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Escola Básica e Secundária da Povoação

2022/23

Auto da Índia

Fig.1: “ Auto da Índia”

Prof: Rúben Bettencourt Afonso Leite, nº2


Rodrigo Mendonça, nº17
Índice

Introdução 2
Desenvolvimento 3
A vida e a obra de Gil Vicente 3
Enredo 13
Personagens
Tempo
Conclusão
Referências Bibliográficas 20

1
Introdução

O presente trabalho foi proposto pelo professor Rúben Bettencourt, no âmbito


da disciplina de português. Relaciona-se com as nossas aprendizagens nas aulas da
disciplina.

Exposição sobre o tema: Gil Vicente e o Auto Índia

Este trabalho tem como tema uma das obras mais importantes de Gil Vicente, o
Auto da Índia. Como subtema a vida de Gil Vicente.

Os objetivos deste trabalho são aprofundar os nossos conhecimentos sobre o


Auto da Índia, conhecer algumas características das obras de Gil Vicente, desbravar a
génese histórica da vida de Gil Vicente e o problema da sua identidade e explicar a
progressão temporal entre o início da peça e o seu desenlace.

Usamos como metodologia os PDF´s fornecidos pelo professor e páginas web


(blogs, wikipédia e páginas institucionais).

Ao longo deste trabalho, iremos falar sobre diversos subtemas como a vida e
obra de Gil Vicente, onde se apresentam as diferentes identidades possíveis, os seus
dados biográficos, a relevância do autor, as características e os elementos filosóficos da
obra, a transmissão da obra e a sua censura inquisitorial. O enredo, que contém a
estrutura interna da obra, os principais momentos e a identificação da peripécia. As
personagens, como a Ama, a Moça, os Amantes (Castelhano; Lemos), o Marido e os
seus processos cómicos. E por fim o tempo desta obra, como por exemplo , o contexto
histórico e a moral na época de Gil Vicente.

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Desenvolvimento
A vida e obra de Gil Vicente

As diversas identidades possíveis

Um dos problemas maiores que se apresentam no estudo da biografia do autor é


o da identificação do poeta Gil Vicente com um outro Gil Vicente, ourives muito
conhecido na época e autor da célebre custódia de Belém.
Gil Vicente é considerado o primeiro grande dramaturgo português, além de
poeta de renome. E enquanto homem de teatro, parece ter também desempenhado os
papéis de músico, ator e encenador. É considerado o pai do teatro português, ou mesmo
do teatro ibérico, pois também escreveu em castelhano.

O ourives Gil Vicente

O ourives Gil Vicente, cuja custódia de ourives terminou em 1506, utilizando no


seu trabalho o ouro das «páreas» entregues pelo rei de Quíloa e trazidas por Vasco da
Gama em 1503, no regresso da sua segunda viagem à Índia. Nos anos seguintes o
mesmo ourives apareceu em documentos como protegido da “Rainha Velha”, Dona
Leonor.
Num alvará lavrado em Évora a 15 de Fevereiro de 1509, Gil Vicente foi
nomeado como “ourives da senhora Rainha minha irmã” e nomeado «vedor de todas as
obras que mandarmos fazer" ou se fizerem d’ouro e prata para o nosso Convento de
Tomar.
Uma outra série de documentos menciona o cargo do mesmo ourives, Gil
Vicente. Na carta de Évora datada a 4 de Fevereiro de 1513, D. Manuel nomeava “Gil
Vicente, ourives da rainha minha muito amada e prezada irmã” assumindo o cargo de
“mestre da balança da moeda da cidade de Lisboa”

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O autor dramático Gil Vicente

Diante do dramaturgo Gil Vicente encontramo-nos em terreno mais sólido,


embora envolvendo muitas incertezas. Segundo o genealogista D. António de Lima, o
escritor nasceu em Guimarães.
O método de determinar a sua idade a partir da idade de certos personagens das
suas peças foi usado várias vezes para determinar a sua data de nascimento. De qualquer
modo, não se sabe a data exata do nascimento do mesmo, porém podemos fixá-la entre
as décadas de 1460-1470. Quanto à sua morte, deve ter ocorrido em 1536 ou pouco
depois.
Gil Vicente fez toda a sua carreira como personagem oficial da corte, na roda
imediata da rainha Dona Leonor, de D. Manuel I e de D. João III. Muitas das peças que
escreveu foram encomendadas para celebrar determinados acontecimentos importantes:
nascimentos, casamentos, entradas solenes ou para acompanhar certas festas religiosas.
O teatro de Gil Vicente é, por conseguinte, um teatro de corte, subordinado às
exigências e ao cerimonial da vida cortesã.
Acredita-se que Gil Vicente foi organizador de espetáculos, autor, músico e ator.
O próprio texto dos autos indica apenas que ele recitou o argumento
inicial de duas das suas peças: Templo de Apolo (1526) e Triunfo do Inverno
(1529).
Tendo o encargo da organização dos espetáculos da corte, Gil Vicente era sem
dúvida um homem muito ocupado. Portanto, ele foi forçado a trabalhar rapidamente.
Esta situação explica, talvez, algumas características específicas da arte vicentina: a
repetição de certos processos de uma peça para outra, a atitude livre e engenhosa para
com as regras de poesia , em suma, o relativo progresso criativo improvisado. Portanto,
a sua capacidade de criar, melhorar e renovar-se é ainda mais notável.

Dados biográficos

Gil Vicente é considerado por muitos o primeiro dramaturgo português, cujo à


sua biografia nunca foi unânime entre todos os historiadores.

