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PACTOS SOCIETÁRIOS LEONINOS

PACTOS SOCIETÁRIOS LEONINOS


Revista dos Tribunais | vol. 760/1999 | p. 64 - 73 | Fev / 1999
DTR\1999\142

Hermes Marcelo Huck


Professor titular do Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. Professor livre-docente e professor doutor de
Direito Internacional na mesma faculdade. Mestre em Direito pela University of
California, Berkeley. Advogado em São Paulo.

Área do Direito: Comercial/Empresarial


Sumário:

1. O contrato de joint venture e as cláusulas de retirada de sócio - 2. Opção de compra


de quotas ou ações. O pacto leonino - 3. Hipóteses de ilicitude do direito de retirada
mediante o exercício de opção em sociedade leonina - 4. Doutrina estrangeira. A opção
de compra em documento apartado - 5. A nulidade do pacto leonino

1. O contrato de joint venture e as cláusulas de retirada de sócio

A internacionalização da economia brasileira tornou freqüente na experiência dos


negócios o contrato de joint venture ou associação. Empresas estrangeiras, desejosas de
investir e operar no mercado nacional, ao invés de arriscarem-se individualmente,
buscam na sociedade com empresas brasileiras, já experientes em determinadas áreas,
formas de reduzir os riscos do investimento, de operar com mais eficiência e de queimar
etapas no processo de implantação, vantagens que o conhecimento prévio do mercado
deve possibilitar. Essa associação vem instrumentada por um acordo base, denominado
contrato de joint venture. Conceito importado do direito anglo-americano, foi consagrado
na prática jurídica e negocial brasileira e passou a ser utilizado para regular a associação
de duas pessoas jurídicas independentes que constituem uma terceira, objetivando
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empreitadas comuns.

No Brasil, muito embora a recente história societária também relate joint ventures
contratadas exclusivamente por duas (ou mais) empresas nacionais, constata-se que o
modelo foi usado com maior intensidade para formalizar parcerias entre sociedades
brasileiras e estrangeiras. Nessas figuras associativas presume-se a sinergia decorrente
do poder de investimento e da tecnologia do parceiro estrangeiro com o conhecimento
do mercado e a experiência local do parceiro brasileiro. Cuidados e desconfianças
recíprocas são previsíveis em casamentos de tal natureza, quando os atores acreditam
conhecer as vantagens comparativas da associação, mas certamente ignoram as
desvantagens particulares do empreendimento comum. É detalhada e trabalhosa a
negociação e elaboração de contratos para a implementação de uma joint venture, pois
contêm complexas proteções e salvaguardas necessárias a uma nova sociedade em que
as culturas empresariais e as diferenças de poder específico entre os parceiros são
flagrantes. O sócio brasileiro teme a força econômica e o controle da tecnologia que seu
parceiro multinacional detém e, em contrapartida, este pretende proteger-se contra as
incertezas de um mercado novo, que seu sócio brasileiro, em princípio, conhece melhor.

Válvulas de escape ou rotas de saída são contratualmente previstas nessas associações.


Os parceiros constroem sistemas que, caso falhe o projeto, lhes permitam uma retirada
com prejuízos previsíveis, controlados e admitidos por antecipação. Nesse quadro são
desenhados acordos de acionistas e ajustes de opções recíprocas, nos quais, mediante
valores prefixados, os novos sócios definem as condições para futuras compras e vendas
de suas participações societárias na joint venture. Não raras vezes, é o sócio estrangeiro
que, ante um possível insucesso da associação, negocia uma fórmula de saída do
empreendimento, definindo previamente o valor pelo qual venderá sua participação ao
parceiro nacional. São as válvulas de escape, os way out, incansavelmente debatidos,
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alguns até de duvidosa legalidade, como adiante se constatará.

