Você está na página 1de 11

A vantagem de contratos com linguagem clara

por Shawn Burton – Harvard Business Review


https://hbrbr.uol.com.br/contratos-com-linguagem-clara/

Como você chamaria um contrato denso, excessivamente longo, carregado de


jargão legal e compreensível apenas por advogados? Status quo. Geralmente
os contratos utilizados nos negócios são longos, mal estruturados e cheios de
linguagem desnecessária e incompreensível.

Há alguma razão prática para isso? Para que um


acordo seja legalmente válido, são realmente
necessárias páginas e páginas de definições;
palavras como “adjudicação”, “sem embargo”,
“retrocitado” e “força maior”; e expressões como
“não obstante qualquer coisa em contrário aqui
contida”, “sujeito ao acima exposto” e “incluindo,
mas de modo algum limitado a”? Há algum valor
contra intuitivo na inútil linguagem padronizada?
Para ser digno de assinatura, os contratos
precisam realmente de sequências com 15
sinônimos; frases em letras maiúsculas, em itálico
e em negrito que abrangem várias páginas; frases
difíceis que contêm inúmeros pontos e vírgulas; e
gramática desatualizada? A resposta é um
retumbante não.

Contratos não deveriam exigir inúmeras horas de


negociação. Líderes empresariais não
precisariam chamar advogado para interpretar um acordo que eles mesmos
devem gerir. Viveríamos num mundo onde os contratos seriam escritos em
linguagem acessível — onde potenciais parceiros de negócio, durante almoços
breves e sem seus advogados, leriam, entenderiam e se sentiriam confortáveis

BBI of Chicago
www.bbiofchicago.com
assinando contratos. Um mundo onde as disputas causadas pela ambiguidade
desapareceriam.

Pode parecer improvável. No entanto, acredito que seja realmente possível —


como demonstrou uma iniciativa de mais de três anos para promover contratos
com linguagem clara na unidade de serviços digitais da GE Aviation. Desde
2014, quando começou a iniciativa, essa unidade assinou mais de cem contratos
assim. Esses acordos levaram 60% menos tempo para ser negociados do que
as versões anteriores cheias de juridiquês. Alguns clientes chegaram a assinar
contratos em linguagem simples sem uma única alteração. O feedback do cliente
foi universalmente positivo, e nenhum cliente questionou a redação de contratos
em linguagem simples.

Para ficar claro, não estou falando de acordos “simplificados”, com menos
palavras, títulos melhores e fontes mais limpas. Estou falando de contratos que
um aluno do ensino médio poderia entender sem nenhum contexto ou
explicação. Como disse Robert Eagleson, especialista no assunto, a linguagem
clara “permite que a mensagem seja absorvida com mais facilidade”.

Contratos em linguagem clara não é novidade. É um movimento que começou


há muitos anos e, talvez surpreendentemente, avançou inicialmente no governo
dos Estados Unidos. Em 1972, o presidente Nixon ordenou que “termos leigos”
fossem usados no Federal Register. Seis anos depois, o presidente Carter emitiu
uma ordem executiva estipulando que os regulamentos governamentais
deveriam ser “tão simples e claros quanto possível”. Em 1998, o governo Clinton
deu um passo além, obrigando expressamente as agências federais a usar
inglês simples. Nesse mesmo ano, a Comissão de Valores Mobiliários dos
Estados Unidos publicou o Plain English Handbook (Manual do Inglês Simples)
para os responsáveis pela redação de documentos de divulgação de
informações de segurança. Ainda é usado hoje. Em 2010, o Congresso dos EUA
passou e o presidente Obama assinou o Plain Writing Act (Ato pela Escrita
Clara), com o propósito declarado de “promover comunicação clara do governo
que o público possa entender e usar”. Como observou o administrador da

BBI of Chicago
www.bbiofchicago.com
Agência de Informação e Assuntos Regulatórios de Obama: “Linguagem clara
pode fazer uma grande diferença”, pois gera economia de dinheiro e torna “muito
mais fácil para as pessoas entender o que lhes é pedido”. A agência, que era
responsável pela administração da lei, emitiu uma orientação que ainda está em
vigor, sobre clareza na linguagem.

