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TEOLOGIA

PÚBLICA

Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor Executivo de EAD
William Victor Kendrick de Matos Silva
Pró-Reitor de Ensino de EAD
Janes Fidélis Tomelin
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Diretoria Executiva
Chrystiano Mincoff
James Prestes
Tiago Stachon
Diretoria de Design Educacional
Débora Leite
Diretoria de Graduação e Pós-graduação
Kátia Coelho
Diretoria de Permanência
Leonardo Spaine
Head de Produção de Conteúdos
Celso Luiz Braga de Souza Filho
Gerência de Produção de Conteúdo
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Gerência de Projetos Especiais
Daniel Fuverki Hey
Supervisão do Núcleo de Produção
de Materiais
Nádila Toledo
Supervisão Operacional de Ensino
Luiz Arthur Sanglard
Coordenador de Conteúdo
Roney de Carvalho Luiz
Designer Educacional
Janaína de Souza Pontes
Projeto Gráfico
Jaime de Marchi Junior
José Jhonny Coelho
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a
Arte Capa

Arthur Cantareli Silva
Ilustração Capa
Bruno Pardinho
272 p.
Editoração
“Graduação - EaD”.
Victor Augusto Thomazini
1. Teologia. 2. Pública. 3. EaD. I. Título. Qualidade Textual
Talita Dias Tomé
ISBN 978-85-459-1246-0
Ilustração
CDD - 22 ed. 209
Marcelo Yukio Goto
CIP - NBR 12899 - AACR/2

Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário


João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828
Impresso por:
Em um mundo global e dinâmico, nós trabalhamos
com princípios éticos e profissionalismo, não so-
mente para oferecer uma educação de qualidade,
mas, acima de tudo, para gerar uma conversão in-
tegral das pessoas ao conhecimento. Baseamo-nos
em 4 pilares: intelectual, profissional, emocional e
espiritual.
Iniciamos a Unicesumar em 1990, com dois cursos
de graduação e 180 alunos. Hoje, temos mais de
100 mil estudantes espalhados em todo o Brasil:
nos quatro campi presenciais (Maringá, Curitiba,
Ponta Grossa e Londrina) e em mais de 300 polos
EAD no país, com dezenas de cursos de graduação e
pós-graduação. Produzimos e revisamos 500 livros
e distribuímos mais de 500 mil exemplares por
ano. Somos reconhecidos pelo MEC como uma
instituição de excelência, com IGC 4 em 7 anos
consecutivos. Estamos entre os 10 maiores grupos
educacionais do Brasil.
A rapidez do mundo moderno exige dos educa-
dores soluções inteligentes para as necessidades
de todos. Para continuar relevante, a instituição
de educação precisa ter pelo menos três virtudes:
inovação, coragem e compromisso com a quali-
dade. Por isso, desenvolvemos, para os cursos de
Engenharia, metodologias ativas, as quais visam
reunir o melhor do ensino presencial e a distância.
Tudo isso para honrarmos a nossa missão que é
promover a educação de qualidade nas diferentes
áreas do conhecimento, formando profissionais
cidadãos que contribuam para o desenvolvimento
de uma sociedade justa e solidária.
Vamos juntos!
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
profissional, nos transformamos e, consequentemente,
Pró-Reitor de
Ensino de EAD
transformamos também a sociedade na qual estamos
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desafios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
Diretoria de Graduação
e Pós-graduação este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação profissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita.
Ou seja, acesse regularmente o Studeo, que é o seu
Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns
e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das dis-
cussões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe
de professores e tutores que se encontra disponível para
sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de
aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui-
lidade e segurança sua trajetória acadêmica.
CURRÍCULO

Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero


Tem experiência na área de Teologia e Ciências da Religião, atuando
principalmente nos seguintes temas: exegese bíblica, judaísmo antigo,
análise do discurso, teologia pública, sociologia da religião. Atualmente é
professor da Faculdade Teológica Sul-Americana e dirige o ITHAVALE (Instituto
de Teologia Humanidades e Artes do Vale do Paraíba). Tem Doutorado em
Teologia pela Escola Superior de Teologia (2000) e Mestrado em Teologia
pela Escola Superior de Teologia (1995). Possui graduação em Teologia pela
Faculdade Teológica Batista de São Paulo (1980).

Publicou mais de quinze livros e cento e vinte artigos acadêmicos.

Disponível em: <http://lattes.cnpq.br/6084107335994470>


APRESENTAÇÃO

TEOLOGIA PÚBLICA

SEJA BEM-VINDO(A)!
Olá! Bem-vindas e bem-vindos ao nosso estudo da disciplina Teologia Pública, no Bacha-
relado em Teologia do Unicesumar. Ficamos alegres com sua participação e desejamos
crescer juntos enquanto docente e discentes na reflexão sobre os temas desta disciplina.
Teologia Pública! O que é isto? Ela não é uma nova teologia, do estilo da teologia da
libertação, ou teologia da justiça, ou teologia da vida etc. Teologia pública é, como o
adjetivo indica, a teologia que se ocupa primariamente, que coloca sua principal ênfase
na função pública da Teologia. Bem! Você deve ter notado que esta primeira explicação
é tautológica (uma fala vazia, ou repetitiva). Teologia pública é a teologia que enfatiza a
função pública da Teologia. Mas, qual é a função pública da Teologia?
Entendo por função pública da Teologia a presença e participação crítica da reflexão
teológica na vida pública de uma sociedade. A vida pública de uma sociedade é aquela
dimensão da vida social que tem a ver com as relações sociais, políticas, econômicas,
culturais, tecnológicas, educacionais, intersubjetivas, de gênero etc. Neste sentido, pú-
blico é tudo aquilo que não pode pertencer apenas ao âmbito privado da vida individu-
al, da vida familiar ou da vida religiosa.
Uma teologia se torna pública quando ela não restringe a sua reflexão aos interesses
privados do indivíduo, da família ou da igreja. A teologia se torna pública quando ela
vai a público e se arrisca a participar nos debates públicos de uma sociedade. É a refle-
xão teológica que enfrenta questões como a violência, a corrupção, a injustiça social, as
identidades de gênero, a censura, a desigualdade econômica, a participação cidadã na
democracia, etc.
Vamos, então, juntas e juntos, conversar sobre e desenvolver nossa compreensão te-
órica e prática da função pública da Teologia. Vamos pensar juntamente sobre alguns
dos grandes temas públicos que afetam a vida humana. Orar, refletir e agir são os três
momentos da teologia que se torna pública!
09
SUMÁRIO

UNIDADE I

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA TEOLOGIA PÚBLICA

17 Introdução

18 O que é Teologia?

22 Definindo Teologia Pública

24 A Teologia da Missão Integral Como Teologia Pública

28 Uma Agenda Para a Teologia Pública no Brasil

30 O Sujeito da Teologia Pública no Brasil

36 Considerações Finais

42 Referências

43 Gabarito
10
SUMÁRIO

UNIDADE II

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE

47 Introdução

48 O Conceito de Liberdade na Filosofia Contemporânea

58 Um Olhar Bíblico Sobre a Liberdade

75 Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Ética

79 Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Sociocultural

92 Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Política-Subjetiva

96 Considerações Finais

102 Referências

103 Gabarito
11
SUMÁRIO

UNIDADE III

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA

107 Introdução

108 O Conceito de Justiça na Filosofia Contemporânea

119 Um Olhar Bíblico Sobre a Justiça

136 Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Ético-Moral

142 Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Legal

149 Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Socioeconômica

154 Considerações Finais

160 Referências

161 Gabarito
12
SUMÁRIO

UNIDADE IV

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO

165 Introdução

166 O Conceito de Reconhecimento na Filosofia Contemporânea

172 Um Olhar Bíblico Sobre o Reconhecimento (Aliança)

178 Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia do Cuidado 

192 Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia da Tolerância

198 Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia da Amizade

205 Considerações Finais

211 Referências

212 Gabarito
13
SUMÁRIO

UNIDADE V

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA

215 Introdução

216 O Conceito de Soberania na Filosofia Contemporânea

219 Um Olhar Bíblico Sobre a Soberania

232 Uma Teologia Pública da Soberania – Poder

246 Uma Teologia Pública da Soberania - Cidadania

250 Uma Teologia Pública da Soberania - Democracia

262 Considerações Finais

268 Referências

269 Gabarito

270 CONCLUSÃO
271 ANOTAÇÕES
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA

I
UNIDADE
TEOLOGIA PÚBLICA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Definir teologia e seus tipos.
■■ Conceituar Teologia Pública.
■■ Descrever a Teologia da Missão Integral enquanto Teologia Pública.
■■ Explicar os principais tópicos de uma agenda para a Teologia Pública
no Brasil.
■■ Descrever as principais características do Protestantismo no Brasil
como sujeito da Teologia Pública.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O que é Teologia?
■■ Definindo Teologia Pública
■■ A Teologia da Missão Integral como Teologia Pública
■■ Uma Agenda para a Teologia Pública no Brasil
■■ O Sujeito da Teologia Pública no Brasil
17

INTRODUÇÃO

Olá! É um prazer iniciarmos nossas conversas sobre a Teologia Pública. Espero


que esta disciplina seja tão abençoada e desafiadora para vocês quanto tem sido
para mim. Preparem-se e mãos à obra!
Nesta Unidade, conversaremos sobre temas fundamentais para a nossa jor-
nada ser agradável e prazerosa. Iniciamos com uma descrição da teologia enquanto
atividade acadêmica. Bem, você é estudante de teologia, logo, deve saber o que é
teologia, não é verdade? Não custa nada, porém, lembrarmos do que já sabemos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

e, quem sabe, acrescentarmos algo novo e interessante ao nosso saber.


Nosso segundo tema é uma definição da teologia pública. Vocês perceberão
que não é uma tarefa tão simples quanto parece. Definir sempre é uma tarefa
complicada, pois a realidade é muito maior do que os conceitos que tentam expli-
cá-la. Ao mesmo tempo, porém, sem conceitos ou definições, temos dificuldades
imensas para experimentar e lidar com a realidade.
Depois da definição, refletiremos sobre uma forma de teologia precursora
da Teologia Pública na América Latina: a teologia da missão integral. Precursora,
não no sentido meramente cronológico, mas também no sentido qualitativo. O
que chamamos, hoje, de Teologia Pública é um modo de fazer teologia que já se
praticava, embora sem o nome. A teologia da libertação, a teologia feminista,
a teologia política, entre outras, também são outras precursoras da Teologia
Pública. O novo jamais pode ser uma recusa da tradição, mas sempre uma reno-
vação da tradição.
Os dois últimos temas se complementam mutuamente. Estudaremos alguns
dos temas fundamentais da agenda de uma teologia pública no Brasil atual -
ou seja, algumas questões públicas desafiadoras para a fé cristã. Encerraremos
a Unidade com uma discussão sobre o sujeito da Teologia Pública. Quem faz
teologia pública? Não somos apenas nós, ‘teólogos e teólogas profissionais’ que
fazemos teologia, mas é o povo de Deus que faz, conosco, teologia pública, por
meio de sua participação na vida do país. Quem somos nós, então?

Introdução
18 UNIDADE I

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O QUE É TEOLOGIA?

Olá colegas! Iniciamos nosso estudo da Teologia Pública. Para começar, vamos
refletir sobre o que é a teologia em sua forma acadêmica.

TIPOLOGIA TEOLÓGICA ACADÊMICA

Começaremos com uma definição elementar: teologia é o estudo de Deus e de


suas relações com a criação. Esta não é uma definição completa, mas é suficiente
para começarmos nossa conversa. Vou focar nossa reflexão sobre a teologia
na tradição protestante, especialmente a partir do século XVIII, quando a teo-
logia recebeu a forma de organização que ainda está presente na maioria dos
cursos de Teologia da atualidade. Nessa tradição acadêmica protestante, a teo-
logia, enquanto forma disciplinada de pensamento (a maioria dos professores
de teologia diria ciência), foi assumindo formas específicas, com seus próprios
métodos, problemas, bibliografia etc. A prática do ensino de teologia nas facul-
dades teológicas fez com que a Teologia fosse organizada ao redor de quatro
grandes eixos.
O primeiro, e mais importante durante longo tempo, foi exatamente o da
Teologia Sistemática. A Sistemática era pensada como a forma mais completa
da reflexão teológica, pois sua função era a de construir um sistema dos concei-
tos fundamentais da fé cristã, totalmente coerente, completo, capaz de atender
as necessidades da igreja, e também de dialogar com a filosofia e outras formas

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA TEOLOGIA PÚBLICA


19

do saber acadêmico. Ao lado da Sistemática, colocava-se a Teologia Histórica,


cuja função principal era fornecer à teologia sistemática matéria-prima para que
ela pudesse ser feita de forma completa – pois um sistema adequado de teolo-
gia teria de incorporar todo o pensamento teológico cristão verdadeiro, e ser
capaz de criticar todos os falsos conceitos teológicos e doutrinários, bem como
corrigir os erros não teológicos que afetassem a teologia, e para fazer a crítica, é
necessário conhecer a história do pensamento.
Mais para o final do século XIX, acrescentou-se a Teologia Bíblica, que
também deveria fornecer matéria-prima para a Teologia Sistemática, mas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

que se tornou uma disciplina autônoma nas Faculdades, afinal, a Bíblia é a


regra de fé e prática dos cristãos, e toda teologia tem de se basear nela. É a
Palavra de Deus, e nenhuma teologia cristã verdadeira poderia ser feita sem
se basear nela. Porém, na Bíblia, não há uma exposição sistemática das dou-
trinas cristãs, ou dos conceitos teológicos cristãos. Essa sistematização precisa
ser feita por teólogas e teólogos que, lendo a Bíblia a partir de uma ideia pré-
via de sistema teológico, organizassem as verdades bíblicas de forma racional
e coerente. Por fim, também se desenvolveu a Teologia Prática, uma espécie
de aplicação da Teologia Sistemática para o governo da igreja e para a vida
cristã. A teologia prática, durante muito tempo, foi considerada uma forma
auxiliar de teologia. Nas últimas décadas, porém, tem ocupado um espaço
cada vez maior nas faculdades de teologia que reconheceram o valor da prá-
tica para a teologia e da teologia para a prática. No eixo da Teologia Prática
se agruparam os estudos sobre ministério, missão, vida comunitária e insti-
tucionalidade da igreja.
Hoje em dia, porém, essas definições estão bastante embaralhadas. Na prá-
tica, se percebeu que a divisão da teologia nestas quatro grandes áreas é mais
útil para a organização dos currículos de faculdades de teologia do que, propria-
mente, para a teologia mesma. Assim, embora se continue usando esta tipologia
nos meios acadêmicos, precisamos repensá-la a partir de uma revisão da pró-
pria definição da teologia. Para caminharmos nessa direção, nosso próximo
tópico discutirá as características constitutivas da Teologia enquanto saber aca-
dêmico. Em outras palavras, vamos conversar sobre os elementos que fazem a
teologia ser ‘teologia’.

O que é Teologia?
20 UNIDADE I

Que diferença é essa? Veja bem: quando um pastor prega, parte do con-
teúdo de sua pregação é teologia; quando uma pastora ensina em um grupo
de membros da igreja, parte do que ela faz é teologia. Quando cantamos nos
cultos da igreja, parte do que cantamos é teologia. Isto é, se pensarmos na teo-
logia como toda e qualquer fala cujo conteúdo é “Deus e suas relações com
a criação”, a teologia está presente em todas as atividades da igreja (e pode-
ríamos dizer, também, da vida devocional dos crentes individualmente). Se
pensarmos na teologia desse modo, então tudo é teologia e se tudo for teo-
logia, nada, de fato, será ‘teologia’. No meio acadêmico precisamos definir

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
bem o sentido de uma palavra, a fim de sabermos a respeito do que estamos
falando. Por isso, no próximo tópico, discutiremos os elementos que cons-
tituem a teologia enquanto um saber disciplinado ou, como vários teólogos
preferem, enquanto uma ciência.

CARACTERÍSTICAS DA TEOLOGIA

Uma teologia, propriamente dita, deve possuir quatro características: her-


meneuticidade, ou seja, fundamentar-se nas Escrituras e, derivadamente,
nas tradições cristãs; criticidade em relação às suas fontes e à experiên-
cia religiosa de seus praticantes; praticidade - vincular a sua reflexão com a
sabedoria, a fim de construir não só um saber, mas um saber-viver; e publici-
dade - estar presente nos espaços públicos da sociedade. Em outras palavras,
o que estou dizendo é: qualquer que seja o tipo de teologia (sistemática, prá-
tica etc.), a teologia sempre terá estes quatro elementos: hermeneuticidade,
criticidade, praticidade e publicidade – a teologia sistemática possui esses
quatro elementos; assim como a teologia bíblica, da mesma forma como a
teologia prática e, igualmente, a teologia histórica. Se usarmos uma tipolo-
gia mais presente nas faculdades católico-romanas: a teologia fundamental
possui estes quatro elementos; a teologia moral também possui estes quatro
elementos, e assim por diante.
Minha tarefa é, a partir de agora, descrever cada uma destas características.

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA TEOLOGIA PÚBLICA


21

Hermeneuticidde

A teologia é basicamente interpretação da Escritura no ambiente tradicional das


Igrejas e/ou da Academia teológica. É uma interpretação crítica e construtiva,
construída em amplo diálogo com os saberes das ciências humanas, a fim de ler a
Escritura em seu contexto a partir do contexto do intérprete. É hermenêutica posto
que, também, é interpretação de Deus para o ser humano - não basta interpretar
a Escritura, há que interpretar Deus para o mundo de hoje. Assim, a hermeneu-
ticidade da Escritura não é só interpretação, mas também comunicação da fé.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Criticidade

Ser crítico é fundamental para ser um saber publicamente discutido. Teologia


não é mera opinião, nem mero testemunho pessoal. É opinião (senso comum)
transformada em saber argumentado. É testemunho refletido criticamente, ques-
tionado em suas bases, efeitos e consequências. É crítica porque é expressão do
discernimento da fé: crítica e autocrítica permanente da fé e da vida cristãs na
igreja e no mundo (WEBER, s.d.; FOUCAULT, 1990).

Praticidade

No pensamento teológico latino-americano, a Teologia da Libertação se define


como “reflexão crítica sobre a práxis”: em primeiro lugar vem o compromisso
com Deus e com os pobres, depois vem a teologia: ato segundo. Com esta nova
compreensão, a teologia pode ser vista como uma reflexão crítica na ação do
povo de Deus. Fazer teologia é, por um lado, ação de todos os membros do povo
de Deus engajados na missão. Por outro, é a tarefa especializada de teólogos e
teólogas que, em diálogo com o povo de Deus e com as demais teologias, cons-
troem teorias que explicam e avaliam a ação já realizada e propõem novas formas
de ação, na energia do Espírito, para a transformação integral do ser humano.
Teoria e prática são dimensões da ação missionária do povo de Deus. Na prática,
desenvolvem-se teorias que, por sua vez, irão realimentar as práticas cristãs com
novas perspectivas e possibilidades (HABERMAS, 2010; 2016).

O que é Teologia?
22 UNIDADE I

Publicidade

Não uso a palavra, aqui, no sentido que se dá a ela no termo Teologia Pública.
Uso-a em seu sentido elementar de algo que pode ser visto por outras pessoas
além de seu criador ou proprietário. A teologia não pode se restringir aos livros
e ambientes fechados da academia ou da igreja. Ela deve sair desses ambientes e
enfrentar os desafios do mundo, da missão, da sociedade etc. Deve estar pronta
para dialogar criticamente com todos os demais saberes humanos, mesmo com
os que se opõem a ela. Deve estar pronta a se expor diante das pessoas em geral,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a fim de ser testemunho da fé e não só reflexão sobre a fé.

DEFININDO TEOLOGIA PÚBLICA

Muito bem, amigas e amigos. Vamos, agora, entrar no campo da teologia pública
propriamente dita.
Na seção anterior, vimos que toda teologia acadêmica possui quatro carac-
terísticas: hermeneuticidade, criticidade, praticidade e publicidade. Como ligar
essas características aos tipos de teologia nas faculdades? Por exemplo: na teologia
sistemática predomina a criticidade (as outras três características estão presentes,
mas subordinadas à criticidade); na teologia prática predomina a praticidade, na
teologia bíblica predomina a hermeneuticidade. Fica fácil, agora, você respon-
der: “que característica predomina na teologia pública?” Tenho certeza de que
você acertou: na teologia pública predomina a publicidade. Então, já temos uma
primeira definição de teologia pública: é a teologia em que predomina a carac-
terística da publicidade, ou seja, teologia pública é uma forma de teologia que se
ocupa primariamente de temas ligados à esfera pública ou, de modo mais amplo,
ao espaço público (questões ligadas ao funcionamento da sociedade civil e do
estado). Um dos principais pesquisadores da teologia pública no Brasil assim
descreve a sua atividade:

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA TEOLOGIA PÚBLICA


23

por fim, teologia pública mantém a sensibilidade da teologia para pro-


blemas ligados ao bem comum e para os quais são possíveis contri-
buições a partir da fé cristã. Nesse sentido, tematiza o pluralismo reli-
gioso e a presença de comunidades religiosas no espaço público, seus
direitos e deveres no âmbito da liberdade religiosa no estado secular
de direito, a existência e a modalidade de ensino religioso em escolas
públicas, mas também e não por último a situação econômica e social
daqueles que mais sofrem. Este é o sentido contínuo e irrenunciável
da descoberta central da teologia da libertação na América Latina:
a opção pelos pobres (ZWETSCH, CAVALCANTE; VON SINNER,
2001, p. 34).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Nesta disciplina, o termo teologia pública se refere a um modo específico de


fazer teologia que se ocupa, primariamente, de questões públicas (ligadas ao
Estado, à sociedade civil e à esfera pública especializada). Não se trata, então,
de afirmar uma nova “corrente teológica”, nem de criar um novo tipo de teo-
logia (ao lado de sistemática, prática etc.), mas de um novo modo de fazer
teologia – um modo que se recusa a aceitar a privatização e a individualização
da fé cristã e da teologia; um modo no qual predominam as questões públicas.
Assim, podemos falar em teologia sistemática pública (quando a publicidade
assume papel tão importante quanto a criticidade), podemos falar em teolo-
gia bíblica pública (quando a publicidade assume papel tão importante quanto
a hermeneuticidade), e assim por diante. Da mesma forma, podemos falar em
uma teologia pentecostal pública (quando o caráter confessional pentecos-
tal predomina juntamente com a publicidade), em teologia reformada pública
(quando o caráter confessional reformado predomina juntamente com a publi-
cidade), e assim por diante.
Foram listados, anteriormente, vários dos movimentos teológicos que
podemos considerar como precursores da Teologia Pública. Alguns desses
movimentos continuam plenamente ativos, de modo que poderíamos, então,
chamá-los de formas contemporâneas de Teologia Pública. Como nosso tempo
de estudo é relativamente pequeno, vou me concentrar em expor apenas dois
dos precursores da Teologia Pública – os dois movimentos teológicos cria-
dos na América Latina e que, a partir de nosso continente, se espalharam
para toda a oikoumene (termo grego que se refere ao “mundo habitado” por
seres humanos).

Definindo Teologia Pública


24 UNIDADE I

Cada cidadão(ã) de um país democrático é co-responsável pela justiça, paz


e desenvolvimento de sua nação. Cidadãos(ãs) cristãos(ãs) têm a tarefa adi-
cional de realizar sua cidadania com amor, compaixão, solidariedade e tes-
temunho.

A TEOLOGIA DA MISSÃO INTEGRAL COMO


TEOLOGIA PÚBLICA

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Há vários modos de descrever e conceituar teologia da missão integral. Nesta
seção de nosso texto, farei uma síntese das reflexões conduzidas pela Fraternidade
Teológica Latino-Americana (Setor Brasil) nos anos 80 e até meados dos anos
90. Para descrições mais amplas, pode-se consultar os itens bibliográficos per-
tinentes de nosso Programa de Disciplina. Apresento a TMI em um formato
narrativo, contando minhas ‘memórias’ do movimento no período indicado.
O caminho escolhido, então, foi o de mostrar – em primeiro lugar – que
o compromisso missionário integral estava presente na vida e missão de Jesus
Cristo. Para sermos fiéis ao Senhor da Igreja, deveríamos trilhar os mesmos
caminhos que Ele trilhou, caminhos que incluíam a prioridade dos pobres, a
consciência crítica quanto aos poderes espirituais e terrenos, o engajamento
integral do povo de Deus na obra missionária integral, em resposta à totali-
dade do Evangelho que Jesus viveu e pregou. Construir uma cristologia bíblica
e contextual era imperativo para a que o povo de Deus percebesse a validade do
engajamento nas questões sociais e políticas, para que o povo de Deus visse esse
engajamento não como um abandono da responsabilidade evangelística, mas
como o parceiro necessário da evangelização no testemunho do Evangelho na
sua totalidade. A espiritualidade cristã passou a ser vista como espiritualidade
cristocêntrica, espiritualidade do seguimento de Jesus Cristo na fidelidade mis-
sionária ao Pai. Ser um cristão espiritual era visto como ser semelhante a Jesus
em sua atuação ministerial.
Imediatamente após a reflexão cristológica, tratou-se da “vida no Espírito”.
A espiritualidade não era um tema marcante naquele tempo, que se caracterizou

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA TEOLOGIA PÚBLICA


25

por amplos debates a respeito do poder e da ação do Espírito Santo. Uma pneuma-
tologia latino-americana começava a se delinear, então. Era necessário perceber
que o Espírito de Deus não só renovava a igreja, mas também toda a humani-
dade e a criação. Precisávamos abrir os olhos para o fato de que o Espírito Santo
não estava restrito às fronteiras eclesiásticas, mas era a pessoa da Trindade que
agia em toda a criação e trazia a luz e a semente da vida para toda a humanidade.
Precisávamos discernir a presença do Espírito no mundo e os desafios que essa
presença lançava sobre o povo de Deus. Era tempo de reafirmar que o poder do
Espírito Santo estava disponível para a igreja contemporânea e que esse poder era
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

essencialmente poder para a missão. O Espírito foi compreendido primariamente


como o Espírito de Cristo, revestindo o povo de Deus de poder para ser seme-
lhante a Jesus, de poder para, como o Mestre, cumprir a missão integral de Deus.
Com uma renovada cristologia e uma renovada pneumatologia, a reflexão
teológica na FTL-B se ocupou intensamente da justiça social e da ação política.
Realizou consultas sobre a responsabilidade política dos cristãos e sobre a integra-
lidade da missão nas cidades. A integralidade da missão se tornou o foco principal,
todavia as lutas contextuais da época fizeram com que se enfatizasse mais a respon-
sabilidade social e política, lado a lado com a evangelização, do que propriamente
a integralidade enquanto tal. O foco da reflexão missiológica, então, iluminava a
multidimensionalidade da missão da igreja. Cumprir a Grande Comissão exigia,
além de fazer discípulos, obedecer a tudo o que o Senhor havia ordenado – espe-
cialmente em socorrer os necessitados e em agir politicamente para transformar
a sociedade injusta. O tema teológico que predominou, então, foi o do Reino de
Deus. A redescoberta do tema
do Reino de Deus na Escritura
foi fundamental para o avanço
da reflexão sobre a responsabi-
lidade sócio-política da Igreja.
A integralidade do Reino de
Deus era a base da integralidade
da missão da Igreja. A percep-
ção de que o Reino é maior
do que a Igreja, e a abrange,

A Teologia da Missão Integral Como Teologia Pública


26 UNIDADE I

foi fundamental para o desenvolvimento da missiologia integral. Era libertador,


naquela época, perceber que o propósito de Deus era a consumação do Seu reino
sobre a face da terra e que esse Reino era dEle e não nosso. Por isso, era maior do
que a igreja, maior do que a missão, maior do que o povo de Deus. A soberania
de Deus-Pai, então, foi o terceiro grande foco teológico trabalhado nos anos 80.
A missão integral da Igreja só podia ser justificada a partir de uma reno-
vada compreensão e experiência de Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Se hoje é
possível ver isto com clareza, naquele tempo essa noção foi se construindo pro-
gressivamente. Não houve um planejamento estratégico para se desenvolver um

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pensamento sistemático. Os temas trinitários foram surgindo ao longo da refle-
xão sobre a prática integral da missão e sobre a necessidade de mostrar a sua
fidelidade à Escritura. Parcialmente ausente, então, das reflexões nesse período,
foi a eclesiologia. A palavra de ordem era o Reino de Deus. A igreja só poderia
ser entendida claramente se vista à luz do Reino de Deus, se percebida como a
comunidade do Reino, e não como uma instituição autossuficiente. A Igreja era
compreendida, então, como agente da missão, como testemunha do Reino. Não
havia necessidade, portanto, de se refletir especificamente sobre a igreja – sua
organização, governo, natureza. A reflexão sobre a missão era, naturalmente,
reflexão sobre a igreja. Missão e ministérios eram a marca da Igreja. O cresci-
mento da igreja era visto, então, como consequência do engajamento na missão
integral e como uma dádiva de Deus. O crescimento da igreja deixou de ser visto
como um fim em si mesmo, e sim como um meio para o cumprimento da mis-
são de testemunhar do Reino de Deus em todo o mundo.
Paralela e simultaneamente à reflexão sobre esses grandes temas teológicos
e missiológicos, a FTL-B se ocupou da contextualidade. Dois grandes desafios
foram enfrentados sob esse tópico. O primeiro era o desafio de discernir nosso
contexto. Era tempo de se afirmar que, para fazer missão, era necessário conhecer
o contexto social, econômico, político e cultural em que a Igreja estava inserida.
Compreender o Brasil e a América Latina, assim como vivenciar plenamente a
brasilidade e a latinidade, eram questões fundamentais para a missão integral. Foi
um tempo de reconhecimento da nossa ignorância a respeito de nossa própria
realidade social e cultural. Víamo-nos como ‘estrangeiros em nossa própria terra’.
Era necessário mudar essa situação. O segundo era o desafio da hermenêutica

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA TEOLOGIA PÚBLICA


27

contextual da Bíblia. Para mostrar a validade da inserção em nosso contexto, era


fundamental percebermos a contextualidade do povo de Deus na Escritura. Era
necessário mudar o foco da discussão bíblica, da natureza da Bíblia para a inter-
pretação da Bíblia. Afirmando, sem nenhuma reserva, que a Bíblia é a Palavra de
Deus, é necessário interpretar a Escritura dentro de seus contextos e buscando
respostas para as perguntas que nascem do contexto do intérprete. Exegese se
tornou uma atividade fundamental. Exegese da Bíblia e exegese do contexto pre-
sente. Para se fazer missão integral, é necessário encontrar as respostas da Palavra
de Deus para os dramas e angústias do presente mundo pecaminoso.
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Na primeira metade dos anos noventa, a reflexão teológica da FTL-B passa a


ter duas marcas: (a) reafirmar as conquistas dos anos oitenta; (b) ampliar a abran-
gência temática de sua reflexão. Muitos temas passaram a ser abordados a partir
das questões que iam surgindo nas Igrejas e Seminários que se envolviam com
a missão integral. Dentre esses temas, pode-se destacar: a questão da mulher na
igreja e missão, o lugar e papel do culto na vida missionária da igreja, a estrutura
econômica da sociedade, a espiritualidade pessoal. Em certo sentido, a FTL-B
cumpriu sua tarefa primordial como movimento: em cerca de dez anos ajudou
a difundir a missiologia integral no meio evangélico brasileiro. Missão integral
deixou de ser uma questão estranha e passou a ser parte integrante da vida das
Igrejas evangélicas e de muitos Seminários Teológicos.
Simultaneamente, novas e imprevisíveis mudanças no cenário religioso e
protestante no Brasil trouxeram problemas, possibilidades e desafios prementes,
que colocaram em segunda plana a questão missiológica e a reflexão teológica.
O crescimento espantoso do neopentecostalismo e o sucesso da sua teologia, a
teologia da prosperidade, colocaram as igrejas e instituições evangélicas em uma
situação de luta pela sobrevivência e afirmação da identidade. Uma das conse-
quências dessa nova situação foi a fragmentação da Igreja Evangélica, que afetou
profundamente a FTL-B. A segunda metade da década de 90 foi um tempo de
enfraquecimento da reflexão teológica, dos encontros de pequenos grupos para
discutir e produzir teologia. Paradoxalmente, foi tempo de grande crescimento
da teologia – surgimento de novos Seminários e Faculdades Teológicas, cres-
cente número de livros teológicos publicados em português, valorização do saber
como parte integrante da espiritualidade cristã.

A Teologia da Missão Integral Como Teologia Pública


28 UNIDADE I

UMA AGENDA PARA A TEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL

Vimos que teologia pública é o tipo de reflexão teológica que se ocupa dos temas

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da vida pública nas sociedades contemporâneas. Uma teologia pública, portanto,
organiza a sua agenda a partir dos problemas mais importantes que existem em
seu espaço público. O sujeito da Teologia Pública, portanto, não pode ser a(o) teó-
loga(o) isolado(a), mas o teólogo ou a teóloga como participante da vida eclesial.
Por isso, para pensarmos na temática e estrutura da teologia pública, precisamos
partir das condições do sujeito da teologia que é a Igreja em suas múltiplas for-
mas e cenários possíveis no contexto. Apresentarei, a seguir, portanto, uma breve
análise da Igreja no Brasil, em seu modo protestante de ser, como base para a
posterior descrição de uma agenda básica para uma Teologia Pública no Brasil.
Minha hipótese básica é: diante do predomínio do pensamento único neoli-
beral e do modo de produção capitalista, o caminho aparentemente mais viável
para uma teologia pública no Brasil é o de contribuir para o desenvolvimento da
cidadania – tanto em termos de construção de nossa identidade, quanto em ter-
mos do desenvolvimento de uma consciência cosmopolita (interessada no bem
de todas as nações e povos). O colapso do socialismo enquanto modo de pro-
dução não pode ser usado para legitimar o capitalismo, pois é tão eficaz quanto
injusto. Uma das lições destes cinquenta anos, porém, tem sido a de que van-
guardas são politicamente ineficazes. Mudanças amplas necessitam de uma base
social ampla. Há que se apostar na democracia, não mais na democracia liberal
representativa, mas em uma democracia de cunho mais participativo e delibe-
rativo, na qual o poder seja mais efetivamente exercido pela cidadania e não se
restrinja à atuação do Estado – já colonizado pelo Mercado. Apostar, sim, pois
não há garantias de que a deliberação democrática encaminhe a sociedade para
a justiça. Apostar, sim, pois Deus é capaz de realizar coisas impossíveis.

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA TEOLOGIA PÚBLICA


29

Para que a contribuição protestante à cidadania seja veículo de transformação


social, precisamos de uma compreensão alargada e deslocada da subjetividade. Uma
subjetividade construída no diálogo com as questões fundamentais para a democracia
e a cidadania no Brasil. Alargada, de modo a incluir no conjunto de valores evangé-
licos todos os aspectos envolvidos na tensão entre indivíduo e sociedade. Deslocada,
na medida em que seu eixo não seja mais o sujeito individual, mas o sujeito intersub-
jetivo. Uma subjetividade caracterizada pela abertura radical ao Outro, pela inclusão
da liberdade cidadã no centro da formação pessoal, pela construção do reconheci-
mento mútuo em nossa sociedade, pela busca incessante da justiça a partir das quais
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se poderá construir uma soberania nacional e pessoal em resposta ao Reino de Deus.


Uma subjetividade alargada e deslocada necessita da companhia de uma visão
eclesial semelhantemente ampliada e deslocada: podemos contribuir com uma
visão dessacralizada da instituição eclesiástica e das instituições político-econô-
micas. Precisamos, no espírito do princípio protestante, alargar o alcance do modo
eclesia reformata et semper reformanda est. A vida pública ser constantemente refor-
mada, desvestida de sua natureza idolátrica e colocada a serviço das pessoas e da
criação divina como um todo. A democracia é sempre uma realidade por vir, não
pode se reduzir a um conjunto de instituições políticas, precisa se incorporar em
cultura e subjetividade democráticas – e tal incorporação é sempre escatológica.
Há várias maneiras de construir uma teologia pública da cidadania e da demo-
cracia no Brasil, a partir de uma visão renovada da subjetividade humana. Nesta
disciplina, optei por discutir quatro conceitos fundamentais da discussão intelec-
tual contemporânea que também são temas da reflexão teológica e, especialmente,
de uma teologia pública. Esses quatro conceitos são: liberdade, reconhecimento,
justiça e soberania. Para construir uma teologia pública, bíblica e relevante para o
contexto brasileiro atual, cada Unidade desta disciplina será, assim, estruturada:
(a) uma introdução contextualizando os problemas concretos que cada um dos
conceitos reflete abstratamente; (b) uma discussão do conceito no pensamento
contemporâneo; (c) uma discussão do conceito em perspectiva bíblica; e (d) o
desenvolvimento teológico do conceito em três dimensões, fazendo o diálogo
entre o contexto, o pensamento contemporâneo e a visão bíblica do conceito e dos
problemas que o conceito reflete – tendo sempre como pano de fundo as igrejas
como o sujeito praticante da teologia pública em sua vida e missão.

Uma Agenda Para a Teologia Pública no Brasil


30 UNIDADE I

O SUJEITO DA TEOLOGIA PÚBLICA NO BRASIL

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Vamos refletir sobre quem faz Teologia Pública no Brasil de hoje. Em outras
palavras, vamos estudar os perfis do Protestantismo atual em busca de possibi-
lidades de criação de uma Teologia Pública consistente.

Quando falamos em sujeito da Teologia, estamos falando de dois tipos de


agentes: (a) a teóloga ou o teólogo ‘formado’, ‘profissional’, que se dedica ao
trabalho da reflexão teológica acadêmica; e (b) a igreja (denominação ou co-
munidades locais), que faz teologia por meio da sua vida, doutrina e participa-
ção na missão. Teólogos e Igrejas não deveriam se distanciar, mas atuar juntos.
Fonte: o autor.

CENÁRIO 1 – UM PROTESTANTISMO DE CRISTANDADE

O termo Cristandade tem sido usado na pesquisa sobre o Cristianismo para


descrever uma aliança entre o Estado e a Igreja, na qual ambos compartilham o
exercício do poder sobre a sociedade. Cabe à Igreja o controle da vida cultural
e moral da população, e ao Estado o controle socioeconômico. A Igreja, assim,
serve como legitimadora do Estado que, por sua vez, garante à Igreja privilé-
gios econômicos e políticos diante das demais religiões e instituições culturais.
O modelo de Cristandade teve sua expressão mais plena na Europa Medieval,
quando a Igreja Católica e Império se mantinham unidos como os dois braços

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA TEOLOGIA PÚBLICA


31

do poder divino sobre a terra – o braço espiritual e o braço temporal. Após a


Reforma Protestante e o surgimento dos Estados de Direito, não mais se viu o
modelo de Cristandade em sua forma plena. Encontramos, aqui e acolá, modelos
parciais de Cristandade, tanto em nações com maioria católico-romana, quanto
em nações com maioria protestante.
Nos Estados Unidos da América, por exemplo, o Protestantismo sempre foi
a forma hegemônica de Igreja Cristã e, aliado à democracia liberal, representa,
até hoje, a religião civil norte-americana – um modelo mitigado de Cristandade.
Sob a forma da religião civil, opera-se uma forma mais sutil e disfarçada de legi-
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timação do poder político e econômico pelas Igrejas Protestantes. Trata-se de


vincular a identidade e os valores da nação com a religião civil. Embora haja
separação entre Igrejas e Estado, o exercício da política de Cristandade se dá
mediante o apelo aos valores da nação norte-americana – um conjunto sinc-
rético de elementos provenientes do protestantismo e do liberalismo político.
Este é um cenário plausível para o Protestantismo Brasileiro contemporâ-
neo, especialmente em sua vertente denominada, de modo inadequado, penso
eu, neopentecostalismo. Não vejo nesse modelo eclesiástico, nem pentecostalismo,
nem protestantismo – outro tipo de cristianismo, tão desfigurado quanto eficaz.
Agora que os dados censitários mostram que somos mais de 20% da população,
desenvolveu-se a crença de que temos força suficiente para influenciar nas elei-
ções e na tomada de decisões políticas do Estado. Neste cenário, as estratégias
principais são duas, ambas já em ação: (a) a mais ambiciosa é tomada do poder,
simbolizada e concretizada pela eleição de um presidente evangélico, o clímax
de um processo de conquista do poder estatal baseado na afirmação teológico-
-política de que “irmão vota em irmão”. Afirmação, esta, sustentada pela crença
moralista de que tal governante protestante seria incorruptível, honesto, de modo
que liberaria o Estado de seu maior problema: a corrupção; (b) a menos ambi-
ciosa, talvez um passo intermédio, talvez um projeto de per si, é o esforço pela
implementação de valores morais protestantes sobre o conjunto da sociedade,
sob a alegação de que tais valores são, de fato, universais e não apenas expres-
são de um segmento do cristianismo – valores apresentados de modo a apelar
à tradição moral mais genérica na cultura, tais como os valores da “família”, da
“decência”, da “moralidade” – termos tão atraentes quanto vazios de significado.

O Sujeito da Teologia Pública no Brasil


32 UNIDADE I

Tentando discernir os sinais dos tempos atuais, receio que este cenário seja
o acalentado por número muito significativo de igrejas e crentes protestantes e/
ou evangélicos. Talvez seja o desejo da maioria, não tenho condições de precisar
porcentagens. Cenário, porém, que considero o mais inadequado do ponto de
vista de uma teologia política minimamente evangélica (inspirada no Evangelho
do Messias Jesus). O modelo de Cristandade, seja pleno, seja mitigado, tem
demonstrado ao longo da história ser um modus operandi político intolerante,
autoritário e repressor que, no fim das contas, apenas legitima o status quo.
Casamento, registrado ou não em cartório, entre Igreja e Estado, desfigura tanto

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a Igreja como o Estado. Mata a democracia. Impede a justiça social. Subordina,
na prática, a fé cristã aos valores secularizados do consumismo e do desejo do
poder. Tem a aparência de democracia, mas é autoritarismo disfarçado, tanto
mais perigoso quanto mais sutil. Parafraseando o profeta Isaías, devemos fugir
da Cristandade, fugir da babilônica junção entre fé cristã e instituição estatal.
No cenário de Cristandade, não é possível uma Teologia Pública crítica, apenas
uma teologia pública legitimadora do Estado.

CENÁRIO 2 – UM PROTESTANTISMO DE SUBJETIVIDADE


INDIVIDUALISTA

Por protestantismo de subjetividade individualista refiro-me ao que, tradicio-


nalmente, tem se chamado de protestantismo de missão no Brasil, mas que
inclui o Pentecostalismo e, parcialmente, o chamado protestantismo de imigra-
ção. Neste modelo de protestantismo, que é, de fato, a matriz do uso do termo
evangélico no Brasil, a essência do Evangelho consiste na salvação de indivíduos
pela graça mediante a fé, de modo que tais pessoas sejam consideradas novas
criaturas, moralmente elevadas, espiritualmente transformadas. Este protes-
tantismo individualista, porém, possui um projeto político, implícito, sim, mas
eficiente. Em termos teológicos, a base do projeto político implícito deste tipo
de Protestantismo é o avivalismo norte-americano, que apostava na reforma
do coração para que, com a maioria da população convertida à verdadeira fé

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA TEOLOGIA PÚBLICA


33

cristã, a vida política da nação se adequasse – quase que de modo mágico – à


vontade de Deus. Em termos sociológicos, o projeto político implícito deste
tipo de Protestantismo é o projeto da democracia liberal republicana batizado
pela religião civil norte-americana.
Este é outro cenário plausível para onde caminhamos. De fato, já estamos
caminhando neste cenário há quase um século. Este projeto político foi o res-
ponsável pela adesão acrítica do protestantismo brasileira ao golpe militar. A
proposta teológico-política aqui é a da evangelização pessoal casada com a edu-
cação e o serviço social. Com essas poucas pinceladas, você já pode pressentir
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que esse projeto tem uma boa dose de afinidade com o da Cristandade evangé-
lica. Como este segmento numericamente tem sido pouco expressivo em termos
eleitorais, a sua proposta política foi, na prática, reduzida às questões morais e
de valor – ou, ao modo mitigado da Cristandade. O chamado testemunho pes-
soal – honestidade, decência, ausência de vícios, estabilidade da família nuclear,
etc. – é o eixo deste projeto, juntamente com a rejeição do Comunismo e das
ideologias de esquerda em geral. Sua caminhada eleitoral é baseada na crença
de que irmão vota em irmão ou, pelo menos, em pessoas honestas, e em parti-
dos de direita ou de centro.
Para este projeto, as mudanças sociais devem ser fruto da ação de pessoas
cujo coração (subjetividade) esteja entregue nas mãos do Senhor Jesus. Não se
pensa a transformação social a partir de análise sociológica, política ou estru-
tural – mas, sim, a partir da crença religiosa, pois “feliz é a nação cujo deus é o
Senhor”. Não se questiona o capitalismo nem o liberalismo político enquanto
tais, pois estes são abençoados pelo Senhor, em contraste com o diabólico comu-
nismo e seus similares político-ideológicos. Em uma linguagem mais aceitável
no último quarto do século passado, o Protestantismo da subjetividade aposta
na reforma e não na revolução como caminho para a melhoria social. Reforma,
insisto, primeiramente, da moralidade e dos valores dos indivíduos. Somente
depois, pode-se pensar em reforma de instituições, civis ou estatais – mas reforma
moral. Uma Teologia Pública com este sujeito teria contornos primariamente
morais, discutindo os aspectos da vida ética e moral do Brasil contemporâneo
que mais afetam a vida das igrejas.

O Sujeito da Teologia Pública no Brasil


34 UNIDADE I

CENÁRIO 3 – UM PROTESTANTISMO DE SERVIÇO E


LIBERTAÇÃO

Ao mesmo tempo em que o protestantismo subjetivo individualista trilhava


seus torpes caminhos políticos, dois movimentos de espiritualidade e teologia
no Brasil e América Latina nasceram e contribuíram para o desenvolvimento
de projetos políticos mais compatíveis com o “processo revolucionário brasi-
leiro” sonhado na Conferência do Nordeste. Um deles teve sua base eclesial
em denominações ligadas ao movimento ecumênico (principalmente a IECLB

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e a IEAB, seguidas pela IMB e outras denominações menores) e na atividade
de pessoas, em igrejas não ecumênicas, com espírito e prática ecumênicas
(tais como os intelectuais fundadores e participantes de ISAL). Sem que-
rer polemizar, nem alcançar glória pela paternidade, temos neste segmento
protestante um dos pais/mães da Teologia da Libertação, consubstanciada
na tese de Rubem Alves, recém reeditada com o título que deveria ter rece-
bido desde sua feitura. O outro movimento teve sua base eclesial em pessoas
e movimentos tanto em igrejas não ecumênicas, quanto na IECLB e IEAB,
e desenvolveu a chamada Teologia da Missão Integral. Os movimentos mais
conhecidos neste grupo têm sido a Aliança Bíblica Universitária do Brasil, a
Fraternidade Teológica Latino-Americana, dentre outros.
Ao agrupar estes dois movimentos teológicos sob uma única categoria não
pretendo nivelá-los, fazendo desaparecer as profundas diferenças entre ambos.
Comumente se destacam as diferenças entre ambos os movimentos, mas,
como participante em ambos, aprendi a valorizar muito mais as semelhanças
do que as diferenças. Com vistas mais a economizar no tempo da descrição,
constato que, cada um a seu modo, o movimento ecumênico e libertador pro-
testante e o movimento evangelical da missão integral foram protagonistas,
nos anos de chumbo e depois, de projetos político-teológicos que se esforça-
ram não só por contextualizar a teologia e as igrejas, mas também por servir
concretamente as pessoas e a sociedade brasileira com a boa nova do Reino
de Deus. O primeiro movimento era mais bem articulado sociológica e ide-
ologicamente falando, produziu trabalhos intelectuais de fôlego e contribuiu

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA TEOLOGIA PÚBLICA


35

intensamente para o autoconhecimento do protestantismo, para o conheci-


mento da realidade brasileira, e para a afirmação de uma espiritualidade de
serviço desinteressado ao próximo. Como movimento predominantemente
intelectual e/ou de liderança denominacional, porém, não conseguiu alcançar
número significativo de lideranças e comunidades protestantes. Já o segundo
movimento, menos articulado intelectual e ideologicamente, foi mais eficaz
em termos práticos, alcançando número bem mais significativo de lideran-
ças pastorais e comunidades evangélicas, que passaram a adotar o ideário e a
prática da missão integral.
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As diferenças mais básicas: (a) a teologia da libertação tinha uma clara


opção pelo socialismo como modelo político-ideológico, enquanto a da missão
integral se alinhava mais no campo da reforma democrática do capitalismo; (b)
a teologia da libertação tinha uma visão ecumênica mais institucional e ligada
ao CMI, enquanto a da missão integral praticava, mais propriamente falando,
um interdenominacionalismo protestante; (c) a teologia da libertação se esfor-
çou na direção de repensar as matrizes teológicas do protestantismo, enquanto
a da missão integral se concentrou na compreensão da missão da igreja, sem
questionar adequadamente as matrizes teológicas importadas. A semelhança
fundamental: a partir da fé no Messias que reina, ambos os movimentos afir-
mavam que o papel do Cristianismo deveria ser o de apoiar a transformação
radical da sociedade brasileira, o de construir uma sociedade fraterna, pacífica
e justa. Uma semelhança secundária: nenhum destes movimentos conseguiu
se enraizar e à sua teologia no coração e mente do laicato protestante brasi-
leiro. Assim, suas contribuições, embora significativas, não foram capazes de
se contrapor ao individualismo subjetivista no século passado, nem ao pro-
jeto de cristandade dito neopentecostal do presente. Há que se estudar por
que: (a) estes movimentos não conseguiram unir forças nas décadas de 70 e
80, período mais crítico da vida política da república brasileira pós-segunda
guerra; e (b) por que as igrejas protestantes brasileiras teimam em apostar em
modelos políticos incompatíveis com o Evangelho. Uma Teologia Pública crí-
tica é possível neste cenário e é a partir deste sujeito que organizei a nossa
discussão nesta disciplina.

O Sujeito da Teologia Pública no Brasil


36 UNIDADE I

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito bem colegas! Chegamos ao final desta Unidade. Espero que vocês tenham
percebido a importância da Teologia Pública para a vida cristã e para a missão
da Igreja. Como povo de Deus, somos participantes da vida pública de nosso
país e mundo, e não podemos ser meros espectadores da vida.
No Brasil atual, como você sabe, temos muitos problemas públicos - violên-
cia, corrupção, desigualdade social e econômica, atraso tecnológico, educação
escolar deficiente etc. No entanto, penso eu, nosso maior problema é que fala-

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mos demais sobre os problemas do Brasil, enquanto não fazemos quase nada
para resolvê-los.
Ainda, no Brasil, é difundida a crença de que o Estado é quem deve resolver
os problemas da sociedade. Por isso, elegemos pessoas que consideramos capa-
zes de fazer isso, e acabamos nos decepcionando quando elas não o fazem - e
ninguém consegue fazer isso sozinho!
Na democracia, é a cidadania que resolve problemas de modo mais sólido
e permanente. O Estado deve estar a serviço da cidadania e não o contrário. No
Brasil, o Estado se coloca como dono e guardião da cidadania e, por isso, acaba
matando a participação cidadã em benefício de sua própria expansão.
Esta disciplina de Teologia Pública tem como meta principal nos fazer refletir
sobre esses grandes temas públicos e sobre como viver a nossa cidadania ativa-
mente e de modo cristão! Para uma teologia ser pública, não basta refletir sobre
questões públicas, é indispensável que os sujeitos da teologia pública participem
ativamente da vida pública de seu país e sociedade.
Em um mundo global, interconectado e dominado por poderosos interesses
políticos, econômicos, midiáticos e tecnocráticos, precisamos de inteligência e
sabedoria para viver e participar de modo transformador e edificante. Que esta
disciplina seja um dos instrumentos de Deus para que cresçamos em graça e
sabedoria!

DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA TEOLOGIA PÚBLICA


37

1. Teologia Pública é um termo que se refere à:


a) Reflexão sobre a igreja.
b) Reflexão sobre a teologia na sociedade.
c) Reflexão sobre a denominação.
d) Reflexão sobre a publicidade e marketing.
e) Nenhuma das alternativas anteriores.

2. As quatro características da teologia são:


a) Hermeneuticidade, criticidade, publicidade, santidade.
b) Hermeneuticidade, criticidade, ortodoxia, pluralidade.
c) Hermeneuticidade, criticidade, publicidade, cientificidade.
d) Hermeneuticidade, criticidade, publicidade, praticidade.
e) Nenhuma das alternativas anteriores.

3. A teologia da Fraternidade Teológica Latino-Americana Brasil pode ser enten-


dida como precursora da Teologia Pública porque, além de temas teológicos
tradicionais, tratou de temas como:
I. Ecumenismo.
II. Justiça Social.
III. Globalização.
IV. Ação política.
V. Espiritualidade.
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas II e IV estão corretas.
d) Apenas II e V estão corretas.
e) Apenas I, II e III estão corretas.
38

4. De acordo com o texto da disciplina: “Minha hipótese básica é: diante do pre-


domínio do pensamento __________ neoliberal e do modo de produção ca-
pitalista, o caminho aparentemente mais viável para uma teologia pública no
Brasil é o de contribuir para o desenvolvimento da _______________ – tanto
em termos de construção de nossa _____________, quanto em termos do de-
senvolvimento de uma consciência _______________ (interessada no bem de
todas as nações e povos)”. A sequência correta de palavras que completam a
citação acima é:
a) Único, cidadania, identidade, cosmopolita.
b) Cosmopolita, identidade, cidadania, único.
c) Cidadania, identidade, único, cosmopolita.
d) Identidade, cidadania, único, cosmopolita.
e) Único, identidade, cidadania, cosmopolita.

5. O termo que descreve a aliança entre o Estado e a Igreja Cristã é:


a) Santidade.
b) Teoria dos dois Mandatos.
c) Cristandade.
d) Laicidade.
e) Nenhuma das alternativas anteriores.
39

Teologia da Libertação celebra, neste ano de 2011, 40 anos de existência. Em 1971, Gus-
tavo Gutiérrez publicava no Peru seu livro fundador Teologia da Libertação. Perspectivas.
Eu publicava, também, em 1971, em forma de artigos, numa revista de religiosas – Gran-
de Sinal – para escapar da repressão militar o meu Jesus Cristo Libertador, depois lança-
do em livro. Ninguém sabia um do outro. Mas estávamos no mesmo espírito. Desde en-
tão surgiram três gerações de teólogos e teólogas que se inscrevem dentro da Teologia
da Libertação. Hoje ela está em todos os continentes e representa um modo diferente
de fazer teologia, a partir dos condenados da Terra e da periferia do mundo. Aqui vai um
pequeno balanço destes 40 anos de prática e de reflexão libertadoras.
A Teologia da Libertação participa da profecia de Simeão a respeito do menino (Jesus):
ela será motivo de queda e de elevação, será um sinal de contradição (Lc 2,34). Efetiva-
mente a Teologia da Libertação é uma teologia incompreendida, difamada, persegui-
da e condenada pelos poderes deste mundo. E com razão. Os poderes da economia e
do mercado a condenam porque cometeu um crime para eles intolerável: optou por
aqueles que estão fora do mercado e são zeros econômicos. Os poderes eclesiásticos a
condenaram por cair numa “heresia” prática ao afirmar que o pobre pode ser construtor
de uma nova sociedade e também de outro modelo de Igreja. Antes de ser pobre, ele é
um oprimido ao qual a Igreja deveria sempre se associar em seu processo de libertação.
Isso não é politizar a fé, mas praticar uma evangelização que inclui, também, o político.
Consequentemente, quem toma partido pelo pobre-oprimido sofre acusações e margi-
nalizações por parte dos poderosos - seja civis, seja religiosos.
Por outro lado, a Teologia da Libertação representa uma benção e uma boa nova para os
pobres. Sentem que não estão sós, encontraram aliados que assumiram sua causa e suas
lutas. Lamentam que o Vaticano e boa parte dos bispos e padres construam no canteiro
de seus opressores e se esquecem que Jesus foi um operário e pobre e que morreu em
consequência de suas opções libertárias a partir de sua relação para com o Deus da vida
que sempre escuta o grito dos oprimidos.
De qualquer forma, numa perspectiva espiritual, é para um teólogo e uma teóloga com-
prometidos e perseguidos uma honra participar um pouco da paixão dos maltratados
deste mundo.
1. A centralidade do pobre e do oprimido
O punctum stantis et cadentis da Teologia da Libertação é o pobre concreto, suas opres-
sões, a degradação de suas vidas e os padecimentos sem conta que sofre. Sem o pobre e
o oprimido não há Teologia da Libertação. Toda opressão clama por uma libertação. Por
isso, onde há opressão concreta e real que toca a pele e faz sofrer o corpo e o espírito aí
tem sentido lutar pela libertação. Herdeiros de um oprimido e de um executado na cruz,
Jesus, os cristãos encontram em sua fé mil razões por estarem do lado dos oprimidos e
junto com eles buscar a libertação. Por isso a marca registrada da Teologia da Libertação
é agora e será até o juízo final: a opção pelos pobres contra sua pobreza e a favor de sua
vida e liberdade.
40

A questão crucial e sempre aberta é esta: como anunciar que Deus é Pai e Mãe de bon-
dade num mundo de miseráveis? Este anúncio só ganhará credibilidade se a fé cristã
ajudar na libertação da miséria e da pobreza. Então tem sentido dizer que Deus é real-
mente Pai e Mãe de todos, mas especialmente de seus filhos e filhas flagelados. Como
tirar os pobres-oprimidos da pobreza, não na direção da riqueza, mas da justiça? Esta é
uma questão prática de ordem pedagógico-política. Identificamos três estratégias.
A primeira interpreta o pobre como aquele que não tem. Então, faz-se mister mobilizar
aqueles que têm para aliviar a vida dos que não têm. Desta estratégia nasceu o assisten-
cialismo e o paternalismo. Ajuda, mas mantém o pobre dependente e à mercê da boa
vontade dos outros. A solução tem respiração curta.
A segunda interpreta o pobre como aquele que tem: força de trabalho, capacidade de
aprendizado e habilidades. Importa formá-lo para que possa ingressar no mercado de
trabalho e ganhar sua vida. Enquadra o pobre no processo produtivo, mas sem fazer
uma crítica ao sistema social que explora sua força de trabalho e devasta a natureza,
criando uma sociedade de desiguais, portanto, injusta. É uma solução que ajuda favo-
recer o pobre, mas é insuficiente porque o mantém refém do sistema, sem libertá-lo de
verdade.
A terceira interpreta o pobre como aquele que tem força histórica mas força para mu-
dar o sistema de dominação por um outro mais igualitário, participativo e justo, onde
o amor não seja tão difícil. Esta estratégia é libertária. Faz do pobre sujeito de sua liber-
tação. A Teologia da Libertação, na esteira de Paulo Freire, assumiu e ajudou a formular
esta estratégia. É uma solução adequada à superação da pobreza. Esse é o sentido de
pobre da Teologia da Libertação.
Só podemos falar de libertação quando seu sujeito principal é o próprio oprimido; os
demais entram como aliados, importantes, sem dúvida, para alargar as bases da liberta-
ção. E a Teologia da Libertação surge do momento em que se faz uma reflexão crítica à
luz da mensagem da revelação desta libertação histórico-social.
Fonte: Boff (2011, on-line).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Teologia Pública em debate


Ronaldo Cavalcante & Rudolf von Sinner (0rgs.)
Editora: Sinodal
Sinopse: a dimensão pública da religião está voltando com força ao discurso
acadêmico. A religião nunca abandonou a esfera pública, embora tenha
perdido a influência que já teve no passado. A teologia pública visa dar
orientação às igrejas quanto à sua atuação além de sua membresia, em
diálogo constante com a sociedade civil e a universidade, a economia, a
mídia e outros públicos. Esta obra sugere que a discussão global sobre esse
tema, ainda pouco refletido no Brasil, mas que está sendo lançado para o
debate, seja útil para a elaboração de uma teologia adequada aos tempos
democráticos do século XXI. Colaboram com este livro os seguintes autores: Clint Le Bruyns, Eneida
Jacobsen, Inácio Neutzling, Max Stackhouse, Nico Koopman, Paula Montero, Rudolf von Sinner e
Ronaldo Cavalcante.

Cromwell
Ano: 1970
Sinopse: na Inglaterra do século XVII, Oliver Cromwell volta ao Parlamento
para atuar na oposição aos desmandos do rei Carlos I, que passa por cima
das leis, desencadeando a Guerra Civil (1642-1649).

Juntamente com a Escola Superior de Teologia (EST), o Instituto Humanitas da UNISINOS (ambas
escolas em São Leopoldo-RS) é o principal centro de pesquisa e produção na área de Teologia Pública
no Brasil. Conheça um pouco mais sobre a proposta do Instituto acessando ao site.
Web: <http://www.ihu.unisinos.br/programas/teologia-publica>

Material Complementar
REFERÊNCIAS

BOFF, L. “Quarenta Anos da Teologia da Libertação”. Disponível em: <https://leo-


nardoboff.wordpress.com/2011/08/09/quarenta-anos-da-teologia-da-libertacao/>.
Acesso em: 30 maio 2018.
FOUCAULT, M. Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklërung. Bulletin de la
Sociète françoise de philosophie, v. 82, n. 2, p. 35-63, avr./juin. 1990. Disponível
em: <http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/critique.html>. Acesso em 03 abr.
2012. (Link utilizado fora do ar. Uma versão com diferenças de tradução se encontra
em <https://mecanosfera.wordpress.com/2010/03/30/foucault-o-que-e-a-critica-
-critica-e-aufklarung/>. Acesso em: 02 jun. 2017).
HABERMAS, J. Entre naturalismo y religión. Barcelona: Paidós, 2006.
______. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2010, v. 2.
WEBER, Max. A Ciência como Vocação. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/
textos/weber_a_ciencia_como_vocacao.pdf. Acesso em: 30 maio 2018.
ZWETSCH, R.; CAVALCANTE, R.; VON SINNER, R. (Orgs.). Teologia Pública em Deba-
te. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2011. Série Teologia Pública, v. 1.
43
GABARITO

1. B.

2. D.

3. C.

4. A.

5. C.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

TEOLOGIA PÚBLICA DA

II
UNIDADE
LIBERDADE

Objetivos de Aprendizagem
■■ Conceituar liberdade à luz da filosofia contemporânea.
■■ Descrever a liberdade na teologia bíblica.
■■ Explicar a dimensão ética da liberdade.
■■ Explicar a dimensão sociocultural da liberdade.
■■ Explicar a dimensão político-subjetiva da liberdade.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O conceito de liberdade na Filosofia Contemporânea
■■ Um olhar bíblico sobre a liberdade
■■ Uma teologia pública da liberdade – Liberdade Ética
■■ Uma teologia pública da liberdade – Liberdade Sociocultural
■■ Uma teologia pública da liberdade – Liberdade Política-Subjetiva
47

INTRODUÇÃO

Olá, aluno(a)! Que bom estar aqui de volta com vocês para nossa segunda Unidade
da disciplina Teologia Pública. Vamos continuar refletindo juntos sobre os desa-
fios públicos da reflexão e ação teológica?
Nosso tema nesta Unidade é a liberdade. Liberdade é um daqueles conceitos
que sempre escapam de nossas mãos. Por quê? Porque a experiência e a prática da
liberdade são realidades muito complexas e se modificam ao longo do tempo e do
espaço, das culturas e modos de organização social e política. Porque a liberdade
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de uns pode ser a ausência de liberdade de outros, ou ainda uma ameaça con-
tra a liberdade de todos. Enfim, porque somos escravos do pecado como ensina
a Escritura. Como podem escravos saber o que é a liberdade?
Uma palavra sobre a organização da Unidade (que vale também para as pró-
ximas Unidades, basta mudar o tema de estudo). Começo com uma reflexão
sobre a liberdade no pensamento filosófico contemporâneo, de modo a entrar-
mos já de início no diálogo público da teologia pública.
Depois da discussão conceitual filosófica, uma reflexão bíblica sobre a liber-
dade. Se, para nós cristãos, a Bíblia é a fonte da verdade, precisamos estudá-la
cuidadosamente para fazer teologia. Os dois elementos conceituais, então, são
colocados em diálogo nos três elementos teórico-práticos que vêm na sequência.
Estudamos três aspectos teórico-práticos da liberdade em perspectiva da
Teologia Pública. Vocês deverão perceber como elementos da reflexão filosófica
e da reflexão bíblica se misturam na discussão dos três temas teórico-práticos,
sendo que também notará que esse diálogo é complexo e pode ser feito de dis-
tintas maneiras.
Enfim, uma teologia pública da liberdade deve nos ajudar não só a entender
a liberdade, mas, principalmente, deve nos ajudar a viver em liberdade. Fomos
libertados para a liberdade como diz Paulo em Gálatas. Viver a liberdade em amor
é o grande desafio prático de uma teologia pública da liberdade como cristãos.