O desafio de uma análise concreta de caso para a elaboração de parecer jurídico


despertou a necessidade de uma reflexão teórica mais detalhada sobre alguns aspectos
relevantes do tema. Aspectos que muita vez são tomados como dados juridicamente
incontestes e incontroversos num complexo processo de negociação, não raro têm como
único fundamento apenas uma irrefletida prática continuada pelo mercado. Os
mecanismos de saída da nova sociedade, formulados para um ou outro sócio, são temas
desagradáveis no repertório da engenharia de uma joint venture. Discutir o way out
quando se inicia um novo empreendimento, estruturado sobre a convicção do sucesso, é
a admissão de um possível fracasso, que o empresário não aceita encarar. Entretanto,
tais mecanismos estão presentes na grande maioria dos novos negócios. Com efeito, é
reiterada a outorga de opções - recíprocas ou unilaterais - entre sócios objetivando a
saída do negócio comum. Se a associação falhar, se as expectativas não forem
alcançadas, qualquer dos sócios - ou um deles - tem o direito de retirar-se da sociedade,
cabendo ao outro a obrigação de pagar determinado preço pela participação societária
do retirante. É uma fórmula sábia e eficiente para evitar pendências de difícil solução,
consumidoras de tempo e de recursos e fatais causadoras de desgastes irrecuperáveis
aos sócios e, principalmente, à própria sociedade. A alternativa de retirada será eficaz,
na medida em que seja praticamente viável e legalmente válida.

2. Opção de compra de quotas ou ações. O pacto leonino

Entretanto, como se deve encarar uma fórmula de opção pela qual um dos sócios pode
retirar-se da sociedade, exercendo seu call e obrigando os demais a pagar-lhe
exatamente o valor investido na sociedade, desconsiderando-se eventuais perdas por ela
sofridas no curso de suas atividades? Não raro, nos contratos de joint venture, uma das
partes exige a garantia de que, se o empreendimento fracassar economicamente, terá
ela o direito de retirar-se da sociedade, ficando obrigados os demais sócios a lhe restituir
integralmente o valor investido no negócio mal-sucedido. Inequivocamente há nessa
hipótese um contrato de opção; o preço é facilmente determinável e, em princípio,
exercida a opção, uma parte dispõe de suas quotas ou ações e a outra deve pagar o
preço predefinido. Porém, completada a operação, teremos, na prática, um sócio
retirando-se da sociedade, recuperando exatamente o capital que inverteu, sem ter
corrido o risco do negócio. Exercendo a opção de venda, um dos sócios obriga os demais
a comprar-lhe as quotas ou ações por preço previamente ajustado e sem qualquer
consideração pelo possível fracasso empresarial dos negócios sociais.

O ponto crucial do tema reside na discussão sobre a possibilidade jurídica de, exercendo
o direito de opção, o sócio retirar-se da sociedade, imune aos riscos inerentes à
empresa, obrigando os demais sócios a repor-lhe integralmente o valor investido. É
curial que o direito de retirada, mediante o exercício da opção por um dos sócios,
somente será exercido se o preço previsto na opção for superior ao valor contábil ou de
mercado da participação societária que se pretenda alienar. Nessa hipótese, a
rentabilidade prevista pelos sócios ao início da joint venture não ocorreu. A empresa
comum não foi tão lucrativa como esperavam os parceiros e um deles pretende dela
retirar-se, recebendo de volta o mesmo valor que investiu, imune às eventuais perdas
de um mau negócio. O direito positivo brasileiro, num primeiro momento, veda tal
prática. São despidos de maiores dúvidas os textos do art. 288 do Código Comercial e
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art. 1.372 do CC brasileiro.

Os dispositivos legais são vetustos e não faltam argumentos afirmando a perda de sua
eficácia. Parece-nos que as maiores objeções existentes à permanência da validade e
eficácia de tais artigos residem, em primeiro lugar, na prática reiterada de tais pactos de
opção que tacitamente teria revogado a lei pelo desuso e, acessoriamente, na
regulamentação das sociedades por ações e de responsabilidade limitada - posterior à
edição dos Códigos Comercial e Civil - que teria tornado inócuas aquelas disposições.
Nessa linha linear de raciocínio, a limitação da responsabilidade dos sócios criada pela lei
especial funcionaria como um permissivo para que um deles abandonasse a sociedade,
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obrigando os demais a pagar ao retirante o valor inicial investido, sem consideração pelo
insucesso comercial da empresa comum.

