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Contratos empresariais e arbitragem: sugestões práticas

para a redação de instrumentos contratuais

CONTRATOS EMPRESARIAIS E ARBITRAGEM: SUGESTÕES


PRÁTICAS PARA A REDAÇÃO DE INSTRUMENTOS CONTRATUAIS

Commercial contracts and arbitration: practical suggestions for drafting contractual


instruments
Revista de Arbitragem e Mediação | vol. 61/2019 | p. 37 - 56 | Abr - Jun / 2019
DTR\2019\32040
___________________________________________________________________________
Paula A. Forgioni
Professora Titular de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo. paforgioni@forgioni.com.br

Área do Direito: Comercial/Empresarial; Arbitragem

Resumo: O objetivo do presente artigo é explicitar o papel do advogado na formatação


dos contratos empresariais e na solução de eventuais arbitragens e litígios que podem
deles derivar, chamando a atenção do operador para temas relevantes sobre o direito
comercial. A visão pragmática da autora traz à baila discussões sobre: (i) shadow of the
law; (ii) otimismo do agente econômico; (iii) incompletude contratual; (iv) princípios
processuais na arbitragem; (v) constituição de prova na arbitragem; e (vi) interpretação
dos contratos empresariais. O artigo ainda aborda exemplos concretos, desmistificando
crenças como a presunção de igualdade material entre as empresas contratantes e o
intervencionismo judicial/arbitral na vontade das partes. Considerados a jurisprudência
brasileira e recentes estudos de economia comportamental, a autora, por fim, rascunha
sugestões e advertências aos advogados envolvidos na redação dos contratos
empresariais, com a finalidade de aprimorar a qualidade da prática contratual.

Palavras-chave: Contratos empresariais – Economia comportamental – Redação dos


contratos empresariais – Shadow of the Law – Otimismo do agente econômico –
Incompletude contratual – Princípios processuais em arbitragem – Provas em arbitragem –
Interpretação dos contratos empresariais – Intervencionismo judicial e arbitral na vontade
das partes

Abstract: This paper aims to clarify the role played by lawyers in drafting business
contracts, as well as in settling commercial arbitration or litigation cases, while drawing
attention to relevant topics of corporate law. The author’s pragmatic approach raises
discussions about (i) the shadow of the law; (ii) economic agent’s optimism; (iii)
contractual incompleteness; (iv) procedural principles in arbitration; (v) “evidence” in
arbitration; and (vi) the interpretation of business contracts. This paper also addresses
concrete examples, demystifying legends such as the presumption of material equality
between the parties that enter into commercial agreements and the judicial/arbitral
interventionism in contracts. Based on Brazilian case law and on recent studies on
behavioral economics, the author, in conclusion, sketches suggestions and warnings to
lawyers involved in business deals, with the goal of improving the quality of contractual
practice.

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Contratos empresariais e arbitragem: sugestões práticas
para a redação de instrumentos contratuais

Keywords: Business contracts – Behavioral economics – Drafting of business contracts –


Shadow of the Law – Economic agents’ optimism – Contractual incompleteness –
Procedural principles in arbitration – Evidence in arbitration – Interpretation of business
contracts – Judicial and arbitral interventionism in business contracts

Sumário:
I.Esclarecimento - II.Advogados, tratativas e litígios - III.Negociação, redação e a vida do
contrato - IV.O desandar da carruagem e a arbitragem - V.Algumas sugestões concretas

I.Esclarecimento

Este texto pretende dialogar com o profissional que está na linha de frente da advocacia
empresarial. Para bibliografia jurídica/econômica especializada e algum aprofundamento,
remetemos o leitor ao livro Contratos empresariais. Teoria geral e aplicação, de nossa
autoria, no qual se expõe o embasamento teórico de várias das questões ora abordadas.
Aqui, o foco recai naquilo que ordinariamente ocorre e não nas exceções, embora, no dia a
dia do mercado, sejamos sempre surpreendidos por uma quantidade quase inacreditável
de imprevistos e de efeitos especiais.

II.Advogados, tratativas e litígios

Nos contratos empresariais, advogados costumam entrar em cena em duas oportunidades.


A primeira quando da redação do instrumento e a segunda no surgimento de eventual
litígio.

Normalmente, os profissionais que assessoram as empresas no litígio não são os mesmos


que atuaram na negociação e na elaboração do contrato. Faculdades, cursos de
pós-graduação, grandes escritórios de advocacia e departamentos jurídicos internos
separam, de um lado, advogados do “consultivo” e, de outro, advogados do
“contencioso/arbitragem”. Dessa forma, a tendência é que os possíveis percalços e
desfechos da fase litigiosa não influenciem a negociação/redação do contrato tanto quanto
deveriam, prejudicando uma retroalimentação capaz de diminuir os riscos para os
contratantes.

Todos deveríamos estar mais atentos a alguns fatos e tendências, bastante estudados
pelos economistas, que marcam a dinâmica da relação entre empresas, não obstante
olimpicamente ignorados pelos cursos tradicionais de direito empresarial. Vejamos alguns
deles.

III.Negociação, redação e a vida do contrato

a.No início, tudo são flores

Como ocorre com jovens casais, empresas tendem a acreditar que o futuro lhes sorri. Se
noivos não casam visando ao divórcio, empresas não contratam para ter desavenças no
futuro. Acredita-se que o negócio dará certo e que a associação será um sucesso. Não fosse
esse usual otimismo do agente econômico, quase não haveria negócios.

Por óbvio, a empresa não é um moço encantado pelo futuro, e sim um ente que atua no

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mercado, do qual o Direito cobra comportamento responsável, racional, leal, de acordo


com o padrão de um “comerciante, acostumado ao gyro mercantil” [Cairu]. Há
empreendedores mais ou menos arrojados e aqueles sem freios, que não valoram
adequadamente os riscos, são excluídos do jogo.

Esses traços, aparentemente contraditórios, convivem e qualquer advogado experiente


confirmará a existência de certa tendência ao otimismo, mesmo considerando serem as
empresas agentes econômicos racionais.

Advogados, ao contrário, são treinados para antecipar problemas e, com isso, proteger o
cliente o máximo possível. Empresários reclamam que seus assessores jurídicos não
“entendem de negócios” e “ficam criando caso por nada”. Transportar um possível conflito
futuro para o presente, como fazem os advogados, gera desgaste na negociação,
consumindo tempo e recursos.