Introdução
48 UNIDADE II

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O CONCEITO DE LIBERDADE NA FILOSOFIA
CONTEMPORÂNEA

Para iniciar a discussão, veremos brevemente a noção de liberdade em dois filó-


sofos modernos. Immanuel Kant construiu um conceito público de liberdade,
segundo ele, em um artigo que se tornou um clássico da filosofia moderna, “O
que é o Esclarecimento” ou “O que é o Iluminismo” (publicado em 1783, pou-
cos anos antes da Revolução Francesa), uma pessoa sem autonomia (liberdade)
não é uma pessoa madura, não atingiu, ainda, a maioridade. Para Kant (2005),
o esclarecimento é um ato libertador, emancipatório – corresponde à busca de
autonomia. E como se consegue o esclarecimento? Mediante o uso da razão, ou
seja, cada pessoa precisa abandonar a submissão às ‘verdades’ ditadas pelas auto-
ridades e se tornar, ela mesma, autônoma (literalmente: ‘sua própria lei’). Sendo
que uma pessoa só pode ser autônoma se ela governar a si mesma e ela só pode
governar a si mesma se for governada pela sua razão e não pelos sentimentos
ou por outras fontes de verdade que não a razão (e.g.: a fé, a ideologia política).
Todavia, Kant (2005) percebe que sua concepção de liberdade possui um pro-
blema: como conciliar a autonomia individual com a necessidade de ordem na
sociedade? Como conciliar, em outras palavras, a autonomia com a obediência
à lei da nação? Mediante o uso público da razão. Vejamos como um sociólogo
brasileiro interpreta este aspecto do pensamento de Kant:
o autogoverno irrestrito dos indivíduos, no sentido de plena liberdade
para o uso de seu entendimento na definição das normas que coloca-
rão para reger suas próprias vidas, no entanto, no limite, inviabilizaria

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


49

toda vida em sociedade. Por isso, o autor introduz uma distinção entre
o que denomina uso público e uso privado da razão: a primeira está
intrinsecamente ligada à liberdade, mas a segunda não. Enquanto o
uso público se refere à exposição de convicções e sua fundamentação
perante os demais concidadãos, com o intuito de convencê-los da razo-
abilidade delas, não podendo ser restringido, o uso privado, referido ao
cumprimento das obrigações inerentes a cargos e funções de utilidade
ou implicações públicas, pode sim ser restringido sem que, na visão de
Kant, isso afete significativamente o avanço do esclarecimento. Assim,
a liberdade necessária para a formação pública da opinião não exclui a
necessidade da obediência aos imperativos que a estrutura da organi-
zação social impõe. Do mesmo indivíduo é esperado tanto o cumpri-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mento consciente de seus deveres como o uso público da razão. E, se


discordar das obrigações ou leis vigentes, deve colocá-las publicamente
em discussão – observando-as, no entanto, enquanto não forem revo-
gadas. (SOBOTTKA, 2013, p. 146-7)

Georg Hegel, escrevendo no início do século XIX, recupera e ressignifica a con-


cepção kantiana de liberdade (autonomia). Segundo Hegel (especialmente em
sua obra sobre a sociedade e o direito: Hegel, 1997), é preciso desconfiar do uso
público da razão e da centralidade da noção kantiana do indivíduo diante das
autoridades e instituições sociais. De acordo com Hegel (1997), a liberdade é
uma realidade social, fruto do reconhecimento mútuo que se dá nas três esferas
institucionais da sociedade: família, a sociedade civil e o estado. Hegel (1997)
abandona a noção de liberdade centrada na individualidade porque vê como
o grande obstáculo à liberdade à natureza e suas restrições – tanto a natureza
externa ao ser humano, quanto à própria natureza humana que, fora do convívio
social institucionalizado, é incapaz de governar a si mesma. O que está implí-
cito neste conceito de liberdade é a existência de uma consciência transcendental,
de uma razão acima e além da história humana que governa o próprio curso
da história: isto é, se o indivíduo não pode governar racionalmente a si mesmo,
somente a sociedade como um todo pode fazê-lo e isso pressupõe a existência de
uma consciência transcendental ao indivíduo e à própria sociedade e que fun-
damente a vida histórica e social do ser humano. Essa consciência é a razão ou
o Espírito (Geist termo alemão que pode tanto ser traduzido como ‘espírito’ ou
como ‘mente’). Consequentemente, Hegel afirma que a liberdade é fruto da razão,
mas para ele a razão está acima do ser humano e funciona como uma espécie
de lei universal que rege o desenvolvimento histórico das sociedades humanas.

O Conceito de Liberdade na Filosofia Contemporânea


50 UNIDADE II

Ainda no século XIX, porém, a noção de liberdade passou, também, a ser


discutida no campo das reflexões sobre a economia e a vida sociopolítica, pois a
discussão filosófica era por demais abstrata para dar conta dos problemas sociais
por que passava a Europa naquele período. O filósofo britânico John Stuart Mill
construiu um conceito de liberdade que serviu de fundamento para a noção capi-
talista de livre iniciativa individual: “a única liberdade que merece este nome é
a de poder perseguir nosso próprio bem à nossa própria maneira, desde que
não tentemos privar os outros do seu ou frustrar seus esforços para o alcançar”
(MILL, 1985, p. 72). O foco do livro de Mill não era individualista, mas polí-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tico-econômico, uma de suas teses principais era a conjunção entre liberdade
pessoal e liberdade econômica de mercado – podemos dizer que este conceito
de liberdade é um conceito político-econômico: diante do Estado ou de qual-
quer autoridade, o indivíduo deve ter plena liberdade de escolha, desde que não
prejudique outras pessoas (na linguagem popular “sua liberdade termina onde
começa a minha”). O problema básico desta definição é o que não é dito: está
implícito que a busca do “bem à nossa própria maneira” ocorra no âmbito da
“livre iniciativa” da economia de mercado. O mercado se torna, então, a dimen-
são dominante do conceito e acaba por reduzir a liberdade à “livre iniciativa”.
Diante desse limite da concepção de Mill (1985), um intérprete de Hegel
promove uma revolução na discussão do conceito de liberdade. Esse intérprete
é Karl Marx, líder político e intelectual de um grande movimento de resistência
contra o domínio cada vez maior das empresas sobre os indivíduos, um domí-
nio que nem mesmo o estado era capaz de controlar. Para Marx e Engels (2015),
a liberdade não decorre do exercício da razão (seja no sentido kantiano, seja
no hegeliano), a liberdade é uma consequência do modo como o ser humano
produz e reproduz materialmente a sua vida em sociedade. Para Marx e Engels
(2015), a liberdade só seria possível se, no processo de produção (trabalho) o ser
humano mantivesse uma relação com a natureza (que oferece a matéria-prima
para a produção) e com os demais seres humanos (que oferecem a mão de obra
para a produção) que não fosse intermediada por uma classe de pessoas que
possuísse os meios de produção e controlasse a força de trabalho, mas fosse uma
relação livre e igualitária para todas as pessoas. O ser humano, então, se torna
livre na medida em que a sua produção (trabalho) e reprodução (família) da vida

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


51

seja realizada livre e coletivamente, atendendo plenamente às suas necessidades


e às necessidades de toda a coletividade social. Para Marx, isso é impossível em
uma economia capitalista dividida em classes antagônicas (seria impossível em
qualquer sociedade dividida em classes), de modo que ele desenvolve a proposta
utópica de uma sociedade sem classes antagônicas entre si, como o resultado his-
tórico ‘natural’ do desenvolvimento humano.
As discussões contemporâneas sobre a liberdade recuperam essas duas gran-
des vertentes da formulação do conceito e buscam construir uma noção unificada
da liberdade: que abranja tanto o componente político (em sentido lato), quanto
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

o componente econômico da vida em sociedade, mas ainda giram ao redor dos


eixos da individualidade ou da coletividade. Apresentarei parte desta discussão em
diálogo com Rainer Forst, lido a partir da condição brasileira e latino-americana.
Forst (2012) considera que um conceito intersubjetivo de liberdade é neces-
sário para superar os limites da discussão nos séculos XVIII-XX. O conceito
que ele desenvolve estrutura o conceito de liberdade intersubjetiva ao redor de
cinco concepções de autonomia individual. Porque autonomia individual em
um conceito intersubjetivo de liberdade? Por que, para Forst, não é o Estado que
concede liberdade, mas são os cidadãos que concedem liberdade uns aos outros
de modo recíproco e generalizado. Os cidadãos são, simultaneamente, usuários
e outorgadores da liberdade – demandam liberdade na vida social e concedem-
-se mutuamente a liberdade, por isso, ele nomeia seu conceito de liberdade como
liberdade política. Em sua concepção, a liberdade é um conceito subordinado ao
de justiça, posto que toda demanda de liberdade é também demanda por justiça,
mas o inverso não é verdadeiro. (cf. FORST, 2012, p. 125-126).
Vejamos a sua definição de liberdade política.
O conceito de liberdade política abrange aquelas concepções de autono-
mia que pessoas, como cidadãs de uma comunidade política governada
com base na lei, devem, recíproca e generalizadamente, outorgar e ga-
rantir uns aos outros, o que significa que a liberdade política inclui to-
das aquelas liberdades que cidadãos, como usuários-da-liberdade e ou-
torgadores-da-liberdade autônomos, podem reivindicar uns dos outros
(ou, negativamente, que eles não podem, razoavelmente, negar uns aos
outros) e são mutuamente responsáveis por sua realização. Enfim, cinco
diferentes concepções de autonomia individual devem ser distinguidas:
autonomia moral, ética, legal, política e social (FORST, 2012, p. 128).

O Conceito de Liberdade na Filosofia Contemporânea


52 UNIDADE II

Fica evidente, nesta definição, que, para entender a liberdade, é preciso compreen-
der a noção de autonomia. Ora, se a liberdade é a realização das cinco dimensões
da autonomia individual, em que consiste a autonomia para Forst? Para ele,
uma pessoa age de modo autônomo, isto é, como um ser autodetermi-
nante, quando ela age intencionalmente e com base em razões. Ela tem
consciência das razões de suas ações, pode ‘responder’ quando per-
guntada por essas razões e é, assim, responsável por si mesma. Pessoas
autônomas neste sentido são agentes que podem ser responsabilizados
e prestar contas de si mesmos para si mesmos e para os outros; elas
podem explicar e justificar racionalmente (com razões) as suas ações

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(FORST, 2012, p. 129).

Você entendeu? Vamos juntar as duas definições: uma pessoa é livre quando ela
é autônoma. Uma pessoa é autônoma quando ela é capaz de justificar (defender
com razões) as suas próprias ações para si mesma e para as demais pessoas na
sociedade. Essa justificação precisa ser recíproca: todos têm a obrigação de justi-
ficar as razões de suas ações, e generalizada: todas as pessoas devem reconhecer
a validade das razões das ações uns dos outros – quando as razões da ação de
uma pessoa não podem ser aceitas por todas (ou pela maioria), essa pessoa não
tem liberdade para agir do modo como deseja. Por isso, a noção de liberdade é
subordinada à de justiça: para ser verdadeiramente livre, a pessoa também pre-
cisa viver em uma sociedade justa e praticar a justiça.
Vamos, agora, apresentar cada concepção ou dimensão da liberdade.

(1) Autonomia moral

A moralidade é a esfera da vida humana que trata das normas universalmente


válidas para agir. Ela se distingue da esfera ética exatamente por sua universa-
lidade, enquanto a esfera ética é a esfera da particularidade das normas morais.
Neste sentido, quando uma pessoa é moralmente livre? Quando ela for capaz de
agir com base em razões que levam em consideração todas as demais pessoas,
de modo que essas razões sejam mutuamente justificáveis - critérios de reci-
procidade e generalidade. Isto é, todo ser humano tem um direito à justificação
que está na base da autonomia. Logo, uma pessoa é livre para agir moralmente
quando ela é capaz de justificar as normas morais que ela adota de tal forma que

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


53

todas as pessoas afetadas por essas normas morais reconheçam a validade des-
sas normas. Em termos mais concretos: eu (individualmente ou como membro
de um povo, de uma classe social, de uma fé etc.) não posso impor à sociedade
as minhas próprias normas morais que considero universalmente válidas. É pre-
ciso que as demais pessoas afetadas por essas normas reconheçam que elas são
universalmente válidas. Por exemplo: uma pessoa evangélica considera que as
normas morais bíblicas são universalmente válidas, mas não tenho o direito de
impor essas normas morais para toda a sociedade, a não ser que a sociedade,
como um todo, reconheça a validade universal dessas normas. Isto é, ninguém
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

pode ser obrigado a agir de acordo com normas morais a não ser que essa pessoa
reconheça a validade universal dessas normas. Moralmente falando, a liberdade
só existe quando eu tenho o direito de questionar as normas morais presentes
em minha sociedade (demandar que a validade dessas normas morais seja jus-
tificada com razões aceitáveis a todas as pessoas afetadas por elas).

(2) Autonomia ética

Uma pessoa é eticamente autônoma quando ela é capaz de determinar “o que


é importante para si mesma com base em razões que, de modo mais pleno e
adequado possível, levam em conta sua identidade como a pessoa que ela tem
sido, como ela é vista, como ela quer ser vista e vê a si mesmo no presente e no
futuro” (FORST, 2012, p. 131). A autonomia ética, portanto, tem a ver com a
capacidade de a pessoa escolher o seu próprio estilo de vida e identidade, respei-
tando a mesma autonomia de outras pessoas, e não impondo a sua identidade
ética aos demais. Se voltarmos ao exemplo anterior: uma pessoa evangélica não
pode impor a toda a sociedade as suas normas morais a não ser que essas nor-
mas sejam consideradas universalmente válidas, porém ela pode praticar essas
normas dentro dos limites da sua própria comunidade evangélica ou dentro dos
limites de sua individualidade, sempre respeitando o direito dos outros.
Vamos avançar mais um pouco. Levando em consideração que a reflexão ética
é retrospectiva e prospectiva ao mesmo tempo, uma pessoa é livre do ponto de
vista ético quando ela é capaz de justificar razoavelmente a sua opção pessoal de
estilo de vida, mas também quando ela é capaz de, se tiver boas razões, modificar

O Conceito de Liberdade na Filosofia Contemporânea


54 UNIDADE II

o seu próprio estilo de vida. Em termos mais concretos, uma pessoa evangélica
é eticamente livre quando ela for capaz de modificar a sua própria ética ao reco-
nhecer que uma norma ética ‘evangélica’ reconhecida no passado, por exemplo,
deixa de ter validade no presente, porque as razões usadas no passado para jus-
tificar aquela norma ética não são mais consideradas válidas no presente à luz da
esperança cristã futura. O apóstolo Paulo, por exemplo, teve uma discussão com
o apóstolo Pedro porque ambos mantinham comunhão com gentios cristãos,
mas Pedro, quando soube da presença de judeus cristãos de Jerusalém, deixou
de manter comunhão com os gentios. Para Paulo, a opção ética de Pedro não era

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válida, porque: (a) ele se comportava de modo incoerente (mantinha comunhão
com gentios, mas apenas longe de judeus de Jerusalém que consideravam invá-
lida a comunhão com gentios); e (b) a esperança cristã em Jesus Cristo implicava
em que judeus e gentios, igualmente, fariam parte do reino eterno de Deus (o
relato dessa discussão está no primeiro capítulo da carta aos Gálatas).
Neste exemplo, podemos perceber, também, a relação entre as dimensões
moral e ética. Para Paulo, o comportamento de Pedro era inválido tanto do ponto
de vista ético (particular), quanto do ponto de vista moral (universal). Pedro não
podia justificar a negação da comunhão com os gentios com base em razões uni-
versalmente válidas, mas apenas com base em razões particularmente válidas
(válidas apenas para os judeus de Jerusalém que Paulo chamava de judaizan-
tes) e, mesmo assim, ao agir com base no medo de que os judaizantes poderiam
pensar a seu respeito, Pedro não foi coerente com sua própria identidade – em
outras palavras, ele não possuía boas razões para justificar a si mesmo a sua ação
de evitar a comunhão com gentios. Assim, a ação de Pedro não foi uma ação
livre, nem do ponto de vista moral, nem do ético!

(3) Autonomia legal

A dimensão legal da liberdade possui estreita relação com a dimensão ética da


liberdade. Segundo Forst (2012, p. 133),
a concepção de autonomia legal pode, assim, ser introduzida como uma
questão de não ser forçado a viver de acordo com uma concepção es-
pecífica de autonomia ética. [...] Respeitar a autonomia legal, portanto,

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


55

implica respeitar a liberdade das pessoas viverem de acordo com as suas


convicções éticas, uma forma de respeito devida, não só entre diferentes
comunidades éticas, por assim dizer, mas também dentro delas. Nenhu-
ma dessas comunidades pode forçar seus membros a viver de acordo
com um modo tradicional de vida e, semelhantemente, a comunidade
legal não pode forçar ninguém a viver de acordo com tal modo de vida.
[...] O alvo da autonomia legal – empoderar pessoas para viver uma vida
que elas possam considerar como digna de ser vivida – somente pode
ser alcançado se os parâmetros das opções e espaços éticos legalmente
assegurados não são, eles mesmos, dotados de uma natureza ética parti-
cular, mas são justificáveis em um modo mais genérico, ‘razoável’.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A dimensão legal da liberdade, portanto, equivale ao que em linguagem comum


chamamos de livre-arbítrio ou liberdade de escolha. Uma pessoa pode escolher
qualquer estilo de vida (fé, emprego, vestimentas, penteado, tatuagem ou não,
etc.) que ela considerar digno, valioso, de ser vivido; um estilo ou modo de vida
que conceda à pessoa o senso de auto-realização e satisfação. Esse estilo de vida
não pode ser imposto por ninguém, quer pelo Estado, quer pela comunidade
ética a que a pessoa pertence, ou por uma comunidade ética distinta da sua. Isso,
porém, não quer dizer que uma pessoa possa simplesmente ‘viver do jeito que
quiser’. Como nota Forst (2012, p. 134-135),
autonomia legal implica que uma pessoa legal é imputável e responsá-
vel somente perante a lei, e não perante certos valores éticos. Visto que
a lei positiva somente regula o comportamento externo das pessoas e
abstrai das motivações de suas ações, ela abre um espaço de arbitrarie-
dade pessoal no qual a pessoa tem o direito de ‘não ser racional’, para
usar uma frase de Wellmer, entendida no sentido de não-conformidade
ética e liberdade para não participar em discursos públicos ou políti-
cos, mas não entendida, porém, como a liberdade absoluta de não pre-
cisar justificar moralmente as suas ações às pessoas por elas afetadas.

Consequentemente, é fundamental que o conjunto de leis do país seja elaborado


democraticamente e esteja aberto à permanente atualização e revisão, de modo
que não seja ele mesmo arbitrário ou injusto – favoreça alguma(s) comunida-
de(s) ética(s) em detrimento de outras, ou alguma classe social em detrimento
de outras. Então, a liberdade legal é a possibilidade de uma pessoa viver de modo
autêntico conforme suas próprias convicções, dentro dos limites de: (a) não des-
respeitar a lei; e (b) justificar moralmente suas ações às pessoas por elas afetadas.

O Conceito de Liberdade na Filosofia Contemporânea


56 UNIDADE II

(4) Autonomia política

Vimos três dimensões da liberdade ou autonomia, na concepção de Forst. Agora


precisamos analisar a dimensão política da liberdade. De acordo com nosso par-
ceiro de diálogo,
a relação entre autonomia moral, ética e legal, dentro de um conceito
de liberdade política, necessita do seguinte passo: o princípio de justi-
ficação geral e recíproca deve ser traduzido em procedimentos de ‘jus-
tificação pública’ entre cidadãos como autores da lei. Os resultados de
tais procedimentos somente podem ser justificados se eles corporifica-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
rem os critérios de reciprocidade e generalidade e puderem assegurar a
extensão mais adequada e equitativa de liberdades pessoais. Enquanto
participantes nesses procedimentos justificatórios e como membros de
uma comunidade política responsável por seus resultados, cidadãos
são politicamente autônomos (FORST, 2012, p. 135).

Se a liberdade de uma pessoa depende da justificação geral e recíproca de suas


ações, então a dimensão política da liberdade só pode se constituir mediante o
fato concreto de tal pessoa, enquanto cidadã, for também autora da lei – ou seja,
exercer a sua cidadania de forma responsável em uma sociedade democrática.
Tendo em vista, porém, que a dimensão legal da liberdade implica na não-obriga-
toriedade da pessoa participar dos discursos públicos de justificação, a dimensão
política da liberdade implica em que não só haja regulamentação legal e espaço
para a participação de todos os cidadãos e cidadãs, mas também que aquelas
pessoas que decidirem não participar assumam a responsabilidade pelos efeitos
decorrentes de sua não participação.
Voltando a Forst,
a autonomia política é, assim, uma forma de autonomia que só pode
ser exercida juntamente com outras pessoas enquanto membros de
uma comunidade política. Cidadãos autônomos consideram a si mes-
mos como responsáveis pelos outros e com os outros; eles ‘respondem’
uns aos outros com razões mutuamente e geralmente aceitáveis (ou to-
leráveis) e consideram a si mesmos ‘responsáveis’ pelo resultado das
decisões coletivas, uma responsabilidade que têm, não somente uns
para com os outros como membros de sua comunidade política, mas
também com relação àquelas pessoas que possam ser afetadas por suas
decisões. Neste sentido, não podemos esquecer que a responsabilidade
moral e política de cidadãos não termina nas fronteiras de seu contexto
político (FORST, 2012, p. 136).

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


57

Fica evidente, nesta citação, que a liberdade política consiste, primariamente, no


direito de exercer o poder político democrático com responsabilidade. Uma respon-
sabilidade perante a sua própria comunidade política, mas também em relação
a toda a humanidade, na medida em que suas ações possam afetar membros de
outras comunidades políticas. Parece-me evidente, também, nesta descrição da
dimensão política da liberdade que, no Brasil atual, estamos longe de exercer
esse poder político democrático de modo responsável e justificável, começando
com os agentes estatais, mas também incluindo toda a sociedade brasileira e
suas distintas comunidades éticas e religiosas. Vejo, então, que a construção da
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

verdadeira cidadania democrática é a principal tarefa pública a ser realizada em


nosso país por toda a sociedade e pelas igrejas em especial.

(5) Autonomia social

Finalmente, vejamos a quinta e última dimensão da liberdade de acordo com


a descrição de Rainer Forst, dimensão, esta, que assume proporção significa-
tiva em nosso país à luz do que constatamos anteriormente na discussão sobre
a liberdade política.
Autonomia social significa, portanto, que uma pessoa possui os meios
internos e externos de ser um membro igual e responsável da comuni-
dade política, isto é, ser autônoma nos quatro sentidos discutidos até
agora, na medida em que faz parte da responsabilidade de todos os
cidadãos outorgar e garantir uns aos outros direitos a uma vida sem
exclusão legal, política ou social, Os padrões mediante os quais se pode
medir a autonomia social são padrões sociais de uma vida não estig-
matizada, plenamente participativa (e não ideias éticas específicas a
respeito da vida ‘boa’). Ao invés de assumir que a liberdade política
consiste em possuir certos direitos, enquanto o ‘valor da liberdade’ jaz
nas possibilidades materiais de usar esses direitos, é mais coerente con-
siderar essa possibilidade material de realização das liberdades pesso-
ais na forma de uma concepção de autonomia social enquanto parte
integrante de um conceito de liberdade política (FORST, 2012, p. 136).

Nesta descrição, encontramos o vínculo mais direto entre o conceito de liberdade


e a visão comum social sobre a justiça: para exercer responsavelmente sua liber-
dade, uma pessoa precisa ter as condições materiais indispensáveis a tal exercício,
juntamente com as condições existenciais necessárias ao exercício da liberdade.

O Conceito de Liberdade na Filosofia Contemporânea


58 UNIDADE II

Em outros termos, sem justiça social, sem plena inclusão social, não é possível
o exercício pleno da liberdade pessoal e intersubjetiva. No caso brasileiro, isto
significa que, enquanto os desníveis socioeconômicos permanecerem no grau
injustificável no qual estão hoje (e estiveram em toda a história de nosso país),
não podemos afirmar que vivemos todas e todos com liberdade. Pessoas despro-
vidas, injustamente, dos meios materiais e psicológicos para exercer a liberdade
têm o direito de ser incluídas no campo da liberdade e a sociedade como um todo
(inclusive o Estado) tem o dever de garantir que a inclusão seja feita com a devida
urgência. Em termos ainda mais simples e concretos: precisamos acabar de vez

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
com a pobreza, a indigência e a exclusão educacional, cultural e econômica em
nosso país. Somente assim viveremos responsavelmente em uma comunidade
plural justa e livre. Se, como vimos no item anterior, a construção da cidadania
democrática é a tarefa prioritária de nossa sociedade, criar as condições para a
construção e o exercício da cidadania é a prioridade fundamental dessa tarefa.
Em termos teológicos: a libertação para a liberdade e para a justiça é a prioridade
máxima da vida pública em nosso país e, consequentemente, nosso estudo teológico
da liberdade terá esse foco primário na sequência desta Unidade da nossa disciplina.

UM OLHAR BÍBLICO SOBRE A LIBERDADE

Vamos, agora, examinar o tema da liberdade na Escritura.

LIBERTADOS PARA A LIBERDADE - GL 5:1-12

Há muitos lugares nos escritos bíblicos por onde poderíamos iniciar nossa refle-
xão sobre uma teologia da liberdade. Optei por basear nosso estudo em Gálatas
5:1-12, onde a visão paulina da liberdade recebe uma atenção especial. Em fun-
ção da importância desta perícope para nosso tema, apresentarei uma reflexão
exegético-teológica relativamente detalhada.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


59

Texto e Estrutura

Gálatas 5:1-12:
(a) Para a liberdade o Messias nos libertou, sede firmes e não vos deixeis
submeter novamente a um jugo de escravidão.
(b) Prestai atenção: eu, Paulo, vos digo que se vos deixardes circunci-
dar, o Messias deixará de ter qualquer valor para vós.
(c) Declaro, novamente, a toda pessoa que se deixar circuncidar:
está obrigada a cumprir a totalidade da Lei.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

(b’) Fostes alienados do Messias, todos vós que vos justificais na Lei,
da graça decaístes.
(a’) Ora, nós, no espírito da fé, aguardamos ansiosamente a esperança da
justiça, pois no Messias Jesus nem a circuncisão, nem a incircuncisão
possuem qualquer valor, apenas a fé que se concretiza através do amor.
(a) Corríeis bem, quem vos impediu, de modo que não mais estais persu-
adidos pela verdade?
(b) Essa nova persuasão não vem daquele que vos chama. Um pouco
de fermento leveda toda a massa.
(b’) Estou persuadido, a respeito de vós, no Senhor, que não pensareis
de outro modo; mas aquele que vos perturba sofrerá a condena-
ção, seja quem for.
(a’) Quanto a mim, porém, se continuo pregando a circuncisão, porque sou
perseguido? Assim o escândalo da cruz seria anulado.
Oxalá sejam castrados aqueles que vos perturbam. (Tradução própria)
A estrutura da perícope é relativamente clara. Possui dois segmentos que se
complementam, o primeiro apresentando uma tese, o segundo questionando
pessoalmente os gálatas sobre os motivos de seu eventual abandono da tese que
lhes fora apresentada desde o início da pregação do Evangelho. A referência à
perseguição sofrida por Paulo deve ter a ver com as acusações que ele sofria dos
chamados judaizantes, oponentes de sua visão de que os gentios não necessita-
vam de se conformar à identidade judaica para pertencerem ao reino de Deus e
serem seguidores do Messias. Ambos os segmentos estão organizados em para-
lelismo de formato quiástico – o primeiro, concêntrico; o segundo, tradicional
– forma destacada anteriormente na apresentação da tradução do texto bíblico.

Um Olhar Bíblico Sobre a Liberdade


60 UNIDADE II

A tonalidade desta perícope é fortemente emocional. Sua conclusão “Oxalá


sejam castrados aqueles que vos perturbam” expressa um desejo nada compa-
tível com a afirmação paulina em Rm 12,14 “abençoai os que vos perseguem,
abençoai e não amaldiçoeis”. Tal contradição existencial revela o quão pro-
fundamente perturbado e preocupado estava Paulo em relação ao futuro dos
cristãos na Galácia. O foco textual da perícope recai sobre a circuncisão, e isso
deve nos advertir contra uma interpretação antissemítica ou supersessionista
do texto. Paulo não está combatendo o Judaísmo, ou negando a sua identidade
judaica. O problema tem a ver com a exigência de circuncisão aos gentios, con-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
forme já indicado em Gl 2,3 e o relato da polêmica com Pedro e os judaizantes
em Antioquia. Em jogo, portanto, está a identidade do povo messiânico e a uni-
versalidade do Evangelho.

Supersessionismo é o termo que recentemente entrou no mundo acadê-


mico para criticar a atitude que considera o Cristianismo como uma forma
superior de Judaísmo, e o Novo Testamento como a verdade completa ape-
nas indicada no Antigo Testamento. Em alguns ambientes também se usa o
termo “teologia da substituição” como sinônimo.
Fonte: o autor.

Do ponto de vista teológico, Paulo retoma ao tema já apresentado em Gl 3,10:


“Todos quantos, pois, vivem com base nas obras da lei estão debaixo de maldi-
ção; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as
coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las” (tradução própria). Neste sen-
tido, o que está em jogo é a própria identidade do Messias e a compreensão do
propósito de sua vida, morte e ressurreição. Para Paulo, a graça de Deus é plena-
mente libertadora, e nenhuma exigência deveria ser colocada em paralelo com
a mesma com vistas à salvação humana – nem mesmo a Lei que veio de Deus
(mesmo que mediada por anjos, cf. 3,19-20) – posto que a função da Lei não era
a de concretizar a justiça, mas a de servir como guardiã contra a cobiça da carne.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


61

Análise exegético-teológica

Passemos, agora, juntos, à análise exegética do texto paulino.

Uma liberdade radical

A discussão sobre a circuncisão se dirige aos membros gentios das comunidades da


Galácia. Não é um problema interno do Judaísmo, nem uma questão para os judeus
que seguem Jesus como o Messias. O tema restrito, porém, pertence a uma discus-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

são mais ampla, que concerne a todos os cristãos, que é a discussão sobre a liberdade,
tema do qual nos ocuparemos agora. “Para a liberdade (o substantivo ’eleutheria,
traduzido por liberdade, só é usado onze vezes no NT: Rm 8,21; 1Co 10,29; 2Co
3,17; Gl 2,4; 5,1.13[2vezes]; Tg 1,25; 2,12; 1Pd 2,16.19. Na tradução grega da Bíblia
Hebraica, chamada Septuaginta, só uma vez nos livros canônicos da Bíblia Hebraica,
Lv 19:20, mais 6 vezes nos que não estão na BH: 1Ed 4,49.53; 1Mc 14,26; 3Mc 3,28;
Sir 7,21; 33,26) o Messias nos libertou” (o verbo ’eleutheroo é usado apenas 7 vezes
no NT: Jo 8,32.36; Rm 6,18.22; 8,2.21; Gl 5,1. Na LXX, apenas em 2Mc 1,27; 2,22 e
Pv 25,10 [em trecho que não ocorre na BH]) – a posição do objeto indireto é enfá-
tica no grego, por isso a mantive em português, apesar da forma “O Messias nos
libertou para a liberdade” ser mais adequada sintaticamente. A redundância é pro-
posital e tem a ver com a necessidade expressa no texto de convencer os gálatas a
não se deixarem circuncidar e se colocarem sob o jugo da identidade restritiva pro-
posta pelos oponentes de Paulo. Nesse sentido, a liberdade pode ser entendida de
modo restrito: a liberdade em relação à necessidade de cumprir todos os requisitos
da Lei (conforme interpretada pelos grupos dominantes do Judaísmo da época) – o
que vemos em Gl 2,4. Este parece ser o foco principal neste segmento, mas em 5,13
o tema se amplia e aparece na forma como é comum em Paulo, mesmo quando a
raiz eleuth não é usada: a ética-espiritualidade paulina da liberdade em amor.
Assim, embora já entre em elementos da próxima perícope, considero con-
veniente tratar do tema da liberdade cristã neste texto, devido à sua importância
para a compreensão da literatura paulina. O conceito paulino de liberdade se funda
no conceito de libertação: ser livre para viver depende de termos sido libertados
da escravidão. Segundo Paulo, o Messias nos libertou da carne, do pecado, da Lei

Um Olhar Bíblico Sobre a Liberdade


62 UNIDADE II

(o tema é central em Rm 5-8, texto que analisaremos em outra disciplina deste


curso. Para mostrar o ponto de contato com este texto, é fundamental ler Rm
8,2). A carne, para Paulo, é a potência de viver que nos faz ser egoístas, egocên-
tricos, indiferentes ao próximo – em uma palavra: incapazes de amar. O pecado é
essa mesma potência, vista não sob o signo da finitude humana, mas sob o signo
da ação humana. A Lei, por sua vez, é o que dá força às potências da carne e do
pecado – seja a lei judaica ou não, qualquer Lei, divinamente sancionada ou não,
possui a mesma função: potencializar as potências que escravizam o ser humano.
Libertados dessas potências poderosas, nós, seres humanos, nos colocamos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sob a potência do amor. Paulo se compraz no paradoxo de descrever a liberdade
cristã como uma nova escravidão (em Rm 6, o tema é repetido enfaticamente),
a ponto de usar para si mesmo o termo escravo como um termo identitário. Não
se trata, porém, de entender a escravidão a Deus e a seu Espírito como uma
descrição da fragilidade humana (como é relativamente costumeiro em certos
segmentos cristãos). Trata-se, sim, de descrever a potência que nos faz viver –
lembremos de que Paulo vivia em um mundo no qual o ser humano estava à
mercê de poderes muito superiores a ele. Ser livre, então, para Paulo, significava
não estar escravizado a potências cujo efeito final é a morte. Assim, ser escravo
do Deus libertador é a verdadeira liberdade, pois ficamos sob a potência cujo
resultado final é a vida e a vida completa, plena.
Ser livre, então, para amar o próximo – da mesma forma como o Messias,
livremente, nos amou e se entregou por nós na cruz. Fomos, assim, libertados da
potência da carne do pecado e da Lei, pelo Messias, para vivermos a potência do
amor, do Espírito, do próprio Deus (em 2,19 Paulo afirma que morremos para a
Lei a fim de vivermos para Deus). Esta liberdade, por fim, é vivenciada sob o signo
escatológico-apocalíptico. Em outras palavras, a potência da liberdade não anula a
presença da potência da escravidão – a liberdade é vivida conflitivamente (Gl 5,17
retoma a noção de conflito), somos livres, mas ainda lutamos contra a servidão.
Lutamos, mas não sós, lutamos no Espírito, com a potência do Espírito. O elemento
ontológico do tema é complexo e Paulo aparentemente vê o ser humano como onti-
camente escravo, de modo que por sua própria potência não seria capaz de alcançar
a liberdade. Somente na potência messiânica (que é a potência do Espírito, Rm 8;
Gl 3; 4; 5; e 2 Co 3,17) é que a liberdade se torna propriedade humana.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


63

Finalmente, a liberdade não é apenas um destino para o ser humano – mas


para toda a criação (cf. Rm 8,21-23). Na ontologia paulina, toda a criação divina
existe para a liberdade – ou seja, para não estar sob a servidão ao pecado, à
carne ou à Lei. A libertação do ser humano é um passo no processo escatológi-
co-apocalíptico de libertação cósmica e não a finalidade do processo divino de
salvação. O antropocentrismo moderno não se sustenta na teologia paulina, por
mais que as teologias cristãs modernas tenham contribuído para o desenvolvi-
mento desse antropocentrismo. Da mesma forma, se consideramos o contexto
atual da vivência da fé cristã, a liberdade cristã não é liberdade para consumir e
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

acumular – mas liberdade para servir ao próximo e para desfrutar dos bens deste
mundo sem dependência, mas com moderação e responsabilidade para com toda
a criação, e não apenas para conosco.
Conforme já mencionado, a discussão sobre a circuncisão se dirige aos
membros gentios das comunidades paulinas na Galácia. Para Paulo, o tema é
inegociável: o gentio que se deixa circuncidar se coloca fora do povo messiâ-
nico, anula o valor da libertação oferecida pelo Messias, aliena-se radicalmente
do próprio Messias – não estar no Messias é, em Paulo, voltar para a escravidão
às potências da morte. A seriedade do tema é destacada pelo modo como, no
verso 2, Paulo o introduz: “prestai atenção: eu, Paulo [...]”. A forma redundante
da introdução obriga os leitores-ouvintes da carta a assumir um posicionamento
pessoal em relação ao tema. Não se trata apenas de discutir a validade de um
conceito – trata-se de uma questão de fidelidade, de lealdade. Paulo demanda
que a comunidade decida se permanecerá fiel a ele ou se adotará uma nova fide-
lidade – procedimento que ele já tinha adotado com relação à fidelidade a Deus
e seu Messias e Espírito. Leais a Deus ou leais à carne? Leais ao Espírito ou leais
à carne? Leais ao Messias ou leais à Lei? Leais a Paulo ou leais aos seus detrato-
res? O tom pessoal já estava presente no verso 1 com o verbo “estar firme”, pois
a raiz da palavra fidelidade em hebraico é exatamente estar firme.
Por que a mudança de lealdade anularia a ação amorosa do Messias? Por que
o se circuncidar equivale a assumir outro caminho para a entrada no povo de
Deus – o caminho da obediência ao que é externo a Deus e ao ser humano: a lei.
Não se trata, então, mais uma vez insisto, em apontar a inutilidade ou a inviabili-
dade da lei judaica (da Torá ou da Bíblia Hebraica) e, assim, da identidade judaica

Um Olhar Bíblico Sobre a Liberdade


64 UNIDADE II

como tal. Trata-se, sim, de perceber a real função da Lei (judaica ou não), que
não é a de gerar justiça, mas de guardar (no sentido de restringir a liberdade) a
pessoa considerada imatura e incapaz de fazer o que deve ser feito. Viver sob a lei
é viver sob a servidão, porque não se pode discernir e, consequentemente, deci-
dir sobre o que é certo ou errado. A vida sob a Lei, não importa quão boa seja
tal lei, é vida na escravidão, na servidão e, assim, desemboca na morte. É com
base na própria Torá (Lei) que Paulo mostra a função real da Lei: “Todos quan-
tos, pois, vivem com base nas obras da lei vivem debaixo de maldição, porque
está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
no Livro da lei, para praticá-las” (Gl 3,10 citando Dt 27, 26).
A vida sob a lei, portanto, é o oposto da vida sob a promessa. Sob a lei, temos
maldição; sob a promessa, bênção. A promessa a Abraão se estende a toda a
humanidade, de modo que toda a humanidade pode viver sob a bênção divina
– mas somente na condição de participar no Messias, pois ele é o libertador
do ser humano das potências da morte. Voltar para a obediência à lei é anular
radicalmente o trabalho do Messias. De modo contrário, viver na fé é viver em
fidelidade ao Messias e, assim, colocar-se no caminho da esperança escatológi-
co-apocalíptica da revelação final da justiça de Deus (cp. Rm 1,16-17). A justiça
de Deus, a plena liberdade de toda a criação, somente há de se revelar plena-
mente no fim. Para chegar ao fim, é preciso permanecer no Messias – até porque
o fim não é meramente cronológico, mas, principalmente, kairológico – já vive-
mos nos tempos do fim. Para Paulo, o fim da história já havia chegado, mas um
fim qualitativo e não quantitativo. É o fim de uma história: a história da escra-
vidão sem saída; e o começo de uma nova história: a história da liberdade em
confronto com os poderes da servidão.
Nesta nova história (no Messias Jesus), “nem a circuncisão, nem a incircun-
cisão possuem qualquer valor, apenas a fé que se concretiza através do amor”.
Paulo já antecipa o tema do segundo segmento da perícope e o da próxima perí-
cope, retomando a noção de subjetividade messiânica que construíra ao longo
da carta. A identidade do povo messiânico não é baseada em raça, etnia, fé, polí-
tica etc. – é baseada exclusivamente na fidelidade que se concretiza no amor ao
próximo – que é o cumprimento da Lei, ou seja, o fim da obrigação legal. Daí o
sentido da liberdade: não viver mais sob o regime da dívida, do dever, da obrigação

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


65

– mas viver sob o regime da dádiva, do amor, da emancipação. Em outras pala-


vras, as identidades terrenas não são anuladas pela subjetividade messiânica, são
subordinadas a ela, na medida em que a identidade messiânica é a única capaz
de romper com as hierarquias e dualismos presentes nos discursos identitários
excludentes. A universalidade humana em Paulo não é monoidentitária, é plu-
ral e, diríamos hoje em dia, pluralista.

Uma liberdade vivencial


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O tom deste segundo segmento é intensamente pessoal. A argumentação teo-


lógica cede lugar ao apelo experiencial, como em 4,12 que faz o mesmo tipo de
transição – da argumentação para a conversação. Paulo passa a: (a) questionar a
própria experiência dos gálatas e os adverte quanto ao rumo errado que estavam
tomando; e (b) confrontar os seus oponentes e contrastar o seu comportamento
com o deles – dando a entender que o erro a ser eventualmente cometido pelos
gálatas seria provocado pelos oponentes de Paulo. Ao mesmo tempo, porém, dá
mostras de confiança nos membros das comunidades cristãs, de que serão capa-
zes de retomar o rumo correto. O segmento finaliza com o contraste entre Paulo
e os seus oponentes e o desejo do apóstolo em ver o fim da aflição dos gálatas –
em um tom nada amistoso com relação aos seus oponentes.
No verso 6, o jogo dos tempos verbais é crucial: corríeis, no imperfeito, des-
taca o estado dos gálatas antes da confusão causada pelos oponentes de Paulo;
impediu, no aoristo, destaca o eventual resultado da ação dos oponentes de Paulo
– vista como realizada, mas, de fato, não concretizada ainda – resultado, este, que
é descrito como uma mudança intelectual e existencial, indicada pelo verbo no
presente (indicando estado): não mais estar persuadido pela verdade. O apelo é
semelhante ao de 3,1ss, em que Paulo afirma que os gálatas haviam começado
bem, mas estavam agora se desviando do rumo adequado. O verbo correr é usado
outras vezes por Paulo para se referir à vida cristã, apontando para o seu caráter
atlético, que demanda disciplina, esforço e perseverança (Gl 2,2; Rm 9,16; 1Co
9,24-26), mostrando a cooperação entre a graça de Deus e a resposta humana
de grata fidelidade (lembremo-nos de que a ideia básica da noção de fidelidade
é a permanência, a perseverança em uma relação).

Um Olhar Bíblico Sobre a Liberdade


66 UNIDADE II

O verbo impedir provavelmente foi escolhido por proporcionar um inte-


ressante jogo de sentido. Por um lado, tem a ver com um obstáculo colocado
diante do corredor, impedindo-o de chegar ao final, seja como vencedor, seja
como competidor. Por outro lado, porém, em Hipócrates o verbo foi usado com
o sentido de cortar – o jogo então seria com o corte da circuncisão: os judai-
zantes estariam cortando o futuro dos gálatas ao exigir deles que cortassem
uma parte de sua pele. O resultado do corte-impedimento era a não-persua-
são. Paulo usa 3 vezes a raiz peith – duas vezes tendo os gálatas como sujeitos,
e a terceira vez ele mesmo Paulo é o sujeito do verbo – contrastando a fideli-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
dade de Paulo com a volubilidade dos gálatas. A tradução desta raiz pelo verbo
obedecer, em português, não capta adequadamente o sentido. Não se trata de
mera obediência, mas de adesão pessoal a um projeto de vida. Daí a opção
por persuadir e persuasão, termos que indicam esse tipo de relação existen-
cial com um conteúdo ou com uma pessoa. A verdade, aqui, merece atenção.
Comumente interpretamos a verdade como se referindo ao conteúdo da prega-
ção ou do ensino cristão. Em boa medida, sim, mas a noção de ’aletheia, como
de ‘emeth transcende o conhecimento puro e simples. A verdade, no pensa-
mento hebraico, é propriedade das ações de uma pessoa – o que uma pessoa
diz é verdadeiro porque essa pessoa é verdadeira. Nesse sentido, verdade e
fidelidade são sinônimos. Podemos pensar, então, que o texto está apontando
para a persuasão pela verdade da fidelidade divina que nos chama constante-
mente para sermos seus.
O verbo chamar está no particípio presente, que indica uma situação per-
manente – Deus nos chama constantemente. Em 1,6 o mesmo verbo é usado
no aoristo, indicando o momento da pregação do Evangelho, o momento
do chamado de Deus à entrada em sua família. Esse chamado, porém, é o
momento inicial de uma atitude – Deus é aquele que nos chama, ele cons-
tantemente nos chama para, neste tempo escatológico-apocalíptico, não
nos afastarmos dele. Dada a seriedade da relação, “um pouco de fermento”
é o suficiente para prejudicar toda a vida. A preocupação intensa de Paulo
pode ser assim entendida – o risco é enorme. Daí o tom forte e até relativa-
mente violento de Paulo na crítica aos seus oponentes: eles não são de Deus;
eles não buscam o bem dos gálatas, eles serão condenados, eles merecem

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


67

ser castrados! Tonalidade tão forte assim somente encontramos, fora desta
carta, em Fp 3,2: “Acautelai-vos dos cães! Acautelai-vos dos maus obreiros!
Acautelai-vos da mutilação [falsa circuncisão]!”. Em jogo está a identidade
do povo de Deus, em jogo está a proposta do Evangelho em alcançar todas
as pessoas com o amor e a justiça de Deus. Não é possível ser transigente
diante desse perigo. A cruz do Messias não pode ser reduzida a mais uma
morte sob os romanos. O seu caráter de execução injusta, mas aceita livre-
mente em prol da justiça, não pode ser diminuído. Com similar veemência,
Paulo lembra aos coríntios “Porque o Messias não me enviou para batizar,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

mas para pregar o evangelho; não com sabedoria de palavra, para que se não
anule a cruz do Messias” (1Co 1,17).

UMA LIBERDADE VIVIDA EM AMOR GL - 5:13-24

Passamos ao estudo exegético do texto de Gálatas.

Texto e Estrutura

(a) Pois vós, irmãos, fostes chamados para a liberdade; que a liberdade,
porém, não se torne um trampolim para a carne, pelo contrário, sejam
escravos uns dos outros pela prática do amor.
(b) Pois toda a Lei se concretiza em uma só palavra: ‘amarás o teu pró-
ximo como a ti mesmo’. Se, todavia, vos mordeis e devorais uns aos
outros, certamente vos consumireis.
(c) Eu vos digo: andai no Espírito e não vos submetereis à cobiça
da carne, pois a carne deseja contra o Espírito, e o Espírito con-
tra a carne – eles opõem-se um ao outro – a fim de que não
façais o que quereis. Ora, se sois guiados pelo Espírito, não
estais debaixo da Lei.
(d) Ora, as obras da carne são evidentes: sexo ilícito, impu-
reza, luxúria; idolatria, feitiçaria; intrigas, contenda, rixas,
iras, rivalidades, dissensões, facções; invejas, bebedeiras,
boemias e outras coisas semelhantes.

Um Olhar Bíblico Sobre a Liberdade


68 UNIDADE II

(d’) Previno vocês quanto a tais coisas, assim como já vos pre-
venira, que os que fazem tais coisas não herdarão o reino
de Deus.
(c’) O fruto do Espírito, porém, é amor, alegria, paz, perseverança,
bondade, generosidade, fidelidade, gentileza, domínio próprio.
(b’) Contra estas coisas a lei não tem valor.
(a’) Ora, os que são do Messias Jesus crucificaram a carne com suas paixões
e cobiças. (Tradução Própria).

A estrutura é relativamente irregular, sendo cada nova seção do paralelismo

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introduzida por um termo da seção anterior. O breve período “se, todavia,
vos mordeis e devorais uns aos outros, certamente vos consumireis” está
aparentemente deslocado, seu lugar, porém, é ditado mais pela urgência da
exortação do que pela lógica estrutural do paralelismo. As seções externas
do paralelismo tematizam a liberdade que vence a dominação da Lei e da
Carne – mediante a prática do amor, que corresponde ao amor do Messias
crucificado. As seções internas descrevem o conflito escatológico-apocalíp-
tico em que o cristão está inserido – descrito aqui como conflito entre carne
e Espírito. Esta perícope é uma forma condensada da discussão em Rm (5)7-8
e é tão complexa quanto aquela.
Penso que a chave principal para abrir o acesso ao texto é colocá-lo no
âmbito da discussão paulina sobre a subjetividade messiânica. As oposições
presentes na perícope: liberdade, pertença ao Messias e vida no Espírito de um
lado; carne, lei e escravidão, de outro; são mais bem entendidas como descri-
ções de diferentes modos de construir a identidade pessoal e coletiva e, assim,
viver a vida em sociedade. Para Paulo, as opções identitárias do Judaísmo
oficial, do pensamento grego e da dominação romana são, todas elas, escravi-
zadoras e excludentes. Dada a polêmica com os judaizantes, aqui Lei e carne
são praticamente identificados, mas podemos ver o quadro mais amplo tam-
bém em operação aqui. A vida no estilo do Messias, uma vida em liberdade,
vivida na energia do Espírito, é a única opção plausível para o apóstolo. Essa
vida é vivida na tensão escatológico-apocalíptica deste “tempo que resta”, o
tempo concreto em que vivemos e experimentamos a salvação em esperança
(cf. Rm 8,24ss).

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


69

Livres da Carne

Antes de analisar o texto, propriamente dito, vejamos a noção de carne nos escri-
tos paulinos em geral. Este aparente desvio de curso é necessário especialmente
em função do fato de que nós já temos um conceito de carne muito marcado
pelas discussões doutrinárias e pelas formas práticas das diferentes igrejas cristãs
lidarem com a temática da espiritualidade. Em particular, precisamos superar o
dualismo ontológico e moral que está embutido na visão doutrinária e prática
do conceito de carne nos meios cristãos contemporâneos.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A palavra grega sarx é usada cerca de 266 vezes na LXX, com diferentes sig-
nificados, dos quais os mais importantes são: (a) a carne, de seres humanos ou
de outros animais (e.g. Gn 2,21; 1Sm 2,13); (b) em uso metonímico para todo o
corpo humano (e.g. 1Rs 21,27); (c) uso metafórico para a transitoriedade, a mor-
talidade e finitude do ser humano (e.g. Is 40, 6.8); (d) a pessoa enquanto tal, mais
ou menos equivalente ao nosso termo eu ou self (e.g. Sl 63,2); e (e) toda a huma-
nidade (e.g. Gn 8,21). Essa gama de sentidos está presente nos textos paulinos,
mas nenhum deles representa o específico da noção em Paulo. No Judaísmo pós-
-veterotestamentário é que a noção de carne, sob a influência persa e helenista,
irá adquirir um contorno mais negativo do ponto de vista moral e se aproximar
de uma visão dualista do ser humano.
No mundo greco-romano, a palavra também é usada com vários sentidos, sendo
os mais comuns aqueles neutros – basar como a carne dos seres humanos, parte do
corpo, e indicando a transitoriedade da vida humana. No pensamento mais sofisticado
de filósofos (bem como em suas versões populares), modos dualistas de conceber
o ser humano e a realidade como um todo estão presentes e são dominantes. No
formato mais simples de dualismo, a carne se opõe à alma ou mente e, como passí-
vel de sofrimento e morte, é vista em termos negativos. No formato mais radical, a
carne e a matéria em geral são vistas como radicalmente negativas, como prisão da
alma/mente, e sede dos males físicos e morais do ser humano. Essa visão dualista não
está presente no Judaísmo (com raras exceções), e muito menos em Paulo. Assim,
o contraste entre carne e espírito em Paulo, por exemplo, não deve ser lido em ter-
mos ontológicos, ou seja, relativos à natureza humana, mas em termos existenciais
– relativos ao modo de vida das pessoas, à subjetividade humana em sua pluralidade.

Um Olhar Bíblico Sobre a Liberdade


70 UNIDADE II

O uso do termo por Paulo, por vezes, provoca alguma ambivalência para o
intérprete – quando afirma, por exemplo, que vivemos na carne (en sarki), mas
não segundo a carne (kata sarka) – e.g., 2 Co 10,2-3. Em síntese, viver na carne
significa apenas que somos humanos mortais, nossa vida é transitória – neste
uso não há qualquer conotação negativa em relação ao termo. Viver segundo a
carne, porém, é visto de modo negativo por Paulo – pois significa viver segundo
os padrões e valores do tempo presente, anterior à era messiânica, anterior à che-
gada do tempo escatológico-apocalíptico. É neste sentido que, aqui, Paulo fala
das obras da carne – uma lista que exemplifica o estilo de vida de quem não imita

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
o Messias Jesus (cf. Rm 1,18ss). Tanto aqui como em Romanos, a lista engloba
diversas dimensões das relações humanas: sexualidade, religiosidade, sociabi-
lidade, cultura, política. Viver segundo a carne (sem pertencer ao Messias), ou
ser um cristão carnal, significa viver um estilo de vida escravizado ao pecado e à
Lei, cujas manifestações concretas são as formas não-amorosas ou solidárias de
relacionamento interpessoal e social – formas de relacionamento cujo resultado
final é a morte, mas que se manifesta nas diversas formas de injustiça e violên-
cia cometidas pelo ser humano. Quem vive segundo a carne não pode, portanto,
herdar o reino de Deus, pois somente quem está no Messias herda o Reino.
A oposição carne – espírito, em Paulo, portanto, não é ontológica, mas existen-
cial. Ser carnal é estar vendido ao pecado (Rm 7,14), viver segundo a carne e sua
inclinação é se afastar da vida no Espírito e permanecer, assim, sob a lei do pecado e
da morte (Rm 8,1ss). Em outros termos, é uma oposição entre a subjetividade mes-
siânica e a subjetividade egocêntrica, injusta, dominadora. A vida no Espírito, ou
segundo o Espírito, porém, é vivida na carne, ou seja, nesta existência terrena (e.g.
2Co 10,3; Gl 2,20; Fp 1,22-24), no corpo carnal (mortal, transitório; e.g. Rm 8,10).
Daí o último inimigo a ser vencido pelo Messias ser a morte – 1 Co 15,20ss – pois a
morte é o destino de toda a carne. A ressurreição, porém, não é incorpórea, pois o
corpo atual é anímico, mas o corpo ressurreto será pneumático (1Co 15,31ss). Note
que Paulo não diz que o corpo atual é carnal, mas anímico – ou seja, movido pela
respiração (psique) e, assim, mortal. O corpo ressurreto é espiritual – não porque seja
incorpóreo, mas porque é movido pela energia do próprio Deus, cujo sopro é vida
(cf. Gn 2,7). A vitória sobre a carnalidade, como modo de vida contra Deus, é dada
pelo Espírito em nós que é o próprio Messias em nós (Gl 2,20). Eis a mística cristã.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


71

Livres da Lei

A palavra torah (hebraico) e sua tradução grega nomos possui diferentes usos e
significados. Basicamente: (a) o Pentateuco como um todo; (b) as seções normati-
vas do Pentateuco – mandamentos, estatutos e preceitos conforme a terminologia
bíblica; (c) instrução sacerdotal ou geral; (d) norma – consuetudinária ou jurí-
dica – a ser vivenciada em sociedade; (e) exigência legal externa à pessoa [neste
sentido, no próprio Antigo Testamento temos a crítica profética, em Jeremias 31
e Ezequiel 36 já se mostra o limite da normatividade institucional da Torá]; (f)
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Lei como caminho de salvação, como meio de acesso ao Reino de Deus e, assim,
marca primária da identidade do povo judeu [conforme a tradição farisaica e o
ensino sacerdotal oficial da época paulina]; e (g) lei como princípio existencial,
como em Rm 8,1ss – “a lei do Espírito, que é lei da vida [...]”.
Como caminho de salvação e marca primordial de identidade, a torá é cri-
ticada por Paulo. Ele mostra os seus limites e a contrapõe ao Messias e sua
fidelidade ao Pai. Como vimos mais de uma vez, para Paulo, é por meio da fide-
lidade e não da obediência que se entra e permanece na aliança com Deus. É
neste sentido que entendo a sentença “contra estas coisas não há lei” – na perí-
cope ela se refere ao amor ao próximo como oposto às discórdias entre irmãos.
Contra o amor, a lei internalizada, não há lei (mandamento ou princípio, ou
cânon, ou norma). Fidelidade (e amor) é atitude humana anterior à lei, ante-
cede à moralidade e a ética. Não é possível obedecer ao mandamento de amar
ou de ser fiel. Ser fiel e amar é questão, pura e simples, de ser. É apenas como
caminho de salvação que a lei é abolida, anulada. Ela não é anulada enquanto
Palavra de Deus, nem enquanto instrução normativa para seu povo. Muda,
porém, seu papel – deve ser entendida como instrução e não como manda-
mento – logo, deve ser internalizada (cf. Jr 31,31ss) e não obedecida em termos
de fazer o que nela está escrito.
Nos textos paulinos, encontramos afirmações positivas sobre a torah. (1)
Enquanto a seção canônica (Pentateuco), Paulo entende a Torá como palavra
de Deus normativa para o seu povo. Na própria Torá é que Paulo se baseia para
interpretar a vida do Messias Jesus e, voltando ao texto, interpretá-lo a partir da
atividade do Messias (e.g. Rm 7,12-14; 1Co 9,9); (2) enquanto palavra de Deus,

Um Olhar Bíblico Sobre a Liberdade


72 UNIDADE II

é ela quem nos revela sermos pecadores e, ao mesmo tempo, nos abre o acesso
à libertação do pecado e da lei (e.g. Gl 2,19) – neste mesmo aspecto, a Torá
(Pentateuco) mostra que judeus e gentios, igualmente, são pecadores e caren-
tes da graça de Deus; e (3) bem interpretada, a Lei revela a essência do projeto
moral do povo de Deus – nos Evangelhos temos essa discussão entre fariseus e
Jesus (cf. Mt 22,35ss e paralelos), e aqui mesmo nesta perícope encontramos a
afirmação de que a Lei se concretiza em uma única palavra.
Podemos comparar esta afirmação de Paulo com a resposta de Jesus a um
mestre fariseu sobre qual é o grande mandamento. Enquanto Jesus falou do amor

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a Deus como primeiro e do amor ao próximo como segundo mandamento, Paulo
restringe-se a falar que a lei se concretiza no amor ao próximo. Parece-me óbvio
que Paulo não é secularista ou racionalista – não se trata de opor o amor ao ser
humano (um humanismo antecipado) ao amor a Deus. Trata-se, sim, de mostrar
que os dois amores são, de fato, um só. Não é possível amar a Deus em amar ao
próximo e vice-versa. A seguinte canção sintetiza, a meu ver, muito bem, a fun-
ção positiva da Lei na visão paulina (cf. as linhas em itálico):
Pra nada pode a gente aproveitar

orar, cantar, louvar com emoção,

se isso não se faz acompanhar

de amor a quem está só, ou na opressão.

É coisa que não dá pra dividir: o amor a

Deus e a quem está junto a nós.

/: A prova de um é o outro, e o tempo já

chegou, do amor de Cristo em nós se

refletir. :/

Pra nada pode a gente aproveitar os bens

distribuir à multidão,

se isto não se faz acompanhar do amor de

Deus, senhor da criação (LOPES, s.d., on-line)1.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


73

Livres para viver no Espírito

A espiritualidade messiânica em Paulo é descrita, obviamente, como a vida no


Espírito ou segundo o Espírito de Deus, encontrando aqui, em Gálatas 5 e em
Romanos 8, suas formulações mais plenas. Para compreendermos bem os textos
paulinos sobre o tema, porém, precisamos levar em conta que as outras descri-
ções da espiritualidade, que não são organizadas ao redor do tema do Espírito de
Deus, são tão fundamentais quanto estas. Isto é, aquilo que chamamos de espi-
ritualidade pode, muito bem, também ser chamado de cristicidade – a vida no
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Espírito é apenas outra forma de descrever a vida no Messias, que é outra forma
de descrever a vida no Pai. Não há oposição entre o Espírito e o Messias, ou
entre ambos e o Pai, etc. Por isso, tenho preferido tratar deste tema sob a rubrica
da subjetividade messiânica – do estilo de vida, ou do modo de ser seguidor do
Messias Jesus, na força do Espírito, em imitação a Deus Pai.
A vida cristã, em Paulo, é descrita sob o signo da conflitividade: aqui, a confli-
tividade entre o desejo da carne e o desejo do Espírito, assim como em Romanos
8 há a oposição entre a atitude da carne (inclinação para a carne) e a atitude do
Espírito (inclinação para o Espírito). Por que o desejo da carne se opõe ao do
Espírito? Por que o desejo carnal é ego-
cêntrico, egoísta, individualista, fechado
em si mesmo. Já o desejo do Espírito
é altruísta, solidário, amoroso, voltado
para o próximo. A descrição do fruto do
Espírito aponta claramente nesta dire-
ção – e poderia ser resumido apenas
na palavra amor (caso esta não fosse,
então e hoje em dia, tão facilmente mal
compreendida). Quem se deixa guiar
pelo Espírito frutifica conforme a pró-
pria natureza do Espírito de Deus que é
amor – e, consequentemente, será alegre,
generoso, bondoso, terá perseverança,
autocontrole etc.

Um Olhar Bíblico Sobre a Liberdade


74 UNIDADE II

Dois verbos são usados para a atitude humana na espiritualidade: (a) andar
no Espírito – verbo que é bastante usado por Paulo neste campo temático, e.g.:
Rm 6,4; 8,4; 13,3; 1Co 3,3; 7,17 etc. se refere à conduta, à prática cotidiana, às
ações visíveis do ser humano. É tradução da raiz hebraica hlk, de onde vem a
palavra halakah – a espiritualidade na tradição judaica. Em outras palavras, Paulo
está afirmando que os gálatas podem viver como o Espírito vive, ou na força do
Espírito, ou através da vida do Espírito neles (as diferentes formas de entender o
caso dativo aqui) – o Espírito sendo fonte, instrumento ou energia da vida mes-
siânica; e (b) sois guiados – na voz passiva, indicando que o Espírito é aquele que

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orienta a vida humana, mostra o caminho, conduz no caminho e faz permanecer
nele. Viver no Espírito é viver sem a obrigação de obedecer à lei. Quem anda no
Espírito e é guiado por ele não está sob a dívida, ou sob a obrigação – o caso de
quem vive segundo a carne. Viver no Espírito é viver em liberdade.
Chegamos, assim, ao final desta discussão sobre a espiritualidade do
povo de Deus. Uma penúltima palavra: tem sido muito comum na história do
Protestantismo, confundir os meios da espiritualidade com o seu alvo. Orar,
ler a Bíblia, adorar a Deus, etc. são meios e não a finalidade da espiritualidade.
Quem é espiritual ama o próximo. Este é o único critério visível de espirituali-
dade messiânica. Orar, adorar, jejuar, etc., são práticas devocionais importantes
e necessárias – mas não definem se alguém é espiritual ou carnal. O que define
ser espiritual é o amor ao próximo como expressão do amor a Deus. Nada mais
conta, de fato!
Uma última palavra, a liberdade para viver no Espírito é uma liberdade
escatológico-apocalíptica: sua concretização não se dá apenas no passado e
no presente, mas na antecipação do futuro no presente, assim como Deus, no
Messias, antecipou o futuro em nosso passado (da encarnação-ressurreição do
Messias). A liberdade cristã é, então, essencialmente utópica – ela busca realizar
no presente aquilo que antevemos como o futuro de Deus para a humanidade
em uma nova criação. Desta forma, ela se torna um critério para a avaliação das
realizações da liberdade no presente e jamais nos deixa acomodar às conquistas
de nossa própria geração. A espiritualidade da liberdade, consequentemente, é
uma espiritualidade da permanente busca de Deus na esperança de sua vinda
que concretizará o Seu projeto de uma nova criação.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


75

UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE –


Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

LIBERDADE ÉTICA

Nosso tópico, agora, é a questão ética. Você já parou para pensar em como o
problema ético é importante para a Igreja? E já imaginou refletir sobre a ética
como uma expressão da liberdade? Vamos lá, então, venha comigo neste novo
caminho de discussão ética.

CONSTRUINDO UMA ÉTICA DA LIBERDADE EM AMOR

Conceber a ética cristã como ética de liberdade nos ajuda a reconfigurar a uni-
dade entre teologia, espiritualidade e ética. Em primeiro lugar, porque faz parte da
estrutura da liberdade humana a tomada de decisões a partir de razões e motivos
deliberados: “uma vontade se configura – por mais imperceptivelmente que se faça
algo – no curso de uma série de deliberações. E, dado que uma decisão somente
amadurece como consequência de um conjunto de considerações – por mais volá-
teis e confusas que sejam – somente experimentamos a nós mesmos como pessoas
livres em ações realizadas mais ou menos conscientemente” (HABERMAS, 2006,
p. 163). Fica evidente, a partir desta descrição da liberdade, o vínculo entre ética
da liberdade e teologia – é mediante a reflexão teológica, em especial, que uma
comunidade cristã define as razões e motivos para tomar decisões e agir.
Por outro lado, o vínculo entre ética da liberdade e espiritualidade se encontra
na junção entre liberdade e amor, na medida em que a liberdade da comunidade
cristã é liberdade para amar, pois a fé “age pelo amor” (Gl 5,6), a partir do que

Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Ética


76 UNIDADE II

se estabelece o imperativo
ético: “Porque vós, irmãos,
fostes chamados à liberdade.
Mas não useis da liberdade
para dar ocasião à carne,
antes pelo amor servi-vos
uns aos outros. Pois toda a
lei se cumpre numa só pala-
vra, a saber: Amarás ao teu

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próximo como a ti mesmo”
(Gl 5,13-14). Livres da lei e
dos ídolos, podemos viver na liberdade do amor – que é o fruto do Espírito da
promessa, e o verdadeiro cumprimento da Lei. Como ética da liberdade cristã,
é uma ética da liberdade em amor. A prática cristã da liberdade equivale à prá-
tica do amor como o eixo da ética e espiritualidade cristãs. Enquanto ética da
liberdade em amor, é ética da graça, não da lei; da possibilidade, não do dever,
pois é, afinal de contas, a expressão da própria vida enquanto dádiva do Deus
que é amor (I Jo 4,8).
O amor cristão não é o amor romântico de pessoas apaixonadas, nem o amor
recíproco da amizade, mas a fonte da prática do bem a favor do outro, da pessoa
necessitada (I Jo 3,16-19; 4,20-21). Nas origens da tradição reformada, o amor
era biblicamente entendido como prática concreta da bondade, o que hoje cha-
maríamos de solidariedade:
Sim, onde estiver a fé, ela não consegue se refrear, ela se comprova,
irrompe e confessa e ensina este evangelho diante das pessoas e por ele
arrisca a sua vida. E tudo que ela vive e faz, destina-o ao proveito do
próximo, para lhe ajudar, não só que ele alcance semelhante graça, mas
também no que tange o corpo, propriedade e honra, como ela vê que
Cristo lhe fez, seguindo, portanto, o exemplo de Cristo” (LUTERO,
1984, p. 176).

Entendida a liberdade cristã como prática do amor, não podemos, senão, pensá-
-la em sua possibilidade impossível, não podemos, senão, pensá-la sempre além
das definições e codificações, pois a liberdade em amor se revolta contra quais-
quer tentativas de aprisioná-la em um código de conduta.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


77

Em termos ético-teológicos, a liberdade se orienta pelo futuro de Deus que


irrompe na história humana:
liberdade é a paixão criativa pelo possível. Liberdade não é apenas
voltada para as coisas como elas são, como na dominação. Nem é di-
recionada apenas à comunidade de pessoas como elas são, como na
solidariedade. Ela se direciona para o futuro, pois o futuro é o cam-
po desconhecido das possibilidades, enquanto o presente e o passado
representam esferas familiares de realidades. [...] Assim como Martin
Luther King, temos visões e sonhos de outra vida, uma vida curada,
justa e boa. Exploramos as possibilidades do futuro a fim de realizar
esses sonhos, visões e projetos. Todas as inovações culturais e sociais
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

pertencem a esta esfera de liberdade para o futuro (MOLTMANN,


1999, p. 159-160).

