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UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo

EPPEN – Escola Paulista de Política, Economia e Negócios


Direito e Legislação Trabalhista

TIAGO SOARES DA SILVA – RA: 150.225

Sinopse: o longa metragem “você não estava aqui” (2019) dirigido por Ken Loach retrata
a vida Ricky Turner e sua família lutando para pagar as contas. Desse modo, Ricky aceita
uma oportunidade para ter seu próprio negócio e melhorar sua condição, porém sua
escolha afetou a sua família e a si próprio, não sendo o que se esperava.

VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI – RESENHA

É interessante refletir na maneira que as relações de trabalho mudaram no decorrer dos


séculos, provenientes das mudanças na sociedade. O Reino Unido foi o berço da primeira
revolução industrial, esta que alterou dinâmicas de comércio e as de trabalho e baseou o
que hoje conhecemos como “a maneira que o mundo funciona”. Apesar deste termo ser
vago e abrir inúmeras interpretações, pensemos nele um marco, pois nossa realidade seria
diferente sem ele. Inúmeros acontecimentos ocorreram desde 1760, as fábricas não são
insalubres como antes, os salários de operários são melhores e apesar de ainda usarmos
máquinas elas não são a vapor. Significa que vivemos em um mundo perfeito? Bem, não
exatamente. Nos dias atuais (2021) nossos problemas ainda existem e, diferente de antes,
eles são mais complexos. A chamada “Uberização do trabalho” é definida logo no começo
do longa, de maneira muito concisa, como “você não trabalha para nós, trabalha conosco”.
A partir disso, a história gira em torno de Ricky Turner e sua família, que após a crise de
2008 se viram em dificuldades financeiras, tendo que alugarem uma casa para ter onde
morar. Ricky, depois de muito tempo desempregado, aceita uma proposta para trabalhar
como entregador em uma companhia de logística de sua cidade, o diferencial é que os
entregadores não são empregados e sim prestadores de serviços, ou seja, autônomos. Tal
relação de trabalho parece atrativa de começo, mas se mostra cruel posteriormente. Este
trabalho proporcionaria a ele experiências difíceis, o que nos faz levantar algumas
questões.
O trabalhador autônomo é o profissional que não tem vínculo empregatício, ou seJa, não
é regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), a natureza do seu trabalho é
regida pelo contrato de prestação de serviço. A princípio, os autônomos têm a liberdade
de organização, execução e disposição do resultado do próprio trabalho. Diferente de um
profissional subordinado, o trabalhador liberal goza de flexibilidade de horários,
proporcionando melhor aproveitamento de horários e dinamizando o rendimento, ao
mesmo tempo que dá a possibilidade do profissional acordar mais de um contrato, exceto
em contratos com cláusulas de exclusividade. Além disso, o autônomo não é subordinado
ao contratante, sendo que este só poderá orientar como o trabalho deve ser feito, não
podendo ultrapassar este limite, pois não há poder diretivo por nenhuma das partes. O
autônomo pode ser uma pessoa física, assim permite a pessoa natural poder prestar seus
serviços de forma legal. Esta natureza de trabalho também permite que o prestador de
serviços seja uma pessoa jurídica que usualmente no Brasil, por conta da menor tributação
e simplicidade na abertura da empresa, são microempreendedores individuais (MEI),
sendo vantajoso às atividades que requerem investimentos, pois este tipo societário tem
incentivos e acesso a linhas de crédito com taxas menores. Apesar de todas essas
vantagens, o profissional autônomo está a mercê do risco da atividade, assumindo de
forma integral prejuízos e oscilações de mercado, valendo ressaltar que esta modalidade
não propícia uma renda definida, podendo acarretar problemas de caixa. No caso de
inaptidão para prestar o serviço, o profissional terá que arcar com um substituto para
evitar a quebra de contrato. Isto gera uma sensação de empreendedorismo e perspectiva
de crescimento no trabalhador, para muito é considerado o primeiro passo para melhora
nas condições de vida, porém, essa visão pode ser momentânea, já que as dificuldades
são vistas posteriormente, em certos casos podendo ser taxado como um falso
empreendedorismo, pois mesmo usufruindo de “liberdades” o trabalhador fica preso a
termos contratuais que o limitam e, por ventura o colocam em situações de