Por isso tudo, na fase de negociação e de vinculação, as partes costumam mostrar-se


refratárias às sugestões dos advogados, especialmente quando adiantam contratempos
que nem se sabe se irão surgir.

Uma rule of thumb já pode ser extraída: todo negócio envolve incerteza jurídica uma vez
que inexiste ajuste totalmente seguro. Os riscos, por sua vez, devem ser esclarecidos ao
contratante pelo advogado. Se o cliente seguir adiante, é seu direito. Razão assiste a uma
renomada advogada de São Paulo, que cunhou a máxima: “o cliente tem o santo direito de
fazer besteiras!”. Ao advogado compete mostrar os possíveis desdobramentos [jurídicos,
com consequências econômicas] das opções empresariais, mesmo que não tão
auspiciosos.

A virtude do profissional tende a estar no meio termo. Nem aqueles advogados que tudo
aplaudem com medo de perder o cliente e, sem qualquer filtro, passam o que lhe pedem
para o papel, nem aqueles que, de tanto pessimismo, inviabilizam qualquer negócio.

b.Atenção à “sombra da lei”

A plêiade de desfechos jurídicos envolvida no contrato deve ser considerada no momento


da elaboração do negócio. Essa tarefa não é nada fácil e envolve duas estradas,
complementares entre si: experiência e estudo, especialmente da jurisprudência. Não é de
hoje que os norte-americanos apontam a importância do que chamam de “shadow of the
law”, i.e. a influência que possíveis resultados judiciais exercem na formatação dos
acordos.

Chega a ser alarmante a pouca atenção dedicada à postura dos tribunais perante os
contratos empresariais. Despreza-se um dos maiores instrumentos para a diminuição do
risco: a análise dos precedentes. Justificativas para essa falha, como “no Brasil não se
adota o sistema de common law e o Tribunal pode julgar de qualquer forma”, são
temerárias. Ter ciência das chances de uma liminar ser mantida pelo Tribunal é
fundamental na definição da estratégia jurídica e comercial da empresa. Da mesma forma,
saber o entendimento consolidado das cortes sobre determinada cláusula pode evitar
desgaste no processo de negociação. Apontar para o agente econômico as possíveis
consequências futuras dos atos presentes diminui a insegurança e a imprevisibilidade,
aumentando suas chances de escolher a melhor estratégia.

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É verdade que, em virtude do sigilo que cerca disputas arbitrais, não se tem sempre acesso
a seus resultados. No máximo, há compêndios publicados por câmaras especializadas
estrangeiras ou divulgação de sentenças contestadas judicialmente. Contudo, a
jurisprudência togada exerce seu papel no convencimento dos árbitros e o advogado que
assessora a negociação precisa dominá-la.

Além das posições dos tribunais, também é importante ter consciência das armas litigiosas
que estarão disponíveis para as empresas em caso de embate. Não raro, uma liminar atua
como forte incentivo ao acordo. Quão fácil/rápida será a execução da garantia? Quem não
conhece a velha ameaça do pedido de falência da empresa para forçar o pagamento? Todos
já vimos um caso em que o devedor age de determinada maneira porque sabe que a
demora processual funcionará a seu favor.

Até mesmo o caos pode ter o seu papel. Se as partes acreditarem que o processo judicial
ou arbitral será um desastre recíproco, podem ver-se estimuladas a buscar um
denominador comum. Às vezes, o antigo ditado forense [“de barriga de mulher … e de
cabeça de juiz não se sabe o que vem”] é um trunfo na mão da parte inadimplente, pois a
outra, mesmo coberta de razão, temerá a derrota. Isso não é necessariamente
desvantajoso: “mais vale um acordo ruim do que uma boa demanda”, “um pássaro na mão
do que dois voando” e assim por diante.

A ideia de “shadow of the law” faz ver que o advogado empresarial deve buscar
informações sobre como o contrato e o Direito distribuirão “facas e queijos” entre as
empresas envolvidas no negócio, ou seja, quem estará em posição vantajosa e quem
estará fragilizado. Não adianta negociar estipulações favoráveis ao cliente se a
jurisprudência indica que virarão pó em caso de disputa. O advogado ignorante pode até
ficar feliz ao negociar cláusula penal determinando que a outra parte, em caso de
descumprimento, deverá pagar o dobro do valor do contrato a título de multa. Mas seu
castelo despencará, tão logo confrontado com o art. 412 do Código Civil (LGL\2002\400).

É preciso estudo e experiência para saber de que forma o Direito normalmente distribui
“facas e queijos” e, se for o caso, inverter essa tendência para melhor proteger o interesse
da empresa no processo de negociação/redação do instrumento. No final das contas, o
risco econômico que a empresa assume no negócio, tão caro aos executivos, não pode ser
bem delineado sem a consideração dos possíveis desfechos jurídicos.

c.Facas e queijos podem mudar de mãos ao longo do contrato

Um caro amigo, professor português, mesmo correndo o risco de ser execrado pelos
arautos do “politicamente correto”, trouxe o greener grass effect, estudado pelo direito de
família, para explicar alguns investimentos e incentivos dos contratos empresariais.
Imaginemos um jovem casal; ela bonita e ele nem tanto. Após muito esforço e anos de
luta, alcançam estável situação financeira. O varão cuida dos investimentos. Três filhos
criados, na casa dos 25 anos. O tempo é generoso com o homem, os cabelos brancos
caem-lhe bem. O mesmo não acontece com a esposa. Em princípio, considerando os
[criticáveis, inadequados e antiquados] valores sociais vigentes e o mercado de
casamentos, há de se convir que ele estará mais valorizado após eventual separação. O
que fez essa bondosa senhora? Investiu sua juventude para, no outono de sua vida, ver-se
sozinha, sem marido, sem filhos e sem dinheiro. Além da evidente lição que esse exemplo

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traz às jovens mulheres, de que devem investir também em seu próprio crescimento e não
confiar apenas em arranjos matrimoniais, temos outra, a ser aproveitada pelos advogados
que assessoram transações empresariais.