ÉTICA E IDENTIDADE CRISTÃ

A identidade cristã não pode ser pensada e construída apenas a partir de um des-
ses pólos do existir cristão, sob pena de ser uma identidade imatura e conformada
aos modos ocidentais de relação com a temporalidade: voltada ao passado, no tra-
dicionalismo; voltada a um futuro construído exclusivamente por mãos humanas,
como na modernidade; ou focada no presente eternizado, como na pós-moderni-
dade. Uma vez que a vida cristã é vivida na tensão escatológica, a futuridade deve ser
vista como o modo de ser da existência em Cristo. A abertura ao futuro do Reino é
o reconhecimento de que a plenitude da vida ainda está em processo de realização
e a utopia do Reino é o seu norte, a sua estrela orientadora. Ser cidadão, consequen-
temente, é ser uma pessoa criativa nas relações sociais, em busca da construção de
uma sociedade cada vez mais justa, inclusiva e solidária. Entendida desta forma, a
ética da liberdade em amor se configura como a própria identidade do ser cristão.
A temporalidade da fé é a temporalidade da futuridade. Não se configura
nem a partir do tendo-sido, nem do sendo, mas do poder-vir-a-ser que, a partir
do passado já se faz presente historicamente. Identidade, então, não se resgata
(fixação no passado), nem se perde (temor do presente), mas se constrói. Não
será esta uma tradução fiel do princípio protestante de que a Igreja Reformada
está sempre se reformando?

Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Ética


78 UNIDADE II

Cl 3,1-4 é a parte final da discussão de Paulo a respeito de uma proposta de


ética cristã centrada no dever, uma interpretação judaico-mistérica da fé cristã
(Cl 2,16-23). O padrão ético é encontrado nas ordenanças e mandamentos da
lei, sintetizadas nas prescrições alimentares judaicas. Para o judaísmo antigo, as
prescrições alimentares eram extremamente importantes, na medida em que
definiam a identidade do Judaísmo em oposição ao Helenismo. Em I Macabeus
1,62-63, lemos: ”muitos, em Israel, permaneceram firmes e de coração resoluto,
não comeram comida impura. Preferiram morrer do que ser contaminados pela
comida, ou profanarem a santa aliança; e eles morreram”.

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A resposta paulina, em Cl 3,1-4, é a proposta de uma ética da liberdade em
futuridade: no v. 1, afirma-se a nossa ressurreição com Cristo, no presente, que
demanda de nós a “busca das coisas do alto”, ou seja, as coisas que pertencem ao
senhorio de Cristo, exaltado à destra de Deus. No v. 2, as coisas do alto são con-
trastadas com as terrenas, nós diríamos “seculares”, e o motivo desse contraste
é dado no v. 3 “morrestes, e a vossa vida está oculta com Cristo, em Deus”. Para
nosso argumento, este verso é fundamental, na medida em que aponta para o
caráter fragmentário, parcial de nossa percepção da identidade cristã no pre-
sente – ainda não sabemos o que efetiva e realmente somos – somente “quando
Cristo, que é a vossa vida, se manifestar, sereis manifestos com ele em glória” (v.
4), então saberemos quem somos efetivamente.
Em síntese, no caminho para se transformar em uma ética transformadora,
fiel à tradição reformada e ao princípio protestante, a ética evangélica brasileira
pode ser adequadamente entendida e descrita como uma ética da liberdade
em amor – que supera a ética do dever e seus códigos de conduta e normas de
comportamento; que supera a tentação da Cristandade e faça da cidadania de
cristãos sinal da cidadania do Reino de Deus. Uma ética da liberdade em amor
não pode ser “definida”, mas perseguida permanentemente, mediante a busca
incessante de concretização da unidade entre teologia, espiritualidade e ética –
unidade que será primícias da futuridade de Deus e seu reino, na construção de
melhores pessoas e melhores sociedades, caracterizadas pela liberdade e amor
que constituem o modo de convivência com o Deus que faz aliança com sua cria-
ção para que ela tenha vida plena.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


79
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE –


LIBERDADE SOCIOCULTURAL

Há diferentes modos e temas para discussão no âmbito da liberdade sociocultural,


dos quais selecionei para nossa reflexão e discussão o tema do secularismo. Por
secularismo entendo um conjunto de ideias e valores que expressam fundamen-
talmente o modo de vida secular no sentido negativo do termo que encontramos
em Paulo, por exemplo: “não vos conformeis com o presente século, mas sede
transformados pela renovação do vosso entendimento” (Rm 12,2). Assim, a dis-
cussão sobre esta dimensão da liberdade sociocultural inicia com a explicação
do secularismo e conclui com uma discussão a respeito de como desenvolver
uma teologia e uma espiritualidade cristocêntricas que sejam relevantes para a
época secular (no sentido não negativo do termo, e sim enquanto o reconheci-
mento de que vivemos em uma sociedade que separa institucionalmente a Fé
do Estado) em que vivemos na atualidade.

O SECULARISMO CONTEMPORÂNEO

Há diferentes modos de diagnosticar a presença do secularismo. Como nosso tempo


é curto, optei por um caminho pragmático, refletindo sobre os comportamentos e
modos de relacionamento que manifestam uma visão secularista da vida. Meu foco
recairá sobre três sintomas do secularismo que afetam diretamente nosso modo
de ver o mundo e de viver a fé cristã: racionalismo, individualismo e consumismo.

Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Sociocultural


80 UNIDADE II

(1) Racionalismo

Uso o termo racionalismo de um modo bem específico. Não me refiro à cor-


rente filosófica com o mesmo nome. Entendo o racionalismo como um modo
de entender o mundo e a vida sem necessidade da fé ou de Deus. O raciona-
lismo, enquanto sintoma do secularismo é uma atitude preconceituosa contra
tudo o que não for passível de explicação naturalista – ou seja, qualquer deus,
ou ser ‘sobrenatural’, espiritual etc. Algumas especificações são necessárias
aqui. O ateísmo não é, necessariamente, racionalismo – uma pessoa pode

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
não crer em nenhum tipo de divindade a partir de razões não preconceituo-
sas. Da mesma forma, a ciência não é racionalismo. O método científico não
pode incorporar deus em sua atividade, mas isso não é preconceituoso. Uma
pessoa racionalista pode até crer em Deus, mas sempre tomará suas decisões
com base na experiência humana cotidiana, com base nas relações de causa-
-efeito apenas, sem jamais levar em conta que Deus pode agir ou participar
da vida humana.

(2) Individualismo

A pessoa individualista é aquela que organiza toda a sua vida a partir de seus
próprios interesses e propósitos. O individualismo é uma forma egoísta, egocên-
trica da pessoa entender e viver a sua individualidade. A pessoa individualista,
sempre que necessário (e mesmo quando não) usará outras pessoas para atingir
os seus próprios objetivos, sem se importar se a pessoa usada será beneficiada
ou não. No individualismo não somos capazes de nos ver como pessoas que
precisam de outras pessoas tão dignas de ter uma vida digna e bem-sucedida
como nós mesmos. A pessoa individualista trata as demais pessoas como meios
e não como fins em si mesmas. Ela não se preocupa com o bem-estar do pró-
ximo, não se interessa pela vida de outras pessoas e, em casos extremos que,
infelizmente, não são pouco numerosos hoje em dia, a pessoa individualista
sequer é capaz de viver em família, de levar em consideração as necessida-
des de filhos, irmãs, esposa ou esposo etc. Em última instância, a origem do
individualismo está na condição pecaminosa do ser humano. Entretanto, em

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


81

cada época da história humana, as causas e modos de ser do individualismo


variam. Em nosso tempo, o individualismo é moldado pelo sistema econô-
mico e passa a moldar a vida política. O sistema econômico capitalista é, por
sua própria natureza, individualista, na medida em que é um sistema econô-
mico baseado na acumulação de bens e capital mediante a vitória sobre os
demais membros da sociedade.
No capitalismo, todas as relações sociais são transformadas em relações
individualistas. Um dos principais teóricos do capitalismo em suas origens,
Adam Smith, acreditava que derrotar o concorrente econômico era a forma mais
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

adequada de cumprir o mandamento do amor ao próximo como a si mesmo.


Para ele, o amor-próprio é a única forma eficaz de amar ao próximo. Em uma
de suas formulações mais famosas, Adam Smith (2006) assim explica o amor
próprio (ou o individualismo): “não é da benevolência do açougueiro, do cer-
vejeiro ou do padeiro que devemos esperar nosso jantar, mas da consideração
que eles têm pelo seu próprio interesse” (SMITH, 2006, p. 18). Individualista
é quem considera apenas o seu próprio interesse. Somente mediante um passe
de mágica infernal tal descrição do interesse-próprio pode ser confundida com
o amor ao próximo.
Como o individualismo afeta o sistema político? O individualismo é a
visão e prática distorcidas da democracia. Na democracia, o interesse comum,
de toda a sociedade, é que fundamenta as relações sociais. O indivíduo, por-
tador de direitos e de dignidade inalienáveis, é cidadão, ou seja, responsável
pela dignidade de todos os membros da sociedade e não só por sua própria.
Democracia não pode ser vista apenas como uma forma de governo, deve ser
vista como uma forma cultural. Democracia é o regime em que o Estado, com-
posto de representantes eleitos pela maioria, governa preservando os direitos
das minorias, ou seja, os direitos e responsabilidades de todos os cidadãos.
O individualismo reduz a cidadania apenas à busca de direitos particulares
e não à construção de uma sociedade com direitos iguais para todos. Se no
campo econômico o individualismo é a expressão prática da espiritualidade
de Mamom, no político o individualismo é a expressão prática da espiritua-
lidade satânica – a indiferença pelo bem do próximo. Se o sistema capitalista
é egoísta por sua própria definição e funcionamento, a democracia é altruísta

Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Sociocultural


82 UNIDADE II

por sua própria definição e funcionamento. No mundo ambíguo, pecaminoso,


do ser humano, capitalismo e democracia deveriam funcionar como contro-
les externos um do outro. Mediante o altruísmo democrático, o amor-próprio
do capitalismo seria regulado de tal modo que a sociedade não fosse carac-
terizada pela injustiça. Mediante o interesse econômico, a democracia seria
protegida da preguiça ou acomodamento de indivíduos que vivem esperando
‘receber seus direitos’.
Infelizmente, porém, o individualismo contemporâneo é o modo cultural
hegemônico, de modo que a maioria dos membros das sociedades atuais pensa

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nos seus próprios direitos apenas, e não nos direitos de todos, especialmente das
minorias. O individualismo, então, não só está na base de um sistema econômico
opressor e injusto, ainda que eficiente como produtor de bens, mas também está
na base das distorções profundas que fazem da democracia um arremedo do que
ela deveria ser. A pessoa individualista é, então, aquela que luta predominante-
mente para acumular cada vez mais capital e poder político e, assim, dominar
a sociedade. Quantos projetos políticos emancipadores se tornaram, ao chegar
ao poder, projetos opressores? Quantas desilusões os eleitores experimentam
quando seus candidatos efetivamente chegam ao poder? No campo político,
o desejo de permanecer no poder é a forma mais concreta do individualismo.
Como oposição ao modo de vida individualista, a Escritura nos ensina: “nada
façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere
os outros superiores a si mesmo. Não atente cada um para o que é propriamente
seu, mas cada qual também para o que é dos outros, de sorte que haja em vós o
mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Fp 2,3-5).

(3) O outro lado da moeda do individualismo é o consumismo.

Assim como o individualismo é a vivência pecaminosa da individualidade, o


consumismo é a prática pecaminosa do consumo. Consumir é uma atividade
econômica indispensável à vida, o consumismo, porém, não é indispensável, nem
necessário. Consumismo é o modo de vida caracterizado pelo desejo perma-
nente e crescente de consumo de objetos, experiências, bens, serviços e relações
humanas, em função do seu significado público – ou seja, em função da imagem

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


83

pública que a posse do que foi consumido atribui à pessoa consumista. A pessoa
consumista transforma todas as coisas em objetos de consumo, que são, simulta-
neamente, objetos de desejo. Ao fazer isso, torna-se, ela mesma, em um objeto,
encontrando sua satisfação e sua identidade não mais em si mesma e nas suas
relações com outras pessoas, mas na posse dos objetos que deseja. A pessoa con-
sumista transforma todas as demais pessoas em objetos, e se relaciona com elas
a partir do amor-próprio ou, em uma linguagem mais aberta da psicologia, a
partir do desejo.
De acordo com o sociólogo polonês Z. Bauman (2008, p. 44),
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o consumismo, em aguda oposição às formas de vida precedentes, as-


socia a felicidade não tanto à satisfação de necessidades [...], mas a um
volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua
vez, implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destina-
dos a satisfazê-la.

Se quisermos usar um vocábulo bíblico para compreender a condição pecami-


nosa do consumismo, podemos recorrer ao Decálogo, em sua última palavra:
‘não cobiçarás’. Consumista não é apenas a pessoa que compra muito, mas a pes-
soa que – individualisticamente e egoisticamente – vive em função apenas da
satisfação de seus ‘desejos sempre crescentes’, desconsiderando as necessidades
e projetos de vida de outras pessoas. Isto é, uma pessoa pode ser consumista,
mesmo se não tiver capacidade financeira para consumir os bens que deseja.

(3) Quais são os principais sinais do secularismo nas igrejas e na vida cristã?
(a) O fundamentalismo, que corresponde ao racionalismo. Por fundamen-
talismo não me refiro a um conjunto específico de doutrinas, mas a uma
atitude. A atitude que vê na crença pessoal ou institucional a única ver-
dade possível, e que todas as pessoas deveriam ter a mesma crença. O
fundamentalismo é um modo de viver a fé cristã que coloca os conceitos
doutrinários acima do amor a Deus e ao próximo. A pessoa fundamen-
talista é ‘dona da verdade’ e não admite que qualquer verdade possa
ser construída fora dos limites de sua própria crença. Assim, o funda-
mentalista julga todos os tipos de conhecimento a partir de sua própria
crença e tenta enquadrar todas as ciências e modos de saber ao seu pró-
prio conhecimento.

Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Sociocultural


84 UNIDADE II

(b) O institucionalismo, que corresponde ao individualismo. Uma igreja


ou organização cristã institucionalista é aquela que vive em função de
acumular membros, recursos e bens, concentrando poder e prestígio
nas mãos de poucas pessoas que dominam sobre a maioria. Em lingua-
gem mais abstrata, igreja institucionalista é aquela em que as regras da
instituição são superiores às normas da vida comunitária ou em que o
poder controla o carisma. Na linguagem da teologia evangelical latino-
-americana do final do século passado, é institucionalista a igreja que
vive em função de si mesma e não em função do Reino de Deus. Em
outras palavras, a igreja que vive em função de sua própria perpetua-
ção e não em função da missão integral como manifestação da missio

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Dei na história humana. São institucionalistas pastores, pastoras, após-
tolos e demais lideranças eclesiais ou eclesiásticas que acumulam bens,
prestígio ou poder, e se assenhoreiam de seu rebanho, ao invés de apas-
centar o rebanho para Deus.
(c) A carnalidade, que corresponde ao consumismo. Igrejas e cristãos car-
nais são aqueles que comercializam o Evangelho e suas bênçãos. A
teologia da prosperidade é o exemplo mais completo do egocentrismo
consumista no campo das Igrejas Cristãs. Porém não só ela, também são
consumistas as igrejas e pessoas que, ao invés de adorar a Deus, cen-
tralizam o culto em suas próprias necessidades e desejos – e a música é
uma das expressões mais evidentes do consumismo litúrgico: letras cen-
tradas no eu ou no ser humano (antropocêntricas), melodias baseadas
na capacidade de entreter e de vender no mercado gospel. São carnais
as pessoas que, se considerando cristãs, se conformam com o mundo e
levam o consumismo para dentro da vida cristã: consomem Deus, con-
somem bênçãos, consomem serviços religiosos etc. São consumistas os
cristãos que não servem a Deus mediante o serviço aos irmãos, irmãs e
ao mundo que Deus ama e quer salvar. Em outras palavras, trazidas de
uma outra época, não muito distante, são as pessoas convencidas, mas
não convertidas. São as pessoas que manifestam os sinais externos da fé,
mas não entregaram de fato suas vidas a Deus e ainda vivem na carne.
São aquelas pessoas que só ficam na igreja se ganharem alguma coisa.

Cristãos carnais, ou egocêntricos, são aqueles que recebem o juízo de Jesus:


“Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele
que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me diräo naquele dia:

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


85

Senhor, Senhor, näo profetizamos nós em teu nome? e em teu nome näo expul-
samos demónios? e em teu nome näo fizemos muitas maravilhas? E entäo lhes
direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a
iniquidade” (Mt 7,21-23). Cristãos egocêntricos, ou carnais, são aqueles que rece-
bem a exortação de Paulo: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade;
porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns
dos outros, pelo amor. Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Se vós, porém, vos mordeis e devorais
uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos. Digo, porém: andai
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no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne. Porque a carne milita


contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para
que não façais o que, porventura, seja do vosso querer. Mas, se sois guiados pelo
Espírito, não estais sob a lei. Ora, as obras da carne são conhecidas e são: prosti-
tuição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras,
discórdias, dissensões, facções, invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhan-
tes a estas, a respeito das quais eu vos declaro, como já, outrora, vos preveni, que
não herdarão o reino de Deus os que tais coisas praticam. Mas o fruto do Espírito
é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansi-
dão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei” (Gl 5,13-23).
Apresentei uma descrição muito simples e breve do secularismo con-
temporâneo. Mantendo a mesma brevidade, passo a refletir sobre como viver
cristocentricamente na secularidade. Conversemos sobre os principais aspectos
de uma teologia da secularidade.

RUMO A UMA TEOLOGIA CRISTOCÊNTRICA DA SECULARIDADE

Diante dos desafios concretos de viver em um mundo secular sem nos tornar-
mos secularistas, precisamos nos esforçar para responder teologicamente a duas
grandes questões abstratas que se desdobrarão em um grande número de ques-
tões bem concretas: (a) qual é a relação do Cristianismo com (a secularização e)
a secularidade? e (b) Como viver cotidianamente a fé cristã em uma sociedade
secular (não secularista, nem fundamentalista)? Note a grandiosidade do tema.

Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Sociocultural


86 UNIDADE II

O tempo não me permite uma apresentação detalhada de uma teologia pública


da secularidade. Aqui, poderei apresentar à discussão apenas uma das respos-
tas possíveis à primeira pergunta e, como a resposta terá de ser inevitavelmente
conceitual e abstrata, apenas apontarei algumas das consequências concretas e prá-
ticas de uma nova forma de interpretar a história do Ocidente e do Cristianismo
nos tempos modernos.
Embora o secularismo tenha sido amplamente desafiado no mundo acadê-
mico e o fundamentalismo na academia teológica, estamos apenas começando
a perceber as implicações radicais dessa dupla rejeição. As condições do século

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XXI nos devem fazer enxergar que, como defende Jean-Luc Nancy (2008, p.
30): “nosso tempo é, assim, o tempo em que é urgente que o Ocidente – ou o
que resta dele – analise o seu próprio devir, volte a examinar sua proveniência
e sua trajetória, e se questione a si mesmo no tocante ao processo de decom-
posição do sentido a que ele deu surgimento”. Se seguirmos este conselho,
como poderemos descrever e conceituar a secularidade em uma perspectiva
teológica cristã?
Um caminho interessante e fecundo tem sido aberto pela reflexão de Gianni
Vattimo, um filósofo italiano, cristão, católico-romano, que retoma as teses da
teologia da secularização dos anos 1960-70. O teólogo batista Harvey Cox já
defendia a tese agora apresentada por Vattimo em 1965: “a secularização, como
uma vez afirmou o teólogo alemão Friedrich Gogarten, é a consequência legí-
tima do impacto da fé bíblica na história” (COX, 2013, p. 21). No conjunto,
porém, o livro de Cox se dedica mais à cultura urbana e não à secularização e
secularismo enquanto tais. Em várias de suas obras, mas especialmente no livro
Depois da Cristandade, Vattimo (2002) defende a tese de que a secularização não
deve ser interpretada contra o Cristianismo, mas, sim, a partir do Cristianismo.
Em vários lugares desse livro Vattimo defende a tese de que ‘o Ocidente é o
Cristianismo secularizado, e nada mais’ (tese que, de uma forma ou outra, tem
sido reconhecida e adotada por vários autores que não seguem o conjunto do
pensamento do filósofo italiano). Assim, se queremos entender o mundo secu-
lar, não podemos prescindir de entendê-lo a partir do Cristianismo, e não mais
contra o Cristianismo.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


87

Em que sentido Vattimo apresenta essa tese:


se seguirmos teologias contemporâneas inspiradas por Barth e Bonho-
effer, concebendo a secularização como o locus onde Deus é revelado
em sua transcendência radical, teremos de entender este processo não
tanto como um salto ou uma superação, mas como o cumprimento da
história da salvação, que é dirigida, desde a sua origem, pela morte de
Deus como a dissolução do sagrado – o evento que São Paulo chama de
kenosis (VATTIMO, 2002, p. 38).

Voltaremos a esta citação, para discuti-la com mais detalhes. Agora, porém, chamo
sua atenção para a consequência desta afirmação para o conceito de secularização:
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deve ser acrescentado aqui que secularização não é um termo em con-


traste com a essência da mensagem [cristã], mas, ao contrário, é cons-
titutivo dela. A encarnação de Jesus (a kenosis, a auto humilhação de
Deus), como um evento salvífico e hermenêutico, já é, de fato, uma
ocorrência arquetípica da secularização (VATTIMO, 2002, p. 39).

Conseguiu captar a essência da tese de Vattimo? Para ele, a secularização não é


um processo ‘profano’, cujo resultado final é o fim da fé. A secularização é um
processo derivado da própria ação de Deus ao se encarnar em Jesus Cristo. A
kenosis do Filho de Deus é, ela mesma, a origem, a proveniência da seculariza-
ção. Claro, a encarnação e o esvaziamento do Filho são bem mais do que isto,
mas, segundo Vattimo (2002), não se pode entender a secularização senão como
o desdobramento histórico da ação salvífica de Deus – o cumprimento da his-
tória da salvação.
Dialoguemos com as citações de Vattimo para descrevermos mais detalha-
damente e, em diferentes pontos, ampliarmos esta compreensão teológica da
secularização (e da secularidade).
Em primeiro lugar, a tese de Vattimo é baseada em uma descrição teoló-
gica da secularidade, que o filósofo aceita como radicalmente filosófica – ou seja,
não é necessário fazer, como Hegel e outros filósofos o fizeram, o desmanche do
conceito cristão e sua transformação em um conceito ‘secular’. O fato de o con-
ceito ser ‘cristão’ não o torna, por si só, inadequado ou irracional. Se o conceito
é ‘bom’, pode ser adotado integralmente pela filosofia. Menciono isto principal-
mente porque muitos sistemas teológicos modernos se subjugaram aos sistemas

Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Sociocultural


88 UNIDADE II

filosóficos com que dialogaram, a fim de encontrar legitimidade acadêmica. Não


precisamos subordinar a teologia à filosofia para que ela seja racionalmente legí-
tima. Desta forma, podemos continuar sendo racionais, sem sermos racionalistas
nem fundamentalistas – não precisamos negar a fé, nem precisamos atribuir pri-
vilégios a fé no debate racional.
Em segundo lugar, como um conceito teológico, a secularização nos ajuda
a entender melhor o próprio Deus. Nas palavras de Vattimo (2002), ela é o locus
da revelação da radical transcendência de Deus. Que significa isto? Estamos
acostumados a pensar na transcendência de Deus como um transcender ‘este

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mundo’ – Deus é transcendente porque está fora deste mundo e é independente
dele. Vemos, tradicionalmente, a transcendência como um conceito que explica
a radical e absoluta diferenciação entre Deus e sua criação (o mundo). Isto dá
legitimidade a uma visão dualista da salvação: somos salvos do mundo para viver
em ‘outro mundo’. Legitima, ainda, uma visão dualista da espiritualidade: vive-
mos em um mundo mau, por isso precisamos ser ‘bons’, fugindo do mundo e nos
refugiando no sobrenatural (na prática, reduzido ao emocional). Enfim, torna
crível uma visão alienada da missão da Igreja: nada temos de fazer com relação
a ‘este mundo’ que perece, temos de cuidar da salvação das almas que sobrevi-
verão a este mundo e viverão, ressurretas, no ‘mundo vindouro’.
Que é, então, a transcendência radical de Deus? É o fato de que Deus assume
o mundo que criou. Ele não está ‘fora’, mas absolutamente ‘dentro’ deste mundo.
A transcendência não é um movimento de saída deste mundo, mas de entrada
nele. Deus é transcendente exatamente por que é Criador. A criação é o ‘primeiro
ato’ da transcendência divina. A kenosis é o ‘ato climático’ da transcendência
divina: Deus vem ao mundo criado e vive nele como uma criatura deste mundo
– a ponto de morrer e ressuscitar (Fp 2,5-11). É na medida em que deixamos de
ser religiosos é que nos aproximamos da radicalidade do ser cristão. Traduzindo
em termos mais concretos: na medida em que transcendemos os limites religiosos
das Igrejas é que vivemos como cristãos. Ou, na linguagem preferida pela mis-
são integral: a Igreja está a serviço do Reino, e não vice-versa. Você é capaz de
perceber a radicalidade desta afirmação? Eu penso que, assim como ainda não
conseguimos chegar perto de praticar o sacerdócio universal dos santos, também
ainda não chegamos perto de praticar o Reino como critério para viver na igreja.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


89

Em terceiro lugar, consequentemente, o destino da história da salvação não


pode mais ser entendido como a edificação da Igreja como uma instituição pode-
rosa, que derrota ‘este mundo’ e impõe ao ser humano a vida ‘do outro mundo’,
enquanto espera a destruição ‘deste’. De fato, não devemos nos preocupar com o
destino da igreja, mas com sua peregrinação. Peregrinantes como o Messias Jesus
inserido radicalmente no mundo, vivendo como um ser humano deste mundo,
sofrendo tudo o que um ser humano deste mundo sofre, entregando-se radi-
calmente ao destino de todo o ser humano deste mundo: a morte. Auto entrega
que destrói o poder da morte, não a anulando, mas revelando o seu sentido
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radical: o caminho para a ressurreição (cf. 1Co 15). Traduzindo para uma lin-
guagem bem concreta: a missão da Igreja não é o seu próprio crescimento e sua
autopreservação. É, ao contrário, sua kenosis seguindo o caminho trilhado pelo
Messias. Usando um exemplo mais próximo de nossa visão limitada, a missão
da Igreja é similar à de João Batista: ‘convém que o Reino cresça e eu diminua’!
Como, porém, é difícil seguir a Jesus em seu auto esvaziamento! Preferimos que
a Igreja cresça e, quem sabe, faremos o reino crescer junto com ela. Ainda somos
os mesmos e vivemos sob o signo da Cristandade.
Em quarto lugar, a radical transcendência de Deus revelada no Messias Jesus
se manifesta também como a ‘dissolução do sagrado’. Ou melhor, contradizendo
Vattimo (2002), como a dissolução do profano. Nada há de profano neste mundo.
Ele é criação de Deus, perfeita, plena. Somente nossas ações pecaminosas é que
profanam a criação divina. Não é esta definição uma interpretação legítima da
visão de Pedro em Atos 10? Não é a visão de Pedro em Atos 10 uma interpre-
tação legítima da fala de Jesus de que só é impuro o que sai do ser humano e
não o que nele entra? Não estava certo Paulo ao afirmar que ‘para os puros tudo
é puro? Se interpretarmos a secularização com esta chave teológica cristocên-
trica como a dissolução do profano, então todo o mundo volta a ser colocado
debaixo do senhorio de Deus – tudo volta a ser sagrado, ou seja, consagrado a
Deus. Democracia, razão, ciência, tecnologia, etc., não são o resultado do embate
humano contra Deus, não são a profanação do caminho divino para o ser humano.
São, em forma imperfeita e ambígua, expressão humana do permanente e jamais
abalado senhorio divino em sua criação! Tudo o que há de bom neste mundo é
fruto da amorosa ação criadora e redentora de Deus. Se aceitarmos que política,

Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Sociocultural


90 UNIDADE II

economia, ciência, mídia, arte etc. são realidades profanas, estaremos aceitando a
tese do secularismo. Se aceitarmos o dualismo sagrado-profano negaremos que
o mundo foi criado por Deus e que o mal entrou nele mediante nossa própria
ação: ‘por um homem entrou o pecado no mundo’ afirmava Paulo. ‘Do Senhor
é a terra e tudo o que nela há’ é poderoso antídoto contra o secularismo. Só não
podemos incorrer no fundamentalismo e tratar o sagrado como o oposto do pro-
fano e tentarmos impor o modo de vida cristão a toda a sociedade.
Em quinto e último lugar, compreender a kenosis do Messias como uma
forma arquetípica da secularização nos ajuda a repensar o nosso conceito de

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Deus, tão marcado pelo pensamento secularista. Estamos acostumados a pen-
sar em Deus como o todo-poderoso capaz de destruir todos os seus inimigos,
de transformar todas as realidades ruins em realidades boas para as pessoas
que O amam. Em muitos casos até reduzimos Deus a um despachante-resol-
vedor de problemas. Esse é um conceito forte de Deus, um conceito cheio. E se
passarmos a pensar em Deus como um Deus fraco, como um Deus quenótico?
Se pensarmos e nos relacionarmos com Deus nos moldes da radical descrição
de Paulo em 1 Coríntios 1,21-24: “Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo
não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem
pela loucura da pregação. Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos
buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os
judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus
como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Porque
a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais
forte do que os homens”.
Que tal pensar no poder de Deus como um poder “que se aperfeiçoa na fra-
queza” (2Co 12,9)? A radicalidade do poder de Deus está no fato de que, sendo
Deus, eterno e imortal, ele pode morrer por sua criação. Que tal pensar na sabe-
doria de Deus como a sabedoria revelada na cruz do Messias? Se a kenosis for a
chave hermenêutica para a teologia cristã, retornaremos à centralidade da cruz
de Cristo na teologia cristã. Se retornarmos à centralidade da cruz de Cristo em
nossa teologia, poderemos interpretar toda a história humana e da criação inteira
como a manifestação do poder salvífico da morte do Filho de Deus. A história
toda, em sua ambiguidade, em sua revelação do pecado humano, é, também, a

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


91

manifestação do poder de Deus, o poder da Cruz revelado na ressurreição de


Jesus (Fp 2,5-11). Se passarmos a ver a história humana assim, poderemos viver
e praticar a fé cristã como radical expressão do amor de Deus que se concretiza
no ‘amor ao próximo como a nós mesmos’, cumprindo toda a Lei, como Paulo
afirmou aos gálatas. A secularidade, lida à luz da kenosis, é o palco onde pode-
mos amar as pessoas neste mundo, vivendo missionariamente como o Messias,
que nos envia ao mundo como o Pai o enviou ao mundo (Jo 20,21).
Apenas iniciei uma conversa sobre uma teologia pública da secularidade.
O tema é exigente e abrangente, nada menos do que a exigência de discernir
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o nosso tempo. A exigência de fidelidade a Deus sem incorrermos no secula-


rismo nem no fundamentalismo. Em certo sentido, esse é o desafio permanente
da teologia em sua integralidade. Uma teologia íntegra e integral não pode fugir
de sua responsabilidade de compreender o tempo presente à luz da Palavra
de Deus, sem se deixar dominar por
‘filosofias e vãs sutilezas’: uma teolo-
gia plenamente cristocêntrica. Se não
discernirmos teologicamente o tempo,
não saberemos realizar a missão, nem
conseguiremos edificar nossas comu-
nidades em fidelidade a Deus, seguindo
os passos do Messias Jesus. Talvez você
se pergunte agora que chego ao final
desta fala: “mas, e a prática”? Cá entre
nós, não há nada mais prático do que
uma boa ‘teoria’ teológica do presente.
Enfrentar o secularismo inicia com a
reflexão sobre o nosso tempo e se con-
cretiza na prática da messianidade, da
cristocentricidade no dia a dia pessoal
e eclesial. Teologia da secularidade:
um desafio público para enfrentar o
racionalismo, o individualismo e o
consumismo.

Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Sociocultural


92 UNIDADE II

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE –
LIBERDADE POLÍTICA-SUBJETIVA

Caro (a) aluno (a), vamos finalizar nossa reflexão sobre a liberdade? O foco será
a dimensão política da liberdade que é, também, em nossos dias, a dimensão da
subjetividade humana.

A LIBERDADE POLÍTICA-SUBJETIVA

Na atualidade, é impossível separar a dimensão política da liberdade de sua dimen-


são subjetiva. A forma de exercício do poder político que predomina hoje no
Ocidente é a de um poder delimitador da subjetividade humana – de tal modo
que os cidadãos e cidadãs de países democráticos não consigam agir como autoras
e autores da democracia, mas como meros recipientes de uma democracia outor-
gada pelos sistemas sociais dominantes (Estado, Mercado, Mídia, Tecnociência).
Assim, o exercício da liberdade no âmbito da subjetividade se torna um desafio
de grandes proporções e demanda uma reflexão teológica adequada.
Creio que um dos grandes problemas da cultura ocidental tem sido o de
encontrar a possibilidade de fundar uma hermenêutica de si não, como
é o caso do cristianismo primitivo, sobre o sacrifício do sujeito, mas, ao
contrário, sobre a emergência positiva, teórica e prática do sujeito. [..]
Mas talvez tenha chegado o momento de nos perguntarmos: precisamos
realmente dessa hermenêutica de si? Talvez o problema do sujeito não
seja o de descobrir o que ele é em sua positividade, talvez o problema não
seja descobrir um sujeito positivo ou uma fundação positiva do sujeito.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


93

Talvez nosso problema hoje seja o de descobrir que o sujeito não é nada
além da correlação histórica das tecnologias de si construídas em nossa
história. Então, talvez o problema seja o de transformar essas tecnolo-
gias. E nesse caso, um dos principais problemas políticos hoje em dia
seria, no sentido estrito da palavra, uma política de nós mesmos (FOU-
CAULT, 2011, p. 185-186)

Precisamos, então, construir uma nova “política de nós mesmos”. Isto pe, revi-
sarmos os modos de construção da identidade (ou subjetividade), sob o poder
do Messias, e não sob os poderes do presente século. As atuais tecnologias de
si do mundo capitalista são dispositivos centrados e centradores no individua-
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lismo, consumismo, aceleração do crescimento e auto-hedonismo. Tecnologias


todas que exigem o elevado sacrifício de si: a negação do companheirismo no
individualismo; a negação da subjetividade no consumismo; a negação da tem-
poralidade na aceleração; a negação do sofrimento no hedonismo. Diante dessa
política da subjetividade, a resposta mais comum das igrejas cristãs ocidentais
continua sendo a do “sacrifício religioso de si”, a auto-entrega ao comando da
igreja sobre a vida do indivíduo que, no final das contas, permanece escravo do
desejo de consumo. Uma alternativa?

Liberdade não é ‘fazer tudo o que eu quero’. Em Rm 7,14 lemos: “o bem que
eu quero não faço, o mal que não é o que eu faço”. O nosso querer, ou a nos-
sa vontade, não são livres, por isso não basta fazer o que quero para ser livre.

Quem sabe, reler Romanos 12,1-2 de modo anti-sacrificial: o modo adequado


de ler a proposta de um sacrifício “vivo” (sem “morte” não pode, de fato, haver
sacrifício). Uma nova “política de nós mesmos” poderia ser marcada por:
(a) não-conformismo com os dispositivos tecnocráticos de nosso tempo; (b)
auto-transformação mediante a criatividade na auto-construção comunitária
de si. Duas descrições da vida messiânica em comunidade (lembremo-nos da
noção paulina da messianidade corporativa). Como isso pode funcionar em
termos práticos? É preciso fazer experiências, aprender com os erros e acertos,

Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Política-Subjetiva


94 UNIDADE II

pois não temos mais receitas seguras, comprovadas. É como criar antivírus
para vírus de computadores, sempre chegam novas formas. Talvez seja como
vacina contra a gripe, sempre atrasadas, mas nem por isso 100% ineficazes.
Se vivemos em um tempo acelerado, ritmo galopante no trabalho, no estudo,
no lazer, no consumo, na espiritualidade etc., que tal criar períodos de tempo
desacelerado no dia a dia: ler de modo não consumista - sem pressa, fruindo os
prazeres do texto; meditar e orar - práticas milenares que modificamos para se
adequar aos novos tempos acelerados. Então, desacelerá-las, meditar e orar “com”
você mesmo, seu avatar, seu deus, seus fantasmas - simplesmente ser amigo de si.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Se vivemos em um tempo individualista, dando valor apenas às pessoas que
podem nos proporcionar algum benefício a curto e médio prazo, [...] que tal
investir em relacionamentos “inúteis”, sem retorno (embora, de fato, todo bom
relacionamento ofereça ‘retorno’) - seja nas amizades, na família, no trabalho
voluntário, no serviço a alguém; o que na linguagem de pouco tempo atrás se
chamava de “quality time”, ou em tempos mais distantes, simplesmente se dizia
“relaxar”.
Se vivemos em um tempo consumista, trocando de objetos (ou de relaciona-
mentos) constantemente, o que nos dá prazer e reforça nosso auto-hedonismo,
que tal ficar mais tempo com seu ‘velho’ celular, ou seu ‘velho’ computador, ou
seu ‘velho’ carro, etc.; que tal dizer não a algum item ‘importante’ de consumo
e suportar as consequências dessa falta; invista seu tempo, talento, dinheiro em
ajudar sem ser reconhecido por isso.
O “x” da questão? Cuidar de si, investir a si mesmo em si mesmo, aprender
a cuidar de si-mesmo-como-outro - em uma antiga e veneranda linguagem, tal-
vez ainda recuperável (?) ame e se deixe amar.
Invente, reinvente-se. Crie, recrie-se.

A FÉ E A LIBERDADE POLÍTICA-SUBJETIVA

Que papel a fé pode desempenhar, em nossos dias, como parte de um estilo de


vida que resista ao secularismo de nosso tempo? O princípio básico: kenosis – a
melhor igreja não é a que se enche, mas a que se esvazia!

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


95

Algumas possibilidades:
1. A espiritualidade nasce (a) na invenção: inventamos outros mundos, outros
personagens, outros seres; (b) na fantasia: fantasiamos conversas com outro
ser, experiências sublimes e poderosas; (c) na ficção: criamos crenças, valo-
res, ritos, deuses. Inventar, fantasiar, ficcionar são componentes de um estilo
de vida subjetivador: criamos a nós mesmos quando criamos o mundo reli-
gioso em que vivemos. A fé, porém, dessubjetiva quando perde de vista seu
caráter inventivo, fantasioso, ficcional e se reduz aos aparatos institucionali-
zados e às experiências individualizadas.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

2. A espiritualidade conduz para fora de nós mesmos: antigamente dizíamos


“transcendência”, podemos agora dizer que a fé nos coloca na trajetória do
ex-ceder, do “sair-de-si-mesmo” em direção ao próximo, à face da outra pessoa,
da outra criatura que nos interpela, nos saúda e deseja receber nossa sauda-
ção de volta. Salvação – saudação, endereçar-se a, dirigir-se- a, encaminhar-se
a: movimento para além do cálculo, do certo, do empírico, do comprovado.
3. A espiritualidade se concretiza na adoração: “movimento e a alegria de reco-
nhecermos a nós mesmos como existentes no mundo” – com suas armadilhas,
ingratidões, tristezas, sofrimentos – a gratidão de conceber a existência como
dádiva, doação, de conceber o aqui-agora como o lugar, o único lugar do
excesso, da transcendência-imanente, da transimanência. Na palavra can-
tada da adoração oramos mais intensamente: orar, adorar, ir além dos limites
deste mundo calculado, controlado, secularista.
4. A espiritualidade se manifesta como sentido: sentimento, significado, dire-
ção, corporeidade. Doação: dar sentido ao que não tem sentido em si. Dar
sentido àquilo que é significado exclusivamente no regime do provável, do
empírico, do cientificamente classificado e ordenado. Dar sentido no movi-
mento dançante de corpos que excedem os limites programados do caminhar
nos lugares públicos.
A fé pode, então, participar da resistência contra este mundo e seus dispositivos
– sob uma condição, porém: não assumir o controle da resistência, da humaniza-
ção, da intersubjetivação, mas praticar a resistência como forma de liberdade em
Cristo. Portanto, refletir publicamente sobre a fé, fazendo teologia pública, é um dos
caminhos para a concretização da liberdade para a qual Cristo nos libertou. Fica,
assim, o convite aqui para que você seja uma teóloga pública ou um teólogo público,
vivendo e servindo ao próximo seguindo o modelo de nosso Senhor Jesus Cristo.

Uma Teologia Pública da Liberdade – Liberdade Política-Subjetiva


96 UNIDADE II

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito bem, caros(as) alunos(as). Chegamos ao final desta reflexão inicial sobre
uma teologia pública da liberdade. Inicial porque ainda há muito que se discu-
tir sobre o assunto. Inicial porque viver a liberdade é um desafio que dura toda
a vida de cada um de nós.
Estudando aspectos do pensamento contemporâneo, aprendemos que a liber-
dade é a expressão da autonomia. Autonomia é uma palavra formada por duas
palavras grega: autos (eu, eu mesmo) e nomos (lei, princípio). Uma pessoa autô-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
noma é uma pessoa que não é dominada por ninguém, que não é governada por
ninguém, a não ser por si mesma.
Esta definição de autonomia, porém, conta só uma parte da história. Ninguém,
de fato, se governa sozinho. Então, a autonomia tem a ver com ser governado de
um modo tal que esse governo por outro não fira a minha autonomia. Logo, o
conceito de liberdade é sempre ambíguo: para ser livre não posso ser governado,
mas se não sou governado de uma forma adequada não posso ser livre.
Essa ambiguidade também está na liberdade bíblica cristã: somos escra-
vos livres! Não mais escravos do pecado, mas escravos de Deus. Somente esta
escravidão é liberdade. Quando somos escravos de Deus somos livres. Quando
somos livres, de verdade, nós nos submetemos voluntária e alegremente a Deus
como nosso Senhor.
Estudamos três dimensões teórico-práticas da liberdade: ética, sociocultu-
ral e político-subjetiva. Construímos uma ética da liberdade em amor como a
base para a vivência sociocultural e político-subjetiva da liberdade. A liberdade
cristã é ser governado pelo amor - amor de Deus, amor a Deus, amor ao pró-
ximo, amor a mim mesmo.
Ser livre é ser livre para amar. Amar é ser livre. Mas, amar como Deus amou,
amar como Cristo amou, amar enquanto fruto do Espírito Santo. Nunca amar
como as novelas de TV nos ensinam.

TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE


97

1. Em que consiste a liberdade?


a) Fazer tudo o que quero.
b) Fazer tudo o que o Estado ordena.
c) Fazer somente aquilo que é bom.
d) Fazer tudo que me agrada.
e) Nenhuma das alternativas anteriores.

2. As cinco dimensões da liberdade, de acordo com Forst (2012), são:


a) Autonomia moral, sexual, legal, política e social.
b) Autonomia religiosa, ética, legal, política e social.
c) Autonomia moral, ética, legal, política e social.
d) Autonomia filosófica, ética, legal, política e social.
e) Nenhuma das alternativas anteriores.

3. A noção paulina de liberdade possui duas características temporais que se


complementam:
I. Escatológico-apocalíptica.
II. Soteriológica.
III. Antropológica.
IV. Cronológica.
V. Utópica.
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas II e IV estão corretas.
d) Apenas II e V estão corretas.
e) Apenas I e V estão corretas.
98

4. De acordo com o texto da disciplina: “o ponto de partida da experiência do


_________ na fé cristã é a tensão escatológica do __________, é a ____________
de Deus que invadiu o presente (passado para nós) da história e o preencheu
de um novo sentido e de uma nova dinâmica.” A sequência correta de palavras
que completam a citação é:
a) Tempo, espaço, futuridade.
b) Espaço, já/ainda-não, santidade.
c) Tempo, presente, liberdade.
d) Tempo, já/ainda-não, futuridade.
e) Espaço, já/ainda-não, futuridade.

5. Dois sinais do secularismo nas igrejas e na vida cristã são:


I. Fundamentalismo.
II. Ecumenismo.
III. Diálogo Inter-Religioso.
IV. Institucionalismo.
V. Perspectivismo.
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas I e IV estão corretas.
d) Apenas II e V estão corretas.
e) Apenas I e V estão corretas.
99

A solução conceitual de Forst para os dilemas criados no interior do debate sobre a jus-
tiça leva em consideração quatro “contextos de problemas teóricos” em que aspectos
da justificação normativa oferecidos por liberais ou comunitaristas podem se mostrar
mais ou menos adequados. O próprio conteúdo do livro, portanto, divide-se nesses qua-
tro planos conceituais críticos. [...] Forst pretende mostrar a possibilidade de “superar”
tais oposições tradicionais segundo uma “perspectiva vertical” a partir de sua tese dos
“contextos da justiça”. Uma teoria crítica da justiça precisa antes considerar as necessi-
dades que podem surgir no contexto de socialização dos indivíduos e serem justificadas
publicamente em dimensões ao mesmo tempo diferenciadas e inter-relacionadas. Ar-
gumentos universalistas, pretensões de neutralidade jurídica e dimensões axiológicas
compõem os contextos de reconhecimento e de justificação pública nos âmbitos da
moral, do direito, da ética e da política. [...]
Desse modo, aquelas clássicas oposições entre “eticidade” e “moralidade”, bem e justi-
ça, são vinculadas a processos de justificação da normatividade em que formas de vida
culturais e políticas e determinações substantivas da justiça encontram-se atreladas
a direitos e procedimentos imparciais. “Portanto”, segue o autor, “princípios de justiça
são aqueles que são justificados de modo universal e imparcial na medida em que cor-
respondem, de maneira apropriada, aos interesses, necessidades e valores concretos
daqueles atingidos por eles” (p. 276). Pretende-se assim evitar uma “cegueira” em face
dos contextos, bem como apontar os limites das orientações contextualistas que des-
conhecem o núcleo universalista das reivindicações por justiça. A harmonização desses
diferentes contextos requer uma teoria da justiça que possa reuni-los de um modo mais
adequado.
A reconstrução do debate entre liberais e comunitaristas apresentada no livro evita, por
conseguinte, a mera defesa de uma ou outra posição, privilegiando avaliá -los como
abordagens parciais para o problema da justiça. Para que seja suficientemente abstrata
e concreta ao mesmo tempo, uma teoria crítica da justiça assume o vínculo essencial
entre pessoas e comunidades e parte do ancoramento dos princípios de justiça a toda
comunidade política. A oposição normativa entre universalismo e contextualismo só
pode ser superada se trouxermos para o centro da discussão a questão de quais concei-
tos de pessoa e comunidade estão em jogo. A solução conceitual de Forst complementa
criticamente as proposições globais tradicionais ao distinguir quatro conceitos de pes-
soa (pessoa ética, pessoa de direito, cidadão e pessoa moral) e de comunidade (ética,
jurídica, política e moral) que correspondem a quatro contextos normativos diferentes e
entrelaçados de modo complexo. [...]
O propósito crítico da diferenciação e da articulação dos diversos contextos consiste
menos na separação entre o plano ético, jurídico, político e moral, do que na possibili-
dade de “comprovar a compatibilidade dos direitos individuais com o bem da comuni-
dade, da universalidade política com a diferença ética, do universalismo moral com o
contextualismo”, permitindo desse modo “evitar oposições falsas” (p. 13).
100

Podemos chegar às diferenciações internas que compõem os contextos aludidos con-


siderando as relações entre pessoa e comunidade. A teoria liberal tendeu a desvincular
o indivíduo de seus contextos de socialização ao priorizar uma concepção abstrata de
pessoa como portadora de direitos ou como pessoa moral. As críticas republicanas e
comunitaristas mostraram, ao contrário, que toda pessoa se individualiza nas comuni-
dades em que são integradas. Porém, não sabemos ainda a quais comunidades perten-
cem as pessoas e quais são as normas e os valores que as integram. Se para o liberal a
justiça está fundada num conceito abstrato de pessoa de direito - como portadora de
direitos subjetivos e como sujeito de direito -, para o defensor do contextualismo toda
pessoa está integrada eticamente a uma determinada comunidade de valores. Embora
Forst também não acredite ser necessário reduzir um âmbito ao outro, “verticalmente” é
possível justapô-los de acordo com contextos de justificação diferentes e igualmente le-
gítimos: enquanto considero a comunidade político-jurídica e sua integração normativa
segundo uma concepção política e pública de justiça, compreendo os indivíduos como
pessoas que portam direitos; já as comunidades éticas se integram por diferentes tipos
de concepções do bem - e não com base na imagem abstrata e universal da pessoa de
direito -, de modo que a pessoa ética se torna, dessa perspectiva, membro de determi-
nadas comunidades com as quais a identidade do self está vinculada. As relações éticas
(constituídas por visões de mundo e concepções de bem ) não substituem relações ju-
rídicas (em que se trata de atentar para direitos e deveres que formam a estrutura de
relações reguladas juridicamente). Como diz Forst, “uma coisa é reconhecer uma pessoa
como igual portador de direitos; outra coisa é reconhecê -la em todas as suas qualida-
des” (p. 40). O direito igual justifica-se segundo normas e princípios que pretendem ser
universalmente válidos sem que recorramos a concepções de bem e valores particula-
res. Não importa quais concepções éticas e valores estão em jogo, normas jurídicas (bem
como normas morais) têm de valer “para todos”: no caso do direito, as normas jurídicas
valem para todos os parceiros do direito considerados membros de uma comunidade
jurídica; normas morais, por sua vez, valem para todas as pessoas morais consideradas
membros da comunidade dos seres humanos. A validade de normas éticas, contudo,
depende da identificação dos indivíduos com determinados valores que formam suas
identidades do ponto de vista de sua história de vida.
Fonte: adaptado de Melo (2010, on-line).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Teologia Pública - Desafios Sociais e Culturais


Eneida Jacobsen, Roberto Zwetsch & Rudolf von Sinner (Orgs.)
Editora: Sinodal
Sinopse: o debate sobre Teologia Pública foi lançado no Brasil. Este novo
livro – Teologia pública: desafios sociais e culturais – dá continuidade a essa
discussão por meio do estudo de temas de grande atualidade em nossa
sociedade. Como lidar com a diversidade cultural, étnica e religiosa? Qual o
papel do Ensino Religioso na escola pública? Há convergência entre direitos
humanos, religião e teologia? De que forma as igrejas, os movimentos
sociais e outras expressões da vida cotidiana têm contribuído ou podem vir
a contribuir para a vida em comum? Essas e outras questões são abordadas
aqui em diálogo com o conceito de teologia pública. Assim, as diversas contribuições ajudam a
avaliar sua pertinência e moldar seu sentido em perspectiva latino-americana. Com contribuições
de Alessandro Bartz, Antonio Carlos Teles da Silva, Graciela Chamorro, Iuri Andréas Reblin, Kathlen
Luana de Oliveira, Remí Klein, Roberto E. Zwetsch, Rogério S. Link e Walter Marschner.

A nós, A liberdade
Ano: 1931
Sinopse: um condenado escapa da prisão, consegue um emprego e se torna
diretor da fábrica onde trabalha. Anos depois, seu companheiro de cela é
solto e passa a trabalhar na empresa do amigo. Porém, eles temem que a
verdade sobre o fugitivo seja descoberta.

Fique com esta sugestão de artigo online escrito por Rudolf von Sinner sobre a Teologia Pública da
cidadania no Brasil enquanto sucessora da Teologia da Libertação.
Web:<http://www.r-e-t.net/fix/files/von%20Sinner_teologia%20p%FAblica_cidadania_%20in%20
Portugues.pdf>.

Material Complementar
REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
COX, H. The Secular City. Secularization and Urbanization in theological Perspecti-
ve. Princeton: Princeton University Press, 2013. (Edição comemorativa).
FORST, R. The right to justification: Elements of a constructivist theory of justice.
New York: Columbia University Press, 2012.
FOUCAULT, M. Do Governo dos Vivos. São Paulo/Rio de Janeiro: Centro de Cultura
Social/Achiamé, 2011.
HABERMAS, J. Entre naturalismo y religión. Barcelona: Paidós, 2006.
HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
KANT, I. Resposta à pergunta: Que é esclarecimento? Textos Seletos. Petrópolis:
Vozes, 2005, p. 63-71.
LUTERO, M. Pelo evangelho de Cristo: obras selecionadas de momentos decisivos
da Reforma. Porto Alegre: Concórdia, São Leopoldo: Sinodal, 1984.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Global, 2015.
MELO, R. Autonomia, justiça e democracia. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n.
88, p. 207-215, dez., 2010 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?scrip-
t=sci_arttext&pid=S0101-33002010000300013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 04
jun. 2018.
MILL, J. S. On Liberty. Harmondsworth: Penguin, 1985. (Edição original de 1859).
MOLTMANN, J. God for a secular society. The Public relevance of theology, Minne-
apolis, Fortress Press, 1999.
NANCY, J-L. Dis-Enclosure. The Deconstruction of Christianity. New York: Fordham
University Press, 2008.
SMITH, A. A Riqueza das Nações. Curitiba: Juruá, 2006.
SOBOTTKA, E. A. Liberdade, reconhecimento e emancipação – raízes da teoria da
justiça de Axel Honneth. Sociologias, Porto Alegre, ano 15, n. 33, p. 142-168, 2013.
VATTIMO, G. After Christianity. New York: Columbia University Press, 2002.

REFERÊNCIA ON-LINE

1
Em: <http://hinologia.palavra-e-poder.org/data/uploads/material-hinologico/HinosE-
Corinhos/cas/cas3156.icl.tfism.am.c4.pdf>. Acesso em: 04 jun. 2018.
103
GABARITO

1. E.

2. C.

3. E.

4. D.

5. C.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

TEOLOGIA PÚBLICA DA

III
UNIDADE
JUSTIÇA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Conceituar justiça à luz da filosofia contemporânea.
■■ Definir justiça na teologia bíblica.
■■ Explicar a dimensão ético-moral da justiça.
■■ Explicar a dimensão legal da justiça.
■■ Explicar a dimensão socioeconômica da justiça.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O conceito de justiça na Filosofia Contemporânea
■■ Um olhar bíblico sobre a Justiça
■■ Uma teologia pública da justiça – Justiça Ético-Moral
■■ Uma teologia pública da justiça – Justiça Legal
■■ Uma teologia pública da justiça – Justiça Socioeconômica
107

INTRODUÇÃO

Olá, aluno(a)! Bom estar de volta e iniciarmos o estudo da terceira unidade de


nossa disciplina de Teologia Pública. Nosso tema, agora, será o da justiça. Na
unidade anterior, discutimos a questão da liberdade e, entre outros assuntos,
vimos que a liberdade precisa ser entendida eticamente se não pode ser vista e
praticada como exatamente o oposto - como uma escravidão aos nossos pró-
prios desejos e interesses egoístas.
Discutir, agora, o tema da justiça complementa a nossa conversa sobre
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

a liberdade. Não é possível haver efetiva liberdade sem justiça e vice-versa.


Especialmente se levarmos em consideração a situação atual do Brasil, com um
excesso de injustiça e práticas ilegais, perceberemos a relevância do tema da jus-
tiça para a Teologia Pública.
Iniciamos com uma discussão sobre a justiça no pensamento contemporâ-
neo - desta vez focando em dois autores com visões similares, mas não sinônimas
de justiça: Rainer Forst (2002) e Jean-Luc Nancy (2000).
Passamos à reflexão bíblica sobre a justiça, focando no livro de Isaías. Há
muito material bíblico sobre a justiça - que daria um curso por si só - por isso
a escolha em centrar a atenção em um autor bíblico, que representa muito bem
o conjunto da noção bíblica da justiça enquanto libertação e fonte do direito.
Na sequência, estudamos três dimensões da justiça cy: (a) a justiça ético-mo-
ral, um tema que preocupa cristãos de modo especial, pois o pluralismo ético e
moral contemporâneo apresenta grandes desafios para a relação entre cristãos
e não-cristãos na sociedade democrática; (b) seguimos discutindo a dimen-
são legal da justiça, um tema particularmente importante no Brasil em que há
uma distância significativa entre a lei e a sua prática na sociedade e no Estado;
e (c) finalmente, trabalhamos com a dimensão socioeconômica da justiça - que
tem sido um dos temas da teologia latino-americana desde os movimentos da
missão integral e da teologia da libertação - tema que continua relevante e desa-
fiador ainda hoje.
Bom trabalho!

Introdução
108 UNIDADE III

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O CONCEITO DE JUSTIÇA NA FILOSOFIA
CONTEMPORÂNEA

O tema da justiça é, ao mesmo tempo, de fundamental importância e de uma


complexidade imensa. Não podemos esperar, em uma pequena discussão como
esta, dar ao tema a amplitude de tratamento que ele exige e merece. Seremos obri-
gados a selecionar aspectos e teorias específicas, temas mais bem delimitados,
para que a discussão seja, simultaneamente, academicamente adequada e exis-
tencialmente relevante. De antemão, precisamos lembrar que justiça não equivale
ao ideal de uma sociedade ‘perfeita’ ou ‘completa’. Embora possa ser conside-
rada o primeiro e mais elevado valor político, a noção de uma sociedade plena
envolve mais do que as questões de justiça (e.g., bem-estar, felicidade, liberdade
etc.). Assim, fiz a seguinte escolha temática, que ofereço à discussão sem qual-
quer pretensão além de iniciar um debate. Para que você tenha informação sobre
as principais teorias da justiça na atualidade, escolhi alguns textos para leitura
adicional que oferecerão a você outras opções de estudo sobre o tema.
Começo com um breve apanhado do significado de justiça na Escritura,
especialmente a partir do Antigo Testamento. A seguir, passo a apresentar um
pequeno momento da reflexão de Jean-Luc Nancy sobre justiça, e espero que
você perceba os vínculos entre a tese de Nancy e a noção de justiça na Bíblia.
Em terceiro lugar, e levando em consideração o que foi apresentado nas seções
anteriores, ofereço uma leitura do conceito construtivista de justiça de Rainer
Forst. Juntei esses parceiros impertinentes de diálogo exatamente por suas dife-
renças amplas – que às vezes escondem similaridades espantosas.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


109

A PLURALIDADE DO SINGULAR – JUSTIÇA NO DIÁLOGO COM


JEAN-LUC NANCY

A temática da justiça perpassa a obra de Jean-Luc Nancy, mas são poucos os tex-
tos em que ele se debruça especificamente sobre o conceito de justiça. Até onde
conheço sua obra, é em um pequeno texto de cinco páginas que Nancy descreve
mais especificamente sua noção de justiça: “Cosmos Basileus” (Rei do Mundo ou
Mundo Rei), um dos textos que compõem o livro Being Singular Plural (2000),
originalmente publicado como Etre singulier pluriel (1996) - sobre esse texto nos
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

debruçamos neste instante.


Nancy (2000) afirma que o mundo é irredutivelmente plural. Um mundo =
diversos mundos. A lei do mundo é o partilhar do/no próprio mundo. Mundo
sem soberano, sem princípio extramundano que o defina. Mundo, sentido de si
mesmo. Construção permanente através de infinitos compartilhamentos entre
pessoas. Se é mundo, mesmo plural, vive em uma lei, em um nomos: “nomos é
a distribuição, partilha e alocação de suas partes: um pedaço de território, uma
porção de alimento, a delimitação de direitos e necessidade em cada e todo o
tempo, conforme é conveniente” (NANCY, 2000, p. 185). ‘Conveniente’? Não no
sentido pejorativo do termo, mas no sentido similar ao do princípio paulino de
moralidade: ‘todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm”.
Como sabemos o que convém?
A medida da conveniência – a lei da lei, ou justiça absoluta – está somente
na própria partilha e na singularidade excepcional de cada um – de cada
caso, cada um de acordo com esta partilha. Sim, esta partilha não é dada, e
‘cada um’ não é dado (aquilo que é a unidade de cada parte, a ocorrência de
sua instância, a configuração de cada mundo). Esta não é uma distribuição
já realizada. O mundo não é dado. Ele é, ele mesmo, o dom. O mundo é
sua própria criação (é isto que ‘criação’ significa) (NANCY, 2000, p. 185).

Justiça, então, é aquilo que é dado, repartido, devolvido a cada um, conforme
sua singularidade peculiar. Por isso, ninguém sabe, justamente, o que é a justiça.
Cada pessoa, em cada mundo, constantemente partilha, dá, toma, perde, recebe,
devolve. Como paralisar esse movimento incessante? Uma justiça que paralisa
o movimento da partilha não é justiça. Não é possível afirmar uma única justiça
em uma pluralidade de mundos:

O Conceito de Justiça na Filosofia Contemporânea


110 UNIDADE III

cada existente aparece em mais arranjos, massas, nervos ou complexos,


do que se pode perceber à primeira vista, e cada um também está in-
finitamente mais separado de tais, e separado de si mesmo. Cada exis-
tente abre e fecha muitos mundos, os dentro de si, assim como aque-
les muitos fora de si, trazendo o exterior para o interior, e vice-versa
(NANCY, 2000, p. 186)

Existir. Existir é sempre existir no mundo, sempre existir comunitariamente,


em multidão. Justiça, então, não é algo que se anexa à existência. É um modo de
existir, existindo. Trata-se, então, de ser justo a cada existente e a todos os exis-
tentes simultaneamente. Um duplo padrão aparentemente contraditório, mas

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
inevitável. Uma busca incessante. Justiça é aquilo que convém a cada existente
em sua existência singular irredutível e a todos os existentes em sua existência
comum igualmente irredutível:
a justiça, então, precisa ser entregue, ao mesmo tempo, à singular abso-
luta do próprio e à absoluta impropriedade da comunidade de existên-
cias. Ela precisa ser entregue exatamente a ambos, a um e ao outro: esse
é o jogo (ou o sentido) do mundo (NANCY, 2000, p. 188).

Uma impossibilidade? Sim! E é exatamente por isso que justiça é sempre ‘busca
de justiça’.
É por isso também que justiça é sempre – e talvez principalmente – a
necessidade de justiça, isto é, a objeção e o protesto contra a injustiça,
o chamado que grita por justiça, a respiração que se exaure em clamar
por ela. A lei da justiça é esta tensão interminável com relação à própria
justiça (NANCY, 2000, p. 189).

Lembra-se do sermão do monte? “Bem-aventuradas as pessoas que têm fome e


sede de justiça” (Mt 5,6).
A justiça, então, é parte da própria existência do(s) mundo(s). Ela não pode
ser trazida de fora, não pode ser ‘dada’ por algum ser extraterreno. Nenhum
herói, de qualquer mundo, pode produzi-la. Ela é construída no mundo e com o
mundo: “em si mesmo, o mundo é a suprema lei da justiça: não o mundo dado e
o ‘tal como é’, mas o mundo que emerge como uma incongruência propriamente
incongruente” (NANCY, 2000, p. 189). Se, como diz o livro de Isaías, a justiça
humana é como trapos imundos, somente na incongruência é que a justiça se
constrói, somente na loucura do mundo a justiça se constrói – e aqui, mesmo

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


111

contra a vontade de Nancy, podemos evocar o apóstolo Paulo que nos lembra
que a loucura de Deus, que entrou no mundo mediante o Filho Encarnado, é
mais sábia do que a sabedoria dos homens.

A PLURIDIMENSIONALIDADE DA AÇÃO JUSTA – DIALOGANDO


COM RAINER FORST

Jean-Luc Nancy descreve a justiça como uma incessante busca em uma inces-
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sante tensão contra a injustiça que, teimosamente, jamais desaparece do mundo


– tanto nas singularidades, como na pluralidade. Vejo a tese de Nancy como uma
corroboração – certamente involuntária – da afirmação bíblica de que a huma-
nidade vive em uma condição pecaminosa. Em Rm 1,18, por exemplo, Paulo
afirma: “a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos
homens que detêm a verdade pela injustiça”. Nancy (2000) propõe que nós mes-
mos entreguemos a justiça, aprendendo a partilhar, repartir, distribuir, alocar
coisas, bens, espaços etc. Em certo sentido, ele tem razão, na medida em que na
Escritura não encontramos a possibilidade de Deus realizar sua tsedaqah sem
a parceria humana.
Entretanto, como fazer essa entrega, essa alocação de recursos? É diante
desta pergunta que vejo o valor da proposta de Rainer Forst. É uma das teo-
rias de justiça que, reconhecendo os limites humanos, oferece pistas para a
concretização, na vida cotidiana, pessoal e institucional, da incessante busca
por justiça descrita por Nancy. Duas obras de Forst são fundamentais para
entendermos a sua teoria da justiça: The right to justification: Elements of a
constructivist theory of justice (2012, original alemão de 2007), e Contexts of
Justice: Political philosophy beyond liberalism and communitarianism (2002,
original alemão de 1994).
Em seu livro mais recente, Forst (2000) inicia a discussão afirmando que o ser
humano é um ser justificador (obviamente, o conceito de justificação usado por
Forst é bem diferente do conceito paulino de justificação por graça mediante a fé)
– ou seja, um tipo de ser que demanda que as ações sejam justificadas mediante
razões, e que essas justificações sejam mútuas. Como um ser justificador é um ser

O Conceito de Justiça na Filosofia Contemporânea


112 UNIDADE III

em busca de justiça, pois é a justiça que forma o núcleo do processo argumen-


tativo da justificação. Que é essa justiça? Para ele, o núcleo do sentido de justiça
é a oposição fundamental à arbitrariedade – ou seja, às ações não justificadas.
Notou a similaridade com a tese de Nancy? Forst não oferece uma ‘definição
positiva’ da justiça, mas uma definição ‘construtivista’ (conforme o subtítulo do
livro). Consequentemente, para ele,
o impulso fundamental que se posiciona contra a injustiça não é, pri-
mariamente, o de quer ter alguma coisa ou ter mais de alguma coisa,
mas o de querer não mais ser oprimido, assediado, ou ter os seus pró-

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prios clamores (reivindicações) e o direito básico à justificação ignora-
dos (FORST, 2012, p. 2).

A justiça, então, é uma busca, uma demanda:


a demanda por justiça é uma demanda emancipatória, que é descrita
com termos como honestidade, reciprocidade, simetria, equidade ou
equilíbrio; colocando-a de modo reflexivo, sua base é a reivindicação
(clamor) de ser respeitado como um agente de justificação, isto é, em
sua dignidade própria como um ser que pode pedir e dar justificações.
A vítima da injustiça não é, primariamente, a pessoa que sofre a falta
de certos bens, mas aquela que não ‘conta’ na produção e distribuição
de bens (FORST, 2012, p. 2).

A busca por justiça é busca por libertação (emancipação). É busca pelo fim da
opressão, do assédio, da desigualdade, da dominação, da violência etc. injusti-
ficáveis. O termo-chave, aqui, é injustificável. Por quê? Existem desigualdades
que são justificáveis – ou seja, que podem ser reconhecidas como legítimas
mediante argumentação apropriada. Da mesma forma, embora seja relativa-
mente estranho reconhecer isto, há formas de opressão, dominação, violência
etc. que também podem ser consideradas justificadas (e.g.: a noção de guerra
justa, a noção de revolução – em que há opressão temporária sobre o grupo
anteriormente no poder; etc.). Positivamente falando, uma situação é ‘justa’ se
todas as pessoas nela envolvidas concordarem, sem coerção, que é uma situação
justificável. Assim, o reconhecimento de que uma dada situação é justa ou não,
depende do exercício do direito básico de justificação em um ambiente predo-
minantemente não coercitivo.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


113

Consequentemente,
Seres humanos autônomos formulam seus juízos morais e políticos in-
dependentemente, e os avaliam criticamente com a prática; ao mesmo
tempo, deles se requer que justifiquem tais juízos, que deliberem co-
letivamente a respeito de todas as suas consequências para as pessoas
afetadas em modos politicamente relevantes, e que decidam de acordo.
A primeira tarefa da justiça é tornar isto possível (FORST, 2012, p. 7).

Vejo, mais uma vez, provavelmente também de modo ‘involuntário’, uma descrição
da justiça compatível com a descrição de justiça mais comum na Escritura. Justiça
não existe sem injustiça, coexistem, sempre e inevitavelmente. Vale aqui, de modo
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análogo, a afirmação de Lutero em outro contexto: ‘simultaneamente justo e peca-


dor’. Justiça é busca, demanda, fome e sede, e mesmo quando a alcançamos, nossa
justiça não é a extinção da injustiça. A diferença principal é a de contexto – em
sociedades democráticas, plurais, seculares (ou pós-seculares) e pós-convencionais
(sociedades de indivíduos capazes de tomar decisões por raciocínio próprio), não
se pode esperar que a justiça seja um ‘dom’ de governantes ou de heróis populares.
A justiça se concretiza mediante a ação coletiva da população (mundo-da-vida) e
do funcionamento adequado das instituições ou sistemas sociais.
Devo, por razões de espaço textual, deixar este livro de Forst e me ocupar de
sua obra mais antiga (1994) sobre a justiça, na qual encontramos de modo mais
sintético os espaços (contextos) de busca de justiça, os quais são quatro: ética,
legalidade, política e moralidade.

(1) Justiça no espaço ético

Em que consiste o espaço ético da vida humana? Segundo Forst (2002, p. 258),
questões éticas são questões sobre a vida boa de uma pessoa como
membro de comunidades éticas particulares, com cuja história a his-
tória de vida única, a narrativa do self – seu passado, presente e futuro
– está conectada.

Pressuposto, aqui, está o caráter plural dos estilos e modos de vida das sociedades
democráticas contemporâneas – nos diversos ambientes da vida – religião, cultura,
profissão, gênero, lazer, etnia etc. Há diferentes ‘éticas’ em qualquer sociedade democrá-
tica atual, e todas essas comunidades precisam justificar suas opções adequadamente.

O Conceito de Justiça na Filosofia Contemporânea


114 UNIDADE III

O que se deve justificar no campo ético? Segundo Forst (2002), duas coisas:
(a) “a nível subjetivo, eu justifico ‘minhas’ decisões a mim mesmo e àquelas pes-
soas que pertencem ao núcleo de minha identidade, elas são importantes para
mim por me dizem como me veem, como eu sou para elas”; (FORST, 2002, p.
259) (b) “no aspecto de relevância comunitária, justificação ética significa que
uma comunidade com a qual indivíduos se identificam procura responder à
questão do que é bom ‘para nós’ com base em uma auto compreensão comum”
(FORST, 2002, p. 260). Como a sociedade é eticamente plural, inevitavelmente
conflitos éticos farão parte do cotidiano da democracia e deverão ser resolvidos,

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com base na justiça, mediante o debate e a deliberação públicas.

(2) Legalidade

O segundo campo de justificação é o da legalidade, ou da Lei:


enquanto indivíduos, pessoas legais também são membros normativa-
mente responsáveis de uma comunidade, mas de um modo diferente
do modo das pessoas éticas: quer como Saulo de Tarso, ou apóstolo
Paulo, uma pessoa é um membro da comunidade legal e uma pessoa
legal; cada pessoa deve obedecer às leis e tem direitos específicos, en-
quanto tal pessoa legal (FORST, 2002, p. 263).

No campo ético, convive-se com uma pluralidade legítima de opções e escolhas.


No campo legal, depende-se de uma Lei comum, à qual estão igualmente sujeitos
todos os membros da comunidade (país). O campo ético é o campo da particu-
laridade, enquanto, do ponto de vista legal,
as normas legais são válidas no tocante aos atributos da ‘pessoa’ como
tal: elas possuem validade geral e mandatória. Elas não são constituti-
vas da identidade; ao contrário, elas constituem a estrutura ‘exterior’
da ‘liberdade negativa’ que, ao mesmo tempo, capacita e limita, na
forma de uma ‘capa protetora, a liberdade positiva da auto-realização
(FORST, 2002, p. 263).

Em sociedades democráticas, para que haja justiça no âmbito da legalidade, é


indispensável que as pessoas legais sejam, elas mesmas, autoras da lei. Neste caso,
a ‘pessoa legal’ é, também, ‘pessoa política’, ou seja, cidadã e deve participar dos
processos de justificação das leis e normas que regem a sua comunidade ou país.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


115

Enquanto pessoas legais, são responsáveis ‘perante’ a lei; enquanto cidadãs, são
responsáveis ‘pela’ lei. A justiça, no campo da lei, deve garantir que cada pes-
soa possa buscar sua autorrealização sem impedimentos coercitivos. Todavia,
a ‘razoabilidade’ demandada das pessoas legais é moralmente exigente:
a autonomia legal pressupõe, não somente o respeito recíproco e a tole-
rância, como deveres legais mútuos, mas também a imputabilidade e a
responsabilidade por suas próprias ações (FORST, 2002, p. 264).

Neste campo, deve-se, também, levar em consideração que, em sociedades plu-


rais, as leis não serão capazes de estabelecer justiça para todas as comunidades
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éticas, de modo que sempre se deve existir um espaço para, não só modificar
as leis, como também, para resistir ‘legalmente’ às leis (como no caso da deso-
bediência civil, por exemplo). A demanda moral sobre a pessoa legal e política
implica em que ela seja, quando necessário, porta-voz de quem não tem voz em
uma dada sociedade, colaborando com a busca de justiça pelas pessoas vítimas
da injustiça.

(3) Político

Entramos no terceiro campo ou contexto da justiça, o político. Enquanto cidadãs,


as pessoas são responsáveis pela justificação das leis que regem sua comunidade
(ou país). Isto é, enquanto cidadãs, são responsáveis pelo bem comum de sua
sociedade democrática, e não apenas por sua autorrealização, ou por sua impu-
tabilidade legal.
Responsabilidade política significa ser, como parte da comunidade,
responsável perante seus co-cidadãos e ‘interlocutora’ em discursos,
encontrando uma linguagem comum. Ademais, a responsabilidade
política possui outra dimensão: a responsabilidade por suas ações,
que membros da comunidade assumem juntamente, vis-à-vis tercei-
ros (de modo que diferentes graus de responsabilidade indireta devem
ser distinguidos no tocante à sua diferenciação temporal) (FORST,
2002, p. 267).

Esta afirmação pressupõe o funcionamento adequado da democracia e da cida-


dania dentro dela. O modelo de democracia aqui pressuposto por Forst (2002)
é o da ‘democracia deliberativa’, que vai além da mais tradicional democracia

O Conceito de Justiça na Filosofia Contemporânea


116 UNIDADE III

‘representativa’, e inclui a chamada democracia ‘participativa’. Se considerarmos


a situação atual da democracia brasileira, ainda estamos no estágio da demo-
cracia ‘representativa’, na qual a busca por justiça sofre diversos obstáculos e
empecilhos, especialmente em função do colapso da ‘representatividade’ política.
Isto quer dizer que, enquanto cidadãos, não nos cabe obedecer a lei apenas
porque ‘é lei’. Precisamos exercer a obediência de modo razoável, livre e justo.
Para que isso aconteça,
a reivindicação de validade de uma norma política (‘isto deve ser válido
para a comunidade política porque atende ao interesse geral’) só pode

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ser determinada discursivamente; a generalidade da norma deve ser
verificada antes dela se tornar uma norma legal. Somente esta genera-
lidade discursivamente estabelecida pode fundamentar a reivindicação
de legitimidade da lei e obrigar politicamente os cidadãos. [...] Obri-
gações políticas são obrigações auto impostas. No nível da cidadania
e da democracia, a ‘justificação’, portanto, se refere primariamente à
justificação recíproca de normas que devem ser geralmente válidas
para a comunidade política; isto se refere à auto legislação autônoma
de cidadãos (FORST, 2002, p. 267-68).

No caso da democracia brasileira, a demanda de justificação política, na busca


da justiça, exige um considerável grau de amadurecimento democrático e da
cidadania. Não basta ‘saber votar’, nem ‘saber cobrar’ os governantes. É preciso
participar deliberativamente da vida pública, levando em consideração as deman-
das provenientes, igualmente, dos campos ético, legal e moral. A pessoa política
é, simultaneamente, pessoa ética, legal e moral – de modo que em sua própria
existência pessoal precisa ser uma pessoa pós-convencional (no sentido moral
dado ao termo por Kohlberg – basicamente, quem se rege por princípios morais
universais, e não por costume ou leis).

(4) Moralidade

Chegamos, enfim, ao quarto contexto (campo) da justiça (justificação),


que é o da moralidade. Na visão habermasiana, seguida por Forst (2002),
enquanto a ‘ética’ trata da identidade individual e comunitária, logo, é sem-
pre plural, a moralidade visa sempre a universalidade (universalização) das
normas morais.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


117

A noção de uma comunidade de todos os seres humanos leva a discussão


ao campo dos aspectos característicos das questões morais. Aqui, a ques-
tão ‘que devo fazer?’ se apresenta primariamente, não como a questão do
que eu quero ser o do que é bom para mim, nem como a questão do que
a lei demanda, nem como a questão do que pertence ao interesse geral de
todos os cidadãos, mas como a questão do que é moralmente justificado,
de como uma pessoa deve agir como ‘ser humano’. O que é moralmente
válido deve ser válido para todas as pessoas morais enquanto seres hu-
manos. Cada pessoa moral tem o dever, perante todas as pessoas morais
(e isto significa, todas e cada uma), de defender as normas orientadoras
da ação que ela considera ser justificadas por razões que não podem ser
rejeitadas reciprocamente (por indivíduos ‘concretos’), ou geralmen-
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te (por todos os membros da comunidade moral). Como tais, elas são


razões universalmente ‘partilháveis’. A autonomia moral, portanto, sig-
nifica agir de acordo com normas que são válidas geralmente, em um
sentido moralmente irrestrito (FORST, 2002, p. 268).

Você notou o crescendo dos contextos da justiça (justificação)? Forst iniciou com
o indivíduo e sua comunidade ética, passou para o ‘país’ e sua legislação, avançou
para a ‘nação’ democrática e sua cidadania, e conclui, agora, com a universali-
dade dos princípios morais. Essa universalidade não pode ser concebida, porém,
de modo abstrato, mas de modo histórico – isto é, são universais os princípios
morais que, ao longo da história humana, foram se universalizando, ou seja,
foram sendo reconhecidos como tais por parcelas cada vez maiores da popu-
lação humana do planeta. Consequentemente, a universalização de princípios
morais permanece tarefa constante da humanidade, não podendo se restringir
a uma forma de universalização – a europeia, por exemplo.
Normas morais, para serem universais, precisam de ser justificadas mediante
razões gerais e recíprocas – gerais, por que se aplicam a todas as pessoas envol-
vidas; recíprocas, por que ninguém pode se eximir de sua discussão e de seu
reconhecimento (se vale para você, vale para mim, e vice-versa). Em uma época
que valoriza a individualidade e a pluralidade, falar em universalidade pode dar
a entender alguma forma de opressão. Todavia,
a universalidade de uma norma não é ‘má universalidade’; a justificação
moral demanda o respeito a cada indivíduo e a todas as pessoas como
autoras e destinatárias de reivindicações de validade. Neste sentido, a
autonomia moral – a autonomia de pessoas razoáveis e justificadoras
– requer julgamento moral, que busca justificar concretamente o que é
moralmente correto, exatamente por causa de sua reivindicação de uni-
versalidade (FORST, 2002, p. 270).

O Conceito de Justiça na Filosofia Contemporânea


118 UNIDADE III

Em síntese, justiça é o resultado de um permanente processo intersubjetivo de


justificação nos contextos inter-relacionados da ética, lei, política e moralidade.
Como algo que se constrói, não há um padrão de justiça prévio, mas uma história
da busca da justiça que pode ser mobilizada pelas pessoas (éticas, legais, políti-
cas e morais) em sua constante busca de justiça. O pressuposto fundamental da
busca de justiça é a eliminação das injustiças – isto porque nosso senso de ser
injustiçado é elevado, o que conduz à motivação para buscar a justiça.
Em um mundo globalizado, a demanda por justiça se torna ainda mais
complexa, na medida em que as relações internacionais se avolumam e tornam

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situações de injustiça mais visíveis (além de criar novas), e deixam mais evidente
também a pluralidade ética, legal, política e, até mesmo, moral (lembrando-nos
de que a universalidade é fruto da universalização). Assim,
por serem membros de diferentes comunidades de justificação, pesso-
as aceitam – ou apresentam mutuamente umas às outras – a conexão
autônoma da responsabilidade ética, legal, política e moral vis-à-vis si
mesmas e outras como a tarefa prática central. Pode-se chamar tais in-
divíduos responsáveis de autônomas em um sentido abrangente, e ra-
zoáveis no sentido prático. A este conceito exigente de pessoas respon-
sáveis corresponde o conceito de uma sociedade responsável, que torna
possível sua existência prática (e é, ela mesmo, possibilitada por essa
existência prática) (FORST, 2002, p. 274).
Síntese

As noções de justiça de Nancy e Forst (teoria da justiça como justificação) oferecem


intenso e exigente material para reflexão e discussão constantes – especialmente se
lidas em conjunto com as descrições bíblicas da justiça. Você percebeu por que a
ordem das Unidades desta disciplina? Após a definição e um pouco da história da
Teologia Pública, passamos aos conceitos fundamentais de uma teologia pública
cristã: libertação e a nova subjetividade dela decorrente. Esses conceitos servem de
base para a construção de uma noção teológica da justiça (nesta unidade) que, por
sua vez, demanda a construção de modos práticos de ação pública. Esses modos de
ação pública, buscando a justiça, só serão plenamente possíveis se praticados por
pessoas que amam a si mesmas e ao próximo (libertas e messiânicas), que se dedi-
carão à busca da justiça no cotidiano da vida democrática, exercendo sua cidadania
plenamente, inclusive mediante a participação na esfera pública deliberativa.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


119
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UM OLHAR BÍBLICO SOBRE A JUSTIÇA

O tema deste capítulo parece simples, mas, de fato, possui uma complexidade
que desafia a escrita sobre o mesmo. Em primeiro lugar, a literatura bíblica em
geral, inclusive a profética, não se caracteriza pela linguagem conceitual, de modo
que não encontraremos na literatura profética um conceito de justiça. Em outras
palavras, precisamos construir um conceito de justiça a partir da diversidade
da pregação profética. Em segundo lugar, não há uma unidade de perspectiva
sobre a justiça na chamada literatura profética – escrita em épocas diferentes,
por autores e autoras em locais sociais distintos, a literatura profética é teológica
e ideologicamente plural. Em terceiro lugar, precisamos definir o alcance da lite-
ratura profética: se seguimos o cânon hebraico, ela inclui os Profetas Anteriores
(que nós costumamos chamar de Históricos); se seguirmos a forma canônica
das versões em português se restringe ao que no cânon hebraico são os Profetas
Posteriores – por questões de facilidade de pesquisa e enquadramento na confi-
guração do livro, fico aqui com a segunda opção. Temos, ainda, o problema das
traduções – se seguirmos o texto em português, não há uniformidade na esco-
lha da tradução dos vocábulos hebraicos – justiça é usado tanto para as raízes
quanto para . Enfim, o tema por si só é complexo na Bíblia dos hebreus: não só
temos de lidar com o par terminológico comum ‘justiça-direito’, mas também
temos de lidar com as complexas relações que a noção de justiça estabelece com
as de libertação, paz, lei, fidelidade e aliança.
Assim, preferi optar por um estudo mais específico sobre o tema da jus-
tiça na literatura profética: refletirei sobre a noção de justiça no livro de Isaías.

Um Olhar Bíblico Sobre a Justiça


120 UNIDADE III

A pesquisa histórico-literária sobre Isaías já, há tempos, chegou a um consenso


sobre a divisão tripartite do livro (1-39; 40-55; 56-66), consenso que seguirei aqui
criticamente. Em tempos mais recentes, porém, o foco da pesquisa tem recaído
principalmente sobre o livro de Isaías como um todo, como uma obra completa.
Farei uso da discussão recente sobre esta questão, e procurarei entender não só
as diferentes noções de justiça em uma leitura diacrônica de Isaías, mas também
a eventual coerência conceitual do tema no conjunto da obra.

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JUSTIÇA E DIREITO NO LIVRO DE ISAÍAS

As palavras para justiça em Isaías são os substantivos ‫ ִמ ְׁשּפָ ט ;צֶ ֶדק‬e ‫ ;צְ ָד ָק‬o adjetivo
‫צַ ִּדיק‬, bem como as formas verbais ‫ ׁשפט‬e ‫צדק‬. Os termos são usados em todo o
livro de Isaías (a raiz ‫ׁשפט‬: 32 x em 1-39; 14 em 40-55 e 11 em 56-66; a raiz ‫צדק‬:
31 x em 1-39; 32 em 40-55 e 23 em 56-66), no total são 143 ocorrências das duas
raízes, distribuídas amplamente nas três seções do livro, com maior frequência na
primeira seção (a maior), mas percentualmente as diferenças não são significan-
tes. A distribuição por palavras é: : 1,17.23.26; 2,4; 3,2; 5,3; 11,3.4; 16,5; 33,22 (10);
40,23; 43,26; 51,5 (3); 59,4; 66,16 (2). : 1,17.21.27; 3,14; 4,4; 5,7.16; 9,6; 10,2; 16,5;
26,8.9; 28,6(2).17.26; 30,18; 2,1.7; 32,16; 33,5; 34,5 (22); 40,14.27; 41,1; 42,1.3.4;
49,4; 50,8; 51,4; 53,8; 54,17 (11); 56,1; 58,2(2); 59,8.9; 59,11.14.15; 61,8 (9). : 5,23
(1); 43,9; 43,26; 45,25; 50,8; 53,11 (5). : 1,21.26; 5,23; 11,4.5; 16,5; 26,9.10; 32,1
(9); 41,2.10; 42,6.21; 43.9.26; 45,8.13.19; 51,1.5.7; (12); 58,2.8; 59,4; 61,3; 62,1.2;
64,4 (7). : 1,27; 5,7.16.23; 9,6; 10,22; 28,17; 32,16.17(2); 33,5.15 (12); 45,8.23.24;
46,12.13; 48,1.18; 51,6.8; 54,14.17 (11); 56,1(2); 57,12; 58,2; 59,9.14.16.17; 60,17;
61,10.11; 63,1; 64,5 (13). : 3,10; 5,23; 24,16; 26,2.7(2); 29,1 (9); 41,26; 45,1; 49,24;
53,11 (4); 57,1(2); 60,21 (3). As principais perícopes em que os termos são usados
são: 1,10-20; 1,21-27; 5,1-7.8-23; 9,1-7; 10,1-4.20-27ª; 11,1-9; 26,7-21; 28,1–29(1-
6.7–13.14–22.23–29); 32,1-20(1-8.9-14.15-20); 40,12-31; 42,1-4.6-9; 44,24-45,8;
45,18-25; 46,1-13; 51,1-8; 52,13-53,12; 54,1-17; 56,1-8; 58,1-14; 59,1-21; 60,1-22;
61,1-11; 62,1-12; 63,15-64,11. Esta listagem mostra a importância dos termos
– e do tema da justiça – em Isaías e também nos mostra que é impossível, em
um artigo, abranger igualmente com profundidade cada uma das perícopes.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


121

Assim, ao invés de apresentar uma exegese de cada perícope, concentrarei a


minha apresentação nos termos hebraicos e no tema desta unidade.
Tematicamente, podemos, assim, classificar as perícopes:
■■ Denúncia: 1,10-20.21.27; 5,1-7.8-23; 10,1-4; 28,1-29.
■■ Novo rei: 9,1-7; 11,1-9; 32,1-20.
■■ Remanescente: 10,20-27.
■■ Oração: 26,7-21; 63,15-64,11.
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■■ Incomparabilidade de Deus: 40,12-31; 46,1-13.


■■ Servo de YHWH: 42,1-4.6-9; 52,13-53,12.
■■ Ciro Libertador: 44,24-45,8
■■ Libertação de Israel (e Jerusalém): 45,18-25; 51,1-8; 54,1-17; 60,1-22;
61,1-11; 62,1-12;
■■ Exortação: 56,1-8; 58,1-14; 59,1-21.

A distribuição temática pelas seções do livro mostra uma concentração de orá-


culos de denúncia em 1-39, mas também oráculos de esperança em um novo rei
e de um remanescente; uma concentração de oráculos de libertação em 40-55 e
56-66; uma concentração de exortações proféticas em 56-66; orações estão pre-
sentes em 1-39 (uma) e em 56-66 (duas); finalmente, temos duas perícopes sobre
a incomparabilidade de YHWH em 40-55. Levarei em consideração esta distri-
buição temática para estruturar a seção.

A Injustiça na Denúncia e a Justiça na Exortação

Os oráculos de denúncia (juízo) estão todos na seção em que predominam os


textos do profeta do VIII século a.C. durante a existência do Reino de Judá,
governado pela dinastia davídica e sua teologia davídica-sionista de legitima-
ção do reinado. Quem são os denunciados? As lideranças de Judá: palácio e seus
funcionários de alto escalão, sacerdócio, grandes proprietários, militares, juízes,
sábios, escribas (legisladores), eventualmente os habitantes de Jerusalém, e uma

Um Olhar Bíblico Sobre a Justiça


122 UNIDADE III

vez ‘Efraim’ (Reino do Norte). Ressalta a ausência do rei entre os denunciados


pelo profeta, mas podemos pressupor a sua inclusão diante dos oráculos a res-
peito de um novo rei; também não há menção explícita de ‘falsos profetas’, embora
possamos pressupor que devam ser incluídos no funcionalismo cúltico. As dimen-
sões sociais da denúncia incluem o culto que encobre a infidelidade à aliança de
YHWH, a corrupção nos julgamentos e na formulação de normas, a acumula-
ção de terras, um estilo de vida contrário à solidariedade e fidelidade da aliança
com YHWH e seu povo, enfim, o governo exercido de forma ‘injusta’ e ‘infiel’.
Se ligamos estas características com os oráculos sobre um novo rei ‘justo’

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e ‘libertador’, começamos a perceber os contornos da noção de justiça que sus-
tenta as denúncias. Fazer justiça é função dos governantes (a partir do rei) que
devem garantir que as normas da entre YHWH e seu povo sejam cumpridas – a
distribuição adequada das terras entre as famílias, decisões judiciais honestas e
íntegras, religiosidade que alimente a fidelidade e a solidariedade. A prática da
justiça é inseparável da prático do direito – a arbitragem adequada dos conflitos
entre os membros da população de Judá. A justiça, consequentemente, é constitu-
tiva da monarquia – o monarca é o principal agente da justiça e do direito em Judá.
Implícita nesta noção está a origem da justiça na ação de YHWH em constituir o
seu povo e lhe outorgar a sua torah como expressão concreta das normas da berith.
Quando dirigimos nossa atenção aos capítulos do Terceiro Isaías, os exor-
tados pertencem a categorias bem distintas dos denunciados pelo profeta do
VIII século. Eles são: ‘o homem’, ‘o estrangeiro’, ‘eunucos’ (56,1-8), ‘meu povo’
(58,1-14); ‘vós’ (59,1-21). Esta linguagem genérica parece se referir ao período
em que Jerusalém está sendo re-habitada, mas ainda não possui uma estrutura
sócio-política bem definida. As dimensões da exortação são, na mesma ordem
dos exortados: guarda do sábado e fidelidade à berith; ‘espiritualidade’ (buscar a
Deus...) e culto (jejum, dia do Senhor=sábado); corrupção nos tribunais, injus-
tiça, cegueira, pecados em geral (infidelidade à berith). Não se trata mais do rei
como principal agente da justiça, mas de cada membro do povo de Deus, inclusive
os estrangeiros que residem nas terras do povo de YHWH. O elemento comum
em relação ao Primeiro Isaías é a fidelidade/infidelidade à justiça de YHWH.
Em duas perícopes as palavras são usadas em relação à ação de YHWH que,
como seria de se esperar, é ação punitiva, como aquele que pune os criminosos.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


123

Voltemos nosso olhar a alguns versos que nos ajudarão a detalhar a noção
de justiça.
Is 1,16-17. Nestes dois versículos a noção de justiça é apresentada em lingua-
gem sapiencial (bem vs. mal) e judicial, no âmbito da defesa de órfãos e viúvas
- o que provavelmente nos remete à tomada de terras das viúvas de guerra no
VIII século a.C. contar os siro-efraimitas e, posteriormente, assírios. Praticar a
justiça (direito), equivalente à prática do bem (), é garantir que as viúvas não
percam as terras de seus maridos e possam se sustentar mesmas e seus filhos.
Is 1,21. Neste verso, temos a presença conjunta de três termos que nos mos-
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tram os contornos da noção de justiça em Isaías (e em seu mundo discursivo):


justiça ), direito () e fidelidade (fiel - ). Estamos no âmbito das relações de aliança
e o foco da perícope recai sobre o governo na cidade de Jerusalém. Por que os
governantes de Jerusalém se tornaram infiéis a YHWH, deixaram de praticar a
justiça e o direito – ao invés disso: corrupção generalizada e falta de solidarie-
dade para com viúvas e órfãos.
Em Is 10,1-2 juntamente com a palavra são usados termos raros nos versos
em que se trata da ‘justiça’: estatutos iníquos () e direitos (‘sentenças’), além do
uso frequente em Is 1-39 de órfãos e viúvas (v. 2). Estamos no âmbito da arbi-
tragem judicial, que se tornou o espaço da opressão de pobres, viúvas e órfãos
privados de suas terras e demais direitos derivados da pertença ao povo de
YHWH, membros de sua aliança. No conjunto, as perícopes de denúncia em
Isaías 1-39 situam a noção de justiça no âmbito da aliança entre YHWH e seu
povo, que demanda dos membros do povo uma relação de fidelidade mútua. A
visão tradicional no Antigo Oriente Próximo de que o rei é o principal agente da
justiça está aqui presente de modo implícito e a noção de justiça é apresentada
predominantemente em termos políticos e ‘judiciais’ (não devemos cometer o
anacronismo de definir este campo como forense, tendo em vista que não havia
um sistema de legislação e tribunais independente do poder do rei).
Ziesler descreve bem este aspecto forense da justiça na Bíblia Hebraica:
todo julgamento humano estava sujeito ao de Deus, o rei, que era o Juiz, e
a justiça humana somente era justiça na medida em que verdadeiramen-
te refletisse a de Deus. Novamente, tanto no tocante à justiça humana
quanto à divina, mishpat significava muito mais do que a outorga da sen-
tença, assim como no tocante aos termos associados tsedeq e tsedaqah.

Um Olhar Bíblico Sobre a Justiça


124 UNIDADE III

Eles poderiam significar a vindicação dos acusados falsamente e dos


marginalizados, a libertação dos oprimidos (daí a estreita associação
com salvação), bem como a punição dos ímpios. ‘Julgar o órfão’ não é
condená-lo, mas garantir que ele tenha seus direitos, e quando o salmista
pede a Deus para julgá-lo, isto é um grito de socorro (Sl 7,8; 26,1; 35,24;
43,1). Os juízes no período pré-monárquico são homens que, mediante
meios militares, ajudam Israel a alcançar justiça – quase no sentido de di-
reitos civis. Isto significa que o juiz exercia uma energia positiva do lado
do direito, que sua tarefa era nada menos do que a preservação da comu-
nidade e que sua justiça consistia em sua vontade e poder de manter a
aliança. Ele não fazia isto apenas ao coibir as ações dos que transgrediam
os limites adequados, mas também dando apoio aos que dele necessita-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
vam (ZIESLER, 1972, p. 17).

Quando nos dirigimos à parte final de Isaías e examinamos as exortações, o qua-


dro passa por alterações significativas que, porém, não modificam a subsunção
da noção de justiça à de aliança.
Na primeira exortação (56,1-8) a justiça está vinculada à guarda do sábado e
ao culto adequado (tanto da parte de israelitas quanto de estrangeiros residentes),
bem como à ‘ética’ cotidiana (v. 2b), e a motivação para a sua prática é a espe-
rança de plena restauração de Jerusalém e volta dos exilados. O primeiro verso da
perícope é elucidativo: a justiça de Deus prestes a ser revelada é a restauração de
Jerusalém e o pleno retorno dos exilados (v. 8) e serve de motivação para a prática
da ‘justiça e direito’ da parte dos membros do povo. Aqui, a ‘justiça’ novamente
está no âmbito da aliança e entra em foco o comportamento ético em sentido geral.
Na segunda exortação novamente o foco se situa sobre culto e ética, em
que a noção de justiça (presente no verso 2) tem a ver com o relacionamento
correto entre os membros do povo de Deus. O verso 6 é elucidativo: uma socie-
dade em que não há opressores nem oprimidos, uma sociedade igualitária, em
que todos os membros da aliança podem desfrutar igualmente das bênçãos de
YHWH. A exortação no capítulo 59 retrata a sociedade que não pratica a jus-
tiça (v. 8-9.14), na qual quem tem mais recursos (dinheiro, bens, poder) exerce
dominação sobre quem tem menos. Novamente, a noção de justiça é situada no
contexto da aliança que deriva da libertação de YHWH (v. 20-21).
A alteração significativa que encontramos em relação a Is 1-39 é o des-
locamento da noção de justiça do campo político-judicial para o campo que
chamaríamos da ‘sociedade civil’. Em uma situação na qual a vida na terra não

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


125

está plenamente reorganizada, não há um ‘governo’ próprio, mas um governo


imperial, o espaço de prática da justiça é o da vida cotidiana que deve espelhar
a fidelidade de YHWH e suas bênçãos como o doador da aliança. Aprendemos,
então, com os textos de denúncia e exortação, que a justiça é definida pelo cará-
ter/ação de YHWH como Deus de seu povo (aliança enquanto compromisso
libertador) e deve se concretizar em uma sociedade igualitária, livre de corrup-
ção, maldade, opressão e dominação (quer sob o governo de um rei, quer sob
uma situação de dominação imperial sem governo próprio).
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A Justiça como Virtude do Novo Rei

Voltamos aos capítulos 1-39 de Isaías. Três perícopes nos recolocam no âmbito da
atuação do rei como agente da justiça. As duas primeiras perícopes (9,1-7; 11,1-9)
são reconhecidas como ‘messiânicas’, anúncios de esperança, enquanto a terceira
(32,1-20) é vista pela maioria como uma declaração sobre o passado e o presente,
e não como um anúncio de esperança. Não é possível discutir essas perícopes
extensamente, concentrar-me-ei, mais uma vez, na noção de justiça nelas pre-
sente. Em 9,1-7 estamos na expectativa da libertação da Galiléia mediante a força
militar para suplantar o inimigo dominador. Nos versos 6-7 temos a descrição do
novo rei, com seus títulos de entronização (v. 6) e com a descrição de seu governo
‘justo’ no v. 7. Usa-se a tríade político-judicial: paz, direito e justiça que indicam a
harmonia socioeconômica sob o governo do rei que pratica justiça e direito. No
capítulo 11, a tríade é sapiencial (no temor de YHWH v. 3): direito, justiça e reti-
dão (v. 4), com a novidade do último termo que se usa em contextos geográficos
para falar de regiões planas e, no âmbito político-judicial equivale à retidão, hones-
tidade ou integridade nos julgamentos. Novamente temos o rei como principal
agente da justiça, governando e tomando decisões favoráveis aos pobres e neces-
sitados. Nas duas perícopes a ação de YHWH é a base e fundamento da ação do
rei como governante justo, de modo que permanecemos no contexto da aliança.
A perícope do capítulo 32 se situa no âmbito da linguagem sapiencial, como
várias outras em Isaías 1-39. Nos primeiros versos o texto fala de um rei que
governará com justiça e ‘príncipes’ que governarão com retidão (o tradicional
par justiça e direito) – com estas orações no campo semântico da sabedoria (uma

Um Olhar Bíblico Sobre a Justiça


126 UNIDADE III

alusão a Salomão como o mais sábio dos reis e modelo de sabedoria pode estar
presente). A novidade, por assim dizer, está na parte final da perícope (v. 15-20),
que insere a justiça no campo semântico do derramamento do Espírito (v. 15), não
no sentido encontrado em Ezequiel ou Joel, mas no sentido presente no Salmo
104 – o Espírito como o doador da vida, aqui representada na forma de prospe-
ridade agrícola. Também é importante o destaque dado ao efeito da justiça: paz,
que corresponde à harmonia e o bem-estar sociais e naturais. Quando os gover-
nantes praticam a justiça, o resultado é a plenitude da vida humana e da natureza
– fruto da ação do Espírito, tanto quanto da ação humana. Que ainda estamos no

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âmbito da aliança é assinalado no texto pelo uso da expressão ‘meu povo’ (v. 18).

Justiça enquanto Libertação

Quando nos dirigimos aos capítulos 40-55 o quadro muda parcialmente de figura.
A ênfase não recai mais sobre o exercício da justiça pelos governantes e pelo povo
em geral. Agora a ênfase principal recai sobre a ação de YHWH como liberta-
dor de seu povo cativo. A justiça agora é inserida no campo semântico dos atos
de Deus, tanto na criação quanto na libertação, atos que instauram uma nova
realidade para o povo de Deus, de modo que não saímos do terreno da relação
de aliança entre YHWH e seu povo.
Que novidades específicas encontramos nestes capítulos? Em primeiro lugar, o
anúncio de Ciro como agente terreno da libertação do povo de Deus por YHWH
(44,24-45,8). Assim como no êxodo egípcio, os textos descrevem a libertação
como ato de Deus e como ato de Moisés, também aqui se descreve a liberta-
ção como ato de Deus e de Ciro. Este é designado como o pastor e o ungido de
YHWH (44,28-45,1), ou seja, o rei terreno que será o responsável pela realização
da libertação divina. Que YHWH é o Justo libertador fica bem demarcado no
texto pela repetição de “Eu sou YHWH que faço todas as coisas” (44,24 e 45,7) –
com o acréscimo da afirmação de que somente YHWH é Deus: “Eu sou YHWH
e não há outro; fora de mim não há Deus ... para que se saiba desde o nascente
do sol e desde o poente, que fora de mim não há outro; eu sou YHWH, não há
outro”. A mesma universalidade está presente em 51,1-8 e é uma das marcas da
teologia do chamado Segundo Isaías.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


127

Em segundo, e não é possível, aqui, discutir a questão com profundidade, a


afirmação ‘monoteísta’ de Is 40-55. Podemos ressaltar, porém, que a afirmação é
ousada no contexto da dominação babilônica e da dominação persa por vir. No
contexto da crença de que os deuses do rei vencedor derrotam o(s) deus(es) do
rei ou do povo derrotado, a afirmação de que somente YHWH é Deus é extrema-
mente ousada em sua contrafatualidade. Não vejo, aqui, porém, uma afirmação
ontológica ou metafísica, mas ôntica e histórica: somente YHWH é o senhor de
toda a criação e de toda a humanidade. Ele é o rei, não só de Israel, mas de todos
os povos; seu domínio se estende a todas as nações e, no âmbito divino, ele é ‘o
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deus dos deuses e senhor dos senhores’ (cf. 40,12-31 e 46,1-13 que destacam a
incomparabilidade de YHWH).
O poder militar evidente nas conquistas de Ciro é colocado no contexto
da negação da realidade de outras divindades, com especial referência a
Marduque, o principal rival de Yahweh (cf. 41,4; 43,10-11.13; 44,6.8). É
tentador interpretar as duas cláusulas participiais que precedem a inclu-
sio final (cf. 44,24) como polêmica contra o dualismo zoroastra. A pos-
sibilidade não pode ser inteiramente descartada, mas não há evidência
de que a religião de Zoroastro fosse, então, uma força a ser enfrentada.
Sequer temos evidência de que Ciro tenha sido, ele mesmo, um zoroas-
tra, e se ele tivesse sido não teria sentido para o autor polemizar contra
sua religião. Mas de fato a crença tradicional de que YHWH é a fonte de
tudo o que acontece, bem ou mal, ainda era amplamente, embora não
universalmente, aceita como não problemática (ver, por exemplo, Am
3,6; 5,18-20; Is 41,23 (BLENKINSOPP, 2000, p. 250).

Outro elemento típico de Is 40-55 são as afirmações a respeito de YHWH como


aquele que fala, de antemão, o que fará. O uso de termos para justiça nesse campo
é exemplificado em: “Não falei em segredo, em algum lugar tenebroso da terra; não
disse à descendência de Jacó: buscai-me no caos; eu, YHWH, falo a justiça (‫)= צֶ֔ ֶדק‬
e proclamo a retidão (‫יׁש ִ ֽרים‬
ָ ‫(”) = ֵמ‬45,19, cf. 45,21ss.). A ação libertadora de YHWH
não só é realizada em benefício de seu povo, mas também é tornada pública aos
olhos das nações. Agora a justiça ‘local’ para Israel se tornará justiça ‘universal’:
“Por mim mesmo tenho jurado; da minha boca saiu o que é justo, e a minha
palavra não tornará atrás. Diante de mim se dobrará todo joelho, e jurará toda
língua. De mim se dirá: Tão-somente em YHWH há justiça e força; até ele virão
e serão envergonhados todos os que se irritarem contra ele. Mas em YHWH toda

Um Olhar Bíblico Sobre a Justiça


128 UNIDADE III

a descendência de Israel triunfará e se gloriará” (Is 45,23-25). O campo semân-


tico, aqui, é o da ação política, e YHWH é descrito como o rei poderoso capaz de
libertar seu povo de qualquer jugo e de qualquer opressor. A novidade é o uso da
raiz verbal para indicar o triunfo do povo de Deus sobre seus inimigos. Como o
verbo está no qal terceira pessoa do plural, não vejo como traduzir a oração por
“Em YHWH será justificada” – aqui o verbo tem a força semântica da libertação
ou do triunfo sobre o opressor.
A universalidade também caracteriza os cânticos do escravo de YHWH, os
quais igualmente anunciam a justiça libertadora de Deus para todos os povos

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(cf. 42,1-4.6-9; 52,13-53,12). A novidade é que o poder libertador de YHWH
será mediado por um escravo, por um oprimido e não por um poderoso rei ou
libertador. Os cânticos estabelecem uma tensão importante com os anúncios de
libertação com Ciro como ungido e agente de YHWH. Se, por um lado, esses
anúncios estabelecem o poderio supremo de YHWH em toda a criação, os cânti-
cos do Escravo ressignificam esse poder e situam a teologia libertadora de Israel
em um novo campo semântico e político. Reafirmam, ainda, que a universali-
dade não implica em colocar Israel em pé de igualdade com outros povos. Israel
continua sendo o povo eleito e, após sua restauração à terra e à fidelidade, será
o grande agente de YHWH para realizar a justiça em toda a terra.
A ambiguidade dos cânticos em relação à identidade do Escravo – tanto
um indivíduo quanto o povo de Deus – é útil e fundamental para a formação da
teologia libertadora de Is 40-55. YHWH reina sobre todos os povos e mostrará
sua salvação a todos os povos, e todos os povos viverão debaixo de sua justiça.
Entretanto, é o povo eleito quem servirá de agente ou mediador da justiça de
YHWH para todas as nações. Ressalta, aqui, o vínculo entre a justiça e a lei (Is 42,
3-4), com o uso vinculado de ‫ּתֹורה‬ ָ ‫ = ִמ ְׁש ָ ּ֑פט‬. Que estamos ainda no âmbito da
aliança fica explícito em 42,6: “Eu, YHWH, te chamei em justiça, tomar-te-ei pela
mão e te protegerei, e te apresentarei como povo da dádiva e luz para os gentios”.
A tradução do hebraico por povo da dádiva visa ressaltar o significado deste
termo como uma dádiva ao invés de uma obrigação. Aqui, o Segundo Isaías segue
uma das tradições da teologia do êxodo que entende a berith como um ato ime-
diato de YHWH em benefício de seu povo. Neste sentido, o Dêutero Isaías está
na mesma linha de argumentação e compreensão de Jeremias (cf. 31,27-34), que

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


129

considera a usurpação da ‘aliança’ pelo palácio e templo como expressão da infide-


lidade dos ‘pais’ de Judá. Assim, o vínculo entre a justiça e a instrução de YHWH
deve ser entendido fora do âmbito da relação contratual mediada pelo monarca
e pelo sacerdócio. Quando o libertador do povo eleito é um escravo que sofre, é
derrotado e morto, não podemos considerar a aliança como uma obrigação ou
um contrato mediado por leis geradas na corte real (ver, também, 51,4-5). Esta
interpretação é reforçada pelo fato de que a metáfora da luz é aplicada aos reis
assírios e babilônios enquanto conquistadores (cf. PAUL, 2012, p. 138).
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O povo justo do Deus justo

Duas perícopes situadas em seções distintas do livro, mas vinculadas pela lin-
guagem quase apocalíptica, nos apresentam uma outra faceta da noção de justiça
– a moral ou ética. Estas perícopes são 26,7-21 e 63,15-64,11, ambas orações do
povo a Deus, ambas orações de súplica e/ou lamento diante da catástrofe social
e política. Outro aspecto em comum é que ambas as orações tratam do tema da
justiça em dois registros: (a) YHWH como Deus justo e praticante da justiça; e
(b) o povo de Deus como constituído de pessoas justas, mas que reconhecem
praticam a iniquidade.
Na oração em 26,7-21 temos um contraste entre o justo (v. 7) e o ímpio (v.
10). O justo é aquele cujo caminho é plano porque YHWH assim o torna. Este
justo é o que clama a Deus suplicando pela sua salvação, pela sua vinda e pela
outorga da paz - posto que vive sob o domínio de nações ímpias – impiedade,
aqui, é a prática do ‘mal’, ou seja, a dominação injusta sobre o povo de Judá.
Temos, aqui, uma alusão polêmica a Habacuque, na afirmação do v. 10 “ainda
que se mostre favor ao ímpio, ele não aprende a justiça (‫ ;) = צֶ֔ ֶדק‬até na terra da
retidão ele pratica a iniquidade, e não atenta para a majestade de YHWH”. Na
súplica a YHWH por libertação, a comunidade que ora reivindica o fato de ter
sido feita justa por YHWH como a base para o seu pedido: “a oração abre no v.
7 com uma confissão que será o tema de todo o resto do poema, que o caminho
de vida daquele que permanece fiel a Yahweh e é, portanto, considerado justo
por ele (cf. 26,2), é plano e reto, porque o próprio Yahweh o aplaina e remove
os obstáculos de seu caminho (Sls 25,10; 27,11; Pv 1,3; 2,9 e Sl 1,6)” (KAISER,

Um Olhar Bíblico Sobre a Justiça


130 UNIDADE III

1969, posição 5447-5450) – note-se que Kaiser não reparou na alusão a Is 40,3-
5, onde o aplainar das veredas é símbolo da saída da Babilônia e volta à terra.
Já na oração do capítulo 63-64, o suplicante não se baseia em sua justiça, mas
reconhece a sua injustiça e apela à misericórdia de YHWH (63,15). Entretanto,
apresenta sua demanda a YHWH: “Ó YHWH, por que nos tornas errantes? Por
que endureces o nosso coração, para que te não temamos? Volta, por amor a teus
servos e das tribos da tua herança” (63,17). Na segunda parte da oração (64,1-1)
a comunidade orante suplica pela vinda de YHWH para que seja justa, reco-
nhecendo que ainda não o é: “Mas todos nós somos como o imundo, e todas as

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nossas justiças, como trapo da imundícia; todos nós murchamos como a folha,
e as nossas iniquidades, como um vento, nos arrebatam” (64,6 = 64,5 TM).
Reconhecida a própria injustiça, a culpa pela condição sob dominação, a súplica
é por libertação porque YHWH é justo e age em benefício dos seus (64,4-5).
Esta longa perícope é uma súplica nacional refletindo as terríveis cir-
cunstâncias e o amargo desespero diante da ostensiva negligência de
Deus em relação a seu povo (cf. 59,9-13, e ver Sls 44; 60; 74; 79; 80; 83;
85; 89; 90; 94, 106). A súplica do profeta se apoia sobre a disparidade
entre os milagres de Deus nos dias antigos (no Egito, diante do Mar
Vermelho, e, subsequentemente, no deserto) e seu abandono presente
de Israel (a destruição do Templo e das cidades de Judá) que tornou o
povo desesperado e o fez se afastar de Seu caminho. Após a introdução,
na qual a bondade do Senhor é proclamada através de uma declara-
ção genérica (v. 7), o profeta rememora em relação às suas bondades
anteriores (v. 8-9). De modo contrário à expectativa, porém, a nação
se rebelou contra o Senhor e, assim, tornou-se sua inimiga e ele guer-
reou contra ela (v. 10). Em sua hora de necessidade, a nação relembra a
compaixão de Deus no passado, especificamente os milagres no mar e
no deserto (v. 11-14). Note-se as conexões temáticas e linguísticas entre
esta seção e o Sl 106,4-10 (PAUL, 2012, p. 588).

Temos, aqui, o uso da adjetivação ‘justo’ de modo típico no período pós-exílico,


referindo-se a pessoas e ao povo de Deus como pessoas e povo que buscam a
YHWH e, por isso, são justos. Aqui, em Isaías, porém, ‘justo’ não é um adjetivo
moral, pois os orantes reconhecem sua iniquidade e infidelidade à aliança. Justo
é, portanto, o povo que foi libertado por YHWH da dominação militar opres-
sora de povos estrangeiros – recebeu a justiça de Deus enquanto salvação e é,
assim, ‘salvo’, ou seja, membro do povo da aliança com YHWH.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


131

RUMO A UMA TEOLOGIA DA JUSTIÇA

Que aspectos ressaltam nesta breve descrição do uso dos termos para justiça em
Isaías? Em primeiro lugar, a noção de justiça é contextual, ou seja, varia con-
forme varia o contexto de escrita do livro, especialmente em relação aos agentes
da justiça. Em segundo, é uma noção predominantemente relacional e só pode
ser entendida no âmbito do relacionamento entre YHWH e seu povo, que é
tematizado na Bíblia Hebraica predominantemente como uma aliança. Em ter-
ceiro, a noção de justiça é teológica, fundada na ação de YHWH em favor de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

seu povo, de modo que cobre os campos semânticos da libertação, do governo


justo, da justiça social, da justiça moral e da justiça punitiva ou retributiva. Em
quarto lugar, é uma noção prioritariamente política, ora destacando os governan-
tes como agentes da justiça de YHWH junto ao povo, ora destacando o povo e as
pessoas em geral como agentes da justiça – conforme os contextos de ocorrên-
cia dos termos. Em quinto lugar, dentro do âmbito da política a noção de justiça
é conflitivamente fraca – ou seja, embora o poder de YHWH esteja na fonte da
prática da justiça, é um poder libertador e não dominador, de modo que, no
Segundo Isaías, é o escravo quem melhor representa YHWH como agente de
justiça e libertação, apesar de Ciro ser usado para derrotar a Babilônia e possibi-
litar o retorno dos judaítas a sua terra. Em sexto, é uma noção também judicial
ou forense (para usarmos um termo tradicional das teologias sistemáticas), mas
devemos entender esta dimensão nos limites do exercício do direito no antigo
Israel, que não corresponde de modo algum ao exercício moderno do direito nos
Estados de direito. Por fim, em sétimo lugar, é uma noção esperançosa – para o
povo que está sob a dominação, é a fonte de esperança de que a situação con-
creta em que vivem não é a palavra final, não é o fim da história.
Conseguimos, assim, encontrar uma coerência temática da noção de justiça
no livro de Isaías, sem abrir mão de sua contextualidade. Se buscamos unifi-
car em um termo as sete dimensões do conceito que alistamos anteriormente,
eu optaria pela palavra crítica: a noção isaiânica de justiça é uma noção crítica,
radicalmente crítica poderíamos dizer. Isto é, a justiça não é uma realidade dada
e permanente, é uma dádiva divina que se concretiza em uma demanda cons-
tante de prática da justiça que jamais se concretiza em sua plenitude. Pertence,

Um Olhar Bíblico Sobre a Justiça


132 UNIDADE III

portanto, ao horizonte da futuridade e não é à toa que estará presente de modo


intenso no messianismo judaico e também no messianismo cristão. Enfim, antes
de avançarmos na conceituação, uma nota importante: a concentração da inter-
pretação dos textos paulinos na dimensão forense da noção veterotestamentária
de justiça oferece uma distorção da noção e, embora esta seja uma das dimen-
sões do conceito, não é a dimensão predominante e uma revisão coerente da
leitura de Paulo se faz urgentemente necessária.
Ao construir um conceito teológico de justiça a partir de Isaías e da Escritura
Hebraica, entramos em um mundo radicalmente distinto do mundo da justiça

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distributiva do pensamento clássico grego (especialmente em sua versão platô-
nica), baseado no princípio do cálculo proporcional: a cada um conforme lhe é
devido. Por exemplo, em Aristóteles (1996, p. 199):
O justo nesta acepção é, portanto, o proporcional, e o injusto é o que
viola a proporcionalidade. Neste último caso, um quinhão se torna
muito grande e outro muito pequeno, como realmente acontece na
prática, pois a pessoa que age injustamente fica com um quinhão muito
grande do que é bom e a pessoa que é tratada injustamente fica com um
quinhão muito pequeno. No caso do mal o inverso é verdadeiro, pois
o mal maior, já que o mal menor deve ser escolhido em preferência ao
maior, e o que é digno de escolha é um bem, e o que é mais digno de
escolha é um bem ainda maior.

À semelhança com o mundo grego, encontramos apenas a dimensão corretiva


ou punitiva da justiça, que, aliás, está presente em praticamente todas as cultu-
ras do período sob estudo.
Entramos, sim, em um mundo que, de acordo com Rainer Forst, é o mundo
conceitual mais adequado para se entender a justiça:
[...] é especialmente importante, quando lidamos com questões de jus-
tiça distributiva, reconhecer a dimensão política da justiça e nos libe-
rarmos de uma imagem unilateral fixada em quantidades de bens (ou
em uma medida de bem-estar a ser produzida por esses bens). Em uma
segunda imagem, mais completa e adequada, por contraste, a justiça
deve ser vinculada a relações e estruturas intersubjetivas, e não a estados
subjetivos ou putativamente objetivos da provisão de bens ou de bem-es-
tar [...] Em síntese, a questão básica da justiça não é o que você tem, mas
como você é tratado (FORST, 2014, p. 6, grifos do original).

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


133

Do ponto de vista de seu conteúdo, os textos isaiânicos sobre justiça giram


ao redor da questão considerada por Forst como a básica do conceito de jus-
tiça: ‘como você é tratado?’ (com justiça ou injustamente) e, mais, ao redor
da mesma questão, expressa, porém, em termos afirmativos: ‘como você trata
os demais?’. Como a justiça a ser praticada por seres humanos é expressão da
justiça de YHWH, o modo como YHWH trata os povos e pessoas é o funda-
mento teológico da justiça. Não devemos, todavia, entender esta afirmação em
modo metafísico, como se a justiça divina fosse uma realidade transmundana
que devêssemos incorporar e dar forma histórica. A ação justa de YHWH é
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concebida na Escritura hebraica como ação histórica ou sociopolítica, pode


ser percebida na vida das pessoas e dos povos, não é aprendida mediante o
raciocínio abstrato ou mediante a contemplação de mistérios ou ideias trans-
cendentes. Podemos trazer, aqui, ao diálogo uma antiga afirmação de Gutierrez
(1975, p. 252):
conhecer a Yahvé, o que na linguagem bíblica significa amar a Yahvé, é
estabelecer relações justas entre as pessoas, é reconhecer o direito dos
pobres. Ao Deus da revelação bíblica se conhece através da justiça in-
ter-humana. Quando esta não existe, Deus é ignorado, está ausente.

Consequentemente, não podemos conceber a justiça isaiânica apenas como uma


libertação no sentido ‘distributivo’: pessoas pobres passam a ser proprietárias de
terras e ter o suficiente para viver. Semelhantemente, não podemos pensar neste
conceito apenas como um conceito político de justiça, equivalente à libertação.
Diríamos que a satisfação das necessidades econômicas é um dos fatores inte-
grantes da vida justa (ou, usando a linguagem de Isaías, da vida plena da paz),
mas não equivale à justiça enquanto tal; assim como a existência enquanto nação
soberana é um dos fatores pertencentes à justiça, mas também não equivale à
justiça em sua plenitude.
Em primeiro lugar, fazer justiça é tratar o outro como irmã ou irmão, como
parceiro de uma aliança. A berith em Isaías é fundamentalmente um relaciona-
mento de fidelidade baseado no agir de YHWH, logo, é uma dádiva e não uma
obrigação. É a fidelidade que fundamenta as normas consuetudinárias da justiça
enquanto ‘direito’. O julgamento justo é o julgamento fiel, baseado na verdade e
na solidariedade – por isso, não consiste apenas em emitir a sentença correta,

Um Olhar Bíblico Sobre a Justiça


134 UNIDADE III

mas em defender os direitos de quem os teve violados. Assim, uma sociedade


justa é, primariamente, uma sociedade em que as pessoas tratam umas às outras
com pleno reconhecimento. (Para o conceito de reconhecimento remeto às obras
de Axel Honneth e para a discussão da relação entre reconhecimento e justiça,
às de Rainer Forst indicadas nas Referências Bibliográficas). E esse tratamento
inicia com o amor (a lealdade ou fidelidade entre pessoas iguais, participantes
do mesmo projeto de vida) e se desdobra nas diversas dimensões da vida social,
configurando-se como respeito mútuo concretizado de modos diferenciados
conforme a dimensão da vida social a que se aplica, constituindo-se, assim, em

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uma efetiva gramática das relações interpessoais em sociedade. Uma teoria crí-
tica do reconhecimento pode ser uma releitura adequada da noção de berith em
Isaías e na Escritura em geral.
Em segundo lugar, partindo do reconhecimento mútuo como base das rela-
ções justas e fieis, fazer justiça é tratar o outro como uma pessoa autônoma,
capaz de apresentar razões que justifiquem as suas escolhas de vida privada e
pública, de modo que sua liberdade não seja tolhida e seu modus vivendi seja
respeitado e valorizado como um modo plenamente humano de viver. Aqui,
evocamos o direito à justificação como o direito básico da justiça na teoria de
Forst (2012, p. 7):
Seres humanos autônomos formulam seus juízos morais e políticos in-
dependentemente, e os avaliam criticamente com a prática; ao mesmo
tempo, deles se requer que justifiquem tais juízos, que deliberem co-
letivamente a respeito de todas as suas consequências para as pessoas
afetadas em modos politicamente relevantes, e que decidam de acordo.
A primeira tarefa da justiça é tornar isto possível.

Podemos entender o direito à justificação como uma releitura consequente da


dimensão ética ou moral da noção de justiça em Isaías, especialmente conforme
vimos nas duas orações que estudamos ao final da seção anterior. O reconheci-
mento de que agimos de forma injusta demanda a capacidade de autocrítica que,
por sua vez, demanda a capacidade de apresentar (ainda que a si mesmo) razões
que justifiquem a autoavaliação como pessoa injusta ou ‘pecadora’.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


135

Finalmente, na medida em que estas duas dimensões fundantes da vida justa


(reconhecimento mútuo e autonomia justificável) estejam ausentes, a dimensão
crítica do conceito de justiça retoma sua prioridade: fazer justiça é buscar liber-
tação ou emancipação e, podemos, mais uma vez, dialogar com Forst, para reler
o conceito isaiânico:
A demanda por justiça é uma demanda emancipatória, que é descrita
com termos como honestidade, reciprocidade, simetria, equidade ou
equilíbrio; colocando-a de modo reflexivo, sua base é a reivindicação
(clamor) de ser respeitado como um agente de justificação, isto é, em
sua dignidade própria como um ser que pode pedir e dar justificações.
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A vítima da injustiça não é, primariamente, a pessoa que sofre a falta


de certos bens, mas aquela que não ‘conta’ na produção e distribuição
de bens (FORST, 2012, p. 2).

Síntese

Apenas iniciei a construção de uma teoria teológica da justiça. Há muito cami-


nho ainda a percorrer, tanto na revisão das conclusões da pesquisa teológica
latino-americana sobre a libertação e a justiça, como na constituição de uma
nova linguagem e novas práticas compatíveis com o estado atual das socieda-
des humanas. Se, nos tempos áureos da Teologia da Libertação e da Teologia da
Missão Integral os termos conceituais que utilizamos foram predominantemente
os termos ‘coletivos’, agora precisamos ser capazes de construir nossa concep-
ção e prática integral da justiça a partir da irredutibilidade de cada pessoa (sem
negar as condições de classe, gênero etc.).

A justiça, então, precisa ser entregue, ao mesmo tempo, à singular absoluta


do próprio e à absoluta impropriedade da comunidade de existências. Ela
precisa ser entregue exatamente a ambos, a um e ao outro: esse é o jogo (ou
o sentido) do mundo.
(Jean-Luc Nancy)

Um Olhar Bíblico Sobre a Justiça


136 UNIDADE III

UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA – JUSTIÇA


ÉTICO-MORAL

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O que se deve justificar no campo ético? Segundo Forst (2002, p. 259), duas coisas:
(a) “a nível subjetivo, eu justifico ‘minhas’ decisões a mim mesmo e
àquelas pessoas que pertencem ao núcleo de minha identidade, elas
são importantes para mim por me dizem como me veem, como eu sou
para elas”; (b) “no aspecto de relevância comunitária, justificação ética
significa que uma comunidade com a qual indivíduos se identificam
procura responder à questão do que é bom ‘para nós’ com base em uma
auto compreensão comum”.

Como a sociedade é eticamente plural, inevitavelmente conflitos éticos farão


parte do cotidiano da democracia e deverão ser resolvidos, com base na justiça,
mediante o debate e a deliberação públicas.
Há diversas teorias e tendências intelectuais de explicação da pluralidade e do
pluralismo político. Optei por fazer nossa discussão a partir da Teoria da Justiça,
de John Rawls, uma das mais relevantes e discutidas teorias políticas contempo-
râneas. A apresentação da visão de Rawls (2000) se dá, ainda, juntamente com o
debate da mesma por Jürgen Habermas, que concorda basicamente com Rawls,
mas procura avançar em alguns pontos na busca da justiça social e da constru-
ção de democracias mais sólidas, plurais e includentes.

RAWLS: JUSTIÇA E O FATO DO PLURALISMO

A principal preocupação dos estudos do teórico norte-americano John Rawls


foi a consolidação da democracia em um mundo marcado pela diversidade

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


137

(pluralidade). Para ele, não só vivemos em uma era de diversidade, mas as demo-
cracias ocidentais já vivem debaixo do fato do pluralismo. Esse conceito é assim
definido em um glossário do livro Justiça e Democracia:
Fato do pluralismo: the fact of pluralism. A consequência do progres-
so das liberdades básicas – liberdade de consciência, de expressão, de
associação etc. - foi o surgimento de doutrinas conflitantes e irreconci-
liáveis entre si na cultura pública das democracias. Tornou-se impos-
sível para uma só doutrina reunir os sufrágios do conjunto dos cida-
dãos, salvo com o emprego da força. Por isso, a democracia não pode
ser justificada com base nos argumentos de uma doutrina específica
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(RAWLS, 2000, p. 377).

O fato do pluralismo é, para Rawls (2000), um desafio político e social de amplo


alcance. Diferentemente das sociedades europeias pré-modernas, em que, ape-
sar da diversidade, havia uma única doutrina abrangente explicativa da coesão
social, as sociedades modernas não mantém sua coesão pela unidade ideoló-
gica, mas pela legalidade jurídico-política. O reconhecimento da diversidade e
do “fato do pluralismo” ocorreu progressivamente na história moderna, tendo a
Paz de Westphalia sido o primeiro grande evento de tentativa de finalizar as guer-
ras religiosas, com sua decisão “a religião do rei será a religião do povo”, arranjo
que não se mostrou duradouro, pois contrariava a pluralidade. O arranjo que
temos até hoje – constituição democrática – tem sido o mais eficiente.
Reconhecido o fato do pluralismo, Rawls (2000) apresenta o problema
decorrente:
Uma sociedade democrática moderna se caracteriza por uma plurali-
dade de doutrinas abrangentes, religiosas, filosóficas e morais. Nenhu-
ma dessas doutrinas é adotada pelos cidadãos em seu conjunto. E não
se deve esperar que isso aconteça num futuro previsível. O liberalis-
mo político pressupõe que, por razões políticas, uma pluralidade de
doutrinas abrangentes incompatíveis entre si é o resultado normal do
exercício pelos cidadãos de sua razão no seio das instituições livres de
um regime democrático constitucional. Ele pressupõe igualmente / que
existe pelo menos uma doutrina abrangente razoável que não rejeita
os elementos essenciais de um regime democrático. É claro que uma
sociedade pode também comportar doutrinas irracionais ou mesmo
delirantes. O problema, então, será limitá-las para que não destruam a
unidade e a justiça da sociedade (RAWLS, 2000, p. IX-X).

Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Ético-Moral


138 UNIDADE III

Como, então, manter a coesão social diante da pluralidade? Como uma sociedade
pode ser unida e justa quando seus cidadãos não concordam unanimemente em
relação às grandes explicações da vida e da sociedade? O problema não é o plura-
lismo cultural, mas a pluralidade de doutrinas abrangentes – ou seja, de modos de
construção de sistemas de valores e de sistemas explicativos da vida como um todo
(também chamados de cosmovisões). No caso brasileiro, por exemplo, a pluraliza-
ção interna do Cristianismo (católico, protestante, pentecostal e neopentecostal)
fez surgir uma diversidade de doutrinas abrangentes, que competem no espaço
público pela hegemonia – causando, muita vez, problemas políticos de monta.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Voltando a Rawls (2000, p. X):
Em conclusão, o problema do liberalismo político é saber como uma
sociedade democrática estável e justa, composta por cidadãos livres e
iguais, mas profundamente divididos por doutrinas - religiosas, filosó-
ficas e morais – incompatíveis entre si, pode existir de maneira durável.
Dito de outra forma, como é possível que doutrinas profundamente
opostas, cada uma delas querendo ser abrangente, coexistam e apoiem
a concepção política representada pela democracia constitucional?.

Finalizando este texto, cabe refletir sobre as implicações missiológicas do problema


derivado do fato do pluralismo. Em linhas gerais, duas atitudes missionárias (e
missiológicas) entram em oposição: uma atitude de Cristandade, mediante a qual
a Igreja tem como projeto missionário a hegemonia política sobre a sociedade,
visando impor a sua doutrina abrangente ao conjunto de cidadãos (um retorno, por
assim dizer, ao mundo medieval), abolindo, na prática, a separação Igreja-Estado.
Essa atitude, mais tipicamente católico-romana, também pode ser vista em atos
missionários, pregações e atos políticos de líderes pentecostais e neopentecostais
que desejam impor os “valores cristãos” a todos os cidadãos com a força da Lei.
A segunda atitude missionária é a do serviço. A Igreja não visa impor, com
força legal, sua doutrina abrangente sobre os cidadãos, mas se esforça por –
amorosamente e informalmente (do ponto de vista legal e político) – anunciar
integralmente o Evangelho a todas as pessoas, visando convencê-las da qualidade
do projeto cristão de vida e, sem imposição de qualquer tipo, reuni-las ao rebanho
de Deus. Com esta atitude, a Igreja em missão reconhece o fato do pluralismo
e tolera as diferentes identidades presentes na sociedade em que ela vive e atua.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


139

Para finalizar esta discussão mais teórica, uma longa mas importante cita-
ção. No próximo texto trataremos da questão da relação entre o pluralismo e a
democracia como solução para o dilema de Rawls.
Isaiah Berlin, com alguma ironia, destaca a inviabilidade de uma sociedade
não plural nos tempos atuais:
A noção de um todo perfeito, a solução última, na qual todas as boas
coisas coexistem, me parece não só meramente inalcançável – o que
seria um truísmo – como conceitualmente incoerente; eu não consi-
go compreender o que quer dizer uma harmonia desse tipo. Alguns
dentre os Grandes Bens não podem viver juntos. Isso é uma verda-
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de conceitual. Nós estamos fadados à escolha, e toda escolha pode


implicar uma perda irreparável. Felizes são aqueles que vivem sob
uma disciplina que aceitam sem questionar, que livremente aceitam
as ordens de líderes, espirituais ou temporais, cuja palavra é aceite
enquanto lei inviolável; ou ainda aqueles que atingiram, por méto-
dos próprios, convicções claras e inquestionáveis sobre o que fazer e
quem ser, sem que se possa duvidar. Posso apenas dizer que aqueles
que repousam sobre as camas tão confortáveis do dogmatismo são
vítimas de formas de estreiteza de perspectivas, cabrestos que podem
trazer contentamento, mas não entendimento sobre o que é ser hu-
mano (BERLIN, 1997, p. 11).