É conceito assente que a comunhão de escopo funciona como o elemento diretor e


unificador de qualquer relação societária, seja qual for a forma jurídica através da qual
se exteriorize. Se, num contrato qualquer, as partes posicionam-se dialeticamente frente
a frente, já nas sociedades colocam-se lado a lado, voltadas para o fim comum. É esse
desenho que define a própria filosofia informadora do conceito básico da sociedade. No
caso específico das sociedades comerciais, o fim comum almejado, em torno do qual - e
para o qual - reúnem-se os sócios, é a produção de lucros. Há uma decisão conjunta de
conjugação de esforços e trabalho, segundo uma estrutura organicamente estruturada
em busca desse objetivo.

Contudo, o lucro não representa necessariamente o resultado de uma atividade


societária, pois está ela permanentemente sujeita aos riscos da álea empresarial. Nesse
sentido, pode-se afirmar que a noção de risco é inerente a toda a atividade de empresa.
Desse risco, é relevante frisar, participam - e devem participar - todos os sócios,
conforme os respectivos quinhões, pois estão juntos, uns ao lado dos outros, na
perseguição do objetivo comum. Ademais, os argumentos éticos a justificar o lucro,
nascidos nos tempos do Mercantilismo, mencionam o risco empresarial como
contrapartida moral do lucro, ou vice-versa.

Em tal quadro deve enquadrar-se o tema da presente discussão. Nessa perspectiva é


possível afirmar-se que a atribuição de todos os lucros da sociedade a apenas um dos
sócios ou a exoneração de algum sócio de suportar os prejuízos eventualmente apurados
- a hipótese analisada - é incompatível com o contrato de sociedade. De fato, a
participação de todos, em conjunto, e na proporção de seus respectivos investimentos,
nos riscos do negócio é corolário do princípio da comunhão de escopo e, portanto,
elemento base no contrato de sociedade.

J. X. Carvalho de Mendonça já se detinha sobre a hipótese, chamando a atenção para o


fato quando afirmava ser "contrária ao espírito do contrato a cláusula libertando em
absoluto um ou mais sócios de concorrer nas perdas sociais, para deixá-las a cargo de
outro ou outros sócios (...). Assim como os lucros são comuns aos sócios, do mesmo
modo o são as perdas. Este fato desvia a sociedade dos contratos aleatórios, onde um
contratante deve ganhar e outro perder. A sociedade corre a álea do comércio; quando
perde, perdem todos os sócios; perdendo um, os outros não podem ganhar. O contrato
social que contivesse essas cláusulas, a saber: totalidade do lucros a um dos sócios, a
privação dos lucros para um dos sócios, a libertação de algum sócio dos prejuízos
sociais, seria nulo, pois faltaria a seu fim. A sociedade é que se acharia nula e não a
cláusula proibida. A nulidade é de ordem pública (...). As sociedades em que figuram tais
cláusulas, diretas ou oblíquas, são chamadas leoninas, alusão à fábula do leão que, indo
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à caça com outros animais, se apoderou sozinho de toda a presa".

Eis aí a inteligência do art. 288 do CCo (LGL\1850\1) e do art. 1.372 do CC,


conseqüências diretas do princípio da comunhão de escopo societário, elemento
essencial do contrato de sociedade. Chega-se mesmo a afirmar que tão essencial é o
risco compartilhado em qualquer sociedade, que os artigos do Código Comercial e do
Código Civil (LGL\2002\400) seriam despiciendos, na medida da absoluta impossibilidade
de existência de uma sociedade afastada de tal princípio. O risco do negócio é princípio
comum a todos os sócios, que dele não podem fugir ou afastar-se.

Em leitura mais recente, Fábio Konder Comparato assinala que "a societas leonina não é
sociedade: a sua nulidade não decorre de uma regra especial, de ordem pública, mas
antes da simples aplicação do princípio geral de que a sociedade é um contrato com
comunhão de escopo (...). Assim, ainda que não houvesse norma específica proibindo
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esse pacto iníquo, ele seria vedado por inferência lógica".