Queiramos ou não, o agente econômico busca a satisfação de seu próprio interesse com
avidez, ou seja, tende a colocar seu bem-estar antes do outro. Cada empresa cuida de si e
somente se importará com o parceiro comercial [i] se for obrigada a tanto [daí a
importância do Direito] ou [ii] se o comportamento colaborativo for economicamente
interessante no presente ou no futuro. Não sejamos ingênuos a ponto de negar o “natural
egoísmo do agente econômico”, até mesmo porque, no limite, é ele que impulsiona tanto
a colaboração quanto a concorrência.

Mais um exemplo: Y, uma metalúrgica, e X, uma montadora de automóveis, pretendem


ajustar o fornecimento de determinada peça. Para celebrar o contrato e atender àquela
demanda específica, Y deverá adaptar toda a sua linha de montagem. Parece óbvio que,
uma vez feito o investimento, X estará com a faca e com o queijo nas mãos. Não se deve
aguardar que X tenha uma atitude bondosa no futuro. Espera-se do agente econômico
ativo e probo que não confie no altruísmo do próximo e previna-se, no momento da
contratação, contra cenários futuros pouco favoráveis, que com muita probabilidade serão
criados, caso a faca e o queijo passem para a outra empresa.

Em suma: dependendo do negócio, com o passar do tempo, o jogo de forças pode


alterar-se; o advogado deve ponderar as soluções jurídicas para o novo cenário, já no
momento da vinculação.

d.O poder de barganha entre as partes é diferente

Aqui também a realidade é escondida nos bancos tradicionais. Os contratos são ensinados
como ajustes neutros, equilibrados, que emergem quase naturalmente. Um encontro
perfeito entre prestação e contraprestação. Se A quer comprar e B quer vender, ajustados
preços e quantidades, tudo está resolvido.

Esse bucólico mundo nada tem a ver com os contratos empresariais discutidos nas
arbitragens, onde nem as compras e vendas fogem de ser negócios complexos. As
empresas têm poder de barganha diverso, em decorrência dos mais variados fatores: força
econômica, especificidades do negócio, situação de mercado, market share, momento da
economia etc.

Para o desespero daqueles que formaram suas mentes e corações em outras áreas do
Direito, no campo da arbitragem empresarial, mesmo diante dessas diferenças entre as
partes, tende-se a respeitar o que livremente contrataram. A empresa será considerada
como um agente econômico racional e não um hipossuficiente, digno de tutela.
Parafraseando o Professor Fabio Ulhoa Coelho: se o advogado não aceita essa realidade, é
melhor que se dedique a outras áreas do Direito, algumas bem mais nobres, não à
disciplina das relações entre empresas.

e.O agente econômico pode não ser tão racional como gostaríamos, mas ele
tende a responder a incentivos

O negócio empresarial é sustentado por uma teia de incentivos e desincentivos econômicos

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e jurídicos derivados da Lei e do próprio contrato. Basta pensar que cláusulas penais e
outras sanções positivas e negativas configuram elementos de estímulo [ou falta de
estímulo] ao cumprimento do contratado.

Voltamos ao mesmo ponto: o agente econômico tende a buscar a satisfação de seu


interesse, ponderando custos e benefícios. Nessa aritmética, entrarão as possíveis perdas
decorrentes das sanções negativas aplicáveis ao descumprimento do contratado. Regra
geral, maior a penalidade, maior o incentivo ao cumprimento; melhor a garantia, maior a
chance de adimplemento da obrigação.

O Direito trabalha com incentivos a certos comportamentos e desincentivo a outros. Mate


alguém e passe anos na cadeia [desincentivo a matar, incentivo à paz social]. Deixe de
recolher impostos tempestivamente e sujeite-se à multa [incentivo ao pagamento,
desincentivo à sonegação] e assim por diante.

O mesmo acontece no contrato, quando as partes [sempre nos limites legais] tecem seu
próprio sistema de incentivos e desincentivos. Ao redigir uma cláusula, é preciso projetá-la
para o futuro e enxergar como servirá de estímulo aos comportamentos desejados e
entrave aos indesejados.

f.Quais as chances de um instrumento contratual disciplinar todas as questões


futuras?

A resposta é óbvia: nenhuma. Ninguém consegue prever o futuro e, mesmo que isso
ocorresse, não valeria a pena negociar cada aspecto. Por isso, diz-se que os contratos são
“naturalmente incompletos”.

A realidade com que se depara o advogado é diversa daquela exposta nos manuais. A
elaboração do contrato, o processo de barganha e, por fim, a redação do instrumento são
fruto de um “cherry-picking”, no qual se pinçam as situações que se quer disciplinar. As
outras acabam ignoradas, ou porque delas não se têm ciência, ou para que sua negociação
não impeça a finalização do negócio. Nessa perspectiva, as regras dispositivas previstas
pelo ordenamento jurídico são “default rules”, que indicarão o caminho se as partes não
acordarem expressamente em sentido contrário. A Lei, por uma opção política, coloca a
faca e o queijo nas mãos de uma parte e qualquer mudança nessa situação exige
negociação [e, consequentemente, desgaste].

Diante da incompletude contratual, apresentam-se, ao menos, duas possibilidades. Caso


haja regra prevista em Lei, a solução está posta. Na ausência de disciplina específica [como
ocorre na maioria dos casos], o árbitro deverá decidir. Em todas as situações, a lacuna
[proposital ou não] traz um risco, que recairá sobre uma das partes. Por exemplo:
Ajusta-se que X deve entregar 200 litros de leite para Y no dia 19 de março. As partes nada
dispõem sobre eventual penalidade em caso de descumprimento, embora tenham
discutido a questão. Caso X não entregue o leite, Y deverá propor ação judicial para
conseguir alguma reparação. A falta de estipulação da multa é, de certa forma, uma
“lacuna” que gera risco para Y.

O mesmo se pode dizer em relação às redações dúbias, sejam intencionais ou não. Maiores
as possibilidades de interpretação, maiores os riscos a serem enfrentados. Seguindo no
mesmo exemplo: após muitas discussões em torno da multa, X e Y chegam mais ou menos

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a um consenso sobre a redação de cláusula. A redação não é nada clara, mas é o que se
consegue acertar naquele contexto. A imprecisão implica risco: se, por um lado, para Y, o
texto dúbio é “melhor do que nada”, por outro palavras confusas trazem dificuldades na
hora da execução.

g.A vida do contrato começa quando o instrumento vai para a gaveta

Contrato e instrumento são coisas bem diferentes. Sequer tisnando a ponta dos dedos nos
rios de tinta escritos sobre o assunto, consideremos que contrato é um tipo de negócio
jurídico e instrumento um tipo de documentação do quanto acertado pelas partes.

