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24/08/2022 14:14 Envio | Revista dos Tribunais
a criação da Ambev e a privatização da Telebras– vendemos 12 companhias por 19 bilhões de dólares -- e criamos a
maior companhia de cerveja do Brasil.
RDSM&A: Ao longo desse percurso no M&A, você certamente acumulou muita experiência e viu muitas
transformações. Lá no começo, no seu primeiro M&A, qual foi a maior dificuldade encontrada?
Paulo: Falar hoje do meu primeiro M&A talvez não seja um bom exemplo, porque a atividade mudou muito, ficou
muito mais complexa de lá para cá. Nos anos 80 e 90, a diligência legal era basicamente tirar certidões da companhia
nos cartórios. Nós brincávamos que meio ambiente era uma sala dividida em dois (risos). Os contratos de aquisição
de participação eram bem mais simples, não tinham ainda a feição que têm hoje por conta da influência do direito
americano. Era muito mais inspirado pelo direito civil continental, por assim dizer. As cláusulas de reps & warranties
(declarações e garantias), covenants e até essa “quebra” entre signing e closing que se vê nos contratos de hoje em
dia não era tão usual, até por conta do sistema de controle da operação pelo CADE ex post: você fechava o contrato
antes e só depois levava para o CADE. Só que a parte contratual já estava concluída antes de o CADE poder se
manifestar. Por isso, os primeiros M&A não servem muito como exemplo. O M&A se tornou gradualmente muito mais
complexo. Nos meus anos da GP, a mecânica já estava particularmente mais difícil. Lembro que fizemos uma
operação grande pela GP de aquisição de uma cadeia de supermercados na Bahia, envolvendo uma série de
financiamentos tão complexa do ponto de vista de estrutura que a brincadeira entre nós sócios da GP era que
tínhamos um compromisso recíproco de não morrer até o final da operação, se não ninguém ia conseguir entender a
operação (risos). Essa área tem particularidades muito relevantes, do ponto de vista de formação e atuação do
advogado. Se eu tivesse de indicar uma habilidade adicional necessária nessa área, seria lidar com números. Se você
dissesse antigamente que tinha dificuldade com contas, isso seria um encaminhamento seguro para a carreira
jurídica; mas hoje é preciso entender matemática financeira e contabilidade para trabalhar com M&A, são temas
absolutamente fundamentais. Um dos pilares do advogado empresarial termina sendo algum domínio de matemática
financeira e de contabilidade, pois todos os seus interlocutores são dessa área.
RDSM&A: Ao longo dos seus anos de carreira, foi possível notar mudanças no jeito de fazer M&A no Brasil? Em que
aspectos dos contratos de M&A você sente que houve mais reflexos dessas mudanças?
Paulo: Eu acho que o M&A brasileiro se americanizou. Até pelo título: fala-se M&A, que seria traduzido como “fusões
e aquisições”. No entanto, eu tenho conhecimento nos últimos 30 ou 40 anos de apenas uma verdadeira operação de
fusão, como a gente aprende na faculdade, ou seja, as empresas A e B se juntam para formar C [...], mas, mesmo
assim, usamos a nomenclatura americana. Os contratos hoje contam com uma estrutura binária. A operação é
dividida entre signing – momento em que se tomam as reps and warranties (cláusula de declarações e garantias)
como base do negócio, além de condições específicas de atuação da companhia ou das partes em geral entre signing
e closing para garantir um funcionamento normal da companhia-alvo, sem falar nas condições precedentes, como
aprovação do CADE etc. – e, finalmente, o fechamento do contrato, com a eventual constituição de uma conta escrow
e mesmo a contratação de earnout, que nada mais é que submeter a determinação de uma parte do preço à
ocorrência de certos eventos subsequentes. Comparado a períodos anteriores, isso foi uma grande mudança. Tanto
mais pela documentação que resulta de uma operação dessa natureza, ou seja, as famosas bíblias de cada operação
[...] isso também é uma importação americana. Isso resulta em uma maneira diferente de redigir os contratos, quase
que pensados em inglês e escritos em português (nem sempre em bom português). Usamos traduções pouco
precisas, algumas vezes até traduções sem sentido de expressões em inglês. Um exemplo disso é falar de uma
determinada lei “conforme alterada”, que é uma tradução literal de “as amended”. O contrato estabelecer isso, como
se fosse possível aplicar uma lei com uma redação diferente da que ela tem é algo sem sentido (risos). Acho que
esse é o aspecto essencial dessa mudança na forma de fazer M&A e de como isso se reflete na forma de o advogado
dessa área desenvolver sua atividade profissional. Só que os sistemas americano e brasileiro são muito diferentes. O
sistema americano é baseado em precedentes que são respeitosamente seguidos, enquanto no nosso sistema o
precedente judicial não tem tanta força. Aqui muita coisa está regulada no Código e nos institutos da lei. O bom
conhecimento da lei e do direito comercial é fundamental. Outra coisa que é preciso reconhecer, com humildade, é
que, na atividade de M&A, pouco se cria e tudo se adapta. O advogado precisa ter preocupação com o seu repertório,
ele precisa aprender com o que foi feito nas operações relevantes anteriores. Essa é uma preocupação que todos
devemos ter. Algumas operações são como verdadeiras partituras: você tem que estudar aquilo, o porquê de ter sido
foi feito desta ou daquela forma, quais constrangimentos fiscais, societários ou até cambiais levaram a operação a ser
feita dessa ou daquela forma.