HABERMAS: PLURALISMO E DEMOCRACIA

Do ponto de vista social e político, o problema de uma sociedade liberal é a


coesão de seus cidadãos, pois a dignidade individual facilmente dá azo ao indi-
vidualismo – o que vemos hoje em dia com a dominação do Mercado e sua
visão consumista da vida. Quando o individualismo se torna predominante na
prática cotidiana, a vida política como um todo é afetada, e projetos nacionais
deixam de ter força, sendo substituídos por projetos individuais, parciais, em
busca de hegemonia política e social. Não é, porém, apenas o Mercado que pos-
sibilita a permanência do individualismo, também a falta de visão histórica e a
perda (ou ausência) de tradições suficientemente fortes para enfrentar o pro-
blema do individualismo.

Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Ético-Moral


140 UNIDADE III

Comentando a proposta de Habermas, Luiz Araújo assim descreve a condi-


ção tradicional para a cidadania:
a cidadania é vista através do modelo da pertença a uma comunidade
ético-cultural que se determina a si mesma, ou seja, os indivíduos estão
integrados na comunidade política como partes de um todo, de tal ma-
neira que, para formar sua identidade pessoal e social, necessitam do
horizonte de tradições comuns e de instituições políticas reconhecidas
(ARAÚJO, 2010, p. 130).

Habermas (2006) sustenta a tese de que, em nosso mundo atual, o Estado (as
instituições políticas reconhecidas) já não é mais capaz de garantir aos cidadãos

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o livre e inteligente acesso aos meios de construção de sua identidade e de sua
cidadania. Em sua própria terminologia:
os motivos para uma participação dos cidadãos na formação de opinião
e da vontade política se nutrem, certamente, de projetos éticos de vida
e de formas culturais de vida. [...] Entre cidadãos só pode surgir uma
solidariedade, como sempre, abstrata e mediada juridicamente, se os
princípios de justiça encontrarem lugar no entramado mais denso de
orientações axiológicas de caráter cultural (HABERMAS, 2006, p. 111s.).

Quando as “orientações axiológicas de caráter cultural” (o equivalente haberma-


siano das doutrinas abrangentes de Rawls) entram em conflito, a coesão social e
a democracia são ameaçadas e correção de rumos deve ser tomada para garan-
tir a justiça social (pressuposta como um valor democrático). Para Habermas, o
que pode corrigir os rumos de uma sociedade descarrilada é o debate público, a
participação intensa e crítica dos cidadãos na formação da opinião pública e das
políticas públicas. Em outras palavras, a solução para a democracia ameaçada é
uma democracia deliberativa, cidadã, participativa – na qual os cidadãos sejam
capazes de, mediante o diálogo, alcançar consensos políticos sobre a vida em
comum – sem imposição de uma orientação axiológica ao conjunto dos cidadãos.
Dito isto, estreito o foco para a visão de Habermas sobre o papel das religi-
ões na deliberação pública, destacando dois passos de seu argumento:
(1) O Estado liberal tem interesse em que se permita o livre acesso das vo-
zes religiosas tanto na esfera público-política como na participação políti-
ca das organizações religiosas. O Estado não pode desalentar os crentes e
as comunidades religiosas de tal modo que se abstenham de manifestar-se
como tais também de modo político, pois não pode saber se, em caso con-
trário, a sociedade secular não se estaria desconectando e privando de im-
portantes reservas para a criação de sentido (HABERMAS, 2006, p. 138).

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


141

No debate público, então, além das doutrinas abrangentes de cunho secular, tam-
bém as religiosas devem estar presentes no esforço de alcançar consensos viáveis.
Isto porque “as tradições religiosas possuem uma força especial para articular
intuições morais, sobretudo em atenção às formas mais sensíveis da convivên-
cia humana” (HABERMAS, 2006, p. 139). É aqui que, no caso brasileiro, por
exemplo, encontramos os principais conflitos. A articulação religiosa de intui-
ções morais não pode ser feita, porém, de modo estratégico – ou seja, visando a
imposição de uma moralidade sobre o conjunto da sociedade. Os cidadãos reli-
giosos, portanto, devem participar da vida público de tal modo que a sua doutrina
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abrangente não seja apresentada no modelo da Cristandade.

Jürgen Habermas, como Rawls, é um defensor do liberalismo político – a


doutrina baseada na dignidade e nos direitos individuais da pessoa huma-
na. O liberalismo concorre com o republicanismo – a visão que dá prioridade
ao arranjo jurídico-político da República, e com o multiculturalismo – a visão
que dá prioridade aos direitos de identidades coletivas.
Fonte: o autor.

Na linguagem habermasiana, a força da religião deve ser matizada pela atitude


compassiva das pessoas religiosas, posto que somente
na medida em que consigam evitar o dogmatismo e a coerção sobre
as consciências, permanece intacto [nas religiões] algo que se perdeu
em outros lugares e que tampouco pode ser reproduzido apenas com
o saber profissional de especialistas: refiro-me aqui às possibilidades
de expressão e a sensibilidade suficientemente diferenciadas para falar
da vida malograda, das patologias sociais, dos fracassos dos projetos
individuais e da deformação dos contextos de vida desfigurados (HA-
BERMAS, 2006, p. 139).

Eis o desafio missiológico: participar da vida pública de modo compassivo e não


no modo da Cristandade. O Cristianismo, particularizando a discussão haber-
masiana, é a fé marcada pelo amor, fundada na ação compassiva de Deus, no

Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Ético-Moral


142 UNIDADE III

Messias, que amou e incluiu os pecadores em sua família. As Igrejas Cristãs, em


missão, deveriam, então, ser capazes de dar voz profética à “vida malograda”, às
“patologias sociais” e à “deformação dos contextos da vida desfigurados” pelo
pecado estruturado nas instituições humanas. Ao mesmo tempo, deve estar aberta
a acolher as pessoas que fracassaram em seus “projetos individuais” e lhes ofe-
recer espaço para restauração e renovação.
Assim, sendo decididamente cristão, o povo de Deus pode atuar politicamente
de cabeça erguida, e defender a justiça social sem abrir mão de sua identidade.

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UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA – JUSTIÇA LEGAL

Em sociedades democráticas, para que haja justiça no âmbito da legalidade, é


indispensável que as pessoas legais sejam, elas mesmas, autoras da lei. Neste caso,
a ‘pessoa legal’ é, também, ‘pessoa política’, ou seja, cidadã e deve participar dos
processos de justificação das leis e normas que regem a sua comunidade ou país.
Enquanto pessoas legais, são responsáveis ‘perante’ a lei; enquanto cidadãs, são
responsáveis ‘pela’ lei. A justiça, no campo da lei, deve garantir que cada pes-
soa possa buscar sua autorrealização sem impedimentos coercitivos. Todavia,
a ‘razoabilidade’ demandada das pessoas legais é moralmente exigente:
a autonomia legal pressupõe, não somente o respeito recíproco e a tole-
rância, como deveres legais mútuos, mas também a imputabilidade e a
responsabilidade por suas próprias ações (FORST, 2002, p. 264).

Neste campo, deve-se, também, levar em consideração que, em sociedades plu-


rais, as leis não serão capazes de estabelecer justiça para todas as comunidades
éticas, de modo que sempre se deve existir um espaço para, não só modificar as
leis, como também, para resistir ‘legalmente’ às leis (como no caso da desobedi-
ência civil, por exemplo). A demanda moral sobre a pessoa legal e política implica
em que ela seja, quando necessário, porta-voz de quem não tem voz em uma dada
sociedade, colaborando com a busca de justiça pelas pessoas vítimas da injustiça.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


143

Como vimos na Unidade sobre o reconhecimento mútuo, nas sociedades


complexas a coesão social não pode ser garantida apenas mediante as relações
interpessoais ou institucionais da economia e da política. Precisamos, também,
do Direito como mecanismo de proteção e garantia de realização simultânea da
autonomia individual, da formação geracional e do reconhecimento intersubje-
tivo. Ao discutir uma teologia pública da dimensão legal da justiça, focalizaremos
apenas aqueles aspectos do Direito que contribuem mais diretamente para a
busca da justiça em uma perspectiva missional cristã.
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O DIREITO ENQUANTO MECANISMO DE COESÃO DA


PLURALIDADE SOCIAL

Iniciemos, portanto, com as características do Direito moderno, que é fruto de


uma formação social e econômica que se constrói a partir da junção entre: (a)
os direitos individuais; (b) a legalidade constitucional; (c) a iniciativa econômica
no regime de Mercado; e (d) a centralização burocrática do Estado. Os Estados
modernos são, então, chamados de Estados de Direito, pois sua legitimidade se
baseia exatamente na Constituição e no sistema de leis formalmente sistemati-
zadas em um corpo de documentos ao qual se denominou de Direito Positivo.
A validade das leis e normas do Estado de Direito, por sua vez, depende da legi-
timidade democrática dos processos eleitorais que estão na base da formulação
das leis pelo Poder Legislativo. “Distintamente das formas pré-modernas e pré-
-capitalistas, dominadas pela legitimidade tradicional e legitimidade carismática,
agora o Estado moderno consagra a legitimidade jurídico-racional, calcada na
despersonalização do poder, na racionalização dos procedimentos normativos
e na convicção de uma ‘obediência moralmente motivada’, associada a uma con-
duta correta” (WOLKMER, 1997, p. 42).
O Direito, assim entendido, é moderno na medida em que é fruto não só do
processo político de criação e desenvolvimento dos Estados-nação europeus,
rumo à sua democratização, mas também do concomitante processo episte-
mológico de racionalização, componente do processo de secularização (que
estudamos em Sociologia Geral e da Religião), mediante o qual a ordem sagrada

Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Legal


144 UNIDADE III

da idade medieval foi substituída por uma cosmovisão antropocêntrica, raciona-


lista, e que encontrou no Estado o único garantidor da ordem legítima e, assim,
da coesão social.
Desde uma perspectiva socioantropológica, assim se define a função coe-
siva do Direito:
a função primordial do Direito em todos os lugares não é a resolução
de conflitos, mas sim a instituição de uma ordem pacífica interna das
relações sociais de qualquer associação humana. Assim, pois, o centro
gerador do Direito, em qualquer época, não deve ser procurado ‘na le-
gislação nem na jurisprudência, nem na doutrina ou tampouco no sis-

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tema de regras, senão na própria sociedade’ (WOLKMER, 1997, p. 179)

Se vincularmos esta afirmação com a definição do reconhecimento em Honneth,


percebemos que o Direito moderno desempenha sua função de mediador da
coesão social na medida em que possibilita, institucionalmente, o reconheci-
mento da igualdade de direitos e responsabilidades democráticas dos cidadãos
em sociedades nas quais a desigualdade real ameaça constantemente a sua coesão.

O DIREITO ENQUANTO FORMAÇÃO NORMATIVA DA VONTADE


COLETIVA

O Direito moderno, portanto, é tanto a expressão das forças sociais normativas,


quanto da legislação formal do Estado. Neste caso, é fundamental examinar a sua
validade democrática na medida em que esta é que possibilita ao Direito man-
ter sua força coesiva da ordem sociocultural. O trabalho de Jürgen Habermas
se constitui em uma ampla análise crítica da constituição da lei nas sociedades
democráticas modernas, destacando a tensão entre a facticidade (o caráter fac-
tual, o simples fato de algo existir) do sistema representativo e a sua validade
ou legitimidade. Na concepção dogmática do Direito Positivo, a ordem legal é
válida pelo simples fato de existir, pela sua própria facticidade. A proposta de
J. Habermas aponta exatamente para a dissolução dessa concepção dogmática,
ao indicar que a facticidade do sistema legal não é suficiente para constituir sua
validade, a qual deve ser construída a partir da ação comunicativa de toda a
sociedade, e não apenas do aparato estatal.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


145

Não é nosso interesse descrever e criticar a tese global de J. Habermas mas,


apenas, destacar elementos da mesma que podem contribuir para o nosso obje-
tivo neste texto. Por isso, o foco da descrição recairá sobre o modelo por ele
proposto para estudar o desenvolvimento da lei – das sociedades pré-moder-
nas até as modernas. De um ponto de vista histórico, não só o Direito Positivo
deve ser percebido como uma construção sociohistórica específica, mas também
deve ser abandonado como pressuposto de análise do Direito nas sociedades
pré-modernas. Para estas, é necessário construir modelos adequados ao seu pró-
prio processo histórico. Habermas sintetiza o processo histórico de construção
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

do Direito moderno, a partir da transformação da sociedade europeia medieval.


Um direito convencionalizado separou-se da moral racional pós-con-
vencional, tornando-se dependente das decisões de um legislador po-
lítico, o qual podia programar não somente a justiça, mas também a
administração, sem estar ligado a nenhuma outra norma a não ser a da
“razão natural”. No círculo que envolvia o poder entendido instrumen-
talmente e o direito instrumentalizado, abriu-se uma brecha carente de
legitimação, que o direito racional queria fechar, ou melhor, tinha que
fechar, lançando mão da razão prática. Pois as condições de constitui-
ção desse complexo evolucionário envolvendo o direito e a política [...]
foram feridas na medida em que o poder político não podia mais legi-
timar-se por intermédio de um direito legítimo a partir de si mesmo. A
razão deveria substituir a fonte sagrada do direito, que estava secando.
O direito racional, que ficara preso ao encanto dogmático da constru-
ção tradicional de um poder de dominação autorizado por um direito
super positivo, não conseguiu sobrepujar a ideia de um antagonismo
primordial entre direito e poder. A implosão da abóbada do direito sa-
grado deixou para trás as ruínas de duas colunas, a saber: a do direito
instaurado politicamente e a do poder utilizável instrumentalmente;
impunha-se a busca de um substituto racional para o direito sagrado,
que se autorizava por si mesmo, capaz de recolocar a verdadeira auto-
ridade nas mãos do legislador político, entendido como detentor do
poder (HABERMAS, 1997, p. 175).

Sintetizando e traduzindo a terminologia técnica habermasiana, podemos afirmar


que o Direito moderno não mais se fundamenta em conceitos morais ou religio-
sos, como nas sociedades pré-modernas. No mundo atual, o Direito se fundamenta
na racionalidade do processo de formação de leis e na autonomia do Estado em
relação às doutrinas abrangentes (laicidade). Agora, o Direito não pode mais ser
visto como imutável, transcendental, mas como a expressão da coesão e das lutas

Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Legal


146 UNIDADE III

socioculturais em busca da concretização de direitos individuais ameaçados pelas


desigualdades naturais e econômicas. Assim, a validade do Direito depende da
legitimidade dos processos democráticos de eleição e formulação das leis. Assim,
o Direito como pré-condição para o reconhecimento cidadão e, simultaneamente,
como fruto da ação cidadã democrática, exerce seu papel de mediar a coesão social.

DIREITO E INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Focalizei a questão do Direito nas sociedades modernas, e muito poderia ser dis-
cutido neste aspecto no tocante às relações entre Direito e religião. Entretanto,
agora volto minha atenção ao antigo Israel. Como exemplo de utilização deste
conceito para o estudo de sociedades antigas, como a de Israel, por exemplo, a
que nos dedicaremos no próximo Módulo de nosso curso, descreverei, a seguir,
de modo bastante sintético as práticas do direito no mundo oriental antigo, de
modo que possamos entender melhor textos bíblicos quando os estudarmos.
A partir de uma perspectiva histórico-antropológica, podemos afirmar que o
direito – nas sociedades antigas – exerce duas funções básicas, a de arbitragem de
litígios e a de formação da vontade coletiva. A primeira se refere à estabilização de
expectativas de comportamento, no caso de conflito, ao passo que a formação coletiva
da vontade se refere à escolha e realização efetiva de fins capazes de consenso. A cada
função correspondem dois processos gerais de ação, um motivado por normas; outro
motivado por interesses, o que pode ser sumariado por meio do seguinte quadro:
Quadro 1 - Funções do Direito

PROBLEMAS PERSECUÇÃO DE OBJETIVOS


REGULAÇÃO COLETIVOS
DE CONFLITOS
COORDENAÇÃO INTERPESSOAIS Colocação de
Implementação
DA AÇÃO ATRAVÉS DE: objetivos
Decisão através de Poder de
Orientações valorativas Consenso
autoridade mando através
de uma divisão
Formação do de trabalho
Situação de interesses Arbitragem
compromisso organizada
Fonte: Habermas, 1997, p. 178.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


147

Quando a resolução de problemas e a coordenação da ação se dão em função


de interesses, temos uma ordem jurídica fundada em um sistema de status
baseado no prestígio de clãs e na diferenciação de funções, e esse sistema
representa uma estrutura normativa ancorada em cosmovisões religiosas e
práticas mágicas. Por outro lado, somente quando a ação é coordenada através
de orientações valorativas é que a arbitragem de litígios através do consenso
e a formação da vontade coletiva dirigida por autoridade se apoiam imedia-
tamente num complexo normativo, no qual os costumes, a moral e o direito
ainda se encontram interligados, de modo tal que não se pode falar ainda em
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

uma ordem de direito.


As sociedades antigas passaram por um processo de desenvolvimento polí-
tico simples (organização tribal), para modelos de organização mais complexos
(monarquias). Com o fim da organização tribal de uma dada sociedade forma-
-se um Estado legitimado por um direito sagrado (que não é autônomo como
o Direito moderno, mas dependente da visão religiosa da sociedade), no qual o
rei-juiz “assume a administração dos bens salvíficos e se transforma no intérprete
exclusivo das normas da sociedade, reconhecidas como sagradas e moralmente
obrigatória” (HABERMAS, 1997,
p. 180). Quando isso acontece,
ocorre também, necessariamente,
uma alteração nas práticas de arbi-
tragem de conflitos, que passam
a se realizar através de um con-
junto de normas que ultrapassam
o status de obrigatoriedade moral,
pois passam a ser sancionadas pelo
Estado. “Ambos os processos,
que decorrem simultaneamente,
são interligados: a autorização do
poder através do direito sagrado
e a sanção do direito através do
poder social realizam-se uno acto”
(HABERMAS, 1997, p. 180).

Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Legal


148 UNIDADE III

Esse processo pode ser representado graficamente:

Poder social Direito sagrado


autorizado através de sancionado através
um direito sagrado de um poder social

Direito faticamente

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Poder legítimo
vigente

Direito estatal e poder


político

Figura 1 - A autorização do poder através do direito sagrado e a sanção do direito através do poder social
Fonte: adaptado de Habermas (1997, p. 180).

A partir deste modelo podemos, por exemplo, entender melhor alguns dos fenô-
menos jurídicos apresentados no Antigo Testamento. Vejamos o caso de Amós
5,12-15: “Pois sei que são muitas as vossas transgressões, e graves os vossos peca-
dos; afligis o justo, aceitais peitas, e na porta negais o direito aos necessitados.
Portanto, o que for prudente guardará silêncio naquele tempo, porque o tempo
será mau. Buscai o bem, e não o mal, para que vivais; e assim o Senhor, o Deus
dos exércitos, estará convosco, como dizeis. Aborrecei o mal, e amai o bem, e
estabelecei a justiça na porta. Talvez o Senhor, o Deus dos exércitos, tenha pie-
dade do resto de José”. O texto se refere aos julgamentos (arbitragem de conflitos)
que eram realizados nas portas das cidades, como meio de solução de confli-
tos locais. Amós denuncia a corrupção desses tribunais “informais”, nos quais
as decisões se baseiam no suborno e na negação do direito dos pobres. Por isso,
exorta aos anciãos que exercem o juízo: “Aborrecei o mal e amai o bem, estabe-
lecei a justiça na porta”.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


149

Há muito mais que poderia ser estudado sobre o direito e a coesão social,
entretanto os dados aqui descritos nos permitem formar uma noção básica das
relações entre o Direito e a ordem sociocultural – tanto no caso de sociedades
antigas (útil para o estudo exegético), quanto no caso de sociedades modernas e
contemporâneas (útil para o estudo da Teologia). Na disciplina de Ética Pública
discutiremos algumas das questões jurídicas e políticas que afetam de modo
mais direto a vida das instituições religiosas – de maneira que este texto pode
ser entendido como uma introdução ao estudo de temas mais amplos e desafia-
dores em outras disciplinas de nosso Bacharelado em Teologia.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA – JUSTIÇA


SOCIOECONÔMICA

Nossa realidade é fortemente marcada pela opressão política, econômica e cul-


tural, o que se traduz em fome, miséria, injustiça, forte distinção entre pobres e
ricos, alto índice de prostituição, violência a menores e marginalização. Como
resultado de uma miséria espiritual geradora do egoísmo, da ambição, e da
desumanidade, que se expressa ainda em sistemas político-econômicos des-
comprometidos com a justiça e o bem comum, convivemos, hoje, com uma
triste realidade de morte, de contrastes sociais, onde a miséria e a marginali-
zação mantêm milhões de pessoas em condições sub-humanas. Denominando
este contexto de “sociedade de crucificados”, o teólogo brasileiro Leonardo Boff
utiliza as seguintes palavras:
há uma cruz dolorosa e persistente que pesa sobre as culturas domina-
das dos indígenas e dos negros latino-americanos... milhões e milhões
de classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salários de
fome, em condições de trabalho que lhes encurtam a vida... Outras pes-
soas penam sob a cruz da discriminação pelo fato de serem mulheres,
pobres, negros e outras formas de exclusão social (BOFF, 1986, p. 19-
20).

Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Socioeconômica


150 UNIDADE III

Vale ressaltar que no momento da inserção da Visão Mundial no Brasil, na década


de 70, à semelhança de todo o contexto latino-americano, o país passava por
intensas transformações sociais. Ronaldo Muñoz, citando o documento produ-
zido pelo Concílio Católico de Puebla, realizado no México, em 1979, descreve
os dramas de tal realidade social:
lançando um olhar sobre nosso mundo latino-americano, nos depara-
mos com a verdade de que aumenta, cada dia mais, a distância entre
os muitos que têm pouco e os poucos que têm muito. Estão sendo vio-
lados os direitos fundamentais do ser humano. Comprovamos, pois,
como o mais devastador e humilhante flagelo a situação de pobreza de-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sumana em que vivem milhões de latino-americanos e que se exprime,
por exemplo, em mortalidade infantil, em falta de moradia adequada,
em problemas de saúde, salários de fome, desemprego e subemprego,
desnutrição, instabilidade no trabalho, migrações maciças, forçadas e
sem proteção. Somam-se a isto as angústias produzidas pelo abuso do
poder, típicas de regime de força... Angústias ante uma injustiça sub-
missa e manietada (MUÑOZ, 1981, p. 14).

O sistema em que estamos inseridos, marcado pelo consumismo e pela busca


escalonária de produção, classifica e valoriza o ser humano por sua capacidade
de produzir. Por isso, crianças, idosos, doentes e indígenas, que “nada produzem”,
mas que, ao contrário, são causa de “gastos” aos cofres do sistema, representam
quase que nenhum interesse. Com isso, o ser humano é agredido em sua digni-
dade. A imagem de Deus é ultrajada, violentada.
Analisando esta realidade que mantém as grandes massas em situação de
pobreza desumana e intolerável opressão, Muñoz (1981) descreve com detalhes
as feições do Cristo que se solidariza com o seu povo:
esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, fei-
ções sofredoras de Cristo, o Senhor, que nos questiona e interpela: fei-
ções de crianças, golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer...; feições
de jovens, desorientados por não encontrarem seu lugar na sociedade e
frustrados... feições de indígenas... e também de afro-americanos, que,
vivendo segregados e em situações desumanas, podem ser considera-
dos como os mais pobres dentre os pobres; feições de camponeses, que,
como grupo social, vivem relegados ..., em situação de dependência in-
terna e externa, submetidos a sistemas de comércio que os enganam e os
exploram; feições de operários, com frequência mal remunerados, que
tem dificuldade de se organizar e defender os próprios direitos; feições

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


151

de subempregados e desempregados, despedidos pelas duras exigências


das crises econômicas e, muitas vezes, de modelos desenvolvimentistas
que submetem os trabalhadores e suas famílias a frios cálculos econô-
micos; feições de marginalizados e amontoados de nossas cidades, so-
frendo o duplo impacto da carência dos bens materiais e da ostentação
da riqueza de outros setores sociais; feições de anciãos cada dia mais nu-
merosos, frequentemente postos à margem da sociedade do progresso,
que prescinde das pessoas que não produzem (MUÑOZ, 1981, p. 29).

A sociedade atual é perversa e sem compaixão. Nela só há lugar para as pessoas


capazes e competentes, que conseguem cumprir todas as exigências do mercado
de trabalho e de consumo. Cada vez mais as empresas exigem maior qualificação
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

para seus trabalhadores, e cada vez mais as máquinas substituem as pessoas no


desempenho de funções e realização de serviços – e com isso aumenta o desem-
prego, a economia informal e a marginalidade. A sociedade atual, dominada pelo
“deus Capital (Mamon)” gera um sistema social de exclusão, mediante o qual
um número cada vez maior de pessoas é excluído do mercado de trabalho, da
educação, da saúde, da dignidade, da própria vida! As pessoas cada vez mais se
refugiam nas drogas, na violência, nas religiões sem compromisso, no sexo sem
amor, no individualismo, no consumismo; ou simplesmente caem para o sub-
mundo da miséria, da fome da marginalidade. É a todas essas pessoas que iremos
pregar o Evangelho, pessoas sem compaixão, porque acreditam que a competiti-
vidade é o melhor meio de eliminar a pobreza e o sofrimento humano. Pessoas
sem compaixão, porque são vítimas sacrificiais de uma economia perversa, e se
tornaram brutalizadas pelo sofrimento. Nesta sociedade, o grande desafio para
a Igreja é a vida de compaixão!
Precisamos de compaixão e solidariedade para proclamar o Evangelho! Ao
olhar para as pessoas e para as multidões de seus dias, Jesus as via como “ovelhas
sem pastor” e lhes demonstrava compaixão. A compaixão (solidariedade) era o
motor de suas ações a favor das pessoas (v. Mt 9,36; 14,14; 15,32; 20,34; Mc 6,34;
8,2; Lc 7,13, etc.). Jesus demonstrava, através de seus atos, a compaixão de Deus
pelos seus filhos e filhas escravizados ao pecado; demonstrava a solidariedade do
Deus encarnado para com a humanidade pecadora (cf. Hb 2,14-17; 4,15-16). Para
pregar o Evangelho não posso ver o “outro” como adversário – a evangelização não
pode gerar inimigos, mas, sim, pessoas reconciliadas com Deus e, consequente-
mente conosco e com elas mesmas, amigos e amigas de Jesus Cristo (Jo 15,14-15).

Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Socioeconômica


152 UNIDADE III

Para pregarmos o Evangelho precisamos resistir à tendência desumanizadora


e brutalizante de nossa sociedade; precisamos resistir à tentação de vivermos ape-
nas em função de nós mesmos e de nossos interesses e desejos. Precisamos de
solidariedade, compaixão: sentir o sofrimento do outro, como o nosso próprio
sofrimento. Se somos amigos e amigas de Cristo, fazemos o que Ele manda. E
o que Ele manda? “Eu vos escolhi para irdes produzir frutos e para que o vosso
fruto permaneça ... O que eu vos ordeno é que vos ameis uns aos outros” (Jo
15,16-17). A Igreja existe para anunciar o Evangelho – essa é a grande comissão
de Jesus (Mt 28,18-20 e paralelos), e esse é o poder do Espírito (At 1,8) – e se

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ela não o faz, deixa de ser povo de Deus, e se identifica com o mundo; torna-se
sal sem sabor, não prestando para nada. Tenhamos compaixão de todas as pes-
soas. Anunciemos o Evangelho de Jesus Cristo, a boa notícia de que Deus pode
mudar a vida das pessoas!
Assim como Jesus fez acompanhar sua pregação de sinais visíveis do amor
de Deus pelos pecadores, também a Igreja compassiva, na pós-modernidade,
fará sua pregação da salvação ser acompanhada dos sinais do Reino. Quem
ama, é compassivo e solidário com a pessoa toda, não faz divisão entre “alma”
e “corpo”, pregando para salvar “a alma” e deixar o “corpo” morrer. Jesus cui-
dava das doenças do corpo, das doenças espirituais, dos problemas econômicos
e sociais. Paulo, o evangelista aos gentios, recebeu a recomendação de “nos lem-
brar dos pobres, o que eu tive muito cuidado de fazer” (Gl 2,10). A diaconia cristã
é a expressão concreta da compaixão evangelizadora da Igreja. A diaconia é o
meio pelo qual a Igreja pratica as boas-obras para as quais cada cristão foi cha-
mado por Deus (Ef 2,10).
Precisamos discernir quais são as boas-obras mais urgentes, ou quais as for-
mas mais importantes de ação diaconal. No âmbito da economia, por exemplo, a
esmola já perdeu a sua eficácia (que tinha em períodos muito antigos na história
econômica da humanidade). O socorro econômico por meio da esmola é insufi-
ciente para livrar os pobres da miséria. É preciso ações mais eficazes. Por exemplo:
projetos sociais de capacitação profissional, projetos sociais de desenvolvimento
comunitário; movimentos sociais de luta contra o desemprego, contra a fome;
movimentos políticos pela adoção de mecanismos de defesa econômica dos cida-
dãos, garantidos pelo Estado – por exemplo: renda mínima, salário educação etc.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


153

No âmbito da saúde, é preciso também atuar através de projetos de desenvolvi-


mento (ambulatórios, clínicas voluntárias, etc.), e de movimentos sociais e políticos
(campanhas contra certos tipos de câncer, instituições especializadas no atendi-
mento a certos tipos de doenças e deficiências etc.; movimentos políticos que visem
forçar o Estado a cumprir as metas de saúde pública mínimas para garantir a dig-
nidade dos cidadãos).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Como cidadãs e cidadãos do Reino de Deus, somos chamados a lutar para


sermos cidadãos de um país justo e livre e para demonstrar solidariedade
plena para com os não-cidadãos! Para fazer isso, o Espírito que ungiu Jesus,
também pode nos ungir (cf. Lc 4,18-21; 7,18-23).

Em uma palavra, é preciso que a Igreja atue de forma a contribuir para que a
cidadania seja uma verdade prática, e não apenas um direito constitucional. Para
que a mensagem do Reino pregada pela Igreja seja entendida, é necessário que a
Igreja demonstre os sinais do Reino através de sua vida e da vida de seus mem-
bros. Em nossa sociedade, na qual a pessoa só é vista como consumidora, ou
como produtora de bens, precisamos ajudar a resgatar a cidadania das pessoas.

Uma Teologia Pública da Justiça – Justiça Socioeconômica


154 UNIDADE III

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito bem! Chegamos ao fim de mais uma Unidade de nossa disciplina Teologia
Pública. Espero que você tenha sido edificado e desafiado com as nossas discus-
sões sobre o tema da justiça.
Tivemos a oportunidade de, nesta Unidade, destacar a complexidade do
tema da justiça. Diante dessa complexidade, o uso cotidiano da palavra justiça
se mostra bastante impreciso e restritivo (em especial, justiça não pode ser vista
apenas como relacionada ao direito ou ao sistema judiciário).

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A noção de justiça é uma das mais importantes noções do pensamento e da
prática políticos ou públicos. A justiça é, também, um valor importante para o
ser humano - quando nos sentimos injustiçados ficamos motivados a agir para
que a situação de injustiça não se perpetue. O ser humano tem sede de justiça.
Vimos, também, porém, que a justiça humana se diferencia da justiça divina
- a tal ponto que se pode dizer que somos injustos e, por isso, necessitamos da
justificação como ato de Deus que nos torne justos e nos possibilite praticar a
justiça segundo o modelo cristológico.
Discutimos as dimensões ou contextos da prática da justiça. Na dimensão
ético-moral enfrentamos a difícil questão da convivência com a pluralidade de
visões e práticas éticas e morais nas sociedades democráticas - e os riscos que
isto traz para uma visão religiosa que não se abra à tolerância.
Na dimensão legal, discutimos o papel do direito na vida social e suas implica-
ções também para a leitura bíblica. Neste campo, há muito que se pesquisar, ainda,
na Teologia Pública - quem sabe um tema de que você se ocupe mais adiante!
Finalmente conversamos sobre a dimensão socioeconômica da justiça, muito
relevante em um país em que a injustiça social é gritante. Buscar a justiça nesta
dimensão é, em certo sentido, a base para a implementação da justiça nas suas
outras dimensões. Um grande desafio.
Abraços e que Deus abençoe a todas e todos.

TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA


155

1. As três dimensões da justiça estudadas nesta lição são:


a) Legal, política e social.
b) Religiosa, ético-moral e legal.
c) Moral, legal, econômica.
d) Ético-moral, legal, socioeconômica.
e) Nenhuma das alternativas anteriores.

2. A justiça é feita somente e apenas quando:


a) O culpado é condenado.
b) O culpado é inocentado.
c) O inocente é inocentado.
d) O inocente é condenado.
e) Nenhuma das alternativas anteriores.

3. A noção isaiânica de justiça possui duas características políticas que se com-


plementam:
I. Virtude do povo.
II. Virtude do novo rei.
III. Libertação.
IV. Santidade.
V. Justificação.
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas II e IV estão corretas.
d) Apenas II e V estão corretas.
e) Apenas I e V estão corretas.
156

4. De acordo com o texto da disciplina: “Em primeiro lugar, fazer justiça é tratar o
outro como irmã ou irmão, como parceiro de uma _________. A berith em Isaí-
as é fundamentalmente um relacionamento de ____________ baseado no agir
de YHWH, logo, é uma __________ e não uma obrigação. É a fidelidade que
fundamenta as normas consuetudinárias da ___________ enquanto ‘direito’. ”
A sequência correta de palavras que completam a citação é:
a) Fidelidade, dádiva, aliança, justiça.
b) Justiça, aliança, fidelidade, dádiva.
c) Dádiva, aliança, fidelidade, justiça.
d) Fidelidade, dádiva, aliança, justiça.
e) Aliança, fidelidade, dádiva, justiça.

5. O liberalismo político é uma tendência que se opõe a duas outras tendências


do pensamento político contemporâneo:
I. Feudalismo.
II. Republicanismo.
III. Monarquismo.
IV. Institucionalismo.
V. Multiculturalismo.
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas I e IV estão corretas.
d) Apenas II e V estão corretas.
e) Apenas I e V estão corretas.
157

O Específico da Justiça na Bíblia Hebraica


Na Bíblia hebraica, o conceito de justiça se dizia essencialmente com os substantivos
mišpāţ, şedeq [‫ ]צֶ ֶדק‬e şedāqāh [ ָ‫]צְ ָד ָקה‬. Mišpāţ significa “juízo”, “sentença judicial”, “lei” en-
quanto “direito” objectivo, “veredicto”, “decreto”, “ordem”. Os substantivos şedeq e şedā-
qāh têm a mesma raiz. Parecendo sinônimos, poderiam se considerar distintos entre
si: şedeq refere-se à “justiça” enquanto ordem criada, num todo bem integrado e har-
monioso nas suas várias componentes, ordenador das justas relações entre os homens;
şedāqāh diz “justiça, retidão” enquanto comportamento justo e recto conforme a essa
ordem, enquanto “acção salvadora”. Autores recentes pensam que şedeq e şedāqāh têm
substancialmente o mesmo sentido: tanto um como o outro poderiam significar “ordem,
retidão, justiça, comportamento justo, ação salvadora”.“Direito” (mišpat) é a ordem de
direitos e de exigências que pertence a uma determinada relação e também a ação para
manter a pessoa nesses direitos mediante decisões legais justas. Şedeq e şedāqāh, coor-
denados em par com mišpāţ, formam uma hendíadis, designando a ordem estabelecida
por Deus na comunidade de Israel e que as pessoas deveriam seguir para se compor-
tarem corretamente. Impressiona o número de vezes em que duas destas três palavras
surgem em binômio, sugerindo que cada uma delas complementa a outra. Os atentados
contra a justiça são entendidos como ocasionando uma perturbação na ordem cósmica,
que só poderia ser restaurada pelo perdão de Deus, não enquanto credor severo que
põe em ordem dívidas, mas enquanto criador que repõe o ser humano na sua condição
de ser amado por Ele e que repara os danos causados ao cosmo.
O apelo a um comportamento ético na vida, especialmente pela prática da justiça, da
rectidão, da autenticidade e da verdade, assentava em Israel na ideia de que o ser huma-
no, fazendo o bem e fugindo do mal (praticando a şedāqāh), estava a reverberar no mun-
do a şedeq, a “justa ordem” estabelecida por Deus na criação do cosmo e do ser humano,
segundo um plano de harmonia entre todos os seres. A şedeq pensava-se como uma
força cósmica envolvente, ordenadora das justas relações entre os homens; estas justas
relações eram a şedāqāh, a “justiça” entre os humanos, que harmonizava a vida com a
justa ordem criada ou com um plano divino universal. Pelo contrário, violar os princípios
éticos era atentar contra o sentido incorporado por Deus no mundo, considerado como
criado por Ele.
Essa ideia da ordem cósmica e a definição das funções de todos os seres estabelecida
pela divindade criadora “no princípio” de tudo, Israel herdou-a da cultura e religiosidade
do antigo Próximo Oriente: no antigo Egipto era expressa pelo complexo e central con-
ceito de maet e na Mesopotâmia, pelo conceito sumério dos me, só em parte análogo.
158

Entre os vários campos de significado, Maet designava a deusa egípcia (filha do deus
Sol, Re) da verdade e da justiça. Unia intimamente agir humano e ação cósmica. Nesse
sentido, poderia descrever-se como “verdade, justiça, ordem cósmica”: a retidão, a justa
condição na natureza e na sociedade, estabelecida no ato da criação. A maet é a ordem
da criação imanente ao mundo, segundo a qual o ser humano se deve orientar e realizar
em cada ação ordenada. A ideia da maet está ancorada mais na ordem social e ética e
o seu significado nuclear tem mais a ver com a justiça do que com a ordem cósmica. A
maet é o fundamento duma ética ou da ordenada relação do ser humano com tudo o
que ele tem de ser e fazer.
Na Mesopotâmia encontramos o conceito sumério dos me, só em parte análogo. Os di-
versos me eram um complexo sistema de ordenações, que governavam imutavelmente
toda a actividade humana; os me eram fundamento, configuração e fonte de conheci-
mento de tudo o que estruturava a sociedade humana: a ordem e organização cósmica,
política e ética da terra.
As três palavras mišpāţ, şedeq e şedāqāh aparecem frequentemente em contexto de
justiça salvadora, que inclui uma ação de amor gratuito e de misericórdia benfeitora.
É importante notar que as três palavras aparecem frequentemente em paralelo com
conceitos associados à aliança de Deus com Israel, como hesed (“bondade, misericórdia,
amor”) e ’emet (“verdade, fidelidade”). Estas ligações fazem sobressair em mišpāţ, şedeq
e şedāqāh o sentido de uma atitude de bondade social activa, sempre disposta a atender
à necessidade do outro e a promover o seu bem: apontam para uma bondade genero-
sa, fiável e fiel. Portanto, o seu significado vai para além da justiça estrita; é uma justiça
libertadora; refere-se ao melhoramento das condições do necessitado na sociedade,
melhoramento que, no plano do governo, se manifesta por medidas legais, adequadas
ao fim em vista.
Recapitulando os elementos da justiça na Bíblia hebraica, encontramos em primeiro lu-
gar uma relação entre pessoas e não simplesmente uma lei. A pessoa será justa ou in-
justa, não por cumprir rigorosamente os preceitos em causa, mas por se relacionar justa
ou injustamente com outra pessoa. A justiça bíblica é, então, a relação que promove e
realiza o sentido radical da vida humana.
Fonte: Vaz (2012, on-line).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Teologia Pública - Desafios Éticos e Teológicos


Eneida Jacobsen, Roberto Zwetsch & Rudolf von Sinner (Orgs.)
Editora: Sinodal
Sinopse: terceiro volume da coleção Teologia Pública. Discute alguns dos
desafios éticos e ecológicos para a Teologia Pública no Brasil atual.

A Revolução dos Bichos


Ano: 1999
Sinopse: adaptado do livro de George Orwell, trata-se de uma sátira sobre
a Revolução Russa e seus desdobramentos. Narra o levante dos animais
de uma fazenda, revoltados contra os maus-tratos por parte dos donos.

Conheça um pouco mais sobre Teologia Pública e inclusão social, um problema grave no mundo
atual.
Web: <www2.pucpr.br/reol/index.php/5anptecre?dd99=pdf&dd1=15567>

Material Complementar
REFERÊNCIAS

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2010, p. 130.
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Straus and Giroux, 1997.
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tary. New York: Doubleday, 2000. Anchor Bible.
BOFF, L. Como pregar a Cruz hoje em uma sociedade de crucificados? Petrópolis:
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FORST, R. Contexts of Justice: Political philosophy beyond liberalism and commu-
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New York: Columbia University Press, 2012.
______. “Two Pictures of Justice”. In: FORST, Rainer (ed.). Justice, Democracy and
the Right to Justification. Rainer Forst in Dialogue. London: Bloomsbury, 2014, p.
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GUTIÉRREZ, G. Teologia de la liberación. 7. ed. Perspectiva. Salamanca: Sígueme,
1975.
HABERMAS, J. Entre naturalismo y religión. Barcelona: Paidós, 2006.
______. Direito e Democracia, entre facticidade e validade, v. I. Rio de Janeiro:
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VAZ, A. S. O específico da justiça na bíblia hebraica. Cultura, v. 30, 2012, disponibi-
lidade online em 17 junho 2014. Disponível em: <https://journals.openedition.org/
cultura/1563>. Acesso em: 07 jun. 2018.
WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no Direito.
São Paulo: Editora Alfa Omega, 1997.
ZIESLER, J. A. The Meaning of Righteousness in Paul. A Linguistic and Theological
Enquiry. Cambridge: Cambridge University Press, 1972. SNTS Monograph Series.
161
GABARITO

1. D.

2. E.

3. B.

4. E.

5. D.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

TEOLOGIA PÚBLICA DO

IV
UNIDADE
RECONHECIMENTO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Conceituar reconhecimento à luz da filosofia contemporânea.
■■ Descrever o conceito de aliança na Escritura.
■■ Explicar a dimensão do cuidado no reconhecimento.
■■ Explicar a dimensão da tolerância enquanto reconhecimento.
■■ Explicar a dimensão da amizade enquanto reconhecimento.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O conceito de reconhecimento na Filosofia Contemporânea
■■ Um olhar bíblico sobre o reconhecimento (aliança)
■■ Uma teologia pública do reconhecimento – Uma teologia do cuidado
■■ Uma teologia pública do reconhecimento – Uma teologia da
tolerância
■■ Uma teologia pública do reconhecimento – Uma teologia da amizade
165

INTRODUÇÃO

Olá colegas! Bem-vindas e bem-vindos a mais uma Unidade da disciplina Teologia


Pública. Chegamos a um tema cuja visibilidade no Brasil é muito intensa, a par-
tir dos movimentos de luta por reconhecimento presentes em nossa sociedade,
dos quais os principais são: movimento feminista, movimento negro e movi-
mento LGBTQ+. Se os temas da liberdade e da justiça pareceram um tanto
quanto ‘abstratos’, o da luta por reconhecimento mostra claramente a concre-
tude e relevância dos conceitos que a Teologia Pública tenta desenvolver para
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

orientar a ação cristã no espaço público.


Iniciaremos com o conceito filosófico contemporâneo de reconhecimento,
dialogando, em especial, com o filósofo alemão Axel Honneth, um dos principais
autores a discutir a luta por reconhecimento na atualidade. Depois, trabalhare-
mos o tema do reconhecimento na teologia bíblica, a partir do conceito teológico
da aliança ou pacto, examinando textos do Antigo e do Novo Testamentos.
A partir do diálogo entre esses dois conceitos, apresentaremos três aspectos
do conceito teológico da luta por reconhecimento - e ficará claro para vocês a
diferença gigantesca que existe entre a visão cristã da luta por reconhecimento
e a visão ‘comum’ dessa prática pública.
Três práticas definem a luta por reconhecimento em uma perspectiva cristã:
o cuidado (de si e do próximo), que é outro nome para o amor ao próximo como
a nós mesmos - como ‘lutar’ amando o próximo que é diferente de nós? Grande
desafio, não é?
A tolerância - ou seja, o respeito para com as visões éticas, morais, políticas
e religiosas diferentes das nossas, especialmente aquelas que mais se diferen-
ciam das nossas! Voltamos ao tema da pluralidade e seus desafios para a fé cristã.
Em terceiro lugar, estudaremos a amizade e hospitalidade como os dois
lados da mesma moeda que é a terceira prática cristã do reconhecimento: aco-
lher o outro em sua alteridade, como Jesus acolheu pecadoras e pecadores em
seu ministério.
Vamos, então, trabalhar juntos mais uma vez?!

Introdução
166 UNIDADE IV

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O CONCEITO DE RECONHECIMENTO NA FILOSOFIA
CONTEMPORÂNEA

Nosso tema nesta Unidade é o reconhecimento mútuo, conceito do reconheci-


mento tem sido muito importante na filosofia social das últimas décadas, porque
ele tenta explicar melhor porque as pessoas se unem para tentar mudar a sua
sociedade. Podemos verificar a importância dessa mudança conceitual a partir
da análise dos movimentos sociais mais significativos das últimas décadas do
século XX, o feminismo e o multiculturalismo. Ambos têm em comum
a ideia normativa de que indivíduos e grupos sociais devem receber re-
conhecimento ou respeito em sua diferença (Taylor, 1992). Daí, foi ne-
cessário apenas um pequeno passo para o insight generalizado de que
a qualidade moral das relações sociais não pode ser medida apenas em
termos da distribuição justa ou equitativa de bens materiais; ao contrá-
rio, nossa noção de justiça também está vinculada muito estreitamente
a como, e em relação a que, os sujeitos reconhecem-se mutuamente
(HONNETH, 2007, p. 130).

Poderíamos, ainda, perguntar até que ponto a categoria do reconhecimento


se aplicaria ao caso brasileiro, no qual as desigualdades socioeconômicas são
gritantes, demonstrando a ampla ausência de justiça social? A categoria do reco-
nhecimento não é estranha ao nosso contexto na medida em que: (a) as demandas
pelo reconhecimento são mais e mais globalizadas, com conexões e influências
entre diversos países e regiões do mundo; (b) nas últimas décadas, criou-se certo
consenso nas ciências sociais brasileiras sobre o fato de que as injustiças no país
não são apenas econômicas, mas também oriundas de uma forte carga simbólica,

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


167

que reforça e naturaliza as diferenças sociais no país; e (c) enfim, a cidadania das
classes populares no Brasil é marcada por um déficit simbólico que limita as pos-
sibilidades de exercício dos direitos de cidadania desses grupos.
Finalmente, o conceito de reconhecimento desempenha um importante papel
na construção de uma teologia pública, na medida em que nos fornece meios
não só para a compreensão da vida em sociedade, mas também para a discus-
são sobre a mudança social em perspectiva cristã e pública.
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A CATEGORIA DO RECONHECIMENTO

A palavra reconhecimento é formada pelo prefixo intensivo re adicionado ao


substantivo conhecimento – indicando, assim, basicamente, o sentido de um
conhecimento intenso. Os usos da palavra reconhecimento, porém, ampliam
essa significação básica, de modo que o termo veio a adquirir acepções técnicas,
e.g.: reconhecimento facial (visual); reconhecimento de voz (auditivo), etc. No
trato social, a palavra veio a significar identificação, pertença mútua, etc., possi-
bilitando sua redescrição como categoria da filosofia prática.
Como conceito normativo para a compreensão da vida social, entende-se,
por um lado, que é o reconhecimento mútuo que mantém juntas as pessoas em
sociedade; e, por outro, que a falta de reconhecimento é o que motiva pessoas e
grupos sociais a agirem em busca de seus direitos:
são as lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa co-
letiva de estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de
reconhecimento recíproco, aquilo por meio do qual vem a se realizar
a transformação normativamente gerida das sociedades (HONNETH,
2003, p. 156).

A partir desta definição, o oposto do reconhecimento é o desrespeito, termo téc-


nico que explica as diferentes formas de injustiça, violência e discriminações
existentes nas sociedades plurais.
Axel Honneth, a partir do último quarto do século XX, recoloca a catego-
ria do reconhecimento no centro da filosofia prática, ao renovar a discussão
hegeliana sobre a Sittlichkeit (vida ética em sociedade). Para Honneth (2003),

O Conceito de Reconhecimento na Filosofia Contemporânea


168 UNIDADE IV

a principal contribuição de Hegel foi a descrição do reconhecimento como


uma luta intersubjetiva travada em três diferentes dimensões - família, socie-
dade civil e Estado – formando uma totalidade multidimensional. A categoria
do reconhecimento permite, assim, construir uma visão não-unilateral da vida
em sociedade – superando as visões “tradicionais” no capitalismo e no mar-
xismo, que estabeleciam a dimensão econômica como a base e fundamento da
vida em sociedade. Como uma categoria pluridimensional, olhar para a vida
social com as perguntas do reconhecimento, nos permite discutir não só os
aspectos econômicos da injustiça social, mas também as questões éticas e reli-

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giosas vinculadas à análise e proposta de soluções para os problemas humanos.

DIMENSÕES DO RECONHECIMENTO E DO DESRESPEITO

Na sequência, aluno(a), vejamos as dimensões do reconhecimento e do desrespeito.

Dimensão “pessoal” (cuidado)

A primeira dimensão do reconhecimento é fundada na condição biológica da


espécie e se dá nas relações interpessoais primárias (família, bairro, igreja local,
Deus, entre outros), as quais possibilitam, ou não, o desenvolvimento saudável
da pessoa.
O reconhecimento é caracterizado por um processo duplo, no qual o
outro é libertado e, ao mesmo tempo, emocionalmente vinculado ao
sujeito que ama. Assim, ao falar de reconhecimento como um elemento
constitutivo do amor, quer-se afirmar a independência que é orientada
– de fato, fundada – pelo cuidado (HONNETH, 2003, p. 107).

A dimensão “pessoal” do reconhecimento não pode ser motivada nem imposta


pela lei ou pela normatividade da sociedade. Ninguém pode ser obrigado a amar
outra pessoa, nem pode obrigar outras pessoas a amá-lo. Sem o reconhecimento
amoroso, entretanto, o desenvolvimento pessoal e social do indivíduo é afetado
negativamente, de modo que as patologias do cuidado mútuo estão na base de
comportamentos e estilos de vida violentos e antissociais.

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


169

Nesta dimensão, o desrespeito se dá de diversas formas – inimizade, indife-


rença, ausência de solidariedade, egoísmo, violência contra a pessoa (emocional
ou física) – sendo o estupro a forma mais dramática do desrespeito pessoal, na
medida em que é um ato de violência que afeta integralmente a sua vítima. O des-
respeito pessoal não pode ser descrito, porém, apenas como causado por ações
individuais – deve-se levar em conta os elementos estruturais da sociedade que
contribuem para sua generalização. Por exemplo: o individualismo consumista das
últimas décadas gera um habitus social que está na base do desrespeito pessoal.
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Dimensão “cidadã” (jurídica)

A segunda dimensão do reconhecimento é a cidadã, que se dá no âmbito da


normatividade social e do sistema jurídico do Estado, e se constitui no reconhe-
cimento dos direitos civis, econômicos, sociais e culturais de pessoas e grupos.
Enquanto a dimensão amorosa não pode ser legislada – posto que derivada
diretamente da natureza humana – a cidadã é constituída historicamente e se
concretiza na estruturação jurídico-política da vida em sociedade (que se dá em
função de direitos). No caso da Modernidade,
as relações de direito, por sua vez, pautam-se pelos princípios morais
universalistas construídos na modernidade. O sistema jurídico deve
expressar interesses universalizáveis de todos os membros da socieda-
de, não admitindo privilégios e gradações. Por meio do direito, os su-
jeitos reconhecem-se reciprocamente como seres humanos dotados de
igualdade, que partilham as propriedades para a participação em uma
formação discursiva da vontade. As relações jurídicas geram o auto-
-respeito [...] (HONNETH, 2003, p. 198).

É nesta dimensão que podemos inserir a questão da justiça social. Esta seria a
concretização da dimensão cidadã do reconhecimento, posto que não é possível
haver plena igualdade de direitos em situações de desigualdade socioeconômica
intensa. A desigualdade social provocada por relações econômicas injustas, por
exemplo, é a forma básica de desrespeito da dimensão cidadã do reconheci-
mento. A ela se acrescem outras formas de desrespeito causadas pelas demais
dimensões sistêmicas da sociedade. No caso do sistema político, a corrupção,
o populismo e o clientelismo são formas bastante conhecidas de desrespeito.

O Conceito de Reconhecimento na Filosofia Contemporânea


170 UNIDADE IV

No caso da dimensão midiática do sistema social, a objetivação das pessoas e o


crescente apelo ao individualismo e ao consumismo são manifestações de desres-
peito. No caso da dimensão científica, o naturalismo reducionista é a ideologia
básica do desrespeito.

Dimensão simbólica ou cultural

A terceira dimensão do reconhecimento pode ser chamada de simbólica (ou


cultural), na medida em que ela tem a ver com a aceitação pública de projetos e

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estilos privados de vida, ou seja, com a valorização da contribuição peculiar de
cada indivíduo ou grupo social para o bem geral da sociedade. Segundo Honneth
(2003, p. 198), “os sujeitos humanos precisam [...] além da experiência da dedica-
ção afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita
referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas”. Ora, é no
interior de uma comunidade de valores, com seus quadros partilhados de sig-
nificação, que os sujeitos podem encontrar a valorização de suas identidades
peculiares. Em decorrência do pluralismo,
nas sociedades modernas, as relações de estima social estão sujeitas a
uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, com
os meios da força simbólica e em referência às finalidades gerais, o va-
lor das capacidades associadas à sua forma de vida (HONNETH, 2003,
p. 207).

Assim, questões privadas ultrapassam as fronteiras tradicionais e se tornam, tam-


bém, públicas – tais como questões de gênero, opção religiosa, gosto artístico
etc. – e invadem o território da ética pública. Neste caso, além das ações indivi-
duais, formas estruturadas de desrespeito podem ser percebidas na vida social
– discriminação, preconceito, intolerância são as formas mais evidentes de des-
respeito simbólico.
Temos, assim, que às três dimensões do reconhecimento correspondem
três dimensões do desrespeito: (a) a que afeta a integridade psicocorporal dos
sujeitos e destrói sua autoconfiança básica; (b) a que provoca a negação de direi-
tos de cidadania, que bloqueia o autorrespeito e provoca o sentimento de não

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


171

possuir o status de igualdade; e (c) a que afeta negativamente o valor do modo


de viver de certos indivíduos e grupos, impossibilitando a autoestima dos sujei-
tos. Para Honneth (2003), o desrespeito impede a realização plena do indivíduo
em sua realidade social. O desrespeito é o termo que engloba as diversas catego-
rias explicativas das injustiças sofridas por seres vivos – pessoas, grupos sociais,
comunidade etc. podem ser desrespeitados em quaisquer das dimensões do
reconhecimento, sendo, assim, privadas da dignidade e da justiça indispensá-
veis à vida em sociedade;
À descrição do reconhecimento por Honneth, uma perspectiva teológica
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

deve acrescentar a dimensão “ativa” do reconhecer (o outro), descrevendo-a


como: (a) solidariedade constitutiva da busca social e não-violenta pelo reco-
nhecimento, (b) uma expressão “não religiosa” da essência da espiritualidade
cristã: amor incondicional a Deus que nos leva a amar a nós mesmos e ao pró-
ximo – que, por sua vez, se concretiza publicamente na missão. Se, por um lado,
o desrespeito percebido como tal é fonte motivadora para a ação das vítimas do
mesmo; por outro, o reconhecer a necessidade, os direitos, a identidade do outro
é fonte motivadora para a ação de quem não é, necessariamente, vítima do des-
respeito. Reconhecer – em sentido ativo e solidário – equivale ao “sacrifício” que
Habermas (2007) considera necessário para o exercício pleno da cidadania, e
que não pode ser motivado legalmente.
A partir da categoria do reconhecimento, portanto, a vivência e a mudança
sociais podem ser descritas em termos éticos integrais. Por exemplo: referin-
do-se à dimensão pública das relações interpessoais primárias – pensando,
no caso, em situações de gênero e identidade sexual, questões vinculadas à
família, aspectos de bioética relativos à condição da pessoa humana – reco-
nhecer o direito ou a validade do estilo de vida dos outros demanda atitude
ética. No que tange à dimensão cidadã do reconhecimento, a mudança social
exige a concretização e ampliação dos direitos universalizáveis, igualdade
perante a lei, justiça etc. E no que tange à dimensão simbólica do reconhe-
cimento, a mudança social passa pela valorização da diversidade cultural e
identitária, do pluralismo e da liberdade religiosa, visando a superação da
intolerância e violência.

O Conceito de Reconhecimento na Filosofia Contemporânea


172 UNIDADE IV

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
UM OLHAR BÍBLICO SOBRE O RECONHECIMENTO
(ALIANÇA)

Iniciamos esta seção discutindo o conceito de aliança no Antigo Testamento,


que é o ‘equivalente’ teológico da noção de reconhecimento.

ASPECTOS DA NOÇÃO DE ALIANÇA NO ANTIGO TESTAMENTO

Berith é a palavra que, no Antigo Testamento, explica as responsabilidades presen-


tes em diferentes tipos de relacionamento: (a) na relação inter-pessoal (amizade,
casamento), a responsabilidade de ser fiel; (b) na institucionalização da intera-
ção social em um determinado grupo social (e.g., o rei governa com base em
uma aliança), a responsabilidade de ser obediente; (c) nas relações internacio-
nais (tratados de cooperação ou de vassalagem), a responsabilidade de ser fiel
(se aliança entre iguais), ou submisso (se o tratado for entre desiguais); (d) nas
relações de seres humanos com os seres não-humanos na criação, a responsa-
bilidade de cuidar; e (e) na relação de Deus com sua criação, a responsabilidade
divina de cuidar & a responsabilidade da criação (incluindo os seres humanos)
de ser cuidada e cuidar de si mesma.
O significado básico da palavra berith (e seus equivalentes em outros idiomas
da época) é o de um compromisso entre pessoas, compromisso este que varia de
acordo com o tipo de berith que é realizado. No caso ideal, a noção básica subja-
cente é a de que os membros da berith criam laços de pertença mútua (identidade),

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


173

equidade e co-responsabilidade. Estabelece-se, assim, um reconhecimento mútuo


como co-participantes de um mesmo projeto de vida. A mesma palavra, porém,
também pode ser usada para relações injustas assimétricas e desiguais. Nesse
caso, a pessoa dominada tem de aceitar a dominação como se ela fosse uma ‘par-
ceria’, pois não tem alternativa. Quando as relações são de dominação, ao invés
de reconhecimento mútuo, podemos dizer que se cria um relacionamento de
desrespeito da parte dominadora em relação à dominada.
Do ponto de vista teológico, o que é importante destacarmos? Em primeiro
lugar: que a palavra berith deve ser traduzida de modos diferentes, conforme o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tipo de compromisso envolvido no relacionamento. Por exemplo, em Gn 9,11


“Sim, estabeleço a minha berith convosco: não será mais destruída toda a terra
pelas águas do dilúvio, e não haverá mais dilúvio para destruir a terra”, ao invés
de pacto (Almeida) deveríamos traduzir por juramento, ou por compromisso. A
palavra é usada no mesmo sentido dos juramentos do AOP. Deus faz um jura-
mento a Noé e assume um compromisso com ele e com toda a criação (cf. Gn
9,12-16) – nunca mais destruir a terra com um dilúvio.
Em segundo lugar, quando analisamos textos bíblicos em que a palavra berith
explica o relacionamento entre Deus e Israel, temos de levar em consideração
que esse relacionamento pode ser do tipo de uma parceria (fidelidade) ou do
tipo de um contrato (obediência). É preciso saber diferenciar, nos textos, esses
dois tipos de relacionamento, a fim de entendermos bem este aspecto importante
da teologia no Antigo Testamento. A relação entre Deus e o seu povo é descrita
em alguns textos como uma parceria, logo, o relacionamento que se espera é o
da fidelidade, do amor, da amizade. Em outros textos, o relacionamento é des-
crito como um contrato ou como um tratado. Então o que se espera do povo é
obediência, ou submissão. Em outros textos, ainda, encontramos uma situação
muito interessante. Como vimos ao mencionar Gn 9,11ss, é possível que textos
descrevam a relação entre Deus e Seu povo como uma relação em que Deus, volun-
tariamente, assume uma posição ‘inferior’ ao povo e lhe presta um juramento!
No primeiro e no terceiro tipos de textos, podemos dizer que o relacionamento
entre Deus e seu povo é de companheirismo, ou seja, baseado na graça, na misericór-
dia ou na fidelidade de Deus. No segundo caso, o relacionamento é contratual, ou
seja, baseado no dever que o povo tem para com Deus. Assim, podemos entender

Um Olhar Bíblico Sobre o Reconhecimento (Aliança)


174 UNIDADE IV

que no Antigo Testamento a berith entre Deus e Israel pode ser descrita de dois
modos teológicos: (a) no modo da graça e (b) no modo da lei. É preciso, então,
em cada texto estudado, analisar bem que tipo de relacionamento está presente.

ASPECTOS DA NOÇÃO DE BERITH EM O NOVO TESTAMENTO

Muito bem! Para concluir nossa reflexão sobre o conceito de aliança, passaremos,
agora, à interpretação de sua ressignificação na Epístola aos Hebreus capítulos

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
8-10. Assim, chegaremos ao fim de nossa discussão teológico-bíblica sobre o con-
ceito de aliança. Fim, porém, que é, de fato, um novo começo. O que estudamos
nesta disciplina é apenas um ponto de partida para você continuar refletindo
sobre o que Deus significa em sua vida e em seu ministério. A teologia bíblica
não termina ‘aqui’, ela continua em sua vida, no cumprimento da vontade gra-
ciosa de Deus para toda a humanidade.
Aos Hebreus é um dos livros mais interessantes do Novo Testamento. Sua lin-
guagem e teologia são bem peculiares – pertencem mais ao campo dos diálogos
e críticas com a fé e teologia de judeus que tinham uma atitude mais aberta em
relação ao mundo cultural greco-romano do que com a fé e teologia de fariseus,
saduceus, essênios e dos judeus em geral. O seu debate principal com o Judaísmo
não tinha a ver com a lei enquanto tal (como em Paulo, por exemplo), mas com o
sistema sacrificial-sacerdotal propriamente dito. Por isso, a imagem de Jesus mais
usada em Hebreus é a do sumo-sacerdote que também é o cordeiro sacrificado
pelo pecado. Não poderemos, é evidente, discutir esta carta em sua totalidade.
Nosso foco é o conceito da berith, discutido nos capítulos 8-10 de Hebreus.
Tendo em vista que é um texto longo, não o reproduzirei aqui, mas trabalharei
da seguinte maneira: (a) farei uma síntese da argumentação desses capítulos; e (b)
darei ênfase maior aos trechos em que o autor de hebreus cita o texto de Jeremias
31 que estudamos. Então, para acompanhar o que vem a seguir, será muito bom
que você, primeiro, leia Hebreus capítulos 8-10, para poder acompanhar a apre-
sentação e refletir criticamente sobre ela. Ademais, Hebreus 8-10 é um midraxe
(termo hebraico que podemos traduzir por ‘comentário’) sobre Jeremias 31,31-
34, por isso é bom que você leia também esta perícope do Antigo Testamento.

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


175

A partir de 8,1 o texto de Hebreus sintetiza a discussão nos capítulos ante-


riores e fornece uma síntese especial da mesma, conforme lemos: “Ora, do que
estamos dizendo, o ponto principal é este: temos um sumo sacerdote tal, que se
assentou nos céus à direita do trono da Majestade, o ministro do santuário e do
verdadeiro tabernáculo, que o Senhor fundou, e não o homem” (8,1-2). A par-
tir destes versos o argumento dos três capítulos visa demonstrar a superioridade
da nova aliança por que ela é: (1) de origem divina e não de origem humana, (2)
seu templo e sacerdócio são celestiais e não terrenos, (3) sua berith é baseada em
promessas melhores do que as da antiga berith; (4) a nova berith irá ocupar o
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

lugar da antiga que já está desaparecendo [tudo isto no capítulo 8]; (5) os sacri-
fícios e sacerdotes da antiga berith eram imperfeitos e ineficazes; (6) o sacrifício
e o sacerdócio do Messias Jesus, porém, são perfeitos e plenamente eficazes; (7) e
só foram realizados uma vez, e sua eficácia dura para sempre [tudo isto no capí-
tulo 9]; (8) a ineficácia dos sacrifícios da antiga aliança já havia sido ensinada
pelos profetas; logo (9) Deus faz uma nova berith com os pecadores que é eficaz
e definitiva [tudo isto em 10,1-18].
O texto de Jeremias 31 é citado duas vezes: “8E, de fato, repreendendo-os, diz:
Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança com a casa de Israel e com
a casa de Judá, 9não segundo a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os
tomei pela mão, para os conduzir até fora da terra do Egito; pois eles não conti-
nuaram na minha aliança, e eu não atentei para eles, diz o Senhor. 10Porque esta
é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor:
na sua mente imprimirei as minhas leis, também sobre o seu coração as inscre-
verei; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. 11E não ensinará jamais cada
um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece ao Senhor;
porque todos me conhecerão, desde o menor deles até ao maior. 12Pois, para com
as suas iniquidades, usarei de misericórdia e dos seus pecados jamais me lem-
brarei” (Hb 8,8-12); e “15E disto nos dá testemunho também o Espírito Santo;
porquanto, após ter dito: 16Esta é a diatheke que farei com eles, depois daque-
les dias, diz o Senhor: Porei no seu coração as minhas leis e sobre a sua mente
as inscreverei, 17acrescenta: Também de nenhum modo me lembrarei dos seus
pecados e das suas iniquidades, para sempre. 18Ora, onde há remissão destes, já
não há oferta pelo pecado” (Hb 10,15-18).