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No que toca à sua data de nascimento, a hipótese mais aceite é a de Queiroz
Veloso, defendendo que o poeta teria nascido em 1466, contudo esta data não é certa,
por isso, a data de nascimento de Gil Vicente deverá encontra-se entre as décadas de
1460-1470.
Quanto ao seu local de nascimento apesar de existirem várias possibilidades
como: Barcelos, Lisboa ou ”As Beiras”, Guimarães é dada como a “cidade berço” do
mesmo. Hipótese essa que estaria de acordo com a identificação do dramaturgo com o
ourives, já que a cidade de Guimarães foi durante muito tempo berço privilegiado de
vários joalheiros. Gil Vicente teve também várias ocupações. Para além de ser
considerado um poeta e dramaturgo de renome, foi também músico, ator e encenador,
sendo que as suas principais obras são: “Auto da Visitação”, “Auto da Barca do
Inferno”, “Farsa de Inês Pereira” e “Auto da Índia”.
No que diz respeito aos seus matrimónios, é sabido que casou duas vezes.
Casou-se pela primeira vez com Branca Bezerra, de quem nasceram Gaspar Vicente e
Belchior Vicente. Gaspar Vicente, nascido por volta de 1488, terá feito parte da armada
que partiu para a Índia em 1506 tendo sido também Moço da Capela Real em 1519, ano
em que morreu solteiro e sem geração. Belchior Vicente, nasceu em 1504 e 1505, foi
Moço de Capela sendo depois Escudeiro da Casa Real, trabalhou como escrivão e era
casado com Guiomar Tavares. Foi pai de duas filhas, Paula Vicente e Maria Tavares,
faleceu antes de 13 de março de 1552. Depois da morte de Branca Bezerra, casou-se
pela segunda vez com Melícia Rodrigues, de quem nasceram Paula Vicente, Luís
Vicente e Valéria Borges. Paula Vicente, nascida por volta de 1519 foi tangedora e
Moça de Câmara da Infanta D. Maria, editou e organizou a compilação das suas obras
com o seu irmão Luís Vicente e faleceu em 1576 sem geração. Luís Vicente, nascido,
provavelmente, em 1520, foi Cavaleiro fidalgo da Casa Real, editou e organizou a
compilação das suas obras com a sua irmã Paula Vicente, casou-se três vezes tendo
geração em dois dos três casamentos. Faleceu entre 1592 e 1595. Valéria Borges,
nascida cerca de 1530, casou-se duas vezes. A primeira a 10 de Julho de 1551 com Pero
Machado, Moço da Real Câmara, com geração feminina, e a segunda cerca de 1565
com D. António de Almeida, falecido em 1592, filho de D. Luís de Meneses e de Brites
de Aguiar, com uma geração. O seu primeiro trabalho conhecido foi a peça em
castelhano “Auto da Visitação”, ou “Monólogo do Vaqueiro”. Sendo assim, na noite de
8 de junho de 1502, esta obra foi representada na residência de D. Maria, cônjuge de D.

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Manuel, para celebrar o nascimento do príncipe e considera-se como o marco de partida
da história do teatro português.
Desta maneira, tornou-se responsável pela sistematização dos eventos
palacianos. Foi pedido ao dramaturgo a repetição da peça “pelas matinas de Natal”,
mas ponderando que o momento pedia outro tratamento, este escreveu “O Auto Pastoril
Castelhano”. Era incluído durante esta encenação, o ofertório de presentes simplórios,
como queijos, ao futuro rei.
Além de escritor, Gil Vicente foi também ator e encenador da peça. Usou
também, num ponto de vista ímpio, o quadro religioso natalício. Com o passar do
tempo, o talento deste autor dramático surpreendeu Dona Leonor, que tornou-se
protetora deste, nos futuros anos.
Algumas datas ainda são apuradas em ligação a esta figura, que pode ser única
como múltipla. Consta-se que era representante da bandeira de ourives na “Casa dos
Vinte e Quatro”, enquanto que no ano anterior foi eleito vassalo de el-Rei. Com o
acumular de eventos palacianos organizados por Gil Vicente, a sua experiência foi
aumentando e, desta forma, foi-lhe confiado a sistematização dos festejos em veneração
de Dona Leonor. Futuramente servindo D. João III, ganhando crédito para se autorizar a
criticar a nobreza e o clero nas suas obras ou mesmo dirigir-se ao monarca satirizando
as decisões tomadas.
O dramaturgo esteve presente no sismo ocorrido em Lisboa a 26 de janeiro de
1531. Este operou a atribuir os monges a um possível massacre, através de uma carta ao
rei D. João III, onde resguarda os cristão novos, apartando um pogrom.
Em 1536, deixou-se de encontrar qualquer ligação ao seu nome nos documentos
da altura, pelo que foi dado como morto.

Características principais da obra

Esta obra seguiu-se ao teatro ibérico, conhecido e religioso que já acontecia. A


escrita de Juan del Encina influenciou efetivamente o começo teatral de Gil Vicente e
vai-se prolongando nas suas próximas obras de maior complexidade (de maior
diversidade temática e elegância de meios).

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As suas peças começaram a ter grande distinção, tendo várias formas como por
exemplo o auto pastoril, a alegoria religiosa, narrativas bíblicas, farsas episódicas e
autos narrativos.
Os seus primeiros escritos foram classificados como autos, mistérios (de caráter
sagrado e dedicacional), farsas, comédias e tragicomédias (de caráter profano) pelo seu
filho, Luís Vicente.
A sociedade portuguesa do séc. XVI, foi descrita pelo autor dramático com
refinado gracejo, explicitando uma forte capacidade de análise ao observar o perfil
psicológico das personagens.
É utilizado um grande número de elementos removidos dos espetro social
português da época. Gil Vicente conservava a linguagem habitual dos atores.
Nestas peças, é frequente a comparência de marinheiros, ciganos, camponeses,
fadas e demónios.
As suas melhores obras são a trilogia de sátiras: o Auto da Barca do Inferno
(1516), o Auto da Barca do Purgatório (1518) e o Auto da Barca da Glória (1519).
Também foi escrito, por este autor, a Farsa de Inês Pereira, em 1523, cuja foi um
sucesso.
A sua imaginação e a originalidade declarada, o conteúdo dramático e o
entendimento das características ligadas com a problemática teatral, a forma simples,
plana e direta de se exprimir , são retratados, como pontos positivos nos seus
manuscritos.
Apercebe-se, ademais, que Gil Vicente tem uma alma agitadora, imprudente e
cruel no que toca em provar os vícios dos outros. Por outro lado, quando o assunto é
resguardar aqueles a quem a sociedade maltrata, apresenta-se com um comportamento
completamente diferente. Manifesta-se com uma atitude amável, humana e afetuosa na
sua poesia de aspeto religioso. Acima de tudo, o dramaturgo expõe-se de forma
inspirada, nem sempre seguindo princípios estéticos e artísticos de estabilidade.

