Você está na página 1de 20

As cláusulas << dispute boards>> no contrato de engenharia

Introdução
Desde a construção do Canal da Mancha, inaugurado em 1994, tem-se
desenvolvido uma atenção, sobretudo a nível jurídico, em torno dos
contratos de construção de obras de grande envergadura (ou dimensão). A
complexidade destes contratos e a sua duração necessariamente alargada
afetam inevitavelmente os interesses económicos subjacentes das respetivas
partes. Não se pode esquecer que essas relações são caracterizadas tanto
pela complexidade técnica quanto jurídica e envolvem enormes
investimentos por parte das construtoras. Estamos a falar de obras
rodoviárias e ferroviárias, aeroportos, etc.
São regimes contratuais que envolvem uma pluralidade de relações que nos
obrigam a refletir sobre a articulação especial da disciplina jurídica.
A complexidade técnica da obra e a complexidade jurídica da relação
constituem um terreno fértil para litígios: a realização tardia da obra, os
defeitos da coisa ou a elaboração incorrecta do projecto encontram mais um
elemento na natural vocação internacional do negócio considerando o
envolvimento de vários sistemas jurídicos que por vezes oferecem soluções
muito diversas, aumentando os motivos de fricção e incerteza.
A identificação do regime jurídico aplicável a estes contratos é, pois, um
tema que tem merecido particular atenção, tanto por parte dos estados,
tanto por organismos internacionais do setor, (Federação Internacional de
Engenheiros Consultores), como ainda por outras entidades, com destaque
para o Instituto UNIDROIT e alguns centros de arbitragem, entre eles a
Câmara de Comércio de Paris.

A difusão e a vastidão das implicações operacionais que estes contratos


podem gerar implicam a necessidade de os mesmos beneficiarem de uma
disciplina elástica capaz de oferecer proteção tanto a nível geral como de
incumprimentos específicos.
Por esta razão, o contrato de engenharia tem se mostrado intimamente
ligado à arbitragem como técnica privada de resolução de conflitos, ainda
que este método alternativo à justiça ordinária não impeça o surgimento do
conflito, mas resulte em uma resolução mais célere do litígio. Daí a
necessidade de identificar uma potencial técnica de gestão de conflitos que
acompanhe o desenvolvimento dos trabalhos para a construção da obra, de
forma a prevenir futuros litígios.
Frequentemente surgem litígios com referência a benefícios pecuniários,
alterações (imprevisíveis) de circunstâncias originalmente existentes,
estrutura das garantias e pormenores da execução da obra. Contextos e
situações fáticas em que emerge a necessidade de dispor de outros meios de
resolução de litígios.
É nesse contexto que o instituto dos dispute boards é considerado um
mecanismo de prevenção de disputas e um meio rápido de antecipar a
solução de possíveis disputas, evitando que se transformem em conflitos
capazes de interromper ou paralisar o desenvolvimento da execução do
projeto.

As dificuldades da justiça estadual para responder prontamente às


questões de justiça

É notória a dificuldade dos tribunais estaduais em responder rapidamente


às questões de justiça dos interessados. O judiciário contribuiu
decisivamente para o bem-estar social por meio do funcionamento de sua
máquina judiciária. No entanto, a contribuição que a justiça pode oferecer
hoje é muito menos eficaz. O paradigma social mudou e o sistema judicial
não se adaptou às suas mutações. A estrutura judiciária não cresceu, não se
especializou, não acompanhou as alterações sociais originando, em última
análise, a perda de prestígio da magistratura e provocando cisões na própria
autoridade.
A lentidão do processo de julgamento, agravada também pela falta de
recursos humanos e econômicos, espalhou-se pelo mundo, a ponto de ser
considerada uma característica da justiça estatal. A falta de oportunidade e
eficácia constitui, sem dúvida, um obstáculo que só poderá ser ultrapassado
através de um sistema alternativo capaz de proporcionar aos cidadãos uma
tutela jurisdicional eficaz e em tempo útil.
Os outros meios de resolução de litígios, alternativos à justiça ordinária,
revelam-se assim como instrumentos facilitadores da superação de
conflitos e, por conseguinte, capazes de dar respostas atempadas às
questões de justiça.
Nesse processo não podemos negligenciar a interação e o condicionamento
recíproco entre economia e direito. A regulação do mercado e os métodos
de resolução de conflitos atraem atenção especial. A determinação da
responsabilidade pré-contratual e contratual torna-se indispensável para o
desenvolvimento económico. Sublinha-se o papel fundamental do direito
na regulação da ordem social e, inevitavelmente, nas relações económicas.
O verdadeiro meio extrajudicial alternativo de solução de controvérsias é,
sem dúvida, a arbitragem, que se caracteriza pela celeridade, informalidade,
neutralidade, competência e confidencialidade.