No setor privado, a linguagem clara economizou tempo e dinheiro de muitas


empresas. Em seu livro Writing for dollars, writing to please: the case for plain
language in business, government, and law, Joseph Kimble cita algumas delas.
A Cleveland Clinic, por exemplo, após simplificar suas contas em 2008, obteve
aumento significativo nos pagamentos dos pacientes e conseguiu recuperar US$
1 milhão por mês. E quando a Sabre Travelar introduziu diretrizes escritas para
ajudar os clientes a instalar seu sistema computadorizado de informações de
voo, as chamadas anuais para o apoio ao cliente da Saber caíram 70%, gerando
economia de mais de US$ 2,4 milhões. Mas, apesar desses sucessos, o mundo
corporativo tem adotado lentamente a linguagem simples.

O desafio dos negócios

Em 2013, fui nomeado diretor jurídico da unidade de serviços digitais da GE


Aviation. Eu era responsável pela gestão das atividades legais da unidade,
incluindo contratação, com o apoio do departamento jurídico da Aviation. Pouco
antes de assumir esse cargo, a GE Aviation consolidara três empresas de
serviços digitais distintas que havia adquirido, e todas realizavam análise de
dados para identificar maneiras de otimizar as operações dos clientes. Os líderes
designados para gerir o negócio recém-fundado tentavam fazê-lo crescer e
formaram uma equipe para isso.

A velocidade de lançamento era fundamental. A estratégia de negócios da


equipe era sólida, mas, à medida que os membros começaram a executá-la,
encontraram um obstáculo: a complexidade dos contratos fazia com que as
negociações se arrastassem durante meses, frustrando clientes potenciais. Em
vez de buscar novas oportunidades, capturar novos negócios e oferecer

BBI of Chicago
www.bbiofchicago.com
soluções digitais de classe mundial, a equipe de vendas passava a maior parte
do tempo discutindo uma linguagem contratual arcaica.

Embora vendessem serviços muito similares, as três empresas tinham seus


próprios contratos, um legado de seus dias pré-GE. Havia sete contratos no total.
O número de páginas era 25 em média, o mais longo tinha 54. Eles incluíam
cláusulas extensas (que explicam os motivos — às vezes com detalhes
excruciantes e desnecessários — pelos quais as partes assinam o contrato) e
definições longuíssimas. Um contrato continha 33 definições que abrangiam
duas páginas. Cada contrato tinha estrutura única e usava linguagem distinta.
Esses documentos tinham apenas uma coisa em comum: nenhum deles usava
linguagem simples — estavam impregnados de jargão legal e complexidade.

Minha cabeça girava enquanto eu lia cada acordo. Eu me sentia como um


desconcertado Dilbert, personagem dos quadrinhos: estava diante de um
contrato ou de um livro de física quântica?

BBI of Chicago
www.bbiofchicago.com
A solução

A equipe jurídica que apoiava o novo empreendimento percebeu que precisava


agir. Ela propôs converter os sete formatos de contrato em um único contrato em
linguagem simples.

Os membros da equipe descreveram sua visão para os líderes do negócio de


serviços digitais enfaticamente: se um aluno do ensino médio não consegue

BBI of Chicago
www.bbiofchicago.com
entender todo o contrato, o texto não é bom o suficiente. Mas o contrato também
deve proteger os interesses da GE, disseram eles. A mudança sem as
salvaguardas adequadas não era aceitável, mesmo se reduzisse o tempo de
negociação.

Os líderes da unidade de negócios abraçaram a ideia sem hesitar. Na verdade,


eles a adotaram com zelo, dedicando recursos ao projeto e deixando claro que
consideravam vital a criação de um contrato fácil de entender.

Para começar, o pessoal jurídico organizou um dia inteiro fora da empresa com
uma equipe formada especificamente para elaborar textos simples para os
contratos: engenheiros e pessoal de vendas e suporte de produtos, bem como o
próprio departamento jurídico. O objetivo era duplo: 1) uma equipe formada
especificamente para elaborar textos simples para os contratos: serviços
prestados e 2) identificar riscos operacionais. A equipe jurídica sabia que muitas
vezes se supõe que determinadas passagens devem ser incluídas nos contratos,
mas ninguém questiona se são realmente necessárias para os serviços
cobertos. Então, para evitar texto desnecessário no novo contrato, a equipe
recém-formada decidiu, deliberadamente, deixar a elaboração para outro dia.