vulnerabilidade e submissão. Mesmo tendo tantas desvantagens, o trabalho liberal só
cresce no Brasil e no mundo, em especial, as franquias.
Franquias são o direito de uso de um negócio já consolidado, é atrativo à medida que
requer baixo investimento inicial é já possui uma gama de clientes que usam do serviço.
No processo logístico brasileiro, entregadores franquiados podem ser considerados a
evolução natural dos “agregados”, em geral trabalhadores liberais que prestavam serviços
quando necessário para transportadoras sem a existência de um contrato que acordasse o
trabalho. No filme, Ricky se franquia um galpão logístico de sua cidade, trabalho que por
natureza é estressante, pois é necessário lidar com horários criteriosos. Ao se franquiar
ele assume todos os riscos da operação e precisa comprar a van, que será sua ferramenta
de trabalho, ao mesmo tempo que também fica responsável por arcar com o seguro,
combustível e afins.
Mediante isso, franquiados usufruem de sua liberdade, entretanto ficam reféns de metas
difíceis de serem alcançadas e horários estritamente cronometrados. Por ter que alcançar
tais objetivos não há uma jornada de trabalho estabelecida, em muitas ocasiões girando
em torno de oito à quatorze horas diárias, a título de comparação, a CLT estabelece a
jornada de trabalho em oito horas diárias ou quarenta e quatro semanais e ainda, para
motoristas profissionais é estabelecido controle do tempo de direção, sendo este intervalo
após quatro horas ininterruptas conduzindo o veículo. Na não observância destes
cuidados, é dado o desgaste de quem dirige e o risco que é envolvido. Além disso, as leis
trabalhistas prescrevem o descanso intrajornada, como intervalo mínimo de uma hora
para refeição, que pode coincidir com o tempo da parada obrigatória, de acordo com o
Código Brasileiro de Trânsito (CTB). Também há o descanso interjornada, que estabelece
repouso mínimo de onze horas entre duas jornadas de trabalho. Em dados momentos do
filme, fica claro que Ricky não tem tempo para comer ou fazer suas necessidades básicas,
achando como solução urinar em uma garrafa. Cumprir os horários de entrega se torna a
tarefa mais importante para qualquer franquiado que deseja continuar trabalhando no
ramo.
Outro aspecto relevante a ser discutido é o stress no trabalho e como isso pode influenciar
na qualidade de vida e relações interpessoais. Ser responsável por dirigir, manejar e
entregar as encomendas aos destinatários em um curto espaço de tempo não é uma tarefa
simples de se executar, além de estar exposto a perigos como assaltos e semelhantes. O
trânsito diário das grandes cidades faz com que pessoas percam horas se locomovendo
distâncias ínfimas se comparado ao tempo que demoraram para chegar ao seu destino.
Tal fato afeta gravemente os entregadores, já que estão correndo contra o tempo, à medida
que acontecem atrasos por conta de engarrafamentos, acidentes, ruas excessivamente
cheias, confusões entre motoristas entre outros empecilhos, o profissional autônomo fica
sobrecarregado pois precisa cumprir seus horários, fazer todas as entregas e ainda chegar
inteiro em casa no fim do dia, para então descansar pois a rotina continuará. Às vezes é
difícil acreditar que não se trata de um trabalho insalubre. A maneira na qual a logística
mundial funciona influencia na maior carga de trabalho em toda a cadeia logística,
encomendas com recebimento programado tendem a ter processos e prazos mais
complexos e sua dinâmica requer maior esforço. Agora pense nessa soma de fatores e
reflita quem será o culpado se a encomenda atrasar.
O estresse é deverás prejudicial à saúde do trabalhador, sendo reconhecido como uma
doença relacionada ao ambiente laboral e enfrentá-lo é uma questão de saúde pública se
pensarmos no longo prazo. O direito de gozar do melhor estado de saúde física e mental
é um direito básico do homem, vide Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, firmado pela ONU. A partir disso, a carga de trabalho tende a ser
considerada de acordo com a velocidade com que a atividade laboral tem de ser concluída,
levando também em consideração a repetição de tarefas, exigência de alto nível de
atenção e a baixa variedade de tarefas são algumas das referências usadas na análise do
trabalho para evitar o estresse e preservar a saúde mental da pessoa, com intuito de manter
um equilíbrio adequado entre trabalho e vida privada.
Ademais, problemas no trabalho, como o estresse, influenciam negativamente a vida