Elementos filosóficos da obra

A obra deste autor dramático, transporta uma concepção pessoal do platonismo,


pois propaga uma ideia do mundo que se aparenta a esta corrente filosófica. Sendo
assim, existem dois mundos. O primeiro, que leva a uma conciliação espiritual, devido à

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serenidade e a uma “radiante glória”. Já pelo contrário, o segundo mundo apresenta nas
suas farsas, um universo dissimulado, de agitação, com uma persistência inexistente e
cheio de “canseiras”.
Analisando estes dois mundos, concluímos que estes espelham-se em conteúdos
distintos da sua peça, numa parte, o mundo dos erros dos Homens e das caricaturas,
servidos sem obsessão de verossimilhança ou de acerco histórico. Vários autores
criticaram e ainda criticam Gil Vicente pelos seus anacronismos e falhas na narrativa,
contudo, o poeta considerava que o mundo era o retrato perfeito da falsidade, logo essas
críticas não tinham cabimento, nem importância e não danificam a mensagem que o
mesmo pretendia partilhar. Por outro lado, o autor dava extrema importância míticos,
simbólicos e religiosos do Natal. Figuras como a Virgem Mãe e o Deus menino na noite
natalicia, demonstram um cuidado lírico e um desejo de harmonia e de pureza artística ,
que não estão presentes nas suas obras mais conhecidas de crítica social. Sem os traços
maniqueístas que os defensores dessa visão de mundo costumam ver nas peças, Gil
Vicente, de fato, usa elementos de cena que criam contrastes fortes: contrastes entre luz
e sombra, mas em uma convivência quase amigável. Também aqui a noite de Natal
torna-se a imagem perfeita para resumir a cosmologia de Gil Vicente: a grande
escuridão que constitui a glória divina da maternidade, do nascimento, do perdão, da
serenidade e da boa vontade.

Transmissão e censura inquisitorial da obra

Transmissão da obra

As condições em que chegam até nós as obras de Gil Vicente tornam muito mais
difícil o seu estudo. Somente em 1562, um quarto de século depois da sua morte,
imprimiram as suas obras completas ― a Copilação. Anteriormente, o arquivo, ou pelo
menos parte dele, era impresso como um folheto ou "folhas volantes".

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Folhas volantes impressas em vida de Gil Vicente

Dessas folhas impressas em vida de Gil Vicente, apenas uma delas sobreviveu
até aos nossos dias e num único exemplar: a primeira das três Barcas, tradicionalmente
conhecida por Barca do Inferno. Esse precioso exemplar, encontra-se na biblioteca
Nacional de Madrid, não traz data, mas provavelmente é do ano 1518. Começa com
estas palavras: “Auto de moralidade composto per Gil Vicente por contemplação da
sereníssima e muito católica rainha dona Lianor.”. E no final lê-se: "Auto das Barcas
que fez Gil Vicente per sua mão, corregido e empremido per seu mandado, para o qual e
todas suas obras tem privilégio del-rei nosso senhor, com as penas e do teor que pêra o
Cancioneiro Geral português se houve.”
Assim, esta "folha volante" contém um texto totalmente autêntico da Barca do
Inferno.

Folhas volantes impressas após a morte de Gil Vicente mas


independentes da «Copilação»

Quatro obras foram assim preservadas para nós. Estas "folhas" não são
contemporâneas das representações. São reedições feitas muito mais tarde, em datas
imprecisas mas certamente após a morte do autor. No entanto, todas elas datam do
século XVI. Três delas referem-se a autos que constam da Copilação de 1562, mas têm
textos diferentes.
São as seguintes: Farsa de Inês Pereira que se encontra na Biblioteca Nacional de
Madrid, Pranto Maria Parda, na Biblioteca Palha, Auto da Festa, conservado em
exemplar único na Biblioteca Sabugosa (Este ato não está presente na Copilação).

A Copilação de 1562
Só em 1562 é que a coleção das obras de Gil Vicente foi publicada pela primeira
vez num único volume, sob o título “Copilação de todaslas obras de Gil Vicente”. Esta
é uma publicação esmerada, que hoje é dada como uma edição de luxo, num grosso

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volume de 266 folhas impresso em Lisboa por João Álvares e datado de setembro de
1562.
As obras de Gil Vicente dividem-se em cinco livros: Obras de devação,
comédias, tragicomédias, farsas e obras miúdas. Esta última categoria contém,
juntamente com várias obras de natureza não dramática, o Sermão à Rainha Dona
Lianor e Pranto de Maria Parda.
Como um todo, a Copilação reuniu todos os autos, exceto Auto da Festa. Este
volume, do qual se conhecem seis exemplares no mundo é fundamental para todos
pontos de vista da obra de Gil Vicente. A copilação contém três textos preliminares que
nos fornecem valiosas informações, são eles: O privilégio concedido a 3 de setembro
1561 pela Rainha Dona Catarina a Paula Vicente, filha do poeta, válido por dez anos,
com o intuito de "empremir "um livro e cancioneiro de todas as obra de Gil Vicente, seu
pai, assi as que até ora andaram empremidas polo meúdo como outras que o ainda não
foram". Um prólogo dirigido ao jovem rei D. Sebastião feito por Luís Vicente, filho do
poeta, no qual se consegue ler entre outras coisas: «Tomei a minhas costas o trabalho de
as apurar» e «e fazer empremir sem outro interesse senão servir Vossa Alteza com lhas
deregir e comprir com esta obrigação de filho. E porque sua tenção era que se
empremissem suas obras, escreveu per sua mão e ajuntou em um livro muito grande
parte delas, e ajuntara todas se a morte o não consumira. A este livro ajuntei as mais
obras que faltavam e de que pude ter notícia.». Um prólogo efetuado pelo próprio Gil
Vicente ao rei D. João III onde está escrito: “Estava sem propósito de empremir minhas
obras se Vossa Alteza mo não mandara, por cujo serviço trabalhei a copilação delas
com muita pena de minha velhice e glória de minha vontade, que foi sempre mais
desejosa de servir a Vossa Alteza que cobiçosa de outro nenhum descanso”. É de notar
destes textos que o próprio Gil Vicente tinha começado a preparar a “Copilação” das
suas obras completas, mas que esta obra, não terminada, à data da sua morte, foi
terminada pelo seu filho Luís.