O encontro offsite foi um sucesso: a chamada “equipe da linguagem clara” saiu


com um insight perspicaz das contribuições e dos riscos operacionais
associados. Em seguida, a equipe jurídica começou a elaborar o contrato,
começando do zero. Sem modelos. Sem cláusulas de “amostra”. Sem uso de
contratos existentes nem referência a eles. Simplesmente começamos a digitar
em uma folha de papel em branco, focando apenas nos serviços cobertos e nos
riscos que identificávamos. Ao longo do processo, aplicamos o nosso teste
decisivo: um aluno de ensino médio conseguiria entender?

Desaprender a escrever como um advogado era mais difícil do que


imaginávamos. Demorou mais de um mês para produzir o primeiro rascunho. A
versão inicial tinha apenas cinco páginas — significativamente mais curta do que
os contratos existentes. Mais importante era o fato de ser um documento claro e

BBI of Chicago
www.bbiofchicago.com
compreensível. Não continha um único “sem embargo”, “considerando que”, ou
“retrocitado”. Não havia considerações introdutórias e jargões legais. Os
conceitos legais que, historicamente, eram apresentados de forma complicada
nos contratos foram explicados em termos leigos. As frases eram curtas e
escritas na voz ativa. Eliminamos todas as definições. O rascunho inicial era,
notadamente, diferente do padrão. Depois de lê-lo, uma advogada da GE
Aviation comentou: “Está tão fácil de entender e escrito com tal clareza que
chega a ser estranho”. Ela não foi a única a reagir assim. Todos os que leram —
advogados ou não — ficaram surpresos com a simplicidade.

Depois, a equipe jurídica pediu ao escritório de advocacia externo Weil, Gotshal


& Manges que avaliasse o contrato. A empresa reuniu uma equipe de advogados
especializados em diversas áreas, incluindo contratação comercial, propriedade
intelectual, litígio e mediação de conflitos. O exame demorou cerca de três
semanas, e a Weil foi uma excelente parceira. Com o objetivo de garantir que o
contrato final protegesse adequadamente os interesses da GE, a equipe da Weil
desafiou sistematicamente nossa equipe jurídica interna.

A avaliação resultou em aperfeiçoamentos, mas a nova versão manteve-se fiel


ao nosso compromisso com a linguagem clara. Em seguida, a equipe jurídica de
serviços digitais revisou o contrato com vários outros advogados da GE que eram
experientes em contratação comercial. Isso resultou em mais um rascunho.
Mesmo assim, o compromisso com a linguagem clara não foi comprometido.

BBI of Chicago
www.bbiofchicago.com
O resultado

Posteriormente, o contrato foi apresentado aos líderes da unidade de serviços


digitais. Foi bem recebido, para dizer o mínimo. O chefe de vendas da época
descreveu-o como “uma verdadeira mudança de paradigma nos contratos e na
linguagem”. Foi mesmo.

Por exemplo, a cláusula de conformidade legal agora diz: “Durante o prazo do


contrato, cumpriremos todas as nossas obrigações legais”. Uma frase composta
de 11 palavras de fácil compreensão. A versão anterior dessa cláusula consistia

BBI of Chicago
www.bbiofchicago.com
em diferentes subseções, nove frases, 417 palavras e (acredite ou não) uma
referência ao presidente dos Estados Unidos.

A cláusula de limitação de responsabilidade encolheu de 140 palavras ou mais


em maiúsculas para apenas 66 palavras de texto comum. Agora, a cláusula de
indenização — antes com mais de 150 palavras — consiste em uma frase de 41
palavras. A palavra “indenização” — ela mesma um termo juridiquês — nem
sequer é empregada (ver quadros “Antes” e “Depois”).

Agora enfrentamos o teste mais importante. O novo contrato teria algum efeito
sobre a duração das negociações? Os clientes — alguns dos quais usavam
contratos complexos — aceitariam algo tão radicalmente diferente? Será que,
em vez de diminuir, a aparência do novo contrato aumentaria o tempo de
negociação?