O princípio é conhecido por todos e positivado no art. 107 do Código Civil (LGL\2002\400):
os contratos não precisam ser reduzidos a escrito, salvo expressas exceções legais. Se
assim é, por que empresas e advogados empenham-se tanto para ter um papel assinado?
Simples: para facilitar a comprovação do ajustado.

Estudos já demonstraram que, quanto maior o grau de organização empresarial, maior a


tendência a essa formalização. Por isso, nas arbitragens, raramente se discutem contratos
verbais, partindo-se do texto escrito e firmado pelas partes e testemunhas.

O próprio negócio começa quando o instrumento é enviado ao arquivo. Assinadas as vias,


os advogados ocupar-se-ão de outro assunto. Serão as empresas a dar cumprimento
àquilo que ajustaram.

A vida do contrato desenvolve-se bem distante do mundo ideal dos manuais e dos
assessores jurídicos. Quando se iniciam os trabalhos, as partes procuram resolver
problemas, e não criá-los. Se surgir uma pedra no meio do caminho, discutirão entre si e
ajustarão as coisas para removê-la. Salvo grandes imprevistos ou desentendimentos,
ninguém chamará o advogado. [Por que alguém espontaneamente chamaria quem só “cria
problemas” e “no fundo, não resolve nada”?]. A questão surge, do ponto de vista do
Direito, porque esse comportamento é capaz de produzir sérias consequências. Enquanto
pedras são encontradas e usinas construídas, o instrumento dorme em alguma gaveta,
como se o mundo estivesse congelado.

Após essas “constatações fáticas” sobre a realidade, vejamos algumas indicações de como
formatar a atuação do advogado que lida com contratos empresariais.

IV.O desandar da carruagem e a arbitragem

a.Ponderações sobre alguns fatos bastante prováveis

Assim como nos casamentos, às vezes, os contratos não dão certo. O descontentamento
pode instalar-se logo no início do relacionamento ou após alguns anos. Chega um
momento em que uma das partes [ou ambas] não vê mais sentido em seguir adiante e
acredita que viverá melhor sem aquele vínculo. Os motivos são os mais variados, desde
alguém entender que o equilíbrio entre prestação e contraprestação ficou no passado, até
a possibilidade de se obter, no mercado, substituto oferecendo maiores vantagens.

Embora infrequentes, há separações amigáveis, nas quais um acerto final é alcançado sem
grandes percalços. Cada cônjuge segue para o seu lado e leva consigo o combinado. Se
isso não acontecer, alguém iniciará a disputa, colocando na mão de terceiros a

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incumbência de decidir a quem assiste razão.

Regra geral, diante do litígio, as empresas agem como times, acreditam que a vitória
triunfal lhes aguarda, imbuídas da mais absoluta certeza de estarem do “lado certo”.

Advogados são chamados quando já houve o desentendimento. Deles espera-se que


estudem a lei/regulamentação, a boa doutrina, a posição dos tribunais, o instrumento do
contrato, as correspondências trocadas entre as partes, os demais registros da relação…
Talvez consultem alguns colegas especialistas para chegar às suas conclusões sobre as
possibilidades de êxito. A análise será feita sempre diante do conjunto de fatos, da
[im]possibilidade de serem provados e das provas já existentes.

Embora haja profissionais incrivelmente assertivos, o fato é que, no que diz respeito aos
contrários empresariais, ninguém pode prever o resultado do julgamento com segurança.
Há sempre a fresta pela qual passa o imprevisto; o pouco provável insiste em acontecer.
Todos recordamo-nos de algum processo que o cliente perdeu, embora “coberto de razão”,
e outro que ganhou, mesmo sem a ter. O direito não é nem loteria nem ciência exata. Há
sempre riscos [eventuais perdas] a considerar na decisão estratégica sobre litigar ou não
litigar.

Estabelecido o litígio, se o contrato contiver cláusula arbitral, será composto o Tribunal e


assinado o termo, cumprindo-se as formalidades de praxe. As partes apresentarão seus
argumentos. Mas, nem sempre a arbitragem começa porque alguém acredita na vitória.
Outros arranjos ocorrem com certa frequência.

Por exemplo, a parte, ciente de que não lhe assiste direito algum, lança-se na arbitragem
para ganhar tempo e forçar um acordo, no qual tirará alguma vantagem. A empresa X deve
R$ 30 milhões à empresa Y. Quanto a isso, não existem dúvidas. Porém, a crise é severa e
não há dinheiro para o pagamento. Y refuta qualquer acordo, pois se sabe incontestável
credora.

A devedora X contrata excelentes e experientes advogados e inicia o procedimento arbitral.


Afirma que, na realidade, nada deve porque Y não cumpriu o que deveria. Até mesmo por
força da complexidade do negócio e da destreza dos patronos, raramente os árbitros terão
condições de concluir rapidamente pela improcedência da ação. A arbitragem seguirá:
provas serão produzidas, confusões propositais criadas, cortinas de fumaça levantadas,
testemunhas ouvidas, ordens urgentes pleiteadas, alegações de iminente prejuízo, de
danos irreparáveis, de fatos supervenientes imprevistos e imprevisíveis formulados... Não
bastasse, ambos os lados contratarão pareceres. A imaginação e a competência dos
advogados são o limite.

Os árbitros, preocupados com o devido processo legal, tendem a não suprimir etapas
procedimentais e oportunidades de manifestação previstas nos regulamentos das câmaras
arbitrais. O tempo passa. A empresa Y [que tem razão], vê-se obrigada a despender
grandes somas com advogados e pareceres à altura daqueles de X. Muita energia dos
executivos está dirigida ao caso. Por motivos que não cabe aqui esmiuçar, as partes [i.e.,
o alto escalão das empresas] participam muito mais dos procedimentos arbitrais do que
dos processos judiciais. Se a causa envolver pessoas físicas [brigas entre acionistas, por
exemplo], não raro a vida fica suspensa enquanto o processo não se decide. A subscritora

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deste texto já presenciou um casamento adiado até que se resolvesse pendenga


puramente empresarial, pois o controlador da startup dependia daqueles recursos para
organizar o feliz evento. Enfim, disputas sugam dinheiro, tempo, energia e emoções.

