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Lei 14.195/2021 ressuscita problemas antigos


Mudança estabelecida pelo diploma fará com que mais transações com partes
relacionadas tenham de ser aprovadas em assembleia

Por
Paula Lepinski novembro 15, 2021

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Legislação e Regulamentação, Fusões e aquisições, Reportagens


. Governança, M&A, transações com partes relacionadas, parecer 35, Lei 14.195/21

O fato de essas transações irem para assembleia encontra um obstáculo considerável: o dispositivo da lei
societária criado para impedir o voto do acionista controlador em situação de conflito de interesses | Imagem:
freepik

R eestruturações societárias são sempre acompanhadas com lupa


pelos acionistas minoritários, mas se envolverem partes
relacionadas o escrutínio é redobrado. E com razão. Em
incorporações e fusões nessas condições, não há dois
controladores um em cada sociedade
controladores — um em cada sociedade —
buscando necessariamente o melhor para seus investidores, o que aumenta
o potencial de conflito de interesses. Por isso, numa tentativa de aumentar a
proteção às minorias, a Lei 14.195/2021, criada a partir da polêmica MP
do Doing Business, estabeleceu mudanças regulatórias relacionadas a essas
operações. De acordo com o diploma, transações celebradas entre partes
relacionadas que acarretem a transferência de mais de 50% dos ativos
devem ser votadas em assembleia de acionistas. O problema é que ao
criar essa regra a Lei 14.195 vai de encontro ao Parecer de Orientação 35 da
Comissão de Valores Mobiliários (CVM).   

“Tudo estava funcionando bem, e então criaram uma lei que vai trazer uma
série de discussões de volta”, critica Marcelo Trindade, ex-presidente da
autarquia e sócio do Trindade Sociedade de Advogados. Ele participou junto
de Luiz Antônio de Sampaio Campos, sócio do BMA, e Pablo Renteria, sócio
do Renteria Advogados, do quarto encontro em homenagem aos 45 anos da
Lei das S.As, realizado na Conexão Capital, seção de debates ao vivo da
Capital Aberto.  

Criado em 2008, o Parecer 35 nasceu com a audaciosa missão de pôr fim aos
recorrentes embates entre controladores e minoritários em três tipos de
operações envolvendo companhias do mesmo grupo econômico: fusões,
incorporações e incorporações de ações. O documento estabelece de forma
detalhada os deveres fiduciários dos administradores nessas transações e
propõe duas soluções para mitigar conflitos de interesses: a constituição de
um comitê independente que negocie a operação e submeta suas
recomendações ao conselho de administração; ou que a transação seja
condicionada à aprovação da maioria dos acionistas não-controladores em
assembleia. Tradicionalmente, as empresas optam pela primeira opção como
boa prática de governança. Mas agora, com a edição da Lei 14.195, se a
operação acarretar transferência de mais de 50% dos ativos — não importa
qual seja seu tipo e se a companhia está disposta a montar um comitê
independente ou não —, a deliberação em encontro de acionistas é o único
caminho.  

Cabe destacar que o fato de essas transações irem para assembleia encontra
um obstáculo considerável: o dispositivo da lei societária criado
para impedir o voto do acionista controlador em situação de conflito de
interesses. O artigo 115 trata das situações em que o acionista controlador não
deve votar em assembleia, seja porque aufere um benefício exclusivo com a
operação a ser deliberada, seja porque está em situação de conflito de
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interesses. Este segundo aspecto revelou-se, ao longo do
tempo, bastante polêmico. Isso fica claro na jurisprudência da CVM sobre o
assunto, que ora pende para defesa do conflito formal (aquele em que é
claro o duplo interesse do acionista e, por essa razão, ele fica impedido de
votar na assembleia) e ora se mostra a favor do conflito material (que só se
caracteriza quando o benefício do acionista é comprovado posteriormente,
liberando-o, assim, para o exercício do voto).  

Hoje, como um número reduzido de transações com partes relacionadas


passa por assembleia, a autarquia é chamada a se manifestar sobre
situações de impedimento de voto poucas vezes no ano. Mas com o
aquecimento do mercado de M&As e a mudança estabelecida pela Lei
14.195, é provável que a CVM tenha que se debruçar sobre esse

tema nebuloso com muito mais frequência. Por isso, há quem defenda que


regras de transparência, procedimentos acerca de como a transação é
negociada e aprovada pelos administradores e reforços das
responsabilidades dos conselheiros independentes na aprovação dessas
transações ainda são as melhores formas de prevenção de abusos em
transações com partes relacionadas. 

O papel dos conselheiros


No campo dos deveres explorados pelo Parecer 35, algumas discussões
também persistem. Luiz Antonio Campos entende que, por mais intrincadas
que essas operações possam ser, não faz sentido a CVM, ao analisar esses
casos, exigir dos administradores um juízo de valor sobre a transação. Esse
tipo de atitude poderia limitar o apetite ao risco de conselheiros e diretores e
afastá-los de operações complexas, mas com potencial de beneficiar a
empresa. “Em companhias com acionista controlador, os administradores
ainda conseguem preservar certa tranquilidade. Eles têm as ‘costas mais
largas’, já que as transações com certeza serão aprovadas pelo controlador e
o ônus não cairá somente sobre eles [se o regulador entender que houve
conflito de interesses na transação]”, observa Campos. 

Trindade concorda. “É extremamente importante que o escrutínio do


regulador seja feito com um juízo de realidade, a partir de como as coisas se
passam no mundo real, para que não criemos administradores medrosos e
não-empresários”, afirma o advogado. Também é primordial, ressalta
Campos, que a análise da CVM leve em conta a intenção da companhia com
a operação, e não seu resultado. Há inúmeros exemplos de M&As que
acabaram não gerando as vantagens econômicas pretendidas pela
administração, mas isso não significa que conselheiros e diretores feriram os
seus deveres de diligência e lealdade. “A obrigação da administração é de
meios, não de resultados. Esse deve ser o padrão de revisão”, frisa Campos.  

Esses são aspectos que devem ser observados com atenção, principalmente
diante da maratona de fusões e aquisições que tem acontecido no Brasil. E
uma vez que muitas dessas operações podem envolver partes relacionadas,
Campos defende a extensão das orientações do Parecer 35 para mais tipos
de transações, como, por exemplo, aquisições. “Na minha visão, seria melhor
se o documento tivesse sido consagrado para outras transações com partes
relacionadas [além das fusões e incorporações]. Esse é um passo importante

que eu recomendaria hoje”, afirma o advogado. Diante do êxito — ainda que


nem sempre completo — do Parecer 35 em evitar pelejas entre acionistas
controladores e minoritários, a sugestão pode ser uma boa ideia.  

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