pessoal do autônomo, atrapalhando sua relação interpessoal e cuidado com si próprio. No
filme, desde que Ricky começa a trabalhar no novo emprego é perceptível que como pai
ele fica mais ausente, ficando nítido em momentos em que seu filho, Seb Turner se
envolve em problemas e na maior parte das vezes seu pai não pode estar presente na
resolução deles, como mostrado na cena em que Ricky e Abbie Turner (esposa de Ricky)
são convocados para uma reunião na escola, em que só ela aparece. Em casa, as relações
familiares são abaladas pela falta de comunicação e conflitos constantes entre os membros
da família, estes causados por problemas que seriam facilmente resolvidos que ambos as
partes se resolvessem entre si. De maneira simples, estresse no trabalho pode gerar
grandes problemas pessoais, e se a pessoa tem problemas em casa é possível que não
trabalhe com de forma eficiente, o que também pode gerar outros problemas, assim, se
tornando um ciclo vicioso.
Porquanto, é possível entender melhor “a maneira que o mundo funciona” e como isso
pode ser cruel muitas das vezes. A chamada “uberização do trabalho” é o fenômeno das
relações de trabalho que, por meio pontes (seja por aplicativos ou franquias) possibilitam
que as empresas tenham mão de obra disponível, ou melhor, parceiros sem ter nenhuma
espécie de obrigação com os mesmos, somente o que está no contrato de prestação de
serviço. Este modelo de trabalho nasceu da ideia de incentivar o consumo sustentável e
dar a possibilidade para que pessoas trabalhassem por conta própria, entretanto, uma
característica principal deste modelo é que ele nasceu para complementar a renda, e não
ser a principal fonte. Pois bem, com as crises econômicas, o nível de desemprego cresceu
de forma significativa, o que levou inúmeras pessoas ao trabalho autônomo, por enxergar
uma oportunidade de continuar com suas vidas, o que parece ótimo em tese, mas se mostra
cruel na prática. O principal aspecto é que, o profissional assume os riscos da atividade,
ou seja, arcará com possíveis (e reais) prejuízos, o que por si só é estressante, sendo
necessário muito controle emocional para momentos conturbados. Uma empresa
consegue diluir seus riscos, fazer o gerenciamento e amenizar possíveis perdas, mas se
um motorista franquiado não conseguir trabalhar em determinado dia como ele poderá
diluir este risco? A precarização das relações de trabalho pode ser resumida em exigir
muito do parceiro (agora não mais empregado) e remunerar pouco, não sendo condizente
com o tempo, esforço ou investimento colocados na atividade laboral, onde um horário
apertado ou altas exigências podem acarretar doenças laborais e até atrapalhar
relacionamentos interpessoais, isso é concreto e existe! Fazendo uma alusão a ficção, o
livro “a revolução dos bichos” de George Orwell, nos indicaria uma faceta atemporal, que
é a frase mais emblemática do personagem Sansão: “Trabalharei ainda mais”.
Assim sendo, o filme nos apresenta um lado obscuro das relações de trabalho e, por mais
curioso que seja ambientado em um país de primeiro mundo que foi berço da revolução
industrial. O diretor Ken Loach, consegui equilibrar realidade com ficção de uma forma
que torna o filme prazeroso de assistir, exceto em algumas partes da história em que os
problemas vividos pela família parecem muito forçados, como se o autor da obra tivesse
o intuito de mostrar a desgraça de todas as formas, ao mesmo tempo que se torna
necessário para enfatizar a mensagem do filme, abre críticas para discutir como poderia
ser feito com melhor aproveitamento do tempo de tela. Particularmente, optei por não me
aprofundar na história de Abbie Turner, pois ela também é uma profissional liberal no
filme, todavia os pontos abordados nesta resenha ficariam redundantes e muito extensos
se abordados em duas partes. Gosto de acreditar que cada personagem tem igual
importância no filme, até mesmo Liza Turner, personagem menos trabalhada no roteiro,
mas com grande relevância para a história, porque ela que tenta manter a família unida,
servindo como união entre todos apesar das brigas. Portanto, é um ótimo filme que trata
temas atuais de forma simples e sem muitas mensagens implícitas, o final ficar em aberto
foi a coisa que me deixou mais perplexo com o longa, pois quando assistimos filmes
sempre esperamos um final feliz e, com primazia a realidade, o final foi o mais correto
possível.

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