RDSM&A: Essas mudanças vieram para melhor ou pior?
Paulo: A essas alturas, eu diria que é inútil qualificar a realidade. A realidade é o que temos para hoje. Já estou
habituado com isso, é das regras do jogo. Os investidores estrangeiros têm cada vez mais um papel nesse tipo de
operação, pelo que você precisa aprender a fazer do jeito que o mercado faz. Tomando o M&A em um sentido mais
amplo, uma coisa que está acontecendo no mercado e que talvez seja a maior revolução silenciosa dos últimos anos,
é que as companhias brasileiras estão começando a deixar de ter controle concentrado. Começam a entrar em cena
ofertas públicas de aquisição de controle mais ou menos hostis, digamos assim. Como o alvo não tem um controlador
que decida fazer a operação, essa decisão acaba sendo decidida na votação dos acionistas, a partir de uma
manifestação do conselho de administração (ou, segundo a lei, até mesmo sem ela). Isso também representa uma
grande mudança pela qual a combinação de negócios vem passando ultimamente. Então as coisas acontecem de
forma diferente. O processo todo agora se passa entre um ofertante e um ofertado, só que nenhum dos dois tem
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controlador. Mais ainda, a contabilidade empresarial igualmente mudou muito em vista dos padrões internacionais. O
advogado precisa saber os impactos fiscais e contábeis que daí decorrem para uma combinação de negócios.
Curiosamente, as operações e os conceitos americanos acabam sendo aplicados no Brasil. O direito comercial se
desenvolve com a vida prática desencadeando um processo de regulação e sistematização doutrinária. Nesses casos
que estamos falando, nós “compramos” uma sistematização pronta de outro sistema jurídico e dizemos “se uma oferta
pública nos Estados Unidos se faz assim, então aqui deve ser parecido”. Isso é um desafio interessante, pois uma
característica do direito americano, principalmente na área societária, é ter uma preocupação menos voltada para
questões estritamente formais e mais voltada para standards jurídicos. Questões como comportamento da
administração, dever de diligência e deveres fiduciários vão ganhando conteúdo. A jurisprudência da CVM tem um
papel importante para dar conteúdo concreto a essas discussões, suprindo omissões na área da arbitragem (que é
confidencial) e do Poder Judiciário (que é pouco confrontado com essas discussões).
RDSM&A: Se você pudesse indicar uma área ou habilidade específica da prática de M&A no Brasil para se atualizar
com a experiência estrangeira, qual seria?
Paulo: É difícil dizer, porque a experiência estrangeira não pode ser simplesmente importada. Isso decorre do dia a
dia da vida empresarial. A beleza do direito comercial nos últimos 600 ou 700 anos é o fato de que o empresário, em
função da sua necessidade, organiza os fatores de produção em vista do seu interesse econômico, visando ao lucro.
A regulação estatal vem depois. Ninguém nunca saiu de casa dizendo para a esposa que ia inventar a sociedade
anônima e voltava mais tarde para o jantar. Não é assim que acontece. Em seus três pilares fundamentais, que são
limitação de responsabilidade, circulação das ações e votação por maioria, a sociedade anônima nada mais é que
uma derivação do direito marítimo. É difícil dizer quais competências jurídicas precisam ser importadas ou estão em
falta no Brasil. Para responder mais diretamente à pergunta, penso que a necessidade de nos acostumarmos a
operações, nas quais não exista acionista controlador e quem decida sejam os membros do Conselho de
Administração (ou os acionistas diretamente), seja uma habilidade a desenvolver. Isso envolve questões de atenção
concreta aos deveres fiduciários e a questões de governança corporativa que se vai aprendendo a pouco e pouco. Há
aí uma diferença fundamental esquecida do direito americano para o brasileiro. O sistema americano, de uma certa
maneira, é feito para proteger o board da interferência dos acionistas, que podem muito pouco. O sistema brasileiro,
ao contrário, foi originalmente concebido para proteger o acionista minoritário do controlador e dos conselheiros
indicados pelo controlador. São dois sistemas opostos. A nova feição do Conselho de Administração e dessa eventual
oposição entre a visão do Conselho e a dos acionistas é algo com que temos de aprender a conviver. É uma questão
de saber qual interesse proteger. O Prof. Alfredo Lamy Filho dizia que o Conselho é uma assembleia permanente,
uma assembleia de poucos. Saber se a visão que deve prevalecer é do Conselho de Administração ou dos acionistas,
os verdadeiros donos do negócio, é também uma ideia que estamos aprendendo aos poucos.
RDSM&A: Essa mudança é algo que realmente se tem visto nos últimos anos. Como vê a influência do direito
europeu nesse campo?
Paulo: Às vezes, também se discute a ideia de tentar adaptar a atuação de um Aufsichtsrat (Conselho de Supervisão
do direito alemão, comparável ao Conselho de Administração brasileiro) para o Brasil, o que é bastante complexo.
Para que serviria um Conselho de Supervisão, até pela sua composição paritária? A própria tradução já é complexa,
porque o Aufsichtsrat não é um Conselho de Administração, ele é um Conselho de Supervisão que convive com a
Diretoria, um Vorstand (órgão da sociedade anônima alemã comparável à diretoria do direito brasileiro). Então, essa
ideia do direito continental vis-à-vis a sistemática americana em que o board é uma entidade quase soberana nos
coloca entre dois sistemas, talvez num processo de transição, num processo de confronto entre sistemas jurídicos
particularmente interessante.
RDSM&A: O Brasil é um dos países com as maiores taxas de litigância de M&A no mundo, a maior parte delas
coberta por sigilo em arbitragem. Você acha que nós, advogados brasileiros, estamos fazendo algo errado no
processo de M&A para gerar tanta litigância? Ou é uma questão cultural ou de mercado?
Paulo: Eu tenho dúvidas acerca dessa premissa de que a litigância é alta. Se você considerar em bases relativas, ou
seja, que quase todo contrato de M&A vai resultar em um litígio, eu tendo a concordar. Mas, em termos de experiência
ou cultura, o tamanho da nossa economia comparado com o da economia americana, nós estamos longe de ser tão
litigiosos quanto os americanos. O americano litiga por quase tudo. Ele faz isso porque a justiça é rápida, eficaz. Mas
aqui a justiça não é tão eficaz e certamente não tão rápida, o que tem levado a um desenvolvimento da arbitragem na
área do direito societário. Não vejo o Brasil tão litigioso assim, a não ser em bases relativas. Na área societária, a
própria companhia muitas vezes não dura tanto tempo quanto o processo judicial. Mas, como estudioso e aprendiz,
fato é que os litígios ensinam pouco, pela demora do processo judicial e pelo sigilo da arbitragem. Isso é uma pena. A
CVM tem jurisprudência administrativa de muita qualidade que vem se formando no curso dos anos, mas nós
esquecemos que só 0,5% das sociedades empresárias brasileiras são representadas pelas S.A. e, dentro desses
0,5%, só 0,5% são companhias abertas. É 0,5% ao quadrado. O quanto essa jurisprudência representa de algo
educativo para nós todos? A relevância é mínima na S.A. Quanto às limitadas [...] bom, é como dizia um querido
amigo ex-diretor da CVM: no Brasil, só se regulamenta aquilo que está dando certo, e aí deixa de dar. Tínhamos uma
cultura já sedimentada de sociedades limitadas de mais de 70 anos e que foi deixada para trás pela regulamentação
do Código Civil de 2002, que nem é tão boa assim.
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RDSM&A: Falando especificamente da privatização da Telebras, você tirou alguma lição profissional importante dessa
operação, tal como a negociação da operação ou de alguma cláusula, e poderia de compartilhar conosco?
Paulo: A operação foi uma cisão da Telebras criando 12 “Baby Brás” e, em seguida, o leilão público de cada uma
delas. Foi uma operação interessante, mas difícil pelo lado político. O governo teve que derrubar uma infinidade de
liminares para viabilizar o leilão. Precisava registrar 12 companhias nos Estados Unidos ao mesmo tempo. Sem
mencionar os ajustes contábeis etc. Em decorrência da operação, uma das companhias resultantes da cisão, a
Telemar, acabou se tornando controladora de 16 companhias abertas indo do Amazonas ao Rio de Janeiro. Foi
interessante, meses depois, o desafio de fazer a incorporação de 16 companhias em uma só, tudo ao mesmo tempo,
inclusive pela complexidade internacional. Outra operação interessante foi a desmutualização da Bolsa de Valores de
São Paulo. Como transformar uma associação civil centenária em uma companhia aberta, foi um desafio bastante
significativo. Não se tinha notícia de uma operação semelhante anterior. Mas aquilo que dá certo acaba sendo a
maneira correta de fazer. Esse paradigma foi seguido também nas operações de BM&F e Cetip. Ninguém quis fazer
essas operações do zero de novo. Todo mundo queria fazer, na medida do possível, algo igual ao modelo da
Bovespa, porque se deu certo uma vez, provavelmente, vai dar certo de novo. O único risco que devo alertar é que,
às vezes, certas características de uma operação decorrem de situações específicas, e assim a reprodução de certas
características daquela operação anterior acaba entrando ali como a quinta roda do carro. Como eu falei
anteriormente: algumas operações precisam ser estudadas como partituras.
RDSM&A: O mercado de venture capital cresceu bastante na última década no Brasil. Quais as principais diferenças
que você nota na prática entre um M&A e um VC ou um private equity? Existe alguma diferença nessas áreas que
você acha que o mercado brasileiro ainda não captou bem?
Paulo: É como lidar com uma criança, com um adolescente e com um adulto. Estabelecer para uma criança a
obrigação de se comportar como um adulto não vai funcionar; ela não está preparada para aquilo. Eu vejo isso num
venture capital. Existe ali uma série de obrigações que, se você for analisar bem, acaba ocorrendo um certo acordo
tácito de que uma parte não vai cumprir desde logo certas obrigações típicas de uma companhia de grande porte e
que a outra não o vai exigir, exceto quando o negócio dá errado. Em certas circunstâncias, alguém saca o contrato da
gaveta e o invoca para exigi-la. Isso estraga a relação que, às vezes, ainda nem começou. O private equity,
especificamente, envolve, da parte de quem faz o investimento, um descompasso muito claro entre alguém que
valoriza a competência gerencial do receptor do investimento; mas este, às vezes, esquece que o dinheiro não
pertence a quem faz diretamente o investimento. O dinheiro pertence a terceiros que querem o dinheiro de volta.
Ademais, quem faz o investimento às vezes esquece que fez o investimento em função de uma certa competência do
target que precisa ser preservada, e esse gestor de private equity acaba mudando justamente essa competência que
justificou a operação. É como se o gestor investisse numa empresa familiar que produz queijo há 80 anos e tentasse
mudar o jeito de fazer o queijo, e aí não dá certo. Frustra a companhia que recebe o investimento e frustra o
investidor. Essa noção de que a companhia tem estágios e capacidades gerenciais crescentes precisa ser entendida.
Não dá para fazer uma diligência legal numa companhia num estágio angel ou num estágio VC com os mesmos
padrões que se faz numa empresa do porte da Vale, por exemplo. São coisas completamente diferentes. A conclusão
potencial termina sendo que o investimento não deveria ser feito, porque a companhia tem níveis de organização e
gerência muito incipientes. Mas foi a despeito disso que ela despertou a atenção do investidor. O advogado precisa
entender que quem faz o negócio e decide o negócio é o empresário. O advogado só aponta os riscos. Quem decide
tomar ou não o risco é o empresário. Na nossa perspectiva, provavelmente, não tomaríamos risco nenhum e não
faríamos negócio nenhum. Às vezes se presta pouca atenção para esses estágios da vida empresarial, que envolvem
competências diferentes, competências crescentes.
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