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PÚBLICA
GRADUAÇÃO
Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor Executivo de EAD
William Victor Kendrick de Matos Silva
Pró-Reitor de Ensino de EAD
Janes Fidélis Tomelin
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi
TEOLOGIA PÚBLICA
SEJA BEM-VINDO(A)!
Olá! Bem-vindas e bem-vindos ao nosso estudo da disciplina Teologia Pública, no Bacha-
relado em Teologia do Unicesumar. Ficamos alegres com sua participação e desejamos
crescer juntos enquanto docente e discentes na reflexão sobre os temas desta disciplina.
Teologia Pública! O que é isto? Ela não é uma nova teologia, do estilo da teologia da
libertação, ou teologia da justiça, ou teologia da vida etc. Teologia pública é, como o
adjetivo indica, a teologia que se ocupa primariamente, que coloca sua principal ênfase
na função pública da Teologia. Bem! Você deve ter notado que esta primeira explicação
é tautológica (uma fala vazia, ou repetitiva). Teologia pública é a teologia que enfatiza a
função pública da Teologia. Mas, qual é a função pública da Teologia?
Entendo por função pública da Teologia a presença e participação crítica da reflexão
teológica na vida pública de uma sociedade. A vida pública de uma sociedade é aquela
dimensão da vida social que tem a ver com as relações sociais, políticas, econômicas,
culturais, tecnológicas, educacionais, intersubjetivas, de gênero etc. Neste sentido, pú-
blico é tudo aquilo que não pode pertencer apenas ao âmbito privado da vida individu-
al, da vida familiar ou da vida religiosa.
Uma teologia se torna pública quando ela não restringe a sua reflexão aos interesses
privados do indivíduo, da família ou da igreja. A teologia se torna pública quando ela
vai a público e se arrisca a participar nos debates públicos de uma sociedade. É a refle-
xão teológica que enfrenta questões como a violência, a corrupção, a injustiça social, as
identidades de gênero, a censura, a desigualdade econômica, a participação cidadã na
democracia, etc.
Vamos, então, juntas e juntos, conversar sobre e desenvolver nossa compreensão te-
órica e prática da função pública da Teologia. Vamos pensar juntamente sobre alguns
dos grandes temas públicos que afetam a vida humana. Orar, refletir e agir são os três
momentos da teologia que se torna pública!
09
SUMÁRIO
UNIDADE I
17 Introdução
18 O que é Teologia?
36 Considerações Finais
42 Referências
43 Gabarito
10
SUMÁRIO
UNIDADE II
47 Introdução
96 Considerações Finais
102 Referências
103 Gabarito
11
SUMÁRIO
UNIDADE III
107 Introdução
160 Referências
161 Gabarito
12
SUMÁRIO
UNIDADE IV
165 Introdução
211 Referências
212 Gabarito
13
SUMÁRIO
UNIDADE V
215 Introdução
268 Referências
269 Gabarito
270 CONCLUSÃO
271 ANOTAÇÕES
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA
I
UNIDADE
TEOLOGIA PÚBLICA
Objetivos de Aprendizagem
■■ Definir teologia e seus tipos.
■■ Conceituar Teologia Pública.
■■ Descrever a Teologia da Missão Integral enquanto Teologia Pública.
■■ Explicar os principais tópicos de uma agenda para a Teologia Pública
no Brasil.
■■ Descrever as principais características do Protestantismo no Brasil
como sujeito da Teologia Pública.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O que é Teologia?
■■ Definindo Teologia Pública
■■ A Teologia da Missão Integral como Teologia Pública
■■ Uma Agenda para a Teologia Pública no Brasil
■■ O Sujeito da Teologia Pública no Brasil
17
INTRODUÇÃO
Introdução
18 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O QUE É TEOLOGIA?
Olá colegas! Iniciamos nosso estudo da Teologia Pública. Para começar, vamos
refletir sobre o que é a teologia em sua forma acadêmica.
O que é Teologia?
20 UNIDADE I
Que diferença é essa? Veja bem: quando um pastor prega, parte do con-
teúdo de sua pregação é teologia; quando uma pastora ensina em um grupo
de membros da igreja, parte do que ela faz é teologia. Quando cantamos nos
cultos da igreja, parte do que cantamos é teologia. Isto é, se pensarmos na teo-
logia como toda e qualquer fala cujo conteúdo é “Deus e suas relações com
a criação”, a teologia está presente em todas as atividades da igreja (e pode-
ríamos dizer, também, da vida devocional dos crentes individualmente). Se
pensarmos na teologia desse modo, então tudo é teologia e se tudo for teo-
logia, nada, de fato, será ‘teologia’. No meio acadêmico precisamos definir
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
bem o sentido de uma palavra, a fim de sabermos a respeito do que estamos
falando. Por isso, no próximo tópico, discutiremos os elementos que cons-
tituem a teologia enquanto um saber disciplinado ou, como vários teólogos
preferem, enquanto uma ciência.
CARACTERÍSTICAS DA TEOLOGIA
Hermeneuticidde
Criticidade
Praticidade
O que é Teologia?
22 UNIDADE I
Publicidade
Não uso a palavra, aqui, no sentido que se dá a ela no termo Teologia Pública.
Uso-a em seu sentido elementar de algo que pode ser visto por outras pessoas
além de seu criador ou proprietário. A teologia não pode se restringir aos livros
e ambientes fechados da academia ou da igreja. Ela deve sair desses ambientes e
enfrentar os desafios do mundo, da missão, da sociedade etc. Deve estar pronta
para dialogar criticamente com todos os demais saberes humanos, mesmo com
os que se opõem a ela. Deve estar pronta a se expor diante das pessoas em geral,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a fim de ser testemunho da fé e não só reflexão sobre a fé.
Muito bem, amigas e amigos. Vamos, agora, entrar no campo da teologia pública
propriamente dita.
Na seção anterior, vimos que toda teologia acadêmica possui quatro carac-
terísticas: hermeneuticidade, criticidade, praticidade e publicidade. Como ligar
essas características aos tipos de teologia nas faculdades? Por exemplo: na teologia
sistemática predomina a criticidade (as outras três características estão presentes,
mas subordinadas à criticidade); na teologia prática predomina a praticidade, na
teologia bíblica predomina a hermeneuticidade. Fica fácil, agora, você respon-
der: “que característica predomina na teologia pública?” Tenho certeza de que
você acertou: na teologia pública predomina a publicidade. Então, já temos uma
primeira definição de teologia pública: é a teologia em que predomina a carac-
terística da publicidade, ou seja, teologia pública é uma forma de teologia que se
ocupa primariamente de temas ligados à esfera pública ou, de modo mais amplo,
ao espaço público (questões ligadas ao funcionamento da sociedade civil e do
estado). Um dos principais pesquisadores da teologia pública no Brasil assim
descreve a sua atividade:
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Há vários modos de descrever e conceituar teologia da missão integral. Nesta
seção de nosso texto, farei uma síntese das reflexões conduzidas pela Fraternidade
Teológica Latino-Americana (Setor Brasil) nos anos 80 e até meados dos anos
90. Para descrições mais amplas, pode-se consultar os itens bibliográficos per-
tinentes de nosso Programa de Disciplina. Apresento a TMI em um formato
narrativo, contando minhas ‘memórias’ do movimento no período indicado.
O caminho escolhido, então, foi o de mostrar – em primeiro lugar – que
o compromisso missionário integral estava presente na vida e missão de Jesus
Cristo. Para sermos fiéis ao Senhor da Igreja, deveríamos trilhar os mesmos
caminhos que Ele trilhou, caminhos que incluíam a prioridade dos pobres, a
consciência crítica quanto aos poderes espirituais e terrenos, o engajamento
integral do povo de Deus na obra missionária integral, em resposta à totali-
dade do Evangelho que Jesus viveu e pregou. Construir uma cristologia bíblica
e contextual era imperativo para a que o povo de Deus percebesse a validade do
engajamento nas questões sociais e políticas, para que o povo de Deus visse esse
engajamento não como um abandono da responsabilidade evangelística, mas
como o parceiro necessário da evangelização no testemunho do Evangelho na
sua totalidade. A espiritualidade cristã passou a ser vista como espiritualidade
cristocêntrica, espiritualidade do seguimento de Jesus Cristo na fidelidade mis-
sionária ao Pai. Ser um cristão espiritual era visto como ser semelhante a Jesus
em sua atuação ministerial.
Imediatamente após a reflexão cristológica, tratou-se da “vida no Espírito”.
A espiritualidade não era um tema marcante naquele tempo, que se caracterizou
por amplos debates a respeito do poder e da ação do Espírito Santo. Uma pneuma-
tologia latino-americana começava a se delinear, então. Era necessário perceber
que o Espírito de Deus não só renovava a igreja, mas também toda a humani-
dade e a criação. Precisávamos abrir os olhos para o fato de que o Espírito Santo
não estava restrito às fronteiras eclesiásticas, mas era a pessoa da Trindade que
agia em toda a criação e trazia a luz e a semente da vida para toda a humanidade.
Precisávamos discernir a presença do Espírito no mundo e os desafios que essa
presença lançava sobre o povo de Deus. Era tempo de reafirmar que o poder do
Espírito Santo estava disponível para a igreja contemporânea e que esse poder era
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
pensamento sistemático. Os temas trinitários foram surgindo ao longo da refle-
xão sobre a prática integral da missão e sobre a necessidade de mostrar a sua
fidelidade à Escritura. Parcialmente ausente, então, das reflexões nesse período,
foi a eclesiologia. A palavra de ordem era o Reino de Deus. A igreja só poderia
ser entendida claramente se vista à luz do Reino de Deus, se percebida como a
comunidade do Reino, e não como uma instituição autossuficiente. A Igreja era
compreendida, então, como agente da missão, como testemunha do Reino. Não
havia necessidade, portanto, de se refletir especificamente sobre a igreja – sua
organização, governo, natureza. A reflexão sobre a missão era, naturalmente,
reflexão sobre a igreja. Missão e ministérios eram a marca da Igreja. O cresci-
mento da igreja era visto, então, como consequência do engajamento na missão
integral e como uma dádiva de Deus. O crescimento da igreja deixou de ser visto
como um fim em si mesmo, e sim como um meio para o cumprimento da mis-
são de testemunhar do Reino de Deus em todo o mundo.
Paralela e simultaneamente à reflexão sobre esses grandes temas teológicos
e missiológicos, a FTL-B se ocupou da contextualidade. Dois grandes desafios
foram enfrentados sob esse tópico. O primeiro era o desafio de discernir nosso
contexto. Era tempo de se afirmar que, para fazer missão, era necessário conhecer
o contexto social, econômico, político e cultural em que a Igreja estava inserida.
Compreender o Brasil e a América Latina, assim como vivenciar plenamente a
brasilidade e a latinidade, eram questões fundamentais para a missão integral. Foi
um tempo de reconhecimento da nossa ignorância a respeito de nossa própria
realidade social e cultural. Víamo-nos como ‘estrangeiros em nossa própria terra’.
Era necessário mudar essa situação. O segundo era o desafio da hermenêutica
Vimos que teologia pública é o tipo de reflexão teológica que se ocupa dos temas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
da vida pública nas sociedades contemporâneas. Uma teologia pública, portanto,
organiza a sua agenda a partir dos problemas mais importantes que existem em
seu espaço público. O sujeito da Teologia Pública, portanto, não pode ser a(o) teó-
loga(o) isolado(a), mas o teólogo ou a teóloga como participante da vida eclesial.
Por isso, para pensarmos na temática e estrutura da teologia pública, precisamos
partir das condições do sujeito da teologia que é a Igreja em suas múltiplas for-
mas e cenários possíveis no contexto. Apresentarei, a seguir, portanto, uma breve
análise da Igreja no Brasil, em seu modo protestante de ser, como base para a
posterior descrição de uma agenda básica para uma Teologia Pública no Brasil.
Minha hipótese básica é: diante do predomínio do pensamento único neoli-
beral e do modo de produção capitalista, o caminho aparentemente mais viável
para uma teologia pública no Brasil é o de contribuir para o desenvolvimento da
cidadania – tanto em termos de construção de nossa identidade, quanto em ter-
mos do desenvolvimento de uma consciência cosmopolita (interessada no bem
de todas as nações e povos). O colapso do socialismo enquanto modo de pro-
dução não pode ser usado para legitimar o capitalismo, pois é tão eficaz quanto
injusto. Uma das lições destes cinquenta anos, porém, tem sido a de que van-
guardas são politicamente ineficazes. Mudanças amplas necessitam de uma base
social ampla. Há que se apostar na democracia, não mais na democracia liberal
representativa, mas em uma democracia de cunho mais participativo e delibe-
rativo, na qual o poder seja mais efetivamente exercido pela cidadania e não se
restrinja à atuação do Estado – já colonizado pelo Mercado. Apostar, sim, pois
não há garantias de que a deliberação democrática encaminhe a sociedade para
a justiça. Apostar, sim, pois Deus é capaz de realizar coisas impossíveis.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Vamos refletir sobre quem faz Teologia Pública no Brasil de hoje. Em outras
palavras, vamos estudar os perfis do Protestantismo atual em busca de possibi-
lidades de criação de uma Teologia Pública consistente.
Tentando discernir os sinais dos tempos atuais, receio que este cenário seja
o acalentado por número muito significativo de igrejas e crentes protestantes e/
ou evangélicos. Talvez seja o desejo da maioria, não tenho condições de precisar
porcentagens. Cenário, porém, que considero o mais inadequado do ponto de
vista de uma teologia política minimamente evangélica (inspirada no Evangelho
do Messias Jesus). O modelo de Cristandade, seja pleno, seja mitigado, tem
demonstrado ao longo da história ser um modus operandi político intolerante,
autoritário e repressor que, no fim das contas, apenas legitima o status quo.
Casamento, registrado ou não em cartório, entre Igreja e Estado, desfigura tanto
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
a Igreja como o Estado. Mata a democracia. Impede a justiça social. Subordina,
na prática, a fé cristã aos valores secularizados do consumismo e do desejo do
poder. Tem a aparência de democracia, mas é autoritarismo disfarçado, tanto
mais perigoso quanto mais sutil. Parafraseando o profeta Isaías, devemos fugir
da Cristandade, fugir da babilônica junção entre fé cristã e instituição estatal.
No cenário de Cristandade, não é possível uma Teologia Pública crítica, apenas
uma teologia pública legitimadora do Estado.
que esse projeto tem uma boa dose de afinidade com o da Cristandade evangé-
lica. Como este segmento numericamente tem sido pouco expressivo em termos
eleitorais, a sua proposta política foi, na prática, reduzida às questões morais e
de valor – ou, ao modo mitigado da Cristandade. O chamado testemunho pes-
soal – honestidade, decência, ausência de vícios, estabilidade da família nuclear,
etc. – é o eixo deste projeto, juntamente com a rejeição do Comunismo e das
ideologias de esquerda em geral. Sua caminhada eleitoral é baseada na crença
de que irmão vota em irmão ou, pelo menos, em pessoas honestas, e em parti-
dos de direita ou de centro.
Para este projeto, as mudanças sociais devem ser fruto da ação de pessoas
cujo coração (subjetividade) esteja entregue nas mãos do Senhor Jesus. Não se
pensa a transformação social a partir de análise sociológica, política ou estru-
tural – mas, sim, a partir da crença religiosa, pois “feliz é a nação cujo deus é o
Senhor”. Não se questiona o capitalismo nem o liberalismo político enquanto
tais, pois estes são abençoados pelo Senhor, em contraste com o diabólico comu-
nismo e seus similares político-ideológicos. Em uma linguagem mais aceitável
no último quarto do século passado, o Protestantismo da subjetividade aposta
na reforma e não na revolução como caminho para a melhoria social. Reforma,
insisto, primeiramente, da moralidade e dos valores dos indivíduos. Somente
depois, pode-se pensar em reforma de instituições, civis ou estatais – mas reforma
moral. Uma Teologia Pública com este sujeito teria contornos primariamente
morais, discutindo os aspectos da vida ética e moral do Brasil contemporâneo
que mais afetam a vida das igrejas.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
e a IEAB, seguidas pela IMB e outras denominações menores) e na atividade
de pessoas, em igrejas não ecumênicas, com espírito e prática ecumênicas
(tais como os intelectuais fundadores e participantes de ISAL). Sem que-
rer polemizar, nem alcançar glória pela paternidade, temos neste segmento
protestante um dos pais/mães da Teologia da Libertação, consubstanciada
na tese de Rubem Alves, recém reeditada com o título que deveria ter rece-
bido desde sua feitura. O outro movimento teve sua base eclesial em pessoas
e movimentos tanto em igrejas não ecumênicas, quanto na IECLB e IEAB,
e desenvolveu a chamada Teologia da Missão Integral. Os movimentos mais
conhecidos neste grupo têm sido a Aliança Bíblica Universitária do Brasil, a
Fraternidade Teológica Latino-Americana, dentre outros.
Ao agrupar estes dois movimentos teológicos sob uma única categoria não
pretendo nivelá-los, fazendo desaparecer as profundas diferenças entre ambos.
Comumente se destacam as diferenças entre ambos os movimentos, mas,
como participante em ambos, aprendi a valorizar muito mais as semelhanças
do que as diferenças. Com vistas mais a economizar no tempo da descrição,
constato que, cada um a seu modo, o movimento ecumênico e libertador pro-
testante e o movimento evangelical da missão integral foram protagonistas,
nos anos de chumbo e depois, de projetos político-teológicos que se esforça-
ram não só por contextualizar a teologia e as igrejas, mas também por servir
concretamente as pessoas e a sociedade brasileira com a boa nova do Reino
de Deus. O primeiro movimento era mais bem articulado sociológica e ide-
ologicamente falando, produziu trabalhos intelectuais de fôlego e contribuiu
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito bem colegas! Chegamos ao final desta Unidade. Espero que vocês tenham
percebido a importância da Teologia Pública para a vida cristã e para a missão
da Igreja. Como povo de Deus, somos participantes da vida pública de nosso
país e mundo, e não podemos ser meros espectadores da vida.
No Brasil atual, como você sabe, temos muitos problemas públicos - violên-
cia, corrupção, desigualdade social e econômica, atraso tecnológico, educação
escolar deficiente etc. No entanto, penso eu, nosso maior problema é que fala-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
mos demais sobre os problemas do Brasil, enquanto não fazemos quase nada
para resolvê-los.
Ainda, no Brasil, é difundida a crença de que o Estado é quem deve resolver
os problemas da sociedade. Por isso, elegemos pessoas que consideramos capa-
zes de fazer isso, e acabamos nos decepcionando quando elas não o fazem - e
ninguém consegue fazer isso sozinho!
Na democracia, é a cidadania que resolve problemas de modo mais sólido
e permanente. O Estado deve estar a serviço da cidadania e não o contrário. No
Brasil, o Estado se coloca como dono e guardião da cidadania e, por isso, acaba
matando a participação cidadã em benefício de sua própria expansão.
Esta disciplina de Teologia Pública tem como meta principal nos fazer refletir
sobre esses grandes temas públicos e sobre como viver a nossa cidadania ativa-
mente e de modo cristão! Para uma teologia ser pública, não basta refletir sobre
questões públicas, é indispensável que os sujeitos da teologia pública participem
ativamente da vida pública de seu país e sociedade.
Em um mundo global, interconectado e dominado por poderosos interesses
políticos, econômicos, midiáticos e tecnocráticos, precisamos de inteligência e
sabedoria para viver e participar de modo transformador e edificante. Que esta
disciplina seja um dos instrumentos de Deus para que cresçamos em graça e
sabedoria!
Teologia da Libertação celebra, neste ano de 2011, 40 anos de existência. Em 1971, Gus-
tavo Gutiérrez publicava no Peru seu livro fundador Teologia da Libertação. Perspectivas.
Eu publicava, também, em 1971, em forma de artigos, numa revista de religiosas – Gran-
de Sinal – para escapar da repressão militar o meu Jesus Cristo Libertador, depois lança-
do em livro. Ninguém sabia um do outro. Mas estávamos no mesmo espírito. Desde en-
tão surgiram três gerações de teólogos e teólogas que se inscrevem dentro da Teologia
da Libertação. Hoje ela está em todos os continentes e representa um modo diferente
de fazer teologia, a partir dos condenados da Terra e da periferia do mundo. Aqui vai um
pequeno balanço destes 40 anos de prática e de reflexão libertadoras.
A Teologia da Libertação participa da profecia de Simeão a respeito do menino (Jesus):
ela será motivo de queda e de elevação, será um sinal de contradição (Lc 2,34). Efetiva-
mente a Teologia da Libertação é uma teologia incompreendida, difamada, persegui-
da e condenada pelos poderes deste mundo. E com razão. Os poderes da economia e
do mercado a condenam porque cometeu um crime para eles intolerável: optou por
aqueles que estão fora do mercado e são zeros econômicos. Os poderes eclesiásticos a
condenaram por cair numa “heresia” prática ao afirmar que o pobre pode ser construtor
de uma nova sociedade e também de outro modelo de Igreja. Antes de ser pobre, ele é
um oprimido ao qual a Igreja deveria sempre se associar em seu processo de libertação.
Isso não é politizar a fé, mas praticar uma evangelização que inclui, também, o político.
Consequentemente, quem toma partido pelo pobre-oprimido sofre acusações e margi-
nalizações por parte dos poderosos - seja civis, seja religiosos.
Por outro lado, a Teologia da Libertação representa uma benção e uma boa nova para os
pobres. Sentem que não estão sós, encontraram aliados que assumiram sua causa e suas
lutas. Lamentam que o Vaticano e boa parte dos bispos e padres construam no canteiro
de seus opressores e se esquecem que Jesus foi um operário e pobre e que morreu em
consequência de suas opções libertárias a partir de sua relação para com o Deus da vida
que sempre escuta o grito dos oprimidos.
De qualquer forma, numa perspectiva espiritual, é para um teólogo e uma teóloga com-
prometidos e perseguidos uma honra participar um pouco da paixão dos maltratados
deste mundo.
1. A centralidade do pobre e do oprimido
O punctum stantis et cadentis da Teologia da Libertação é o pobre concreto, suas opres-
sões, a degradação de suas vidas e os padecimentos sem conta que sofre. Sem o pobre e
o oprimido não há Teologia da Libertação. Toda opressão clama por uma libertação. Por
isso, onde há opressão concreta e real que toca a pele e faz sofrer o corpo e o espírito aí
tem sentido lutar pela libertação. Herdeiros de um oprimido e de um executado na cruz,
Jesus, os cristãos encontram em sua fé mil razões por estarem do lado dos oprimidos e
junto com eles buscar a libertação. Por isso a marca registrada da Teologia da Libertação
é agora e será até o juízo final: a opção pelos pobres contra sua pobreza e a favor de sua
vida e liberdade.
40
A questão crucial e sempre aberta é esta: como anunciar que Deus é Pai e Mãe de bon-
dade num mundo de miseráveis? Este anúncio só ganhará credibilidade se a fé cristã
ajudar na libertação da miséria e da pobreza. Então tem sentido dizer que Deus é real-
mente Pai e Mãe de todos, mas especialmente de seus filhos e filhas flagelados. Como
tirar os pobres-oprimidos da pobreza, não na direção da riqueza, mas da justiça? Esta é
uma questão prática de ordem pedagógico-política. Identificamos três estratégias.
A primeira interpreta o pobre como aquele que não tem. Então, faz-se mister mobilizar
aqueles que têm para aliviar a vida dos que não têm. Desta estratégia nasceu o assisten-
cialismo e o paternalismo. Ajuda, mas mantém o pobre dependente e à mercê da boa
vontade dos outros. A solução tem respiração curta.
A segunda interpreta o pobre como aquele que tem: força de trabalho, capacidade de
aprendizado e habilidades. Importa formá-lo para que possa ingressar no mercado de
trabalho e ganhar sua vida. Enquadra o pobre no processo produtivo, mas sem fazer
uma crítica ao sistema social que explora sua força de trabalho e devasta a natureza,
criando uma sociedade de desiguais, portanto, injusta. É uma solução que ajuda favo-
recer o pobre, mas é insuficiente porque o mantém refém do sistema, sem libertá-lo de
verdade.
A terceira interpreta o pobre como aquele que tem força histórica mas força para mu-
dar o sistema de dominação por um outro mais igualitário, participativo e justo, onde
o amor não seja tão difícil. Esta estratégia é libertária. Faz do pobre sujeito de sua liber-
tação. A Teologia da Libertação, na esteira de Paulo Freire, assumiu e ajudou a formular
esta estratégia. É uma solução adequada à superação da pobreza. Esse é o sentido de
pobre da Teologia da Libertação.
Só podemos falar de libertação quando seu sujeito principal é o próprio oprimido; os
demais entram como aliados, importantes, sem dúvida, para alargar as bases da liberta-
ção. E a Teologia da Libertação surge do momento em que se faz uma reflexão crítica à
luz da mensagem da revelação desta libertação histórico-social.
Fonte: Boff (2011, on-line).
MATERIAL COMPLEMENTAR
Cromwell
Ano: 1970
Sinopse: na Inglaterra do século XVII, Oliver Cromwell volta ao Parlamento
para atuar na oposição aos desmandos do rei Carlos I, que passa por cima
das leis, desencadeando a Guerra Civil (1642-1649).
Juntamente com a Escola Superior de Teologia (EST), o Instituto Humanitas da UNISINOS (ambas
escolas em São Leopoldo-RS) é o principal centro de pesquisa e produção na área de Teologia Pública
no Brasil. Conheça um pouco mais sobre a proposta do Instituto acessando ao site.
Web: <http://www.ihu.unisinos.br/programas/teologia-publica>
Material Complementar
REFERÊNCIAS
1. B.
2. D.
3. C.
4. A.
5. C.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
TEOLOGIA PÚBLICA DA
II
UNIDADE
LIBERDADE
Objetivos de Aprendizagem
■■ Conceituar liberdade à luz da filosofia contemporânea.
■■ Descrever a liberdade na teologia bíblica.
■■ Explicar a dimensão ética da liberdade.
■■ Explicar a dimensão sociocultural da liberdade.
■■ Explicar a dimensão político-subjetiva da liberdade.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O conceito de liberdade na Filosofia Contemporânea
■■ Um olhar bíblico sobre a liberdade
■■ Uma teologia pública da liberdade – Liberdade Ética
■■ Uma teologia pública da liberdade – Liberdade Sociocultural
■■ Uma teologia pública da liberdade – Liberdade Política-Subjetiva
47
INTRODUÇÃO
Olá, aluno(a)! Que bom estar aqui de volta com vocês para nossa segunda Unidade
da disciplina Teologia Pública. Vamos continuar refletindo juntos sobre os desa-
fios públicos da reflexão e ação teológica?
Nosso tema nesta Unidade é a liberdade. Liberdade é um daqueles conceitos
que sempre escapam de nossas mãos. Por quê? Porque a experiência e a prática da
liberdade são realidades muito complexas e se modificam ao longo do tempo e do
espaço, das culturas e modos de organização social e política. Porque a liberdade
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
de uns pode ser a ausência de liberdade de outros, ou ainda uma ameaça con-
tra a liberdade de todos. Enfim, porque somos escravos do pecado como ensina
a Escritura. Como podem escravos saber o que é a liberdade?
Uma palavra sobre a organização da Unidade (que vale também para as pró-
ximas Unidades, basta mudar o tema de estudo). Começo com uma reflexão
sobre a liberdade no pensamento filosófico contemporâneo, de modo a entrar-
mos já de início no diálogo público da teologia pública.
Depois da discussão conceitual filosófica, uma reflexão bíblica sobre a liber-
dade. Se, para nós cristãos, a Bíblia é a fonte da verdade, precisamos estudá-la
cuidadosamente para fazer teologia. Os dois elementos conceituais, então, são
colocados em diálogo nos três elementos teórico-práticos que vêm na sequência.
Estudamos três aspectos teórico-práticos da liberdade em perspectiva da
Teologia Pública. Vocês deverão perceber como elementos da reflexão filosófica
e da reflexão bíblica se misturam na discussão dos três temas teórico-práticos,
sendo que também notará que esse diálogo é complexo e pode ser feito de dis-
tintas maneiras.
Enfim, uma teologia pública da liberdade deve nos ajudar não só a entender
a liberdade, mas, principalmente, deve nos ajudar a viver em liberdade. Fomos
libertados para a liberdade como diz Paulo em Gálatas. Viver a liberdade em amor
é o grande desafio prático de uma teologia pública da liberdade como cristãos.
Introdução
48 UNIDADE II
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O CONCEITO DE LIBERDADE NA FILOSOFIA
CONTEMPORÂNEA
toda vida em sociedade. Por isso, o autor introduz uma distinção entre
o que denomina uso público e uso privado da razão: a primeira está
intrinsecamente ligada à liberdade, mas a segunda não. Enquanto o
uso público se refere à exposição de convicções e sua fundamentação
perante os demais concidadãos, com o intuito de convencê-los da razo-
abilidade delas, não podendo ser restringido, o uso privado, referido ao
cumprimento das obrigações inerentes a cargos e funções de utilidade
ou implicações públicas, pode sim ser restringido sem que, na visão de
Kant, isso afete significativamente o avanço do esclarecimento. Assim,
a liberdade necessária para a formação pública da opinião não exclui a
necessidade da obediência aos imperativos que a estrutura da organi-
zação social impõe. Do mesmo indivíduo é esperado tanto o cumpri-
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tico-econômico, uma de suas teses principais era a conjunção entre liberdade
pessoal e liberdade econômica de mercado – podemos dizer que este conceito
de liberdade é um conceito político-econômico: diante do Estado ou de qual-
quer autoridade, o indivíduo deve ter plena liberdade de escolha, desde que não
prejudique outras pessoas (na linguagem popular “sua liberdade termina onde
começa a minha”). O problema básico desta definição é o que não é dito: está
implícito que a busca do “bem à nossa própria maneira” ocorra no âmbito da
“livre iniciativa” da economia de mercado. O mercado se torna, então, a dimen-
são dominante do conceito e acaba por reduzir a liberdade à “livre iniciativa”.
Diante desse limite da concepção de Mill (1985), um intérprete de Hegel
promove uma revolução na discussão do conceito de liberdade. Esse intérprete
é Karl Marx, líder político e intelectual de um grande movimento de resistência
contra o domínio cada vez maior das empresas sobre os indivíduos, um domí-
nio que nem mesmo o estado era capaz de controlar. Para Marx e Engels (2015),
a liberdade não decorre do exercício da razão (seja no sentido kantiano, seja
no hegeliano), a liberdade é uma consequência do modo como o ser humano
produz e reproduz materialmente a sua vida em sociedade. Para Marx e Engels
(2015), a liberdade só seria possível se, no processo de produção (trabalho) o ser
humano mantivesse uma relação com a natureza (que oferece a matéria-prima
para a produção) e com os demais seres humanos (que oferecem a mão de obra
para a produção) que não fosse intermediada por uma classe de pessoas que
possuísse os meios de produção e controlasse a força de trabalho, mas fosse uma
relação livre e igualitária para todas as pessoas. O ser humano, então, se torna
livre na medida em que a sua produção (trabalho) e reprodução (família) da vida
Fica evidente, nesta definição, que, para entender a liberdade, é preciso compreen-
der a noção de autonomia. Ora, se a liberdade é a realização das cinco dimensões
da autonomia individual, em que consiste a autonomia para Forst? Para ele,
uma pessoa age de modo autônomo, isto é, como um ser autodetermi-
nante, quando ela age intencionalmente e com base em razões. Ela tem
consciência das razões de suas ações, pode ‘responder’ quando per-
guntada por essas razões e é, assim, responsável por si mesma. Pessoas
autônomas neste sentido são agentes que podem ser responsabilizados
e prestar contas de si mesmos para si mesmos e para os outros; elas
podem explicar e justificar racionalmente (com razões) as suas ações
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(FORST, 2012, p. 129).
Você entendeu? Vamos juntar as duas definições: uma pessoa é livre quando ela
é autônoma. Uma pessoa é autônoma quando ela é capaz de justificar (defender
com razões) as suas próprias ações para si mesma e para as demais pessoas na
sociedade. Essa justificação precisa ser recíproca: todos têm a obrigação de justi-
ficar as razões de suas ações, e generalizada: todas as pessoas devem reconhecer
a validade das razões das ações uns dos outros – quando as razões da ação de
uma pessoa não podem ser aceitas por todas (ou pela maioria), essa pessoa não
tem liberdade para agir do modo como deseja. Por isso, a noção de liberdade é
subordinada à de justiça: para ser verdadeiramente livre, a pessoa também pre-
cisa viver em uma sociedade justa e praticar a justiça.
Vamos, agora, apresentar cada concepção ou dimensão da liberdade.
todas as pessoas afetadas por essas normas morais reconheçam a validade des-
sas normas. Em termos mais concretos: eu (individualmente ou como membro
de um povo, de uma classe social, de uma fé etc.) não posso impor à sociedade
as minhas próprias normas morais que considero universalmente válidas. É pre-
ciso que as demais pessoas afetadas por essas normas reconheçam que elas são
universalmente válidas. Por exemplo: uma pessoa evangélica considera que as
normas morais bíblicas são universalmente válidas, mas não tenho o direito de
impor essas normas morais para toda a sociedade, a não ser que a sociedade,
como um todo, reconheça a validade universal dessas normas. Isto é, ninguém
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pode ser obrigado a agir de acordo com normas morais a não ser que essa pessoa
reconheça a validade universal dessas normas. Moralmente falando, a liberdade
só existe quando eu tenho o direito de questionar as normas morais presentes
em minha sociedade (demandar que a validade dessas normas morais seja jus-
tificada com razões aceitáveis a todas as pessoas afetadas por elas).
o seu próprio estilo de vida. Em termos mais concretos, uma pessoa evangélica
é eticamente livre quando ela for capaz de modificar a sua própria ética ao reco-
nhecer que uma norma ética ‘evangélica’ reconhecida no passado, por exemplo,
deixa de ter validade no presente, porque as razões usadas no passado para jus-
tificar aquela norma ética não são mais consideradas válidas no presente à luz da
esperança cristã futura. O apóstolo Paulo, por exemplo, teve uma discussão com
o apóstolo Pedro porque ambos mantinham comunhão com gentios cristãos,
mas Pedro, quando soube da presença de judeus cristãos de Jerusalém, deixou
de manter comunhão com os gentios. Para Paulo, a opção ética de Pedro não era
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válida, porque: (a) ele se comportava de modo incoerente (mantinha comunhão
com gentios, mas apenas longe de judeus de Jerusalém que consideravam invá-
lida a comunhão com gentios); e (b) a esperança cristã em Jesus Cristo implicava
em que judeus e gentios, igualmente, fariam parte do reino eterno de Deus (o
relato dessa discussão está no primeiro capítulo da carta aos Gálatas).
Neste exemplo, podemos perceber, também, a relação entre as dimensões
moral e ética. Para Paulo, o comportamento de Pedro era inválido tanto do ponto
de vista ético (particular), quanto do ponto de vista moral (universal). Pedro não
podia justificar a negação da comunhão com os gentios com base em razões uni-
versalmente válidas, mas apenas com base em razões particularmente válidas
(válidas apenas para os judeus de Jerusalém que Paulo chamava de judaizan-
tes) e, mesmo assim, ao agir com base no medo de que os judaizantes poderiam
pensar a seu respeito, Pedro não foi coerente com sua própria identidade – em
outras palavras, ele não possuía boas razões para justificar a si mesmo a sua ação
de evitar a comunhão com gentios. Assim, a ação de Pedro não foi uma ação
livre, nem do ponto de vista moral, nem do ético!
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rem os critérios de reciprocidade e generalidade e puderem assegurar a
extensão mais adequada e equitativa de liberdades pessoais. Enquanto
participantes nesses procedimentos justificatórios e como membros de
uma comunidade política responsável por seus resultados, cidadãos
são politicamente autônomos (FORST, 2012, p. 135).
Em outros termos, sem justiça social, sem plena inclusão social, não é possível
o exercício pleno da liberdade pessoal e intersubjetiva. No caso brasileiro, isto
significa que, enquanto os desníveis socioeconômicos permanecerem no grau
injustificável no qual estão hoje (e estiveram em toda a história de nosso país),
não podemos afirmar que vivemos todas e todos com liberdade. Pessoas despro-
vidas, injustamente, dos meios materiais e psicológicos para exercer a liberdade
têm o direito de ser incluídas no campo da liberdade e a sociedade como um todo
(inclusive o Estado) tem o dever de garantir que a inclusão seja feita com a devida
urgência. Em termos ainda mais simples e concretos: precisamos acabar de vez
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com a pobreza, a indigência e a exclusão educacional, cultural e econômica em
nosso país. Somente assim viveremos responsavelmente em uma comunidade
plural justa e livre. Se, como vimos no item anterior, a construção da cidadania
democrática é a tarefa prioritária de nossa sociedade, criar as condições para a
construção e o exercício da cidadania é a prioridade fundamental dessa tarefa.
Em termos teológicos: a libertação para a liberdade e para a justiça é a prioridade
máxima da vida pública em nosso país e, consequentemente, nosso estudo teológico
da liberdade terá esse foco primário na sequência desta Unidade da nossa disciplina.
Há muitos lugares nos escritos bíblicos por onde poderíamos iniciar nossa refle-
xão sobre uma teologia da liberdade. Optei por basear nosso estudo em Gálatas
5:1-12, onde a visão paulina da liberdade recebe uma atenção especial. Em fun-
ção da importância desta perícope para nosso tema, apresentarei uma reflexão
exegético-teológica relativamente detalhada.
Texto e Estrutura
Gálatas 5:1-12:
(a) Para a liberdade o Messias nos libertou, sede firmes e não vos deixeis
submeter novamente a um jugo de escravidão.
(b) Prestai atenção: eu, Paulo, vos digo que se vos deixardes circunci-
dar, o Messias deixará de ter qualquer valor para vós.
(c) Declaro, novamente, a toda pessoa que se deixar circuncidar:
está obrigada a cumprir a totalidade da Lei.
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(b’) Fostes alienados do Messias, todos vós que vos justificais na Lei,
da graça decaístes.
(a’) Ora, nós, no espírito da fé, aguardamos ansiosamente a esperança da
justiça, pois no Messias Jesus nem a circuncisão, nem a incircuncisão
possuem qualquer valor, apenas a fé que se concretiza através do amor.
(a) Corríeis bem, quem vos impediu, de modo que não mais estais persu-
adidos pela verdade?
(b) Essa nova persuasão não vem daquele que vos chama. Um pouco
de fermento leveda toda a massa.
(b’) Estou persuadido, a respeito de vós, no Senhor, que não pensareis
de outro modo; mas aquele que vos perturba sofrerá a condena-
ção, seja quem for.
(a’) Quanto a mim, porém, se continuo pregando a circuncisão, porque sou
perseguido? Assim o escândalo da cruz seria anulado.
Oxalá sejam castrados aqueles que vos perturbam. (Tradução própria)
A estrutura da perícope é relativamente clara. Possui dois segmentos que se
complementam, o primeiro apresentando uma tese, o segundo questionando
pessoalmente os gálatas sobre os motivos de seu eventual abandono da tese que
lhes fora apresentada desde o início da pregação do Evangelho. A referência à
perseguição sofrida por Paulo deve ter a ver com as acusações que ele sofria dos
chamados judaizantes, oponentes de sua visão de que os gentios não necessita-
vam de se conformar à identidade judaica para pertencerem ao reino de Deus e
serem seguidores do Messias. Ambos os segmentos estão organizados em para-
lelismo de formato quiástico – o primeiro, concêntrico; o segundo, tradicional
– forma destacada anteriormente na apresentação da tradução do texto bíblico.
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forme já indicado em Gl 2,3 e o relato da polêmica com Pedro e os judaizantes
em Antioquia. Em jogo, portanto, está a identidade do povo messiânico e a uni-
versalidade do Evangelho.
Análise exegético-teológica
são mais ampla, que concerne a todos os cristãos, que é a discussão sobre a liberdade,
tema do qual nos ocuparemos agora. “Para a liberdade (o substantivo ’eleutheria,
traduzido por liberdade, só é usado onze vezes no NT: Rm 8,21; 1Co 10,29; 2Co
3,17; Gl 2,4; 5,1.13[2vezes]; Tg 1,25; 2,12; 1Pd 2,16.19. Na tradução grega da Bíblia
Hebraica, chamada Septuaginta, só uma vez nos livros canônicos da Bíblia Hebraica,
Lv 19:20, mais 6 vezes nos que não estão na BH: 1Ed 4,49.53; 1Mc 14,26; 3Mc 3,28;
Sir 7,21; 33,26) o Messias nos libertou” (o verbo ’eleutheroo é usado apenas 7 vezes
no NT: Jo 8,32.36; Rm 6,18.22; 8,2.21; Gl 5,1. Na LXX, apenas em 2Mc 1,27; 2,22 e
Pv 25,10 [em trecho que não ocorre na BH]) – a posição do objeto indireto é enfá-
tica no grego, por isso a mantive em português, apesar da forma “O Messias nos
libertou para a liberdade” ser mais adequada sintaticamente. A redundância é pro-
posital e tem a ver com a necessidade expressa no texto de convencer os gálatas a
não se deixarem circuncidar e se colocarem sob o jugo da identidade restritiva pro-
posta pelos oponentes de Paulo. Nesse sentido, a liberdade pode ser entendida de
modo restrito: a liberdade em relação à necessidade de cumprir todos os requisitos
da Lei (conforme interpretada pelos grupos dominantes do Judaísmo da época) – o
que vemos em Gl 2,4. Este parece ser o foco principal neste segmento, mas em 5,13
o tema se amplia e aparece na forma como é comum em Paulo, mesmo quando a
raiz eleuth não é usada: a ética-espiritualidade paulina da liberdade em amor.
Assim, embora já entre em elementos da próxima perícope, considero con-
veniente tratar do tema da liberdade cristã neste texto, devido à sua importância
para a compreensão da literatura paulina. O conceito paulino de liberdade se funda
no conceito de libertação: ser livre para viver depende de termos sido libertados
da escravidão. Segundo Paulo, o Messias nos libertou da carne, do pecado, da Lei
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sob a potência do amor. Paulo se compraz no paradoxo de descrever a liberdade
cristã como uma nova escravidão (em Rm 6, o tema é repetido enfaticamente),
a ponto de usar para si mesmo o termo escravo como um termo identitário. Não
se trata, porém, de entender a escravidão a Deus e a seu Espírito como uma
descrição da fragilidade humana (como é relativamente costumeiro em certos
segmentos cristãos). Trata-se, sim, de descrever a potência que nos faz viver –
lembremos de que Paulo vivia em um mundo no qual o ser humano estava à
mercê de poderes muito superiores a ele. Ser livre, então, para Paulo, significava
não estar escravizado a potências cujo efeito final é a morte. Assim, ser escravo
do Deus libertador é a verdadeira liberdade, pois ficamos sob a potência cujo
resultado final é a vida e a vida completa, plena.
Ser livre, então, para amar o próximo – da mesma forma como o Messias,
livremente, nos amou e se entregou por nós na cruz. Fomos, assim, libertados da
potência da carne do pecado e da Lei, pelo Messias, para vivermos a potência do
amor, do Espírito, do próprio Deus (em 2,19 Paulo afirma que morremos para a
Lei a fim de vivermos para Deus). Esta liberdade, por fim, é vivenciada sob o signo
escatológico-apocalíptico. Em outras palavras, a potência da liberdade não anula a
presença da potência da escravidão – a liberdade é vivida conflitivamente (Gl 5,17
retoma a noção de conflito), somos livres, mas ainda lutamos contra a servidão.
Lutamos, mas não sós, lutamos no Espírito, com a potência do Espírito. O elemento
ontológico do tema é complexo e Paulo aparentemente vê o ser humano como onti-
camente escravo, de modo que por sua própria potência não seria capaz de alcançar
a liberdade. Somente na potência messiânica (que é a potência do Espírito, Rm 8;
Gl 3; 4; 5; e 2 Co 3,17) é que a liberdade se torna propriedade humana.
acumular – mas liberdade para servir ao próximo e para desfrutar dos bens deste
mundo sem dependência, mas com moderação e responsabilidade para com toda
a criação, e não apenas para conosco.
Conforme já mencionado, a discussão sobre a circuncisão se dirige aos
membros gentios das comunidades paulinas na Galácia. Para Paulo, o tema é
inegociável: o gentio que se deixa circuncidar se coloca fora do povo messiâ-
nico, anula o valor da libertação oferecida pelo Messias, aliena-se radicalmente
do próprio Messias – não estar no Messias é, em Paulo, voltar para a escravidão
às potências da morte. A seriedade do tema é destacada pelo modo como, no
verso 2, Paulo o introduz: “prestai atenção: eu, Paulo [...]”. A forma redundante
da introdução obriga os leitores-ouvintes da carta a assumir um posicionamento
pessoal em relação ao tema. Não se trata apenas de discutir a validade de um
conceito – trata-se de uma questão de fidelidade, de lealdade. Paulo demanda
que a comunidade decida se permanecerá fiel a ele ou se adotará uma nova fide-
lidade – procedimento que ele já tinha adotado com relação à fidelidade a Deus
e seu Messias e Espírito. Leais a Deus ou leais à carne? Leais ao Espírito ou leais
à carne? Leais ao Messias ou leais à Lei? Leais a Paulo ou leais aos seus detrato-
res? O tom pessoal já estava presente no verso 1 com o verbo “estar firme”, pois
a raiz da palavra fidelidade em hebraico é exatamente estar firme.
Por que a mudança de lealdade anularia a ação amorosa do Messias? Por que
o se circuncidar equivale a assumir outro caminho para a entrada no povo de
Deus – o caminho da obediência ao que é externo a Deus e ao ser humano: a lei.
Não se trata, então, mais uma vez insisto, em apontar a inutilidade ou a inviabili-
dade da lei judaica (da Torá ou da Bíblia Hebraica) e, assim, da identidade judaica
como tal. Trata-se, sim, de perceber a real função da Lei (judaica ou não), que
não é a de gerar justiça, mas de guardar (no sentido de restringir a liberdade) a
pessoa considerada imatura e incapaz de fazer o que deve ser feito. Viver sob a lei
é viver sob a servidão, porque não se pode discernir e, consequentemente, deci-
dir sobre o que é certo ou errado. A vida sob a Lei, não importa quão boa seja
tal lei, é vida na escravidão, na servidão e, assim, desemboca na morte. É com
base na própria Torá (Lei) que Paulo mostra a função real da Lei: “Todos quan-
tos, pois, vivem com base nas obras da lei vivem debaixo de maldição, porque
está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas
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no Livro da lei, para praticá-las” (Gl 3,10 citando Dt 27, 26).
A vida sob a lei, portanto, é o oposto da vida sob a promessa. Sob a lei, temos
maldição; sob a promessa, bênção. A promessa a Abraão se estende a toda a
humanidade, de modo que toda a humanidade pode viver sob a bênção divina
– mas somente na condição de participar no Messias, pois ele é o libertador
do ser humano das potências da morte. Voltar para a obediência à lei é anular
radicalmente o trabalho do Messias. De modo contrário, viver na fé é viver em
fidelidade ao Messias e, assim, colocar-se no caminho da esperança escatológi-
co-apocalíptica da revelação final da justiça de Deus (cp. Rm 1,16-17). A justiça
de Deus, a plena liberdade de toda a criação, somente há de se revelar plena-
mente no fim. Para chegar ao fim, é preciso permanecer no Messias – até porque
o fim não é meramente cronológico, mas, principalmente, kairológico – já vive-
mos nos tempos do fim. Para Paulo, o fim da história já havia chegado, mas um
fim qualitativo e não quantitativo. É o fim de uma história: a história da escra-
vidão sem saída; e o começo de uma nova história: a história da liberdade em
confronto com os poderes da servidão.
Nesta nova história (no Messias Jesus), “nem a circuncisão, nem a incircun-
cisão possuem qualquer valor, apenas a fé que se concretiza através do amor”.
Paulo já antecipa o tema do segundo segmento da perícope e o da próxima perí-
cope, retomando a noção de subjetividade messiânica que construíra ao longo
da carta. A identidade do povo messiânico não é baseada em raça, etnia, fé, polí-
tica etc. – é baseada exclusivamente na fidelidade que se concretiza no amor ao
próximo – que é o cumprimento da Lei, ou seja, o fim da obrigação legal. Daí o
sentido da liberdade: não viver mais sob o regime da dívida, do dever, da obrigação
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dade de Paulo com a volubilidade dos gálatas. A tradução desta raiz pelo verbo
obedecer, em português, não capta adequadamente o sentido. Não se trata de
mera obediência, mas de adesão pessoal a um projeto de vida. Daí a opção
por persuadir e persuasão, termos que indicam esse tipo de relação existen-
cial com um conteúdo ou com uma pessoa. A verdade, aqui, merece atenção.
Comumente interpretamos a verdade como se referindo ao conteúdo da prega-
ção ou do ensino cristão. Em boa medida, sim, mas a noção de ’aletheia, como
de ‘emeth transcende o conhecimento puro e simples. A verdade, no pensa-
mento hebraico, é propriedade das ações de uma pessoa – o que uma pessoa
diz é verdadeiro porque essa pessoa é verdadeira. Nesse sentido, verdade e
fidelidade são sinônimos. Podemos pensar, então, que o texto está apontando
para a persuasão pela verdade da fidelidade divina que nos chama constante-
mente para sermos seus.
O verbo chamar está no particípio presente, que indica uma situação per-
manente – Deus nos chama constantemente. Em 1,6 o mesmo verbo é usado
no aoristo, indicando o momento da pregação do Evangelho, o momento
do chamado de Deus à entrada em sua família. Esse chamado, porém, é o
momento inicial de uma atitude – Deus é aquele que nos chama, ele cons-
tantemente nos chama para, neste tempo escatológico-apocalíptico, não
nos afastarmos dele. Dada a seriedade da relação, “um pouco de fermento”
é o suficiente para prejudicar toda a vida. A preocupação intensa de Paulo
pode ser assim entendida – o risco é enorme. Daí o tom forte e até relativa-
mente violento de Paulo na crítica aos seus oponentes: eles não são de Deus;
eles não buscam o bem dos gálatas, eles serão condenados, eles merecem
ser castrados! Tonalidade tão forte assim somente encontramos, fora desta
carta, em Fp 3,2: “Acautelai-vos dos cães! Acautelai-vos dos maus obreiros!
Acautelai-vos da mutilação [falsa circuncisão]!”. Em jogo está a identidade
do povo de Deus, em jogo está a proposta do Evangelho em alcançar todas
as pessoas com o amor e a justiça de Deus. Não é possível ser transigente
diante desse perigo. A cruz do Messias não pode ser reduzida a mais uma
morte sob os romanos. O seu caráter de execução injusta, mas aceita livre-
mente em prol da justiça, não pode ser diminuído. Com similar veemência,
Paulo lembra aos coríntios “Porque o Messias não me enviou para batizar,
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mas para pregar o evangelho; não com sabedoria de palavra, para que se não
anule a cruz do Messias” (1Co 1,17).
Texto e Estrutura
(a) Pois vós, irmãos, fostes chamados para a liberdade; que a liberdade,
porém, não se torne um trampolim para a carne, pelo contrário, sejam
escravos uns dos outros pela prática do amor.
(b) Pois toda a Lei se concretiza em uma só palavra: ‘amarás o teu pró-
ximo como a ti mesmo’. Se, todavia, vos mordeis e devorais uns aos
outros, certamente vos consumireis.
(c) Eu vos digo: andai no Espírito e não vos submetereis à cobiça
da carne, pois a carne deseja contra o Espírito, e o Espírito con-
tra a carne – eles opõem-se um ao outro – a fim de que não
façais o que quereis. Ora, se sois guiados pelo Espírito, não
estais debaixo da Lei.
(d) Ora, as obras da carne são evidentes: sexo ilícito, impu-
reza, luxúria; idolatria, feitiçaria; intrigas, contenda, rixas,
iras, rivalidades, dissensões, facções; invejas, bebedeiras,
boemias e outras coisas semelhantes.
(d’) Previno vocês quanto a tais coisas, assim como já vos pre-
venira, que os que fazem tais coisas não herdarão o reino
de Deus.
(c’) O fruto do Espírito, porém, é amor, alegria, paz, perseverança,
bondade, generosidade, fidelidade, gentileza, domínio próprio.
(b’) Contra estas coisas a lei não tem valor.
(a’) Ora, os que são do Messias Jesus crucificaram a carne com suas paixões
e cobiças. (Tradução Própria).
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introduzida por um termo da seção anterior. O breve período “se, todavia,
vos mordeis e devorais uns aos outros, certamente vos consumireis” está
aparentemente deslocado, seu lugar, porém, é ditado mais pela urgência da
exortação do que pela lógica estrutural do paralelismo. As seções externas
do paralelismo tematizam a liberdade que vence a dominação da Lei e da
Carne – mediante a prática do amor, que corresponde ao amor do Messias
crucificado. As seções internas descrevem o conflito escatológico-apocalíp-
tico em que o cristão está inserido – descrito aqui como conflito entre carne
e Espírito. Esta perícope é uma forma condensada da discussão em Rm (5)7-8
e é tão complexa quanto aquela.
Penso que a chave principal para abrir o acesso ao texto é colocá-lo no
âmbito da discussão paulina sobre a subjetividade messiânica. As oposições
presentes na perícope: liberdade, pertença ao Messias e vida no Espírito de um
lado; carne, lei e escravidão, de outro; são mais bem entendidas como descri-
ções de diferentes modos de construir a identidade pessoal e coletiva e, assim,
viver a vida em sociedade. Para Paulo, as opções identitárias do Judaísmo
oficial, do pensamento grego e da dominação romana são, todas elas, escravi-
zadoras e excludentes. Dada a polêmica com os judaizantes, aqui Lei e carne
são praticamente identificados, mas podemos ver o quadro mais amplo tam-
bém em operação aqui. A vida no estilo do Messias, uma vida em liberdade,
vivida na energia do Espírito, é a única opção plausível para o apóstolo. Essa
vida é vivida na tensão escatológico-apocalíptica deste “tempo que resta”, o
tempo concreto em que vivemos e experimentamos a salvação em esperança
(cf. Rm 8,24ss).
Livres da Carne
Antes de analisar o texto, propriamente dito, vejamos a noção de carne nos escri-
tos paulinos em geral. Este aparente desvio de curso é necessário especialmente
em função do fato de que nós já temos um conceito de carne muito marcado
pelas discussões doutrinárias e pelas formas práticas das diferentes igrejas cristãs
lidarem com a temática da espiritualidade. Em particular, precisamos superar o
dualismo ontológico e moral que está embutido na visão doutrinária e prática
do conceito de carne nos meios cristãos contemporâneos.
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A palavra grega sarx é usada cerca de 266 vezes na LXX, com diferentes sig-
nificados, dos quais os mais importantes são: (a) a carne, de seres humanos ou
de outros animais (e.g. Gn 2,21; 1Sm 2,13); (b) em uso metonímico para todo o
corpo humano (e.g. 1Rs 21,27); (c) uso metafórico para a transitoriedade, a mor-
talidade e finitude do ser humano (e.g. Is 40, 6.8); (d) a pessoa enquanto tal, mais
ou menos equivalente ao nosso termo eu ou self (e.g. Sl 63,2); e (e) toda a huma-
nidade (e.g. Gn 8,21). Essa gama de sentidos está presente nos textos paulinos,
mas nenhum deles representa o específico da noção em Paulo. No Judaísmo pós-
-veterotestamentário é que a noção de carne, sob a influência persa e helenista,
irá adquirir um contorno mais negativo do ponto de vista moral e se aproximar
de uma visão dualista do ser humano.
No mundo greco-romano, a palavra também é usada com vários sentidos, sendo
os mais comuns aqueles neutros – basar como a carne dos seres humanos, parte do
corpo, e indicando a transitoriedade da vida humana. No pensamento mais sofisticado
de filósofos (bem como em suas versões populares), modos dualistas de conceber
o ser humano e a realidade como um todo estão presentes e são dominantes. No
formato mais simples de dualismo, a carne se opõe à alma ou mente e, como passí-
vel de sofrimento e morte, é vista em termos negativos. No formato mais radical, a
carne e a matéria em geral são vistas como radicalmente negativas, como prisão da
alma/mente, e sede dos males físicos e morais do ser humano. Essa visão dualista não
está presente no Judaísmo (com raras exceções), e muito menos em Paulo. Assim,
o contraste entre carne e espírito em Paulo, por exemplo, não deve ser lido em ter-
mos ontológicos, ou seja, relativos à natureza humana, mas em termos existenciais
– relativos ao modo de vida das pessoas, à subjetividade humana em sua pluralidade.
O uso do termo por Paulo, por vezes, provoca alguma ambivalência para o
intérprete – quando afirma, por exemplo, que vivemos na carne (en sarki), mas
não segundo a carne (kata sarka) – e.g., 2 Co 10,2-3. Em síntese, viver na carne
significa apenas que somos humanos mortais, nossa vida é transitória – neste
uso não há qualquer conotação negativa em relação ao termo. Viver segundo a
carne, porém, é visto de modo negativo por Paulo – pois significa viver segundo
os padrões e valores do tempo presente, anterior à era messiânica, anterior à che-
gada do tempo escatológico-apocalíptico. É neste sentido que, aqui, Paulo fala
das obras da carne – uma lista que exemplifica o estilo de vida de quem não imita
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o Messias Jesus (cf. Rm 1,18ss). Tanto aqui como em Romanos, a lista engloba
diversas dimensões das relações humanas: sexualidade, religiosidade, sociabi-
lidade, cultura, política. Viver segundo a carne (sem pertencer ao Messias), ou
ser um cristão carnal, significa viver um estilo de vida escravizado ao pecado e à
Lei, cujas manifestações concretas são as formas não-amorosas ou solidárias de
relacionamento interpessoal e social – formas de relacionamento cujo resultado
final é a morte, mas que se manifesta nas diversas formas de injustiça e violên-
cia cometidas pelo ser humano. Quem vive segundo a carne não pode, portanto,
herdar o reino de Deus, pois somente quem está no Messias herda o Reino.
A oposição carne – espírito, em Paulo, portanto, não é ontológica, mas existen-
cial. Ser carnal é estar vendido ao pecado (Rm 7,14), viver segundo a carne e sua
inclinação é se afastar da vida no Espírito e permanecer, assim, sob a lei do pecado e
da morte (Rm 8,1ss). Em outros termos, é uma oposição entre a subjetividade mes-
siânica e a subjetividade egocêntrica, injusta, dominadora. A vida no Espírito, ou
segundo o Espírito, porém, é vivida na carne, ou seja, nesta existência terrena (e.g.
2Co 10,3; Gl 2,20; Fp 1,22-24), no corpo carnal (mortal, transitório; e.g. Rm 8,10).
Daí o último inimigo a ser vencido pelo Messias ser a morte – 1 Co 15,20ss – pois a
morte é o destino de toda a carne. A ressurreição, porém, não é incorpórea, pois o
corpo atual é anímico, mas o corpo ressurreto será pneumático (1Co 15,31ss). Note
que Paulo não diz que o corpo atual é carnal, mas anímico – ou seja, movido pela
respiração (psique) e, assim, mortal. O corpo ressurreto é espiritual – não porque seja
incorpóreo, mas porque é movido pela energia do próprio Deus, cujo sopro é vida
(cf. Gn 2,7). A vitória sobre a carnalidade, como modo de vida contra Deus, é dada
pelo Espírito em nós que é o próprio Messias em nós (Gl 2,20). Eis a mística cristã.
Livres da Lei
A palavra torah (hebraico) e sua tradução grega nomos possui diferentes usos e
significados. Basicamente: (a) o Pentateuco como um todo; (b) as seções normati-
vas do Pentateuco – mandamentos, estatutos e preceitos conforme a terminologia
bíblica; (c) instrução sacerdotal ou geral; (d) norma – consuetudinária ou jurí-
dica – a ser vivenciada em sociedade; (e) exigência legal externa à pessoa [neste
sentido, no próprio Antigo Testamento temos a crítica profética, em Jeremias 31
e Ezequiel 36 já se mostra o limite da normatividade institucional da Torá]; (f)
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Lei como caminho de salvação, como meio de acesso ao Reino de Deus e, assim,
marca primária da identidade do povo judeu [conforme a tradição farisaica e o
ensino sacerdotal oficial da época paulina]; e (g) lei como princípio existencial,
como em Rm 8,1ss – “a lei do Espírito, que é lei da vida [...]”.
Como caminho de salvação e marca primordial de identidade, a torá é cri-
ticada por Paulo. Ele mostra os seus limites e a contrapõe ao Messias e sua
fidelidade ao Pai. Como vimos mais de uma vez, para Paulo, é por meio da fide-
lidade e não da obediência que se entra e permanece na aliança com Deus. É
neste sentido que entendo a sentença “contra estas coisas não há lei” – na perí-
cope ela se refere ao amor ao próximo como oposto às discórdias entre irmãos.
Contra o amor, a lei internalizada, não há lei (mandamento ou princípio, ou
cânon, ou norma). Fidelidade (e amor) é atitude humana anterior à lei, ante-
cede à moralidade e a ética. Não é possível obedecer ao mandamento de amar
ou de ser fiel. Ser fiel e amar é questão, pura e simples, de ser. É apenas como
caminho de salvação que a lei é abolida, anulada. Ela não é anulada enquanto
Palavra de Deus, nem enquanto instrução normativa para seu povo. Muda,
porém, seu papel – deve ser entendida como instrução e não como manda-
mento – logo, deve ser internalizada (cf. Jr 31,31ss) e não obedecida em termos
de fazer o que nela está escrito.
Nos textos paulinos, encontramos afirmações positivas sobre a torah. (1)
Enquanto a seção canônica (Pentateuco), Paulo entende a Torá como palavra
de Deus normativa para o seu povo. Na própria Torá é que Paulo se baseia para
interpretar a vida do Messias Jesus e, voltando ao texto, interpretá-lo a partir da
atividade do Messias (e.g. Rm 7,12-14; 1Co 9,9); (2) enquanto palavra de Deus,
é ela quem nos revela sermos pecadores e, ao mesmo tempo, nos abre o acesso
à libertação do pecado e da lei (e.g. Gl 2,19) – neste mesmo aspecto, a Torá
(Pentateuco) mostra que judeus e gentios, igualmente, são pecadores e caren-
tes da graça de Deus; e (3) bem interpretada, a Lei revela a essência do projeto
moral do povo de Deus – nos Evangelhos temos essa discussão entre fariseus e
Jesus (cf. Mt 22,35ss e paralelos), e aqui mesmo nesta perícope encontramos a
afirmação de que a Lei se concretiza em uma única palavra.
Podemos comparar esta afirmação de Paulo com a resposta de Jesus a um
mestre fariseu sobre qual é o grande mandamento. Enquanto Jesus falou do amor
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a Deus como primeiro e do amor ao próximo como segundo mandamento, Paulo
restringe-se a falar que a lei se concretiza no amor ao próximo. Parece-me óbvio
que Paulo não é secularista ou racionalista – não se trata de opor o amor ao ser
humano (um humanismo antecipado) ao amor a Deus. Trata-se, sim, de mostrar
que os dois amores são, de fato, um só. Não é possível amar a Deus em amar ao
próximo e vice-versa. A seguinte canção sintetiza, a meu ver, muito bem, a fun-
ção positiva da Lei na visão paulina (cf. as linhas em itálico):
Pra nada pode a gente aproveitar
refletir. :/
distribuir à multidão,
Espírito é apenas outra forma de descrever a vida no Messias, que é outra forma
de descrever a vida no Pai. Não há oposição entre o Espírito e o Messias, ou
entre ambos e o Pai, etc. Por isso, tenho preferido tratar deste tema sob a rubrica
da subjetividade messiânica – do estilo de vida, ou do modo de ser seguidor do
Messias Jesus, na força do Espírito, em imitação a Deus Pai.
A vida cristã, em Paulo, é descrita sob o signo da conflitividade: aqui, a confli-
tividade entre o desejo da carne e o desejo do Espírito, assim como em Romanos
8 há a oposição entre a atitude da carne (inclinação para a carne) e a atitude do
Espírito (inclinação para o Espírito). Por que o desejo da carne se opõe ao do
Espírito? Por que o desejo carnal é ego-
cêntrico, egoísta, individualista, fechado
em si mesmo. Já o desejo do Espírito
é altruísta, solidário, amoroso, voltado
para o próximo. A descrição do fruto do
Espírito aponta claramente nesta dire-
ção – e poderia ser resumido apenas
na palavra amor (caso esta não fosse,
então e hoje em dia, tão facilmente mal
compreendida). Quem se deixa guiar
pelo Espírito frutifica conforme a pró-
pria natureza do Espírito de Deus que é
amor – e, consequentemente, será alegre,
generoso, bondoso, terá perseverança,
autocontrole etc.
Dois verbos são usados para a atitude humana na espiritualidade: (a) andar
no Espírito – verbo que é bastante usado por Paulo neste campo temático, e.g.:
Rm 6,4; 8,4; 13,3; 1Co 3,3; 7,17 etc. se refere à conduta, à prática cotidiana, às
ações visíveis do ser humano. É tradução da raiz hebraica hlk, de onde vem a
palavra halakah – a espiritualidade na tradição judaica. Em outras palavras, Paulo
está afirmando que os gálatas podem viver como o Espírito vive, ou na força do
Espírito, ou através da vida do Espírito neles (as diferentes formas de entender o
caso dativo aqui) – o Espírito sendo fonte, instrumento ou energia da vida mes-
siânica; e (b) sois guiados – na voz passiva, indicando que o Espírito é aquele que
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orienta a vida humana, mostra o caminho, conduz no caminho e faz permanecer
nele. Viver no Espírito é viver sem a obrigação de obedecer à lei. Quem anda no
Espírito e é guiado por ele não está sob a dívida, ou sob a obrigação – o caso de
quem vive segundo a carne. Viver no Espírito é viver em liberdade.
Chegamos, assim, ao final desta discussão sobre a espiritualidade do
povo de Deus. Uma penúltima palavra: tem sido muito comum na história do
Protestantismo, confundir os meios da espiritualidade com o seu alvo. Orar,
ler a Bíblia, adorar a Deus, etc. são meios e não a finalidade da espiritualidade.
Quem é espiritual ama o próximo. Este é o único critério visível de espirituali-
dade messiânica. Orar, adorar, jejuar, etc., são práticas devocionais importantes
e necessárias – mas não definem se alguém é espiritual ou carnal. O que define
ser espiritual é o amor ao próximo como expressão do amor a Deus. Nada mais
conta, de fato!
Uma última palavra, a liberdade para viver no Espírito é uma liberdade
escatológico-apocalíptica: sua concretização não se dá apenas no passado e
no presente, mas na antecipação do futuro no presente, assim como Deus, no
Messias, antecipou o futuro em nosso passado (da encarnação-ressurreição do
Messias). A liberdade cristã é, então, essencialmente utópica – ela busca realizar
no presente aquilo que antevemos como o futuro de Deus para a humanidade
em uma nova criação. Desta forma, ela se torna um critério para a avaliação das
realizações da liberdade no presente e jamais nos deixa acomodar às conquistas
de nossa própria geração. A espiritualidade da liberdade, consequentemente, é
uma espiritualidade da permanente busca de Deus na esperança de sua vinda
que concretizará o Seu projeto de uma nova criação.
LIBERDADE ÉTICA
Nosso tópico, agora, é a questão ética. Você já parou para pensar em como o
problema ético é importante para a Igreja? E já imaginou refletir sobre a ética
como uma expressão da liberdade? Vamos lá, então, venha comigo neste novo
caminho de discussão ética.
Conceber a ética cristã como ética de liberdade nos ajuda a reconfigurar a uni-
dade entre teologia, espiritualidade e ética. Em primeiro lugar, porque faz parte da
estrutura da liberdade humana a tomada de decisões a partir de razões e motivos
deliberados: “uma vontade se configura – por mais imperceptivelmente que se faça
algo – no curso de uma série de deliberações. E, dado que uma decisão somente
amadurece como consequência de um conjunto de considerações – por mais volá-
teis e confusas que sejam – somente experimentamos a nós mesmos como pessoas
livres em ações realizadas mais ou menos conscientemente” (HABERMAS, 2006,
p. 163). Fica evidente, a partir desta descrição da liberdade, o vínculo entre ética
da liberdade e teologia – é mediante a reflexão teológica, em especial, que uma
comunidade cristã define as razões e motivos para tomar decisões e agir.
Por outro lado, o vínculo entre ética da liberdade e espiritualidade se encontra
na junção entre liberdade e amor, na medida em que a liberdade da comunidade
cristã é liberdade para amar, pois a fé “age pelo amor” (Gl 5,6), a partir do que
se estabelece o imperativo
ético: “Porque vós, irmãos,
fostes chamados à liberdade.
Mas não useis da liberdade
para dar ocasião à carne,
antes pelo amor servi-vos
uns aos outros. Pois toda a
lei se cumpre numa só pala-
vra, a saber: Amarás ao teu
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próximo como a ti mesmo”
(Gl 5,13-14). Livres da lei e
dos ídolos, podemos viver na liberdade do amor – que é o fruto do Espírito da
promessa, e o verdadeiro cumprimento da Lei. Como ética da liberdade cristã,
é uma ética da liberdade em amor. A prática cristã da liberdade equivale à prá-
tica do amor como o eixo da ética e espiritualidade cristãs. Enquanto ética da
liberdade em amor, é ética da graça, não da lei; da possibilidade, não do dever,
pois é, afinal de contas, a expressão da própria vida enquanto dádiva do Deus
que é amor (I Jo 4,8).
O amor cristão não é o amor romântico de pessoas apaixonadas, nem o amor
recíproco da amizade, mas a fonte da prática do bem a favor do outro, da pessoa
necessitada (I Jo 3,16-19; 4,20-21). Nas origens da tradição reformada, o amor
era biblicamente entendido como prática concreta da bondade, o que hoje cha-
maríamos de solidariedade:
Sim, onde estiver a fé, ela não consegue se refrear, ela se comprova,
irrompe e confessa e ensina este evangelho diante das pessoas e por ele
arrisca a sua vida. E tudo que ela vive e faz, destina-o ao proveito do
próximo, para lhe ajudar, não só que ele alcance semelhante graça, mas
também no que tange o corpo, propriedade e honra, como ela vê que
Cristo lhe fez, seguindo, portanto, o exemplo de Cristo” (LUTERO,
1984, p. 176).
Entendida a liberdade cristã como prática do amor, não podemos, senão, pensá-
-la em sua possibilidade impossível, não podemos, senão, pensá-la sempre além
das definições e codificações, pois a liberdade em amor se revolta contra quais-
quer tentativas de aprisioná-la em um código de conduta.
A identidade cristã não pode ser pensada e construída apenas a partir de um des-
ses pólos do existir cristão, sob pena de ser uma identidade imatura e conformada
aos modos ocidentais de relação com a temporalidade: voltada ao passado, no tra-
dicionalismo; voltada a um futuro construído exclusivamente por mãos humanas,
como na modernidade; ou focada no presente eternizado, como na pós-moderni-
dade. Uma vez que a vida cristã é vivida na tensão escatológica, a futuridade deve ser
vista como o modo de ser da existência em Cristo. A abertura ao futuro do Reino é
o reconhecimento de que a plenitude da vida ainda está em processo de realização
e a utopia do Reino é o seu norte, a sua estrela orientadora. Ser cidadão, consequen-
temente, é ser uma pessoa criativa nas relações sociais, em busca da construção de
uma sociedade cada vez mais justa, inclusiva e solidária. Entendida desta forma, a
ética da liberdade em amor se configura como a própria identidade do ser cristão.
A temporalidade da fé é a temporalidade da futuridade. Não se configura
nem a partir do tendo-sido, nem do sendo, mas do poder-vir-a-ser que, a partir
do passado já se faz presente historicamente. Identidade, então, não se resgata
(fixação no passado), nem se perde (temor do presente), mas se constrói. Não
será esta uma tradução fiel do princípio protestante de que a Igreja Reformada
está sempre se reformando?
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A resposta paulina, em Cl 3,1-4, é a proposta de uma ética da liberdade em
futuridade: no v. 1, afirma-se a nossa ressurreição com Cristo, no presente, que
demanda de nós a “busca das coisas do alto”, ou seja, as coisas que pertencem ao
senhorio de Cristo, exaltado à destra de Deus. No v. 2, as coisas do alto são con-
trastadas com as terrenas, nós diríamos “seculares”, e o motivo desse contraste
é dado no v. 3 “morrestes, e a vossa vida está oculta com Cristo, em Deus”. Para
nosso argumento, este verso é fundamental, na medida em que aponta para o
caráter fragmentário, parcial de nossa percepção da identidade cristã no pre-
sente – ainda não sabemos o que efetiva e realmente somos – somente “quando
Cristo, que é a vossa vida, se manifestar, sereis manifestos com ele em glória” (v.
4), então saberemos quem somos efetivamente.
Em síntese, no caminho para se transformar em uma ética transformadora,
fiel à tradição reformada e ao princípio protestante, a ética evangélica brasileira
pode ser adequadamente entendida e descrita como uma ética da liberdade
em amor – que supera a ética do dever e seus códigos de conduta e normas de
comportamento; que supera a tentação da Cristandade e faça da cidadania de
cristãos sinal da cidadania do Reino de Deus. Uma ética da liberdade em amor
não pode ser “definida”, mas perseguida permanentemente, mediante a busca
incessante de concretização da unidade entre teologia, espiritualidade e ética –
unidade que será primícias da futuridade de Deus e seu reino, na construção de
melhores pessoas e melhores sociedades, caracterizadas pela liberdade e amor
que constituem o modo de convivência com o Deus que faz aliança com sua cria-
ção para que ela tenha vida plena.
O SECULARISMO CONTEMPORÂNEO
(1) Racionalismo
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não crer em nenhum tipo de divindade a partir de razões não preconceituo-
sas. Da mesma forma, a ciência não é racionalismo. O método científico não
pode incorporar deus em sua atividade, mas isso não é preconceituoso. Uma
pessoa racionalista pode até crer em Deus, mas sempre tomará suas decisões
com base na experiência humana cotidiana, com base nas relações de causa-
-efeito apenas, sem jamais levar em conta que Deus pode agir ou participar
da vida humana.
(2) Individualismo
A pessoa individualista é aquela que organiza toda a sua vida a partir de seus
próprios interesses e propósitos. O individualismo é uma forma egoísta, egocên-
trica da pessoa entender e viver a sua individualidade. A pessoa individualista,
sempre que necessário (e mesmo quando não) usará outras pessoas para atingir
os seus próprios objetivos, sem se importar se a pessoa usada será beneficiada
ou não. No individualismo não somos capazes de nos ver como pessoas que
precisam de outras pessoas tão dignas de ter uma vida digna e bem-sucedida
como nós mesmos. A pessoa individualista trata as demais pessoas como meios
e não como fins em si mesmas. Ela não se preocupa com o bem-estar do pró-
ximo, não se interessa pela vida de outras pessoas e, em casos extremos que,
infelizmente, não são pouco numerosos hoje em dia, a pessoa individualista
sequer é capaz de viver em família, de levar em consideração as necessida-
des de filhos, irmãs, esposa ou esposo etc. Em última instância, a origem do
individualismo está na condição pecaminosa do ser humano. Entretanto, em
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nos seus próprios direitos apenas, e não nos direitos de todos, especialmente das
minorias. O individualismo, então, não só está na base de um sistema econômico
opressor e injusto, ainda que eficiente como produtor de bens, mas também está
na base das distorções profundas que fazem da democracia um arremedo do que
ela deveria ser. A pessoa individualista é, então, aquela que luta predominante-
mente para acumular cada vez mais capital e poder político e, assim, dominar
a sociedade. Quantos projetos políticos emancipadores se tornaram, ao chegar
ao poder, projetos opressores? Quantas desilusões os eleitores experimentam
quando seus candidatos efetivamente chegam ao poder? No campo político,
o desejo de permanecer no poder é a forma mais concreta do individualismo.
Como oposição ao modo de vida individualista, a Escritura nos ensina: “nada
façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere
os outros superiores a si mesmo. Não atente cada um para o que é propriamente
seu, mas cada qual também para o que é dos outros, de sorte que haja em vós o
mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Fp 2,3-5).
pública que a posse do que foi consumido atribui à pessoa consumista. A pessoa
consumista transforma todas as coisas em objetos de consumo, que são, simulta-
neamente, objetos de desejo. Ao fazer isso, torna-se, ela mesma, em um objeto,
encontrando sua satisfação e sua identidade não mais em si mesma e nas suas
relações com outras pessoas, mas na posse dos objetos que deseja. A pessoa con-
sumista transforma todas as demais pessoas em objetos, e se relaciona com elas
a partir do amor-próprio ou, em uma linguagem mais aberta da psicologia, a
partir do desejo.
De acordo com o sociólogo polonês Z. Bauman (2008, p. 44),
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(3) Quais são os principais sinais do secularismo nas igrejas e na vida cristã?
(a) O fundamentalismo, que corresponde ao racionalismo. Por fundamen-
talismo não me refiro a um conjunto específico de doutrinas, mas a uma
atitude. A atitude que vê na crença pessoal ou institucional a única ver-
dade possível, e que todas as pessoas deveriam ter a mesma crença. O
fundamentalismo é um modo de viver a fé cristã que coloca os conceitos
doutrinários acima do amor a Deus e ao próximo. A pessoa fundamen-
talista é ‘dona da verdade’ e não admite que qualquer verdade possa
ser construída fora dos limites de sua própria crença. Assim, o funda-
mentalista julga todos os tipos de conhecimento a partir de sua própria
crença e tenta enquadrar todas as ciências e modos de saber ao seu pró-
prio conhecimento.
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Dei na história humana. São institucionalistas pastores, pastoras, após-
tolos e demais lideranças eclesiais ou eclesiásticas que acumulam bens,
prestígio ou poder, e se assenhoreiam de seu rebanho, ao invés de apas-
centar o rebanho para Deus.
(c) A carnalidade, que corresponde ao consumismo. Igrejas e cristãos car-
nais são aqueles que comercializam o Evangelho e suas bênçãos. A
teologia da prosperidade é o exemplo mais completo do egocentrismo
consumista no campo das Igrejas Cristãs. Porém não só ela, também são
consumistas as igrejas e pessoas que, ao invés de adorar a Deus, cen-
tralizam o culto em suas próprias necessidades e desejos – e a música é
uma das expressões mais evidentes do consumismo litúrgico: letras cen-
tradas no eu ou no ser humano (antropocêntricas), melodias baseadas
na capacidade de entreter e de vender no mercado gospel. São carnais
as pessoas que, se considerando cristãs, se conformam com o mundo e
levam o consumismo para dentro da vida cristã: consomem Deus, con-
somem bênçãos, consomem serviços religiosos etc. São consumistas os
cristãos que não servem a Deus mediante o serviço aos irmãos, irmãs e
ao mundo que Deus ama e quer salvar. Em outras palavras, trazidas de
uma outra época, não muito distante, são as pessoas convencidas, mas
não convertidas. São as pessoas que manifestam os sinais externos da fé,
mas não entregaram de fato suas vidas a Deus e ainda vivem na carne.
São aquelas pessoas que só ficam na igreja se ganharem alguma coisa.
Senhor, Senhor, näo profetizamos nós em teu nome? e em teu nome näo expul-
samos demónios? e em teu nome näo fizemos muitas maravilhas? E entäo lhes
direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a
iniquidade” (Mt 7,21-23). Cristãos egocêntricos, ou carnais, são aqueles que rece-
bem a exortação de Paulo: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade;
porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns
dos outros, pelo amor. Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Se vós, porém, vos mordeis e devorais
uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos. Digo, porém: andai
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Diante dos desafios concretos de viver em um mundo secular sem nos tornar-
mos secularistas, precisamos nos esforçar para responder teologicamente a duas
grandes questões abstratas que se desdobrarão em um grande número de ques-
tões bem concretas: (a) qual é a relação do Cristianismo com (a secularização e)
a secularidade? e (b) Como viver cotidianamente a fé cristã em uma sociedade
secular (não secularista, nem fundamentalista)? Note a grandiosidade do tema.
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XXI nos devem fazer enxergar que, como defende Jean-Luc Nancy (2008, p.
30): “nosso tempo é, assim, o tempo em que é urgente que o Ocidente – ou o
que resta dele – analise o seu próprio devir, volte a examinar sua proveniência
e sua trajetória, e se questione a si mesmo no tocante ao processo de decom-
posição do sentido a que ele deu surgimento”. Se seguirmos este conselho,
como poderemos descrever e conceituar a secularidade em uma perspectiva
teológica cristã?
Um caminho interessante e fecundo tem sido aberto pela reflexão de Gianni
Vattimo, um filósofo italiano, cristão, católico-romano, que retoma as teses da
teologia da secularização dos anos 1960-70. O teólogo batista Harvey Cox já
defendia a tese agora apresentada por Vattimo em 1965: “a secularização, como
uma vez afirmou o teólogo alemão Friedrich Gogarten, é a consequência legí-
tima do impacto da fé bíblica na história” (COX, 2013, p. 21). No conjunto,
porém, o livro de Cox se dedica mais à cultura urbana e não à secularização e
secularismo enquanto tais. Em várias de suas obras, mas especialmente no livro
Depois da Cristandade, Vattimo (2002) defende a tese de que a secularização não
deve ser interpretada contra o Cristianismo, mas, sim, a partir do Cristianismo.
Em vários lugares desse livro Vattimo defende a tese de que ‘o Ocidente é o
Cristianismo secularizado, e nada mais’ (tese que, de uma forma ou outra, tem
sido reconhecida e adotada por vários autores que não seguem o conjunto do
pensamento do filósofo italiano). Assim, se queremos entender o mundo secu-
lar, não podemos prescindir de entendê-lo a partir do Cristianismo, e não mais
contra o Cristianismo.
Voltaremos a esta citação, para discuti-la com mais detalhes. Agora, porém, chamo
sua atenção para a consequência desta afirmação para o conceito de secularização:
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mundo’ – Deus é transcendente porque está fora deste mundo e é independente
dele. Vemos, tradicionalmente, a transcendência como um conceito que explica
a radical e absoluta diferenciação entre Deus e sua criação (o mundo). Isto dá
legitimidade a uma visão dualista da salvação: somos salvos do mundo para viver
em ‘outro mundo’. Legitima, ainda, uma visão dualista da espiritualidade: vive-
mos em um mundo mau, por isso precisamos ser ‘bons’, fugindo do mundo e nos
refugiando no sobrenatural (na prática, reduzido ao emocional). Enfim, torna
crível uma visão alienada da missão da Igreja: nada temos de fazer com relação
a ‘este mundo’ que perece, temos de cuidar da salvação das almas que sobrevi-
verão a este mundo e viverão, ressurretas, no ‘mundo vindouro’.
Que é, então, a transcendência radical de Deus? É o fato de que Deus assume
o mundo que criou. Ele não está ‘fora’, mas absolutamente ‘dentro’ deste mundo.
A transcendência não é um movimento de saída deste mundo, mas de entrada
nele. Deus é transcendente exatamente por que é Criador. A criação é o ‘primeiro
ato’ da transcendência divina. A kenosis é o ‘ato climático’ da transcendência
divina: Deus vem ao mundo criado e vive nele como uma criatura deste mundo
– a ponto de morrer e ressuscitar (Fp 2,5-11). É na medida em que deixamos de
ser religiosos é que nos aproximamos da radicalidade do ser cristão. Traduzindo
em termos mais concretos: na medida em que transcendemos os limites religiosos
das Igrejas é que vivemos como cristãos. Ou, na linguagem preferida pela mis-
são integral: a Igreja está a serviço do Reino, e não vice-versa. Você é capaz de
perceber a radicalidade desta afirmação? Eu penso que, assim como ainda não
conseguimos chegar perto de praticar o sacerdócio universal dos santos, também
ainda não chegamos perto de praticar o Reino como critério para viver na igreja.
radical: o caminho para a ressurreição (cf. 1Co 15). Traduzindo para uma lin-
guagem bem concreta: a missão da Igreja não é o seu próprio crescimento e sua
autopreservação. É, ao contrário, sua kenosis seguindo o caminho trilhado pelo
Messias. Usando um exemplo mais próximo de nossa visão limitada, a missão
da Igreja é similar à de João Batista: ‘convém que o Reino cresça e eu diminua’!
Como, porém, é difícil seguir a Jesus em seu auto esvaziamento! Preferimos que
a Igreja cresça e, quem sabe, faremos o reino crescer junto com ela. Ainda somos
os mesmos e vivemos sob o signo da Cristandade.
Em quarto lugar, a radical transcendência de Deus revelada no Messias Jesus
se manifesta também como a ‘dissolução do sagrado’. Ou melhor, contradizendo
Vattimo (2002), como a dissolução do profano. Nada há de profano neste mundo.
Ele é criação de Deus, perfeita, plena. Somente nossas ações pecaminosas é que
profanam a criação divina. Não é esta definição uma interpretação legítima da
visão de Pedro em Atos 10? Não é a visão de Pedro em Atos 10 uma interpre-
tação legítima da fala de Jesus de que só é impuro o que sai do ser humano e
não o que nele entra? Não estava certo Paulo ao afirmar que ‘para os puros tudo
é puro? Se interpretarmos a secularização com esta chave teológica cristocên-
trica como a dissolução do profano, então todo o mundo volta a ser colocado
debaixo do senhorio de Deus – tudo volta a ser sagrado, ou seja, consagrado a
Deus. Democracia, razão, ciência, tecnologia, etc., não são o resultado do embate
humano contra Deus, não são a profanação do caminho divino para o ser humano.
São, em forma imperfeita e ambígua, expressão humana do permanente e jamais
abalado senhorio divino em sua criação! Tudo o que há de bom neste mundo é
fruto da amorosa ação criadora e redentora de Deus. Se aceitarmos que política,
economia, ciência, mídia, arte etc. são realidades profanas, estaremos aceitando a
tese do secularismo. Se aceitarmos o dualismo sagrado-profano negaremos que
o mundo foi criado por Deus e que o mal entrou nele mediante nossa própria
ação: ‘por um homem entrou o pecado no mundo’ afirmava Paulo. ‘Do Senhor
é a terra e tudo o que nela há’ é poderoso antídoto contra o secularismo. Só não
podemos incorrer no fundamentalismo e tratar o sagrado como o oposto do pro-
fano e tentarmos impor o modo de vida cristão a toda a sociedade.
Em quinto e último lugar, compreender a kenosis do Messias como uma
forma arquetípica da secularização nos ajuda a repensar o nosso conceito de
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Deus, tão marcado pelo pensamento secularista. Estamos acostumados a pen-
sar em Deus como o todo-poderoso capaz de destruir todos os seus inimigos,
de transformar todas as realidades ruins em realidades boas para as pessoas
que O amam. Em muitos casos até reduzimos Deus a um despachante-resol-
vedor de problemas. Esse é um conceito forte de Deus, um conceito cheio. E se
passarmos a pensar em Deus como um Deus fraco, como um Deus quenótico?
Se pensarmos e nos relacionarmos com Deus nos moldes da radical descrição
de Paulo em 1 Coríntios 1,21-24: “Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo
não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem
pela loucura da pregação. Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos
buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os
judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus
como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Porque
a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais
forte do que os homens”.
Que tal pensar no poder de Deus como um poder “que se aperfeiçoa na fra-
queza” (2Co 12,9)? A radicalidade do poder de Deus está no fato de que, sendo
Deus, eterno e imortal, ele pode morrer por sua criação. Que tal pensar na sabe-
doria de Deus como a sabedoria revelada na cruz do Messias? Se a kenosis for a
chave hermenêutica para a teologia cristã, retornaremos à centralidade da cruz
de Cristo na teologia cristã. Se retornarmos à centralidade da cruz de Cristo em
nossa teologia, poderemos interpretar toda a história humana e da criação inteira
como a manifestação do poder salvífico da morte do Filho de Deus. A história
toda, em sua ambiguidade, em sua revelação do pecado humano, é, também, a
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UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA LIBERDADE –
LIBERDADE POLÍTICA-SUBJETIVA
Caro (a) aluno (a), vamos finalizar nossa reflexão sobre a liberdade? O foco será
a dimensão política da liberdade que é, também, em nossos dias, a dimensão da
subjetividade humana.
A LIBERDADE POLÍTICA-SUBJETIVA
Talvez nosso problema hoje seja o de descobrir que o sujeito não é nada
além da correlação histórica das tecnologias de si construídas em nossa
história. Então, talvez o problema seja o de transformar essas tecnolo-
gias. E nesse caso, um dos principais problemas políticos hoje em dia
seria, no sentido estrito da palavra, uma política de nós mesmos (FOU-
CAULT, 2011, p. 185-186)
Precisamos, então, construir uma nova “política de nós mesmos”. Isto pe, revi-
sarmos os modos de construção da identidade (ou subjetividade), sob o poder
do Messias, e não sob os poderes do presente século. As atuais tecnologias de
si do mundo capitalista são dispositivos centrados e centradores no individua-
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Liberdade não é ‘fazer tudo o que eu quero’. Em Rm 7,14 lemos: “o bem que
eu quero não faço, o mal que não é o que eu faço”. O nosso querer, ou a nos-
sa vontade, não são livres, por isso não basta fazer o que quero para ser livre.
pois não temos mais receitas seguras, comprovadas. É como criar antivírus
para vírus de computadores, sempre chegam novas formas. Talvez seja como
vacina contra a gripe, sempre atrasadas, mas nem por isso 100% ineficazes.
Se vivemos em um tempo acelerado, ritmo galopante no trabalho, no estudo,
no lazer, no consumo, na espiritualidade etc., que tal criar períodos de tempo
desacelerado no dia a dia: ler de modo não consumista - sem pressa, fruindo os
prazeres do texto; meditar e orar - práticas milenares que modificamos para se
adequar aos novos tempos acelerados. Então, desacelerá-las, meditar e orar “com”
você mesmo, seu avatar, seu deus, seus fantasmas - simplesmente ser amigo de si.
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Se vivemos em um tempo individualista, dando valor apenas às pessoas que
podem nos proporcionar algum benefício a curto e médio prazo, [...] que tal
investir em relacionamentos “inúteis”, sem retorno (embora, de fato, todo bom
relacionamento ofereça ‘retorno’) - seja nas amizades, na família, no trabalho
voluntário, no serviço a alguém; o que na linguagem de pouco tempo atrás se
chamava de “quality time”, ou em tempos mais distantes, simplesmente se dizia
“relaxar”.
Se vivemos em um tempo consumista, trocando de objetos (ou de relaciona-
mentos) constantemente, o que nos dá prazer e reforça nosso auto-hedonismo,
que tal ficar mais tempo com seu ‘velho’ celular, ou seu ‘velho’ computador, ou
seu ‘velho’ carro, etc.; que tal dizer não a algum item ‘importante’ de consumo
e suportar as consequências dessa falta; invista seu tempo, talento, dinheiro em
ajudar sem ser reconhecido por isso.
O “x” da questão? Cuidar de si, investir a si mesmo em si mesmo, aprender
a cuidar de si-mesmo-como-outro - em uma antiga e veneranda linguagem, tal-
vez ainda recuperável (?) ame e se deixe amar.
Invente, reinvente-se. Crie, recrie-se.
A FÉ E A LIBERDADE POLÍTICA-SUBJETIVA
Algumas possibilidades:
1. A espiritualidade nasce (a) na invenção: inventamos outros mundos, outros
personagens, outros seres; (b) na fantasia: fantasiamos conversas com outro
ser, experiências sublimes e poderosas; (c) na ficção: criamos crenças, valo-
res, ritos, deuses. Inventar, fantasiar, ficcionar são componentes de um estilo
de vida subjetivador: criamos a nós mesmos quando criamos o mundo reli-
gioso em que vivemos. A fé, porém, dessubjetiva quando perde de vista seu
caráter inventivo, fantasioso, ficcional e se reduz aos aparatos institucionali-
zados e às experiências individualizadas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito bem, caros(as) alunos(as). Chegamos ao final desta reflexão inicial sobre
uma teologia pública da liberdade. Inicial porque ainda há muito que se discu-
tir sobre o assunto. Inicial porque viver a liberdade é um desafio que dura toda
a vida de cada um de nós.
Estudando aspectos do pensamento contemporâneo, aprendemos que a liber-
dade é a expressão da autonomia. Autonomia é uma palavra formada por duas
palavras grega: autos (eu, eu mesmo) e nomos (lei, princípio). Uma pessoa autô-
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noma é uma pessoa que não é dominada por ninguém, que não é governada por
ninguém, a não ser por si mesma.
Esta definição de autonomia, porém, conta só uma parte da história. Ninguém,
de fato, se governa sozinho. Então, a autonomia tem a ver com ser governado de
um modo tal que esse governo por outro não fira a minha autonomia. Logo, o
conceito de liberdade é sempre ambíguo: para ser livre não posso ser governado,
mas se não sou governado de uma forma adequada não posso ser livre.
Essa ambiguidade também está na liberdade bíblica cristã: somos escra-
vos livres! Não mais escravos do pecado, mas escravos de Deus. Somente esta
escravidão é liberdade. Quando somos escravos de Deus somos livres. Quando
somos livres, de verdade, nós nos submetemos voluntária e alegremente a Deus
como nosso Senhor.
Estudamos três dimensões teórico-práticas da liberdade: ética, sociocultu-
ral e político-subjetiva. Construímos uma ética da liberdade em amor como a
base para a vivência sociocultural e político-subjetiva da liberdade. A liberdade
cristã é ser governado pelo amor - amor de Deus, amor a Deus, amor ao pró-
ximo, amor a mim mesmo.
Ser livre é ser livre para amar. Amar é ser livre. Mas, amar como Deus amou,
amar como Cristo amou, amar enquanto fruto do Espírito Santo. Nunca amar
como as novelas de TV nos ensinam.
A solução conceitual de Forst para os dilemas criados no interior do debate sobre a jus-
tiça leva em consideração quatro “contextos de problemas teóricos” em que aspectos
da justificação normativa oferecidos por liberais ou comunitaristas podem se mostrar
mais ou menos adequados. O próprio conteúdo do livro, portanto, divide-se nesses qua-
tro planos conceituais críticos. [...] Forst pretende mostrar a possibilidade de “superar”
tais oposições tradicionais segundo uma “perspectiva vertical” a partir de sua tese dos
“contextos da justiça”. Uma teoria crítica da justiça precisa antes considerar as necessi-
dades que podem surgir no contexto de socialização dos indivíduos e serem justificadas
publicamente em dimensões ao mesmo tempo diferenciadas e inter-relacionadas. Ar-
gumentos universalistas, pretensões de neutralidade jurídica e dimensões axiológicas
compõem os contextos de reconhecimento e de justificação pública nos âmbitos da
moral, do direito, da ética e da política. [...]
Desse modo, aquelas clássicas oposições entre “eticidade” e “moralidade”, bem e justi-
ça, são vinculadas a processos de justificação da normatividade em que formas de vida
culturais e políticas e determinações substantivas da justiça encontram-se atreladas
a direitos e procedimentos imparciais. “Portanto”, segue o autor, “princípios de justiça
são aqueles que são justificados de modo universal e imparcial na medida em que cor-
respondem, de maneira apropriada, aos interesses, necessidades e valores concretos
daqueles atingidos por eles” (p. 276). Pretende-se assim evitar uma “cegueira” em face
dos contextos, bem como apontar os limites das orientações contextualistas que des-
conhecem o núcleo universalista das reivindicações por justiça. A harmonização desses
diferentes contextos requer uma teoria da justiça que possa reuni-los de um modo mais
adequado.
A reconstrução do debate entre liberais e comunitaristas apresentada no livro evita, por
conseguinte, a mera defesa de uma ou outra posição, privilegiando avaliá -los como
abordagens parciais para o problema da justiça. Para que seja suficientemente abstrata
e concreta ao mesmo tempo, uma teoria crítica da justiça assume o vínculo essencial
entre pessoas e comunidades e parte do ancoramento dos princípios de justiça a toda
comunidade política. A oposição normativa entre universalismo e contextualismo só
pode ser superada se trouxermos para o centro da discussão a questão de quais concei-
tos de pessoa e comunidade estão em jogo. A solução conceitual de Forst complementa
criticamente as proposições globais tradicionais ao distinguir quatro conceitos de pes-
soa (pessoa ética, pessoa de direito, cidadão e pessoa moral) e de comunidade (ética,
jurídica, política e moral) que correspondem a quatro contextos normativos diferentes e
entrelaçados de modo complexo. [...]
O propósito crítico da diferenciação e da articulação dos diversos contextos consiste
menos na separação entre o plano ético, jurídico, político e moral, do que na possibili-
dade de “comprovar a compatibilidade dos direitos individuais com o bem da comuni-
dade, da universalidade política com a diferença ética, do universalismo moral com o
contextualismo”, permitindo desse modo “evitar oposições falsas” (p. 13).
100
A nós, A liberdade
Ano: 1931
Sinopse: um condenado escapa da prisão, consegue um emprego e se torna
diretor da fábrica onde trabalha. Anos depois, seu companheiro de cela é
solto e passa a trabalhar na empresa do amigo. Porém, eles temem que a
verdade sobre o fugitivo seja descoberta.
Fique com esta sugestão de artigo online escrito por Rudolf von Sinner sobre a Teologia Pública da
cidadania no Brasil enquanto sucessora da Teologia da Libertação.
Web:<http://www.r-e-t.net/fix/files/von%20Sinner_teologia%20p%FAblica_cidadania_%20in%20
Portugues.pdf>.
Material Complementar
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIA ON-LINE
1
Em: <http://hinologia.palavra-e-poder.org/data/uploads/material-hinologico/HinosE-
Corinhos/cas/cas3156.icl.tfism.am.c4.pdf>. Acesso em: 04 jun. 2018.
103
GABARITO
1. E.
2. C.
3. E.
4. D.
5. C.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
TEOLOGIA PÚBLICA DA
III
UNIDADE
JUSTIÇA
Objetivos de Aprendizagem
■■ Conceituar justiça à luz da filosofia contemporânea.
■■ Definir justiça na teologia bíblica.
■■ Explicar a dimensão ético-moral da justiça.
■■ Explicar a dimensão legal da justiça.
■■ Explicar a dimensão socioeconômica da justiça.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O conceito de justiça na Filosofia Contemporânea
■■ Um olhar bíblico sobre a Justiça
■■ Uma teologia pública da justiça – Justiça Ético-Moral
■■ Uma teologia pública da justiça – Justiça Legal
■■ Uma teologia pública da justiça – Justiça Socioeconômica
107
INTRODUÇÃO
Introdução
108 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O CONCEITO DE JUSTIÇA NA FILOSOFIA
CONTEMPORÂNEA
A temática da justiça perpassa a obra de Jean-Luc Nancy, mas são poucos os tex-
tos em que ele se debruça especificamente sobre o conceito de justiça. Até onde
conheço sua obra, é em um pequeno texto de cinco páginas que Nancy descreve
mais especificamente sua noção de justiça: “Cosmos Basileus” (Rei do Mundo ou
Mundo Rei), um dos textos que compõem o livro Being Singular Plural (2000),
originalmente publicado como Etre singulier pluriel (1996) - sobre esse texto nos
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Justiça, então, é aquilo que é dado, repartido, devolvido a cada um, conforme
sua singularidade peculiar. Por isso, ninguém sabe, justamente, o que é a justiça.
Cada pessoa, em cada mundo, constantemente partilha, dá, toma, perde, recebe,
devolve. Como paralisar esse movimento incessante? Uma justiça que paralisa
o movimento da partilha não é justiça. Não é possível afirmar uma única justiça
em uma pluralidade de mundos:
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inevitável. Uma busca incessante. Justiça é aquilo que convém a cada existente
em sua existência singular irredutível e a todos os existentes em sua existência
comum igualmente irredutível:
a justiça, então, precisa ser entregue, ao mesmo tempo, à singular abso-
luta do próprio e à absoluta impropriedade da comunidade de existên-
cias. Ela precisa ser entregue exatamente a ambos, a um e ao outro: esse
é o jogo (ou o sentido) do mundo (NANCY, 2000, p. 188).
Uma impossibilidade? Sim! E é exatamente por isso que justiça é sempre ‘busca
de justiça’.
É por isso também que justiça é sempre – e talvez principalmente – a
necessidade de justiça, isto é, a objeção e o protesto contra a injustiça,
o chamado que grita por justiça, a respiração que se exaure em clamar
por ela. A lei da justiça é esta tensão interminável com relação à própria
justiça (NANCY, 2000, p. 189).
contra a vontade de Nancy, podemos evocar o apóstolo Paulo que nos lembra
que a loucura de Deus, que entrou no mundo mediante o Filho Encarnado, é
mais sábia do que a sabedoria dos homens.
Jean-Luc Nancy descreve a justiça como uma incessante busca em uma inces-
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prios clamores (reivindicações) e o direito básico à justificação ignora-
dos (FORST, 2012, p. 2).
A busca por justiça é busca por libertação (emancipação). É busca pelo fim da
opressão, do assédio, da desigualdade, da dominação, da violência etc. injusti-
ficáveis. O termo-chave, aqui, é injustificável. Por quê? Existem desigualdades
que são justificáveis – ou seja, que podem ser reconhecidas como legítimas
mediante argumentação apropriada. Da mesma forma, embora seja relativa-
mente estranho reconhecer isto, há formas de opressão, dominação, violência
etc. que também podem ser consideradas justificadas (e.g.: a noção de guerra
justa, a noção de revolução – em que há opressão temporária sobre o grupo
anteriormente no poder; etc.). Positivamente falando, uma situação é ‘justa’ se
todas as pessoas nela envolvidas concordarem, sem coerção, que é uma situação
justificável. Assim, o reconhecimento de que uma dada situação é justa ou não,
depende do exercício do direito básico de justificação em um ambiente predo-
minantemente não coercitivo.
Consequentemente,
Seres humanos autônomos formulam seus juízos morais e políticos in-
dependentemente, e os avaliam criticamente com a prática; ao mesmo
tempo, deles se requer que justifiquem tais juízos, que deliberem co-
letivamente a respeito de todas as suas consequências para as pessoas
afetadas em modos politicamente relevantes, e que decidam de acordo.
A primeira tarefa da justiça é tornar isto possível (FORST, 2012, p. 7).
Vejo, mais uma vez, provavelmente também de modo ‘involuntário’, uma descrição
da justiça compatível com a descrição de justiça mais comum na Escritura. Justiça
não existe sem injustiça, coexistem, sempre e inevitavelmente. Vale aqui, de modo
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Em que consiste o espaço ético da vida humana? Segundo Forst (2002, p. 258),
questões éticas são questões sobre a vida boa de uma pessoa como
membro de comunidades éticas particulares, com cuja história a his-
tória de vida única, a narrativa do self – seu passado, presente e futuro
– está conectada.
Pressuposto, aqui, está o caráter plural dos estilos e modos de vida das sociedades
democráticas contemporâneas – nos diversos ambientes da vida – religião, cultura,
profissão, gênero, lazer, etnia etc. Há diferentes ‘éticas’ em qualquer sociedade democrá-
tica atual, e todas essas comunidades precisam justificar suas opções adequadamente.
O que se deve justificar no campo ético? Segundo Forst (2002), duas coisas:
(a) “a nível subjetivo, eu justifico ‘minhas’ decisões a mim mesmo e àquelas pes-
soas que pertencem ao núcleo de minha identidade, elas são importantes para
mim por me dizem como me veem, como eu sou para elas”; (FORST, 2002, p.
259) (b) “no aspecto de relevância comunitária, justificação ética significa que
uma comunidade com a qual indivíduos se identificam procura responder à
questão do que é bom ‘para nós’ com base em uma auto compreensão comum”
(FORST, 2002, p. 260). Como a sociedade é eticamente plural, inevitavelmente
conflitos éticos farão parte do cotidiano da democracia e deverão ser resolvidos,
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com base na justiça, mediante o debate e a deliberação públicas.
(2) Legalidade
Enquanto pessoas legais, são responsáveis ‘perante’ a lei; enquanto cidadãs, são
responsáveis ‘pela’ lei. A justiça, no campo da lei, deve garantir que cada pes-
soa possa buscar sua autorrealização sem impedimentos coercitivos. Todavia,
a ‘razoabilidade’ demandada das pessoas legais é moralmente exigente:
a autonomia legal pressupõe, não somente o respeito recíproco e a tole-
rância, como deveres legais mútuos, mas também a imputabilidade e a
responsabilidade por suas próprias ações (FORST, 2002, p. 264).
éticas, de modo que sempre se deve existir um espaço para, não só modificar
as leis, como também, para resistir ‘legalmente’ às leis (como no caso da deso-
bediência civil, por exemplo). A demanda moral sobre a pessoa legal e política
implica em que ela seja, quando necessário, porta-voz de quem não tem voz em
uma dada sociedade, colaborando com a busca de justiça pelas pessoas vítimas
da injustiça.
(3) Político
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ser determinada discursivamente; a generalidade da norma deve ser
verificada antes dela se tornar uma norma legal. Somente esta genera-
lidade discursivamente estabelecida pode fundamentar a reivindicação
de legitimidade da lei e obrigar politicamente os cidadãos. [...] Obri-
gações políticas são obrigações auto impostas. No nível da cidadania
e da democracia, a ‘justificação’, portanto, se refere primariamente à
justificação recíproca de normas que devem ser geralmente válidas
para a comunidade política; isto se refere à auto legislação autônoma
de cidadãos (FORST, 2002, p. 267-68).
(4) Moralidade
Você notou o crescendo dos contextos da justiça (justificação)? Forst iniciou com
o indivíduo e sua comunidade ética, passou para o ‘país’ e sua legislação, avançou
para a ‘nação’ democrática e sua cidadania, e conclui, agora, com a universali-
dade dos princípios morais. Essa universalidade não pode ser concebida, porém,
de modo abstrato, mas de modo histórico – isto é, são universais os princípios
morais que, ao longo da história humana, foram se universalizando, ou seja,
foram sendo reconhecidos como tais por parcelas cada vez maiores da popu-
lação humana do planeta. Consequentemente, a universalização de princípios
morais permanece tarefa constante da humanidade, não podendo se restringir
a uma forma de universalização – a europeia, por exemplo.
Normas morais, para serem universais, precisam de ser justificadas mediante
razões gerais e recíprocas – gerais, por que se aplicam a todas as pessoas envol-
vidas; recíprocas, por que ninguém pode se eximir de sua discussão e de seu
reconhecimento (se vale para você, vale para mim, e vice-versa). Em uma época
que valoriza a individualidade e a pluralidade, falar em universalidade pode dar
a entender alguma forma de opressão. Todavia,
a universalidade de uma norma não é ‘má universalidade’; a justificação
moral demanda o respeito a cada indivíduo e a todas as pessoas como
autoras e destinatárias de reivindicações de validade. Neste sentido, a
autonomia moral – a autonomia de pessoas razoáveis e justificadoras
– requer julgamento moral, que busca justificar concretamente o que é
moralmente correto, exatamente por causa de sua reivindicação de uni-
versalidade (FORST, 2002, p. 270).
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situações de injustiça mais visíveis (além de criar novas), e deixam mais evidente
também a pluralidade ética, legal, política e, até mesmo, moral (lembrando-nos
de que a universalidade é fruto da universalização). Assim,
por serem membros de diferentes comunidades de justificação, pesso-
as aceitam – ou apresentam mutuamente umas às outras – a conexão
autônoma da responsabilidade ética, legal, política e moral vis-à-vis si
mesmas e outras como a tarefa prática central. Pode-se chamar tais in-
divíduos responsáveis de autônomas em um sentido abrangente, e ra-
zoáveis no sentido prático. A este conceito exigente de pessoas respon-
sáveis corresponde o conceito de uma sociedade responsável, que torna
possível sua existência prática (e é, ela mesmo, possibilitada por essa
existência prática) (FORST, 2002, p. 274).
Síntese
O tema deste capítulo parece simples, mas, de fato, possui uma complexidade
que desafia a escrita sobre o mesmo. Em primeiro lugar, a literatura bíblica em
geral, inclusive a profética, não se caracteriza pela linguagem conceitual, de modo
que não encontraremos na literatura profética um conceito de justiça. Em outras
palavras, precisamos construir um conceito de justiça a partir da diversidade
da pregação profética. Em segundo lugar, não há uma unidade de perspectiva
sobre a justiça na chamada literatura profética – escrita em épocas diferentes,
por autores e autoras em locais sociais distintos, a literatura profética é teológica
e ideologicamente plural. Em terceiro lugar, precisamos definir o alcance da lite-
ratura profética: se seguimos o cânon hebraico, ela inclui os Profetas Anteriores
(que nós costumamos chamar de Históricos); se seguirmos a forma canônica
das versões em português se restringe ao que no cânon hebraico são os Profetas
Posteriores – por questões de facilidade de pesquisa e enquadramento na confi-
guração do livro, fico aqui com a segunda opção. Temos, ainda, o problema das
traduções – se seguirmos o texto em português, não há uniformidade na esco-
lha da tradução dos vocábulos hebraicos – justiça é usado tanto para as raízes
quanto para . Enfim, o tema por si só é complexo na Bíblia dos hebreus: não só
temos de lidar com o par terminológico comum ‘justiça-direito’, mas também
temos de lidar com as complexas relações que a noção de justiça estabelece com
as de libertação, paz, lei, fidelidade e aliança.
Assim, preferi optar por um estudo mais específico sobre o tema da jus-
tiça na literatura profética: refletirei sobre a noção de justiça no livro de Isaías.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
JUSTIÇA E DIREITO NO LIVRO DE ISAÍAS
As palavras para justiça em Isaías são os substantivos ִמ ְׁשּפָ ט ;צֶ ֶדקe ;צְ ָד ָקo adjetivo
צַ ִּדיק, bem como as formas verbais ׁשפטe צדק. Os termos são usados em todo o
livro de Isaías (a raiz ׁשפט: 32 x em 1-39; 14 em 40-55 e 11 em 56-66; a raiz צדק:
31 x em 1-39; 32 em 40-55 e 23 em 56-66), no total são 143 ocorrências das duas
raízes, distribuídas amplamente nas três seções do livro, com maior frequência na
primeira seção (a maior), mas percentualmente as diferenças não são significan-
tes. A distribuição por palavras é: : 1,17.23.26; 2,4; 3,2; 5,3; 11,3.4; 16,5; 33,22 (10);
40,23; 43,26; 51,5 (3); 59,4; 66,16 (2). : 1,17.21.27; 3,14; 4,4; 5,7.16; 9,6; 10,2; 16,5;
26,8.9; 28,6(2).17.26; 30,18; 2,1.7; 32,16; 33,5; 34,5 (22); 40,14.27; 41,1; 42,1.3.4;
49,4; 50,8; 51,4; 53,8; 54,17 (11); 56,1; 58,2(2); 59,8.9; 59,11.14.15; 61,8 (9). : 5,23
(1); 43,9; 43,26; 45,25; 50,8; 53,11 (5). : 1,21.26; 5,23; 11,4.5; 16,5; 26,9.10; 32,1
(9); 41,2.10; 42,6.21; 43.9.26; 45,8.13.19; 51,1.5.7; (12); 58,2.8; 59,4; 61,3; 62,1.2;
64,4 (7). : 1,27; 5,7.16.23; 9,6; 10,22; 28,17; 32,16.17(2); 33,5.15 (12); 45,8.23.24;
46,12.13; 48,1.18; 51,6.8; 54,14.17 (11); 56,1(2); 57,12; 58,2; 59,9.14.16.17; 60,17;
61,10.11; 63,1; 64,5 (13). : 3,10; 5,23; 24,16; 26,2.7(2); 29,1 (9); 41,26; 45,1; 49,24;
53,11 (4); 57,1(2); 60,21 (3). As principais perícopes em que os termos são usados
são: 1,10-20; 1,21-27; 5,1-7.8-23; 9,1-7; 10,1-4.20-27ª; 11,1-9; 26,7-21; 28,1–29(1-
6.7–13.14–22.23–29); 32,1-20(1-8.9-14.15-20); 40,12-31; 42,1-4.6-9; 44,24-45,8;
45,18-25; 46,1-13; 51,1-8; 52,13-53,12; 54,1-17; 56,1-8; 58,1-14; 59,1-21; 60,1-22;
61,1-11; 62,1-12; 63,15-64,11. Esta listagem mostra a importância dos termos
– e do tema da justiça – em Isaías e também nos mostra que é impossível, em
um artigo, abranger igualmente com profundidade cada uma das perícopes.
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e ‘libertador’, começamos a perceber os contornos da noção de justiça que sus-
tenta as denúncias. Fazer justiça é função dos governantes (a partir do rei) que
devem garantir que as normas da entre YHWH e seu povo sejam cumpridas – a
distribuição adequada das terras entre as famílias, decisões judiciais honestas e
íntegras, religiosidade que alimente a fidelidade e a solidariedade. A prática da
justiça é inseparável da prático do direito – a arbitragem adequada dos conflitos
entre os membros da população de Judá. A justiça, consequentemente, é constitu-
tiva da monarquia – o monarca é o principal agente da justiça e do direito em Judá.
Implícita nesta noção está a origem da justiça na ação de YHWH em constituir o
seu povo e lhe outorgar a sua torah como expressão concreta das normas da berith.
Quando dirigimos nossa atenção aos capítulos do Terceiro Isaías, os exor-
tados pertencem a categorias bem distintas dos denunciados pelo profeta do
VIII século. Eles são: ‘o homem’, ‘o estrangeiro’, ‘eunucos’ (56,1-8), ‘meu povo’
(58,1-14); ‘vós’ (59,1-21). Esta linguagem genérica parece se referir ao período
em que Jerusalém está sendo re-habitada, mas ainda não possui uma estrutura
sócio-política bem definida. As dimensões da exortação são, na mesma ordem
dos exortados: guarda do sábado e fidelidade à berith; ‘espiritualidade’ (buscar a
Deus...) e culto (jejum, dia do Senhor=sábado); corrupção nos tribunais, injus-
tiça, cegueira, pecados em geral (infidelidade à berith). Não se trata mais do rei
como principal agente da justiça, mas de cada membro do povo de Deus, inclusive
os estrangeiros que residem nas terras do povo de YHWH. O elemento comum
em relação ao Primeiro Isaías é a fidelidade/infidelidade à justiça de YHWH.
Em duas perícopes as palavras são usadas em relação à ação de YHWH que,
como seria de se esperar, é ação punitiva, como aquele que pune os criminosos.
Voltemos nosso olhar a alguns versos que nos ajudarão a detalhar a noção
de justiça.
Is 1,16-17. Nestes dois versículos a noção de justiça é apresentada em lingua-
gem sapiencial (bem vs. mal) e judicial, no âmbito da defesa de órfãos e viúvas
- o que provavelmente nos remete à tomada de terras das viúvas de guerra no
VIII século a.C. contar os siro-efraimitas e, posteriormente, assírios. Praticar a
justiça (direito), equivalente à prática do bem (), é garantir que as viúvas não
percam as terras de seus maridos e possam se sustentar mesmas e seus filhos.
Is 1,21. Neste verso, temos a presença conjunta de três termos que nos mos-
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vam (ZIESLER, 1972, p. 17).
Voltamos aos capítulos 1-39 de Isaías. Três perícopes nos recolocam no âmbito da
atuação do rei como agente da justiça. As duas primeiras perícopes (9,1-7; 11,1-9)
são reconhecidas como ‘messiânicas’, anúncios de esperança, enquanto a terceira
(32,1-20) é vista pela maioria como uma declaração sobre o passado e o presente,
e não como um anúncio de esperança. Não é possível discutir essas perícopes
extensamente, concentrar-me-ei, mais uma vez, na noção de justiça nelas pre-
sente. Em 9,1-7 estamos na expectativa da libertação da Galiléia mediante a força
militar para suplantar o inimigo dominador. Nos versos 6-7 temos a descrição do
novo rei, com seus títulos de entronização (v. 6) e com a descrição de seu governo
‘justo’ no v. 7. Usa-se a tríade político-judicial: paz, direito e justiça que indicam a
harmonia socioeconômica sob o governo do rei que pratica justiça e direito. No
capítulo 11, a tríade é sapiencial (no temor de YHWH v. 3): direito, justiça e reti-
dão (v. 4), com a novidade do último termo que se usa em contextos geográficos
para falar de regiões planas e, no âmbito político-judicial equivale à retidão, hones-
tidade ou integridade nos julgamentos. Novamente temos o rei como principal
agente da justiça, governando e tomando decisões favoráveis aos pobres e neces-
sitados. Nas duas perícopes a ação de YHWH é a base e fundamento da ação do
rei como governante justo, de modo que permanecemos no contexto da aliança.
A perícope do capítulo 32 se situa no âmbito da linguagem sapiencial, como
várias outras em Isaías 1-39. Nos primeiros versos o texto fala de um rei que
governará com justiça e ‘príncipes’ que governarão com retidão (o tradicional
par justiça e direito) – com estas orações no campo semântico da sabedoria (uma
alusão a Salomão como o mais sábio dos reis e modelo de sabedoria pode estar
presente). A novidade, por assim dizer, está na parte final da perícope (v. 15-20),
que insere a justiça no campo semântico do derramamento do Espírito (v. 15), não
no sentido encontrado em Ezequiel ou Joel, mas no sentido presente no Salmo
104 – o Espírito como o doador da vida, aqui representada na forma de prospe-
ridade agrícola. Também é importante o destaque dado ao efeito da justiça: paz,
que corresponde à harmonia e o bem-estar sociais e naturais. Quando os gover-
nantes praticam a justiça, o resultado é a plenitude da vida humana e da natureza
– fruto da ação do Espírito, tanto quanto da ação humana. Que ainda estamos no
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âmbito da aliança é assinalado no texto pelo uso da expressão ‘meu povo’ (v. 18).
Quando nos dirigimos aos capítulos 40-55 o quadro muda parcialmente de figura.
A ênfase não recai mais sobre o exercício da justiça pelos governantes e pelo povo
em geral. Agora a ênfase principal recai sobre a ação de YHWH como liberta-
dor de seu povo cativo. A justiça agora é inserida no campo semântico dos atos
de Deus, tanto na criação quanto na libertação, atos que instauram uma nova
realidade para o povo de Deus, de modo que não saímos do terreno da relação
de aliança entre YHWH e seu povo.
Que novidades específicas encontramos nestes capítulos? Em primeiro lugar, o
anúncio de Ciro como agente terreno da libertação do povo de Deus por YHWH
(44,24-45,8). Assim como no êxodo egípcio, os textos descrevem a libertação
como ato de Deus e como ato de Moisés, também aqui se descreve a liberta-
ção como ato de Deus e de Ciro. Este é designado como o pastor e o ungido de
YHWH (44,28-45,1), ou seja, o rei terreno que será o responsável pela realização
da libertação divina. Que YHWH é o Justo libertador fica bem demarcado no
texto pela repetição de “Eu sou YHWH que faço todas as coisas” (44,24 e 45,7) –
com o acréscimo da afirmação de que somente YHWH é Deus: “Eu sou YHWH
e não há outro; fora de mim não há Deus ... para que se saiba desde o nascente
do sol e desde o poente, que fora de mim não há outro; eu sou YHWH, não há
outro”. A mesma universalidade está presente em 51,1-8 e é uma das marcas da
teologia do chamado Segundo Isaías.
deus dos deuses e senhor dos senhores’ (cf. 40,12-31 e 46,1-13 que destacam a
incomparabilidade de YHWH).
O poder militar evidente nas conquistas de Ciro é colocado no contexto
da negação da realidade de outras divindades, com especial referência a
Marduque, o principal rival de Yahweh (cf. 41,4; 43,10-11.13; 44,6.8). É
tentador interpretar as duas cláusulas participiais que precedem a inclu-
sio final (cf. 44,24) como polêmica contra o dualismo zoroastra. A pos-
sibilidade não pode ser inteiramente descartada, mas não há evidência
de que a religião de Zoroastro fosse, então, uma força a ser enfrentada.
Sequer temos evidência de que Ciro tenha sido, ele mesmo, um zoroas-
tra, e se ele tivesse sido não teria sentido para o autor polemizar contra
sua religião. Mas de fato a crença tradicional de que YHWH é a fonte de
tudo o que acontece, bem ou mal, ainda era amplamente, embora não
universalmente, aceita como não problemática (ver, por exemplo, Am
3,6; 5,18-20; Is 41,23 (BLENKINSOPP, 2000, p. 250).
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(cf. 42,1-4.6-9; 52,13-53,12). A novidade é que o poder libertador de YHWH
será mediado por um escravo, por um oprimido e não por um poderoso rei ou
libertador. Os cânticos estabelecem uma tensão importante com os anúncios de
libertação com Ciro como ungido e agente de YHWH. Se, por um lado, esses
anúncios estabelecem o poderio supremo de YHWH em toda a criação, os cânti-
cos do Escravo ressignificam esse poder e situam a teologia libertadora de Israel
em um novo campo semântico e político. Reafirmam, ainda, que a universali-
dade não implica em colocar Israel em pé de igualdade com outros povos. Israel
continua sendo o povo eleito e, após sua restauração à terra e à fidelidade, será
o grande agente de YHWH para realizar a justiça em toda a terra.
A ambiguidade dos cânticos em relação à identidade do Escravo – tanto
um indivíduo quanto o povo de Deus – é útil e fundamental para a formação da
teologia libertadora de Is 40-55. YHWH reina sobre todos os povos e mostrará
sua salvação a todos os povos, e todos os povos viverão debaixo de sua justiça.
Entretanto, é o povo eleito quem servirá de agente ou mediador da justiça de
YHWH para todas as nações. Ressalta, aqui, o vínculo entre a justiça e a lei (Is 42,
3-4), com o uso vinculado de ּתֹורה ָ = ִמ ְׁש ָ ּ֑פט. Que estamos ainda no âmbito da
aliança fica explícito em 42,6: “Eu, YHWH, te chamei em justiça, tomar-te-ei pela
mão e te protegerei, e te apresentarei como povo da dádiva e luz para os gentios”.
A tradução do hebraico por povo da dádiva visa ressaltar o significado deste
termo como uma dádiva ao invés de uma obrigação. Aqui, o Segundo Isaías segue
uma das tradições da teologia do êxodo que entende a berith como um ato ime-
diato de YHWH em benefício de seu povo. Neste sentido, o Dêutero Isaías está
na mesma linha de argumentação e compreensão de Jeremias (cf. 31,27-34), que
Duas perícopes situadas em seções distintas do livro, mas vinculadas pela lin-
guagem quase apocalíptica, nos apresentam uma outra faceta da noção de justiça
– a moral ou ética. Estas perícopes são 26,7-21 e 63,15-64,11, ambas orações do
povo a Deus, ambas orações de súplica e/ou lamento diante da catástrofe social
e política. Outro aspecto em comum é que ambas as orações tratam do tema da
justiça em dois registros: (a) YHWH como Deus justo e praticante da justiça; e
(b) o povo de Deus como constituído de pessoas justas, mas que reconhecem
praticam a iniquidade.
Na oração em 26,7-21 temos um contraste entre o justo (v. 7) e o ímpio (v.
10). O justo é aquele cujo caminho é plano porque YHWH assim o torna. Este
justo é o que clama a Deus suplicando pela sua salvação, pela sua vinda e pela
outorga da paz - posto que vive sob o domínio de nações ímpias – impiedade,
aqui, é a prática do ‘mal’, ou seja, a dominação injusta sobre o povo de Judá.
Temos, aqui, uma alusão polêmica a Habacuque, na afirmação do v. 10 “ainda
que se mostre favor ao ímpio, ele não aprende a justiça ( ;) = צֶ֔ ֶדקaté na terra da
retidão ele pratica a iniquidade, e não atenta para a majestade de YHWH”. Na
súplica a YHWH por libertação, a comunidade que ora reivindica o fato de ter
sido feita justa por YHWH como a base para o seu pedido: “a oração abre no v.
7 com uma confissão que será o tema de todo o resto do poema, que o caminho
de vida daquele que permanece fiel a Yahweh e é, portanto, considerado justo
por ele (cf. 26,2), é plano e reto, porque o próprio Yahweh o aplaina e remove
os obstáculos de seu caminho (Sls 25,10; 27,11; Pv 1,3; 2,9 e Sl 1,6)” (KAISER,
1969, posição 5447-5450) – note-se que Kaiser não reparou na alusão a Is 40,3-
5, onde o aplainar das veredas é símbolo da saída da Babilônia e volta à terra.
Já na oração do capítulo 63-64, o suplicante não se baseia em sua justiça, mas
reconhece a sua injustiça e apela à misericórdia de YHWH (63,15). Entretanto,
apresenta sua demanda a YHWH: “Ó YHWH, por que nos tornas errantes? Por
que endureces o nosso coração, para que te não temamos? Volta, por amor a teus
servos e das tribos da tua herança” (63,17). Na segunda parte da oração (64,1-1)
a comunidade orante suplica pela vinda de YHWH para que seja justa, reco-
nhecendo que ainda não o é: “Mas todos nós somos como o imundo, e todas as
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nossas justiças, como trapo da imundícia; todos nós murchamos como a folha,
e as nossas iniquidades, como um vento, nos arrebatam” (64,6 = 64,5 TM).
Reconhecida a própria injustiça, a culpa pela condição sob dominação, a súplica
é por libertação porque YHWH é justo e age em benefício dos seus (64,4-5).
Esta longa perícope é uma súplica nacional refletindo as terríveis cir-
cunstâncias e o amargo desespero diante da ostensiva negligência de
Deus em relação a seu povo (cf. 59,9-13, e ver Sls 44; 60; 74; 79; 80; 83;
85; 89; 90; 94, 106). A súplica do profeta se apoia sobre a disparidade
entre os milagres de Deus nos dias antigos (no Egito, diante do Mar
Vermelho, e, subsequentemente, no deserto) e seu abandono presente
de Israel (a destruição do Templo e das cidades de Judá) que tornou o
povo desesperado e o fez se afastar de Seu caminho. Após a introdução,
na qual a bondade do Senhor é proclamada através de uma declara-
ção genérica (v. 7), o profeta rememora em relação às suas bondades
anteriores (v. 8-9). De modo contrário à expectativa, porém, a nação
se rebelou contra o Senhor e, assim, tornou-se sua inimiga e ele guer-
reou contra ela (v. 10). Em sua hora de necessidade, a nação relembra a
compaixão de Deus no passado, especificamente os milagres no mar e
no deserto (v. 11-14). Note-se as conexões temáticas e linguísticas entre
esta seção e o Sl 106,4-10 (PAUL, 2012, p. 588).
Que aspectos ressaltam nesta breve descrição do uso dos termos para justiça em
Isaías? Em primeiro lugar, a noção de justiça é contextual, ou seja, varia con-
forme varia o contexto de escrita do livro, especialmente em relação aos agentes
da justiça. Em segundo, é uma noção predominantemente relacional e só pode
ser entendida no âmbito do relacionamento entre YHWH e seu povo, que é
tematizado na Bíblia Hebraica predominantemente como uma aliança. Em ter-
ceiro, a noção de justiça é teológica, fundada na ação de YHWH em favor de
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distributiva do pensamento clássico grego (especialmente em sua versão platô-
nica), baseado no princípio do cálculo proporcional: a cada um conforme lhe é
devido. Por exemplo, em Aristóteles (1996, p. 199):
O justo nesta acepção é, portanto, o proporcional, e o injusto é o que
viola a proporcionalidade. Neste último caso, um quinhão se torna
muito grande e outro muito pequeno, como realmente acontece na
prática, pois a pessoa que age injustamente fica com um quinhão muito
grande do que é bom e a pessoa que é tratada injustamente fica com um
quinhão muito pequeno. No caso do mal o inverso é verdadeiro, pois
o mal maior, já que o mal menor deve ser escolhido em preferência ao
maior, e o que é digno de escolha é um bem, e o que é mais digno de
escolha é um bem ainda maior.
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uma efetiva gramática das relações interpessoais em sociedade. Uma teoria crí-
tica do reconhecimento pode ser uma releitura adequada da noção de berith em
Isaías e na Escritura em geral.
Em segundo lugar, partindo do reconhecimento mútuo como base das rela-
ções justas e fieis, fazer justiça é tratar o outro como uma pessoa autônoma,
capaz de apresentar razões que justifiquem as suas escolhas de vida privada e
pública, de modo que sua liberdade não seja tolhida e seu modus vivendi seja
respeitado e valorizado como um modo plenamente humano de viver. Aqui,
evocamos o direito à justificação como o direito básico da justiça na teoria de
Forst (2012, p. 7):
Seres humanos autônomos formulam seus juízos morais e políticos in-
dependentemente, e os avaliam criticamente com a prática; ao mesmo
tempo, deles se requer que justifiquem tais juízos, que deliberem co-
letivamente a respeito de todas as suas consequências para as pessoas
afetadas em modos politicamente relevantes, e que decidam de acordo.
A primeira tarefa da justiça é tornar isto possível.
Síntese
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O que se deve justificar no campo ético? Segundo Forst (2002, p. 259), duas coisas:
(a) “a nível subjetivo, eu justifico ‘minhas’ decisões a mim mesmo e
àquelas pessoas que pertencem ao núcleo de minha identidade, elas
são importantes para mim por me dizem como me veem, como eu sou
para elas”; (b) “no aspecto de relevância comunitária, justificação ética
significa que uma comunidade com a qual indivíduos se identificam
procura responder à questão do que é bom ‘para nós’ com base em uma
auto compreensão comum”.
(pluralidade). Para ele, não só vivemos em uma era de diversidade, mas as demo-
cracias ocidentais já vivem debaixo do fato do pluralismo. Esse conceito é assim
definido em um glossário do livro Justiça e Democracia:
Fato do pluralismo: the fact of pluralism. A consequência do progres-
so das liberdades básicas – liberdade de consciência, de expressão, de
associação etc. - foi o surgimento de doutrinas conflitantes e irreconci-
liáveis entre si na cultura pública das democracias. Tornou-se impos-
sível para uma só doutrina reunir os sufrágios do conjunto dos cida-
dãos, salvo com o emprego da força. Por isso, a democracia não pode
ser justificada com base nos argumentos de uma doutrina específica
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Como, então, manter a coesão social diante da pluralidade? Como uma sociedade
pode ser unida e justa quando seus cidadãos não concordam unanimemente em
relação às grandes explicações da vida e da sociedade? O problema não é o plura-
lismo cultural, mas a pluralidade de doutrinas abrangentes – ou seja, de modos de
construção de sistemas de valores e de sistemas explicativos da vida como um todo
(também chamados de cosmovisões). No caso brasileiro, por exemplo, a pluraliza-
ção interna do Cristianismo (católico, protestante, pentecostal e neopentecostal)
fez surgir uma diversidade de doutrinas abrangentes, que competem no espaço
público pela hegemonia – causando, muita vez, problemas políticos de monta.
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Voltando a Rawls (2000, p. X):
Em conclusão, o problema do liberalismo político é saber como uma
sociedade democrática estável e justa, composta por cidadãos livres e
iguais, mas profundamente divididos por doutrinas - religiosas, filosó-
ficas e morais – incompatíveis entre si, pode existir de maneira durável.
Dito de outra forma, como é possível que doutrinas profundamente
opostas, cada uma delas querendo ser abrangente, coexistam e apoiem
a concepção política representada pela democracia constitucional?.
Para finalizar esta discussão mais teórica, uma longa mas importante cita-
ção. No próximo texto trataremos da questão da relação entre o pluralismo e a
democracia como solução para o dilema de Rawls.
Isaiah Berlin, com alguma ironia, destaca a inviabilidade de uma sociedade
não plural nos tempos atuais:
A noção de um todo perfeito, a solução última, na qual todas as boas
coisas coexistem, me parece não só meramente inalcançável – o que
seria um truísmo – como conceitualmente incoerente; eu não consi-
go compreender o que quer dizer uma harmonia desse tipo. Alguns
dentre os Grandes Bens não podem viver juntos. Isso é uma verda-
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Habermas (2006) sustenta a tese de que, em nosso mundo atual, o Estado (as
instituições políticas reconhecidas) já não é mais capaz de garantir aos cidadãos
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o livre e inteligente acesso aos meios de construção de sua identidade e de sua
cidadania. Em sua própria terminologia:
os motivos para uma participação dos cidadãos na formação de opinião
e da vontade política se nutrem, certamente, de projetos éticos de vida
e de formas culturais de vida. [...] Entre cidadãos só pode surgir uma
solidariedade, como sempre, abstrata e mediada juridicamente, se os
princípios de justiça encontrarem lugar no entramado mais denso de
orientações axiológicas de caráter cultural (HABERMAS, 2006, p. 111s.).
No debate público, então, além das doutrinas abrangentes de cunho secular, tam-
bém as religiosas devem estar presentes no esforço de alcançar consensos viáveis.
Isto porque “as tradições religiosas possuem uma força especial para articular
intuições morais, sobretudo em atenção às formas mais sensíveis da convivên-
cia humana” (HABERMAS, 2006, p. 139). É aqui que, no caso brasileiro, por
exemplo, encontramos os principais conflitos. A articulação religiosa de intui-
ções morais não pode ser feita, porém, de modo estratégico – ou seja, visando a
imposição de uma moralidade sobre o conjunto da sociedade. Os cidadãos reli-
giosos, portanto, devem participar da vida público de tal modo que a sua doutrina
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UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA JUSTIÇA – JUSTIÇA LEGAL
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tema de regras, senão na própria sociedade’ (WOLKMER, 1997, p. 179)
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Focalizei a questão do Direito nas sociedades modernas, e muito poderia ser dis-
cutido neste aspecto no tocante às relações entre Direito e religião. Entretanto,
agora volto minha atenção ao antigo Israel. Como exemplo de utilização deste
conceito para o estudo de sociedades antigas, como a de Israel, por exemplo, a
que nos dedicaremos no próximo Módulo de nosso curso, descreverei, a seguir,
de modo bastante sintético as práticas do direito no mundo oriental antigo, de
modo que possamos entender melhor textos bíblicos quando os estudarmos.
A partir de uma perspectiva histórico-antropológica, podemos afirmar que o
direito – nas sociedades antigas – exerce duas funções básicas, a de arbitragem de
litígios e a de formação da vontade coletiva. A primeira se refere à estabilização de
expectativas de comportamento, no caso de conflito, ao passo que a formação coletiva
da vontade se refere à escolha e realização efetiva de fins capazes de consenso. A cada
função correspondem dois processos gerais de ação, um motivado por normas; outro
motivado por interesses, o que pode ser sumariado por meio do seguinte quadro:
Quadro 1 - Funções do Direito
Direito faticamente
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Poder legítimo
vigente
Figura 1 - A autorização do poder através do direito sagrado e a sanção do direito através do poder social
Fonte: adaptado de Habermas (1997, p. 180).
A partir deste modelo podemos, por exemplo, entender melhor alguns dos fenô-
menos jurídicos apresentados no Antigo Testamento. Vejamos o caso de Amós
5,12-15: “Pois sei que são muitas as vossas transgressões, e graves os vossos peca-
dos; afligis o justo, aceitais peitas, e na porta negais o direito aos necessitados.
Portanto, o que for prudente guardará silêncio naquele tempo, porque o tempo
será mau. Buscai o bem, e não o mal, para que vivais; e assim o Senhor, o Deus
dos exércitos, estará convosco, como dizeis. Aborrecei o mal, e amai o bem, e
estabelecei a justiça na porta. Talvez o Senhor, o Deus dos exércitos, tenha pie-
dade do resto de José”. O texto se refere aos julgamentos (arbitragem de conflitos)
que eram realizados nas portas das cidades, como meio de solução de confli-
tos locais. Amós denuncia a corrupção desses tribunais “informais”, nos quais
as decisões se baseiam no suborno e na negação do direito dos pobres. Por isso,
exorta aos anciãos que exercem o juízo: “Aborrecei o mal e amai o bem, estabe-
lecei a justiça na porta”.
Há muito mais que poderia ser estudado sobre o direito e a coesão social,
entretanto os dados aqui descritos nos permitem formar uma noção básica das
relações entre o Direito e a ordem sociocultural – tanto no caso de sociedades
antigas (útil para o estudo exegético), quanto no caso de sociedades modernas e
contemporâneas (útil para o estudo da Teologia). Na disciplina de Ética Pública
discutiremos algumas das questões jurídicas e políticas que afetam de modo
mais direto a vida das instituições religiosas – de maneira que este texto pode
ser entendido como uma introdução ao estudo de temas mais amplos e desafia-
dores em outras disciplinas de nosso Bacharelado em Teologia.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
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sumana em que vivem milhões de latino-americanos e que se exprime,
por exemplo, em mortalidade infantil, em falta de moradia adequada,
em problemas de saúde, salários de fome, desemprego e subemprego,
desnutrição, instabilidade no trabalho, migrações maciças, forçadas e
sem proteção. Somam-se a isto as angústias produzidas pelo abuso do
poder, típicas de regime de força... Angústias ante uma injustiça sub-
missa e manietada (MUÑOZ, 1981, p. 14).
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ela não o faz, deixa de ser povo de Deus, e se identifica com o mundo; torna-se
sal sem sabor, não prestando para nada. Tenhamos compaixão de todas as pes-
soas. Anunciemos o Evangelho de Jesus Cristo, a boa notícia de que Deus pode
mudar a vida das pessoas!
Assim como Jesus fez acompanhar sua pregação de sinais visíveis do amor
de Deus pelos pecadores, também a Igreja compassiva, na pós-modernidade,
fará sua pregação da salvação ser acompanhada dos sinais do Reino. Quem
ama, é compassivo e solidário com a pessoa toda, não faz divisão entre “alma”
e “corpo”, pregando para salvar “a alma” e deixar o “corpo” morrer. Jesus cui-
dava das doenças do corpo, das doenças espirituais, dos problemas econômicos
e sociais. Paulo, o evangelista aos gentios, recebeu a recomendação de “nos lem-
brar dos pobres, o que eu tive muito cuidado de fazer” (Gl 2,10). A diaconia cristã
é a expressão concreta da compaixão evangelizadora da Igreja. A diaconia é o
meio pelo qual a Igreja pratica as boas-obras para as quais cada cristão foi cha-
mado por Deus (Ef 2,10).
Precisamos discernir quais são as boas-obras mais urgentes, ou quais as for-
mas mais importantes de ação diaconal. No âmbito da economia, por exemplo, a
esmola já perdeu a sua eficácia (que tinha em períodos muito antigos na história
econômica da humanidade). O socorro econômico por meio da esmola é insufi-
ciente para livrar os pobres da miséria. É preciso ações mais eficazes. Por exemplo:
projetos sociais de capacitação profissional, projetos sociais de desenvolvimento
comunitário; movimentos sociais de luta contra o desemprego, contra a fome;
movimentos políticos pela adoção de mecanismos de defesa econômica dos cida-
dãos, garantidos pelo Estado – por exemplo: renda mínima, salário educação etc.
Em uma palavra, é preciso que a Igreja atue de forma a contribuir para que a
cidadania seja uma verdade prática, e não apenas um direito constitucional. Para
que a mensagem do Reino pregada pela Igreja seja entendida, é necessário que a
Igreja demonstre os sinais do Reino através de sua vida e da vida de seus mem-
bros. Em nossa sociedade, na qual a pessoa só é vista como consumidora, ou
como produtora de bens, precisamos ajudar a resgatar a cidadania das pessoas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito bem! Chegamos ao fim de mais uma Unidade de nossa disciplina Teologia
Pública. Espero que você tenha sido edificado e desafiado com as nossas discus-
sões sobre o tema da justiça.
Tivemos a oportunidade de, nesta Unidade, destacar a complexidade do
tema da justiça. Diante dessa complexidade, o uso cotidiano da palavra justiça
se mostra bastante impreciso e restritivo (em especial, justiça não pode ser vista
apenas como relacionada ao direito ou ao sistema judiciário).
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A noção de justiça é uma das mais importantes noções do pensamento e da
prática políticos ou públicos. A justiça é, também, um valor importante para o
ser humano - quando nos sentimos injustiçados ficamos motivados a agir para
que a situação de injustiça não se perpetue. O ser humano tem sede de justiça.
Vimos, também, porém, que a justiça humana se diferencia da justiça divina
- a tal ponto que se pode dizer que somos injustos e, por isso, necessitamos da
justificação como ato de Deus que nos torne justos e nos possibilite praticar a
justiça segundo o modelo cristológico.
Discutimos as dimensões ou contextos da prática da justiça. Na dimensão
ético-moral enfrentamos a difícil questão da convivência com a pluralidade de
visões e práticas éticas e morais nas sociedades democráticas - e os riscos que
isto traz para uma visão religiosa que não se abra à tolerância.
Na dimensão legal, discutimos o papel do direito na vida social e suas implica-
ções também para a leitura bíblica. Neste campo, há muito que se pesquisar, ainda,
na Teologia Pública - quem sabe um tema de que você se ocupe mais adiante!
Finalmente conversamos sobre a dimensão socioeconômica da justiça, muito
relevante em um país em que a injustiça social é gritante. Buscar a justiça nesta
dimensão é, em certo sentido, a base para a implementação da justiça nas suas
outras dimensões. Um grande desafio.
Abraços e que Deus abençoe a todas e todos.
4. De acordo com o texto da disciplina: “Em primeiro lugar, fazer justiça é tratar o
outro como irmã ou irmão, como parceiro de uma _________. A berith em Isaí-
as é fundamentalmente um relacionamento de ____________ baseado no agir
de YHWH, logo, é uma __________ e não uma obrigação. É a fidelidade que
fundamenta as normas consuetudinárias da ___________ enquanto ‘direito’. ”
A sequência correta de palavras que completam a citação é:
a) Fidelidade, dádiva, aliança, justiça.
b) Justiça, aliança, fidelidade, dádiva.
c) Dádiva, aliança, fidelidade, justiça.
d) Fidelidade, dádiva, aliança, justiça.
e) Aliança, fidelidade, dádiva, justiça.
Entre os vários campos de significado, Maet designava a deusa egípcia (filha do deus
Sol, Re) da verdade e da justiça. Unia intimamente agir humano e ação cósmica. Nesse
sentido, poderia descrever-se como “verdade, justiça, ordem cósmica”: a retidão, a justa
condição na natureza e na sociedade, estabelecida no ato da criação. A maet é a ordem
da criação imanente ao mundo, segundo a qual o ser humano se deve orientar e realizar
em cada ação ordenada. A ideia da maet está ancorada mais na ordem social e ética e
o seu significado nuclear tem mais a ver com a justiça do que com a ordem cósmica. A
maet é o fundamento duma ética ou da ordenada relação do ser humano com tudo o
que ele tem de ser e fazer.
Na Mesopotâmia encontramos o conceito sumério dos me, só em parte análogo. Os di-
versos me eram um complexo sistema de ordenações, que governavam imutavelmente
toda a actividade humana; os me eram fundamento, configuração e fonte de conheci-
mento de tudo o que estruturava a sociedade humana: a ordem e organização cósmica,
política e ética da terra.
As três palavras mišpāţ, şedeq e şedāqāh aparecem frequentemente em contexto de
justiça salvadora, que inclui uma ação de amor gratuito e de misericórdia benfeitora.
É importante notar que as três palavras aparecem frequentemente em paralelo com
conceitos associados à aliança de Deus com Israel, como hesed (“bondade, misericórdia,
amor”) e ’emet (“verdade, fidelidade”). Estas ligações fazem sobressair em mišpāţ, şedeq
e şedāqāh o sentido de uma atitude de bondade social activa, sempre disposta a atender
à necessidade do outro e a promover o seu bem: apontam para uma bondade genero-
sa, fiável e fiel. Portanto, o seu significado vai para além da justiça estrita; é uma justiça
libertadora; refere-se ao melhoramento das condições do necessitado na sociedade,
melhoramento que, no plano do governo, se manifesta por medidas legais, adequadas
ao fim em vista.
Recapitulando os elementos da justiça na Bíblia hebraica, encontramos em primeiro lu-
gar uma relação entre pessoas e não simplesmente uma lei. A pessoa será justa ou in-
justa, não por cumprir rigorosamente os preceitos em causa, mas por se relacionar justa
ou injustamente com outra pessoa. A justiça bíblica é, então, a relação que promove e
realiza o sentido radical da vida humana.
Fonte: Vaz (2012, on-line).
MATERIAL COMPLEMENTAR
Conheça um pouco mais sobre Teologia Pública e inclusão social, um problema grave no mundo
atual.
Web: <www2.pucpr.br/reol/index.php/5anptecre?dd99=pdf&dd1=15567>
Material Complementar
REFERÊNCIAS
1. D.
2. E.
3. B.
4. E.
5. D.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
TEOLOGIA PÚBLICA DO
IV
UNIDADE
RECONHECIMENTO
Objetivos de Aprendizagem
■■ Conceituar reconhecimento à luz da filosofia contemporânea.
■■ Descrever o conceito de aliança na Escritura.
■■ Explicar a dimensão do cuidado no reconhecimento.
■■ Explicar a dimensão da tolerância enquanto reconhecimento.
■■ Explicar a dimensão da amizade enquanto reconhecimento.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O conceito de reconhecimento na Filosofia Contemporânea
■■ Um olhar bíblico sobre o reconhecimento (aliança)
■■ Uma teologia pública do reconhecimento – Uma teologia do cuidado
■■ Uma teologia pública do reconhecimento – Uma teologia da
tolerância
■■ Uma teologia pública do reconhecimento – Uma teologia da amizade
165
INTRODUÇÃO
Introdução
166 UNIDADE IV
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O CONCEITO DE RECONHECIMENTO NA FILOSOFIA
CONTEMPORÂNEA
que reforça e naturaliza as diferenças sociais no país; e (c) enfim, a cidadania das
classes populares no Brasil é marcada por um déficit simbólico que limita as pos-
sibilidades de exercício dos direitos de cidadania desses grupos.
Finalmente, o conceito de reconhecimento desempenha um importante papel
na construção de uma teologia pública, na medida em que nos fornece meios
não só para a compreensão da vida em sociedade, mas também para a discus-
são sobre a mudança social em perspectiva cristã e pública.
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A CATEGORIA DO RECONHECIMENTO
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giosas vinculadas à análise e proposta de soluções para os problemas humanos.
É nesta dimensão que podemos inserir a questão da justiça social. Esta seria a
concretização da dimensão cidadã do reconhecimento, posto que não é possível
haver plena igualdade de direitos em situações de desigualdade socioeconômica
intensa. A desigualdade social provocada por relações econômicas injustas, por
exemplo, é a forma básica de desrespeito da dimensão cidadã do reconheci-
mento. A ela se acrescem outras formas de desrespeito causadas pelas demais
dimensões sistêmicas da sociedade. No caso do sistema político, a corrupção,
o populismo e o clientelismo são formas bastante conhecidas de desrespeito.
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estilos privados de vida, ou seja, com a valorização da contribuição peculiar de
cada indivíduo ou grupo social para o bem geral da sociedade. Segundo Honneth
(2003, p. 198), “os sujeitos humanos precisam [...] além da experiência da dedica-
ção afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita
referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas”. Ora, é no
interior de uma comunidade de valores, com seus quadros partilhados de sig-
nificação, que os sujeitos podem encontrar a valorização de suas identidades
peculiares. Em decorrência do pluralismo,
nas sociedades modernas, as relações de estima social estão sujeitas a
uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, com
os meios da força simbólica e em referência às finalidades gerais, o va-
lor das capacidades associadas à sua forma de vida (HONNETH, 2003,
p. 207).
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UM OLHAR BÍBLICO SOBRE O RECONHECIMENTO
(ALIANÇA)
que no Antigo Testamento a berith entre Deus e Israel pode ser descrita de dois
modos teológicos: (a) no modo da graça e (b) no modo da lei. É preciso, então,
em cada texto estudado, analisar bem que tipo de relacionamento está presente.
Muito bem! Para concluir nossa reflexão sobre o conceito de aliança, passaremos,
agora, à interpretação de sua ressignificação na Epístola aos Hebreus capítulos
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8-10. Assim, chegaremos ao fim de nossa discussão teológico-bíblica sobre o con-
ceito de aliança. Fim, porém, que é, de fato, um novo começo. O que estudamos
nesta disciplina é apenas um ponto de partida para você continuar refletindo
sobre o que Deus significa em sua vida e em seu ministério. A teologia bíblica
não termina ‘aqui’, ela continua em sua vida, no cumprimento da vontade gra-
ciosa de Deus para toda a humanidade.
Aos Hebreus é um dos livros mais interessantes do Novo Testamento. Sua lin-
guagem e teologia são bem peculiares – pertencem mais ao campo dos diálogos
e críticas com a fé e teologia de judeus que tinham uma atitude mais aberta em
relação ao mundo cultural greco-romano do que com a fé e teologia de fariseus,
saduceus, essênios e dos judeus em geral. O seu debate principal com o Judaísmo
não tinha a ver com a lei enquanto tal (como em Paulo, por exemplo), mas com o
sistema sacrificial-sacerdotal propriamente dito. Por isso, a imagem de Jesus mais
usada em Hebreus é a do sumo-sacerdote que também é o cordeiro sacrificado
pelo pecado. Não poderemos, é evidente, discutir esta carta em sua totalidade.
Nosso foco é o conceito da berith, discutido nos capítulos 8-10 de Hebreus.
Tendo em vista que é um texto longo, não o reproduzirei aqui, mas trabalharei
da seguinte maneira: (a) farei uma síntese da argumentação desses capítulos; e (b)
darei ênfase maior aos trechos em que o autor de hebreus cita o texto de Jeremias
31 que estudamos. Então, para acompanhar o que vem a seguir, será muito bom
que você, primeiro, leia Hebreus capítulos 8-10, para poder acompanhar a apre-
sentação e refletir criticamente sobre ela. Ademais, Hebreus 8-10 é um midraxe
(termo hebraico que podemos traduzir por ‘comentário’) sobre Jeremias 31,31-
34, por isso é bom que você leia também esta perícope do Antigo Testamento.
lugar da antiga que já está desaparecendo [tudo isto no capítulo 8]; (5) os sacri-
fícios e sacerdotes da antiga berith eram imperfeitos e ineficazes; (6) o sacrifício
e o sacerdócio do Messias Jesus, porém, são perfeitos e plenamente eficazes; (7) e
só foram realizados uma vez, e sua eficácia dura para sempre [tudo isto no capí-
tulo 9]; (8) a ineficácia dos sacrifícios da antiga aliança já havia sido ensinada
pelos profetas; logo (9) Deus faz uma nova berith com os pecadores que é eficaz
e definitiva [tudo isto em 10,1-18].
O texto de Jeremias 31 é citado duas vezes: “8E, de fato, repreendendo-os, diz:
Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança com a casa de Israel e com
a casa de Judá, 9não segundo a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os
tomei pela mão, para os conduzir até fora da terra do Egito; pois eles não conti-
nuaram na minha aliança, e eu não atentei para eles, diz o Senhor. 10Porque esta
é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor:
na sua mente imprimirei as minhas leis, também sobre o seu coração as inscre-
verei; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. 11E não ensinará jamais cada
um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece ao Senhor;
porque todos me conhecerão, desde o menor deles até ao maior. 12Pois, para com
as suas iniquidades, usarei de misericórdia e dos seus pecados jamais me lem-
brarei” (Hb 8,8-12); e “15E disto nos dá testemunho também o Espírito Santo;
porquanto, após ter dito: 16Esta é a diatheke que farei com eles, depois daque-
les dias, diz o Senhor: Porei no seu coração as minhas leis e sobre a sua mente
as inscreverei, 17acrescenta: Também de nenhum modo me lembrarei dos seus
pecados e das suas iniquidades, para sempre. 18Ora, onde há remissão destes, já
não há oferta pelo pecado” (Hb 10,15-18).
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de novos sacrifícios, pois o seu é perfeito. Anula, também, a necessidade de
sacerdócio, pois sem sacrifícios não há necessidade de sacerdotes. Como sumo
sacerdote, o Messias anula a necessidade do Templo e dos sacrifícios nele rea-
lizados, pois sem sumo-sacerdote terreno, chega ao fim a linhagem sacerdotal.
Note como o argumento é circular: sem sacrifícios não há sacerdote, sem sumo
sacerdote terreno não há sacrifícios.
Historicamente, a profecia da nova berith não foi realizada em Israel. Após
o retorno de algumas das lideranças sacerdotais e de escribas do exílio babilô-
nico para Jerusalém, o Templo foi reconstruído, o sacerdócio e o sacrifício foram
reinstalados e a lei de Deus passou a ser ensinada pelos escribas dos sacerdo-
tes – tudo isso aprendemos lendo os livros de Esdras e Neemias. No período de
Jesus, o Judaísmo oficial já havia consolidado a manutenção da antiga berith criti-
cada e tornada obsoleta por Jeremias e Ezequiel, de tal modo que a ideia de uma
nova berith ficou esquecida ou obsoleta, com a exceção dos essênios [que eram
considerados hereges pelos fariseus e saduceus] e pelos seguidores de Jesus. Os
seguidores de Jesus entenderam seu ministério como o início dos ‘dias’ prenun-
ciados por Jeremias. O autor de Hebreus, em particular, descreveu Jesus como
sacerdote e cordeiro celestiais, que coloca um fim ao antigo modo de lidar com o
pecado humano, e inaugura definitivamente a nova berith. Já na tradição paulina
e na dos Evangelhos, a noção de nova aliança aparece – 1Co 11,25 e Mc 14,24 –
temática que a carta aos Hebreus desenvolve com grande detalhe.
Qual é a novidade principal da nova berith em Hebreus para os seres huma-
nos? O acesso a Deus agora está aberto para todas as pessoas, pois o sistema
sacrificial-sacerdotal chegou ao seu fim e, com ele, o interdito (tabu) que impedia
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UMA TEOLOGIA DO CUIDADO
Podemos começar com uma declaração de louvor: “Eu sou pobre e necessitado,
porém o Senhor cuida de mim; tu és o meu amparo e o meu libertador; não te
detenhas, ó Deus meu!” (Sl 40,17). Diante de sua condição miserável, o salmista
exclama: o Senhor cuida de mim, ou, com um pouco mais de exatidão: o Senhor
pensa em mim, ele atenta para mim, ele me considera. Por que o Senhor pensa
em mim, ele é ‘meu amparo’ e ‘meu libertador’. Cuidar, então, indica a ação de
Deus que pensa na pessoa necessitada e age para socorrê-la e libertá-la. Neste
sentido, o cuidar de Deus é sinônimo do lembrar-se de Deus (cf. Gn 8,1; 19,29;
30,22; Êx 2,24; Sl 78,39; 104,45).
Outro verbo que pode ser traduzido por cuidar é drs: “terra de que cuida
YHWH, vosso Deus; os olhos de YHWH, vosso Deus, estão sobre ela continua-
mente, desde o princípio até ao fim do ano” (Dt 11,12). Aqui, cuidar é sinônimo
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despertaram e lhe disseram: Mestre, não te importa que pereçamos?” (Mc 4,38)
– o clamor dos discípulos tem sua origem na sensação de que Jesus não estava
cuidando deles, não os estava guardando em uma tempestade. Ainda referente a
Jesus, temos Jo 10,13: “O mercenário foge, porque é mercenário e não tem cui-
dado com as ovelhas” – Jesus é o bom pastor que dá a vida pelas ovelhas, seu
cuidado por elas chega ao ponto do auto-sacrifício. Temos, também, Lucas:
“Marta agitava-se de um lado para outro, ocupada em muitos serviços. Então,
se aproximou de Jesus e disse: Senhor, não te importas de que minha irmã tenha
deixado que eu fique a servir sozinha? Ordena-lhe, pois, que venha ajudar-me”
(10,40) – a queixa de Marta tem a ver com a falta aparente de parceria de Maria,
que não a ajudava no serviço doméstico da hospitalidade – a resposta de Jesus é
bem conhecida: entre dois cuidados, deve-se escolher o mais importante. Tendo
Deus como sujeito, encontramos os seguintes exemplos do uso do verbo melein:
“Porque na lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca ao boi, quando pisa o
trigo. Acaso, é com bois que Deus se preocupa?” (1Co 9,9) e “lançando sobre ele
toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós” (1Pd 5,7) – textos que
carregam as mesmas acepções dos verbos no Antigo Testamento.
Ainda o mesmo verbo melein é usado tenso seres humanos como sujeitos,
por exemplo, na fala de Judas, tesoureiro da comunidade de Jesus: “Isto disse
ele, não porque tivesse cuidado dos pobres; mas porque era ladrão e, tendo a
bolsa, tirava o que nela se lançava” (Jo 12,6) – Judas cuidava de seus próprios
interesses e não do dos necessitados – temos aqui a perversão do cuidado, na
forma do egoísmo, da negação da parceria. “Então, todos agarraram Sóstenes,
o principal da sinagoga, e o espancavam diante do tribunal; Gálio, todavia, não
O filósofo que mais se ocupou, no século XX, com o tema do cuidado na exis-
tência humana foi Martin Heidegger – tema a que dedicou todo o capítulo seis
da primeira parte de sua obra magistral Ser e Tempo (a tradução é de Márcia de
Sá Cavalcanti, que optou por traduzir Dasein (normalmente traduzido por exis-
tência) como pre-sença e Sorge (normalmente ‘cuidado’ ou ‘angústia’) por cura),
e o capítulo três da segunda parte de Ser e Tempo (em que discorre sobre a tem-
poralidade como sentido ontológico do cuidado), além de o retomar em diversas
outras obras e entrevistas. Para Heidegger (1989) (e simplificando ao máximo
em função de nossos interesses específicos), o ser humano existe na decadência,
ou seja, ao nascer é jogado em um mundo que não escolheu, para uma vida que
não articulou – nos termos do próprio Heidegger: “O ser-no-mundo já é sempre
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Na angústia se dá a possibilidade do ser do Dasein, angústia, então, como
categoria constitutiva do existir, e não como ‘angústia’ causada por alguma situa-
ção. Essa angústia existencial se inscreve em nós desde (pelo menos) o momento
do nascimento quando, ‘jogados’ ao mundo, nos vemos obrigados a respirar,
ouvir, ver, ser tocados, ser situados no espaço-tempo – quando nos tornamos
‘conscientes’ de nossa dependência – de nosso viver-com-o-mundo e com-os-
-outros. Ao nascer, tornamo-nos ‘cônscios’ de nossa corporeidade situada na
espacialidade e temporalidade. Essa angústia existencial que possibilita o Dasein
é simultaneamente cuidada:
esse ser desentranha-se com a cura. A elaboração ontológica desse
fenômeno existencial fundamental exige a sua delimitação frente aos
fenômenos que, de imediato, podem identificar-se com a cura. Esses
fenômenos são vontade, desejo, tendência, propensão. A cura não pode
derivar-se desses fenômenos, pois eles mesmos nela estão fundados”
(HEIDEGGER, 1989, p. 245).
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pastoral pode ser visto como a descrição de uma forma inautêntica (no sentido
heideggeriano) de cuidado pastoral. No exercício do poder pastoral (que é o cui-
dado delimitado pela institucionalidade da Igreja), o pastor usa as pessoas como
utensílios e cuida da Instituição Eclesial como se fosse pessoa – o que em lingua-
gem teológica costumamos descrever com o confronto entre carisma e poder,
instituição e comunidade. Para que o cuidado pastoral não se degenere em poder
pastoral precisamos, então, tratar a Instituição como um utensílio e as pessoas
como pessoas – somos fiéis às pessoas de quem cuidamos, e somos usuários da
Instituição em que trabalhamos.
O cuidado é, então, simultaneamente: (a) o nosso modo de ser-no-mundo,
ou nossa essência; (b) o nosso modo de nos relacionarmos conosco mesmo,
com os outros (inclusive Deus) e com os utensílios enquanto parceiros; e
(c) o nosso modo de ajudarmos, a nós e a outros, a viver de modo autên-
tico (livre, no sentido paulina da existência em Cristo). Assim, o cuidado
pastoral é uma forma especializada do próprio existir humano. Exercemos
bem o cuidado pastoral quando o fazemos no âmbito da solicitude, reconhe-
cendo as pessoas com quem convivemos. Exercemos mal o cuidado pastoral
e o transformamos perversamente em poder pastoral quando o exercemos
no âmbito da ocupação, desrespeitando as pessoas com quem convivemos.
Por fim, exercemos mal o cuidado pastoral quando o reduzimos a uma ati-
vidade eclesiástica e não percebemos que também somos chamados a cuidar
da sociedade em que vivemos.
A seguir, discutiremos o amor ao próximo como a forma fundamental do
cuidado em geral e do cuidado pastoral em particular.
MESMO
Muito bem, colegas, vamos conversar sobre o amor ao próximo como expressão
do cuidado cristão e do reconhecimento interpessoal.
A exortação é bem conhecida, assim como seu contexto literário nos Sinóticos:
(Mt 22,39; Mc 12,33; Lc 10,27); e seu uso em Paulo: (Rm 13,9-10; Gl 5,14) e se ori-
gina da norma em Lv 19,18: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos
do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou YHWH”. Nos
Sinóticos, o contexto literário é o das disputas de Jesus contra saduceus e fariseus.
Após encerrar uma disputa com os saduceus a respeito da ressurreição, Jesus é
questionado por um escriba fariseu a respeito do ‘maior mandamento’ – ou seja,
o fariseu queria saber se Jesus era um bom intérprete da Torá. A resposta de Jesus
foi direto ao ponto e não deixou ao fariseu alternativa para replicar: “Entretanto,
os fariseus, sabendo que ele fizera calar os saduceus, reuniram-se em conselho. E
um deles, intérprete da Lei, experimentando-o, lhe perguntou: Mestre, qual é o
grande mandamento na Lei? Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus,
de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o
grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os
Profetas” (Mt 22,34-40). Já nos escritos paulinos (que antecedem à escrita dos
Evangelhos), a interpretação da Lei por Paulo é mais sintética: “Com efeito: Não
adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiça-
rás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao
teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o
cumprimento da lei é o amor” (Rm 13,9-10) e “Porque vós, irmãos, fostes cha-
mados à liberdade. Não useis, então, da liberdade para dar ocasião à carne, mas
servi-vos uns aos outros pelo amor. Porque toda a lei se cumpre numa só pala-
vra, nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,13-14).
Em seu estudo do cuidado de si, Foucault (2008) desvendou as tramas e con-
teúdos do conceito no pensamento grego de Platão ao século II d.C. e o comparou
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com o pensamento patrístico. Não se ocupou, porém, de comparar o cuidado
de si grego com o amor a si mesmo do Novo Testamento (e da tradição judaica).
Façamos, então, esta comparação, começando com os escritos de Foucault. Em
primeiro lugar, o cuidado de si na tradição de Platão:
com efeito, parece-me que o que caracterizará o cuidado de si na tradi-
ção platônica e neoplatônica é, por um lado, que o cuidado de si é, por
um lado, que o cuidado de si encontra sua forma - forma esta, senão
única, ao menos absolutamente soberana - e sua realização no conhe-
cimento de si. Em segundo lugar, igualmente característico da corrente
platônica e neoplatônica, será o fato de que este conhecimento de si,
como expressão maior e soberana do cuidado de si, dá acesso à verdade
e à verdade em geral. Finalmente, em terceiro lugar, será característico
da forma platônica e neoplatônica do cuidado de si, o fato de que o
acesso à verdade permite, ao mesmo tempo, reconhecer o que pode
haver de divino em si. Conhecer-se, conhecer o divino, reconhecer o
divino em si mesmo, é fundamental, creio, na forma platônica e neo-
platônica do cuidado de si (FOUCAULT, 2008, p. 96).
todo caso, somente alguns podiam levá-la à sua meta. E a meta da prática
de si é o eu. [...] Meta terminal da vida para todos os homens, forma rara
de existência para alguns e somente alguns: temos aí, se quisermos, a
forma vazia daquela grande categoria trans-histórica que é a categoria da
salvação (FOUCAULT, 2008, p. 155-157).
Comecemos com as diferenças formais: (a) o amor a si mesmo não é restrito a algu-
mas pessoas: todos podem amar a si mesmos, de modo que não há um elitismo
como o presente no cuidado de si (platônico ou helenístico); (b) o amor a si mesmo
não se caracteriza como um preparo para a velhice, quanto então a pessoa se torna
sujeito, ele tem a ver com cada instante da vida e não apenas com o seu fim; (c) a sua
função não é predominantemente crítica, mas formadora, o inverso da tradição hele-
nística. Destacadas as diferenças formais, as semelhanças formais ficam evidentes.
Passemos agora às diferenças de conteúdo e prática: (a) o amor a si mesmo
não é acesso ao conhecimento do divino, muito menos do ‘divino em si mesmo’,
como na tradição platônica – é preciso primeiro ser amado por Deus e amar a
Deus para poder amar a si mesmo; (b) a meta do amor a si mesmo não é o gover-
nar a vida dos outros, ou praticar a justiça na polis, mas servir ao próximo em
todas as dimensões da vida, não só na política; sem ser anulado em sua própria
subjetividade; e (c) o amor a si mesmo encarna uma forma cheia de salvação – a
libertação oferecida graciosamente por Deus no Messias Jesus – uma salvação que,
por um lado, transcende a história, mas, por outro, insere de fato o sujeito que
ama na história, neste mundo, para nela viver no presente a futuridade esperada;
e (d) o amor, na tradição cristã, não é uma virtude, mas o fruto do Espírito, e se
configura como uma subjetividade cheia, mas não ensimesmada (cf. Gl 5,22-23;
1Co 13 – em que Paulo descreve o agapao, verbo que está nos textos estudados).
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(2) Amar a si mesmo significa cuidar de si mediante boas relações amoro-
sas com os outros (solicitude), uso adequado de utensílios (ocupação),
trabalho sem explorar o corpo, meditar sobre si mesmo (habilidades,
limites, projeto de vida etc.), buscar a excelência nas atividades de traba-
lho, vida e lazer, manter uma disciplina pessoal no estudo, no descanso,
no trabalho etc.
(3) Amar a si mesmo significa também viver em uma comunidade de cui-
dado mútuo, estar aberto a receber a instrução e a ajuda de irmãs e
irmãos mais experientes e sábios, participando de projetos comuns
de vida espiritual e missão – afinal de contas, se não amamos o pró-
ximo, não amamos a nós mesmos. De fato, poderíamos dizer, aqui,
amar a mim mesmo como um próximo (ou, na linguagem de Ricouer:
o si-mesmo como outro).
(4) Amar a si mesmo significa resistir às tentações do presente século: evi-
tar o consumismo, o individualismo, o culto ao corpo, a indiferença
para com o sofrimento do próximo, a falta de compromisso com o bem
comum da sociedade etc. Significa, também, resistir à tentação reli-
giosa de auto-sacrifício ensimesmado – em outras palavras, servir sem
ser explorado (seja na família, na igreja, no trabalho, na sociedade etc.).
(5) Amar a si mesmo significa cuidar de si mediante a prática da vida devo-
cional (pessoal e comunitária): estudo da Escritura, meditação, oração,
louvor, cultivar o silêncio, contemplar a Deus em sua criação, jejum
etc. – afinal de contas, se não amamos a Deus acima de todas as coisas,
não conseguiremos nos amar a nós mesmos – e amando a Deus, pode-
mos viver na liberdade messiânica, a meta final do cuidado de si cristão.
preocupar e definir quem é meu próximo, mas em saber como ser próximo,
em viver a proximidade como nosso modo de ser no mundo. No século XX,
foi o filósofo judeu Emmanuel Levinas quem mais profundamente tratou da
questão do próximo (outro), trazendo à luz o que há de melhor no pensa-
mento judaico sobre o tema. Vejamos uma pequena síntese de seu conceito
de alteridade e proximidade:
mas o sujeito é exposto à alteridade antes de poder se conscientizar
de si e tomar uma posição ética. Esta vizinhança sem distância, esta
imediaticidade de uma abordagem que permanece abordagem sem
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circunscrever aquilo que aborda, sem localizá-lo lá, Levinas chama
de proximidade. O outro, meu próximo (le prochain) me concerne,
me aflige com uma proximidade mais próxima que a proximidade
de entidades. O relacionamento com a alteridade, que é o que escada
à apreensão, excede toda apreensão, é infinitamente remoto e é, pa-
radoxalmente falando, a imediaticidade mais extrema, proximidade
mais próxima do que a presença, contato obsessivo (COHEN, 1998,
p. XXV).
Desta forma, a questão ‘quem é meu próximo’ recebe uma resposta insuspeitável
em um olhar ingênuo: todo a criação é meu próximo – coisas, animais, plan-
tas, pessoas etc. Tudo, enfim, é meu próximo, de modo que cuidar do próximo
não se restringe a amar outras pessoas e cuidar delas, mas engloba o cuidar de
tudo o que existe. Nesta conexão, cabe a reflexão de Derrida (2002) sobre nossas
relações éticas com os animais (e poderíamos estendê-las a todas as coisas). À
pergunta “os animais podem sofrer”, como origem de uma ética animal, Derrida
(2002) contrapõe a pergunta “eles podem não poder”, como modo de subversão
de uma eventual aplicação de direitos a animais, o que os reduziria ao âmbito do
jurídico – reducionismo ético por excelência:
“Eles podem sofrer?” consiste em se perguntar: “Eles podem não po-
der?”. E o que dizer desse não-poder? Da vulnerabilidade sentida a par-
tir desse não poder? Qual é este não-poder no âmago do poder? Qual
é a qualidade ou a modalidade desse não-poder? O que levar em con-
sideração? Que direito conferir-lhe? Em que isso nos concerne? Poder
sofrer não é mais um poder, é uma possibilidade sem poder, uma possi-
bilidade do impossível. Aí reside, como a maneira mais radical de pen-
sar a finitude que compartilhamos com os animais, a mortalidade que
pertence à finitude propriamente dita da vida, à experiência da compai-
xão, à possibilidade de compartilhar a possibilidade desse não-poder, a
possibilidade dessa impossibilidade, a angústia dessa vulnerabilidade e
a vulnerabilidade dessa angústia (DERRIDA, 2002, p. 55).
Amar o próximo = cuidar do próximo passa, assim, a ser visto não como uma
tarefa, mas como um modo de ser, de fato, como o modo de ser do humano
(lembrando sempre de que amar ao próximo como a si mesmo). Desta forma, o
cuidado pastoral pode ser reconfigurado a partir da nossa existência humana.
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do ministério, tais como a palavra, a gestão, a missão. A ambiguidade do termo
é, neste caso, muito benvinda e devemos tirar proveito dela em nossa reflexão e
ação pastorais. Cuidar é, então, uma das formas públicas de viver a fé evangélica
e um dos desafios temáticos e práticos à teologia pública cristã.
A tolerância é uma prática e um valor social que pode ser classificado como per-
tencente à dimensão simbólica ou cultural do reconhecimento, e tem a ver com
o respeito e a estima pelo estilo de vida, ou pelas crenças, ou pelos valores que
se diferenciam dos ‘nossos’ próprios.
“Certa interpretação da tolerância é um componente central de qual-
quer variante de liberalismo político. Formulando a noção no grau
mais elevado de abstração possível, uma comunidade política liberal
justa é aquela que propicia a seus cidadãos as condições para que cada
um possa agir com base em suas próprias convicções sobre aquilo que
tem valor último”. (DE VITA, 2009, p. 62)
CONCEPÇÕES DE TOLERÂNCIA
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turba a paz e a ordem públicas, visto que ela é definida pela parte dominante; e
com base em princípios porque se pode pensar que é moralmente problemático
forçar pessoas a desistir de certas crenças ou práticas profundamente enraizadas.
A tolerância, enquanto coexistência, é uma concepção similar à primeira,
pois compreende a tolerância como o melhor meio possível para encerrar ou
evitar conflitos e para garantir o direito à busca dos alvos individuais. Difere,
porém, no tocante ao relacionamento entre os sujeitos e os objetos da tolerância.
Trata-se da relação entre grupos que são aproximadamente iguais em poder e
que percebem que, com vistas à paz social e à busca de seus próprios interesses,
a tolerância mútua é a melhor alternativa possível. Eles preferem a coexistên-
cia pacífica no lugar do conflito, e concordam com um compromisso recíproco
de manter um certo modus vivendi. A relação de tolerância não é mais vertical,
mas horizontal: os sujeitos são simultaneamente objetos da tolerância. Isto pode
não levar a uma situação social estável na qual se desenvolva a confiança, pois
uma vez que as relações de poder se modificam, o grupo mais poderoso pode
não ver mais razões para ser tolerante.
A concepção de tolerância como respeito é aquela mediante a qual as partes
respeitam umas às outras em um sentido mais recíproco. Embora difiram fundamen-
talmente em suas crenças éticas sobre o modo de vida bom e verdadeiro, bem como
em suas práticas culturais, os cidadãos reconhecem uns aos outros como iguais em
termos morais e políticos, no sentido em que o seu ambiente comum de vida social
deveria – no tocante às questões fundamentais de direitos e liberdades e da distri-
buição de recursos – ser governado por normas que todas as partes deveria aceitar
igualmente e que não favorecem nenhuma comunidade ética ou cultural específica.
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O tema da tolerância religiosa não está presente de modo pleno na Escritura
judaico-cristã – não era uma questão premente no mundo antigo, posto que, ape-
sar da pluralidade de “doutrinas abrangentes” as instituições políticas e sociais
não eram pluralistas – em outras palavras, não havia contexto para a dimensão
política da tolerância. Encontramos, porém, nas Escrituras, uma série de textos
e situações nos quais as dimensões cognitiva e moral (especialmente esta) da
tolerância estão presentes – mesmo que a palavra não esteja lá – e possibilitam
uma reflexão teológica densa sobre o tema. Minha hipótese é a de que a teologia
cristã deveria sustentar uma concepção da tolerância como respeito qualitativo
(estima), cujas razões apresento a seguir, na forma de uma coleção de teses teoló-
gicas que deveriam sustentar um conceito cristão de tolerância. Cada uma dessas
teses mereceria um estudo à parte, restrinjo-me, aqui, a colocá-las para discussão.
1. A primeira razão que podemos elencar é a afirmação bíblica da criação
de todo o mundo por um único Deus e, dentro desse mundo, a dotação
da humanidade com a imagem e semelhança de Deus – o que aponta
para a igual dignidade de todas as pessoas, independentemente das dife-
renças concretas existentes.
2. A segunda razão, complementar à primeira, é a afirmação bíblica de
que o Deus Criador também é o Pai de todas as criaturas e de todas as
“linhagens” sobre a terra e sobre o céu – o que aponta para a igual frater-
nidade de todas as pessoas, independentemente das diferenças concretas.
3. Uma terceira razão pode ser encontrada na descrição bíblica de Deus
como parceiro de toda a humanidade, parceria iniciada na eleição de
uma família (Abraão e Sara) para, por meio dela, abençoar toda a huma-
nidade – o que indica a universalidade do amor de Deus.
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UMA TEOLOGIA DA AMIZADE
Para finalizar nossa discussão, colegas, vamos estudar o tema da amizade enquanto
expressão do cuidado cristão.
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mas no bem-fazer ao amigo, à amiga – ser amigo é fazer o bem ao amigo, é
frutificar na vida da pessoa amiga a bênção de Deus.
Enfim, a amizade é uma parceria inserida num contexto de conflitividade:
se amamos a Deus, somos odiados pelo mundo. As amizades que fazemos, na
ambivalência da existência humana, geram, não intencionalmente, inimizades
– e eis aqui a dimensão ético-política da amizade: a amizade configura uma
tensão entre nós-eles (não-nós), uma tensão causada por opções éticas e políti-
cas antagônicas. Não as opções ético-políticas messiânicas, porque no Messias,
“Deus estava reconciliando consigo mesmo o mundo”, mas as opções dos que
se auto-definem como inimigos de Jesus, de Deus ou de seu povo.
Assim, podemos pensar no cuidado enquanto amizade sob a ótica da
redução da inimizade, da transformação de inimigos em amigos. Richard
Rorty assim definiu a justiça, ‘lealdade ampliada’, que podemos traduzir
como a transformação de inimigos e amigos, e, mais, a transformação do
que nem inimigo pode ser, em amigo: plantas, pedras, astros celestes, animais
etc. O cuidado de si e do próximo, enquanto amizade, se concretiza, então,
por exemplo, na eliminação de todo tipo de preconceito e de intolerância; se
caracteriza pela recusa a classificar as coisas e os seres vivos no dualismo nós-
-eles e transforma todos os eles em nós. Cuidar do próximo como amizade
implica, também, na evangelização do próximo, não a partir da pré-con-
ceituação do próximo como perdido, ímpio ou algo similar, mas a partir do
amor ao próximo que ainda não é parte de nós, assim como “Deus amou ao
mundo de tal maneira [...]”.
O salmo mais conhecido das Escrituras judaicas nos apresenta YHWH como um
anfitrião: “Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários, unges-me
a cabeça com óleo; o meu cálice transborda. Bondade e misericórdia certamente
me seguirão todos os dias da minha vida; e retornarei à casa de YHWH todos
os meus dias” (Sl 23,5-6). As expressões e palavras em itálico todas se refe-
rem à prática de hospedar pessoas – primeiramente em um jantar ou banquete
(v. 5) e, depois, em abrir as portas da casa para receber a pessoa em visita. Em
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pelo fato de não terem eles com que recompensar-te; a tua recompensa, porém,
tu a receberás na ressurreição dos justos” (Lc 14,12-14). Aqui encontramos uma
crítica à ‘falsa’ hospitalidade – aquela baseada no possível ganho. A verdadeira
hospitalidade é a acolhida daquela pessoa que não tem condições de nos dar
lucro ou atender a interesses nossos. No contexto dos Evangelhos, a crítica de
Jesus se dirigia primariamente à lógica separatória (classificatória) do Judaísmo:
as pessoas impuras não poderiam entrar no reino de YHWH.
A mesma crítica está presente no relato da refeição de Jesus com um publi-
cano: “De novo, saiu Jesus para junto do mar, e toda a multidão vinha ao seu
encontro, e ele os ensinava. Quando ia passando, viu a Levi, filho de Alfeu, sen-
tado na coletoria e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu. Achando-se
Jesus à mesa na casa de Levi, estavam juntamente com ele e com seus discípulos
muitos publicanos e pecadores; porque estes eram em grande número e também
o seguiam. Os escribas dos fariseus, vendo-o comer em companhia dos peca-
dores e publicanos, perguntavam aos discípulos dele: Por que come e bebe ele
com os publicanos e pecadores? Tendo Jesus ouvido isto, respondeu-lhes: Os
sãos não precisam de médico, e sim os doentes; não vim chamar justos, e sim
pecadores” (Mc 2,13-17).
As comunidades primitivas assumiram a responsabilidade pastoral da hospi-
talidade, conforme podemos ver em vários textos: “compartilhai as necessidades
dos santos; praticai a hospitalidade (φιλοξενίαν)” (Rm 12,13); “É necessário,
portanto, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher, temperante,
sóbrio, modesto, hospitaleiro, apto para ensinar” (1Tm 3,2); “seja recomendada
pelo testemunho de boas obras, tenha criado filhos, exercitado hospitalidade,
dade que deveria ser uma ‘casa aberta’ a todas as pessoas que procurassem ajuda,
socorro, conforto – independentemente de sua condição religiosa, étnica etc.
Um texto fundamental, pouco trabalhado por protestantes e evangélicos em
geral, é o de Mt 25,31-46, que merece ser citado na íntegra:
31
Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos
com ele, então, se assentará no trono da sua glória; 32e todas as nações
serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos outros, como
o pastor separa dos cabritos as ovelhas; 33e porá as ovelhas à sua direi-
ta, mas os cabritos, à esquerda; 34então, dirá o Rei aos que estiverem à
sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que
vos está preparado desde a fundação do mundo. 35Porque tive fome, e
me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me
hospedastes; 36estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e
fostes ver-me. 37Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que
te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de
beber? 38E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te
vestimos? 39E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar? 40O
Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o
fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. 41Então,
o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de
mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus an-
jos. 42Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me
destes de beber; 43sendo forasteiro, não me hospedastes; estando nu,
não me vestistes; achando-me enfermo e preso, não fostes ver-me. 44E
eles lhe perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome, com
sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso e não te assistimos? 45Então, lhes
responderá: Em verdade vos digo que, sempre que o deixastes de fazer
a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer. 46E irão estes
para o castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(2000, p. 517):
hospitalidade é a prática da acolhida de Deus, superando a diferença,
para participar nas ações de Deus que trazem justiça e cura para ao
nosso mundo em crise. [...] O ministério da igreja é o de ser parceira
dos estranhos, de acolher aquelas pessoas a quem Cristo acolheu e, as-
sim, aprender a ser uma comunidade em que as pessoas se tornam um
em Jesus Cristo a despeito de suas diferentes classes, pano-de-fundo
religioso, gêneros, raças e grupos étnicos. Nossa comunhão ou parti-
cipação em Cristo é um dom de nosso batismo e não um resultado de
pertencer a uma classe, raça ou orientação sexual. É um dom que trans-
cende as diferenças reais mediante a participação na missão e ministé-
rio da igreja em busca da cura de um mundo quebrantado, começando
conosco mesmos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Bom, caro(a) aluno(a), chegamos ao final de mais uma Unidade de nossa disciplina
Teologia Pública. Nosso tema tem sido ‘uma teologia pública do reconhecimento’.
Como de costume, seguimos uma metodologia específica para a Teologia Pública
- o diálogo entre o pensamento contemporâneo e o pensamento bíblico, a fim
de construir os conceitos teológicos públicos.
A seleção do tema a ser estudado é um elemento fundamental do método:
os temas devem ser extraídos da vida pública contemporânea. Por isso, sele-
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cionamos o tema do reconhecimento, pois ele representa uma das formas mais
conhecidas hoje em dia dos conflitos sociais no mundo e no Brasil. A luta por
reconhecimento, na atualidade brasileira, tem pelo menos três grandes movi-
mentos sociais que a representam: movimento feminista, movimento negro e
movimento LGBTQ+ - e devemos incluir os movimentos que surgiram em reação
a um ou outro desses movimentos, como o Movimento Brasil Livre, por exem-
plo, que se contrapõe ao LGBTQ+ com a sua noção de ideologia de gênero etc.
Estes são movimentos de luta por reconhecimento na dimensão simbólica ou
cultural e, consequentemente, possuem um forte elemento moral em sua essên-
cia - responsável por conflitos que invadem o campo religioso, pois as religiões
também tem sua própria moralidade e éticas. Assim, são movimentos que ilus-
tram vigorosamente o conceito que aqui estudamos.
Teologicamente, vimos três dimensões do conceito de reconhecimento: o
cuidado, a tolerância e a amizade. Estes três aspectos formam uma atitude cristã
na luta por reconhecimento. Ou seja, uma luta cristã por reconhecimento não
deveria ser marcada pelo desejo de ‘vencer’ o outro, mas pelos princípios mis-
siológicos e pastorais de ‘cuidar do outro’, ‘respeitar o outro’ e ‘acolher o outro’
em sua alteridade.
O modelo para uma luta cristã por reconhecimento é o próprio ministério
terreno do Senhor Jesus, que acolheu a todos e todas pecadoras e se entregou
por todos na cruz.
Abraço!
Considerações Finais
206
2. Qual destes movimentos sociais pode ser caracterizado por busca de reconhe-
cimento na dimensão simbólica?
a) Movimento dos sem-terra.
b) Movimento dos sem-teto.
c) Movimento LGBT.
d) Movimento pela liberação do FGTS.
e) Movimento pela recuperação dos débitos externos.
4. De acordo com o texto da disciplina: “Por ser parcial em seu agir na história
é que YHWH é um Deus ___________. O Deus de hebreus não é universal
apenas porque criou todas as pessoas, mas exatamente porque – na história
– ___________ por algumas dentre todas as pessoas e povos que criou. Na
linguagem paulina, Deus é universal porque optou pelos ____________, ou,
nas palavras de Jesus, ‘eu não vim chamar justos, mas pecadores’, referindo-se
a publicanos e pecadores desprezados pelo Judaísmo oficial de sua época –
publicanos e pecadores, alguns dentre os hebreus da época de Jesus” (v. Mc
2:13-17). A sequência correta de palavras que completam a citação acima é:
a) Parcial, sente, crentes.
b) Parcial, sofre, pecadores.
c) Exclusivo, chama, justos.
d) Universal, opta, pecadores.
e) Universal, morre, batizados.
Para Saavedra e Sobottka, faz-se necessário, hoje, o pensamento crítico das institui-
ções do estado democrático de direito: “como é possível combinar a ideia hegeliana de
luta por reconhecimento com as instituições de um estado democrático de direito?”, e
também “como é possível pensar instituições a partir do conceito de reconhecimento,
dado que Honneth, desde o início, e ainda hoje, pretende desenvolver esse conceito
sem se fazer valer, como Habermas, da teoria dos sistemas?” (SAAVEDRA & SOOBTTKA,
2008, p.17-18). Trata-se, de certa maneira, de uma questão que não diz respeito apenas
a teoria de Honneth, mas ao estatuto atual da teoria crítica mesma, da sua capacidade
propositiva em relação aos problemas e obstáculos à emancipação nas sociedades con-
temporâneas, em compreender e avaliar formas de pensamento e ação, na apresenta-
ção de potencialidades próprias das instituições democráticas. São questões que na sua
pertinência dizem respeito não só à teoria do reconhecimento honnethiana, mas, de
certa maneira, à Teoria Crítica em seu momento atual. Elas “testam” a força propositiva
da Teoria Crítica em relação aos problemas e obstáculos à emancipação nas sociedades
contemporâneas, e forçam a pesquisa teórica a compreender e avaliar minuciosamente
como poderia se constituir esta teoria nos dias de hoje. Tal avaliação passa necessaria-
mente por alguns aspectos: seja na perspectiva da prática de produção de sentidos para
preencher lacunas de formas de pensamento e ação, seja na apresentação das poten-
cialidades próprias das instituições democráticas, na crítica da economia mundializada,
ou ainda em outros âmbitos. Logo, é pertinente a retomada da filosofia hegeliana para a
Teoria Crítica honnetiana no sentido de reatualizar aquele sistema perante as exigências
da filosofia política contemporânea. E isso Honneth faz muito bem em seu sistema filo-
sófico retomando os escritos juvenis de Hegel em Jena.
[...]
Fonte: Araújo Neto (2013).
MATERIAL COMPLEMENTAR
O Garoto Selvagem
Ano: 1970
Sinopse: Em 1797, um menino selvagem é capturado numa floresta de
Aveyron, onde sempre viveu. Encaminhado para um centro de surdos-
mudos, é objeto de todo tipo de curiosidade. Em seguida é levado pelo Dr.
ltard, que acreditava ser possível transformar o garoto.
Para acrescentar ainda mais experiência sobre o tema, indico a você um artigo com uma revisão
do estado da Teologia Pública atual no Brasil.
Web: <anais.est.edu.br/index.php/congresso/article/viewFile/70/110>
211
REFERÊNCIAS
1. C.
2. C.
3. C.
4. D.
5. B.
Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero
TEOLOGIA PÚBLICA DA
V
UNIDADE
SOBERANIA
Objetivos de Aprendizagem
■■ Conceituar soberania à luz da filosofia contemporânea.
■■ Descrever a visão bíblica da soberania.
■■ Explicar a dimensão do poder na soberania.
■■ Explicar a dimensão da cidadania na soberania.
■■ Explicar a dimensão da democracia na soberania.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O conceito de Soberania na filosofia contemporânea
■■ Um olhar bíblico sobre a soberania
■■ Uma teologia pública da soberania – poder
■■ Uma teologia pública da soberania - cidadania
■■ Uma teologia pública da soberania - democracia
215
INTRODUÇÃO
Introdução
216 UNIDADE V
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O CONCEITO DE SOBERANIA NA FILOSOFIA
CONTEMPORÂNEA
Para Schmitt (1985, p. 5), “soberano é aquele que decide sobre o estado de exce-
ção”. A soberania, consequentemente, é o exercício do poder no estado de exceção.
Em que consiste, para Schmitt, um estado de exceção? Qualquer tipo de situação
relativamente caótica, seja do ponto de vista político, seja econômico, que exige
a aplicação de medidas político-legais extraordinárias. O estado de exceção sus-
pende, por assim dizer, a ordem constitucional e outorga poderes especiais ao
soberano para legislar e governar. Conforme a avaliação de Agamben (2004, p.
13): “o estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de
indeterminação entre democracia e absolutismo”.
Ora, se aceitarmos esta definição de soberania de Carl Schmitt, então o exer-
cício do poder soberano não passa de um ato arbitrário e opressor. Vejamos a
seguinte crítica ao conceito:
não há nenhuma salvaguarda institucional capaz de garantir que os
poderes de emergência sejam efetivamente usados com o objetivo de
salvar a constituição. Só a determinação do próprio povo em verificar
se são usados para tal fim é que pode assegurar isso [...]. As disposições
quase ditatoriais dos sistemas constitucionais modernos, sejam elas a
lei marcial, o estado de sítio ou os poderes de emergência constitucio-
nais, não podem exercer controles efetivos sobre a concentração dos
poderes. Consequentemente, todos esses institutos correm o risco de
serem transformados em sistemas totalitários, se condições favoráveis
se apresentarem (FRIEDRICH, 1950, p. 828s).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
soberania popular. Ao invés de uma ficção jurídico-política, a soberania con-
siste no exercício cotidiano e vigilante da cidadania democrática, de modo
a manter em funcionamento o estado de direito, impedindo a ascensão do
estado de exceção.
No vínculo excepcional entre direito e violência, a cidadania é anulada e
a democracia transfigurada em tirania, mas de forma tal que ainda se pareça
democracia e não tirania. Em outras palavras, e pensando na situação brasileira
atual, se aceitarmos que a soberania é um atributo do Estado e não da socie-
dade, então vivemos permanentemente em um estado de exceção, no qual as
instituições estatais são capazes de legitimar legalmente o exercício de uma
soberania ilegítima e excepcional. Assim, devemos reverter a noção de sobe-
rano de Schmitt (1985): soberano é quem decide no/sobre o estado de direito.
Soberano é, então, o povo de uma nação democrática, o povo exercendo a sua
cidadania de modo mais pleno possível.
Para concluir esta seção, soberania consiste no exercício da liberdade, con-
forme o conceito multidimensional de liberdade que discutimos na Unidade
dois: liberdade moral, ética, legal, política e social. Soberania, assim, con-
siste na liberdade democrática do exercício responsável da cidadania – visão
que norteará nossa discussão teológica na sequência deste capítulo de nossa
disciplina.
Muito bem, colegas, para estudarmos a visão bíblica sobre a soberania, dis-
cutiremos o conceito de poder na Escritura, a partir de três temas teológicos
fundamentais: libertação, aliança e reino de Deus. Mãos à obra!
A base bíblica para uma teologia pública evangélica da soberania deverá ser,
portanto, uma análise da manifestação do poder de Deus nas Escrituras, sob
o signo desses três temas complementares, da libertação, aliança e reinado de
Deus (e seus correspondentes neotestamentários: salvação, nova aliança e senho-
rio de Jesus Cristo). Um elemento comum a esses três temas, a meu ver, é o do
exercício divino do poder soberano como meio de salvação integral e humani-
zação da sociedade.
Deixe-me iniciar com breves reflexões sobre a libertação que, no Antigo
Testamento, possui sua forma concreta e fundante no acontecimento do êxodo
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dos hebreus do Egito: o êxodo, ou libertação, é um evento histórico, social, con-
creto e não pode ser espiritualizado nem reduzido a uma função preparatória ou
preliminar na história da salvação (que seria o evento espiritual mais perfeito).
Do ponto de vista da ética política evangélica, ler o êxodo historicamente sig-
nifica lê-lo como manifestação do poder de Deus que liberta escravos, pessoas
oprimidas por um governo opressor e injusto. Na libertação, encontramos um
conflito de poderes: o poder libertador de Javé versus o poder opressor dos deu-
ses do Egito. Dois tópicos merecem destaque aqui: (a) Javé é o Deus de hebreus
A palavra hebreu, originariamente, não indica um grupo étnico, mas um grupo
social, hebreu é o marginalizado pelo poder político-econômico. Nos textos
relativos aos períodos mais antigos da história de Israel, o termo hebreu é usado
quando se quer destacar a fragilidade, marginalização ou sofrimento do povo (I
Sm 4:6,9; 13:13,19; 14:11,21; 29:3; Gn 14:13; 39:14; 40:15; 43:32; Dt 15:12; Jr 34:9).
Somente no livro do Êxodo Javé é chamado de Deus dos hebreus (3:18; 5:3; 7:16;
9:1,13; 10:3), ou seja, Deus das pessoas oprimidas pelo faraó e pelos deuses do
Egito. Javé não é o Deus de uma etnia, é o Deus de oprimidos, de marginalizados,
de escravos – sejam de que etnia forem. De Javé, no Êxodo, se afirma que viu o
sofrimento e ouviu o clamor dos hebreus (Êx 2:23s; 3:7,9; 6:5). No exercício do
poder sempre se esbarra em uma parcialidade. Há sempre que se optar por um
poder emancipatório ou por um poder opressor. Deus, sempre fiel a si mesmo,
sempre exerce o seu poder de forma libertadora, emancipadora. Por ser parcial
em seu agir na história é que Javé é um Deus universal. Uma ética política evan-
gélica não pode temer ser parcial, pois a realidade política é conflitiva e nela há
de se optar por injustiçados contra os que praticam a injustiça.
(b) O deus do êxodo é o deus que dá terra aos libertos. Ao libertar os hebreus,
Javé desencadeou um projeto histórico-político (Êx 3:8,17). A questão crucial
para os hebreus não era apenas a de sair do Egito, mas sair para deixar de ser
hebreu, sair para viver com liberdade e dignidade. Possuir terra seria uma con-
dição indispensável para o projeto de vida dos hebreus. Tendo a terra, teriam
onde viver com liberdade, onde produzir seu próprio alimento, conseguir seu
sustento, reproduzir a vida. Por isso, Javé promete conduzi-los a “uma terra boa,
terra que mana leite e mel”. A vida em liberdade, porém, não é fácil. É vida em
conflito. A terra prometida era a terra dos cananeus, dos heteus, dos amorreus
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etc. Era uma terra dominada por cidades-estado, opressoras como o regime egíp-
cio. Portanto, Javé estimula os hebreus a um novo projeto missionário libertador.
Não basta sair do Egito e resolver seu problema. Há que se ir a Canaã e solida-
rizar-se com os hebreus lá, construir na terra da opressão um novo povo, que
implantasse a Lei da liberdade, a Lei de Deus. Note, novamente, a parcialidade
conflitiva. Parcialidade, porém, que é a única forma de ser imparcialmente justo!
O segundo tema, diretamente ligado a este, é o da aliança. Aliança é o termo
que se costumava usar, no Antigo Oriente, para as relações entre o povo e o rei, e
entre um povo e outro. Javé, movido por solidariedade (compaixão, misericórdia),
exerce seu poder libertador em favor dos hebreus, e estabelece um relacionamento
político-social com eles – relacionamento de aliança que deverá nortear também
o relacionamento entre os membros do povo, especialmente as relações de poder
no povo de Deus. Ao firmar aliança com Deus, os hebreus não precisam se subme-
ter às alianças com reis opressores, ou seja, assumem um projeto político distinto
daquele ao qual estavam acostumados a viver nos países do Antigo Oriente.
Em Êx 19:3-6, a solidariedade de Deus concretizada na aliança, estabe-
lece a identidade política do povo de Javé: os hebreus são chamados de ‘reino
de sacerdotes e nação santa”, o que indica o projeto político da libertação, com
termos aparentemente inusitados: o povo da aliança é um reino de sacerdotes e
uma nação santa. Sacerdócio e santidade são valores políticos aqui! Ser reino
sacerdotal implica em construir uma estrutura de relações de poder baseada no
serviço ao Deus da libertação. Ser nação santa implica em construir uma estru-
tura de relações de poder radicalmente distinta daquela na qual os hebreus
haviam sofrido opressão.
O termo hebraico que explica como deve ser a relação de aliança é o termo
hesed, que pode ser traduzido como graça, bondade, benignidade, amor, ou fide-
lidade. Como categoria política, a aliança de Javé é caracterizada não pelo poder
dominador, mas pelo poder emancipador e criador de laços de solidariedade e
comunhão. