processo de
pode causar nos métodos de aprendizagem, autonomia universitária e cidadã. A biblioteca
Ranganathan ressalta que: universitária é um instrumento que pode
estimular a necessidade no sujeito pela busca
O melhor que você pode fazer pelos por informação, produção e estruturação do
seus imaturos graduandos é despertar
neles o entusiasmo pelo pensar e pelo conhecimento, devendo esse hábito ir além dos
hábito de leitura. Lembre-se, a educação bancos universitários, perdurando por toda vida,
não termina na sala de aula. Tenho contribuindo para construção de um mundo
que começar onde você terminou. É melhor.
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