Após um ano e meio, Y começa a desconfiar de suas certezas. “Poco, maledetto, ma


subito”, diziam os velhos imigrantes italianos. Faz-se o acordo e Y receberá 20 milhões, em
quatro parcelas. Cada parte arcará com suas despesas e metade das custas. “Melhor do
que continuar brigando e gastando uma fortuna com advogados”, pensarão os diligentes
administradores. Finalmente, os recursos entrarão para a empresa, melhorando os bônus
de todos. Para X, a estratégia mostrou-se lucrativa. Somados todos os seus gastos, fica-se
na casa de dois milhões de reais. O desconto, que antes parecia impossível, agora foi de R$
8 milhões.

Outro desfecho: após a fase postulatória e instrutória, volumes e volumes de procedimento


adiante, sem acordo entre as partes, a arbitragem encontra seu final e é proferida a
sentença arbitral. Quem sairá vencedor?

Embora seja impossível prever como os árbitros decidirão, algumas tendências podem ser
apontadas: [i] marcada observância das garantias processuais, para o bem ou para o mal;
[ii] respeito àquilo que foi contratado; [iii] presunção de que o instrumento corporifica a
vontade comum das partes; [iv] interpretação que se desdobra a partir do instrumento e
[v] atenção às provas produzidas mais do que a teses jurídicas. Teçamos alguns
apontamentos sobre essas trilhas.

b.Garantias processuais, sentenças arbitrais e Poder Judiciário. Ainda sobre a


“shadow of the law”

Pesquisas jurisprudenciais reforçam o entendimento de que o Poder Judiciário tem


prestigiado a arbitragem, evitando imiscuir-se no mérito das demandas. Não se
concretizou o cenário desfavorável previsto por muitos, de desconfiança ou preconceito
dos juízes togados em relação à conduta dos árbitros. Em estados como São Paulo, onde há
câmaras reservadas para o Direito Empresarial no Tribunal de Justiça, esse saudável
diálogo tem propiciado às empresas ambiente favorável ao desenvolvimento de suas
atividades.

Como regra, o Judiciário é implacável diante de evidências de que, de alguma forma,


determinado procedimento arbitral não tenha respeitado o devido processo legal. Essa
postura firme influencia a atuação dos árbitros que, segundo alguns, chegam a exagerar na
proteção dos direitos processuais das partes. Por exemplo, raros são os laudos proferidos
sem a realização de audiência para produção de provas, quando requisitada por uma das
partes. O processo arbitral tende a ver cumpridas todas as fases e concretizadas todas as
oportunidades de manifestação previstas nos regulamentos das câmaras.

c.Respeito ao que foi livremente contratado pelas partes

É voz corrente que os juízes brasileiros seriam “intervencionistas” e, sem grande


cerimônia, substituir-se-iam à vontade das partes, fazendo “justiça social com as próprias
mãos”. Há até mesmo algumas pesquisas pretensamente “científicas” e fundadas em
“estatísticas”, que comprovariam esse pretencioso viés dos julgadores.

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Isso não é verdadeiro, ao menos no que tange aos contratos empresariais. Basta uma
pesquisa jurisprudencial séria nos julgados do TJSP e mesmo do STJ para comprovar tal
fato. Ao contrário do que prega essa irritante “lenda urbana”, o vetor dos julgadores é que
as partes respeitem aquilo que livremente contrataram; o Poder Judiciário não se presta a
corrigir os erros das empresas, na sua luta pelo mercado.

A chamada “farra dos princípios” [na feliz expressão do Professor Ronaldo Porto Macedo
Jr.] não macula o julgamento dos negócios empresariais. Narrativas processuais em que
agentes racionais são postos como David diante de Golias não costumam obter grandes
resultados. O mesmo se pode dizer do princípio da boa-fé, que quase sempre será invocado
por todas as partes, em praticamente todas as suas manifestações. Curioso notar que,
quando os negócios trazem prejuízos no lugar de lucros, nem o maior arauto da liberdade
contratual aprecia ser obrigado a arcar com as perdas.

Para os julgadores, a suprema manifestação da boa-fé, no direito empresarial, é cumprir o


contratado e agir em conformidade com o esperado de um player que honra sua palavra e
adimple suas obrigações. Essa diretriz, também seguida na arbitragem, foi resumida pelo
Superior Tribunal de Justiça, em uma de suas últimas manifestações sobre o assunto. Vale
a transcrição:

“2. O controle judicial sobre […] Cláusulas […] em contratos empresariais é mais restrito do
que em outros setores do Direito Privado, pois as negociações são entabuladas entre
profissionais da área empresarial, observando regras costumeiramente seguidas pelos
integrantes desse setor da economia.

3. Concreção do princípio da autonomia privada no plano do Direito Empresarial, com


maior força do que em outros setores do Direito Privado […].

[A] força obrigatória dos contratos é o contraposto da liberdade contratual. Se o agente é


livre para realizar qualquer negócio jurídico dentro da vida civil, deve ser responsável pelos
atos praticados, pois os contratos são celebrados para serem cumpridos (pacta sunt
servanda). A necessidade de efetiva segurança jurídica na circulação de bens impele a
ideia de responsabilidade contratual, mas de forma restrita aos limites do contrato. O
exercício da liberdade contratual exige responsabilidade quanto aos efeitos dos pactos
celebrados” [Recurso Especial 1.409.849/PR, relatoria do Ministro Carlos Sanseverino,
julgado em 26.04.2016].

O mesmo Superior Tribunal de Justiça bem sinaliza que as empresas, profissionais que são,
devem cumprir o contratado:

“[...] nos contratos mercantis, os contratantes são empresários que exercem atividade
econômica profissionalmente, sendo essencial ‘assegurar a necessidade dos agentes
econômicos de segurança e previsibilidade em suas relações, a vinculação das partes à
vontade declarada no contrato’, por isso as pactuações empresariais, mesmo quando se
mostram decisões de gestão empresarial equivocada, em regra, devem ser observadas,
como resguardo à livre concorrência e à dinamização da economia […].