Um Olhar Bíblico Sobre o Reconhecimento (Aliança)


176 UNIDADE IV

Qual é a novidade da interpretação de Jeremias em Hebreus? A vinculação


da nova berith com a pessoa e ação do Messias Jesus. O argumento de Jeremias e
Ezequiel era baseado na internalização da torá (lei ou instrução) de YHWH nos
corações e mentes dos israelitas. Dessa forma, seria desnecessário o sistema de
sacrifícios e sacerdotes para intermediar entre Deus e o povo, porque o perdão e
o conhecimento de Deus seriam imediatos, pessoais. O autor de Hebreus acres-
centa este novo argumento: a velha berith está desaparecendo porque, agora, nos
últimos dias, Deus enviou o Seu Filho como sumo-sacerdote e, simultaneamente,
como sacrifício pelos pecados. Como sacrifício, o Messias anula a necessidade

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de novos sacrifícios, pois o seu é perfeito. Anula, também, a necessidade de
sacerdócio, pois sem sacrifícios não há necessidade de sacerdotes. Como sumo
sacerdote, o Messias anula a necessidade do Templo e dos sacrifícios nele rea-
lizados, pois sem sumo-sacerdote terreno, chega ao fim a linhagem sacerdotal.
Note como o argumento é circular: sem sacrifícios não há sacerdote, sem sumo
sacerdote terreno não há sacrifícios.
Historicamente, a profecia da nova berith não foi realizada em Israel. Após
o retorno de algumas das lideranças sacerdotais e de escribas do exílio babilô-
nico para Jerusalém, o Templo foi reconstruído, o sacerdócio e o sacrifício foram
reinstalados e a lei de Deus passou a ser ensinada pelos escribas dos sacerdo-
tes – tudo isso aprendemos lendo os livros de Esdras e Neemias. No período de
Jesus, o Judaísmo oficial já havia consolidado a manutenção da antiga berith criti-
cada e tornada obsoleta por Jeremias e Ezequiel, de tal modo que a ideia de uma
nova berith ficou esquecida ou obsoleta, com a exceção dos essênios [que eram
considerados hereges pelos fariseus e saduceus] e pelos seguidores de Jesus. Os
seguidores de Jesus entenderam seu ministério como o início dos ‘dias’ prenun-
ciados por Jeremias. O autor de Hebreus, em particular, descreveu Jesus como
sacerdote e cordeiro celestiais, que coloca um fim ao antigo modo de lidar com o
pecado humano, e inaugura definitivamente a nova berith. Já na tradição paulina
e na dos Evangelhos, a noção de nova aliança aparece – 1Co 11,25 e Mc 14,24 –
temática que a carta aos Hebreus desenvolve com grande detalhe.
Qual é a novidade principal da nova berith em Hebreus para os seres huma-
nos? O acesso a Deus agora está aberto para todas as pessoas, pois o sistema
sacrificial-sacerdotal chegou ao seu fim e, com ele, o interdito (tabu) que impedia

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


177

as pessoas de se encontrarem diretamente com Deus por causa do pecado. O véu


do santuário foi rasgado e agora não é mais necessário levar sacrifícios a um sacer-
dote que entrará no Santo dos Santos para intermediar entre o povo e Deus. O
perdão divino é aberto a quem quer que crer no Messias Jesus, sem distinção de
raça, cor, credo, nacionalidade etc. Com o perdão, vem a comunhão com Deus e
a possibilidade de uma vida nova, capaz de superar a velha vida de infidelidade
a Deus. Nova vida esta que precisa ser cultivada para dar frutos: manter a fé em
Deus, a comunhão com as irmãs e irmãos na igreja, não fugir do compromisso
com o Senhor Jesus, e viver pelo Espírito. Estas são as principais metáforas de
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Hebreus que descrevem a vida cristã.


Consequentemente, o autor de Hebreus chama Jesus de mediador ou fiador
da nova berith/diatheke (8,15-21). Percebeu a lógica da interpretação de Jeremias
em Hebreus? A promessa da nova aliança em Jeremias afirmava o fim dos media-
dores humanos (reis, sacerdotes, escribas, ‘pais’) na berith entre YHWH e seu
povo. O autor de Hebreus, porém, anuncia um novo mediador – Jesus. Não é uma
contradição? Não! Claro que não. Por quê? Porque Jesus é divino, é um media-
dor divino que morre em prol das pessoas a favor de quem Deus estabelece sua
berith. Eis a novidade inesperada! O próprio Deus se torna humano e morre por
toda a humanidade pecadora, para que toda a humanidade possa ter acesso à sal-
vação e perdão dos pecados, para viver com Ele eternamente. Assim, o processo
salvífico-libertador que a graça de
Deus iniciou no êxodo dos hebreus
do Egito como ponto de partida da
berith libertadora, é agora tornado
pleno pelo próprio Deus, que se torna
libertador e libertado simultanea-
mente, para que toda a humanidade
possa desfrutar da relação de fideli-
dade da berith. O Deus fiel, sempre
fiel, abriu definitivamente o acesso
para que nós nos tornemos fiéis a ele
e uns aos outros, no Messias Jesus,
mediante a força do Espírito Santo.

Um Olhar Bíblico Sobre o Reconhecimento (Aliança)


178 UNIDADE IV

UMA TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO –

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UMA TEOLOGIA DO CUIDADO

Todas as ações e relações humanas, sejam informais, sejam estruturadas, car-


regam a marca da ambiguidade – precisamos de um sistema econômico para
produzir o necessário para viver, mas ao mesmo tempo o sistema econômico
nos oprime; precisamos de um sistema político para manter a sociedade unida,
mas ao mesmo tempo o sistema político se funda na violência; precisamos de
companhia para viver, mas ao mesmo tempo ansiamos por solidão; etc. Por isso,
a sociedade vivem em uma constante luta pelo reconhecimento. Qual é o papel
do cuidado pastoral neste contexto da luta pelo reconhecimento? Será possível
pensar a vocação pastoral como uma vocação para cuidar não só da igreja, mas,
também, da sociedade? Em outras palavras, como desenvolver uma teologia
pública do cuidado pastoral? Nesta seção de nosso estudo não poderei desenvol-
ver uma teologia pública completa do cuidado pastoral. Apresentarei, portanto,
as principais pistas teóricas para você mesmo(a) poder pensar publicamente no
pastorado (usando os termos da tipologia teológica da unidade anterior, esta-
mos abordando um tema da teologia prática a partir da publicidade da teologia).

CUIDAR COMO EXPRESSÃO DA MUTUALIDADE DA ALIANÇA

Podemos começar com uma declaração de louvor: “Eu sou pobre e necessitado,
porém o Senhor cuida de mim; tu és o meu amparo e o meu libertador; não te
detenhas, ó Deus meu!” (Sl 40,17). Diante de sua condição miserável, o salmista

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


179

exclama: o Senhor cuida de mim, ou, com um pouco mais de exatidão: o Senhor
pensa em mim, ele atenta para mim, ele me considera. Por que o Senhor pensa
em mim, ele é ‘meu amparo’ e ‘meu libertador’. Cuidar, então, indica a ação de
Deus que pensa na pessoa necessitada e age para socorrê-la e libertá-la. Neste
sentido, o cuidar de Deus é sinônimo do lembrar-se de Deus (cf. Gn 8,1; 19,29;
30,22; Êx 2,24; Sl 78,39; 104,45).
Outro verbo que pode ser traduzido por cuidar é drs: “terra de que cuida
YHWH, vosso Deus; os olhos de YHWH, vosso Deus, estão sobre ela continua-
mente, desde o princípio até ao fim do ano” (Dt 11,12). Aqui, cuidar é sinônimo
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de vigiar, zelar e, consequentemente, proteger – note a explicação do sentido do


verbo no próprio texto ‘os olhos de YHWH ...’. Um ponto de contato teológico
forte com os versos que citamos a partir do Sl 40,17 é a noção de aliança – implí-
cita em Dt 11,12 na expressão YHWH, vosso Deus – uma abreviatura da fórmula
da aliança (eu serei vosso Deus e vós sereis o meu povo).
Um outro par de palavras ligado à noção de cuidar se encontra em Jó: “vida
me concedeste na tua benevolência, e o teu cuidado a mim me guardou” (10,12).
Deus é o doador da vida e, em seu cuidado, protege e cuida da vida presenteada
– uma declaração de louvor pelo Jó adoentado, sem família, atormentado pelos
seus ‘amigos’, angustiado por sua condição miserável. Este par de palavras está,
também, intimamente ligado à ação do pastor que vigia e cuida de suas ovelhas
(cf. Sl 23; Ez 34).
Quando o sujeito destes verbos é um ser humano, as mesmas noções são
indicadas, por exemplo: “E tomou YHWH Deus o homem, e o pôs no jardim
do Éden para o lavrar e o guardar” (Gn 2,15) – noção que corresponde à noção
mais complexa, em Gn 1,26ss, de o ser humano ter sido criado à imagem e seme-
lhança de Deus. Usando um verbo diferente, encontramos, também: “Noemi
tomou o menino, o pôs no regaço, e passou a cuidar dele” (Rt 4,16), referindo-
-se ao nascimento de Obede, filho de Boaz e Rute.
A noção subjacente a todos estes exemplos é a da berith, ou seja, da parceria
(aliança, pacto, acordo) entre duas ou mais pessoas. Vigiar, proteger, sustentar,
lembrar-se de, dedicar-se a, socorrer, nutrir, ou cuidar, são diferentes verbos que
expressam a responsabilidade mútua que se estabelece entre dois parceiros: um
cuida do outro, um se preocupa com o outro, um se interessa pelo outro, um

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia do Cuidado


180 UNIDADE IV

vigia o outro, etc. A essência do cuidado pastoral, portanto, é esse relaciona-


mento de parceria entre pastor e pastoreados, uma relação de igualdade, e não
de assimetria (hierarquia) – cuidar expressa sempre uma ação bilateral: cuidar
e ser cuidado, mesmo que, no dia a dia das relações humanas, uma das parcei-
ras tome a iniciativa e seja a mais ativa em uma dada situação.
Em o Novo Testamento, os dois verbos gregos mais especificamente ligados à
noção de cuidar (e cuidado) são melein e epimelein – e o seu uso não é frequente.
Alguns textos, porém, mostram suficientemente bem, para nossos propósitos, o
sentido do cuidar: “E Jesus estava na popa, dormindo sobre o travesseiro; eles o

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despertaram e lhe disseram: Mestre, não te importa que pereçamos?” (Mc 4,38)
– o clamor dos discípulos tem sua origem na sensação de que Jesus não estava
cuidando deles, não os estava guardando em uma tempestade. Ainda referente a
Jesus, temos Jo 10,13: “O mercenário foge, porque é mercenário e não tem cui-
dado com as ovelhas” – Jesus é o bom pastor que dá a vida pelas ovelhas, seu
cuidado por elas chega ao ponto do auto-sacrifício. Temos, também, Lucas:
“Marta agitava-se de um lado para outro, ocupada em muitos serviços. Então,
se aproximou de Jesus e disse: Senhor, não te importas de que minha irmã tenha
deixado que eu fique a servir sozinha? Ordena-lhe, pois, que venha ajudar-me”
(10,40) – a queixa de Marta tem a ver com a falta aparente de parceria de Maria,
que não a ajudava no serviço doméstico da hospitalidade – a resposta de Jesus é
bem conhecida: entre dois cuidados, deve-se escolher o mais importante. Tendo
Deus como sujeito, encontramos os seguintes exemplos do uso do verbo melein:
“Porque na lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca ao boi, quando pisa o
trigo. Acaso, é com bois que Deus se preocupa?” (1Co 9,9) e “lançando sobre ele
toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós” (1Pd 5,7) – textos que
carregam as mesmas acepções dos verbos no Antigo Testamento.
Ainda o mesmo verbo melein é usado tenso seres humanos como sujeitos,
por exemplo, na fala de Judas, tesoureiro da comunidade de Jesus: “Isto disse
ele, não porque tivesse cuidado dos pobres; mas porque era ladrão e, tendo a
bolsa, tirava o que nela se lançava” (Jo 12,6) – Judas cuidava de seus próprios
interesses e não do dos necessitados – temos aqui a perversão do cuidado, na
forma do egoísmo, da negação da parceria. “Então, todos agarraram Sóstenes,
o principal da sinagoga, e o espancavam diante do tribunal; Gálio, todavia, não

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


181

se incomodava com estas coisas” (At 18,17) – referindo-se à falta de interesse do


governante para com a violência cometida contra Sóstenes, também indicando a
quebra da parceria, a fuga da responsabilidade do governante. No sentido ‘nega-
tivo’ da palavra, temos “Foste chamado, sendo escravo? Não te preocupes com
isso; mas, se ainda podes tornar-te livre, aproveita a oportunidade” (1Co 7,21)
– fazendo ressoar aqui um eco do sentido da palavra ‘cuidado’ como angústia.
O verbo epimelein é usado apenas três vezes no Novo Testamento: “E, che-
gando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o
sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. No dia
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seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste


homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar” (Lc
10,34-35) – referindo-se aos cuidados médicos. Uma vez nas Pastorais (1Tm
3,5): “pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará da igreja
de Deus?) – referindo-se à experiência do pastor no cuidado cotidiano para
poder se dedicar ao cuidado da comunidade eclesial. Mais comum é, em o Novo
Testamento, a metáfora do pastor para se referir ao cuidado de Deus, de Jesus,
ou dos ‘pastores’, apropriando-se do sentido vétero-testamentário: pastor vigia,
cuida, protege, alimenta, se sacrifica pelo rebanho.

CUIDAR COMO EXPRESSÃO DA EXISTÊNCIA HUMANA

O filósofo que mais se ocupou, no século XX, com o tema do cuidado na exis-
tência humana foi Martin Heidegger – tema a que dedicou todo o capítulo seis
da primeira parte de sua obra magistral Ser e Tempo (a tradução é de Márcia de
Sá Cavalcanti, que optou por traduzir Dasein (normalmente traduzido por exis-
tência) como pre-sença e Sorge (normalmente ‘cuidado’ ou ‘angústia’) por cura),
e o capítulo três da segunda parte de Ser e Tempo (em que discorre sobre a tem-
poralidade como sentido ontológico do cuidado), além de o retomar em diversas
outras obras e entrevistas. Para Heidegger (1989) (e simplificando ao máximo
em função de nossos interesses específicos), o ser humano existe na decadência,
ou seja, ao nascer é jogado em um mundo que não escolheu, para uma vida que
não articulou – nos termos do próprio Heidegger: “O ser-no-mundo já é sempre

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia do Cuidado


182 UNIDADE IV

numa de-cadência. Pode-se, portanto, determinar a cotidianidade mediana da


pre-sença como ser-no-mundo aberto na de-cadência que, lançado, se projeta
e que, em seu ser junto ao “mundo” e em seu ser-com os outros está em jogo o
seu poder-ser mais próprio” (HEIDEGGER, 1989, p. 244). Caída no mundo, a
pessoa precisa projetar sua vida na relação com o mundo e com os outros, a fim
de poder-ser, ou seja, a fim de constituir sua própria identidade e modo de viver.
Essa tensão entre o viver-com-o-mundo e viver-com-os-outros, na de-cadência,
se configura, como a essência do Dasein (humano) – a Sorge ou cura (no sentido
latino de, simultaneamente, angústia e cuidado).

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Na angústia se dá a possibilidade do ser do Dasein, angústia, então, como
categoria constitutiva do existir, e não como ‘angústia’ causada por alguma situa-
ção. Essa angústia existencial se inscreve em nós desde (pelo menos) o momento
do nascimento quando, ‘jogados’ ao mundo, nos vemos obrigados a respirar,
ouvir, ver, ser tocados, ser situados no espaço-tempo – quando nos tornamos
‘conscientes’ de nossa dependência – de nosso viver-com-o-mundo e com-os-
-outros. Ao nascer, tornamo-nos ‘cônscios’ de nossa corporeidade situada na
espacialidade e temporalidade. Essa angústia existencial que possibilita o Dasein
é simultaneamente cuidada:
esse ser desentranha-se com a cura. A elaboração ontológica desse
fenômeno existencial fundamental exige a sua delimitação frente aos
fenômenos que, de imediato, podem identificar-se com a cura. Esses
fenômenos são vontade, desejo, tendência, propensão. A cura não pode
derivar-se desses fenômenos, pois eles mesmos nela estão fundados”
(HEIDEGGER, 1989, p. 245).

O cuidado é, assim, constituído sempre por uma transcendentalidade – von-


tade, desejo, tendência e propensão apontam para fora, para além, para ali, para
o amanhã, para o ainda-não-ser.
Na vida com-o-mundo e com-os-outros, o cuidado é o modo de ser do Dasein,
jogado na tensão entre a ocupação (impessoal) e a solicitude (pessoal). A existên-
cia se torna inautêntica quando somos solícitos para com utensílios (casa, carro,
martelo, dinheiro etc.) e/ou nos ocupamos (utilizamos) pessoas. Com Heidegger,
podemos afirmar que, lançado ao mundo, o ser humano vive de modo inautên-
tico, ao confundir o projeto de viver com-os-outros (solicitude = Fursorge) com
a vida com-o-mundo (ocupação = Besorgen), ou seja, por despersonalizar as

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


183

relações, vivendo-as como relações com utensílios. Esta descrição corresponde,


grosso modo, à descrição de Habermas no tocante à colonização do mundo da
vida: que se dá quando modos impessoais de coordenar as ações conjuntas (rela-
ções) substituem os modos comunicativos de coordenar as ações conjuntas – ou,
na linguagem forma, quando o sistema rege o mundo-da-vida.
Vinculando estas breves noções de Heidegger com a nossa descrição das
estruturas ontológicas e existenciais do ser humano, podemos ver a cura (o cui-
dado) como o modo fundamental de existir da criatura (de ser-com-o-mundo
e ser-com-os-outros), modo que se configura como angústia e como cuidado
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(cuidado no sentido que vimos no texto anterior) – ou seja, a cura é marcada


inelutavelmente pela finitude (somos jogados a um mundo anterior a nós e que
prosseguirá depois de nós, por isso somos um ser-para-a-morte), pela ambiva-
lência (entre o pólo da vida projetada e da morte prevista), pela peculiaridade
(mediante a fala somos os únicos seres que podem buscar o seu sentido neste
mundo) e pela transcendentalidade (a vida é um projeto, um lançar-se consciente
ao futuro desconhecido). Semelhantemente, a cura é marcada pela afetabilidade
(somos afetados por coisas e por pessoas e é nessa afetabilidade que constituímos
o nosso projeto de ser), pela moralidade (devemos definir o modo de ser afeta-
dos e de afetar as coisas e as pessoas), pela racionalidade (temos de dar sentido
ao nosso pro-jeto em meio às ambiguidades da existência) e pela espiritualidade
(nosso ser é visto como além de nosso Dasein, assim, nossa essência parece estar
fora de nós-com-o-mundo e com-os-outros).
Resumidamente, então, e sem a pretensão de ter apresentado uma exegese de
Ser e Tempo, mas apropriando-nos de parte das reflexões heideggerianas, podemos
afirmar o cuidado como o modo (ambivalente) de ser-humano-no-mundo (com as
coisas e com as pessoas). Desta forma, podemos subsumir as noções heideggerianas
da ocupação e da solicitude à noção judaico-cristã (bíblica) da fidelidade-na-parce-
ria – na medida em que somos parceiros não apenas uns-dos-outros (humanos),
mas de toda a criação divina (mesmo que não tratemos as coisas individualmente
como pessoas, temos uma responsabilidade pessoal para com o mundo todo criado
por Deus). Assim, na relação com outras pessoas e com outras espécies, praticamos
a fidelidade como amor, bondade, benignidade; e na relação com as coisas, prati-
camos a fidelidade como um usar-bem, para bem-cuidar do mundo e dos outros.

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia do Cuidado


184 UNIDADE IV

Cuidar, portanto, é o modo concreto de ser humano no mundo. Assim,


quando pensamos no cuidado pastoral, não podemos reduzi-lo a uma tarefa,
ou ofício, mas temos de situá-lo no âmbito do cuidado-existencial-humano.
Pastores e pastoras (assim como outros/as profissionais de ajuda) são pessoas
que se especializam em fazer, em situações específicas, aquilo que todos nós
seres humanos fazemos nas situações genéricas do cotidiano. Não é à toa que
Foucault (2008) percebeu, em sua análise do poder pastoral, que este se confi-
gura como uma relação vitalícia – temporal e espacialmente – pastores cuidam
o tempo todo, de todas as pessoas, em todos os lugares. O seu conceito de poder

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pastoral pode ser visto como a descrição de uma forma inautêntica (no sentido
heideggeriano) de cuidado pastoral. No exercício do poder pastoral (que é o cui-
dado delimitado pela institucionalidade da Igreja), o pastor usa as pessoas como
utensílios e cuida da Instituição Eclesial como se fosse pessoa – o que em lingua-
gem teológica costumamos descrever com o confronto entre carisma e poder,
instituição e comunidade. Para que o cuidado pastoral não se degenere em poder
pastoral precisamos, então, tratar a Instituição como um utensílio e as pessoas
como pessoas – somos fiéis às pessoas de quem cuidamos, e somos usuários da
Instituição em que trabalhamos.
O cuidado é, então, simultaneamente: (a) o nosso modo de ser-no-mundo,
ou nossa essência; (b) o nosso modo de nos relacionarmos conosco mesmo,
com os outros (inclusive Deus) e com os utensílios enquanto parceiros; e
(c) o nosso modo de ajudarmos, a nós e a outros, a viver de modo autên-
tico (livre, no sentido paulina da existência em Cristo). Assim, o cuidado
pastoral é uma forma especializada do próprio existir humano. Exercemos
bem o cuidado pastoral quando o fazemos no âmbito da solicitude, reconhe-
cendo as pessoas com quem convivemos. Exercemos mal o cuidado pastoral
e o transformamos perversamente em poder pastoral quando o exercemos
no âmbito da ocupação, desrespeitando as pessoas com quem convivemos.
Por fim, exercemos mal o cuidado pastoral quando o reduzimos a uma ati-
vidade eclesiástica e não percebemos que também somos chamados a cuidar
da sociedade em que vivemos.
A seguir, discutiremos o amor ao próximo como a forma fundamental do
cuidado em geral e do cuidado pastoral em particular.

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


185

O cuidado é um termo técnico da teologia, mas também da psicologia e da


ética. Refere-se sempre a uma relação entre pessoas onde há ajuda, compa-
nheirismo, apoio e busca de superação de problemas.
Fonte: o autor.

CUIDAR COMO EXPRESSÃO DO AMOR AO PRÓXIMO COMO A SI


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MESMO

Muito bem, colegas, vamos conversar sobre o amor ao próximo como expressão
do cuidado cristão e do reconhecimento interpessoal.

Amar ao próximo como a si mesmo

A exortação é bem conhecida, assim como seu contexto literário nos Sinóticos:
(Mt 22,39; Mc 12,33; Lc 10,27); e seu uso em Paulo: (Rm 13,9-10; Gl 5,14) e se ori-
gina da norma em Lv 19,18: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos
do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou YHWH”. Nos
Sinóticos, o contexto literário é o das disputas de Jesus contra saduceus e fariseus.
Após encerrar uma disputa com os saduceus a respeito da ressurreição, Jesus é
questionado por um escriba fariseu a respeito do ‘maior mandamento’ – ou seja,
o fariseu queria saber se Jesus era um bom intérprete da Torá. A resposta de Jesus
foi direto ao ponto e não deixou ao fariseu alternativa para replicar: “Entretanto,
os fariseus, sabendo que ele fizera calar os saduceus, reuniram-se em conselho. E
um deles, intérprete da Lei, experimentando-o, lhe perguntou: Mestre, qual é o
grande mandamento na Lei? Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus,
de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o
grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os
Profetas” (Mt 22,34-40). Já nos escritos paulinos (que antecedem à escrita dos
Evangelhos), a interpretação da Lei por Paulo é mais sintética: “Com efeito: Não

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia do Cuidado


186 UNIDADE IV

adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiça-
rás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao
teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o
cumprimento da lei é o amor” (Rm 13,9-10) e “Porque vós, irmãos, fostes cha-
mados à liberdade. Não useis, então, da liberdade para dar ocasião à carne, mas
servi-vos uns aos outros pelo amor. Porque toda a lei se cumpre numa só pala-
vra, nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,13-14).
Em seu estudo do cuidado de si, Foucault (2008) desvendou as tramas e con-
teúdos do conceito no pensamento grego de Platão ao século II d.C. e o comparou

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com o pensamento patrístico. Não se ocupou, porém, de comparar o cuidado
de si grego com o amor a si mesmo do Novo Testamento (e da tradição judaica).
Façamos, então, esta comparação, começando com os escritos de Foucault. Em
primeiro lugar, o cuidado de si na tradição de Platão:
com efeito, parece-me que o que caracterizará o cuidado de si na tradi-
ção platônica e neoplatônica é, por um lado, que o cuidado de si é, por
um lado, que o cuidado de si encontra sua forma - forma esta, senão
única, ao menos absolutamente soberana - e sua realização no conhe-
cimento de si. Em segundo lugar, igualmente característico da corrente
platônica e neoplatônica, será o fato de que este conhecimento de si,
como expressão maior e soberana do cuidado de si, dá acesso à verdade
e à verdade em geral. Finalmente, em terceiro lugar, será característico
da forma platônica e neoplatônica do cuidado de si, o fato de que o
acesso à verdade permite, ao mesmo tempo, reconhecer o que pode
haver de divino em si. Conhecer-se, conhecer o divino, reconhecer o
divino em si mesmo, é fundamental, creio, na forma platônica e neo-
platônica do cuidado de si (FOUCAULT, 2008, p. 96).

Em segundo lugar, o cuidado de si na tradição helenística (que é mais diversifi-


cada, de modo que apresentarei uma das sínteses possíveis):
a prática de si não era mais aquela espécie de juntura entre a educação
dos pedagogos e a vida adulta, mas, ao contrário, um tipo de exigência
que devia acompanhar toda a extensão da existência, encontrando seu
centro de gravidade na idade adulta, o que evidentemente acarretava,
para esta prática de si, algumas consequências. Em primeiro lugar, uma
função mais nitidamente crítica que formadora: tratava-se de corrigir
mais que de instruir. [...] Enfim, uma relação privilegiada entre a prática
de si e a velhice, entre a prática de si e, consequentemente, a própria vida,
já que a prática de si toma corpo na vida ou incorpora-se à própria vida.

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


187

Portanto, a prática de si tem por objetivo a preparação para a velhice


que, por sua vez, aparece como um momento privilegiado da existên-
cia ou, mais ainda, como o ponto ideal da completude do sujeito. Para
ser sujeito é preciso ser velho. [...] Segundo traço, pois: o cuidado de si
é formulado como um princípio incondicionado. “Como um princípio
incondicionado” significa que se apresenta como uma regra aplicável a
todos, praticável por todos, sem nenhuma condição prévia de status e
sem nenhuma finalidade técnica, profissional ou social. A ideia de que se
deveria cuidar de si porque se é alguém que, por status, está destinado à
política, e a fim de poder, com efeito, governar os outros como convém,
não mais aparecerá ou, pelo menos, será muito postergada [...] Com efei-
to, somente alguns poucos podiam ter acesso a esta prática de si ou, em
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todo caso, somente alguns podiam levá-la à sua meta. E a meta da prática
de si é o eu. [...] Meta terminal da vida para todos os homens, forma rara
de existência para alguns e somente alguns: temos aí, se quisermos, a
forma vazia daquela grande categoria trans-histórica que é a categoria da
salvação (FOUCAULT, 2008, p. 155-157).

Comecemos com as diferenças formais: (a) o amor a si mesmo não é restrito a algu-
mas pessoas: todos podem amar a si mesmos, de modo que não há um elitismo
como o presente no cuidado de si (platônico ou helenístico); (b) o amor a si mesmo
não se caracteriza como um preparo para a velhice, quanto então a pessoa se torna
sujeito, ele tem a ver com cada instante da vida e não apenas com o seu fim; (c) a sua
função não é predominantemente crítica, mas formadora, o inverso da tradição hele-
nística. Destacadas as diferenças formais, as semelhanças formais ficam evidentes.
Passemos agora às diferenças de conteúdo e prática: (a) o amor a si mesmo
não é acesso ao conhecimento do divino, muito menos do ‘divino em si mesmo’,
como na tradição platônica – é preciso primeiro ser amado por Deus e amar a
Deus para poder amar a si mesmo; (b) a meta do amor a si mesmo não é o gover-
nar a vida dos outros, ou praticar a justiça na polis, mas servir ao próximo em
todas as dimensões da vida, não só na política; sem ser anulado em sua própria
subjetividade; e (c) o amor a si mesmo encarna uma forma cheia de salvação – a
libertação oferecida graciosamente por Deus no Messias Jesus – uma salvação que,
por um lado, transcende a história, mas, por outro, insere de fato o sujeito que
ama na história, neste mundo, para nela viver no presente a futuridade esperada;
e (d) o amor, na tradição cristã, não é uma virtude, mas o fruto do Espírito, e se
configura como uma subjetividade cheia, mas não ensimesmada (cf. Gl 5,22-23;
1Co 13 – em que Paulo descreve o agapao, verbo que está nos textos estudados).

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia do Cuidado


188 UNIDADE IV

Do ponto de vista da estrutura do amor a si = cuidado de si, temos material


suficiente para a reflexão continuada. Cabe, agora, descer ao nível das práti-
cas (ou técnicas de si, na linguagem grega e foucaultiana) do amor a si mesmo.
Apenas alistarei as dimensões gerais dessas práticas, ainda que em alguns casos
as mesmas sejam óbvias:
(1) Amar a si mesmo significa cuidar do próprio corpo: boa alimenta-
ção, descanso, atividade física compatível com a saúde, sono adequado,
higiene, não colocar o corpo em situações de risco para a saúde física,
moral ou espiritual da pessoa.

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(2) Amar a si mesmo significa cuidar de si mediante boas relações amoro-
sas com os outros (solicitude), uso adequado de utensílios (ocupação),
trabalho sem explorar o corpo, meditar sobre si mesmo (habilidades,
limites, projeto de vida etc.), buscar a excelência nas atividades de traba-
lho, vida e lazer, manter uma disciplina pessoal no estudo, no descanso,
no trabalho etc.
(3) Amar a si mesmo significa também viver em uma comunidade de cui-
dado mútuo, estar aberto a receber a instrução e a ajuda de irmãs e
irmãos mais experientes e sábios, participando de projetos comuns
de vida espiritual e missão – afinal de contas, se não amamos o pró-
ximo, não amamos a nós mesmos. De fato, poderíamos dizer, aqui,
amar a mim mesmo como um próximo (ou, na linguagem de Ricouer:
o si-mesmo como outro).
(4) Amar a si mesmo significa resistir às tentações do presente século: evi-
tar o consumismo, o individualismo, o culto ao corpo, a indiferença
para com o sofrimento do próximo, a falta de compromisso com o bem
comum da sociedade etc. Significa, também, resistir à tentação reli-
giosa de auto-sacrifício ensimesmado – em outras palavras, servir sem
ser explorado (seja na família, na igreja, no trabalho, na sociedade etc.).
(5) Amar a si mesmo significa cuidar de si mediante a prática da vida devo-
cional (pessoal e comunitária): estudo da Escritura, meditação, oração,
louvor, cultivar o silêncio, contemplar a Deus em sua criação, jejum
etc. – afinal de contas, se não amamos a Deus acima de todas as coisas,
não conseguiremos nos amar a nós mesmos – e amando a Deus, pode-
mos viver na liberdade messiânica, a meta final do cuidado de si cristão.

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


189

Amar ao próximo como a si mesmo

A pergunta ‘quem é o meu próximo’ não é nova, já a encontramos no diálogo


entre o escriba e Jesus, que reproduzimos aqui:
29
Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: E quem
é o meu próximo? 30 E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem
de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o
despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. 31
E, ocasionalmente descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, ven-
do-o, passou de largo. 32 E de igual modo também um levita, chegando
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àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo. 33 Mas um samaritano, que ia


de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compai-
xão; 34 E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vi-
nho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem,
e cuidou dele; 35 E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os
ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares
eu te pagarei quando voltar. 36 Qual, pois, destes três te parece que foi
o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? 37 E ele disse: O
que usou de misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: Vai, e faze da
mesma maneira (Lc 10,29-37).

O trecho é continuação do diálogo sobre o maior mandamento. Como a resposta


de Jesus foi irrefutável, o escriba ainda tentou complicar a questão, levantando
o aspecto da sutileza hermenêutica – quem, afinal de contas é o meu próximo a
quem devo amar? Uma questão fundamental no Judaísmo da época – o próximo
inclui os judeus impuros e desobedientes à Lei? O próximo inclui os gentios? A
resposta mais comum no Judaísmo da época era a de restringir o ‘próximo’ aos
eleitos de Deus e, dentre eles, aos cumpridores da Lei. O raciocínio de fariseus e
saduceus era compreensível, na medida em que na tradição veterotestamentária
o próximo é basicamente o vizinho, definido, assim, pela proximidade geográ-
fica. Dessa proximidade geográfica à proximidade étnico-religiosa a distância
não é grande.
A visão de Jesus, porém, foi desconcertante para o escriba: ele inverteu a
questão e, após a parábola, retornou a pergunta ao escriba: “quem foi o pró-
ximo do que caiu na mão dos assaltantes”? A resposta do escriba foi correta:
“o que praticou misericórdia”. Isto é, Jesus desloca a questão da identidade
do próximo, para a questão da prática da proximidade – não devemos nos

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia do Cuidado


190 UNIDADE IV

preocupar e definir quem é meu próximo, mas em saber como ser próximo,
em viver a proximidade como nosso modo de ser no mundo. No século XX,
foi o filósofo judeu Emmanuel Levinas quem mais profundamente tratou da
questão do próximo (outro), trazendo à luz o que há de melhor no pensa-
mento judaico sobre o tema. Vejamos uma pequena síntese de seu conceito
de alteridade e proximidade:
mas o sujeito é exposto à alteridade antes de poder se conscientizar
de si e tomar uma posição ética. Esta vizinhança sem distância, esta
imediaticidade de uma abordagem que permanece abordagem sem

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circunscrever aquilo que aborda, sem localizá-lo lá, Levinas chama
de proximidade. O outro, meu próximo (le prochain) me concerne,
me aflige com uma proximidade mais próxima que a proximidade
de entidades. O relacionamento com a alteridade, que é o que escada
à apreensão, excede toda apreensão, é infinitamente remoto e é, pa-
radoxalmente falando, a imediaticidade mais extrema, proximidade
mais próxima do que a presença, contato obsessivo (COHEN, 1998,
p. XXV).

Para ficarmos com as palavras do próprio Levinas (1998, p. 46), “proximidade é


completamente distinta de qualquer outro relacionamento, e tem de ser concebida
como uma responsabilidade pelo outro, ela pode ser chamada de humanidade,
ou subjetividade, ou self ”. Com esta descrição, podemos aproximar Levinas de
Heidegger e de nossos textos aqui – a proximidade é constitutiva da existência
humana, ela é a própria essência (positiva) da subjetividade. Se no pensamento
grego o cuidado de si tinha como meta a constituição do sujeito, na visão judai-
co-cristã o cuidado do próximo é o fundamento existencial da construção da
subjetividade. A nossa responsabilidade antecede a nossa ipseidade (o ser-si-
-mesmo), na medida em que fomos criados à imagem de Deus, e Deus é amor,
fidelidade, justiça.
Assim, embora Levinas constitua a noção da proximidade a partir da reflexão
sobre o espaço, de fato, a proximidade explode o espaço e configura um modo de
ser com-os-outros no infinito – minha responsabilidade para com o próximo é
infinita, ela reveste a totalidade de meu ser e articula a existência com-o-mundo
e com-os-outros. Proximidade é sensibilidade, é deixar-se ser afetado(a) pelo pró-
ximo – tanto as coisas, como as pessoas e demais seres vivos. E aqui vemos uma
diferença crucial entre Levinas e Heidegger:

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


191

Na relação de contato, as coisas são próximas, não são objetos, mas,


por sua vez, a forma como elas são “em carne e osso” não caracteriza a
sua manifestação, mas a sua proximidade. Isso faz com que o sentido
seja definido pela relação de proximidade e não pela relação de conhe-
cimento. No contato como proximidade, contato com a pele humana,
com o rosto, a carícia do sensível se revela à aproximação do próxi-
mo, essa relação primordial de contato e proximidade está na origem
mesma do conhecimento e da linguagem. É nesse sentido que Levinas
considera que “a proximidade das coisas é poesia; em si mesmas, as coi-
sas revelam-se antes de serem aproximadas” (LEVINAS, 1998, p. 278);
MIRANDA, 2011, p. 177).
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Desta forma, a questão ‘quem é meu próximo’ recebe uma resposta insuspeitável
em um olhar ingênuo: todo a criação é meu próximo – coisas, animais, plan-
tas, pessoas etc. Tudo, enfim, é meu próximo, de modo que cuidar do próximo
não se restringe a amar outras pessoas e cuidar delas, mas engloba o cuidar de
tudo o que existe. Nesta conexão, cabe a reflexão de Derrida (2002) sobre nossas
relações éticas com os animais (e poderíamos estendê-las a todas as coisas). À
pergunta “os animais podem sofrer”, como origem de uma ética animal, Derrida
(2002) contrapõe a pergunta “eles podem não poder”, como modo de subversão
de uma eventual aplicação de direitos a animais, o que os reduziria ao âmbito do
jurídico – reducionismo ético por excelência:
“Eles podem sofrer?” consiste em se perguntar: “Eles podem não po-
der?”. E o que dizer desse não-poder? Da vulnerabilidade sentida a par-
tir desse não poder? Qual é este não-poder no âmago do poder? Qual
é a qualidade ou a modalidade desse não-poder? O que levar em con-
sideração? Que direito conferir-lhe? Em que isso nos concerne? Poder
sofrer não é mais um poder, é uma possibilidade sem poder, uma possi-
bilidade do impossível. Aí reside, como a maneira mais radical de pen-
sar a finitude que compartilhamos com os animais, a mortalidade que
pertence à finitude propriamente dita da vida, à experiência da compai-
xão, à possibilidade de compartilhar a possibilidade desse não-poder, a
possibilidade dessa impossibilidade, a angústia dessa vulnerabilidade e
a vulnerabilidade dessa angústia (DERRIDA, 2002, p. 55).

Amar o próximo = cuidar do próximo passa, assim, a ser visto não como uma
tarefa, mas como um modo de ser, de fato, como o modo de ser do humano
(lembrando sempre de que amar ao próximo como a si mesmo). Desta forma, o
cuidado pastoral pode ser reconfigurado a partir da nossa existência humana.

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia do Cuidado


192 UNIDADE IV

Ao invés de os ministérios dos leigos se conformarem com o padrão do ofício


pastoral, este ofício é que deve se conformar ao padrão da humanidade – assim
conformado, será um ofício pastoral cristocêntrico e transformador. Em última
instância, então, pastoras e pastores não são especialistas em ministério ecle-
sial ou eclesiástico, são, ao contrário, especialistas em viver como ser humano.
Cuidar é muito mais do que um ofício ou ministério específico. Cuidar é viver
como filha e filho de Deus, nos passos do Messias, na força do Espírito Santo.
Podemos, assim, usar a palavra cuidado em um sentido lato, equivalente a minis-
tério pastoral, ou em sentido mais estrito, distinguindo-a das outras dimensões

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do ministério, tais como a palavra, a gestão, a missão. A ambiguidade do termo
é, neste caso, muito benvinda e devemos tirar proveito dela em nossa reflexão e
ação pastorais. Cuidar é, então, uma das formas públicas de viver a fé evangélica
e um dos desafios temáticos e práticos à teologia pública cristã.

UMA TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO –


UMA TEOLOGIA DA TOLERÂNCIA

A tolerância é uma prática e um valor social que pode ser classificado como per-
tencente à dimensão simbólica ou cultural do reconhecimento, e tem a ver com
o respeito e a estima pelo estilo de vida, ou pelas crenças, ou pelos valores que
se diferenciam dos ‘nossos’ próprios.
“Certa interpretação da tolerância é um componente central de qual-
quer variante de liberalismo político. Formulando a noção no grau
mais elevado de abstração possível, uma comunidade política liberal
justa é aquela que propicia a seus cidadãos as condições para que cada
um possa agir com base em suas próprias convicções sobre aquilo que
tem valor último”. (DE VITA, 2009, p. 62)

Este breve ensaio, levando em consideração a abrangência mais ampla da ques-


tão, porém, será focado no tema da tolerância religiosa propriamente dita, tendo
em vista que os casos de prática de intolerância religiosa têm se avolumado nos

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


193

últimos vinte anos na sociedade brasileira (dentre a ampla documentação e dis-


cussão, pode-se consultar, como sínteses importantes: SILVA, Clemildo A. &
RIBEIRO, Mario B. Intolerância Religiosa e Direitos Humanos. Mapeamentos de
Intolerância. Porto Alegre: Sulina, 2007 & SILVA, Vagner G. (org.). Intolerância
Religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro.
São Paulo: EDUSP, 2007). Na esmagadora maioria dos casos de intolerância
religiosa, os agentes têm sido membros de igrejas classificadas como neopente-
costais e, na maior parte dos casos, os alvos da intolerância são as religiões de
matriz africana, definidas como demoníacas (o que nos obriga também a con-
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siderar o grau de racismo presente nessas práticas nefastas).


O estreitamento do tema para a questão religiosa, porém, não precisa ser
visto como perda, pois, segundo Habermas (2007, p. 296):
[...] a propagação da tolerância religiosa, que pode ser tida como pionei-
ra do surgimento das democracias, tornou-se não somente um modelo,
mas também um estímulo para a introdução de outros tipos de direitos
culturais. A inclusão de minorias religiosas na comunidade política des-
perta e promove a sensibilidade para pretensões de outros grupos dis-
criminados. O reconhecimento do pluralismo religioso pode assumir
tal função de modelo porque ele traz à consciência, de modo exemplar,
a pretensão de minorias à inclusão (HABERMAS, 2007, p. 296).

CONCEPÇÕES DE TOLERÂNCIA

Antes de entrar na temática teológica propriamente dita, é necessário descre-


ver, ainda que minimamente, o conceito de tolerância a partir do qual se fará a
reflexão teológica. Para tanto, baseio-me no artigo “Toleration”, de Rainer Forst,
publicado na Stanford Encyclopedia of Philosophy 1, do qual extraio os trechos,
a seguir, comentados. Neste artigo Forst (2007) apresenta quatro concepções de
tolerância, enquanto no seu livro The Right to Justification. Elements of a construc-
tivist theory of justice ele apresenta apenas dois conceitos dentre os quatro presente
no artigo (que foi revisado em 2012). No livro, a primeira concepção equivale às
duas primeiras do artigo, enquanto a segunda equivale às duas últimas do artigo.

Em: <http://plato.stanford.edu/entries/toleration>. Acesso em: 14 jun. 2018.


1

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia da Tolerância


194 UNIDADE IV

Tolerância, enquanto permissão, é a relação entre uma autoridade, ou maioria,


com uma (ou mais) minoria(s) dissidente ou ‘diferente’. Tolerância, então, sig-
nifica que a autoridade dá permissão qualificada para a minoria viver de acordo
com suas crenças, sob a condição de que essa minoria aceite a posição dominante
da autoridade ou maioria. À medida que o seu modo de ser diferente permaneça
dentro de certos limites, isto é, no ‘âmbito privado’, e que os grupos minoritários
não reivindiquem estatuto público ou político igualitário, eles podem ser tolerados
sob bases pragmáticas ou com base em princípios: sob bases pragmáticas porque
esta forma de tolerância é a menos custosa das alternativas possíveis e não per-

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turba a paz e a ordem públicas, visto que ela é definida pela parte dominante; e
com base em princípios porque se pode pensar que é moralmente problemático
forçar pessoas a desistir de certas crenças ou práticas profundamente enraizadas.
A tolerância, enquanto coexistência, é uma concepção similar à primeira,
pois compreende a tolerância como o melhor meio possível para encerrar ou
evitar conflitos e para garantir o direito à busca dos alvos individuais. Difere,
porém, no tocante ao relacionamento entre os sujeitos e os objetos da tolerância.
Trata-se da relação entre grupos que são aproximadamente iguais em poder e
que percebem que, com vistas à paz social e à busca de seus próprios interesses,
a tolerância mútua é a melhor alternativa possível. Eles preferem a coexistên-
cia pacífica no lugar do conflito, e concordam com um compromisso recíproco
de manter um certo modus vivendi. A relação de tolerância não é mais vertical,
mas horizontal: os sujeitos são simultaneamente objetos da tolerância. Isto pode
não levar a uma situação social estável na qual se desenvolva a confiança, pois
uma vez que as relações de poder se modificam, o grupo mais poderoso pode
não ver mais razões para ser tolerante.
A concepção de tolerância como respeito é aquela mediante a qual as partes
respeitam umas às outras em um sentido mais recíproco. Embora difiram fundamen-
talmente em suas crenças éticas sobre o modo de vida bom e verdadeiro, bem como
em suas práticas culturais, os cidadãos reconhecem uns aos outros como iguais em
termos morais e políticos, no sentido em que o seu ambiente comum de vida social
deveria – no tocante às questões fundamentais de direitos e liberdades e da distri-
buição de recursos – ser governado por normas que todas as partes deveria aceitar
igualmente e que não favorecem nenhuma comunidade ética ou cultural específica.

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


195

Há dois modelos desta concepção – o da igualdade formal e o da igualdade


qualitativa. (a) O modelo da igualdade formal opera com base em uma distinção
estrita entre o ambiente público e o privado, de acordo com a qual as diferenças
éticas (culturais ou religiosas) entre os cidadãos de um Estado legal deveriam ser
confinadas ao espaço privado, de modo que elas não levassem a conflitos na esfera
política. Esta versão é claramente exibida no ‘republicanismo secular’ das autori-
dades da França que sustentam que os “véus” com sentido religioso não tem lugar
nas escolas públicas onde as crianças são educadas como cidadãos autônomos.
(b) A noção de igualdade qualitativa reconhece que certas formas de igual-
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dade formal favorecem aquelas formas-de-vida ético-culturais cujas crenças e


práticas as tornam mais fáceis de acomodar a uma distinção convencional entre
público-privado. Em outras palavras, a igualdade formal tende a ser intolerante
para com formas de vida que requeiram uma presença pública diferenciada das
formas culturais tradicionais e dominantes. Assim, neste modelo, as pessoas
respeitam umas às outras como politicamente iguais com uma identidade ético-
-cultural distinta que necessita de ser respeitada e tolerada como algo que é: (a)
especialmente importante para uma pessoa; e (b) pode oferecer boas razões para
certas exceções, ou mudanças gerais em estruturas sociais ou legais existentes.
A igualdade e a integração social e política são, assim, vistas como compatíveis
com a diferença cultural – dentro de certos limites (morais) de reciprocidade.
A quarta concepção, tolerância enquanto estima, implica em uma noção
mais plena e exigente do reconhecimento mútuo entre cidadãos do que a pre-
sente na concepção da tolerância como respeito. Aqui, ser tolerante significa não
apenas respeitar os membros de outras formas-culturais-de-vida ou de outras
religiões como iguais do ponto de vista político e moral, mas também ter algum
tipo de estima ética pelas suas crenças, isto é, entendê-las como concepções eti-
camente valiosas – embora diferentes das ‘nossas’ – que são, de algum modo,
eticamente atraentes e sustentadas por boas razões. Para que isso seja um caso
de tolerância, o tipo de estima característico destas relações é algo como uma
‘estima reservada’, isto é, um tipo de aceitação positiva de uma crença que, por
alguma razão, você não considera tão atrativa quanto a sua própria. Por mais
valiosos que sejam certos aspectos da crença tolerada, ela também tem aspectos
que você considera errados ou mal direcionados.

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia da Tolerância


196 UNIDADE IV

Evitei qualquer análise crítica da descrição de Forst. Para os efeitos deste


ensaio, basta notar (a) Forst (2002) considera mais adequada a noção de tolerância
enquanto estima; e (b) a concepção de tolerância como estima é, a meu ver, idên-
tica à concepção de respeito em seu modelo qualitativo. Assim, usarei na reflexão
teológica, a seguir, a noção de tolerância como respeito qualitativo (= estima).

TESES TEOLÓGICAS CRISTÃS SOBRE A TOLERÂNCIA

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O tema da tolerância religiosa não está presente de modo pleno na Escritura
judaico-cristã – não era uma questão premente no mundo antigo, posto que, ape-
sar da pluralidade de “doutrinas abrangentes” as instituições políticas e sociais
não eram pluralistas – em outras palavras, não havia contexto para a dimensão
política da tolerância. Encontramos, porém, nas Escrituras, uma série de textos
e situações nos quais as dimensões cognitiva e moral (especialmente esta) da
tolerância estão presentes – mesmo que a palavra não esteja lá – e possibilitam
uma reflexão teológica densa sobre o tema. Minha hipótese é a de que a teologia
cristã deveria sustentar uma concepção da tolerância como respeito qualitativo
(estima), cujas razões apresento a seguir, na forma de uma coleção de teses teoló-
gicas que deveriam sustentar um conceito cristão de tolerância. Cada uma dessas
teses mereceria um estudo à parte, restrinjo-me, aqui, a colocá-las para discussão.
1. A primeira razão que podemos elencar é a afirmação bíblica da criação
de todo o mundo por um único Deus e, dentro desse mundo, a dotação
da humanidade com a imagem e semelhança de Deus – o que aponta
para a igual dignidade de todas as pessoas, independentemente das dife-
renças concretas existentes.
2. A segunda razão, complementar à primeira, é a afirmação bíblica de
que o Deus Criador também é o Pai de todas as criaturas e de todas as
“linhagens” sobre a terra e sobre o céu – o que aponta para a igual frater-
nidade de todas as pessoas, independentemente das diferenças concretas.
3. Uma terceira razão pode ser encontrada na descrição bíblica de Deus
como parceiro de toda a humanidade, parceria iniciada na eleição de
uma família (Abraão e Sara) para, por meio dela, abençoar toda a huma-
nidade – o que indica a universalidade do amor de Deus.

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


197

4. O êxodo israelita do Egito também é razão para uma teologia da tole-


rância, ao apontar para o fato de que Deus se identifica e se solidariza
com aqueles que são vítimas de violência e injustiça – além do fato de
que o êxodo israelita não é o único, mas é paradigmático dos demais
êxodos possíveis (cf. Am 9 e Is 19).
5. A encarnação do Filho de Deus é a quinta razão para uma teologia da
tolerância, na medida em que mostra que Deus assume a condição
humana integralmente e, nela, assume o lugar dos mais rebaixados da
sociedade (Fp 2,5-11).
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6. A morte de Jesus na cruz e sua ressurreição também apontam para a


tolerância forte, pois o Filho de Deus morre por todos os pecadores,
mostrando a plena tolerância amorosa de Deus para com todas as pes-
soas, independentemente de seus méritos – e, ao ressuscitar, o Filho
abre as portas para todas as pessoas entrarem na família divina – e
sem violência.
7. Uma sétima razão para a tolerância se encontra na descrição bíblica do
povo de Deus como constituído de pessoas de “todas as raças, línguas,
tribos, povos e nações” – apontando para a igual estima de Deus para
com todas as formas culturais de vida.
8. Complementarmente, a afirmação de que no povo messiânico se rompem
as barreiras “intolerantes” criadas pelo pecado, demanda a tolerân-
cia plena, pois no Messias não há “grego, judeu, bárbaro, cita, homem,
mulher...”, mas o “Messias [e o Pai] é um e está em todos” – sem deman-
dar das pessoas a negação de sua origem e de sua cultura para participar
do povo de Deus.
9. Uma nona razão para a construção de uma teologia cristã da plena tole-
rância está no conceito paulino de pecado – que torna todas as pessoas
e culturas iguais diante de Deus e umas das outras em sua radical ambi-
guidade – ou seja, todas as culturas, sistemas de valores, formas políticas
(etc.) humanas são manifestações tanto da justiça quanto da injustiça,
de modo que ninguém pode acusar outrem de inferioridade ou alegar
superioridade para sua própria forma cultural de vida.
10. Para finalizar, a décima razão é a convocação da espiritualidade cristã
para “amar o próximo como a si mesmo”.

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia da Tolerância


198 UNIDADE IV

UMA TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO –

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
UMA TEOLOGIA DA AMIZADE

Para finalizar nossa discussão, colegas, vamos estudar o tema da amizade enquanto
expressão do cuidado cristão.

CUIDADO ENQUANTO AMIZADE

O lugar para iniciar a reflexão sobre o cuidado de si e do próximo enquanto ami-


zade é a palavra de Jesus aos seus discípulos em João 15:
9
Como o Pai me amou, também eu vos amei; permanecei no meu amor.
10
Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor;
assim como também eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e
no seu amor permaneço. 11Tenho-vos dito estas coisas para que o meu
gozo esteja em vós, e o vosso gozo seja completo. 12O meu mandamento
é este: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei. 13Nin-
guém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em
favor dos seus amigos. 14Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos
mando. 15Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o
seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi
de meu Pai vos tenho dado a conhecer. 16Não fostes vós que me esco-
lhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros e vos designei
para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça; a fim de que
tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo conceda. 17 Isto
vos mando: que vos ameis uns aos outros. 18Se o mundo vos odeia, sabei
que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim. 19Se vós fôsseis
do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do
mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por isso, o mundo vos odeia.

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


199

O texto é denso, polissêmico, e nos convida à reflexão aprofundada, da qual


podemos apenas oferecer alguns vislumbres. Em primeiro lugar, percebemos
que o tema da amizade é colocado sob o tema do amor – o que encontramos o
tempo todo no Antigo Testamento quando se fala da amizade, seja entre seres
humanos, seja da amizade de Deus por suas criaturas. Por exemplo: “Mas tu, ó
Israel, servo meu, tu, Jacó, a quem elegi, descendente de Abraão, meu amigo”
(Is 41,8); “Porém Absalão disse a Husai: É assim a tua fidelidade para com o teu
amigo Davi? Por que não foste com o teu amigo?” (2Sm 16,17); ou “Há compa-
nheiros com quem nos socializamos; mas há amigo mais chegado do que um
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

irmão” (Pv 18,24).


Em segundo lugar, o amor é apresentado, aqui, no contexto de uma aliança
ou parceria, e não no âmbito de um contrato como no Antigo Oriente, ou no
âmbito da política, como no pensamento grego e filosófico ocidental. Note a
dimensão normativa da amizade nos v. 9-10: “Como o Pai me amou, também
eu vos amei; permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor; assim como também eu tenho guardado os man-
damentos de meu Pai e no seu amor permaneço” – normatividade, porém, que
não está na esfera da lei, mas do companheirismo e da alegria (v. 11).
Em terceiro lugar, encontramos o elemento inusitado do amor como man-
damento – o que, obviamente, desconstrói a ideia de mandamento como uma
ordem judicial com sanção para seu não cumprimento. O mandamento, que é
um novo mandamento, anula toda a Lei: “O meu mandamento é este: que vos
ameis uns aos outros, assim como eu vos amei”.
Em quarto lugar, é nesta conexão que entra o tema da filia (amizade):
“Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor
dos seus amigos. Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando. Já não
vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-
-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a
conhecer” – é fantástica a inversão na fala do Jesus joanino: sois meus amigos
se fizerdes o que eu mando & já não vos chamo servos – mais uma vez retirando
o mando do campo jurídico-político e o colocando no campo da amizade, do
favor, da gratuidade.

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia da Amizade


200 UNIDADE IV

Em quinto lugar, e ainda usando os versos anteriores, somos amigos de


Jesus na medida em que conhecemos tudo o que ele mesmo recebeu do Pai –
somos colocados no mesmo nível – de conhecimento, de relação com o Pai.
Na amizade não há hierarquia, não há assimetria, amizades verdadeiras são
aquelas em que a mutualidade é plena. “Este caminho de amizade, progres-
sivamente, e quase sem nos darmos conta, nos vai tornando semelhantes ao
Senhor e, com isso, ao ideal de ser humano” (GALILEA, 1987, p. 16).
Em sexto lugar, a amizade está inserida no campo da missão – ir e dar fru-
tos – de modo que não se trata de uma relação fundada apenas na afinidade,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mas no bem-fazer ao amigo, à amiga – ser amigo é fazer o bem ao amigo, é
frutificar na vida da pessoa amiga a bênção de Deus.
Enfim, a amizade é uma parceria inserida num contexto de conflitividade:
se amamos a Deus, somos odiados pelo mundo. As amizades que fazemos, na
ambivalência da existência humana, geram, não intencionalmente, inimizades
– e eis aqui a dimensão ético-política da amizade: a amizade configura uma
tensão entre nós-eles (não-nós), uma tensão causada por opções éticas e políti-
cas antagônicas. Não as opções ético-políticas messiânicas, porque no Messias,
“Deus estava reconciliando consigo mesmo o mundo”, mas as opções dos que
se auto-definem como inimigos de Jesus, de Deus ou de seu povo.
Assim, podemos pensar no cuidado enquanto amizade sob a ótica da
redução da inimizade, da transformação de inimigos em amigos. Richard
Rorty assim definiu a justiça, ‘lealdade ampliada’, que podemos traduzir
como a transformação de inimigos e amigos, e, mais, a transformação do
que nem inimigo pode ser, em amigo: plantas, pedras, astros celestes, animais
etc. O cuidado de si e do próximo, enquanto amizade, se concretiza, então,
por exemplo, na eliminação de todo tipo de preconceito e de intolerância; se
caracteriza pela recusa a classificar as coisas e os seres vivos no dualismo nós-
-eles e transforma todos os eles em nós. Cuidar do próximo como amizade
implica, também, na evangelização do próximo, não a partir da pré-con-
ceituação do próximo como perdido, ímpio ou algo similar, mas a partir do
amor ao próximo que ainda não é parte de nós, assim como “Deus amou ao
mundo de tal maneira [...]”.

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


201

CUIDADO ENQUANTO HOSPITALIDADE

O salmo mais conhecido das Escrituras judaicas nos apresenta YHWH como um
anfitrião: “Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários, unges-me
a cabeça com óleo; o meu cálice transborda. Bondade e misericórdia certamente
me seguirão todos os dias da minha vida; e retornarei à casa de YHWH todos
os meus dias” (Sl 23,5-6). As expressões e palavras em itálico todas se refe-
rem à prática de hospedar pessoas – primeiramente em um jantar ou banquete
(v. 5) e, depois, em abrir as portas da casa para receber a pessoa em visita. Em
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Deuteronômio YHWH é descrito como um deus peculiar, entre cujas caracte-


rísticas está a hospitalidade: “Pois YHWH, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o
Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e temível, que não faz acepção
de pessoas, nem aceita suborno; que faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estran-
geiro, dando-lhe pão e vestes” (Dt 10,17-18). Além destas afirmações explícitas
sobre YHWH como hospedeiro, podemos ver a mesma noção implícita na ideia
da criação, pois toda a terra pertence a YHWH – se nela habitamos, habitamos
como hóspedes de Deus no planeta.
Que a noção de YHWH como hospedeiro está implícita nos relatos do
êxodo do Egito pode ser percebido nas normas da Torá sobre o estrangeiro resi-
dente (imigrante) na Terra Prometida, por exemplo: “Se o imigrante peregrinar
na vossa terra, não o oprimireis. Como o nascido na terra, será entre vós o imi-
grante que peregrina convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois imigrantes
fostes na terra do Egito. Eu sou YHWH, vosso Deus” (Lv 19,33-34). A mesma
norma aparece em Êx 22,21: “Não afligirás o imigrante, nem o oprimirás; pois
imigrantes fostes na terra do Egito”. Em
um mundo em que pessoas ficam sem
pátria (lar, ou terra natal), abrir as por-
tas para hospedar o imigrante é ato de
hospitalidade e justiça – assim era no
mundo antigo, e muito mais em nossa
própria época – época de imigrações
forçadas por guerras, conflitos regio-
nais, perseguição religiosa, étnica etc.

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia da Amizade


202 UNIDADE IV

Quando chegamos ao Novo Testamento quadro similar relativo à hospita-


lidade se apresenta: Deus é anfitrião que acolhe o estranho – explicitamente em
parábolas de Jesus (Mt 22 e Lc 14) e em relatos de refeição à mesa (convidar uma
pessoa para a refeição era um ato de hospitalidade e integração) e implicitamente
na noção de reconciliação. Por exemplo: “Disse também ao que o havia convi-
dado: quando deres um jantar ou uma ceia, não convides os teus amigos, nem
teus irmãos, nem teus parentes, nem vizinhos ricos; para não suceder que eles,
por sua vez, te convidem e sejas recompensado. Antes, ao dares um banquete,
convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás bem-aventurado,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
pelo fato de não terem eles com que recompensar-te; a tua recompensa, porém,
tu a receberás na ressurreição dos justos” (Lc 14,12-14). Aqui encontramos uma
crítica à ‘falsa’ hospitalidade – aquela baseada no possível ganho. A verdadeira
hospitalidade é a acolhida daquela pessoa que não tem condições de nos dar
lucro ou atender a interesses nossos. No contexto dos Evangelhos, a crítica de
Jesus se dirigia primariamente à lógica separatória (classificatória) do Judaísmo:
as pessoas impuras não poderiam entrar no reino de YHWH.
A mesma crítica está presente no relato da refeição de Jesus com um publi-
cano: “De novo, saiu Jesus para junto do mar, e toda a multidão vinha ao seu
encontro, e ele os ensinava. Quando ia passando, viu a Levi, filho de Alfeu, sen-
tado na coletoria e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu. Achando-se
Jesus à mesa na casa de Levi, estavam juntamente com ele e com seus discípulos
muitos publicanos e pecadores; porque estes eram em grande número e também
o seguiam. Os escribas dos fariseus, vendo-o comer em companhia dos peca-
dores e publicanos, perguntavam aos discípulos dele: Por que come e bebe ele
com os publicanos e pecadores? Tendo Jesus ouvido isto, respondeu-lhes: Os
sãos não precisam de médico, e sim os doentes; não vim chamar justos, e sim
pecadores” (Mc 2,13-17).
As comunidades primitivas assumiram a responsabilidade pastoral da hospi-
talidade, conforme podemos ver em vários textos: “compartilhai as necessidades
dos santos; praticai a hospitalidade (φιλοξενίαν)” (Rm 12,13); “É necessário,
portanto, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher, temperante,
sóbrio, modesto, hospitaleiro, apto para ensinar” (1Tm 3,2); “seja recomendada
pelo testemunho de boas obras, tenha criado filhos, exercitado hospitalidade,

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


203

lavado os pés aos santos, socorrido a atribulados, se viveu na prática zelosa de


toda boa obra” (1Tm 5,10); “antes, hospitaleiro, amigo do bem, sóbrio, justo, pie-
doso, que tenha domínio de si” (Tt 1,8). E a mesma exortação é dirigida a todos
os cristãos: “Sede, mutuamente, hospitaleiros, sem murmuração” (1Pd 4,9); “com-
partilhai as necessidades dos santos; praticai a hospitalidade” (Rm 12,13); “Não
negligencieis a hospitalidade, pois alguns, praticando-a, sem o saber acolheram
anjos” (Hb 13,2). Essa hospitalidade envolvia a acolhida de pregadores e outros
ministros ambulantes, bem como a acolhida de viajantes (da igreja ou não) nas
casas dos membros da comunidade. Envolvia, também, a própria vida da comuni-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

dade que deveria ser uma ‘casa aberta’ a todas as pessoas que procurassem ajuda,
socorro, conforto – independentemente de sua condição religiosa, étnica etc.
Um texto fundamental, pouco trabalhado por protestantes e evangélicos em
geral, é o de Mt 25,31-46, que merece ser citado na íntegra:
31
Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos
com ele, então, se assentará no trono da sua glória; 32e todas as nações
serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos outros, como
o pastor separa dos cabritos as ovelhas; 33e porá as ovelhas à sua direi-
ta, mas os cabritos, à esquerda; 34então, dirá o Rei aos que estiverem à
sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que
vos está preparado desde a fundação do mundo. 35Porque tive fome, e
me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me
hospedastes; 36estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e
fostes ver-me. 37Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que
te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de
beber? 38E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te
vestimos? 39E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar? 40O
Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o
fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. 41Então,
o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de
mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus an-
jos. 42Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me
destes de beber; 43sendo forasteiro, não me hospedastes; estando nu,
não me vestistes; achando-me enfermo e preso, não fostes ver-me. 44E
eles lhe perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome, com
sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso e não te assistimos? 45Então, lhes
responderá: Em verdade vos digo que, sempre que o deixastes de fazer
a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer. 46E irão estes
para o castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna.

Uma Teologia Pública do Reconhecimento – Uma Teologia da Amizade


204 UNIDADE IV

Os versos 35-36, em itálico, formam um pequeno compêndio da hospitalidade


cristã: toda vez que acolhemos uma pessoa necessitada, acolhemos ao próprio
Messias. Essa acolhida não se restringe a receber a pessoa em casa ou na comu-
nidade, mas se estende a ir ao encontro da pessoa necessitada e ajudá-la a suprir
suas necessidades. Neste sentido, a prática da hospitalidade faz parte da própria
essência do cuidado pastoral, pois faz parte da essência do ministério do Messias
e do agir libertador de Deus. De tal modo ela é crucial para o estilo de vida mes-
siânico, que se torna critério do juízo final.
Para sintetizarmos estes dados, recorro à colaboração da teóloga Letty Russell

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(2000, p. 517):
hospitalidade é a prática da acolhida de Deus, superando a diferença,
para participar nas ações de Deus que trazem justiça e cura para ao
nosso mundo em crise. [...] O ministério da igreja é o de ser parceira
dos estranhos, de acolher aquelas pessoas a quem Cristo acolheu e, as-
sim, aprender a ser uma comunidade em que as pessoas se tornam um
em Jesus Cristo a despeito de suas diferentes classes, pano-de-fundo
religioso, gêneros, raças e grupos étnicos. Nossa comunhão ou parti-
cipação em Cristo é um dom de nosso batismo e não um resultado de
pertencer a uma classe, raça ou orientação sexual. É um dom que trans-
cende as diferenças reais mediante a participação na missão e ministé-
rio da igreja em busca da cura de um mundo quebrantado, começando
conosco mesmos.

Uma comunidade pastoral hospitaleira nunca será uma comunidade homogênea


– a hospitalidade elimina o preconceito, a intolerância, e transforma a comu-
nidade em uma hospedaria aberta a todo peregrino no mundo, em um hospital
aberto a todas as pessoas doentes, em um spa para as pessoas cansadas, em um
paraíso para as pessoas injustiçadas, em um hospício (uso a palavra por causa
de sua raiz, mas claramente ela deve ser entendida como uma realidade radical-
mente contrária da realidade desumana dos antigos hospícios) para os aflitos.
Cuidar de si e do próximo como hospitalidade é a essência do cuidado cristão,
tremendamente desafiadora, pois demanda que nossa tradição classificatória,
que não admite na igreja prostitutas, mendigos, pobres, adolescentes infratores,
homossexuais etc., seja abandonada em prol da tradição messiânica da hospi-
talidade divina.