3. Hipóteses de ilicitude do direito de retirada mediante o exercício de opção em


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sociedade leonina

Como antes mencionado, no Brasil, a partir da limitação da responsabilidade individual


dos sócios, observada nas sociedades por quotas de responsabilidade limitada e nas
sociedades por ações, deu-se pouca atenção ao problema da exoneração do sócio de
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participação nos prejuízos da sociedade. Essa, porém, parece ser uma visão
excessivamente limitada do problema. Se é verdade que nas sociedades por quotas de
responsabilidade limitada, desde que pago o montante total do capital social, e nas
sociedades por ações, desde que integralizadas as ações subscritas, o sócio ou acionista
deixam de responder diretamente pelas obrigações assumidas pela sociedade, não é
menos verdade que a apuração de prejuízos afeta diretamente seus patrimônios
individuais. Com efeito, à medida que a sociedade acumula prejuízos, o valor das quotas
ou das ações é proporcionalmente reduzido. Essa redução atinge não só o valor
patrimonial atual da participação no capital, como também em eventual reembolso a que
faria jus o sócio em caso de liquidação da sociedade.

Torna-se evidente que, mesmo nas sociedades em que há limitação da responsabilidade


dos sócios, estes são diretamente afetados em seu patrimônio pela ocorrência de perdas
sociais. Aliás, é justamente essa participação nas eventuais perdas decorrentes do
empreendimento que distingue a posição dos sócios no contrato de sociedade daqueles
que celebram contratos de intercâmbio parciários (por exemplo, o mútuo com
participação do mutuante em parte dos lucros do mutuário e a participação dos
empregados no lucro da empresa), bem como dos debenturistas e dos titulares de
partes beneficiárias. Nestes casos, ao contrário do contrato social, a parte participa do
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lucro da sociedade - se houver - sem, entretanto, correr o risco do negócio.

Esta deve ser a leitura contemporânea dos citados artigos dos Códigos Comercial e Civil,
cuja essência não foi afetada quer pela criação da sociedade por quotas de
responsabilidade limitada, quer pela sociedade por ações, ou mesmo pela profunda
transformação dos tempos. O risco do empreendimento segue sendo parte essencial da
sociedade e sua supressão contratual é inaceitável. Como bem aponta Konder
Comparato, há figuras jurídicas na sociedade moderna que permitem a participação nos
lucros sem o risco de incorrer em prejuízos sociais. Os debenturistas e os detentores de
partes beneficiárias estão vinculados ao destino da sociedade, mas apenas para
partilharem resultados positivos. Já o quotista ou acionista, mesmo tendo integralizado
sua subscrição, deve necessariamente correr o risco das perdas, ainda que estas se
reflitam tão-somente na redução do valor patrimonial de suas quotas ou ações.
Ingressar numa sociedade tendo garantido apenas o aumento do valor patrimonial do
investimento macula e atinge o princípio basilar do risco, que deve informar e estruturar
qualquer contrato de sociedade.

4. Doutrina estrangeira. A opção de compra em documento apartado

Bem se vê, portanto, que, a despeito da regulamentação das sociedades por quotas de
responsabilidade limitada e por ações, ao lado do formidável processo de modernização
pelo qual passaram o direito societário e a prática negocial no Brasil no curso das
últimas décadas, a norma contida no art. 288 do CCo (LGL\1850\1) e no art. 1.372 do
CC continua a encontrar aplicação não apenas no que respeita aos lucros, mas também
à necessária contribuição dos sócios nas perdas sociais.

O dispositivo que priva o sócio do direito de participar dos lucros ou alternativamente o


exclui dos riscos de eventual prejuízo vicia o contrato de sociedade. Neste ponto, em
consonância com o direito positivo brasileiro, é conveniente examinar a técnica
desenvolvida pelas dogmáticas italiana e francesa destinada a solucionar o problema de
tais sociedades, chamadas de "leoninas", pois é justamente na doutrina e jurisprudência
desses direitos nacionais onde melhor e mais profundamente tem sido tratado e
analisado o tema.

Sraffa, ainda em 1915, teve oportunidade de comentar decisão da Suprema Corte de


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Torino que, confirmando decisão da Corte de Genova, considerou inválido o contrato de


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sociedade em que se exonerou um dos sócios de participar das perdas sociais. Giuseppe
G. Auletta também se manifesta no sentido de que, sendo a comunhão de escopo um
elemento essencial do contrato de sociedade, a participação dos sócios nos lucros e nas
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perdas sociais é inerente a tal contrato. Para Auletta, o pacto que tolhe ao sócio a
participação em lucros ou em perdas priva de causa o contrato de sociedade. Assim, a
sanção de nulidade imposta pelo ordenamento à sociedade é decorrência da inexistência
de causa no tipo contratual. Em idêntica corrente doutrinária é de se lembrar a clara
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posição de Giuseppe Ferri.