A Copilação de 1586

Em 1586, foi publicada em Lisboa uma segunda edição da "Compilação de toda


as obras de Gil Vicente", por André Lobato. O texto da primeira edição foi

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profundamente censurado inquisitorialmente. A Copilação de 1586, nada acrescenta ao
nosso conhecimento da obra vicentina, com uma exceção: para a reprodução de Dom
Duardos. Esta segunda Copilação baseava-se num original agora perdido e diferente do
utilizado em 1562, sem dúvida remontando a uma folha volante, publicada na época em
que Gil Vicente compôs a peça. Contudo este texto não deixou de ser mutilado pela
censura inquisitorial.

Os problemas de fixação do texto

A maior parte da obra de Gil Vicente, foi nos transmitida pela Copilação de
1562, publicada cerca de vinte e cinco após a morte do autor. No entanto, o estudo
desta compilação e a comparação que pode ser feita, no que diz respeito a um número
limitado de autos, entre o texto que ela apresenta e entre o texto presente nas folhas
volante.
A referida edição foi alvo de críticas por conter numerosos erros e imprecisões.
A divisão em cinco "livros", a divisão das obras dramáticas em «obras de devação»,
«comédias», «tragicomédias» e «farsas», dados sobre a data e o local das representações
e, por fim, o conteúdo do texto, não são fidedignos, em numerosos pontos, à vontade do
autor.

A censura inquisitorial da obra


A inquisição foi introduzida em Portugal em 1536 e cedo se interessou pelo
poeta e pelas suas obras. O Index de 3 de julho 1551, publicado pelo Cardeal-Infante D.
Henrique, proíbe as seguintes três peças: O auto Dom Duardos, o auto da Lusitânia, o
auto do Jubileu de Amores, a auto da Aderência Paço, o auto da Vida do Paço e o auto
dos Físicos. Essas sete peças foram, portanto, publicadas na forma de folhas volantes.
Deve-se enfatizar que três delas foram suprimidas de tal forma, que nenhuma cópia
sobreviveu até aos dias de hoje. Dez anos depois, o Index de março de 1561 insere as
seguintes disposições: «Gil Vicente: suas obras correrão da maneira que neste ano de
1561 se imprimem» e «e nas impressas até este ano guardar-se-á o regimento do rol do
ano passado». Estas palavras não são totalmente claras. Parece, porém, que o seu

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significado era o seguinte: A Inquisição admite uma redução dos padrões decretados em
1551 para a em curso de impressão Copilação, edição de luxo destinada a um público
restrito, mas permanece implacável para os folhetos populares eram susceptíveis de
atingir leitores muito mais numerosos. E, de facto, a compilação inclui Dom Duardos
não expurgado, o Auto da Lusitânia abrangendo os diabos, O Clérigo da Beira com as
matinas e a totalidade do Auto dos Físicos. Em relação a estas quatro peças, pelo menos,
a Inquisição não tomou medidas imediatas e radicais. É provável que esta indulgência
seja explicada pelas proteções desfrutadas pela Copilação. Aliás, só uma intervenção da
Rainha Regente poderia restaurar o rigor do Grande Inquisidor D.Henrique. O Index de
1564 não menciona Gil Vicente, ou seja, A fase de indulgência continua.
Em contrapartida, o Index de 1581 é bastante severo para o autor dos autos. Isso
explica as severas mutilações sofridas pela Copilação 1586.

Enredo

Estrutura interna

Ao estudar bem o Auto da Índia, torna-se fácil identificar uma estrutura tripla ao
longo da peça. A intriga expõe ao público o adultério da Ama, que reclama a
inexistência do Marido.
A primeira parte corresponde à exposição onde se apresenta a etapa da
expectativa da Ama ao não saber se o marido vai embora ou não, e ao relaxamento após
a confirmação da saída da armada, que ela utiliza para identificar a sua vocação ao
adultério. Isto ocorre até ao verso 96.

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A segunda parte corresponde ao conflito é o estágio de adultério. Para isso
acontecer, dá-se a subida ao palco, dos amantes (Castela e Lemos) e a partir daí o
adultério conclui-se. A enfermeira expôs a sua indiscrição, hipocrisia e imoralidade sem
hesitação ou constrangimento.
A entrada do Marido localiza-se a partir do verso 393, e aqui ingressamos na
terceira parte. As circunstâncias que favoreciam o adultério apagam-se e a Ama leva a
sua falsidade ao topo.
O efeito cómico natural da farsa, torna estranho, o crime da Ama ficar impune.
Por outro lado parece admissível pensar que o objetivo do dramaturgo, não era condenar
o adultério, mas sim o precaver. A mensagem contida parece ser a seguinte: corrigir o
culpado não compensa a falta, mas realmente o que importa é eliminar as condições
objetivas que não o possuem.

Principais momentos
O auto pode ser separado em três momentos: a saída do marido, o adultério e o
regresso do marido, sucedidos no espaço da casa da Ama, onde salienta-se o exterior da
casa com as escadas de entrada, com uma janela ao lado. Dentro da casa há uma cozinha
e um quarto com uma cama.
Em primeiro lugar, a representação de uma mulher, sinaliza que ela é moldada a
partir de uma esposa ideal e digna que choraminga em desespero quando o marido
parte. Mas, de acordo com a Nora, esse molde rompeu, porque não foi a sua esposa,
anteriormente infeliz que chorou, mas uma mulher que tem medo de que a partida do
marido não aconteça.
Sem o marido, a mulher fica com a liberdade para viver a sua aventura amorosa
com os seus dois amantes, Castelhano e Lemos. Para preservar a situação sob
monitorização, a Ama tem cumplicidade obrigatória com a Moça. O espaço narrativo é
sempre no interior da casa. O marido acredita na lealdade e na pureza da sua esposa
dentro das limitações do seu espaço doméstico. No entanto, Constança, a Ama chega a
reverter a ordem sem superar essas limitações. A única conexão com o mundo exterior
era através das portas e da janela da sua casa. Com o primeiro amante, o Castelhano, a
janela facilita a relação amorosa em vez de atrapalhá-la. A janela também foi um meio
usado por Constança para sustentar os dois casos extraconjugais. No momento em que

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um dos seus amantes, Lemos, está dentro da casa, apercebem-se da tentativa de chamar
a atenção do outro amante, Castelhano. Sendo assim, a Ama prepara-se para distrair
cada um deles de modo a que não se apercebessem da existência um do outro.
Assim, registrava-se uma destreza da mulher, de poder desmantelar a fidelidade
imposta pelo casamento porém, sem ir além dos limites impostos pelo marido.