No entanto, este meio encontra sérios obstáculos no âmbito das relações


jurídicas oriundas do contrato de engenharia. Embora a justiça arbitral seja
inevitavelmente mais vantajosa que a justiça estadual, não podemos
esquecer a incidência do custo da arbitragem no quantum global do projeto.
É nesse contexto que nasceram os disputes boards como formas de
prevenção e aceleração da solução das questões que surgiram durante o
trabalho.
Especificidade dos contratos internacionais

A globalização das relações comerciais internacionais tem contribuído


decisivamente para o nascimento e desenvolvimento de novas figuras
jurídicas. O desenvolvimento da infraestrutura, das telecomunicações e das
tecnologias da informação tem favorecido as relações entre os estados e
entre as operadoras dos diferentes estados.
Esse fenómeno exige encontrar formas de regular as relações que se
estendem a diversos setores económicos.
A falta de flexibilidade dos direitos estatais, bem como a sua escassa
adaptabilidade à dinâmica das relações que acabamos de descrever, tem
favorecido a tendência dos operadores económicos do comércio
internacional a disciplinarem as suas transacções através da análise das
práticas enraizadas nos vários contextos de intercâmbio. Para se beneficiar
de maior certeza, estabilidade e homogeneidade, alguns órgãos
desenvolveram órgãos reguladores formados por princípios e regras reais
"modelo" (padrão), inspiradas nos operadores do comércio internacional.
Desta forma, os operadores dispõem de modelos de atuação capazes de
auxiliar tanto as partes na regulação dos contratos como aqueles que
intervêm para realizar uma atividade de prevenção de litígios ou a sua
resolução.
Devemos sublinhar o papel de três organizações que têm contribuído, por
um lado, para a possível “unificação” da regulamentação dos contratos
internacionais e, por outro, para o desenvolvimento da economia mundial.
Estamos falando da Comissão de Direito Comercial Internacional das
Nações Unidas (UNCITRAL), do Instituto Internacional para a Unificação
do Direito Internacional Privado (UNIDROIT) e da Federação
Internacional de Engenheiros Consultores (FIDIC).
A Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional
(UNCITRAL) tem se destacado por sua contribuição ao desenvolvimento
do arcabouço jurídico do comércio internacional por meio da elaboração de
textos legislativos sobre direito comercial internacional.
O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Internacional Privado
(UNIDROIT) contribuiu para a unificação do direito privado por ser uma
entidade politicamente neutra e independente em relação a outras
organizações. O UNIDROIT de hoje, ao contrário da postura do passado
por meio de instrumentos legislativos vinculantes de origem internacional
que exigiam transposição formal, preocupa-se em oferecer opções de
unificação jurídica por meio de instrumentos não vinculantes, como leis
modelo e princípios gerais.
A Federação Internacional de Engenheiros Consultores (FIDIC) se
posiciona como uma autoridade internacional para o desenvolvimento de
melhores práticas em empresas de engenharia consultiva e, nessa
capacidade, tem contribuído para a criação de altos padrões de ética e
integridade moral entre as partes envolvidas. Para tal, o Instituto pretende
melhorar a sua representatividade e imagem no e do setor da consultoria
técnica em todo o mundo, bem como promover e apoiar o desenvolvimento
das empresas de engenharia consultiva à escala global, reforçando também
o próprio papel de líder na elaboração de modelos contratuais.
A regulamentação dos contratos internacionais, em particular dos contratos
de engenharia, exige assim uma disciplina especial que decorre da forte
relação entre o direito estatal, o direito convencional e a lex mercatoria,
bem como o ius ingeniorum.