Os resultados falam por si. A linguagem clara poupou quantidades significativas


de tempo e dinheiro da unidade de serviços digitais da GE Aviation. E os clientes
adoraram. Um cliente nos disse: “O contrato funcionou muito bem. Prefiro
abordagens simples e contratos escritos de forma que eu possa entender”. Outro
disse: “O acordo era perfeitamente razoável, como se vê pelo pequeno número
de correções necessárias para chegarmos à fase de execução”.

Nick Brodribb, assessor jurídico da Qantas Airways, comentou: “Há muito tempo
os advogados australianos lidam com contratos legais dos EUA abarrotados de
redundâncias e linguagem pomposa. A iniciativa pelo inglês simples da GE e de
outras empresas como a Airbnb nos dá grandes esperanças para o futuro. O
inglês simples deve economizar tempo na linha de frente da transação, o que
permite que a empresa se envolva com rapidez no projeto, gerencie-o com
facilidade e, potencialmente, resolva conflitos mais cedo”.

Os contratos em linguagem clara começam a se espalhar na GE. A GE


Healthcare lançou uma iniciativa para linguagem clara. A unidade de produção

BBI of Chicago
www.bbiofchicago.com
de aditivos da GE implementou seu primeiro contrato em linguagem clara em
2017, com resposta inicial do cliente positiva, e os conselheiros gerais e líderes
empresariais da unidade estão empenhados em tornar a linguagem clara a
abordagem padrão.

As lições

Espero que a nossa história o convença dos benefícios de mudar para a


contratação em linguagem clara. Para os que decidirem aderir, seguem algumas
lições importantes que aprendemos:

Seja paciente. A contratação complexa está conosco há centenas de anos. Não


apresse o processo, pois não é fácil mudar hábitos antigos.

Fique esperto. Aprenda tudo o que puder sobre os produtos ou serviços que
serão cobertos pelo contrato. Se as pessoas que vendem o produto ou serviço
estão mais bem informadas do que você, aprenda com elas — e faça isso antes
de começar o rascunho. Depois, deixe o produto ou serviço e os riscos
associados determinar a substância do documento. O fato de determinada
cláusula ser usada sempre nos contratos não significa que ela deva constar no
seu.

Meça sua velocidade. Contratos de uma página ou com número reduzido de


palavras são verdadeiramente atraentes. Mas isso não significa que número
menor de páginas e palavras os torne necessariamente mais compreensíveis. O

BBI of Chicago
www.bbiofchicago.com
número de páginas e palavras tem de diminuir, mas a prioridade deve ser a
velocidade. Se o tempo de negociação permanece o mesmo ou aumenta,
ninguém vai ligar para o tamanho do acordo. Métricas de tempo de negociação
obrigam os envolvidos a se concentrar no que realmente importa: a facilidade de
compreensão. O teste do “aluno do ensino médio” se revelou inestimável para
nós na busca desse objetivo. A ideia é tornar a experiência de contratação fácil
para o seu cliente, porque, afinal, é o cliente que determina o sucesso.

Seja persistente. É difícil contestar o conceito de contratos em linguagem clara


e seus benefícios. Em qualquer negócio é desejável adotar acordos legais fáceis
de entender; gastar menos tempo negociando e mais tempo agradando o cliente;
menos tempo administrando contratos e mais tempo inovando. Mas mudar, em
qualquer empresa, é difícil, e mudanças radicais como essa são quase
impossíveis. Criar um modelo sólido de contratos em linguagem clara consome
tempo, imobiliza recursos e é um peso intelectual para a empresa, considerando
os hábitos que se formaram ao longo dos anos. Sem uma boa dose de coragem
e perseverança sua iniciativa de linguagem clara fracassará.

A contratação em linguagem clara exige coragem e compromisso. É preciso


colocar-se no lugar do cliente. É preciso paciência. Mas vale a pena o esforço.

Shawn Burton é diretor jurídico da unidade GE Aviation e das unidades General Aviation
and Integrated Systems. Foi diretor jurídico das unidades GE Aviation Digital e Avionics.

BBI of Chicago
www.bbiofchicago.com

Você também pode gostar