Tratando do tema - e ainda na mesma linha de raciocínio - merecem destaque os


privatistas J. Hémard e F. Laurent. O primeiro elenca, dentre os elementos essenciais do
contrato de sociedade, a participação dos sócios nos benefícios auferidos com a atividade
comum e sua contribuição no caso da ocorrência de perdas. Assim, na falta desse
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elemento, Hémard considera a sociedade como leonina e, portanto, nula. A opinião de
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Laurent, que mais adiante será melhor detalhada, vai exatamente no mesmo sentido.

Explicitadas razão e finalidades do art. 288 do CCo (LGL\1850\1) e do art. 1.372 do CC


brasileiro, cabe mencionar as formas pelas quais os pactos de atribuição exclusiva dos
lucros ou de exoneração dos prejuízos podem surgir. Desde logo, e não poderia ser
diferente, essas cláusulas raramente são enunciadas de forma explícita no instrumento
de contrato social ou no estatuto de uma sociedade por ações. Havendo dispositivo legal
proibitivo, tais dispositivos buscam fugir à vedação contida na lei, vindo redigidos de
modo disfarçado e, muito freqüentemente, em documentos separados. Procuram as
partes, de forma indireta, atribuir os lucros a apenas um dos sócios ou, por outro lado,
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exonerar algum sócio da participação nas perdas sociais.

Hémard é contundente ao analisar essa questão, não hesitando em afirmar que "il reste
indifférent que la clause soit contenue dans un acte separé, car elle n'en faisait pas
moins corps avec les autres stipulations des parties, avec le contrat de societé pris dans
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son ensemble".

Giuseppe Ferri, criticando a tendência jurisprudencial italiana, consagrada na década de


30, que tratava de forma menos rígida o pacto de exoneração de perdas, quando
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formalizado por contrato em separado, lecionava que a autonomia do pacto de
exoneração, ainda que contida em instrumento a parte, era meramente formal. Para o
mestre, substancialmente, o pacto continuava intimamente ligado ao contrato de
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sociedade, sendo a ele vinculado e dependente.

Fábio Konder Comparato comentando, sob essa perspectiva, a lição de Ferri, sustenta
que "é indiferente que o pacto proibido seja parte integrante do contrato social, ou
venha separado deste, em acordos parassociais. Esta última circunstância pode, até
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mesmo, exacerbar o aspecto fraudulento da relação pseudo-societária". O
comercialista moderno atualiza a lição do início do século, mas mantém sua
característica básica de proteção ao conceito fundamental da estrutura societária.

Assim, não faria sentido jurídico - ou mesmo lógico - admitir que a simples estipulação
de cláusula de exoneração de prejuízos feita em contrato apartado fosse suficiente para
retirar da mesma a carga de ilicitude. Fora assim, por um esperto expediente de ordem
formal, as partes poderiam evitar a incidência de uma norma de ordem pública que,
como já se disse anteriormente, consubstancia o corolário do princípio da comunhão de
escopo, essencial em todo e qualquer contrato de sociedade. Nesse sentido, a boa,
tradicional e segura doutrina estrangeira e a sempre respeitada observação de
Comparato convergem para declarar nulo o pacto que retire ao sócio os riscos do
negócio, quer tal disposição seja parte do contrato de sociedade, quer venha inserta em
ajustes paralelos, o que ocorre na maior parte das vezes.

Em conclusão, não pode haver dúvida de que a inclusão da cláusula de exoneração de


prejuízos em um contrato separado, ou seja, num pacto parassocial, em nada modifica
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ou releva sua ilicitude. A cláusula é nula quer esteja dentro, quer esteja fora do contrato
de sociedade.

5. A nulidade do pacto leonino

É nesse quadro que deve ser incluída a indagação inicial sobre a validade dos pactos de
opção realizados em associações de empresas do tipo joint venture, quando as partes
prevêem, no início das negociações, fórmulas de saída - os way out - para os sócios e,
em muitos casos, garantindo a um deles o direito de retirada recebendo de volta
integralmente os recursos investidos. Estar-se-ia, nesta hipótese, em frente de um pacto
leonino, vedado pela lei civil e pela lei comercial? A resposta não enseja maior hesitação,
pois, nesse contexto, a opção de venda da participação societária estipulada pelos sócios
evidencia a exoneração de um deles das eventuais perdas sociais. À medida que a opção
é exercida e um sócio é obrigado a adquirir a participação societária do outro, sem
consideração pelas perdas ocorridas, estaremos em frente da nulidade do pacto.

Característica essencial de qualquer opção de venda é a fixação do preço e, justamente


com essa fixação, uma das partes - a que exerce a opção de venda - fica imunizada de
toda e qualquer variação negativa do valor patrimonial de suas quotas ou ações, em
decorrência de eventual acumulação de prejuízos da sociedade. Obviamente, o sócio
somente exercerá esse direito de retirada, exigindo o preço previamente pactuado, caso
a sociedade tenha sofrido prejuízos e seu investimento tenha sido desvalorizado. Para
exigir o cumprimento da opção, o preço desta deve ser maior do que o valor presente de
sua quota de capital. Recorde-se que, nas sociedades em que ocorre a limitação da
responsabilidade dos sócios, a aplicação do princípio de participação nas perdas sociais
não se dá necessariamente pela responsabilidade direta nos prejuízos. Como já se
mencionou anteriormente, é este efeito das perdas no patrimônio do sócio ou acionista
que distingue econômica e juridicamente sua posição daquela assumida pelo
debenturista ou pelo titular de partes beneficiárias, ou, ainda, dos que são partes nos
contratos de intercâmbio parciários. Esses beneficiam-se de lucros, e não respondem
pelas perdas. Numa sociedade em que ocorreram prejuízos, ainda que o sócio possa não
vir a ser diretamente chamado a suportá-los, pois o investimento feito está
integralizado, suas perdas serão compartilhadas com os demais sócios na redução do
valor patrimonial do investimento feito. Essa é a lógica econômica e jurídica da
sociedade empresarial.

Ausente a comunhão de escopo, aspecto funcional dos contratos associativos, a melhor


técnica do direito fulmina de nulidade, por completa inadequação ao conteúdo negocial,
a própria fórmula jurídica do contrato de sociedade. A nulidade da exoneração de um
dos sócios das perdas sociais, mediante a implementação de pactos de - ou semelhantes
à - opção de venda, mostra-se como matéria clássica do Direito, posto que vicia o ato
jurídico em seu objetivo fundamental. O tema era igualmente analisado com clareza e
profundidade já em 1893, com a maestria que consagrou Laurent como um dos nomes
marcantes da história do Direito. Em seu Principes de droit civil français, um dos pilares
do moderno direito civil, Laurent questionava a postura de Pothier quanto a pactos dessa
natureza, posição essa adotada antes do advento do art. 1.855 do CC francês, similar ao
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art. 288 de nosso CC. Na passagem mencionada, Laurent descreve - e condena -, com
a simplicidade de seu estilo direto, a hipótese de uma associação comercial em que, ao
final de alguns anos, por força de pacto preexistente e ajustado ao tempo do contrato
social, um dos sócios retira-se da sociedade, fazendo com que o outro lhe indenize o
valor de seus investimentos, desonerando-se das perdas ocorridas. É o exemplo típico
do moderno way out societário.

Ainda que utilizada amiúde, a fórmula adotada nas modernas joint ventures de garantir
uma saída econômica para qualquer dos sócios, mediante um contrato de opção que lhe
garanta o direito de retirada sem participar de eventuais perdas sociais, não pode
prosperar. Sua intensa prática recente não logrou ultrapassar o vício original de
nulidade. A comunhão societária exige que todos os parceiros participem, na proporção
de seus investimentos, dos sucessos e dos fracassos econômicos do empreendimento
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comum.

(1) O estudo da joint venture no Brasil vem sendo desenvolvido desde os anos 70,
valendo lembrar os trabalhos de Luiz Olavo Baptista, "A joint venture. Uma perspectiva
comparatista", Revista de Direito Industrial, Mercantil e Financeiro, v. 32, São Paulo :
Ed. RT, p. 56; "Les associations d'entreprises ( joint venture) dans le commerce
international", 2. ed., Pascal Durand-Barthez, LADJ, 1991; e ainda Rachel Sztajn,
"Contrato de sociedade e formas societárias", São Paulo : Saraiva, 1989, dentre outros.

(2) Código Comercial, art. 288: "É nula a sociedade ou companhia em que se estipular
que a totalidade dos lucros pertença a um só dos associados, ou em que algum seja
excluído, e a que desonerar de toda contribuição nas perdas as somas ou efeitos
entrados por um ou mais sócios para o fundo social". Código Civil (LGL\2002\400), art.
1.372: "É nula a cláusula, que atribua todos os lucros a um dos sócios, ou subtraia o
quinhão social de algum deles à comparticipação nos prejuízos".

(3) Tratado de direito comercial brasileiro. 6. ed. São Paulo : Freitas Bastos, 1963. v. 3,
p. 46. Ainda, no mesmo sentido, é de se conferir Waldemar Ferreira, Tratado de
sociedades mercantis, 5. ed., Rio de Janeiro : Ed. Nacional de Direito Ltda., 1958, v. 2,
p. 258 et seq.

(4) "O direito ao lucro nos contratos". In Direito empresarial. Estudos e pareceres. São
Paulo : Saraiva, 1990. p. 156.

(5) V. Waldemar Ferreira, op. cit., p. 262.

(6) A esse respeito, vale conferir Fábio Konder Comparato (op. cit., p. 153-154): "O
risco inerente ao negócio de sociedade não é apenas a inexistência de lucros, mas
também a ocorrência de prejuízos. O status socii acarreta, obrigatoriamente, a assunção
de uma quota-parte desses valores negativos. É este elemento, afinal, que marca a
diferença específica da sociedade em relação aos contratos de intercâmbio ditos
parciários, porque implicam a participação de uma das partes nos lucros ou benefícios
resultantes da atividade da outra parte no negócio. Assim, por exemplo, o mútuo com
participação do mutuante nos lucros do mutuário ou o contrato de trabalho com
participação nos lucros da empresa. Nesses tipos de contrato participante, existe sempre
uma contraprestação determinada pecuniariamente: o mutuário e o empregado não
assumem o risco do empreendimento, pois não participam das eventuais perdas que ele
possa acarretar. É também com base nesse elemento fundamental da participação nas
perdas que se pode distinguir a posição jurídica do acionista, de um lado, e a do
debenturista ou titular de partes beneficiárias, de outro. O acionista participa, em
qualquer hipótese, das perdas sofridas pela companhia, na medida em que o valor
patrimonial de suas ações vê-se afetado pelos resultados negativos que a sociedade
venha a apresentar no correr dos exercícios (como, correlatamente, esse valor
patrimonial é incrementado pelo acúmulo de reservas e lucros em suspenso).
Declarando-se a insolvência da companhia e abrindo-se o concurso falimentar, o
acionista, como qualquer sócio, só poderá ser reembolsado do valor de seu investimento
acionário pelo reliquat eventualmente existente, uma vez pagos todos os credores
sociais. O debenturista, diferentemente, é um credor da companhia emissora das
debêntures (Lei 6.404/76, art. 53). Quanto ao titular de partes beneficiárias, embora
não seja credor da companhia emitente dos títulos e se apresente, quanto aos lucros
sociais, em posição análoga à do acionista, não tem o status socii, pois não participa das
perdas sociais. O valor do resgate das partes beneficiárias não é afetado pela eventual
insolvência da companhia; e sobre a respectiva reserva os titulares desses papéis têm
preferência na hipótese de concurso (mesma lei, art. 48, § 3.º)".

(7) "La questione essenziale risoluta dalle due Corti e che offre campo ancora a qualche
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considerazione, oltre quelle già da noi esposte, consisteva nel conoscere se può esistere
una società valida allorchè qualcuno dei soci si assuma tutte le perdite, o come era
avvenuto nel caso preso in esame dalla Cassazione, si obblighi a rifare le possibili
differenze di svalutazione nella quota sociale competentegli, il che torna eguale" ( Rivista
del Diritto Commerciale, v. XIII, Milano, Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1915).

(8) "Dalla precedente ricerca appare chiaro come la comunione dello scopo costituisce il
punto centrale nella determinazione della causa del contrato di società. Da questo punto
di vista risalta tutto il valore dell'art. 1719 del Cod. Civ col quale si stabilisce la nullità dei
patti rivolti ad escludere un socio da ogni partecipazione ai guadagni o da ogni
contribuzione alle perdite (...). È invece, a me sembra, da ritenere che la nullità di tali
patti si sarebbe dovuta riconoscere, quand'anche non fosse stata espressamente
menzionata del legislatore, dacchè la società leonina è un contratto privo di causa" ( Il
contratto di società commerciale. Milano : Giuffrè, 1937. p. 110-111).

(9) "Le Società". In Trattato di diritto civile italiano, direzione di Filippo Vassalli. Torino :
Unione Tipografico Editrice Torinese. v. 10.º, tomo terzo, p. 22.

(10) "Les caractères spécifiques du contrat de société sont: 1.º - la constitution d'un
fonds commun au moyen des apports de chacun des associés (art. 1832, CCiv); 2.º - la
participation des associés aux bénéfices réalisés et leur contribution aux pertes subies
(même article); 3.º - le but des contractants de repartir entre eux, en tant qu'associés,
les gains effectués (affectio societatis). À défaut de l'un de ces caractères, il n'y a plus
de société (...). Étendue d'application de la nullité des sociétés léonines. - D'après
l'article 1855, il y a deux sortes de clauses léonines, celles qui donnent à l'un des
associés la totalité des bénéfices, celles qui affranchissent de toute contribution aux
partes (...). L'article 1855 ne doit pas être strictement interpreté, et c'est avec raison
que la jurisprudence se préoccupe moins de sa lettre que de son esprit" ( Théorie et
pratique des nullités de sociétés et des sociétés de fait. Paris : Recueil Sirey, 1926. p.
155-156).

(11) "La loi considère la société contractée sous l'une des conditions prévues par l'article
1855 comme une société léonine, c'est-à-dire comme une convention viciée dans son
essence; le rapporteur du Tribunal dit que la convention qui donnerait à l'un des associés
la totalité des bénéfices ou l'affranchirait de toutes de pertes n'est pas une société. Le
contrat est donc plus que nul, il est inexistant, la convention de la force avec la faiblesse
ne pouvant produire aucun droit" ( Principes de droit civil français. 5. ed. Paris : Libraire
A. Marescq Ainé, 1893. t. 26, p. 303-304).

(12) Segundo Giuseppe Ferri, "Raramente il patto leonino viene stipulato in forma
esplicita: per lo più il resultato viene raggiunto indirettamente attraverso l'adozione di
criteri di riparto predisposti appositamente a tal fine. Ma anche in questa ipotesi la
dottrina ritiene di essere in presenza di un patto leonino (cf. Ferri, Delle società, p. 164;
Greco, Società, p. 104; Graziani, Dir. soc., p. 71; Simonetto, Responsabilità, cit., p. 164
et seq.)" (op. cit., p. 21, nota 5).

(13) "É indiferente estar a cláusula contida em documento apartado, pois ela estará tão
integrada com as demais disposições das partes, tomando-se o contrato de sociedade
em seu conjunto." Nota 2, p. 160, op. cit.

(14) "La giurisprudenza si è mostrata meno rigida specie quando l'esonero dalle perdite
è contenuto in una convenzione separata" (op. cit., p. 23, nota 7).

(15) Op. cit., p. 23, nota 6.

(16) Op. cit., p. 159.

(17) "Pothier suppose encore qu'après m'être associé avec un marchand je me fais
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PACTOS SOCIETÁRIOS LEONINOS

assurer, au bout de quelques années, la somme que j'ai apportée à la société, par mon
associé, lequel se charge du risque des pertes moyennant une part que je lui cède dans
les bénéfices. Cette convention est elle valable? Oui, dans l'espèce, dit Pothier; c'est un
contrat aléatoire qui me décharge de toute perte, mais moyennant un équivalent que
reçoit mon associé. Si la convention était faite lors du contrat ou peu de temps après,
elle serait nulle comme déguisant un prêt usuraire. Les auteurs français enseignent, avec
raison, que cette opinion de Pothier ne peut plus être suivie, puisque, par dérogation à
l'ancient droit, l'article 1855 prohibe la clause qui affranchit l'un des associés de toute
contribution aux pertes. La jurisprudence est d'accord avec la doctrine" ( Principes de
droit civil français, p. 304).

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