TEOLOGIA PÚBLICA DO RECONHECIMENTO


205

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Bom, caro(a) aluno(a), chegamos ao final de mais uma Unidade de nossa disciplina
Teologia Pública. Nosso tema tem sido ‘uma teologia pública do reconhecimento’.
Como de costume, seguimos uma metodologia específica para a Teologia Pública
- o diálogo entre o pensamento contemporâneo e o pensamento bíblico, a fim
de construir os conceitos teológicos públicos.
A seleção do tema a ser estudado é um elemento fundamental do método:
os temas devem ser extraídos da vida pública contemporânea. Por isso, sele-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

cionamos o tema do reconhecimento, pois ele representa uma das formas mais
conhecidas hoje em dia dos conflitos sociais no mundo e no Brasil. A luta por
reconhecimento, na atualidade brasileira, tem pelo menos três grandes movi-
mentos sociais que a representam: movimento feminista, movimento negro e
movimento LGBTQ+ - e devemos incluir os movimentos que surgiram em reação
a um ou outro desses movimentos, como o Movimento Brasil Livre, por exem-
plo, que se contrapõe ao LGBTQ+ com a sua noção de ideologia de gênero etc.
Estes são movimentos de luta por reconhecimento na dimensão simbólica ou
cultural e, consequentemente, possuem um forte elemento moral em sua essên-
cia - responsável por conflitos que invadem o campo religioso, pois as religiões
também tem sua própria moralidade e éticas. Assim, são movimentos que ilus-
tram vigorosamente o conceito que aqui estudamos.
Teologicamente, vimos três dimensões do conceito de reconhecimento: o
cuidado, a tolerância e a amizade. Estes três aspectos formam uma atitude cristã
na luta por reconhecimento. Ou seja, uma luta cristã por reconhecimento não
deveria ser marcada pelo desejo de ‘vencer’ o outro, mas pelos princípios mis-
siológicos e pastorais de ‘cuidar do outro’, ‘respeitar o outro’ e ‘acolher o outro’
em sua alteridade.
O modelo para uma luta cristã por reconhecimento é o próprio ministério
terreno do Senhor Jesus, que acolheu a todos e todas pecadoras e se entregou
por todos na cruz.
Abraço!

Considerações Finais
206

1. As três práticas da visão cristã da luta por reconhecimento estudadas nesta


lição são:
a) Evangelização, educação, missão.
b) Cuidado, educação, missão
c) Cuidado, tolerância, amizade (hospitalidade).
d) Tolerância, amizade, evangelização.
e) Tolerância, respeito, apreciação.

2. Qual destes movimentos sociais pode ser caracterizado por busca de reconhe-
cimento na dimensão simbólica?
a) Movimento dos sem-terra.
b) Movimento dos sem-teto.
c) Movimento LGBT.
d) Movimento pela liberação do FGTS.
e) Movimento pela recuperação dos débitos externos.

3. O conceito de luta por reconhecimento de Honneth possui três dimensões:


a) Pessoal.
b) Institucional.
c) Cidadã.
d) Religiosa.
e) Simbólica.
Assinale a alternativa correta:
a) I, II e III estão corretas.
b) II, III e IV estão corretas.
c) I, III e V estão corretas.
d) II, III e V estão corretas.
e) II, IV e V estão corretas.
207

4. De acordo com o texto da disciplina: “Por ser parcial em seu agir na história
é que YHWH é um Deus ___________. O Deus de hebreus não é universal
apenas porque criou todas as pessoas, mas exatamente porque – na história
– ___________ por algumas dentre todas as pessoas e povos que criou. Na
linguagem paulina, Deus é universal porque optou pelos ____________, ou,
nas palavras de Jesus, ‘eu não vim chamar justos, mas pecadores’, referindo-se
a publicanos e pecadores desprezados pelo Judaísmo oficial de sua época –
publicanos e pecadores, alguns dentre os hebreus da época de Jesus” (v. Mc
2:13-17). A sequência correta de palavras que completam a citação acima é:
a) Parcial, sente, crentes.
b) Parcial, sofre, pecadores.
c) Exclusivo, chama, justos.
d) Universal, opta, pecadores.
e) Universal, morre, batizados.

5. De acordo com Heidegger, na vida com-o-mundo e com-os-outros, o cuidado


é o modo de ser do Dasein, jogado na tensão entre:
I. Gestão.
II. Ocupação.
III. Solicitude.
IV. Diversão.
V. Responsabilidade.
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas I e IV estão corretas.
d) Apenas II e V estão corretas.
e) Apenas I e V estão corretas.
208

A Filosofia do reconhecimento: as contribuições de Axel Honneth a essa categoria


A ideia do reconhecimento adquire importância substancial na contemporaneidade. A
filosofia política vem assistindo, nos últimos anos, a um acirrado debate em torno desse
conceito. Um crescente número de autores, de diversas áreas científicas, debruça-se so-
bre o tema. Neste artigo, apresentou-se um destes autores contemporâneos que utiliza
o termo reconhecimento como ideia central em sua teoria: Axel Honneth. Os motivos
apresentados por Honneth para essa escolha são diversos. Em primeiro lugar, elucidar a
relação existente entre subjetividade e intersubjetividade. Em segundo lugar, a retoma-
da da filosofia hegeliana. E o terceiro motivo são os argumentos críticos que Honneth
pretende desenvolver. Dito de outro modo, construir um “arcabouço argumentativo”
capaz de refutar as teses de outros autores. Dentre eles, encontra-se Habermas. Assim,
o artigo foi elaborado com o objetivo de apresentar esses aspectos da filosofia honne-
tiana.
Dados estes argumentos, é preciso perguntar: a crítica de Honneth a Habermas é ba-
sicamente uma crítica política? A interpretação honethiana de Habermas toma como
ponto de partida a postura política habermasiana? Enfim, qual é o cerne da política de
Honneth? E qual é o cerne da crítica de Honneth à política de Habermas? Ao que tudo
indica, ela é indireta. A crítica é à teoria da sociedade – argumento direto – e, por conse-
quência, à teoria política – argumento indireto. Isto é, a crítica de Honneth à Habermas
dá-se pela via da teoria social e não pela via da política. Portanto, esta é a tese. Outro
ponto passível de discussão é saber se a noção de “luta por reconhecimento” realmente
consegue preencher o déficit sociológico diagnosticado em Habermas. E ainda, de que
modo as reivindicações por reconhecimento são justificados, incorporados no plano po-
lítico. Segundo Chambers, apesar da perspectiva de Honneth querer ser “mais prática”,
“historicamente situada”, embora busque caracterizar a injustiça e o conflito de modo
mais concreto (do que Habermas), as implicações políticas da teoria do reconhecimen-
to não são mais claras – no sentido de dizer “o que deve ser feito?” – e, nesse sentido,
Honneth não seria “mais político” que Habermas (CHAMBERS, 2004, p.238). Essa crítica à
“insuficiência política” da teoria do reconhecimento de Honneth também é colocada em
questão por outros autores. Para Werle e Melo, talvez a teoria crítica de Honneth esteja
cometendo um “déficit político”, pois não há a explicitação fundamental de um princípio
de justificação pública, em que os próprios cidadãos possam decidir quais formas de
reconhecimento e princípios de justiça são legítimos ou ilegítimos. Em contrapartida, tal
problema – dos critérios normativos próprios de um contexto político que seriam capa-
zes de avaliar as lutas por reconhecimento nesse campo – talvez pudesse ser sanado se
Honneth propusesse uma outra esfera de reconhecimento, junto com as outras – amor,
direito e solidariedade “uma forma propriamente política de reconhecimento intersub-
jetivo”, que estivesse em consonância com a concepção liberal igualitária da cidadania
democrática.
209

Para Saavedra e Sobottka, faz-se necessário, hoje, o pensamento crítico das institui-
ções do estado democrático de direito: “como é possível combinar a ideia hegeliana de
luta por reconhecimento com as instituições de um estado democrático de direito?”, e
também “como é possível pensar instituições a partir do conceito de reconhecimento,
dado que Honneth, desde o início, e ainda hoje, pretende desenvolver esse conceito
sem se fazer valer, como Habermas, da teoria dos sistemas?” (SAAVEDRA & SOOBTTKA,
2008, p.17-18). Trata-se, de certa maneira, de uma questão que não diz respeito apenas
a teoria de Honneth, mas ao estatuto atual da teoria crítica mesma, da sua capacidade
propositiva em relação aos problemas e obstáculos à emancipação nas sociedades con-
temporâneas, em compreender e avaliar formas de pensamento e ação, na apresenta-
ção de potencialidades próprias das instituições democráticas. São questões que na sua
pertinência dizem respeito não só à teoria do reconhecimento honnethiana, mas, de
certa maneira, à Teoria Crítica em seu momento atual. Elas “testam” a força propositiva
da Teoria Crítica em relação aos problemas e obstáculos à emancipação nas sociedades
contemporâneas, e forçam a pesquisa teórica a compreender e avaliar minuciosamente
como poderia se constituir esta teoria nos dias de hoje. Tal avaliação passa necessaria-
mente por alguns aspectos: seja na perspectiva da prática de produção de sentidos para
preencher lacunas de formas de pensamento e ação, seja na apresentação das poten-
cialidades próprias das instituições democráticas, na crítica da economia mundializada,
ou ainda em outros âmbitos. Logo, é pertinente a retomada da filosofia hegeliana para a
Teoria Crítica honnetiana no sentido de reatualizar aquele sistema perante as exigências
da filosofia política contemporânea. E isso Honneth faz muito bem em seu sistema filo-
sófico retomando os escritos juvenis de Hegel em Jena.
[...]
Fonte: Araújo Neto (2013).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Teologia Pública - Deslocamentos da teologia contemporânea


Eneida Jacobsen & Franz Gmainer-Pranzl (Orgs.)
Editora: Sinodal
Sinopse: Quinto volume da coleção Teologia Pública. Discute as principais
alterações na teologia contemporânea à luz dos desafios públicos de um
mundo globalizado.

O Garoto Selvagem
Ano: 1970
Sinopse: Em 1797, um menino selvagem é capturado numa floresta de
Aveyron, onde sempre viveu. Encaminhado para um centro de surdos-
mudos, é objeto de todo tipo de curiosidade. Em seguida é levado pelo Dr.
ltard, que acreditava ser possível transformar o garoto.

Para acrescentar ainda mais experiência sobre o tema, indico a você um artigo com uma revisão
do estado da Teologia Pública atual no Brasil.

Web: <anais.est.edu.br/index.php/congresso/article/viewFile/70/110>
211
REFERÊNCIAS

ARAÚJO NETO, J. A. C. A Filosofia do reconhecimento: As contribuições de Axel


Honneth a essa categoria. Kínesis, v. 5, n. 09 (Edição Especial), p. 52-69, jul., 2013.
Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/
joseneto.pdf>. Acesso em: 06 fev. 2018.
COHEN, R. A. “Foreword”. In: LEVINAS, E. Otherwise than being, or, Beyond essence.
Pittsburgh: Duquesne University Press, 1998.
DERRIDA, J. O animal que logo sou. (A Seguir). São Paulo: Editora da Unesp, 2002.
FORST, R. Contexts of Justice: Political philosophy beyond liberalism and commu-
nitarianism. Los Angeles: California University Press, 2002.
FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GALILEA, S. La Amistad de Dios. El Cristianismo como Amistad. Madrid: Paulinas,
1987.
HABERMAS, J. Entre naturalismo e religião. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Parte I. Petrópolis: Vozes, 1989.
HONNETH, A. Disrespect. The Normative Foundations of Critical Theory. Cambrid-
ge: The MIT Press, 2007.
______. A Luta pelo Reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2003.
LEVINAS, E. Otherwise than being, or, Beyond essence. Pittsburgh: Duquesne
University Press, 1998.
MIRANDA, J. V. A. Sensibilidade ética em Emmanuel Levinas. Kínesis, v. III, n. 6, dez.,
2011.
RUSSELL, L. M. Just hospitality: God’s welcome in a world of difference. Westmins-
ter: John Knox Press, 2000. Edição Digital.
SBB. Bíblia Sagrada. Almeida Revista e Atualizada. Disponível em: <http://biblia.
com.br/joaoferreiraalmeidarevistaatualizada/>. Acesso em: 1 jan. 2017.
SCHWANTES, M. Teologia do Antigo Testamento. São Leopoldo: EST, 1988.
DE VITA, A. Sociedade Democrática e Tolerância Liberal. Novos Estudos, n. 84, jul.,
2009.
SAAVEDRA, G. A.; SOBOTTKA, E. A. Introdução à teoria do reconhecimento de Axel
Honneth. Civitas, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 17-18, 2008.
ZABATIERO, J. P. T. M. Benignidade e soberania de Deus: Chaves Teológicas da
Missão do Povo de Deus. Disponível em: <http://nucleopensante.blogspot.com.
br/2011/11/benignidade-e-soberania-de-deus.html>. Acesso em: 23 dez. 2017.
GABARITO

1. C.

2. C.

3. C.

4. D.

5. B.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

TEOLOGIA PÚBLICA DA

V
UNIDADE
SOBERANIA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Conceituar soberania à luz da filosofia contemporânea.
■■ Descrever a visão bíblica da soberania.
■■ Explicar a dimensão do poder na soberania.
■■ Explicar a dimensão da cidadania na soberania.
■■ Explicar a dimensão da democracia na soberania.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O conceito de Soberania na filosofia contemporânea
■■ Um olhar bíblico sobre a soberania
■■ Uma teologia pública da soberania – poder
■■ Uma teologia pública da soberania - cidadania
■■ Uma teologia pública da soberania - democracia
215

INTRODUÇÃO

Olá, caro(a) aluno(a)! Chegamos à última Unidade de nossa disciplina Teologia


Pública. Nesta Unidade, discutiremos o tema da soberania (ou do poder), que
está diretamente vinculado ao tema da liberdade que estudamos na Unidade 2,
desta disciplina. Na discussão sobre a liberdade, constatei que a construção da
cidadania é a principal tarefa pública das igrejas cristãs no Brasil atual. Agora,
portanto, discutiremos com mais detalhes em que constitui exercer a cidadania
em uma sociedade democrática, refletindo sobre o conceito de soberania, um
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

dos conceitos-chave da teoria política.


Vamos restringir nossa discussão a um autor cuja reflexão se tornou um
clássico no pensamento político do século XX: Carl Schmitt, que foi um filó-
sofo e teólogo católico-romano, especializado em direito e teoria política. É um
dos autores mais citados nas discussões de teologia política e, certamente, um
dos mais controversos, especialmente por seus vínculos com o nacional-socia-
lismo alemão (a ideologia que fundamentou o nazismo). Ficará evidente que
nosso uso da tese primária de Schmitt é bem crítico, porém, não seria bom você
terminar uma disciplina de Teologia Pública sem conhecer nada da obra deste
controverso pensador.
A análise do pensamento de Schmitt será feita a partir da obra de Giorgio
Agamben - filósofo italiano (ainda vivo), com uma vasta obra sobre teoria polí-
tica e teologia política. É também um pensador indispensável para a Teologia
Pública. Suas ideias são bem mais interessantes do que as de Schmitt, embora
sempre façamos um uso crítico de todo e qualquer pensador contemporâneo.
Os três temas que discutiremos a partir do diálogo entre o pensamento
contemporâneo e a Bíblia serão: poder, cidadania e democracia. Iremos aprofun-
dar nossa discussão dos temas da cidadania e democracia, que estão presentes
em vários momentos desta disciplina (e certamente em outras disciplinas do
Bacharelado em Teologia). São temas indispensáveis para a teologia e para o
pastorado na atualidade. Mãos à obra!

Introdução
216 UNIDADE V

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O CONCEITO DE SOBERANIA NA FILOSOFIA
CONTEMPORÂNEA

Para Schmitt (1985, p. 5), “soberano é aquele que decide sobre o estado de exce-
ção”. A soberania, consequentemente, é o exercício do poder no estado de exceção.
Em que consiste, para Schmitt, um estado de exceção? Qualquer tipo de situação
relativamente caótica, seja do ponto de vista político, seja econômico, que exige
a aplicação de medidas político-legais extraordinárias. O estado de exceção sus-
pende, por assim dizer, a ordem constitucional e outorga poderes especiais ao
soberano para legislar e governar. Conforme a avaliação de Agamben (2004, p.
13): “o estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de
indeterminação entre democracia e absolutismo”.
Ora, se aceitarmos esta definição de soberania de Carl Schmitt, então o exer-
cício do poder soberano não passa de um ato arbitrário e opressor. Vejamos a
seguinte crítica ao conceito:
não há nenhuma salvaguarda institucional capaz de garantir que os
poderes de emergência sejam efetivamente usados com o objetivo de
salvar a constituição. Só a determinação do próprio povo em verificar
se são usados para tal fim é que pode assegurar isso [...]. As disposições
quase ditatoriais dos sistemas constitucionais modernos, sejam elas a
lei marcial, o estado de sítio ou os poderes de emergência constitucio-
nais, não podem exercer controles efetivos sobre a concentração dos
poderes. Consequentemente, todos esses institutos correm o risco de
serem transformados em sistemas totalitários, se condições favoráveis
se apresentarem (FRIEDRICH, 1950, p. 828s).

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


217

A crítica de Friedrich aponta a falta de legitimidade do conceito schmittiano de


soberania: decidir sobre o estado de exceção é decidir arbitrariamente, decidir
sem amparo legal e sem o exercício efetivo da cidadania democrática. Diante da
não-validade do conceito de soberania como decisão sobre o estado de exceção,
Agamben (2004) propõe a reinvenção da política como expressão da soberania
popular. Cabe aqui uma citação mais longa para nossa reflexão:
se é verdade que a articulação entre vida e direito, anomia e nomos pro-
duzida pelo estado de exceção é eficaz, mas fictícia, não se pode, porém,
extrair disso a consequência de que, além ou aquém dos dispositivos ju-
rídicos, se abra em algum lugar um acesso imediato aquilo de que repre-
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sentam a fratura e, ao mesmo tempo, a impossível recomposição. Não


existem, primeiro, a vida como dado biológico natural e a anomia como
estado de natureza e, depois, sua implicação no direito por meio do esta-
do de exceção. Ao contrário, a própria possibilidade de distinguir entre
vida e direito, anomia e nomos coincide com sua articulação na máquina
biopolítica. A vida pura e simples é um produto da máquina e não algo
que preexiste a ela, assim como o direito não tem nenhum fundamento
na natureza ou no espírito divino. Vida e direito, anomia e nomos, auc-
toritas e potestas resultam da fratura de alguma coisa a que não temos
outro acesso que não por meio da ficção de sua articulação e do paciente
trabalho que, desmascarando tal ficção, separa o que se tinha pretendido
unir. Mas o desencanto não restitui o encantado a seu estado original:
segundo o princípio de que a pureza nunca está na origem, ele lhe dá
somente a possibilidade de aceder a uma nova condição.
Mostrar o direito em sua não-relação com a vida e a vida em sua não-rela-
ção com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana
que, há algum tempo, reivindicava para si o nome “política”. A política
sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo direito, con-
cebendo-se a si mesma, no melhor dos casos, como poder constituinte
(isto é, violência que põe o direito), quando não se reduz simplesmente a
poder de negociar com o direito. Ao contrário, verdadeiramente política
é apenas aquela ação que corta o nexo entre violência e direito. E somente
a partir do espaço que assim se abre, é que será possível colocar a questão
a respeito de um eventual uso do direito após a desativação do dispositivo
que, no estado de exceção, o ligava à vida. Teremos então, diante de nós,
um direito “puro”, no sentido em que Benjamin fala de uma língua “pura”
e de uma “pura” violência. A uma palavra não coercitiva, que não coman-
da e não proíbe nada, mas diz apenas ela mesma, corresponderia uma
ação como puro meio que mostra só a si mesma, sem relação com um
objetivo. E, entre as duas, não um estado original perdido, mas somente
o uso e a práxis humana que os poderes do direito e do mito haviam pro-
curado capturar no estado de exceção (AGAMBEN, 2004, p. 132-133).

O Conceito de Soberania na Filosofia Contemporânea


218 UNIDADE V

Não precisamos concordar plenamente com a tese de Agamben para rearti-


cularmos o conceito de soberania e o descrevermos de um modo que alcance
legitimidade. O problema do estado de exceção é que ele vincula indissolu-
velmente o direito à violência, ou seja, no estado de exceção a lei do país é
constituída de modo ilegal e não-democrático. Desta forma, a soberania é
um ato de violência contra a democracia e a cidadania. Para que se pratique
uma soberania legítima é necessário, portanto, cortar o vínculo entre violên-
cia e direito instituído no estado de exceção. Como se faz isso? Basicamente,
mediante o exercício da cidadania democrática, que configura o conceito de

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soberania popular. Ao invés de uma ficção jurídico-política, a soberania con-
siste no exercício cotidiano e vigilante da cidadania democrática, de modo
a manter em funcionamento o estado de direito, impedindo a ascensão do
estado de exceção.
No vínculo excepcional entre direito e violência, a cidadania é anulada e
a democracia transfigurada em tirania, mas de forma tal que ainda se pareça
democracia e não tirania. Em outras palavras, e pensando na situação brasileira
atual, se aceitarmos que a soberania é um atributo do Estado e não da socie-
dade, então vivemos permanentemente em um estado de exceção, no qual as
instituições estatais são capazes de legitimar legalmente o exercício de uma
soberania ilegítima e excepcional. Assim, devemos reverter a noção de sobe-
rano de Schmitt (1985): soberano é quem decide no/sobre o estado de direito.
Soberano é, então, o povo de uma nação democrática, o povo exercendo a sua
cidadania de modo mais pleno possível.
Para concluir esta seção, soberania consiste no exercício da liberdade, con-
forme o conceito multidimensional de liberdade que discutimos na Unidade
dois: liberdade moral, ética, legal, política e social. Soberania, assim, con-
siste na liberdade democrática do exercício responsável da cidadania – visão
que norteará nossa discussão teológica na sequência deste capítulo de nossa
disciplina.

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


219
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UM OLHAR BÍBLICO SOBRE A SOBERANIA

Muito bem, colegas, para estudarmos a visão bíblica sobre a soberania, dis-
cutiremos o conceito de poder na Escritura, a partir de três temas teológicos
fundamentais: libertação, aliança e reino de Deus. Mãos à obra!

ELEMENTOS DE UMA TEOLOGIA BÍBLICA DO PODER

Três dos temas principais da Bíblia são apresentados em linguagem predomi-


nantemente política: (a) libertação e salvação; (b) aliança e nova aliança; e (c)
reino de Deus e senhorio de Jesus Cristo. Esta é uma afirmação óbvia, mas uma
obviedade que tem passado amplamente desapercebida. Por muito tempo o
evangelicalismo brasileiro pensou que a separação entre Igreja e Estado era, na
prática, uma separação entre fé e política. Quantas vezes não se afirmou que a
fé não tem nada a ver com política e que Jesus não foi político? Quantas vezes
não se usou e abusou dessa dicotomia maniqueísta e antibíblica de que o espiri-
tual não tem nada a ver com o temporal, de que o Reino de Deus não tem nada
a ver com os reinos humanos; de que a salvação é algo espiritual e por isso não
pode se misturar com política? Nas duas últimas décadas esse modo de pensar
tem se modificado, mas ainda precisamos avançar mais ousadamente para cons-
truir uma ética política adequada.

Um Olhar Bíblico Sobre a Soberania


220 UNIDADE V

A base bíblica para uma teologia pública evangélica da soberania deverá ser,
portanto, uma análise da manifestação do poder de Deus nas Escrituras, sob
o signo desses três temas complementares, da libertação, aliança e reinado de
Deus (e seus correspondentes neotestamentários: salvação, nova aliança e senho-
rio de Jesus Cristo). Um elemento comum a esses três temas, a meu ver, é o do
exercício divino do poder soberano como meio de salvação integral e humani-
zação da sociedade.
Deixe-me iniciar com breves reflexões sobre a libertação que, no Antigo
Testamento, possui sua forma concreta e fundante no acontecimento do êxodo

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dos hebreus do Egito: o êxodo, ou libertação, é um evento histórico, social, con-
creto e não pode ser espiritualizado nem reduzido a uma função preparatória ou
preliminar na história da salvação (que seria o evento espiritual mais perfeito).
Do ponto de vista da ética política evangélica, ler o êxodo historicamente sig-
nifica lê-lo como manifestação do poder de Deus que liberta escravos, pessoas
oprimidas por um governo opressor e injusto. Na libertação, encontramos um
conflito de poderes: o poder libertador de Javé versus o poder opressor dos deu-
ses do Egito. Dois tópicos merecem destaque aqui: (a) Javé é o Deus de hebreus
A palavra hebreu, originariamente, não indica um grupo étnico, mas um grupo
social, hebreu é o marginalizado pelo poder político-econômico. Nos textos
relativos aos períodos mais antigos da história de Israel, o termo hebreu é usado
quando se quer destacar a fragilidade, marginalização ou sofrimento do povo (I
Sm 4:6,9; 13:13,19; 14:11,21; 29:3; Gn 14:13; 39:14; 40:15; 43:32; Dt 15:12; Jr 34:9).
Somente no livro do Êxodo Javé é chamado de Deus dos hebreus (3:18; 5:3; 7:16;
9:1,13; 10:3), ou seja, Deus das pessoas oprimidas pelo faraó e pelos deuses do
Egito. Javé não é o Deus de uma etnia, é o Deus de oprimidos, de marginalizados,
de escravos – sejam de que etnia forem. De Javé, no Êxodo, se afirma que viu o
sofrimento e ouviu o clamor dos hebreus (Êx 2:23s; 3:7,9; 6:5). No exercício do
poder sempre se esbarra em uma parcialidade. Há sempre que se optar por um
poder emancipatório ou por um poder opressor. Deus, sempre fiel a si mesmo,
sempre exerce o seu poder de forma libertadora, emancipadora. Por ser parcial
em seu agir na história é que Javé é um Deus universal. Uma ética política evan-
gélica não pode temer ser parcial, pois a realidade política é conflitiva e nela há
de se optar por injustiçados contra os que praticam a injustiça.

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


221

(b) O deus do êxodo é o deus que dá terra aos libertos. Ao libertar os hebreus,
Javé desencadeou um projeto histórico-político (Êx 3:8,17). A questão crucial
para os hebreus não era apenas a de sair do Egito, mas sair para deixar de ser
hebreu, sair para viver com liberdade e dignidade. Possuir terra seria uma con-
dição indispensável para o projeto de vida dos hebreus. Tendo a terra, teriam
onde viver com liberdade, onde produzir seu próprio alimento, conseguir seu
sustento, reproduzir a vida. Por isso, Javé promete conduzi-los a “uma terra boa,
terra que mana leite e mel”. A vida em liberdade, porém, não é fácil. É vida em
conflito. A terra prometida era a terra dos cananeus, dos heteus, dos amorreus
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etc. Era uma terra dominada por cidades-estado, opressoras como o regime egíp-
cio. Portanto, Javé estimula os hebreus a um novo projeto missionário libertador.
Não basta sair do Egito e resolver seu problema. Há que se ir a Canaã e solida-
rizar-se com os hebreus lá, construir na terra da opressão um novo povo, que
implantasse a Lei da liberdade, a Lei de Deus. Note, novamente, a parcialidade
conflitiva. Parcialidade, porém, que é a única forma de ser imparcialmente justo!
O segundo tema, diretamente ligado a este, é o da aliança. Aliança é o termo
que se costumava usar, no Antigo Oriente, para as relações entre o povo e o rei, e
entre um povo e outro. Javé, movido por solidariedade (compaixão, misericórdia),
exerce seu poder libertador em favor dos hebreus, e estabelece um relacionamento
político-social com eles – relacionamento de aliança que deverá nortear também
o relacionamento entre os membros do povo, especialmente as relações de poder
no povo de Deus. Ao firmar aliança com Deus, os hebreus não precisam se subme-
ter às alianças com reis opressores, ou seja, assumem um projeto político distinto
daquele ao qual estavam acostumados a viver nos países do Antigo Oriente.
Em Êx 19:3-6, a solidariedade de Deus concretizada na aliança, estabe-
lece a identidade política do povo de Javé: os hebreus são chamados de ‘reino
de sacerdotes e nação santa”, o que indica o projeto político da libertação, com
termos aparentemente inusitados: o povo da aliança é um reino de sacerdotes e
uma nação santa. Sacerdócio e santidade são valores políticos aqui! Ser reino
sacerdotal implica em construir uma estrutura de relações de poder baseada no
serviço ao Deus da libertação. Ser nação santa implica em construir uma estru-
tura de relações de poder radicalmente distinta daquela na qual os hebreus
haviam sofrido opressão.

Um Olhar Bíblico Sobre a Soberania


222 UNIDADE V

O termo hebraico que explica como deve ser a relação de aliança é o termo
hesed, que pode ser traduzido como graça, bondade, benignidade, amor, ou fide-
lidade. Como categoria política, a aliança de Javé é caracterizada não pelo poder
dominador, mas pelo poder emancipador e criador de laços de solidariedade e
comunhão. Termos políticos, aliança e hesed são, também, termos afetivos, na
medida em que também servem para explicar a relação marido-mulher, pais-fi-
lhos. No projeto político do Deus libertador, o povo se constitui como família,
realidade na qual as relações de poder são marcadas pela fraternidade e soli-
dariedade, pela fidelidade ao projeto comum, pelo amor entre pessoas que se

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complementam umas às outras. Assim também na esfera política: as relações de
poder são humanizadoras, ou seja, criam laços de solidariedade, de fraternidade,
de igualdade ética na diversidade de papéis e funções sociais.
O terceiro tema é o do reino de Deus que, já em Êxodo 15, é ligado ao tema da
libertação. Da imensa riqueza deste tema, que ressaltar dois aspectos principais que
importam para uma ética política: (a) Deus reina libertando os povos oprimidos
de nações imperialistas: fez assim com os hebreus no Egito, com os etíopes e ara-
meus (Am 9,7), com os judeus na Babilônia (Is 40:9-11; 52:7ss.), e assim promete,
também, fazer a egípcios e assírios, se, deixando de ser imperialistas, estiverem em
condição de necessidade e clamarem ao Senhor (Is 19:16-25). É claro que nem todos
os textos veterotestamentários que falam da libertação utilizam a linguagem do rei-
nado de Deus, mas ambos os temas são mutuamente complementares. O exercício
do poder soberano de Deus não visa a dominação dos povos, nem sua destruição,
mas a sua emancipação, a libertação para uma vida marcada por justiça e direito.
Diferentemente dos “reinos” vétero-orientais, que se sustentavam pela domina-
ção do campesinato e de trabalhadores urbanos, bem como pela subjugação de outros
povos e nações – e faziam isso com o “aval” de seus deuses, também conquistado-
res como seus adoradores – o reinado de Javé é definido por sua ação libertadora. O
êxodo dos hebreus, do Egito, é, então, exemplar para a nossa compreensão do reinado
de Deus e, nesta conexão, o cântico de Êx 15:1-18 é emblemático: o triunfo de Javé
sobre os deuses e exércitos egípcios é descrito como salvação (v. 2), resgate amoroso (v.
13), aquisição do povo (v. 16), entrada na terra e possessão da herança (v. 17). O braço
poderoso e majestoso de Deus, que derrota os inimigos do seu reinado de liberdade,
é celebrado, enfim, como soberania sem fim, “O Senhor reinará eternamente” (v. 18).

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


223

É digno de nota que comumente se encontram alusões à vitória, ao poder


destruidor de Javé sobre seus inimigos, ao terror que se implanta sobre os povos
vizinhos dos judeus nos hinos e cânticos atuais. Certamente essa é uma temática
presente em textos veterotestamentários, como em Êx 15, por exemplo. Todavia,
a derrota de inimigos só tem sentido teológico quando vista sob o enfoque do
reinado libertador de Deus. Inimigo derrotado é o inimigo que, injustamente,
oprime e exerce domínio sobre outras pessoas e povos. Não é qualquer poder
que Deus derruba, mas os poderes injustos, contrários ao seu próprio reinado
libertador e justo.
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(b) Deus reina mediante o direito e a justiça. Este par se tornou um termo
técnico em todo o Antigo Oriente, e também no Antigo Testamento. Na Escritura
judaico-cristã, direito e justiça têm sentido bastante definido de libertação e orga-
nização justa da sociedade. O par é usado em contextos jurídicos, definindo como
devem ser os julgamentos nos tribunais: caracterizados por direito e justiça, ou
seja, julgamentos não corruptos. É usado em contextos políticos específicos, indi-
cando os critérios que devem nortear o governo humano, a partir do governo
divino que se exerce com direito e justiça. Dentre a multidão de textos bíblicos
que usam este par, gostaria de destacar o Salmo 97, um dos salmos do reinado
de Javé (com os salmos 47, 93, 96, 98 e 99), que celebra a majestade soberana de
Deus sobre Israel e sobre toda a criação.
No Salmo 97, trata-se de um convite a toda a terra e povos, para se alegra-
rem porque Javé reina (v. 1). Ora, por que se alegrar diante da ação soberana de
um deus? Porque esse Deus age para libertar e salvar. A linguagem do Salmo 97
nos revela sua origem no período exílico neo-babilônico, e se apropria das anti-
gas tradições da realeza de Javé, em Jerusalém, especialmente mediante o uso da
forma literária da teofania. Nessa descrição teofânica do reinado de Deus, res-
salto a descrição inicial: “Nuvens escuras e espessas o cercam, direito e justiça
são a base do seu trono” (v. 2). Imagine a cena: o trono soberano de Javé, invi-
sível pelas nuvens espessas que o rodeiam, tem como seu fundamento o direito
e a justiça. E com esse fundamento o reinado de Javé se manifesta sobre a terra
(v. 3-5) com glória e majestade. A alegria de toda a terra é a expectativa do sal-
mista, que celebra a alegria de Israel já libertado por Deus e sob a sua aliança
e proteção (v. 9-12). Da majestade de Deus surge a exortação: “odeiem o mal,

Um Olhar Bíblico Sobre a Soberania


224 UNIDADE V

vocês que amam o Senhor” (v. 10). O mal é a negação do direito e da justiça, o
oposto do bem: salvar e libertar com justiça (cp. Am 5:11ss). Quem vive debaixo
do reinado de Javé não pode praticar o mal, ou seja, não exerce o poder de forma
dominadora, repressora, desumanizadora, idolátrica.
Como estes temas são reformulados no Novo Testamento? Não de forma
espiritualizante, ou seja, eles não são transformados de temas políticos em temas
espirituais, abstratos. Não de forma individualista, ou seja, eles não são trans-
formados de temas políticos em temas existenciais, ligados à mera salvação da
alma individual. A primeira grande alteração é de cunho escatológico. Libertação,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
aliança e reino de Deus passam a ser vistos como formas escatológicas do agir
poderoso de Deus, ou seja, são reconhecidos como já inaugurados historicamente,
mas ainda não consumados. Em outras palavras, como valores norteadores do
político, eles devem ser vistos como presentes de forma parcial, conflitiva e espe-
rançosa no mundo atual, na história humana, nos povos e nações da terra. Dito
de outra maneira, o Novo Testamento reafirma que a realidade humana integral,
inclusive sua dimensão política, está indelevelmente caracterizada pela pecami-
nosidade, na qual a libertação, a aliança e a soberania de Deus são recebidas por
fé e esperança, e se concretizam parcialmente nas vidas das pessoas e comuni-
dades cristãs no mundo.
Ainda de outra forma, as estruturas humanas de poder devem, todas, ser vis-
tas sob o signo da provisoriedade! É assim que se deveria ler Romanos 13:1ss, por
exemplo. As autoridades, embora ministros de Deus, são pecadoras e as estru-
turas de poder nas quais elas atuam são também pecadoras. Conforme o dito
de Jesus em Marcos 10:42ss, “aqueles que vemos governar as nações as domi-
nam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não será assim [...]”. É por isso
que no Apocalipse se celebra o fim do Império Romano, a grande Babilônia que
oprime os povos (Ap 18:1ss).
A segunda alteração é a vinculação do agir de Deus a Jesus, o Messias encar-
nado. Toda a teologia neotestamentária é cristocêntrica. Libertação, aliança e reino
de Deus têm o seu sentido enriquecido e plenificado na revelação climática de
Deus na pessoa de Jesus Cristo. No agir de Jesus Cristo se concretizam, escatolo-
gicamente, a libertação, a aliança e o reinado de Deus! Na pauta política de Jesus,
o poder é exercido na forma do serviço, isto é, da libertação, da emancipação, da

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


225

salvação, da reconciliação. É isto que vemos nos Evangelhos Sinóticos: o Messias


exercendo um poder reconciliador e emancipador, um poder crítico dos pode-
res de seu tempo. Isso se percebe na rejeição da oferta tentadora de Satanás (Mt
4:1ss), na rejeição da oferta tentadora de Pedro (Mc 8:31-33), na aceitação da
crucificação, suplício para os condenados políticos, subversivos. De forma ainda
mais enfática, porém, se percebe na eleição dos doze discípulos, como símbolo
do novo Israel de Deus, do novo povo de Deus reunido ao redor do Seu Cristo.
Dentre os muitos aspectos teológicos que poderiam ser tratados, permitam-
-me destacar a temática da reconciliação em Colossenses 1,15-20. Para Paulo,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

todos os poderes foram criados por Deus e a Ele estão subjugados, mas nem todos
os poderes são obedientes a Deus e realizam a Sua vontade (Cl 1,15-17). Por isso,
na segunda estrofe do hino (Cl 1,19-20; cp. II Co 5,19), Paulo fala da reconcilia-
ção de todas as coisas, nos céus e na terra – o que inclui os poderes celestiais e os
terrestres. Em que consiste a reconciliação dos poderes celestiais? Basicamente,
consiste (1) no despojamento escatológico de sua condição de senhores da vida
humana (cf. Cl 2,15 e Ef 1,20-23), ou seja, em sua subordinação ao agir salví-
fico de Jesus Cristo que, como Senhor escatológico, restringe a possibilidade de
ação desses poderes – tanto sobre os cristãos como sobre o mundo em geral, até
que; (2) eles venham a ser efetivamente derrotados, totalmente subordinados a
Deus e anulados em seu agir (cf. I Co 15,24; Ef 1,10).
E, em que consiste a reconciliação dos poderes terrestres? Na concretização
da paz – que Deus faz mediante a morte do Seu próprio Filho, e não mediante a
morte dos inimigos. Temos, neste hino, uma crítica profunda contra a ideologia
da pax romana – a ausência de conflitos implantada mediante a subjugação pela
força militar, ou seja, o poder dominador travestido de emancipador. Na tradi-
ção judaico-cristã, a paz é a plena harmonia que Deus estabelece na sua criação,
com destaque – neste contexto – para a justiça social que é a harmonia cósmica
de Deus aplicada à convivência social humana. Para restaurar a harmonia rom-
pida da criação, Deus entrega Seu Filho à morte reconciliadora em benefício da
criação alienada do Pai. O que se afirma aqui é, simples e profundamente, que
o propósito divino no ato da reconciliação e estabelecimento da paz é restau-
rar a harmonia da criação original, reunir em um renovada unidade e plenitude
“todas as coisas”, quer as da terra, quer as dos céus.

Um Olhar Bíblico Sobre a Soberania


226 UNIDADE V

A terceira grande alteração neotestamentária é de cunho eclesial: o povo de


Deus não se define nacionalmente, etnicamente. Voltamos, assim, ao êxodo dos
hebreus. A igreja, povo de Deus, é constituída das pessoas que clamam (invocam)
pelo nome do Senhor (cf. Rm 10,13). Não mais uma nação entre outra, mas comu-
nidades dentro das diversas nações do mundo. Em I Pedro 2:9-10, a Igreja é descrita
com os mesmos termos que descreveram Israel no livro do Êxodo: “mas vós sois
uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua particular pro-
priedade, a fim de que proclameis as virtudes daquele que vos chamou das trevas
para a sua luz maravilhosa, vós que outrora não éreis povo, mas agora sois o povo de

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia”.
O povo de Deus é, agora mais do que nunca, fermento na massa, sal da terra
e luz do mundo. Podemos vislumbrar a igreja, então, como o protótipo da nova
aliança, a antecipação escatológica do reinado universal de Deus. Consequentemente,
podemos afirmar que a libertação em Cristo possibilita uma espiritualidade integral
do povo de Deus, na qual a dimensão política não pode faltar. Uma ética política
evangélica é parte da espiritualidade evangélica do agir de acordo com o exemplo
de Cristo, do andar como filhos de Deus, de imitar a Deus no exercício das rela-
ções de poder. A espiritualidade cristã, sendo cristocêntrica, será inevitavelmente,
solidária, concretização da hesed que constitui a aliança divina com a sua criação.
Espiritualidade e ética não se podem separar, assim como não se poderá, então, con-
siderar a política como algo não espiritual, como algo descolado da missão da igreja!

ELEMENTOS DE UMA TEOLOGIA BÍBLICA DA CIDADANIA

O tema da cidadania, na Escritura, será tratado a partir de Filipenses, um carta


paulina que tem esta noção como um dos seus assuntos centrais.

Filipenses 1,27-2,4: uma cidadania digna do Messias

Vivei a vossa cidadania, acima de tudo, de modo digno do evangelho do Messias,


27

para que, ou indo ver-vos ou estando ausente, ouça, no tocante a vós outros, que
estais firmes em um só espírito, como uma só alma, competindo juntos em prol

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


227

da fidelidade do evangelho, 28 e que em nada estais intimidados pelos adversários.


Pois o que é para eles prova evidente de perdição é, para vós outros, de salvação,
e isto da parte de Deus. 29 Porque vos foi concedida a graça de padecerdes pelo
Messias e não somente de crerdes nele, 30pois tendes o mesmo combate que vis-
tes em mim e, ainda agora, ouvis que é o meu. 1Se há, pois, alguma exortação
no Messias, alguma consolação de amor, alguma comunhão do Espírito, se há
entranhados afetos e misericórdias, 2completai a minha alegria, de modo que
penseis a mesma coisa, tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o
mesmo sentimento. 3Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humil-
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dade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo. 4Não tenha cada


um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos
outros (Tradução nossa).
Antes de refletirmos sobre o texto, alguns comentários sobre a tradução.
(1) No verso 27 a maioria das traduções contemporâneas usa um verbo poli-
ticamente neutro para traduzir o verbo grego inicial: os mais comuns são
“andai” e “vivei”. O termo grego, porém, é bem específico: viver como cida-
dão, exercer a cidadania. A única outra ocorrência deste verbo em o Novo
Testamento está em At 23,1 na abertura do discurso de Paulo em sua própria
defesa diante de um ‘tribunal’ judaico. Na Septuaginta é usado 8 vezes, sendo
7 nos livros dos Macabeus, em relação à obediência à lei judaica em resistên-
cia contra o helenismo. Como Filipos era uma colônia romana, a escolha da
palavra por Paulo é retoricamente importante. (2) Ainda no verso 27, optei
pela tradução “competindo”, pois o verbo grego, usado somente nesta carta
aos Filipenses (aqui e em 4,3), em todo o Novo Testamento, refere-se à com-
petição atlética, e não à guerra. Podemos ter uma noção da ideia presente
no verbo se lembrarmos de que, mesmo hoje em dia, fala-se do atleta como
representante da nação em uma Olimpíada, ou em um campeonato mundial
de Futebol (por exemplo). (3) No verso 30 o termo “combate”, no grego, tam-
bém se refere às competições atléticas.
É o prisioneiro Paulo que exorta as comunidades messiânicas de Filipos a
exercer sua cidadania de modo digno do evangelho do Messias. A ironia é fina e
sutil – um prisioneiro não é, em tese, bom cidadão, mas exatamente por ser pri-
sioneiro do Império, por amor ao Messias, é que Paulo pode apresentar sua vida

Um Olhar Bíblico Sobre a Soberania


228 UNIDADE V

como exemplo de cidadania e, a partir de seu próprio testemunho, exortar as


comunidades ao exercício da cidadania messiânica. O foco da exortação paulina
recai sobre a cooperação e a unidade das comunidades. No caso da cooperação,
o pensamento é construído a partir da metáfora da competição atlética. No estilo
de vida messiânico, a comunidade deve agir como um time – em cooperação
mútua, todos atuando para chegar ao mesmo objetivo, seguindo adequadamente
as regras da competição. Neste caso, a competição é o testemunho cidadão do
evangelho do Messias.
Podemos imaginar a cena entre duas equipes disputando os jogos olímpi-

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cos, cada qual representando a sua cidade (polis), dando o melhor de si para
alcançar a coroa da vitória (a medalha de outro, hoje em dia). Assim é a vida da
comunidade messiânica – no que tange à vida e missão da igreja, os interesses
pessoais devem ser deixados de lado, e o projeto comunitário deve ser assu-
mido e desenvolvido por todos os membros, sem exceção. A ação missionária
da comunidade, como a de Paulo, certamente sofrerá oposição, os adversários
tentarão de tudo para vencer, mesmo usando de recursos ilegais ou antiéticos.
Na arena, o atleta sofre para conseguir realizar a sua prova, assim também na
vida cotidiana a comunidade messiânica sofre a oposição dos que não desejam
viver a cidadania messiânica, contentando-se com a cidadania de seu próprio
tempo, sem considerar as injustiças nela presentes.
Aqui, como em vários outros lugares de suas cartas, Paulo aponta o fato de
que seguir o Messias implica em sofrer, em passar por perseguições, privações,
problemas de todos os tipos causados pelos confrontos entre a ética do amor
e as éticas do dever ou do poder nas sociedades em que as comunidades estão
inseridas. É evidente, porém, que esse sofrimento só existirá se a comunidade
for efetivamente messiânica, ou seja, se seu estilo de vida não se conformar com
o estilo de vida deste mundo. Doutra forma, ao invés de sofrimento, a comu-
nidade receberá os elogios do mundo ao seu redor. O critério da cidadania
messiânica é a fidelidade do Evangelho – e podemos tirar proveito da ambigui-
dade da construção genitiva no grego: (a) a fidelidade gerada pelo evangelho,
e (b) a fidelidade cujo conteúdo é o evangelho. Assim, a cidadania messiânica
não se contrapõe às cidadanias terrenas, mas as impregna com uma nova qua-
lidade: a do serviço ao próximo.

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


229

A exortação se encerra com um apelo apaixonado pela unidade da comu-


nidade, pelo que podemos supor que houvessem discórdias entre os cristãos.
Como disputar a competição se o time está desunido, cheio de rivalidades inter-
nas, cada um buscando o seu próprio lucro? Sabemos bem o que ocorre com
um time quando há tal quadro – é derrota e rebaixamento na certa. Assim, o
primeiro vislumbre que temos do estilo de vida messiânico é o da cidadania coo-
perativa em prol do evangelho e de modo digno do evangelho. O testemunho do
Messias Jesus é o eixo ao redor do qual podemos construir o estilo de vida mes-
siânico – desta forma, fazem pouco sentido as distinções classificatórias entre
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ética, espiritualidade e missão. No estilo de vida messiânico as três são compo-


nentes de uma e a mesma realidade: viver como o Messias viveu!

Filipenses 4, 4-9: uma cidadania alegremente reflexiva

4
Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-vos. 5Seja a vossa
equidade conhecida por todas as pessoas. Perto está o Senhor. 6Não andeis
ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus,
as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graças. 7E a paz
de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a
vossa mente no Messias Jesus. 8Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro,
tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é
amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se alguma honra
existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento. 9O que também aprendes-
tes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai; e o Deus da paz
será convosco (Tradução nossa).
O texto parece uma lista desconexa de imperativos, porém, como destaca
Hansen (2009, p. 260),
estes mandamentos estão integralmente relacionados com os grandes
temas da carta e com as condições específicas da igreja em Filipos. Es-
tas diretrizes guiam a igreja para ser ‘um corpo político alternativo, go-
vernado por um diferente Senhor, ao corpo político constituído pelos
cidadãos de Filipos sob o domínio de César’. O conselho prático de
Paulo orienta a formação espiritual dos cidadãos do céu.

Um Olhar Bíblico Sobre a Soberania


230 UNIDADE V

Em nossos termos, eu diria que estes conselhos dão uma pequena mostra do que
significa construir uma nova subjetividade messiânica cidadã, um novo modo
de ser e de viver no mundo sob a força e a mentalidade do Messias, uma cida-
dania reflexiva. Vejamos em que consistem, basicamente, esses pequenos tijolos
do novo estilo de vida:
Alegrai-vos sempre no Senhor. Alegria, contentamento, felicidade, são esta-
dos passionais que todo ser humano busca, deseja e se esforça por atingir e
manter. A alegria é a paixão humana que nos mantém motivados para viver e
agir, nos mantém “em alta”, com bom humor, com disposição, satisfeitos. O que

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caracteriza a alegria messiânica, porém, é que ela tem como critério e ambiente
o próprio Senhor. Isto é, o motivo da alegria não são as circunstâncias mutá-
veis da vida cotidiana, mas o permanente amor libertador do Senhor de todos
os céus e terra. É alegria, assim, duradoura, e não efêmera como o são as mais
comuns alegrias de uma subjetividade não-messiânica, marcado, por exemplo,
pelo desejo de consumo, de poder, de sexo ou prestígio. Não é uma alegria que
dependa de objetos, mas sua realidade é constante e permanente – porque está
no Senhor e é o próprio Senhor!
Seja a vossa equidade conhecida por todas as pessoas. O termo grego traduzido
por equidade possui várias conotações, que vão desde a mansidão e tolerância,
até a bondade e a gentileza. Optei pelo termo equidade a fim de ressaltar essa plu-
ralidade de sentidos da palavra. Uma pessoa equitativa não luta por direitos que
não lhe cabem, mas também não se deixa subjugar por injustiças. Não exagera
em suas convicções, nem desmerece as de outras pessoas, mas sabe enxergar as
diferenças e tolerá-las sempre que possível e necessário. É gentil, generosa, con-
vive bem com todos os tipos de pessoas – e é essa universalidade de disposição
para bons relacionamentos que o texto ressalta.
Não andeis ansiosos de coisa alguma: a ansiedade é o oposto da alegria. A
paixão da ansiedade ocorre quando não conseguimos os objetos ou objetivos
que desejamos. Ficamos ansiosos quando as coisas não ocorrer da maneira
como desejamos. Entretanto, quem vive na alegria do Senhor, não precisa
ficar ansioso, preocupado (cp. o conselho de Jesus no Sermão do Monte), ou
assoberbado pelas coisas da vida. Antes, ao invés de ficar ansioso, pode dirigir
suas orações ao Senhor – suplicando e agradecendo (esse duplo tom de pedido

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


231

suplicante e gratidão alegre está presente nos Salmos de lamento na escri-


tura). Orar não é mero substituto para a ansiedade, é, sim, prevenção contra a
ansiedade, mas o será desde que a oração não seja vista como o equivalente ao
esfregar a lâmpada de Aladim. Não é a resposta à oração que importa, é o sim-
ples fato de orar, de manter comunhão com Deus que é a resposta à ansiedade.
A oração, tão mal praticada em tempos como os nossos, é parte integrante do
estilo de vida messiânico, na medida em que ela é o reconhecimento de que
nossa vida está debaixo de um Senhor, que é Senhor de todas as coisas e de
todos os tempos e espaços.
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Entremeados com os imperativos, temos uma condição e uma consequên-


cia da prática desses valores messiânicos. A condição: o Senhor está próximo!
A frase, curta e certeira, retoma o final do cap. 3, versos 20-21 – a esperança
de que os sofrimentos do tempo presente cessarão está próxima. A consequ-
ência: quem vive no estilo de vida messiânico terá o shalom de Deus em seu
coração e mente – ou seja, viverá em plena harmonia consigo mesmo, com
o mundo e com Deus. Essa paz ‘excede todo entendimento’ e acompanha as
pessoas que vivem como Jesus viveu – não porque suas vidas são um mar
de rosas, mas porque não importa a circunstância, o Senhor está próximo e
em nós. Quem escreveu estas palavras o fez da prisão, como não perceber o
valor das mesmas?
Na sequência encontramos uma exortação mais genérica. Podemos dizer
que ela é uma exortação à práxis, ou seja, ao pensamento unido com a ação,
à ação unida com o pensamento. Com a mente em paz, podemos pensar de
modo messiânico. A lista contém sete adjetivos e dois substantivos. Os adje-
tivos sugerem que se deva pensar no próprio estilo de vida messiânico – não
faria sentido discutir termo por termo, mas captar o seu sentido como um todo:
que é verdadeiro, amável, puro etc. é, em síntese, o modo messiânico de viver
– poderíamos dizer que são as próprias características do Messias: fidelidade
(verdade), amor, pureza, bondade, digno. Essas coisas, enfim, são exemplos do
que é, em si, virtude e honra – termos importantes na ética helenística. O pen-
samento dos seguidores do Messias deve estar centrado na ética messiânica
– desde que entendamos a ética aqui como indissoluvelmente ligada à espiri-
tualidade e à teologia.

Um Olhar Bíblico Sobre a Soberania


232 UNIDADE V

A exortação finaliza com o esclarecimento de Paulo quanto ao sentido do


que deve ocupar o pensamento dos cristãos. “O que também aprendestes, e rece-
bestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai”. Quer saber o que significa o
mandamento de Paulo? Olhe para a vida dele e você descobrirá. Ouça sua pre-
gação, leia suas cartas, e você saberá. Mas quer saber mesmo, de fato? Pratique
essas coisas. Aprendemos a teologia quando praticamos a teologia. Aprendemos
a ética quando praticamos a ética. Aprendemos a espiritualidade quando pratica-
mos a espiritualidade. Erramos quando separamos pensamento e ação. Acertamos
quando mantemos unidas estas duas dimensões inseparáveis da vida. Pensar e

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
agir. A práxis do estilo messiânico de vida.

UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA – PODER

Vamos, agora, discutir o tema do poder a partir das reflexões de Michel Foucault
(1995).

UMA TEOLOGIA DO PODER PASTORAL

Michel Foucault (1995) desenvolveu, em vários de seus escritos, fecundas teses


sobre a prática do poder no Ocidente europeu e as formas de resistência ao
mesmo. Dentre essas teses encontramos a defesa de que o exercício do poder,
no Ocidente moderno, se constitui em uma importante fonte de subjetivação,
de construção da identidade individual e não só da construção da nação e das
macro-identidades. Na perspectiva da história das ideias políticas, levantou a
hipótese de que uma forma de exercício de poder se tornou preponderante na
origem e desenvolvimento inicial dos modernos Estados ocidentais: o poder
pastoral. Essa forma de exercício de poder, segundo ele, deriva da instituciona-
lização do Cristianismo e tornou-se uma das características do poder “secular”.

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


233

Em seus escritos, porém, Foucault (1995) não analisa a passagem dessa forma
de poder da instituição religiosa para a instituição estatal. O objetivo deste breve
ensaio é apresentar uma hipótese explicativa dessa passagem, restrita ao campo
das ideias políticas – ou, na linguagem foucaultiana, uma hipótese sobre os pro-
cessos discursivos e institucionais que facilitaram essa mudança do poder pastoral
do campo religioso para o campo estatal, e sua contribuição para a formação
do moderno “Estado de direito”. O ensaio se divide em duas partes: primeiro,
uma descrição do conceito de poder pastoral em Foucault e, segundo, a apre-
sentação da hipótese proposta. Dados os limites de tamanho de um ensaio, na
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apresentação da hipóteses valho-me, por vezes, de sínteses históricas e filosó-


ficas de outros autores, para os quais remeto com vistas a análises mais amplas
dos processos discutidos.

Origens do Poder Pastoral Eclesiástico

Preliminarmente, é bom lembrarmos que, no pensamento de Foucault (1995), o


poder não é um objeto que se pode possuir e, possuindo-o em maior ou menor
quantidade, então exercê-lo. O poder é o exercício de um tipo de relação: “o que
caracteriza [...] o ‘poder’ que analisamos aqui, é que ele coloca em jogo relações
entre indivíduos (ou entre grupos). [...] O termo ‘poder’ designa relações entre
‘parceiros’” (FOUCAULT, 1995, p. 240). Dessa forma, embora usemos, por eco-
nomia de tempo, a expressão poder pastoral, ela deve ser entendida como uma
abreviatura, a abreviatura da expressão o exercício de uma relação pastoral de poder.
A metáfora do pastor não era usada, segundo Foucault (1995), no pensa-
mento político greco-romano clássico. Tem a sua origem no Antigo Oriente
Próximo e foi especialmente desenvolvida em Israel, de onde foi apropriada e
adaptada pelo Cristianismo antigo:
Como sabemos, foram os hebreus que desenvolveram e intensificaram
o tema pastoral – com uma característica altamente peculiar: Deus, e
Deus somente, é o pastor de seu povo. Com apenas uma exceção posi-
tiva: Davi, como o fundador da monarquia, é o único a ser mencionado
como pastor. Deus lhe deu a tarefa de reunir um rebanho. Há exceções
negativas também: reis ímpios são, consistentemente, comparados a
maus pastores (FOUCAULT, 1995, p. 137).

Uma Teologia Pública da Soberania – Poder


234 UNIDADE V

Em Israel, a metáfora pastoral ainda se aplica ao exercício do poder dentro de


uma “nação”, de uma entidade predominantemente política (usando de forma algo
anacrônica termos que se referem a realidades do Ocidente moderno). Quando
o Cristianismo se constitui como religião autônoma e se separa do Judaísmo, se
organiza como uma igreja e não como um estado. Consequentemente, o exer-
cício do poder dentro da Igreja Cristã vai se revestir de características próprias,
que traduzem a metáfora vétero-oriental para a prática ocidental. Essa apropria-
ção, examinada a partir da literatura cristã antiga, é descrita por Foucault como
um conjunto de quatro alterações significativas:

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(1) Na concepção cristã um pastor deve prestar contas – não somente
de cada ovelha, mas de todas as suas ações, todo o bem ou o mal pelo
que são responsáveis, tudo o que lhes acontece. Além disso, entre
cada ovelha e seu pastor o Cristianismo concebe uma troca e circu-
lação complexas de pecados e méritos. ... assim, se ele (pastor) quiser
se salvar, deve correr o risco de se perder pelos outros. ... E o que eu
queria ressaltar em especial é que tais laços não somente tinham a
ver com as vidas dos indivíduos, mas também com os detalhes de
suas ações; [...]

(2) O Cristianismo, por seu lado, concebe o relacionamento pastor-


-ovelha como sendo de uma dependência individual e completa .
... é individual. É submissão pessoal a ele. Sua vontade é feita, não
porque ela é consistente com a lei, e não apenas na medida em que
é consistente com ela, mas, principalmente, porque é a sua vontade.
... Obediência é uma virtude. ... É um estado permanente, as ovelhas
devem submeter-se permanentemente aos seus pastores: subditi. ...
O cristianismo grego nomeou esse estado de obediência apatheia. ...
No pensamento cristão, pathos é força de vontade exercida sobre si
mesmo, pela própria pessoa. Apatheia nos livra de tal disposição; [...]

(3) O pastorado cristão implica em um tipo peculiar de conhecimen-


to entre o pastor e cada uma de suas ovelhas. Este conhecimento é
particular. Ele individualiza. Não é suficiente conhecer o estado do
rebanho. O de cada ovelha deve ser conhecido. ... o pastor deve estar
informado quanto às necessidades materiais de cada membro do re-
banho e provê-las quando necessário. Ele deve conhecer o que está
acontecendo, o que cada uma faz – seus pecados públicos. Por fim,
mas não menos importante, ele deve conhecer o que vai na alma de
cada uma delas, isto é, seus pecados secretos, seu progresso no cami-
nho da santidade; [...] e

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


235

(4) a transformação talvez mais importante: todas essas técnicas cristãs


de exame, confissão, direção, obediência, têm um alvo: fazer os indiví-
duos operarem a sua própria ‘mortificação’ neste mundo ... a renúncia
do mundo e de si mesmo: um tipo de morte cotidiana. ... a mortificação
cristã é um tipo de relação de si para si mesmo. É uma parte, uma parte
constitutiva, da identidade cristã (FOUCAULT, 1995, p. 142-143).

Resumidamente, o poder pastoral é uma “forma de poder é orientada para a sal-


vação (por oposição ao poder político). É oblativa (por oposição ao princípio
da soberania); é individualizante (por oposição ao poder jurídico); é co-exten-
siva à vida e constitui seu prolongamento; está ligada à produção da verdade – a
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verdade do próprio indivíduo” (FOUCAULT, 1995, p. 237).

Origens do poder “pastoral” estatal

Ainda de acordo com Foucault (1995), na medida em que se dá a separação entre


a Igreja e os nascentes estados-nação modernos, a capacidade da Igreja Católica
exercer o poder pastoral fora de seus arraiais vai diminuindo consideravelmente,
mas isso não significa a extinção da forma pastoral de poder, e, sim, a sua apro-
priação pelo Estado; a sua “secularização”, de forma tal que o exercício estatal do
poder se constitui com dois grandes braços – o totalizante e o individualizante
(este sendo a versão secular do poder pastoral).
Essa apropriação provocou três mudanças significativas, assim descritas por
Foucault (1995, p. 237-238):
(1) Podemos observar uma mudança em seu objetivo. Já não se tra-
ta mais de uma questão de dirigir o povo para sua salvação no ou-
tro mundo, mas, antes, assegurá-la neste mundo. E, neste contexto,
a palavra salvação tem diversos significados: saúde, bem-estar (isto
é, riqueza suficiente, padrão de vida), segurança, proteção contra
acidentes. Uma série de objetivos “mundanos” surgiu dos objetivos
religiosos da pastoral tradicional, e com mais facilidade, porque esta
última, por várias razões, atribuiu-se alguns deste objetivos como
acessório; temos apenas que pensar no papel da medicina e sua fun-
ção de bem-estar assegurados, por muito tempo, pelas Igrejas católica
e protestante; [...]

Uma Teologia Pública da Soberania – Poder


236 UNIDADE V

(2) Concomitantemente, houve um reforço da administração do poder


pastoral. Às vezes, esta forma de poder era exercida pelo aparelho do
Estado, ou, pelo menos, por uma instituição pública como a polícia.
... Outras vezes, o poder se exercia através de empreendimentos pri-
vados, sociedades para o bem-estar, de benfeitores e, de um modo ge-
ral, de filantropos. Porém, as instituições antigas como a família eram
igualmente mobilizadas, nesta época, para assumir funções pastorais.
Também era exercido por estruturas complexas como a medicina, que
incluíam as iniciativas privadas, com venda de serviços com base na
economia de mercado, mas que incluíam questões públicas como os
hospitais; [...] e

(3) Finalmente, a multiplicação dos objetivos e agentes do poder pas-

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toral enfocava o desenvolvimento do saber sobre o homem em torno
de dois pólos: um, globalizador e quantitativo, concernente à popu-
lação; o outro, analítico, concernente ao indivíduo. E isto implica que
o poder do tipo pastoral, que durante séculos – por mais de um mi-
lênio – foi associado a uma instituição religiosa definida, ampliou-se
substancialmente por todo o corpo social; encontrou apoio numa
multiplicidade de instituições. E, em vez de um poder pastoral e de
um poder político, mais ou menos ligados um ao outro, mais ou me-
nos rivais, havia uma “tática” individualizante que caracterizava uma
série de poderes: da família, da medicina, da psiquiatria, da educação
e dos empregadores.

Foucault (1995) descreve o poder pastoral nos seus três tempos: vétero-oriental,
vétero-cristão e moderno-estatal. Após essa descrição, afirma a sua tese genérica
de que a modernidade se constitui como uma nova configuração dos processos
de formação de identidade e subjetivação:
Todos aqueles movimentos dos séculos XV e XVI, e que tiveram a Re-
forma como expressão e resultado máximos, poderiam ser analisados
como uma grande crise da experiência ocidental da subjetividade, e
como uma revolta contra o tipo de poder religioso e moral que deu
forma, na Idade Média, a esta subjetividade. A necessidade de ter uma
participação direta na vida espiritual, no trabalho de salvação, na ver-
dade que repousa nas Escrituras – tudo isso foi uma luta por uma nova
subjetividade (FOUCAULT, 1995, p. 236).

Fica claro, por esta citação, que Foucault atribui a passagem do poder pasto-
ral para o ambiente “secular” como fruto do que ele chama de movimentos dos
séculos XV e XVI. Entretanto, ele não desenvolve argumentos em defesa dessa
hipótese. É nessa lacuna que se insere este ensaio: pretendo enfocar alguns

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


237

aspectos institucionais e discursivos que propiciaram essa transição. A meu ver,


três grandes processos podem ter sido os principais veículos da transposição do
poder pastoral da Igreja para o Estado.
O primeiro, discursivo, foi a secularização da escatologia neotestamentária
mediante a noção de progresso. A noção neotestamentária de uma nova era que
já começou, mas ainda não está consumada (Mc 1,14-15; I Co 15:20-28; Hb 1,1-2
etc.) foi progressivamente abandonada pela Igreja Católica, na medida em que se
envolvia mais e mais com a administração do presente e se rendia a um dualismo
salvífico que projetava a salvação cristã para o além-morte. As Igrejas Protestantes
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nada trouxeram de novo nesta área das discussões teológicas. A concepção de


escatologia nas Igrejas cristãs flutuava discursivamente entre uma “escatologia
realizada” (a vinda de Cristo já se deu e a Igreja é sua expressão presente) e uma
“escatologia consequente” (a vinda de Cristo somente se dará após o fim desta his-
tória má em que vivemos), que permitia a difusão de uma concepção dualista da
temporalidade da salvação – que a projetava exclusivamente para um outro mundo.
Em outras palavras, as Igrejas Cristãs substituíram a escatologia neotesta-
mentária por uma apocalíptica neo-judaica, de uma história dividida em duas
eras – antiga, que já acabou e nova, que já se consumou na Igreja – ou dividida
em duas éticas – cidade de Deus, cidade dos homens. Diferentemente da apoca-
líptica judaica, entretanto, a escatologia cristã daquele tempo destacava o caráter
“progressivo” da história, que caminha rumo ao telos ordenado por Deus. A este
abandono da concepção escatológica neotestamentária pelas Igrejas corresponde,
em parte, a adoção secularizante dessa escatologia pela mentalidade ocidental
moderna. Habermas (1989) descreve sucintamente essa adoção, e sua análise
indica, sugestivamente, que o discurso iluminista foi – ressalvada a visão secu-
larizante – muito mais competente na leitura do conceito neotestamentário do
tempo do que a maioria dos discursos exegéticos cristãos do período.
Segundo Habermas (1989, p. 16),
enquanto no Ocidente cristão a ‘nova aetas’ significara a era ainda por
vir, a aetas venidera que despontará no último dia – como ainda ocorre
na ‘filosofia das eras do mundo’ de Schelling -, o conceito profano de
época moderna expressa a convicção de que o futuro já iniciou: signi-
fica a época que vive orientada para o futuro, que se abriu ao futuro
novo.