Personagens

Ama

Nesta obra, a Ama é a protagonista, pois é a única que permanece em cena do


início ao fim da representação, logo toda a ação gira à volta da mesma. É uma
personagem que é caracterizada diretamente (características que lhe vão sendo
atribuídas por outras personagens ao longo da história) e indiretamente (características
deduzidas através das suas ações). É também uma personagem tipo e plana, porque
apresenta alguns comportamentos característicos da época Vicentina como a
deslealdade ao seu marido durante o tempo de ausência. Assim como, age sempre da
mesma forma, ou seja, seguem um padrão ao longo da história.
No que toca á sua comicidade, a Ama, apresenta dois tipos de cómico, são eles: o
cómico de linguagem (provém da exploração de certas virtualidades da língua, ou seja,
aquilo que é dito causa riso ao espetador) em algumas das expressões insultuosas que a
mesma dirige à Moça e o cómico de caráter (deriva da maneira de ser e de agir da
personagem, que causa riso ao espectador).
Quanto às suas características, a Ama, surge como uma personagem inexperiente
e formosa, e utiliza essas características para defender as suas ações indecentes:

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“Est' era bem graciosa,

Quem se ve moça e fermosa

Esperar pola ira ma.

Partem em Maio daqui,

Quando o sangue novo atiça:

Parece-te que é justiça?”

Apresenta-se uma mulher sedutora e desajuizada, não conseguindo conter os


seus desejos sexuais durante a ausência do seu marido. Esses desejos fazem com que a
mesma aceite, sem pensar duas vezes, as concepções imorais de Castelhano e Lemos:

“Vós querieis ficar cá?

Agora he cedo ainda;

Tornareis vós outra vinda,

E tudo bem se fará.

Que foi do vosso passear,

Com luar e sem luar,

Toda a noite nesta rua?”

Demonstra, desde o principio, ser uma mulher desleal, enganadora e hipócrita.


Enganando o marido e os seus dois amantes, encobrindo a cada um deles a presença do
outro, demonstrando também a sua leviandade. No meio destas características destaca-
se a sua hipocrisia, porque apesar de todos os seus comportamentos imorais, a Ama,
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tenta sempre passar a imagem de uma mulher confiável e digna:

“Foi-se à India meu marido,

E depois homem nacido

Não veio onde vós cuidais;

A vezinhança que dirá,

Se meu marido aqui não 'stá,

E vos ouvirem cantar?”

Moça

A Moça nesta obra é uma personagem secundária que faz a ligação entre a parte
interior e exterior da casa, é também caracterizada diretamente e indiretamente. É uma
personagem tipo, pois representa as criadas cúmplices e interesseiras da época vicentina
e plana pois não altera os seus comportamentos ao longo da história. Contudo, o seu
aspeto mais importante é a sua comicidade, a mesma apresenta maioritariamente,
apenas um tipo de cómico, o cómico de situação, que provém da sua extrema ironia.
No que toca às suas características, mostra ser fiel á Ama, retendo sempre as
informações sobre as várias traições da sua patroa, contudo mostra-se também uma
amiga preocupada e aconselhadora, alertando sempre o sentido de fanfarrice e os atos
indecentes e imorais de Castelhano:
“Jesu! Como he rebolão!

Dae, dae ó demo o ladrão.

(...)

Não vos fieis vós naquelle,

Porque aquillo he refião.”

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Apesar de nunca denunciar, a Ama revela ser astuta e vigilante e crítica aos
comportamentos da mesma, julgando-os severamente através da sua ironia, em muitos
apartes. Desmentindo muitas das acusações feitas pela Ama ao marido:

Todas ficassem assi.

Leixou-lhe pera tres annos

Trigo, azeite, mel e panos.

Opõe-se às suas ações cínicas e à sua hipocrisia:

“ Quantas artes, quantas manhas,

Que sabe fazer minha ama!

Hum na rua, outro na cama!”

Por fim, mostra também uma faceta vingativa, por todas as humilhações que
sofreu, ficando satisfeita pela volta do Marido:

“Raivar, que este he outro jôgo.”

Amantes
Castelhano e Lemos
Castelhano e Lemos, nesta obra são personagens secundárias, caracterizadas
diretamente através das características dadas pela Moça e pela Ama e por via de
deduções derivadas das suas ações, são personagens tipo, porque representam os
amantes disponíveis e oportunistas, que se aproveitam das vulnerabilidade das
mulheres, pela partida dos seus maridos e planas porque agem de acordo com um
padrão não apresentando traços que os destaquem.

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Quanto à sua comicidade estão presentes nos três tipos de cómico, são eles
cómico de linguagem, cómico de caráter e cómico de situação (situações inesperadas e
engraçadas que provocam o riso).
Quanto às características do Castelhano, é um fanfarrão, dando a entender que é
um homem de posses, exagerando na sua coragem. Demonstra ser oportunista,
aproveitando-se da ausência do Marido para procurar a Ama tentando convencê-la com
um discurso exagerado e impróprio para sua condição social, que o torna ridículo. A
imagem de homem culto que tenta transmitir durante a corte a Constança desmorona
quando reagiu com grandes injúrias verbais ao sentir-se rejeitado por ela.É de origem
social modesta, desvendada pela vestimenta (uma capa gasta):

“Que aunque tal capa me veis,

Tengo mas que pensareis:

Y no lo tomeis en grueso.”