O contrato de engenharia e as características de complexidade e


incompletude
O contrato de engenharia é uma realidade jurídica de difícil definição,
como demonstra o esforço da doutrina em elaborar uma definição do
mesmo. Das primeiras elaborações resulta que o contrato da engenharia
representa uma realidade complexa, resultado da mistura de diferentes
áreas do conhecimento.
A complexidade técnica e a interdependência dos vários setores, em
particular da engenharia, arquitetura, economia e direito, reflete-se no
conteúdo do contrato de engenharia dificultando a compreensão dos juízes.
Esta complexidade revela-se sobretudo ao nível da tecnologia e técnica
necessárias à construção da obra, tendo também em consideração as
dimensões da mesma. Com efeito, a elaboração deste contrato exige um
cuidado particular pela dificuldade de antever possíveis situações que
impeçam a correta execução da obra. Além disso, como se antecipou, é na
fase executiva da obra que surgem os problemas técnicos e logísticos que
devem ser superados.
Não tendo o contrato de engenharia um regulamento específico, são
inevitáveis as dificuldades na identificação das regras e na interpretação
das cláusulas, favorecendo assim a abordagem autorregulatória. Em suma,
a incompletude e o alto grau de risco na execução são características
inerentes a esse tipo de contrato.
A duração da execução e a complexidade do objeto do contrato estão na
base das divergências entre as partes, que só podem ser resolvidas através
de mecanismos que tenham sido configurados para alcançar a «paz
contratual».
No desenvolvimento de um caminho para otimizar as cláusulas contratuais
com as consequentes consequências positivas na mitigação do conflito
entre as partes, são consideradas ferramentas alternativas e de prevenção de
conflitos que envolvem técnicos especializados nas matérias em causa .
O aparecimento dos «dispute boards» e a sua justificação
Entre as ferramentas de caráter preventivo, pré-arbitral ou pré-judicial, um
papel importante cabe aos dispute boards (DB): comissões permanentes
que geralmente são constituídas no momento da celebração do contrato
para auxiliar as partes durante a execução da obra, com o objetivo de
prevenir eventuais litígios.
O juiz ou árbitro intervém para pôr termo a um litígio já existente ou
denunciado por uma das partes no litígio e a decisão limitar-se-á a aceitar
os pedidos de uma das duas partes. Já no DB, busca-se conciliar os
interesses das partes por meio de comissão de peritos, indicada pelas
próprias partes previamente ou em conjunto com o início da lide. Nesse
modelo, os integrantes do DB atuam ao mesmo tempo em que a obra é
executada e, conhecendo as especificidades do contrato, acompanham
passo a passo sua execução.
Os BDs surgiram na década de 1960 em Washington no projeto Boundary
Dam. Dez anos depois, foram pensados no âmbito das práticas contratuais
desenvolvidas no setor da construção subterrânea com o objetivo de
facilitar o bom andamento das obras.
Uma das primeiras experiências bem-sucedidas da DB que se tornou
referência para as contratações posteriores foi na construção do túnel
Eisenhower.
Os DBs também foram utilizados na construção do Projeto Hidrelétrico
Cajón (Honduras)15, do terceiro conjunto de eclusas do Canal do Panamá e
no projeto de túneis duplos da linha Shepard do metro (Canadá).
A utilização do BD permite ultrapassar as incertezas relacionadas com a
duração dos processos ordinários ou arbitrais. Considerando que a
elaboração de um projeto e a realização de uma obra são demorados,
diversos tipos de eventos podem ocorrer neste período, incluindo crises
económicas e financeiras, flutuações nos mercados de determinadas
matérias-primas, mudanças no marco legal ou eventos naturais. imputável a
caso fortuito ou força maior; todos os fatores passíveis de gerar conflitos
que se refletem no andamento pontual das obras.
Os DB visam sanar os problemas relatados na medida em que permitem o
prosseguimento das obras, em seu curso normal, independentemente das
pendências que tenham surgido. Refira-se que estas técnicas são
vislumbradas sobretudo em contratos com elevado grau de complexidade,
tecnicidade e extensão: a informalidade e rapidez de funcionamento do BD
permite uma intervenção imediata (muitas vezes a nível consultivo),
prevenindo litígios futuros. De fato, as partes podem solicitar conselhos ou
recomendações aos DBs, que lhes oferecem soluções amigáveis, bem antes
do momento em que os problemas assumem caráter conflituoso.
Os membros do DB terão, portanto, de estar muito familiarizados com o
projeto - e sobretudo conhecimento do andamento real das obras -
neutralizando a disputa entre as partes pela raiz, favorecendo a
comunicação em níveis amigáveis.
Os DBs também podem intervir após o estabelecimento de uma disputa,
mas operando como um comitê especializado para a resolução de
determinados problemas. Por esses motivos, a escolha dos integrantes do
BD será baseada nas competências específicas dos componentes.

Como funcionam os painéis de dispute boards

Os DBs são comissões constituídas para a composição e resolução de


conflitos emergentes na execução de obras de dimensões significativas. Os
membros podem ser nomeados – como visto – desde a celebração do
contrato, podendo formular recomendações (Dispute review boards –
DRB), ou tomar decisões (Dispute adjudication boards – DAB) ou ainda
exercer ambas as funções (Combined disputes boards – CDB).
Os dois primeiros tipos de BD têm basicamente o mesmo objetivo, ainda
que tenham algumas diferenças.

O DRB emite recomendações sobre as disputas que lhe são submetidas, de


forma voluntária e consensual. Se as partes compartilharem as
recomendações sugeridas, elas se comprometerão a respeitar seu conteúdo.
Em caso de desacordo – dentro de certo prazo estabelecido por
regulamento de uma central prestadora de serviços DB ou dentro do prazo
indicado pelas partes no contrato de construção – as partes poderão
submeter a disputa a procedimento arbitral, se este tiver sido previsto.
A comissão DRB é composta por três membros, sendo dois especialistas
técnicos e o terceiro, o presidente, geralmente jurista, especialista em
arbitragem e contratos de engenharia.
A nomeação desses membros independentes e imparciais é normalmente
realizada observando as regras de constituição dos tribunais arbitrais.
Se a comissão for nomeada no início das obras, ela visita os canteiros
regularmente, de forma a se envolver ativamente no andamento da
construção, e influencia a posição das partes durante a execução do
contrato.
Quando a constituição do DRB é contextual à celebração do contrato, o
mesmo contempla as regras sobre a nomeação dos membros. A menos que
recorram a um centro específico que preste serviços no domínio dos dispute
boards, as partes prestam especial atenção à redacção das regras a que a
comissão terá de obedecer, bem como aos direitos e deveres de todos os
interessados partes que intervêm no processo.
Os DABs caracterizam-se por uma maior eficácia coercitiva das suas
decisões sobre as questões que lhes são submetidas. Na sequência do
acordo celebrado entre as partes, a decisão terá de ser executada. Caso
alguma das partes não concorde com a decisão, poderá submeter a disputa à
arbitragem ou ao tribunal estadual. Ressalte-se que as partes concordam em
acatar a decisão do DAB, a menos que a disputa tenha sido submetida a
arbitragem ou a um tribunal estadual.
O comité DAB é composto por um ou três membros. No caso de
composição monocrática, o membro do DAB não pode ter a mesma
nacionalidade dos partidos. No caso da DAB colegiada, o presidente não
pode ter a mesma nacionalidade dos partidos. A nomeação dos membros
caberá sempre a cada uma das partes. No caso de DAB monocrática, o
acordo de ambos é necessário em qualquer caso. Deve-se notar que os
DABs podem operar permanentemente ou ad hoc. No primeiro caso, o
DAB será constituído no momento da assinatura do contrato e permanecerá
durante toda a vigência do contrato, acarretando custos adicionais para as
partes. Porém, por outro lado, existem as vantagens ligadas à extrema
celeridade na resolução de litígios que surjam durante a execução da obra,
intervindo este mecanismo em regime consultivo e evitando assim a
ocorrência de litígios entre as partes. Este tipo de DAB favorece o
acompanhamento contínuo do andamento das obras, estimulando um
diálogo frutífero entre as partes e mitigando litígios entre elas.
Diferentemente, os DABs ad hoc intervêm quando já está em curso um
litígio entre as partes e a duração do mandato da comissão é proporcional
ao conflito: resolvido este, dissolve-se. Esta solução, por um lado, gera
menores custos e, por outro, permite que as partes escolham componentes
com requisitos profissionais de acordo com as características do litígio a
resolver. Por outro lado, como este órgão não acompanhou os trabalhos
desde o início, poderão surgir algumas dificuldades nas questões a decidir.
Este tipo de DB não desenvolve atividades de natureza consultiva.
Cabe agora focar no caráter vinculante da decisão da comissão do DB. No
que diz respeito à exigibilidade da decisão, não parece inteiramente
admissível traçar um paralelismo entre as decisões do DB e as dos tribunais
arbitrais. A maioria, se não todas, as leis estaduais não impõem a decisão.
Em nossa opinião, esta configuração não é aceitável. Basta que uma das
partes não esteja satisfeita, ainda que tenha dado inicialmente o seu
consentimento, para que se revele inviável a execução coerciva da decisão.
Portanto, no momento, a comissão não tem poderes para impor uma
decisão vinculativa, portanto, fará apenas recomendações sobre uma
possível solução de controvérsias. Conclui-se que o DB será uma comissão
que emite apenas recomendações.
Finalmente, quando a CDB emitir uma recomendação não vinculante às
partes sobre as questões que lhes forem apresentadas, e estas não se
opuserem, a recomendação aparecerá como uma decisão provisória da
controvérsia até que a mesma seja resolvida por arbitragem ou via judicial.
Trata-se de uma modalidade «híbrida» do BD prevista no regulamento do
ICC.
Notamos que atualmente existe considerável semelhança entre os regimes
instituídos pelo ICC e FIDIC, embora as regras do ICC sejam mais
abrangentes quanto à causa e à natureza dos litígios que lhe podem ser
propostos. Não esqueçamos que a FIDIC é uma associação setorial e,
portanto, especializada em construção e seus anexos.

As diferenças entre os modelos DB nos contratos FIDIC e nas regras ICC


são baseadas principalmente nos objetivos que as duas instituições se
propõem. A FIDIC, como vimos anteriormente, é uma entidade associativa,
profissional, cujo objetivo é promover o exercício da profissão de
engenheiro. Ela representa a indústria de consultoria de engenharia em todo
o mundo. Ao longo do tempo, a sua atividade centrou-se no
desenvolvimento de modelos contratuais, que se destinam a servir de
referência às empresas do setor. Os BDs, portanto, se colocam ao lado de
outros modelos contratuais como meio de prevenção e resolução de
conflitos na construção civil.
A ICC é uma organização internacional, considerada a "voz" do comércio
internacional. Seu objetivo primordial é defender a economia global como
motor do crescimento. A atuação do TPI visa, sobretudo através do serviço
de arbitragem, o combate à corrupção e ao crime comercial.
À luz dessas considerações podemos entender as diferenças do DB nos
contratos FIDIC, nos contratos comerciais internacionais em geral e nas
máximas de engenharia do ICC.
Enquanto nos contratos FIDIC os BDs fazem parte de um mesmo modelo
contratual, no ICC eles são propostos como ferramentas para resolução de
conflitos.
De acordo com o regulamento do TPI, os DBs servem para auxiliar as
partes na prevenção de conflitos (artigo 16), na sua resolução por meio de
assistência informal (artigo 17) ou por meio de recomendações (artigo 18).
Os DB não são tribunais arbitrais e suas recomendações não têm valor de
sentença arbitral. No entanto, as partes podem acordar contratualmente no
sentido de cumprir as referidas recomendações. O Centro Internacional de
ADR, como órgão do ICC, presta serviços entre os quais se destacam os
DBs.
Essas comissões têm a tarefa de ajudar as partes a resolver seus conflitos
negociais. As regras do TPI contemplam três tipos diferentes de DB: o
DRB que emite recomendações às partes, ainda que não vinculantes, ainda
que esse efeito possa decorrer da não oposição das mesmas; DAB, cujas
decisões são obrigatórias e, se não observadas, podem ser executadas em
processos arbitrais ou judiciais; e, por fim, o CDB, com o papel de emitir
recomendações às partes, podendo também dirimir conflitos (art. 6º da
regulamentação relativa ao DB 2016)26. De acordo com o Artigo 3 do
Regulamento DB, salvo acordo em contrário, as partes devem constituir o
DB no momento da celebração do contrato. As partes deverão especificar
se o BD será um DRB, um DAB ou um CDB.
Os modelos FIDIC contemplam, por um lado, o DRB que formulará
recomendações às partes, recomendações estas que, caso as partes não se
manifestem em desacordo, no prazo que lhes for atribuído, se tornarão
vinculativas; e, de outro, o DAB que proferirá decisão de mérito sobre o
conflito, de eficácia imediata, desde que não seja objeto de reconsideração
de forma consensual entre as partes ou de procedimento arbitral ou judicial,
se previsto no contrato.
Natureza jurídica dos contenciosos - Os "atos" praticados pelo DB não têm
efeitos jurisdicionais como as sentenças do juiz ordinário ou as sentenças
arbitrais, ainda que, como estas, se alimentem do contexto contratual.
É inegável o paralelismo entre a obrigatoriedade das recomendações e
decisões do DAB e a eficácia de qualquer outra cláusula contratual em
termos de incumprimento. As recomendações ou decisões emitidas pelo
DB são baseadas tanto na regulamentação prevista no contrato quanto na
análise realizada pelos membros da comissão. Tais recomendações são
efetivas se, no devido tempo, não houver oposição.
O sucesso dessas ferramentas, pré-arbitrárias ou pré-judiciais, reside em
sua eficiência. Os custos do seu funcionamento são fixados a montante,
podendo ser contabilizados pelas partes no valor global da obra a executar,
considerando que o grau de competência e profissionalismo dos membros
da comissão constitui elemento atenuante do conflito e gera o
consentimento das partes e, portanto, em última instância, um facilitador no
que diz respeito ao objetivo da conclusão pontual do trabalho.
No entanto, recorde-se que os contratos de engenharia, bem como outros
contratos internacionais, implicam o reconhecimento do princípio da
autonomia da vontade das partes, podendo ser constituído um DB sempre
que as partes o entendam conveniente. No caso de adoção do contrato
padrão FIDIC, o mesmo será, portanto, apenas uma referência para as
partes que, se assim o desejarem, poderão modificá-lo atribuindo poderes
coercitivos ao DB.
Ainda que seja reconhecida grande liberdade às partes, em nenhum caso
terceiros poderão ser obrigados a aceitar as decisões emanadas do DB por
não terem efeito erga omnes, carecendo de reconhecimento legislativo
nesse sentido. Na negociação internacional, mais precisamente, além das
leis do Estado, aplicam-se as regras elaboradas nas práticas comerciais,
ainda que setoriais, que, ao longo do tempo, contribuíram para o
nascimento e desenvolvimento da lex mercatoria. Estamos na área de soft
law e, por isso, não há força vinculante. Seria implausível permitir que as
partes envolvessem interesses de terceiros. Eficácia semelhante não se
verifica nem quanto aos poderes dos árbitros, ainda que suas decisões
tenham valor equiparável às judiciais e suas sentenças sejam passíveis de
execução.
Acreditamos que, caso contrário, haveria sérios riscos de interferência de
terceiros no poder decisório. Sem falar que os membros do DB têm mandato
conferido pelas partes, pelo que o princípio da imparcialidade estaria em risco.
Não compartilhamos da opinião daqueles que defendem que o DB é uma forma
de arbitragem voluntária, chegando a declarar que a cláusula compromissória e a
cláusula DB fazem parte de uma mesma convenção de arbitragem, salvo acordo
em contrário entre as partes. Em outras palavras, o DB constituiria a primeira
instância de um processo arbitral, que tem a segunda na arbitragem tradicional:
as partes, assim, preveriam um duplo grau de jurisdição.
Essa construção, embora valiosa, não pode ser compartilhada mesmo que
estejamos convencidos da necessidade de implementar as decisões do DB.
Apesar desse requisito, as diferenças entre a arbitragem e outros métodos de
prevenção e solução de controvérsias devem ser destacadas.
Na arbitragem, a sentença tem a mesma jurisdicionalidade das decisões
proferidas por juízes profissionais, em razão das prerrogativas reconhecidas ao
instituto pelo ordenamento jurídico.
A razão deve ser buscada no princípio da autonomia da vontade das partes. Na
verdade, acreditamos que a figura do DB integra uma arbitragem contratual. Este
método está previsto em alguns códigos civis e/ou leis de arbitragem voluntária.
A arbitragem nem sempre aparece como um processo destinado a resolver
conflitos de interesses atuais, podendo também funcionar como uma técnica de
integração e regulação de questões contratuais. Podemos assumir, no entanto, que
a arbitragem contratual tem origem num acordo cuja finalidade se traduz na
resolução amigável do litígio, devolvida a um terceiro. A tarefa do terceiro
resultará na formulação de uma opinião/recomendação sobre a correta solução da
controvérsia decorrente do contrato principal. Se os conflitos respeitarem ao
contrato de engenharia, este parecer/recomendação terá força vinculativa para as
partes, se e na medida em que, inicialmente, se comprometam a segui-lo. Assim,
a opinião/recomendação formulada pelo terceiro integra-se no acordo celebrado
entre as partes, formando “um todo contratual”. As vontades das partes estão,
sem dúvida, de acordo para dirimir o seu litígio, não podendo chegar a uma
solução consensual do mesmo. A originalidade desta figura assenta sobretudo na
sua natureza estritamente contratual e nisso difere da arbitragem jurisdicional
que, apesar de ter origem num acordo (convenção de arbitragem), tem
inquestionavelmente um fundamento jurisdicional, pela identidade funcional
entre a decisão arbitral e a judicial.
Para o terceiro (árbitro) é absolutamente irrelevante que as partes respeitem
a sua opinião/recomendação, ainda que primeiro se comprometam a fazê-
lo. Na verdade, uma coisa é o “parecer” emitido pelo terceiro, outra é a
intenção das partes em acatar esse “parecer”. Quando o fazem, é por
vontade externa e independente da atividade do terceiro. Em suma, o
árbitro, nesta modalidade de arbitragem, limita-se a emitir o
parecer/recomendação que lhe seja solicitado pelos interessados, ficando à
margem das relações estabelecidas entre as partes.
O recurso à arbitragem contratual constitui, assim, uma das formas de
resolução de conflitos por terceiros, mas enquanto a decisão arbitral tem
normalmente um conteúdo condenatório, a “decisão” em causa é uma
opinião/recomendação do terceiro sobre a forma como o litígio devem ser
resolvidos e sobre as ações ou omissões que as partes devem implementar
para obter o resultado desejado. No entanto, caso uma das partes se recuse
a acatar o parecer/recomendação emitido pelo terceiro, a outra poderá
recorrer para a arbitragem habitual ou para a autoridade judiciária
ordinária.
Em consideração ao exposto, devemos deduzir que a sentença arbitral
contém prescrições de natureza imperativa, uma vez que sua redação
constitui uma sentença real. Na arbitragem contratual as prescrições têm
teor semelhante, mas não são vinculativas.
Como podemos ver, as diferenças entre a arbitragem ritual e a arbitragem
contratual são bastante evidentes, ainda que o conteúdo material possa
parecer substancialmente idêntico - resolução de um litígio através da
intervenção de um terceiro - (mas os meios para o conseguir são, na
verdade, muito diferentes ).
Em suma, a atividade da DB enquadra-se perfeitamente na figura da
arbitragem contratual, uma vez que as “decisões” da comissão só têm força
vinculativa se as partes assim o tiverem acordado. A nosso ver, reconhecer
a atividade do DB como tendo a mesma eficácia da arbitragem ritual leva a
desvirtuar a figura cujo objetivo principal é a prevenção de conflitos
(embora não se exclua que o DB se configure em conjunção com o seu
surgimento). A função de cada um desses institutos é muito diferente. Além
disso, as leis de arbitragem em diferentes sistemas jurídicos e a lei modelo
da UNCITRAL deixam isso claro. Não se deve dizer que a Convenção de
Nova York sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais
estrangeiras de 10 de junho de 1958 também pode incluir esse número. Não
é verdade. Ao utilizar a expressão sentença estrangeira, o legislador espera
que ela ponha fim à lide como ato judicial, possuindo os efeitos
característicos de um ato real dessa natureza. Faz-se referência à sentença
definitiva e à eficácia do título executivo. Essas características não podem
ser realmente reconhecidas nas decisões do DB.
Traçar um paralelo entre a própria arbitragem e o DB, argumentando que
ambos os números derivam de uma convenção não é convincente. É certo
que ambas decorrem da vontade das partes, apenas que o DB produz efeitos
contratuais e a arbitragem (ritual) efeitos jurisdicionais reconhecidos por
lei. Além disso, de acordo com o princípio da separação de poderes, os
tribunais, como órgão soberano, possuidor de poder judiciário, devem ser
contemplados nas leis constitucionais. Nesse sentido, os Estados têm
permitido a criação de outras categorias de tribunais, sobretudo para
enfrentar a questão da excessiva duração dos julgamentos, aliviando a
carga de trabalho dos tribunais comuns previstos por seus sistemas
judiciários.
Ademais, não cremos compartilhar da posição daqueles que sustentam que
a decisão do DB pode ser convertida em sentença arbitral, se aprovada.
Ceder a essa opinião significaria, na verdade, subverter o princípio da
igualdade das partes, pois se uma delas não aceitar a decisão do DB, ainda
assim terá que se submeter à decisão do tribunal arbitral ajuizado
posteriormente. Este reexaminará o mérito ex novo, não como juiz de
segunda instância, visto que não há dupla jurisdição na arbitragem.
Tendo em conta as características descritas do BD, verifica-se que a figura
está em perfeita sintonia com o modus operandi da arbitragem contratual
(ou informal), considerando que a opinião/recomendação do terceiro só
vinculará as partes, se assim o desejarem. decidir. Se uma delas não
cumprir a decisão, pode sempre recorrer à arbitragem judicial.
Conclusões
A importância económica dos contratos de engenharia afeta tanto a
disciplina aplicável quanto a identificação dos meios mais ágeis para a
solução de conflitos.
Outros perfis relevantes são o tamanho da obra e a incompletude do
contrato, não sendo possível prever todos os aspectos que o projeto ou obra
comporta.
Apesar da generalização da arbitragem como método de resolução de
litígios na contratação internacional, verificou-se que este meio nem
sempre é capaz de resolver os litígios que surgem na execução de contratos
relativos à construção de grandes obras, tanto pelos elevados custos que daí
decorrem deles, e pela necessidade de resolver os conflitos que surgiram
durante a execução do contrato. Não esqueçamos que as disputas impedem
o regular andamento das obras, refletindo-se na maioria das vezes nos
custos da obra.
O contexto jurídico e económico tem favorecido o surgimento de
mecanismos pré-arbitrários onde, naturalmente, assume particular relevo a
figura dos DB, como comissões de fiscalização e de resolução de conflitos.
Qualquer modalidade de DB atende plenamente ao princípio da autonomia
da vontade das partes o que, sem dúvida, repercute na natureza das
“decisões” proferidas pelo DB. Por não terem caráter coercitivo e serem
desprovidas de valor jurisdicional, não podem proferir sentenças de efeitos
semelhantes às sentenças arbitrais. Os BDs são naturalmente uma das
formas como a arbitragem contratual (irritual) se pode configurar,
revelando-se esta figura capaz de abarcar todo o universo dos BDs, cujas
recomendações/decisões se assumirão como vinculativas se as partes assim
o desejarem e apenas com efeitos entre si .

Você também pode gostar