Uma Teologia Pública da Soberania – Poder


238 UNIDADE V

Mais tarde, Hegel expressará a versão consumada dessa secularização da esca-


tologia cristã:
Com este ‘glorioso amanhecer’ eis-nos aqui, pensa, ainda, o ancião Hegel,
‘no último estádio da história, em nosso mundo, em nossos dias’. Uma atualidade
que, no horizonte da Idade Moderna, entende-se a si mesma como a atualidade
do tempo novíssimo, não tem outro remédio senão viver e reproduzir, como
renovação contínua, a ruptura com o passado que significou a Idade Moderna
(HABERMAS, 1989, p. 17).
Este novo discurso sobre a temporalidade ajudou a efetuar a passagem da

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administração dos bens salvíficos da Igreja para o Estado, em versão terrena e
secularizada. O chamado “poder temporal” se desvincula institucionalmente do
“poder espiritual”, e se apropria do seu discurso escatológico, adaptando-a à nova
organização da vida em sociedade, não mais girando ao redor do eixo religioso.
O segundo foi o processo institucional de divisão denominacional do
Cristianismo, provocado pela Reforma Protestante, aliado aos conflitos entre
Igrejas e Estado nas nascentes nações modernas. Por meio desse processo insti-
tucional, a secularização da escatologia neotestamentária redundou em um novo
tipo de dualismo, um dualismo político que colocou em lados opostos a razão
da fé e a razão de Estado. Com a fragmentação crescente dos sujeitos do poder,
houve a necessidade de se definir as fronteiras entre eles, e se legitimar o exercício
do poder estatal face ao conflito religioso eclesiástico. O embate de ideias nesse
campo foi de grandes proporções, e não é possível, aqui, descrevê-lo adequada-
mente. Por isso, remeto à obra de Q. Skinner, da qual extraio a seguinte síntese:
por fim, a aceitação da ideia moderna de Estado pressupõe que se re-
conheça que a sociedade política exista unicamente para fins políticos.
Seria impossível aceitar essa perspectiva secularizada enquanto se su-
pôs que todos os governantes temporais tivessem o dever de zelar por
um governo leal a Deus e pacífico. Os reformadores do século XVI con-
cordavam plenamente com seus adversários católicos nesse aspecto: to-
dos insistiram em que um dos principais objetivos do governo deveria
ser o de preservar a ‘verdadeira religião’ e a Igreja de Cristo. Como
vimos, isso significa, por sua vez, que as convulsões religiosas da Refor-
ma deram uma contribuição paradoxal, e no entanto vital, para cristali-
zar-se o conceito moderno e secularizado de Estado. Isso porque, assim
que os defensores de credos religiosos rivais se mostraram dispostos
a travar entre si um combate de morte, começou a evidenciar-se, aos

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


239

olhos de diversos teóricos da linha politique, que, para se ter alguma


perspectiva de obter a paz cívica, os poderes do Estado teriam de ser
desvinculados do dever de defender uma determinada fé. Quando Bo-
din afirmou, nos Seis livros da república, que para todo príncipe deveria
ser óbvio que ‘as guerras travadas por questões religiosas’ na verdade
não eram ‘fundamentadas em assuntos diretamente concernentes ao
Estado’, ouvimos pela primeira vez a voz genuína do moderno teórico
do Estado (p. 535; cf. McRae, 1962, p. A14) (SKINNER, 2000, p. 620).

O terceiro processo, discursivo, enfim, foi a criação do direito moderno, que leva
ao seu termo a cisão entre Igrejas e Estado. O surgimento e o desenvolvimento do
direito moderno também vieram ao encontro da necessidade de legitimar a dis-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tinção entre interesses políticos e interesses religiosos acima descrita e, em parte,


foram possibilitadas pela nova forma de identidade (ou subjetividade) que a cisão
denominacional do Cristianismo (junto com outros movimentos da época) pro-
porcionou: a saber, uma subjetividade formada não pela obediência irrestrita à
autoridade eclesiástica, mas pela leitura pessoal da tradição cristã, especialmente
de sua fonte única de autoridade, a Sagrada Escritura. Uma subjetividade que
se poderia chamar de hermenêutica, pois que marcada pela responsabilidade de
dar conta do sentido do texto sagrado. Hermenêutica que, por sua vez, também
caracteriza a subjetividade perante o texto legislativo – deve ser corretamente
interpretado e, uma vez obedecido, estabelece o rumo para a vida.
Novamente, encontramos em Habermas (1997) uma breve descrição desse
processo discursivo em sua dimensão não teológica:
tendo como pano de fundo cosmovisões religiosas reconhecidas, o di-
reito ocupara inicialmente uma base sagrada; esse direito, via de re-
gra administrado e interpretado por juristas teólogos, era amplamente
aceito como componente reificado de uma ordem salvífica divina, fi-
cando subtraído, enquanto tal, ao poder humano. O próprio detentor
do poder político, na qualidade de senhor supremo do tribunal, estava
subordinado a esse direito natural. O direito normatizado burocratica-
mente pelo senhor, ou seja, o direito ‘positivo’ no sentido pré-moder-
no, apoiava sua autoridade na legitimidade do senhor (mediada através
da competência judicial), na sua interpretação de uma ordem jurídica
dada preliminarmente, ou no costume, sendo que o direito consuetudi-
nário extraía sua autoridade da tradição. Porém, com a passagem para
a modernidade, a cosmovisão religiosa obrigatória decompôs-se em
forças de fé subjetivas, fazendo com que o direito perdesse sua indis-
ponibilidade e a dignidade metafísica (HABERMAS, 1997, p. 184-185).

Uma Teologia Pública da Soberania – Poder


240 UNIDADE V

Várias implicações deste processo poderiam ser retomadas nesta seção, assim
como elas e outras deveriam ser discutidas e aprofundadas em outros contextos.
Para os fins desta coleção de ensaios relativos ao caráter público da teologia, basta
destacar a conexão indissolúvel entre as práticas religiosas e as práticas políticas
do poder. Qualquer reflexão teológica que leve a sério seu caráter público terá de
levar em consideração a questão do poder do discurso teológico em particular,
do poder do saber em geral, e das imbricadas relações entre as práticas “religio-
sas” e as práticas “políticas” de poder. Dentre essas relações, está mais do que na
hora de estabelecermos diálogos significativos com o pensamento jurídico, par-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ceiro tão negligenciado nas conversas teológicas “públicas”.

UMA ÉTICA TEOLÓGICA DO PODER PASTORAL

A discussão ética relativa ao poder será tratada mediante dois temas comple-
mentares, o primeiro focalizando a sociedade e o segundo, a igreja.

Pautas para uma ética política cristã na sociedade

Na seção dois apresentei algumas pautas para uma teologia do poder que,
juntamente com a reflexão sobre o conceito de poder pastoral em Foucault,
deveria servir de base para uma ética evangélica. Para construir a ética polí-
tica evangélica é necessário fazer dialogar os conceitos teológicos com a
realidade contextual e sua explicação científica. Eticistas evangélicos reco-
nhecem, por exemplo, que o contexto político das Escrituras difere bastante
do nosso e que, portanto, uma ética contemporânea não poderia ser uma
simples repetição de preceitos bíblicos, nem uma simples adaptação de con-
ceitos teológicos a conceitos políticos ou sociológicos contemporâneos. Apesar
desse reconhecimento, todavia, é comum que em textos sobre ética política
de evangélicos seja feita tal adaptação simples. O exemplo que mais ressalta
é o de Romanos 13. Podemos encontrar textos éticos contemporâneos que
afirmam a obediência às autoridades como um princípio ético e o compre-
endem de forma puramente adaptativa: ou seja, se Paulo exortou os cristãos

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


241

de Roma a obedecerem uma autoridade imperial, tirânica, quanto mais deve-


mos obedecer autoridades em uma sociedade democrática.
Esse tipo de interpretação ética é, a meu ver, infundado e pouco útil para
a formulação de uma ética política consequente. Que erros? De três tipos, pelo
menos: primeiro, a identificação do conceito atual de autoridade com o termo
usado por Paulo e traduzido por autoridade (exousia), ou a aceitação pura e
simples do conceito contextual de autoridade em Paulo e sua utilização em
nosso próprio contexto. Em segundo lugar, o não-reconhecimento da condição
pecaminosa de toda forma humana de estruturação de relações de poder, cuja
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consequência é a identificação entre a ordenação divina e a estrutura humana.


Em terceiro lugar, um erro de tipo semântico: hypotasso (Rm 13,1.5) não deveria
ser entendido como “obedecer”, mas como “sujeitar-se”. É possível estar sujeito
a alguém ou a alguma estrutura, sem praticar obediência (e.g. Lc 10,17.20 que
menciona os espíritos imundos submetidos aos discípulos de Jesus; ou I Co
15,27-28 que fala da sujeição de todas as coisas ao senhorio de Cristo e a pos-
terior sujeição do Cristo ao Pai). É claro que a desobediência, em um ambiente
de sujeição, tem suas consequências. Todavia, submeter-se é mais amplo do que
obedecer: é colocar-se debaixo de uma ordem comum.
No primeiro caso, dever-se-ia, mediante a exegese do texto, formular os
valores político-teológicos presentes no texto para colocá-los em diálogo com
as diferentes concepções de autoridade na história do pensamento. No segundo,
dever-se-ia reconhecer que nenhuma estruturação política humana corresponde
à vontade divina e sua ordenação providencial das relações sociais. A ordem de
Deus para as relações políticas não é concretizada perfeitamente em nenhum,
repito, em nenhum modelo político existente em nossa história, porque todos
são igualmente marcados pelo pecado. No terceiro, definir qual é a ordem comum
a que se deve estar submetido – essa ordem é que é divina – e não confundir a
ordem divina com a estrutura política humana.
Façamos um exercício ético-teológico simples. O regime político atualmente
vigente no Brasil é democrático. Em regimes democráticos, todo o poder (auto-
ridade) emana do povo e em seu nome deve ser exercido. Consequentemente,
a identificação pura e simples de governantes com autoridades é inadequada,
pois a autoridade máxima (exousia) nos regimes democráticos é o povo, e não

Uma Teologia Pública da Soberania – Poder


242 UNIDADE V

o governante que exerce mandato. Mandatário não é quem “manda”, mas quem
recebeu um mandato (recebeu uma ordem) para cumprir. Isto não quer dizer,
por outro lado, que a “obediência” deveria ser dirigida, então, para os cida-
dãos pura e simplesmente. Os regimes democráticos são regimes “de direito”,
nos quais a ordem política é legitimada pelo ordenamento legislativo-jurídico,
que deve ser constantemente firmado e confirmado mediante a ação política de
toda a sociedade. Também seria um erro afirmar, simplesmente, que em regi-
mes democráticos obedecer à autoridade equivale a obedecer à lei. Nos regimes
democráticos, a ética política é mais ampla do que um mero aplicar do princípio

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da obediência a alguém em posição de mando. Tem a ver com o exercício ade-
quado das relações complexas de poderque se estabelecem entre os diferentes
agentes políticos, mediadas pelo ordenamento legislativo-jurídico. Em regimes
democráticos, o eixo ético deveria ser o da cidadania e não o da obediência.
Exercer eticamente a cidadania é um desafio ético prioritário em socieda-
des democráticas. A ação cidadã não se restringe ao voto e ao cumprimento das
leis do país. A ação cidadã implica, exige que a ação de cada cidadã e cidadão
seja dirigida à construção de uma sociedade cada vez mais justa, livre, harmo-
niosa e pacífica. Ser cidadão significa participar ativamente da vida pública do
país, seja na esfera da política partidária, seja na esfera dos movimentos sociais,
seja na esfera das instituições governamentais (municipais, estaduais e fede-
rais), seja na das instituições mistas (conselhos tutelares, etc.), seja no chamado
Terceiro Setor, seja no âmbito microssocial do bairro, da vizinhança. Participar
ativamente de modo a que cada vez mais pessoas sejam beneficiadas pela jus-
tiça, e se implante mais e mais o bem comum.
No regime político em que vivemos, no Brasil, as relações de poder estru-
turadas não são apenas as relações especificamente estatais. As sociedades
democráticas capitalistas contemporâneas possuem também outros tipos de
relações estruturadas de poder: o poder econômico, o poder científico-tecnoló-
gico, e o poder midiático. Uma ética política evangélica também tem de formular
valores e princípios apropriados para o exercício das relações de poder no âmbito
dessas estruturações sociais. Na estruturação econômica capitalista, as relações
de poder são declaradamente assimétricas e egocêntricas. Segundo teóricos do
capitalismo, o egoísmo é a forma mais eficaz do amor ao próximo: somente quem

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


243

almeja o maior lucro possível e trabalha para alcançá-lo irá contribuir para o
sucesso da ordem econômica. É claro que, para fazer isto, a ética econômica é
centrada na concorrência, na competição. Então, agir contra o bem econômico
do próximo pode ser visto como uma virtude!
Se, como é fato, reconhecemos que o poder econômico, na atualidade, engloba
todos os demais poderes, inclusive o poder estatal, precisamos reconhecer que o
maior e mais prioritário desafio ético de nosso tempo é o da transformação das
relações de poder econômico. Neste caso, a forma concreta da cidadania deverá
ser dupla: resistência contra a fome devoradora do capital e solidariedade econô-
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mica, que significa a inclusão do maior número de pessoas possível na atividade


econômica e no desfrutar do produto econômico do país (em outras palavras,
justa distribuição da renda...). Isto não implica, necessariamente, em uma revo-
lução estrutural econômica de tipo comunista ou socialista. Implica, sim, pelo
menos em uma ordenação jurídica e funcional do mercado e do capital que dimi-
nuam ao máximo possível os efeitos perversos do sistema capitalistas, e previnam
o máximo possível o funcionamento de mecanismos socioeconômicos injustos.
No âmbito das relações de poder científicas e midiáticas, bastante aparen-
tadas entre si, na medida em que ambas disputam a verdade e a opinião pública,
o eixo ético deverá ser o do discernimento, o da apropriação crítica dos produ-
tos técnico-científicos e midiáticos, associado ao da inclusão. No caso específico
da tecnologia, a lógica da solidariedade e do bem-comum exige, do ponto de
vista ético, que os avanços tecnológicos não fiquem restritos apenas a quem tem
dinheiro para pagar por eles. Os avanços tecnológicos precisam beneficiar toda a
população, e não apenas uma elite ou um segmento privilegiado da população de
um país. No caso específico da mídia, a lógica do bem-comum exige que os con-
teúdos e os programas veiculados não defendam unilateralmente uma concepção
de sociedade ou um conjunto único de valores. A mídia precisa ser democrática,
ser porta-voz da pluralidade de opiniões e valores da sociedade democrática, e
não só a dos patrocinadores das emissoras. Se, no caso da tecnologia, é preciso
ampliar o acesso aos seus benefícios, no caso da mídia é preciso ampliar o acesso
à produção de programas e conteúdos e sua consequente difusão.
Para finalizar esta seção, não é possível formular uma ética política evangélica
que exclua a natureza não-humana de sua abrangência e preocupação. Dentre as

Uma Teologia Pública da Soberania – Poder


244 UNIDADE V

vítimas das relações injustas, dominadoras, de poder no mundo ocidental con-


temporâneo, a natureza é uma das mais afetadas, se não a mais afetada. Neste
caso, o eixo ético político evangélico será o do cuidado da criação divina con-
fiada ao ser humano para seu sustento e prazer. O cuidado deverá ser realizado
tanto em dimensão macro-ecológica, quanto em dimensão micro-ecológica. Por
exemplo, em âmbito micro-ecológico cada cidadã e cidadão planetário deveria
cuidar do consumo da água, do uso de elementos poluentes, da preservação de
jardins e praças etc. Em âmbito macroecológico, proteger ecossistemas da depre-
dação e degradação, proteger espécies ameaças da extinção. Como em todas as

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outras dimensões da ética política na atualidade, a dimensão ecológica também
deverá ser igualmente local e global.

Pautas para uma ética política evangélica entre cristãos

E é preciso ainda mais uma distinção: a ética política evangélica deverá dis-
tinguir entre uma ética viável para estruturas “cristãs” e para estruturas “não
cristãs”. Isto é, não podemos esperar que as relações de poder entre pessoas
transformadas pela graça de Deus sejam praticadas por pessoas não transfor-
madas pela graça. Também não devemos esperar que pessoas transformadas
sejam perfeitas em seus relacionamentos, pois isso negaria o caráter escatológico
da salvação em Cristo. Todavia, é necessário que reconheçamos e afirmemos
ousadamente que o povo de Deus tem o privilégio, concedido graciosamente
por Deus, de ser modelo para as relações de poder na humanidade em geral.
Ser igreja é ser protótipo do reino de Deus, da aliança, da liberdade integral.
Ser igreja, ser cristão, é participar graciosamente da responsabilidade salvífica
integral no mundo.
Necessitamos, portanto, de uma ética das relações de poder na instituição
eclesiástica e na família cristã. Tal ética política eclesiástica terá de informar
como as igrejas deveriam articular suas estruturas de poder, de modo tal a aten-
derem os valores da libertação, aliança e reino de Deus – ou seja, que formas de
governo seriam mais adequadas? Que relações de poder deveriam ser exercidas
entre ministros ordenados e membros da igreja? Em que consiste a legitimidade
de dirigentes da denominação? É necessário reconhecer, tristemente, penso eu,

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


245

que a teologia e a ética do poder eclesiástico estão terrivelmente defasadas! A


mesma avaliação vale, penso, para as relações de poder na instituição familiar. No
âmbito da ética política na família e na igreja, ainda estamos praticando modelos
assimétricos, hierárquicos, fundados em relações dominadoras e não em relações
de poder emancipatórias; modelos “mundanos” e não modelos escriturísticos.
À luz da teologia bíblica do poder, instituições, organizações e movimentos
cristãos deveriam ter como princípio ético normativo o da “maior coordena-
ção possível com o mínimo de subordinação necessária”. Esta seria, a meu ver,
uma tradução mais adequada da noção neotestamentária de submissão (de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

esposas a maridos, de filhos a pais, de uns aos outros, cf. Ef 5:21ss), e de obedi-
ência aos líderes cristãos, pois “aos anciãos que estão entre vós, exorto eu, que
sou ancião como eles e testemunha dos sofrimentos de Cristo e participante da
glória que há de ser revelada. Apascentai o rebanho de Deus que vos foi con-
fiado, cuidando dele, não como por coação, mas de livre vontade, como Deus o
quer, nem por torpe ganância, mas por devoção, nem como senhores daqueles
que vos couberam por sorte, mas, antes, como modelos do rebanho” (I Pedro
5,1-3). Estamos todos nós, cristãos, sob a mesma ordem: a amorosa ordem liber-
tadora, fraterna e amorosa do reino do Filho amado: “entre vós não será assim:
ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e
aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho
do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em res-
gate por muitos” (Mc 10, 43-45).
Se nosso Deus é o deus que ouve o clamor das vítimas da injustiça, uma ética
política evangélica em âmbito eclesial terá como eixo a responsabilidade: ouvir
e responder ao clamor de todas as vítimas da injustiça, especialmente e priori-
tariamente daquelas que não são ouvidas nem atendidas pela sociedade e suas
estruturas de poder. Na prática, isto quer dizer que o cumprimento eclesial da
ética política evangélica se concretiza no exercício da missão integral que Deus
confiou ao Seu povo. Ética e missão, sob o regime da graça, então, se fundem. E
o mesmo vale para a liturgia, para a educação cristã, para a comunhão ministe-
rial e fraterna entre cristãos. Educar para a cidadania e o discernimento, adorar
para imitar a Deus no cuidado e solidariedade, estar juntos para servirmos uns
aos outros e, em comunhão, servirmos à criação de Deus.

Uma Teologia Pública da Soberania – Poder


246 UNIDADE V

UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA -


CIDADANIA

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Nosso tema, agora, será o da cidadania. Você já refletiu sobre a teologia cristã
da cidadania? Será que, em nosso país, as Igrejas dão exemplo de cidadania?

O CONCEITO DE CIDADANIA

Cidadania é, essencialmente, no âmbito da democracia, o direito individual de


governar – a si mesmo e a outros – sob o primado da liberdade e da igualdade e
sob o regime do Direito. O exercício da cidadania revela um conjunto de tensões:
■■ Como exercer o direito individual de governar sem cair no individualismo?
■■ Como ser livre diante da ameaça do assujeitamento a outros ou a si mesmo?
■■ Como conciliar o livre direito de governar com a responsabilidade ética
de fazê-lo em prol do bem comum?
■■ Como conciliar igualdade legal e pluralidade moral, ética e cultural?
■■ Como conciliar igualdade universal, determinação nacional (particular)
da cidadania, e desigualdade econômica?
■■ Como constituir um regime de direito em harmonia com a justiça?
A história da cidadania nos tempos modernos e contemporâneos é, em grande
medida, a luta por resolver essas tensões inerentes ao exercício da cidadania nos
estados democráticos de direito. Nosso foco recairá sobre as trajetórias recentes
da luta por cidadania no mundo ocidental.

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


247

TRAJETÓRIAS DA CIDADANIA NO OCIDENTE

Após a constituição da dimensão civil (político-jurídica) da cidadania, o cres-


cimento das desigualdades sociais nas sociedades capitalistas demandou novas
formas de enfrentamento das injustiças do sistema capitalista. No âmbito da
democracia, movimentos sociais se organizaram e desenvolveram em busca da
diminuição ou eliminação das desigualdades sociais, mediante a expansão dos
direitos de cidadania. A primeira expansão dos direitos da cidadania, ainda no
âmbito da dimensão civil da mesma, foi a incorporação no processo político de
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

segmentos excluídos da população: em primeiro lugar, no início do século XX,


as mulheres conseguem o direito ao voto; posteriormente, o mesmo direito se
reconhece para as pessoas analfabetas. Destarte, desigualdades concretas são
superadas parcialmente, possibilitando novas lutas sociais.
A segunda expansão desses direitos se concretizou no chamado Estado de
‘bem-estar social”, que assumiu os encargos financeiros e administrativos de
reduzir as desigualdades geradas pelo funcionamento da economia capitalista.
Desenvolve-se, então, a segunda geração da cidadania, na qual se incluem
os direitos sociais como dimensão integrante e inalienável da dignidade humana
individual e coletiva. A institucionalização das lutas por ampliação concreta da
igualdade se deu no chamado Estado de “Bem-Estar Social”, que assumiu para
si a responsabilidade pelo equilíbrio financeiro-social impedido pelo funciona-
mento do Mercado sem, porém, modificar a estruturação da economia conforme
fora proposto no marxismo. O Estado passa, assim, a gerenciar a desigualdade
social, mediante a concessão de arranjos socioeconômicos tais como previdên-
cia, subsídios à moradia, direitos trabalhistas, etc.
A implantação desse modelo de gerenciamento das desigualdades se deu
primeiramente na Europa, depois foi se expandindo para a América Latina,
onde ainda é a forma predominante de funcionamento do aparato estatal.
Paradoxalmente, porém, ao assumir para si a função de “proporcionar” bem-
-estar, o Estado de bem-estar social tem sido incapaz de eliminar as causas da
desigualdade, além de impactar negativamente a prática da cidadania. Por um lado,
se em vários países as desigualdades econômicas foram colocadas sob um certo
controle; por outro, o Estado acaba se agigantando e ocupando não só espaços

Uma Teologia Pública da Soberania - Cidadania


248 UNIDADE V

do sistema econômico mas também assumindo espaços significativos da socie-


dade civil, especialmente no âmbito da ética (identidade) e moralidade (valores),
o que resulta em ampla diminuição da participação cidadã na vida sociopolítica.
Com o equacionamento parcial das desigualdades econômicas, uma nova
dimensão da luta social passa a se manifestar: a busca pela igualdade de direitos
para as minorias éticas e morais. Chegamos, ao final da década de 60, ao movi-
mento hippie e ao movimento estudantil, que contestam não só as desigualdades
ainda existentes, mas também a uniformização dos estilos de vida e dos conjun-
tos de valores. Novos movimentos sociais surgem a partir dos anos 70, focados

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
na luta pelo reconhecimento de identidades particulares: o movimento feminista,
por exemplo, muda seu foco, na busca da superação das dimensões ética e moral
do sexismo (fim da noção de superioridade do masculino; fim da violência con-
tra a mulher; reconhecimento do senhorio da mulher sobre seu próprio corpo,
incluindo os direitos de reprodução, entre outros) – e traz à tona a questão mais
ampla do gênero. No campo do gênero, surgem movimentos de revisão da iden-
tidade masculina (metrossexuais, andróginos, etc.) e os movimentos LGBTQ. Em
sociedades com minorias linguísticas ou étnicas, desenvolve-se o multicultura-
lismo enquanto busca de afirmação de identidades particulares diante da “cultura
nacional”; o movimento negro realiza trajetória similar à do feminista – da amplia-
ção dos direitos econômicos para a
dimensão ético-moral. Surgem as
chamadas tribos urbanas, a prole
dos movimentos hippie e estudan-
til dos anos 60, com a juventude
buscando o reconhecimento de
estilos de vida e de identidades
alternativas; e desenvolvem-se
movimentos sociais de migrantes
e imigrantes (refugiados de guerra,
etc.) diante do recrudescimento
das legislações contra estrangeiros
ilegais em países economicamente
mais abastados.

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


249

A partir dos anos 1980 um novo sujeito entra no cenário da cidadania: o


meio-ambiente, que se torna o “planeta” ou, simplesmente, o ambiente da vida,
que não só trata da sobrevivência do planeta, mas também da superação do antro-
pocentrismo e da dominação tecnocientífica sobre animais, vegetais e minerais
– desenvolve-se toda uma nova preocupação ética: a ética da responsabilidade
(controle da tecnociência) e, mais recentemente, uma nova ética: a ética animal
cujo foco recai sobre os direitos dos animais não-humanos. Voltando ao âmbito
da vida social humana, o enfrentamento da globalização gera a busca de formas
cosmopolitas de cidadania, seja no âmbito de movimentos sociais globais (tais
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

como o Fórum Social Mundial) que se contrapõem ao Mercado global; seja no


âmbito da discussão sobre o direito internacional e a superação de modelos estri-
tamente nacionalistas de governo, relações internacionais e de cidadania através da
rearticulação dos órgãos internacionais (tais como ONU, Tribunal de Haia etc.).
Enfim, a mais nova e importante questão da cidadania passa a ser a parti-
cipação efetiva da sociedade civil organizada na tomada de decisões políticas,
na definição de políticas públicas e no controle do Estado. Pode-se chamar esta
nova geração de cidadania cosmo-ecológico-deliberativa, cujo foco recai na
reinvenção da própria noção de cidadania, transcendendo as fronteiras nacio-
nais, as fronteiras intra-sociais (Estado vs. Sociedade civil) e as biológicas. Neste
estágio atual das lutas por cidadania, o eixo da atividade cidadã se desloca do
Estado para a esfera pública democrática. A seguir, refletiremos sobre a demo-
cracia e sua esfera pública.

Cidadania é uma realidade que se construiu ao longo dos séculos XVIII-XX e


não pode ser considerada como algo completo, mas em constante desen-
volvimento, na busca por direitos e responsabilidades públicas de cidadãs
e cidadãos.
Fonte: o autor.

Uma Teologia Pública da Soberania - Cidadania


250 UNIDADE V

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA -
DEMOCRACIA

Finalizamos nossa discussão sobre a soberania discutindo o tema da democra-


cia, a forma de governo baseada na soberania popular e não estatal.

HISTÓRIA DO CONCEITO DE DEMOCRACIA

É costume atribuir à polis grega (anterior à dominação romana) a origem das


práticas e noções de democracia e cidadania, ignorando-se experiências simila-
res no Antigo Oriente (hititas, israelitas). Na polis grega, cidadania é a condição
da democracia, pois é o cidadão (homem, livre) quem governa a cidade “direta-
mente” através da participação nas assembleias. Entretanto, a democracia grega
é, na prática, um regime aristocrático e elitista, pois não leva em conta as possi-
bilidades materiais de exercer o governo
Com o Principado romano, o governo é exercido pelo príncipe (ou impe-
rador), com o apoio e a legitimação da oligarquia agrário-militar e a cidadania
assume uma face predominantemente jurídica e não mais política. Ademais, a
territorialidade presente na polis é alterada, pois é cidadão romano qualquer
habitante do Império a quem tal condição seja reconhecida ou outorgada pelo
príncipe ou pela República. Cidadania torna-se, assim, predominantemente
privilégio, garantia de proteção pelo Estado, e não mais o direito e a responsa-
bilidade de governar e cuidar do bem comum;

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


251

Com o advento do feudalismo, a territorialidade novamente se modifica, pois


a cidadania passa a ser vinculada ao domínio territorial do nobre. O caráter privi-
legiado da cidadania romana, porém, permanece, agora vinculado à nobreza, que
se distingue do povo (gens), súdito dos nobres. Os nobres possuem todos os direi-
tos, especialmente o de governar, enquanto os súditos possuem todos os deveres,
especialmente o de ser governado. A religião cristã passa a ter papel fundamental
na legitimação de tal estado de coisas, graças ao regime europeu da Cristandade.
As noções e práticas da cidadania medieval serão abaladas quando da
Renascença e da Reforma, mediante as quais se dará a passagem do Império e
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

feudalismo para os Estados-nação democráticos de direito. O estatuto da cida-


dania se modifica mais uma vez, tornando-se atributo da dupla realidade de
membro da nação e sujeito do direito. A democracia-cidadania passa a ser uma
noção e prática tensa entre a sociedade civil (produtora de riqueza e repro-
dutora da população) e o Estado (detentor do monopólio do uso legítimo da
violência). A territorialidade passa a ser nacional e a cidadania se torna misto
de direitos e deveres.
Nos Estados modernos, considerados sociais e de direito; a Lei passa a ser o
fator garantidor da democracia e a representatividade o modo institucional de
elaborar e fazer cumprir a Lei. O poder de governar é, assim, delegado aos repre-
sentantes do povo, que constituem o Estado, o qual é subdividido em três distintos
e complementares Poderes, com vistas a impedir que exerça dominação não-de-
mocrática sobre o povo. Com o desenvolvimento da economia de mercado, que
gera uma nova desigualdade (a econômica), o exercício da cidadania é subme-
tido a uma nova tensão – a do ideal representativo (igualdade legal) diante do
real econômico (desigualdade social).
Diante desta nova tensão entre o ideal e o real, alternativas de compreensão
e prática da democracia e da cidadania começam a ser experimentadas, espe-
cialmente no século XX, com a busca de maior participação dos cidadãos nos
processos de tomada de decisão, com vistas a reduzir o peso da desigualdade
social. Consequentemente, novas dimensões dos direitos de cidadania passam a
ser reconhecidas e se tornam objeto da luta política: às dimensões social e econô-
mica se acrescentam as dimensões cultural e identitária-pessoal, bem como novos
modos de luta política se fazem necessários diante da midiatização da sociedade.

Uma Teologia Pública da Soberania - Democracia


252 UNIDADE V

Outrossim, a própria noção de igualdade é redimensionada, para dar conta


da necessidade de tratar desigualmente os desiguais, com vistas a garantir a
igualdade jurídico-normativa impedida pela desigualdade socioeconômica.
Novas políticas públicas são exigidas, e a deliberação pública quanto às mes-
mas se torna um imperativo da legitimidade democrática e da busca de justiça
social, como modo de enfrentar a hegemonia do Mercado, agora apoiada
pelo sistema tecnocientífico e pelo sistema midiático. Não é mais possível
simplesmente delegar o poder de governar, é preciso participar nas decisões.
Democracia é um regime de governo baseado na soberania da Lei e do

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Povo que vota em representantes – organizados partidariamente - que gover-
nam o país de acordo com as leis e em busca do bem comum, defendendo a
liberdade e os direitos de todos; governo esse distribuído entre três poderes
que se complementam e julgam: Executivo, Legislativo, Judiciário. Vejamos
a descrição, longa mas importante, da democracia pela filósofa brasileira
Marilena Chauí:
forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia (igualdade
dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em
público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em públi-
co), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres,
isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem
as mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa
democracia participativa; indiretamente, numa democracia represen-
tativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de
classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade
– sob os efeitos da desigualdade real.
Forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é
considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais
para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do con-
senso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra
dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com
os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da
mera oposição?

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


253

Forma sócio-política que busca enfrentar as dificuldades acima apon-


tadas conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a existência
real das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do con-
flito e a existência de contradições materiais introduzindo, para isso, a
ideia dos direitos (econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças
aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço
político para reivindicar a participação nos direitos existentes e sobre-
tudo para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente por-
que não existiam anteriormente, mas porque são diferentes daqueles
que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos
políticos que os afirmaram e os fizeram ser reconhecidos por toda a
sociedade.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Pela criação dos direitos, a democracia surge como o único regime po-
lítico realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir
o novo como parte de sua existência e, consequentemente, a tempora-
lidade como constitutiva de seu modo de ser;

Única forma sócio-política na qual o caráter popular do poder e das


lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em
que os direitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela
ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política que
favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca da democra-
cia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal à demo-
cracia social, encontra-se no fato de que somente as classes populares
e os excluídos (as “minorias”) sentem a exigência (derivada da neces-
sidade?) de reivindicar a implementação de direitos já reconhecidos e
a criação de novos direitos a serem reconhecidos por toda a sociedade.

Forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é ga-


rantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de
autoridade, mas também pela existência das eleições, pois estas (con-
trariamente do que afirma a ciência política) não significam mera “al-
ternância no poder”, mas assinalam que o poder está sempre vazio, que
seu detentor é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver
recebido um mandato temporário para isto. Em outras palavras, os su-
jeitos políticos não são simples votantes, mas eleitores. Eleger significa
não só exercer o poder, mas manifestar a origem do poder, isto é, eleger
e afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários do governo
(CHAUÍ, 2008, p. 67-69).

Uma Teologia Pública da Soberania - Democracia


254 UNIDADE V

DEMOCRACIA E ESFERA PÚBLICA

Diante dos novos desafios dos séculos XX-XXI, formas alternativas de


compreensão e prática da democracia são ensaiadas e experimentadas:
(a) com a busca de maior participação de cidadãs e cidadãos nos proces-
sos de tomada de decisão, com vistas a reduzir o peso da desigualdade
social e a construir justiça; (b) com a busca do enfrentamento da globa-
lização econômica e a necessidade de leis e relações políticas cosmopolitas.
Simultaneamente, dois fenômenos paradoxais se entrecruzam no tempo atual:

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(a) Privatização: o crescimento e a hegemonia do individualismo consumista,
que afasta as pessoas da vida política; e (b) Publicização: o desejo crescente de
maior influência dos indivíduos no processo de tomada de decisões políticas,
no mínimo em busca de serem ouvidas as demandas dos grupos culturais ou
identitários emergentes.
Sob a égide da aparentemente inevitável globalização da economia e das trocas
interculturais, os Estados nacionais têm cada vez menores condições para enfren-
tar as demandas do Mercado, de modo que os partidos políticos e os governos se
tornam cada vez mais dependentes do sistema econômico, com a consequente
hegemonia da lógica do dinheiro no processo de tomada de decisões nos dife-
rentes poderes do Estado democrático de direito. Assim, diminui a legitimidade
das decisões estatais e cresce a necessidade da participação-deliberação cidadã
no processo de tomada de decisões e do consequente desenvolvimento da esfera
pública. Estão em jogo, não só a legitimidade da democracia, mas, e principal-
mente, a justiça – que tem sido um dos temas mais produtivo no debate público
contemporâneo – acadêmico ou não.
Nas atuais condições do mundo globalizado, a legitimidade dos Estados
não pode mais ser garantida apenas pelo voto – nem pode ser alcançada
mediante o “assembleísmo”. É necessário que sejam criados espaços e meios
para que os cidadãos tenham voz mais ativa no próprio processo de tomada
de decisões, ou seja, que os cidadãos possam participar da deliberação pública
para a concretização dos projetos nacionais. Semelhantemente, a restrição da
democracia/cidadania ao âmbito de territórios nacionais é problemática, na
medida em que a internacionalização das populações – especialmente em vista

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


255

dos fluxos migratórios provocados pela globalização – se torna uma demanda


fundamental na constituição da cidadania em busca de justiça e igualdade
(especialmente nos países “ricos” que têm desenvolvido novas formas de res-
trição à hospitalidade).
Tendo em vista que não é possível que tal participação seja “direta” ou
“assembleísta”, deve-se pensá-la e praticá-la de modo descentralizado. Segundo
Habermas,
a esfera pública é a categoria normativa chave do processo deliberativo;
é uma estrutura de comunicação que elabora temas, questões e pro-
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blemas politicamente relevantes que emergem da esfera privada e das


esferas informais da sociedade civil e os encaminha para o tratamento
formal no centro político. No seu bojo colidem os conflitos em torno
do controle dos fluxos comunicativos que percorrem o limiar entre o
mundo da vida e a sociedade civil, e o sistema político e [... Ela é uma
espécie de] “caixa de ressonância”, dotada de um sistema de sensores
sensíveis ao âmbito de toda sociedade, e tem a função de filtrar e sinte-
tizar temas, argumentos e contribuições, e transportá-los para o nível
dos processos institucionalizados de resolução e decisão, de introduzir
no sistema político os conflitos existentes na sociedade civil, a fim de
exercer influência e direcionar os processos de regulação e circulação
do poder do sistema político, através de uma abertura estrutural, sensí-
vel e porosa, ancorada no mundo da vida (HABERMAS, 1997, p. 374).

Benhabib (1996), por sua vez, descreve a esfera pública como a


“imbricada rede dessas múltiplas formas de associações, redes e orga-
nizações que surge uma conversação pública anônima. É crucial para
o modelo de democracia deliberativa privilegiar tal esfera pública de
redes e associações de deliberação, contestação e argumentação que se
entrecruzam e se sobrepõem … um meio de múltiplos focos de forma-
ção e disseminação de opinião, associados de maneira livre, e que afe-
tam uns aos outros em processos livres e espontâneos de comunicação”
(BENHABIB, 1996, p. 119).

Em tese, portanto, todo cidadão pode participar da esfera pública. Em termos


mais concretos, é preciso que as pessoas se organizem para participar ativa e sig-
nificativamente. Por isso, comumente os participantes da esfera pública são, por
exemplo: Movimentos sociais; ONGs e OSCIPs; Associações, Ordens profissionais,
Federações, Confederações etc.; Órgãos midiáticos; Conselhos público-privados;
Comunidades religiosas, etc.

Uma Teologia Pública da Soberania - Democracia


256 UNIDADE V

Como exemplos de atuação na esfera pública temos:


(a) cobrança efetiva do respeito aos direitos dos cidadãos;
(b) mobilização e articulação para solucionar problemas públicos;
(c) participação no processo legislativo especialmente quando se envol-
vem questões éticas;
(d) exigência do cumprimento da leis, tanto por instituições privadas como
pelo Estado;

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(e) formação permanente da cidadania;
(f) cumprimento de responsabilidades cívicas, das mais elementares às mais
transformadoras; etc.

RELIGIÃO E ESFERA PÚBLICA

Nas seções anteriores discutimos os conceitos de democracia, cidadania e esfera


pública. Nesta seção, o nosso foco recai sobre a presença da religião na esfera
pública. A questão que devemos abordar agora é o papel das crenças religiosas
na discussão de temas públicos. A questão não é se a religião pode fazer parte da
esfera pública. Ela faz. Pessoas religiosas usam argumentos religiosos nos deba-
tes públicos. A questão é mais complicada: tem a ver com o modo legítimo do
uso de argumentos religiosos na esfera pública.
Vejamos: o problema das crenças religiosas na esfera pública tem a ver com
o caráter laico e plural da sociedade, bem como tem a ver com a separação cons-
titucional entre Instituição Religiosa e Estado, que obriga o Estado a ser neutro
do ponto de vista das religiões e o obriga a ser imparcial e justo para com todos
os cidadãos, religiosos ou não. Na realidade atual brasileira, algumas questões
em debate mostram algumas das dificuldades envolvidas no uso de argumentos
e crenças religiosas na esfera pública:

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


257

a) O governo federal assinou uma Concordata (Acordo) com o Vaticano


(que é tanto um país como a sede da Igreja Católica Apostólica Romana).
Nesse acordo há um item que prevê o ensino da religião cristã em escolas
públicas. Ora, já existe uma lei, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB), que afirma que o ensino de religiões na escola pública não pode
ser confessional, nem catequético, dada a laicidade do Estado e, conse-
quentemente, da escola pública. Por causa dessa divergência entre a Lei
e a Concordata, uma procuradora federal entrou com ação no Supremo
Tribunal Federal pedindo: (a) ou a declaração da inconstitucionalidade
desse artigo da Concordata; ou (b) que o Supremo Tribunal Federal deter-
mine que a interpretação correta da LDB exige que o ensino religioso seja
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

não-confessional e não catequético.


b) Um caso similar ocorreu na época em que Garotinho era governador do
estado do Rio de Janeiro. Ele promulgou uma lei determinando o ensino
confessional da religião em escolas públicas. Um procurador estadual
entrou com ação no Supremo Tribunal pedindo a determinação da incons-
titucionalidade do ato do governador, com base na LDB (assim como no
caso mais recente exposto anteriormente).
c) Os movimentos sociais de homossexuais, bissexuais, transexuais e outros
grupos de identidade de gênero não heterossexual têm, há algum tempo,
reivindicado a criminalização da homofobia (preconceito contra pessoas
homossexuais), o direito de união civil para casais de pessoas do mesmo
sexo, bem como o direito de adoção de crianças por tal tipo de casais.
Recentemente, em uma partida de vôlei, a torcida de um clube mani-
festou atitude preconceituosa contra um jogador do clube adversário,
declaradamente homossexual. Além da condenação pela mídia, o clube
da torcida que manifestou homofobia foi multado pela Confederação
Brasileira de Vôlei pelo ato discriminatório. Alguns líderes e algumas
denominações cristãs manifestaram sua contrariedade às reivindicações
dos movimentos de pessoas homossexuais, alegando que a homossexua-
lidade é pecado, fere a moralidade do povo brasileiro e a cultura religiosa
do país. A questão, então, é: os direitos de cidadania são universais (ou
seja, de todos os cidadãos e cidadãs de um país), ou podemos afirmar
que alguns cidadãos, por razões de ordem moral e religiosa, devem ser
privados de direitos, como no caso da discussão sobre os direitos de
pessoas homossexuais?

Uma Teologia Pública da Soberania - Democracia


258 UNIDADE V

d) Há poucos anos foi aprovada uma lei pelo Congresso Nacional, regulamen-
tando a pesquisa com células-tronco embrionárias. Quando da discussão
da lei, a Igreja Católica se manifestou contrária, argumentando que a vida
criada por Deus não poderia ser maculada pela pesquisa. A lei, mesmo assim,
foi aprovada. Posteriormente, um procurador federal ajuizou uma ação no
Supremo Tribunal Federal, pedindo pela determinação da inconstituciona-
lidade da lei. O Supremo não julgou procedente a ação e a lei continua em
vigor, mesmo contrariando a crença da maior instituição religiosa do país.

O papel da religião na esfera pública

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Diante dos exemplos elencados anteriormente, precisamos discutir sobre a ques-
tão, levando em conta que a liberdade de religião é um direito da cidadania, assim
como outros direitos (liberdade de expressão, união civil, laicidade do Estado,
etc.). Não iremos “resolver” o problema. O objetivo é mais simples e mais viá-
vel: descrever alguns aspectos teóricos de uma possível resposta. Somente com
a crescente discussão desta questão, no âmbito da esfera pública e no âmbito
do Estado, é que aprenderemos a lidar com os conflitos religiosos e morais em
sociedades democráticas plurais e constitucionais.
Para realizar o nosso estudo sobre o papel da religião na esfera pública, vamos
nos basear em um texto escrito por Jürgen Habermas (“Fundamentos prepolí-
ticos del estado democrático de derecho?”). A origem deste texto é um debate
entre Habermas e o então cardeal Ratzinger, na Academia Católica da Baviera,
sobre o lugar das religiões na esfera pública da Europa.
A base da discussão de Habermas sobre a religião nasce de sua compreensão
da atual situação das sociedades ocidentais, nas quais, segundo ele, a disponibili-
dade para o serviço público e a esperança de transformação social praticamente
desapareceram. Situação, esta, causada principalmente pela aceitação quase que
universal do modelo capitalista (competitivo) da economia e pela adoção do
consumismo como o padrão de comportamento mais comum nas sociedades
ocidentais. A religião, assim, entra na discussão na medida em que os cidadãos
dos atuais estados democráticos de direito possuem um déficit motivacional com
relação ao exercício da cidadania, pois a cidadania exige solidariedade, pois sem
solidariedade ninguém se esforça para defender os direitos de outras pessoas.

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


259

Em sociedades democráticas de direito, segundo Habermas (2006, p. 110), “os


cidadãos têm de exercer seus direitos de comunicação e participação de maneira
ativa [...] em prol do bem comum. E isto exige um componente maior de moti-
vação que não é possível de impor por via legal”. Na compreensão habermasiana
da sociedade, o sistema político é legítimo na medida em que estrutura a vida
social em bases legais democraticamente constituídas. A lei, porém, é insuficiente
para motivar os membros da sociedade a agirem acima e além de seus próprios
interesses. Este tipo de motivação somente se encontra na própria sociedade,
em sua dimensão cultural, e é a cultura que estabelece, na prática, a ação cidadã:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Os motivos para uma participação dos cidadãos na formação de opinião


e da vontade política se nutrem, certamente, de projetos éticos de vida e
de formas culturais de vida. [...] Entre cidadãos só pode surgir uma so-
lidariedade, como sempre, abstrata e mediada juridicamente, se os prin-
cípios de justiça encontrarem lugar no entramado mais denso de orien-
tações axiológicas de caráter cultural (HABERMAS, 2006, p. 111-112).

As religiões, então, por se tratarem de formas culturais que, entre outras coisas,
conferem sentido e valor à vida, possuem um papel político peculiar. Diante de um
projeto de vida que está cada vez mais focado nas noções de progresso, sucesso,
competição, lucro e consumo, cabe, às religiões um papel profético, pois nelas:
na medida em que consigam evitar o dogmatismo e a coerção sobre as
consciências, permanece intacto algo que se perdeu em outros lugares
e que tampouco pode ser reproduzido apenas com o saber profissional
de especialistas: refiro-me aqui às possibilidades de expressão e a sen-
sibilidade suficientemente diferenciadas para falar da vida malograda,
das patologias sociais, dos fracassos dos projetos individuais e da defor-
mação dos contextos de vida desfigurados (HABERMAS, 2006, p. 116).

Em outras palavras, em sociedades nas quais apenas o sucesso conta, apenas a


vitória interessa, apenas levar vantagem anima a ação das pessoas, desaprendemos
a lidar com o sofrimento humano. Perdemos de vista a prática da solidariedade.
Tornamo-nos incapazes de nos identificar com pessoas que sofrem, possuem
deficiências, não são vencedoras, não “aparecem” na mídia. Até mesmo institui-
ções religiosas passaram a defender apenas a vida bem-sucedida. Em um mundo
assim, o exercício da cidadania não é praticado adequadamente, e as religiões
precisam ajudar as pessoas a reencontrar o amor ao próximo, não só em termos
teóricos, mas, principalmente, em termos práticos.

Uma Teologia Pública da Soberania - Democracia


260 UNIDADE V

A cidadania exige que cada cidadã ou cidadão esteja disposto(a) a debater


respeitosamente com pessoas cujas visões morais, éticas, religiosas e ideo-
lógicas sejam diferentes das suas. Como debater sem impor nossas idéias, e
sem abrir mão de nossos valores?

A pluralidade religiosa e a laicidade do Estado

O problema concreto que se apresenta, porém, para a efetiva participação das

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religiões na esfera pública é o fato de que vivemos em sociedades plurais, socie-
dades em que seus habitantes praticam diversas religiões, ou mesmo em que
predominantemente não se praticam religiões. No entanto, acima disso ainda,
vivemos em sociedades em que há separação entre Instituição Religiosa e Estado,
e o Estado deve corporificar a laicidade (como vimos, esta pode ser distinta em
diversas sociedades). Como decidir diante de conflitos morais, sociais e/ou legis-
lativos quando crenças religiosas assumem papel importante na situação?
Para Habermas (2006), é preciso reconhecer que o conflito é real, mas pode ser
trabalhado por toda a sociedade. Há, porém, que se fazer um aprendizado de con-
vivência entre moralidades distintas e até mesmo contraditórias em uma mesma
sociedade. Sociedades efetivamente democráticas são aquelas em que cidadãos reli-
giosos convivem harmoniosamente com cidadãos não-religiosos. Sociedades em
que, quando há conflitos entre visões éticas religiosas e visões éticas não religiosas,
“ambas as partes, se concebem a secularização da sociedade como um processo de
aprendizagem complementar, podem realizar suas contribuições aos temas contro-
versos na esfera pública e levarem-se mutuamente a sério” (HABERMAS, 2006, p.
117). Isto é, precisamos aprender a estabelecer os limites das nossas crenças (reli-
giosas ou não) quando participamos da discussão pública. A dimensão pública é
a dimensão do bem comum e não dos bens particulares. Este é um sacrifício que
a cidadania exige: reconhecer os limites de nossas crenças e preferências, diante
dos direitos constitucionais de todos os cidadãos e cidadãs do país.
A partir desta constatação, Habermas (2006) irá desenvolver sua definição
do lugar das religiões no debate público. Uma sociedade democrática, com base
em seus valores de liberdade religiosa e tolerância, deve apresentar o mesmo

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


261

tipo de exigência aos cidadãos religiosos e aos não religiosos no tocante à par-
ticipação cidadã na esfera pública:
* (a) Exige dos “crentes que adotem, nas relações com os heterodoxos e com
os não crentes, a atitude de levar em conta, razoavelmente, a persistência de um
dissenso” (HABERMAS, 2006, p. 118); e
(b) faz o mesmo tipo de exigência aos não-crentes, sendo que, para
estes, isto significa “a exigência, nada trivial, de determinar auto critica-
mente a relação entre fé e conhecimento, a partir da perspectiva de um
saber mundano. A expectativa de um desacordo persistente entre fé e
conhecimento só merece o predicado de ‘racional’ se às convicções re-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ligiosas também é concedido, no âmbito do saber secular, um estatuto


epistêmico que não seja absolutamente irracional. Por isso, as imagens
de mundo naturalistas, devedoras a uma elaboração especulativa de
informações científicas e relevantes para a autocompreensão ética dos
cidadãos, não gozam, de forma alguma na esfera pública positiva, de
uma preferência prima facie diante das cosmovisões ou das concepções
religiosas concorrentes (HABERMAS, 2006, p. 119).

Em outras palavras, as pessoas não religiosas não podem impedir que as pes-
soas religiosas usem argumentos religiosos na discussão pública alegando que
tais argumentos são irracionais ou não científicos.
Nas sociedades democráticas, o Estado é leigo, entendido este termo em
sentido amplo e não só religioso, de modo que deve praticar uma consciente
neutralidade em relação às cosmovisões presentes na sociedade. Somente exer-
cendo tal neutralidade é que se pode conseguir justiça política na esfera pública
que, em sociedades democráticas, exige a plena e igual participação de todos os
cidadãos, independentemente de suas ideias amplas sobre a realidade, suas religi-
ões, cosmovisões e estilos de vida. Cabe ao Estado garantir que todos os cidadãos
e cidadãs do país tenham acesso pleno aos direitos de cidadania, inclusive os de
participação na esfera pública e nas decisões do Estado sobre a vida comum da
nação. Cabe, ao mesmo tempo, aos cidadãos que exijam do Estado a prática da
laicidade e da neutralidade diante da diversidade religiosa e moral da nação.
Apenas iniciamos uma discussão extremamente importante e bastante com-
plicada. Que ele sirva como motivação para que você, no exercício da cidadania,
aprenda a participar da esfera pública como pessoa religiosa que exerce a soli-
dariedade da fé em defesa dos direitos de todas as pessoas.

Uma Teologia Pública da Soberania - Democracia


262 UNIDADE V

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos ao final de mais uma disciplina de nosso curso de bacharelado em


Teologia da UniCesumar. A disciplina de Teologia Pública é uma das mais desa-
fiadoras de todo o curso, em função de sua temática e de sua pouca idade no
mundo acadêmico - espero que você tenha percebido essas características em
suas leituras e reflexões.
Apesar da pouca idade da disciplina, a Teologia Pública possui uma abran-
gência temática muito grande - política, gênero, ética, missão, economia, ecologia,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
subjetividade etc. Como vimos, não se trata de mais uma corrente teológica, mas
de um ‘novo’ modo de fazer teologia, em que as questões públicas da sociedade
atual sejam a fonte dos temas em debate e em construção.
Em certo sentido, a Teologia Pública não é ‘nova’, pois retoma temas da mis-
siologia, da teologia política, da teologia da missão integral e da libertação (entre
outras). A novidade está no modo de abordar os temas e de tratá-los metodo-
logicamente. Você viu, nesta disciplina, uma forma metodológica da Teologia
Pública: o diálogo entre o pensamento contemporâneo e a Teologia Bíblica.
Existem outras formas possíveis, que você conhecerá à medida que continuar
suas leituras sobre o tema.
Liberdade, justiça, reconhecimento e soberania foram os quatro tópicos
que abordamos, após discutir o que é a Teologia Pública. Cada um destes temas
mereceria uma disciplina, pois são complexos e abrangentes, além de oferece-
rem vários desafios práticos. Ficamos, assim, no início da conversa, deixando
aquela sensação de “quero mais”!
Minha oração é que estas reflexões tenham sido úteis para sua vida e minis-
tério. Que você continue estudando estas temáticas e se dedique às questões
públicas na vida pessoal e ministerial. Que Deus abençoe a todas e todos vocês.
Obrigado por estudar conosco na UniCesumar.
Abraços!

TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA


263

1. Conforme a avaliação de Agamben (2004, p. 13), “o estado de exceção apresen-


ta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre...”:
a) Democracia e cidadania.
b) Democracia e absolutismo.
c) Democracia e socialismo.
d) Absolutismo e nazismo.
e) Democracia e monarquia.

2. Para qual autor, “soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”?
a) Schmitt.
b) Agamben.
c) Habermas.
d) Honneth.
e) Forst.

3. A cidadania em Filipenses, conforme o texto da lição, se desdobra em duas


temáticas fundamentais:
I. Dignidade messiânica.
II. Santidade cidadã.
III. Religiosidade alternativa.
IV. Poder absoluto.
V. Alegria reflexiva.
Assinale a alternativa correta:
a) II e III estão corretas.
b) III e IV estão corretas.
c) III e V estão corretas.
d) I e V estão corretas.
e) II V estão corretas.
264

4. De acordo com o texto da disciplina: “Cidadania é, essencialmente, no âmbito


da ______________, o direito individual de ________ – a si mesmo e a outros –
sob o primado da __________ e da ______________ e sob o regime do Direito.”
A sequência correta de palavras que completam a citação acima é:
a) Governar, liberdade, igualdade, democracia.
b) Liberdade, democracia, governar, igualdade.
c) Igualdade, democracia, governar, liberdade.
d) Governar, liberdade, democracia, igualdade.
e) Democracia, governar, liberdade, igualdade.

5. Democracia é um regime de governo baseado na soberania da Lei e do Povo


que vota em representantes – organizados partidariamente - que governam o
país de acordo com as leis e em busca do bem comum, que defende:
I. A liberdade de todos
II. o bem-estar de todos
III. a igualdade de todos
IV. os direitos de todos
V. a felicidade de todos
Assinale a alternativa correta:
a) Apenas I e II estão corretas.
b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas I e IV estão corretas.
d) Apenas II e V estão corretas.
e) Apenas I e V estão corretas.
265

Teologia pública no Brasil: uma discussão emergente


Minha própria motivação inicial para enveredar no projeto de uma teologia públi-
ca se deu com a leitura de um artigo de Hugo Assmann, publicado em 1994, onde
advoga a continuação da Teologia da Libertação como “teologia da solidariedade
e da cidadania”. Descobri a cidadania como termo-chave da democracia brasileira
pós-transição e como desafio à teologia, algo que é, na minha percepção, ainda pou-
co trabalhado no Brasil. Detectei uma falta de propostas mais concretas na linha
libertadora, por exemplo em diálogo com o direito. Posteriormente, ao presenciar
a criação da Rede Global de Teologia Pública durante meu semestre de pesquisa
em Princeton (EUA), em 2007, e interagindo com colegas da África do Sul que já
vinham trabalhando o conceito há mais tempo, como continuação de uma teologia
libertadora em tempos democráticos, comecei a esboçar uma teologia pública com
enfoque na cidadania. Achei importantes aportes na tradição luterana, ainda pouco
aproveitada no Brasil. Sem poder desenvolvê-los, aqui, com a necessária profundi-
dade, apresento, brevemente, cinco elementos que me parecem fundamentais. (a) A
insistêncialuterananajustificaçãoporgraçaefé extr a nos, recebidacomodádiva, junto
com uma teologia da criação focada no ser humano feito à imagem e semelhança de
Deus fundamenta a cidadania. A pessoa é cidadã não por característica ou méritos
específicos, mas por ser um ser humano, que tem sua dignidade intrínseca atribuída.
Ninguém pode roubá-la dele. (b) Outro aspecto, numa situação de falta de confiança
nas outras pessoas, é o embasamento da confiança não no ser humano, falho como
é, mas em Deus. A partir disso é possível arriscar-se numa nova tentativa de confiar
– e mostrar-se digno da confiança dos outros – resultando numa confiabilidade tão
fundamental para qualquer democracia. Assim, pode-se viver como cidadão. (c) A
situação do ser humano é uma situação de ambiguidade, de incertezas, de acertos
e falhas intercaladas. Reconhecer, como Lutero, que o cristão é justo (justificado) in
spe, na esperança, mas permanece pecador in re, na realidade, não é um percepção
pessimista da humanidade, mas, antes, realista.Podendo aguentar tais ambiguida-
des como fazendo parte da vida, pode-se perseverar como cidadão. (d) No seu famo-
so tratado sobre a liberdade cristã, Lutero mostra claramente como esta liberdade
não é, simplesmente, uma liberdade de opções, mas uma liberdade de serviço: ser,
ao mesmo tempo, livre e submisso a ninguém, e servo e submisso a todos, por op-
ção própria, não por obrigação. Assim, pode-se descobrir a cidadania também como
serviço. Diante do ocasional esquecimento de que a cidadania não consiste apenas
em direitos, mas também em deveres, esta postura é de especial importância. (e)
Por fim, a chamada doutrina dos dois reinos ou, melhor, regimentos, que reivindi-
ca esferas de responsabilidade distintas entre o poder público e a igreja, ajuda em
contextos onde esta distinção nem sempre é feita apropriadamente para garantir a
cidadania de todas e todos. Para Lutero, na época da Cristandade, era claro que Deus
reinava nos dois regimentos. Isto não tem mais cabimento hoje, num pluralismo reli-
gioso e Estado secular, ou seja, religiosamente neutro. Mas a distinção de papéis me
parece muito importante para impedir uma indevida ingerência, de ambos os lados.
266

No Brasil hoje, a meu ver, a ingerência do Estado na religião é pequena. Já a inge-


rência (ou tentativa de ingerência) de igrejas no âmbito do Estado é considerável.
Os crucifixos mencionados no início deste artigo, ainda que talvez com pouco efeito
concreto, não deixam de ser sinais disto. É um desafio para cada cidadão cristão, o de
servir Deus sob dois regimentos.
Descobri, ainda, que o termo teologia pública permite uma maior abrangência e
inclusão de aportes do que o rótulo da Teologia da Libertação (sem ter que aban-
donar suas contribuições fundamentais como a opção preferencial pelos pobres),
pois consegue abarcar abordagens pentecostais – exatamente daquelas igrejas para
onde foram e estão indo os mais pobres. Ao mesmo tempo tenho plena consciência
de que a relação entre Teologia da Libertação e teologia pública – estreita, a meu ver,
em seu conteúdo central – precisa ser melhor analisada.
É possível que o interesse pela teologia pública que emergiu nos últimos anos seja
apenas um fogo de palha, uma moda passageira. No entanto pode ser, também, que
seja algo que se torne útil para o debate por um bom tempo. Falar de teologia públi-
ca é algo que serve para uma reflexão apurada sobre o papel da religião no mundo
contemporâneo, na política, na sociedade, na academia, como reflexão construtiva,
crítica e autocrítica das próprias igrejas, comunicando-se com outros saberes e com
o mundo real. Bem diz Iuri Reblin partindo de Rubem Alves: “Teologia é um jogo
que é jogado quando a vida está em jogo”. É uma teologia da vida ligada ao Deus da
vida procurando contribuir na sociedade para que haja vida digna de ser vivida para
todas e todos.
Fonte: Sinner (2012).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Economia para a vida: a rebelião dos limites e o itinerário


teológico para uma economia solidária
Luís Carlos Dalla Rosa (Org.)
Editora: Sinodal
Sinopse: este volume se destaca dentro da Série Teologia Pública por
ser a primeira obra de um único autor com um único foco temático. Ela
é fruto do prêmio CAPES de teses de 2011 que o autor ganhou pela sua
tese de doutorado defendida na Faculdades EST. Luís Carlos Dalla Rosa
dialoga com diversos autores e apresenta experiências de diversas áreas
do conhecimento para compor o entrelaçamento do tema em questão: a
economia para a vida. A principal, mas não a única referência é o economista
e teólogo Franz Hinkelammert, que vem desenvolvendo análises críticas do sistema capitalista
neoliberal e suas consequências nefastas para grande parte das populações. Diante de um contexto
globalizado, no qual predomina um modelo econômico que é desumano e necrófilo, a viabilidade
de uma economia com rosto humano e solidário, ecologicamente sustentável, brota de numerosas
iniciativas no Brasil e no mundo, testemunhando que é possível uma economia para a vida.
Conforme o autor: “O tempo ainda é de aprendências e travessias e, mesmo em intransponíveis
penhascos, surgem flores que profetizam a esperança”.

Danton, O Processo da Revolução


Ano: 1982
Sinopse: No período popular da Revolução Francesa, instala-se o “terror”,
quando ocorre a radicalização revolucionária dos jacobinos, liderados
por Robespierre. Danton, outro líder revolucionário, critica os rumos do
movimento, tomando-se mais uma vítima.

A revista acadêmica da Associação Internacional de Teologia Pública. Artigos em inglês são uma
exigência para quem quer se aprofundar nos temas da Teologia Pública contemporânea.
Web: <http://www.brill.com/international-journal-public-theology>

Material Complementar
REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.


BENHABIB, S. “The Democratic Moment and the Problem of Difference”. In: BENHA-
BIB, S. (org.). Democracy and Difference: Contesting the Boundaries of the Political.
Princeton: Princeton University Press, 1996.
CHAUÍ, M. Cultura e Democracia. In: Crítica y emancipación. Revista latinoameri-
cana de Ciencias Sociales, Buenos Aires, Año 1, n. 1, p. 67-69, 2008. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/CyE/cye3S2a.pdf>. Acesso
em: 19 jun. 2018.
FOUCAULT, M. “O Sujeito e o Poder”. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault,
uma Trajetória Filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
Janeiro: Forense Universitária: 1995.
FRIEDRICH, C. J. Constitutional Government and Democracy. Boston: Ginn, 1950.
HABERMAS, J. El discurso filosófico de la modernidad. Madrid: Taurus, 1989.
______. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade, vol. I. Rio de Janeiro.
Tempo Brasileiro: 1997.
______. Entre naturalismo y religión. Barcelona: Paidós, 2006.
HANSEN, W. G. The Letter to the Phillipians. Grand Rapids: Eerdmans, 2009.
SCHMITT, C. Political theology: four chapters on the concept of sovereignty. Chica-
go: Chicago University Press, 1985.
SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2000.
SINNER, R. Teologia pública no Brasil: uma discussão emergente. Perspectiva Teoló-
gica, Belo Horizonte, Ano 44, n. 122, p. 11-28, Jan/Abr, 2012. Disponível em: <http://
www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/view/1589/1939>.
Acesso em: 19 jun. 2018.
269
GABARITO

1. B.

2. A.

3. D.

4. E.

5. C.
CONCLUSÃO

Olá, caro(a) aluno(a)! Você chegou ao fim de mais uma jornada em seu curso de
Teologia na UniCesumar. Que bom! Foi necessário disciplina, esforço e dedicação
para chegar até aqui! Deus certamente tem acompanhado sua vida e seus estudos,
não é verdade?
Muito bem. Estudamos a Teologia Pública. Esta é uma disciplina nova nos currículos
acadêmicos de Teologia, pois é uma nova forma de fazer teologia que tem se de-
senvolvido ao longo dos anos 70 em diante. Como vimos, é uma forma ‘nova’, mas
não tão nova assim, na medida em que ela é a forma renovada das discussões que,
desde tempos antigos, ocupam as diversas correntes teológicas e doutrinárias das
várias Igrejas Cristãs.
As Igrejas jamais deixaram de participar da vida pública da sociedade, assim como
os crentes também sempre participaram da vida pública. A questão fundamental,
porém, é: “quais são as melhores formas de participação na vida pública à luz da
Escritura e das realidades que enfrentamos?”
Participar é preciso. Participar com sabedoria, inteligência, amor e solidariedade são
marcas fundamentais da presença cristã nos espaços públicos da vida social. Parti-
cipar, também, em todas as dimensões da vida pública, e não só naquelas que são
mais fáceis e menos desafiadoras.
Participar exige muito conhecimento e muita sabedoria. A Teologia Pública visa
construir o conhecimento necessário para a participação cristã na vida pública, mas
a sabedoria é algo que só você consegue desenvolver em seu dia a dia, na comu-
nhão com os irmãos e irmãs e, especialmente, na relação de fidelidade a Deus em,
Jesus Cristo e no Espírito Santo.
O material aqui apresentado para sua reflexão é um bom ponto de partida para o
aprendizado da teologia Pública, mas só um ponto de partida. Caberá a você conti-
nuar estudando e praticando Teologia Pública. Você, individualmente, e na comuni-
dade cristã a que pertence.
Que Deus abençoe a todas e todos vocês! Obrigado por participar desta disciplina
e de nosso Bacharelado!
Abraços fraternos.
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