No que toca às características de Lemos trata-se de um escudeiro pobre, que


tenta esconder a sua condição social com comportamentos delicados e falas sedutoras.
Apresenta uma facilidade material que não corresponde à realidade e que é rapidamente
denunciada quando manda a Moça fazer compras, porque vai rejeitando os alimentos
caros dando-lhe dinheiro insuficiente para as despesas. O mesmo tenta também tirar
proveito da ausência do Marido para obter a ajuda da Ama:

“Vá esta moça à ribeira


E traga-a ca toda inteira,
Que toda s' ha de gastar.”

Marido

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Por fim, o Marido, é outra das personagens secundárias desta obra, caracterizado
diretamente pelas palavras da Ama e da Moça, e indiretamente através das suas ações. É
como as outras, um personagem tipo que representa os maridos da época Vicentina que
são atraídos pela riqueza do oriente, e que deixam as suas amadas e busca de uma
riqueza fácil, sendo depois traídos pelas mesmas, e plana pois segue a mesma linhagem
e padrão de ações ao longo da história. O Marido apresenta algumas situações cómicas
(cómico de situação).
No que toca às suas características, o Marido é um homem inocente e simplório,
é vítima de infidelidade por parte da Ama, que o enganou constantemente enquanto o
mesmo estava ausente:

“ Hi se vai elle a pescar

Meia legoa polo mar,

Isto bem o sabes tu;”

Processos de cómico

Sendo o Auto da Índia uma farsa, um dos seus principais objetivos é provocar o
riso ao espectador. Como já foi anteriormente referido, no decorrer da obra, estão
presentes três tipo de cómico, cada um deles com intérpretes variados. O primeiro tipo
de cómico, é o cómico de linguagem, que resulta do vocabulário usado pelo personagem
que provoca o riso ao espetador, nesta obra, alguns exemplos do cómico de linguagem
são: algumas das expressões afrontosas que a Ama dirigia à Moça, nas falas ostensivas,
exageradas e repletas de expressões do Castelhano, e na extrema ironia da Moça. O
segundo tipo de cómico presente é o cómico de caráter, que provém da maneira de ser e
de como a própria personagem age e se apresenta em cena, alguns exemplos são: o
Marido e a sua ingenuidade pela maneira como aceita todas as injúrias feitas pela Ama,
a hipocrisia e “falsos ciúmes" da Ama com o Marido, o Castelhano pelo seu exagero e
bazófia e por fim, o uso de um “sombrero” enorme e a confissão da sua “pelintrice” por
parte de Lemos. O último tipo de cómico presente é o cómico de situação, que surge
quando alguma personagem é colocada numa posição ridícula que acontece quando: O
Castelhano espera toda a madrugada ao frio no quintal da Ama á espera que esta o

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autoriza-se a entrar em sua casa e o Lemos a esconder-se na cozinha , de modo, a que a
Ama e o Castelhano consigam falar tranquilamente.

Tempo

Tempo da ação
A gestão do tempo no Auto da Índia foi um enigma confuso para Gil Vicente. A
circunstância de a ação ocorrer continuamente na mesma sala, sugere que os eventos
desenrolam-se em um período de cerca de vinte e quatro horas. O Marido está fora pela
manhã. Imediatamente depois, o Castelhano visita a Ama. De seguida este sai e, logo
depois, chega Lemos e fica para jantar e pernoitar. Enquanto isso, o Castelhano volta e
espera no quintal, ao decorrer da noite, a permissão para entrar, até desistir e retirar-se.
No dia seguinte, de madrugada, Lemos sai e dentro de pouco tempo volta o marido.
Todavia, o tempo descrito não corresponde a um dia e uma noite, mas a uma
temporada de cerca de três anos. É a fala das personagens, principalmente da Moça que
indica a passagem do tempo e faz com que o público recuse o tempo de vinte e quatro
horas. Desde o início soube-se que o Marido havia saído para o mar e deixado a mulher
com víveres para três anos:
“Leixou-lhe pera tres annos

Trigo, azeite, mel e panos.”

A garantia provém da enfermeira ao hospedar Lemos e contar-lhe que o marido


foi para a Índia (v. 238). O tempo de viagem de ida e volta para a Índia na época era de

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dois a três anos, e o tempo representado na impressão dos ouvidores, agora é reduzido
para algumas horas.
Num estágio mais avançado de representação, é a Moça que marca a passagem
do tempo e anuncia a volta do marido, explicando:
“(...) agora vai em dous annos

Que eu fui lavar os panos

Alem do chão d' Alcami;

E logo partiu a armada (...)

Tres annos ha

Que partio Tristão da Cunha.”

Contexto histórico
Por meio desta farsa, Gil Vicente revela várias características da realidade
social, económica e moral da época da expansão para o Oriente, no século XVI.
As obras vicentinas trazem para a sua criação o contexto de um instante,
marcado pela passagem de valores e ideologias presentes em Portugal desde o final do
século XV, ao início do século XVI. É a mudança do final da idade Média para uma
época do Renascimento, chamada de Idade Moderna. Nessa época, as grandes
navegações provenientes do negócio marítimo, trazem consigo a expansão ultramarina.
Essa nova condição comercial, auxiliou a progressão da burguesia encarregue pela
promoção do comércio. O poder material é mais significativo do que o predomínio.
Os sábios da altura, sobretudo os analfabetos, percebiam-se como agentes de
transição, que dispunham proceder e alterar a situação. Foi o alargamento do
racionalismo humanista que transmitiu o feudalismo à crise. Desta maneira, o homem
começa a louvar-se sem desistir completamente a preocupação de Deus.

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Gil Vicente foi moldado por essas relações sociais entre traços humanísticos e
pontos renascentistas.
As obras deste dramaturgo eram discursadas na corte perante a alta nobreza, em
que estas apresentavam interpretações destes tipos sociais. As suas encenações teatrais
avultavam-se pelo seu poder de inovação nunca antes visto.
Antes, estas encenações eram usadas como uma fonte de distração da corte de D.
João II e D. Manuel, sendo conhecidas como “sermões burlescos”. Seguindo então esta
tradição, de modo a festejar o nascimento do príncipe João, futuro rei D. João III, este
autor cria o “Auto da Visitação”. É importante observar que Gil Vicente não atenta-se
com conflitos psicológicos, como ocorria nos teatros clássicos.
Concluindo, é possível identificar nas encenações vicentinas, três formas de
estrutura cénica: a farsa, o auto de enredo e o auto alegórico.