Nos contratos comerciais (mercantis e empresariais), os contratantes são todos


empresários, isto é, exercem ‘profissionalmente atividade econômica organizada para a
produção ou circulação de bens ou serviços’ (CC (LGL\2002\400), art. 966). [...]

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Contratos empresariais e arbitragem: sugestões práticas
para a redação de instrumentos contratuais

Quando o vínculo negocial aproxima dois sujeitos que se consideram juridicamente


empresários, o contrato submete-se a regime próprio. [...]

Convém tratar dos contratos comerciais em separado, no contexto da tecnologia jurídica


dedicada à exploração de atividades econômicas pelos particulares. Como ressalta Paula A.
Forgioni, há certos vértices específicos do sistema de direito comercial, destinados a
azeitar o fluxo das relações econômicas e aumentar o volume de negócios. Entre os
vértices do direito comercial, destaca a comercialista a tutela do crédito, a necessidade dos
agentes econômicos de segurança e previsibilidade em suas relações, a vinculação das
partes à vontade declarada no contrato e a importância do erro.

Quanto a este último vértice, vale a pena atentar à lição de Paula A. Forgioni. Para ela,
‘aspecto inerente ao funcionamento do sistema de direito comercial está́ relacionado ao
erro do empresário. Os agentes econômicos algumas vezes adotam estratégias
equivocadas, e esses enganos são previstos e desejados pelo sistema jurídico, na medida
em que, diferenciando os agentes, permitem o estabelecimento do jogo concorrencial (...).
Ou seja, é a diferença entre as estratégias adotadas pelos agentes econômicos e entre os
resultados obtidos (uns melhores, outros piores) que dá́ vida a um ambiente de competição
(porque todos buscam o prêmio do maior sucesso, da adoção da estratégia mais
eficiente)’. Alerta, ademais: ‘um ordenamento que - em nome da proteção do agente
econômico mais fraco - neutralize demasiadamente os efeitos nefastos do erro do
empresário pode acabar distorcendo o mercado e enfraquecendo a tutela do credito. Em
termos bastante coloquiais, o remédio erradicaria a doença, mas também mataria o
doente... Seria, por assim dizer, a condenação da busca pela vantagem competitiva’
(Forgioni, 2003).

Esses vértices do direito comercial, responsáveis, em última analise, pela dinamização e


enriquecimento da economia de um país, informam a compreensão dos negócios entre os
empresários e não podem, por isso, ser ignorados na adequada interpretação do direito
aplicável e das cláusulas ajustadas entre as partes. Quando a ordem jurídica cria
mecanismos para poupar os consumidores das consequências de seus erros - como, por
exemplo, o direito de arrependimento nos atos de consumo levados a efeito no contexto de
práticas de marketing agressivo (CDC (LGL\1990\40), art. 49) -, manifesta salutar
preocupação com a vulnerabilidade desses contratantes. Mas não pode aproveitar
mecanismos como estes na disciplina dos contratos comerciais. Se o empresário for
constantemente poupado de seus erros, a concorrência empresarial será distorcida, com
sérios prejuízos para a economia. Além de não contribuir para a formação de uma elite
empresarial preparada, a desconsideração, pelo direito dos contratos, das exigências
típicas da relação comercial importará a frustração das recompensas que compõem o jogo
competitivo do capitalismo. Quer dizer, se os melhores empresários não forem premiados,
segundo a lógica capitalista, pela competência manifestada em suas decisões, a estrutura
econômica da livre iniciativa não estará adequadamente protegida pela lei. Os investidores
tendem a direcionar seus capitais para os países em que o direito comercial tem sua função
bem compreendida, prestigiada e cumprida [COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil:
contratos. 4 ed. São Paulo; Saraiva, 2010, ps. 79-83]” [Recurso Especial 1.219.210/RS,
relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 30.04.2015].

Essa máxima é tão levada em consideração pelo Superior Tribunal de Justiça que chega a

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para a redação de instrumentos contratuais

afastar a aplicação do Estatuto da Terra à grande empresa rural, para fazer prevalecer o
contratado:

“6. Inaplicabilidade das normas protetivas do Estatuto da Terra à grande empresa rural.
[…]

8. Prevalência do princípio da autonomia privada, concretizada em seu consectário lógico


consistente na força obrigatória dos contratos (‘pacta sunt servanda’) […]” [Recurso
Especial 1.447.082/TO, relatoria do Ministro Carlos Sanseverino, julgado em 10.05.2016].

As empresas têm que suportar seus erros e os árbitros não costumam neutralizar os efeitos
deletérios das consequências das estratégias comerciais. O ordenamento jurídico não
assegura ao agente que sempre terá vantagens em suas contratações, mas – voltando à
lição do Superior Tribunal de Justiça –, ao mesmo tempo em que o deixa livre para escolher
suas estratégias, obriga-o a arcar com eventuais prejuízos.

d Pacta sunt servanda. Real intenção das partes e a racionalidade do negócio. A


importância do instrumento

O pressuposto lógico para decidir conforme o contratado é conhecer o que as partes


ajustaram no momento da celebração. Nessa busca de reconstrução do passado, árbitros
experientes procuram entender a lógica econômica do negócio, porque presumem que as
empresas vinculam-se com um propósito. Se, como advertiu Chiovenda, ninguém contrata
pelo mero prazer de trocar declarações de vontade, toda a contratação possui um escopo,
ainda mais quando a contratação se dá entre agentes econômicos necessariamente
racionais. Esse objetivo, que se confunde com a “intenção comum das partes”, é um forte
vetor de interpretação.

Quando a disputa envolve contratos empresariais, o primeiro contato dos julgadores com
o caso dá-se através do instrumento escrito, datado e firmado pelas partes. O instrumento
é o portal pelo qual os intérpretes necessariamente passarão para chegar ao caso. Eles
poderão até mesmo considerar outros documentos e provas. Contudo, sua primeira
abordagem partirá do instrumento.

Coloque-se o leitor nos panos do julgador que nada sabe sobre o caso, no início da
arbitragem. Ótimos advogados, deduzindo os mais elaborados argumentos e teses.
Pareceres de juristas que foram seus professores. Laudos de auditorias e de conhecidos
economistas. Alegações para todos os gostos. Pilhas de e-mails, atas, memorandos
internos. Cada parte afirmando que contratou uma coisa, diferente do que alega a outra.
Qual o primeiro documento que será analisado? O instrumento do contrato que originou a
controvérsia.

Depois que a cizânia instalou-se, cada um constrói sua versão sobre o passado e,
normalmente, nela acredita piamente. Como saber o que realmente ocorreu? Como
reconstruir aquela situação? O primeiro passo será o instrumento, com todas suas
assinaturas e carimbos. Embora não se abrace mais o brocardo “in claris cessat
interpretatio” como no passado, as palavras do instrumento, lido e assinado pelas partes,
são forte indício daquilo que foi efetivamente contratado, da intenção comum das
empresas.

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Contratos empresariais e arbitragem: sugestões práticas
para a redação de instrumentos contratuais

Longe de ser uma construção doutrinária, o respeito ao texto impõe-se por força de
dispositivos expressos do Código Civil (LGL\2002\400) [“Art. 219. As declarações
constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação aos
signatários”] e do Código de Processo Civil [“Art. 412. O documento particular de cuja
autenticidade não se dúvida prova que o seu autor fez a declaração que lhe é atribuída”].

Juntemos os pontos: se os árbitros buscam reconstruir o que as partes contrataram e, para


tal fim, partem do instrumento, quanto mais clara a intenção comum que motivou as
partes estiver no instrumento, mais chances o contrato terá de ser respeitado [“enforced”]
pelo Tribunal Arbitral de acordo com sua concepção original.

Indo além: viu-se acima que os contratos são naturalmente incompletos. Ou seja, os
julgadores acabam chamados a interpretar e também a completar a avença. Em negócios
complexos e de longa duração, os textos contratuais acabam sendo “programas” para o
futuro, contendo a moldura da relação e não seus detalhes. Quanto mais os árbitros forem
informados sobre o negócio e sobre o “espírito do contrato” no instrumento, menor o risco
futuro para as partes.

Interessante notar que a explicitação das intenções comuns no instrumento não costuma
encontrar grandes resistências das partes, o que facilita a tarefa dos assessores. Nesse
cenário, custa a se compreender a razão pela qual muitos “especialistas” ainda redigem
contratos com preâmbulos do tipo “Considerando que A quer comprar e B quer vender, A
e B celebram esta compra e venda”.

e.In claris cessat interpretatio?

Debate-se qual o limite da interpretação quando o texto é claro. Muitos afirmam que isso
nunca ocorre, porque a linguagem humana, especialmente a escrita, é naturalmente
imprecisa.

A questão somente pode ser compreendida a partir de sua análise histórica. No


positivismo, esse cânone hermenêutico foi levado às últimas consequências, para impedir
que a atuação do intérprete criasse regra não prevista e, com isso, obrigasse ao
cumprimento de algo não imposto nem pela lei nem pelo contrato. Como costuma
acontecer, a reação a esse movimento também foi exagerada, chegando-se até ao
pitoresco “direito livre” dos anos 80. Muitos teóricos [por óbvio, pouco conhecedores do
dia-a-dia empresarial] acabam defendendo posições de difícil aceitação, como se o
instrumento firmado pelas partes de nada servisse. Um consumerismo nitidamente
exagerado arrebatou alguns autores de direito empresarial, que vivem mais em uma torre
de marfim do que junto ao mundo empresarial.

Novamente, espalhou-se uma lenda urbana de que os Tribunais nacionais julgariam de


acordo com uma boa-fé desconectada da realidade. Nada mais equivocado, pois basta
outra pesquisa jurisprudencial para observar o desacerto dessa perspectiva, especialmente
para a Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP e para a maioria dos ministros
do STJ que julgam questões empresariais. A regra é aquela acima apontada: o respeito ao
instrumento. Parte da doutrina invoca o art. 112 do Código Civil (LGL\2002\400)
equivocadamente, como se nada valesse a declaração de vontade consubstanciada no
documento firmado. Essa linha chega a ser temerária de tão destacada da realidade. O

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Contratos empresariais e arbitragem: sugestões práticas
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mais forte indício da vontade comum das empresas é o que elas próprias declararam ser
sua vontade comum.

Em condições especialíssimas, os árbitros e os Tribunais podem até se afastar do texto


assinado, quando restam convencidos de que o papel não refletiria o que foi efetiva e
realmente ajustado pelas partes. Mas isso – deixe-se bem claro – não é comum e requer,
acima de tudo, prova bastante forte do ocorrido.

A imagem do julgador que não consegue se conter diante da tentação de intervir no


contrato é uma fantasia. Muito pelo contrário: ao menos no que diz respeito às empresas,
prefere-se executar o que livremente ajustaram, fazendo-as colher os frutos de suas
estratégias, signifiquem lucro ou prejuízo. Trabalha-se com forte presunção de que as
partes acordaram o que está escrito no instrumento. São poucas as exceções e, para
convencer os julgadores de sua ocorrência, a prova há de ser robusta.

Falemos, então, das provas.

f.Respeito às provas

Salvo casos patológicos, os árbitros almejam julgar da forma mais objetiva possível, dando
execução àquilo que as empresas contrataram e não às suas opiniões pessoais sobre o
negócio. Durante a arbitragem, os advogados apresentarão cada qual a sua versão sobre
os fatos ocorridos que, na maioria das vezes, coincidem em quase nada. O julgador vê-se
obrigado a recompor uma realidade que não mais existe; para desenvolver essa tarefa, as
provas do ocorrido são o elemento mais objetivo que possui. Por vezes, uma prova faz mais
pela defesa da posição do cliente do que dezenas de páginas escritas, plena de citações de
grandes autores. Por mais que seja difícil admitir – especialmente para aqueles tem apreço
ao estudo do Direito – inúmeras causas altamente complexas são vencidas não pelo
brilhantismo dos advogados, mas pelas provas que trazem ou deixam de trazer ao
conhecimento do Tribunal. O julgamento que não se embasa em provas é temerário, para
se dizer o menos.

Ocorre que, durante a vida do contrato, quando as pessoas estão trabalhando longe dos
advogados, tendem a não se preocupar mais tanto com a produção de documentos
destinados a comprovar o que vai acontecendo. Tampouco querem saber de outras
“formalidades”, que só lhes fazem “perder tempo”. Não é simples exigir de um engenheiro
o cuidado máximo com cada mensagem que escreve, porque pode ser descontextualizada
no futuro. A seu favor, ponderemos que, talvez, se os executores dos contratos fossem dar
ouvidos a todas as preocupações dos advogados, o aumento dos custos de transação
dificultaria os negócios sobremaneira. Por exemplo, nos contratos de construção, o diário
de obras tem por função diminuir a assimetria informacional.

Cabe aos advogados analisar as especificidades do caso concreto e construir a solução


menos onerosa e, ao mesmo tempo, mais eficiente possível. Mais uma vez, a ponderação
não será entre certo e errado, mas entre custos e benefícios.

g.Atenção ao afastamento do texto do contrato. Ainda sobre a importância das


provas

Nunca se sabe o que irá acontecer quando as empresas, durante a execução do contrato,

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afastam-se do seu texto. Por exemplo, está escrito que as ordens de compra deverão ser
colocadas com 15 dias de antecedência. Todavia, de vez em quando, a fornecedora atende
a pedidos que a distribuidora envia com apenas 10 dias. Em determinado momento
[sabe-se lá qual] podemos considerar que a regra contratual foi alterada para 10 dias? O
que fazer quando há aquela famosa cláusula de estilo ao final, determinando que
“quaisquer alterações a este contrato somente serão válidas e vincularão as partes quando
celebradas por escrito”? Até que ponto vão as exigências da boa-fé?

Alguns julgados do STJ, embora proferidos para solucionar casos bem específicos, causam
preocupação aos analistas mais atentos quanto a saudáveis e normais “favores” que uma
parte faz a outra durante a execução do contrato, em nome do bom andamento dos
negócios. Um comportamento esporádico corre o risco de ser considerado a nova regra de
conduta por força do exagero na aplicação de surrectio, supressio, tu quoque e afins. Como
garantir que o julgador não encarará certa deferência, ainda mais se reiterada, como
definitiva e peremptória modificação, que gerou “legítimas expectativas” na outra parte?

O fato é que essas situações envolvem risco e essa jurisprudência do STJ, ainda que com
a melhor das intenções, pode desincentivar comportamentos desejáveis das partes,
tornando-as mais refratárias à colaboração espontânea.

A lição é sempre a mesma: Diante da comprovação cabal do que ocorreu, é bem mais fácil
reconstruir o passado e, consequentemente, julgar. Assim, a melhor forma de diminuir
riscos [reduzir o espectro de possíveis decisões] é a documentação, a produção de provas
sobre o que está sendo efetivamente engendrado pelas partes, no momento em que os
fatos estão ocorrendo.

V.Algumas sugestões concretas

Nesta altura da exposição, podemos rascunhar algumas sugestões e advertências para os


advogados envolvidos na redação de contratos empresariais que podem acabar apreciados
em procedimentos arbitrais:

- o advogado jamais deve se aventurar a escrever um instrumento/assessorar uma


empresa sem entender a racionalidade econômica do negócio. No mundo empresarial,
tudo sempre tem uma razão. “Ninguém contrata pelo mero prazer de trocar declarações de
vontade” [Chiovenda]. Se o profissional não compreender a “intenção comum das partes”,
corre um alto risco de não conseguir nem assessorar a negociação, nem colocar algo útil no
papel. É preciso conhecer a realidade das empresas e o que buscam com a contratação.

- o advogado deve ter sempre em mente que o julgador partirá da leitura do instrumento
para compreender o negócio e que a primeira coisa que fará será procurar a racionalidade
econômica por trás do ajuste. Facilite o trabalho do advogado do contencioso e o do
julgador.

- Negociar pontos controvertidos custa e gera desgaste. É normal que o cliente não aprecie
tanto o zelo do advogado quanto este gostaria.

- Nem nas séries americanas o advogado consegue prever todos os possíveis desfechos do
negócio, muito menos discipliná-los no instrumento. Isso é materialmente impossível. Até
em Suits.

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Contratos empresariais e arbitragem: sugestões práticas
para a redação de instrumentos contratuais

- O advogado deve procurar fazer a tendência do “excessivo otimismo do agente


econômico” trabalhar a seu favor. No momento em que “tudo são flores”, normalmente é
mais fácil colocar a intenção comum das partes no papel, deixar os objetivos e os acertos
claros no texto. Novamente: o advogado deve procurar facilitar a vida do julgador e do seu
colega.

- A decisão sobre o que reduzir a escrito decorre de uma ponderação entre custos [negociar
gera desgaste] e benefícios [deixar a posição do cliente mais clara traz segurança].

- A função do advogado é advertir o cliente dos riscos e não assumi-los em seu lugar.

- O contrato deve ser pensando como um grande sistema de incentivos e desincentivos,


um projeto de como as disposições atuarão nesse sistema.

- Atente-se em quais mãos o direito, a jurisprudência e a negociação estão colocando as


facas e os queijos [para isso, é preciso realmente estudar].

-Facas e queijos podem mudar de mãos durante a execução do negócio; o advogado


devem também trabalhar com esse possível cenário.

- O negócio começa quando o instrumento vai para a gaveta. Afastar-se do texto implica
riscos.

-O contrato deve desenhar mecanismos de documentação de fatos, para que o cliente


possa ter provas, no futuro, do que realmente aconteceu.

- A imagem do julgador que não se contém diante da possibilidade de interferir no contrato


para fazer justiça social é um mito, ao menos no que diz respeito às relações entre
empresas. Ao contrário do que reza essa estranha lenda urbana, juízes e árbitros tendem
a respeitar o que as partes ajustaram.

-Julgadores e advogados experientes bem sabem que, assim como a vida, negócios
empresariais costumam ser altamente complexos. O advogado não deve apaixonar-se pela
causa ou pelo negócio a ponto de esquecer que outra visão dos fatos é quase sempre
possível. O bom profissional analisa a situação sob a ótica do outro, colocando-se no seu
lugar, sem perder de vista o interesse do seu cliente.

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