A moral na época de Gil Vicente


O tempo em que viveu Gil Vicente foi de variados recursos de beleza.
Certamente foi um período cheio de típicos contrastes medievais.
Podemos afirmar que, na época deste autor dramático, a moral era fortemente
influenciada pelos valores religiosos e sociais, com uma ênfase no pecado, redenção e
justiça divina. As peças de teatro de Gil Vicente muitas vezes abordavam temas como a
corrupção, a hipocrisia e a ganância, expondo as fraquezas humanas e defendendo a
necessidade de um comportamento virtuoso e honesto, Além disso, a moral também era
influenciada pelos costumes e normas da época, que variavam dependendo da classe
social, da religião e da cultura.

Reforma da Igreja
A época vicentina era conhecida pela Reforma. Esta ação coletiva marcou o
início de um longo procedimento de críticas internas em várias frentes. A ideia de que a
igreja estava em declínio e requeria de uma grande organização era bastante difundida.
Mas a ação deste movimento surgiu em todas as épocas com respostas que nem sempre
são encorajadoras para os reformadores ou para a igreja. No século XIV, John Wiclif
atacou os abusos de Roma e a corrupção do clero. Pouco tempo depois, Johannes Huss

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divulgou a mesma crítica. As repercussões logo se seguiram: em 1411 ele foi
excomungado e em 1415 foi queimado.
É verdade que inúmeras dessas críticas vêm de reformadores conhecidos,  que
logo deixaram a igreja. Na época vicentina: Elogio da locura (1511), cujo Erasmo
enfrenta, entre diversas coisas, o preconceito e as leis religiosas, as finuras da lógica
formal, os medíocres hábitos do clero e a sua incompetência e as 95 teses de Lutero,
publicadas em Wittemberg em 1517, cujas o autor deixa perceptíveis as suas críticas
mundialmente famosas a Roma.
As mesmas opiniões surgem de dentro da igreja. Em 1516 Tomas Moro divulgou
a sua Utopia, obra que fala de um território onde o rei e os presbíteros são escolhidos,
onde o património é habitual e a lei é o Evangelho. O papa Urbano VI inicializa o
movimento reformista. Os cardeais se opuseram, não querendo abandonar as suas
regalias. Essa luta interna tornará incluso ao Cisma. Os que estão no poder, ignoram as
reformas, nas quais os privam dos seus direitos, concedidos a eles por esse poder.
Na ocorrência da crítica de Gil Vicente à reforma, entre todas as interdições da
Inquisição, não achamos uma que se relacione com heresias, mas com a ética da ideia
do inquisidor. Assim, Gil Vicente é punido pela crítica, por vezes sem simpatia, ao
príncipio religioso, à maldade do clero e à falsidade social e religiosa do período. Como
costume, os desejados pela crítica, inúmeros deles com autoridade, reagem
agressivamente. O poder civil, por pretextos económicos e políticos, condena-o de
plágio o que dificulta a publicação da sua obra.

Sexualidade
Para esclarecer essa moral fixada na esfera sexual, convém considerar que a
regulação dos comportamentos sexuais está instruída pelo tempo e pela cultura, devendo
examinar-se a sua relação com eles. As normas sociais da sexualidade estão entre as
conquistas culturais mais importantes. Em todas as sociedades parece estar marcado
com o que é absoluto para cada uma delas: “segundo a vontade de Deus”, “de acordo

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com a natureza”, já que as próprias normas sexuais muitas vezes não são o resultado
direto de necessidades biológicas, mas sim de restrições sociais às atividades sexuais.
A homossexualidade era vigorosamente penitenciada. A ideia de que as relações
sexuais têm como objetivo a procriação, torna a sodomia um crime grave, não só para a
igreja, mas também para o direito civil. As grandes penitências e castigos associados
são justificados porque "ofendeu-se não apenas o Criador da natureza, que é Deus, mas,
por assim dizer, toda a natureza criada”. Este crime era aplicado de forma mais séria em
relação a homens. A condenação era de vinte e uma quaresmas para o ativo e vinte e
oito para o passivo (forma de condenação da época). Já a punição das mulheres era
apenas de sete quaresmas a ativa e cinco a passiva. Diversas causas para esta tolerância
seria a menor importância social da mulher, o que leva a que todas as suas atividades
sejam mais ignoradas, incluindo a atividade sexual.
De acordo com o tratamento do manual, a prostituição é relativamente tolerada.
Muitas pessoas consideravam a prática nem mesmo um pecado. Além de não cair nos
braços da Inquisição, era fornicação pura, não era crime grave se não houvesse
agravantes. Uma prostituta sendo uma mulher desconhecida é considerada agravada
porque aumenta o risco de incesto ou adultério com uma mulher não cristã: “casadas ou
solteiras este pecado he muito grave e especialmente se ela he estranha ca por ventura
será suaparenta ou sua cunhada ou moura ou judia”. Duas razões explicam este
tratamento tão misericordioso da prostituição: primeiro, porque cerca de 20% da
população esteve associada à expansão marítima, cujas consequências são: muitos
embarcaram, morreram e desapareceram; muitos estrangeiros viveram ou transitaram.
Então, há grandes restrições à atividade sexual legal entre os esposos, o que só pode
acontecer “con entençõ de fazer filhos ou se lho ella demãda”. Também temos que levar
em consideração, que para entender a aceitação relativa da prostituição, a sociedade é
dominada e dirigida por homens, que veem como normal a procuração e descoberta de
soluções para um obstáculo que os afetava mais diretamente a eles.
Prazer
Na concepção cristã do século XVI, a primeira consideração era a proibição total
do prazer pelo prazer. Ações realizadas apenas por prazer são uma tentação diabólica. O
tratado deixa claro, por exemplo, que as relações sexuais têm um objetivo muito
específico: a procriação. A legalidade ou ilegalidade dessas relações, mesmo com a
legítima esposa, dependia inteiramente da intenção procriativa, como pode observar-se

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de uma tradicional pergunta do confessor: “se ajuntou a sua molher salvante por fazer
filhos de beênçom por que as vezes o casado pode pecar mortalmente cõ sua molher”.
Este assunto é tão importante, que na seção dedicada à definição de penas, esclarece-se
que: “quem jaz con sua molher com entençõ de fazer filhos ou se lho ela demãda e nom
tem outra maneira nom peca”. Mas vai além do que atualmente é inaceitável: “se o
marido nõ quer jazer com sua molher quando ela quiser e ela vai jazer com outrem, todo
este pecado fica ao marido”. Este conceito faz sentido porque o pecado de bestialismo
carrega uma penalidade menor do que a sodomia. Ossuna entende que o casamento não
deve ser usado para diversão, ele só é tolerado porque não há outra maneira de ser
produzido.

Pecado
Amartanu (pecado) etimologicamente significa desobediência a Deus.
Poderíamos dizer que o pecado está no centro da história da salvação. O pecado original
introduz a destruição da criação, a morte, a Encarnação e a Redenção.
Gil Vicente, no Auto da alma, dispõe uma bonita explicação para o pecado de
Eva: fingir ser igual a Deus e, portanto, digna de serviço e adoração: “Ó como estou
preciosa, / tão dina pera servir, / e sancta pera adorar!”.
Adão e Cristo são a origem do pecado e da justificação, respetivamente, porém
“Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma alegria”.
Segundo os autores bíblicos, a causa da morte física e espiritual é o pecado. O universo
criado por Deus é harmonioso e livre da morte e das criaturas malignas. A redenção não
acaba com o pecado de uma vez por todas, mas dá ao homem a possibilidade de ser
salvo e de se tornar justo se se arrepender do seu pecado. A história humana sempre foi
marcada pelo pecado e pelas suas consequências, não só na relação do homem com
Deus, mas também na sua relação com os outros no âmbito pessoal e social.
Gil Vicente integra praticamente tudo, o que há para saber sobre o pecado na sua
obra. Não há obra na qual não apareça, subentendido ou claramente. Às vezes, como
nos autos da alma, das barcas e da feira, onde o pecado é o tema central, ele leva o
assunto muito a sério. Noutras alturas, recordando a faceta cómica de Gil Vicente, este
expõe a fragilidade humana como desculpa para a hilaridade. Assistir o cómico nos
momentos alheios, ajuda a libertar a própria tensão, retirando-lhes o que podem ter

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como pessoa e tornando-os parte do coletivo. Esta é uma das razões, pelas quais as
obras anedóticas e cómicas têm aumentado como formas de exorcismo em situações de
crise social. Entre os muitos pecados apontados por Viñones, todas as áreas estão
cobertas. Os eclesiásticos destacam-se como se escrevessem para Gil Vicente.
Entre os vários tipos de pecado, o sexo e o dinheiro ocupam um espaço de
condenação de longa data.
A excomunhão, punição que só deve ser usada em casos extremamente graves, é
aqui ridicularizada por ser usada em situações de pouca importância, como assobiar um
cão. Os atos humanos na Idade Média eram habitualmente medidos por padrões tão
exigentes que os fiéis terminavam com uma consciência escrupulosa ou excessivamente
negligente. Alguns dos pecados foram considerados tão sérios que o perdão só poderia
ser concedido pelo papa.
O homicídio, exposto em todas as variantes ― assassinato de pessoas
consagradas, uxoricídio, infanticídio, aborto, é o signo da violência institucionalizada. A
conquista da terra e a consolidação do poder sobre ela, levaram a muitos motins,
incêndios, estragos a igrejas e palácios, pelos quais esses pecados receberam pesadas
penitências.
Tudo o que diz respeito à Igreja será severamente punido: roubo de objetos
sagrados, violação de túmulos, remoção de ofertas e dízimos.

Importância da confissão
A cultura neste outono medieval ainda era principalmente cristã. A igreja é muito
explícita sobre a necessidade da cristandade nesta comunidade, que já está longe de
Deus por todos os métodos disponíveis. Através disso, tencionava mais do que a
conversão pessoal e individual, a autêntica metanoia, a transformação completa e geral
de imaginar, perceber e agir da nova pessoa, crente de Cristo. A Igreja visava uma
educação integral do ser humano: o seu espírito, as suas emoções, o seu corpo, os seus
gestos, os seus hábitos, os seus valores, o seu conhecimento e a sua identidade.
Para efetuar uma tarefa tão complexa, a Igreja precisava achar o caminho mais
adequado. O sacramento da confissão é especialmente significante neste contexto: os
cristãos são muito sensíveis a tudo o que tem a ver com o pecado, pelo que representa
em relação ao além, sempre tão próximo e tão misterioso. A importância estratégica

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dessa consagração para a educação religiosa do povo foi tão reconhecida pelas igrejas
locais, que muitas delas decretaram regras de periodicidade mais rígidas: três vezes ao
ano, em geral. A confissão periódica permitia avaliar os conhecimentos dos fiéis e
conhecer a sua vida pública e privada.
Pela confissão e arrependimento, a  Igreja procura transformar a sociedade, por
meio da moderação na comida e na bebida, no jejum, na castidade exigida, em
determinadas eras do ano ou ao longo da vida, para os legalmente casados e obrigações
do descanso e da missa dominical. Por outro lado, esse aspeto da confissão deveria ser
tão educativo quanto a acusação do pecado.
Durante todo o período de expiação, os pecadores tinham a oportunidade de
refletir sobre os seus pecados e arrepender-se.

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Conclusão
Em suma, concluímos que este manuscrito é uma das obras mais ricas em termos
históricos da literatura portuguesa pois retrata a vida e os costumes da época Vicentina,
tanto nas personagens como no espaço e no tempo. É também uma peça que requer
muita atenção para que se perceba todos os seus pormenores e não nos induza em erro.
Sendo assim este trabalho necessitou de algum tempo para a sua realização, de
modo a que os erros fossem mínimos e para que esta relíquia da literatura portuguesa
fosse bem proclamada.

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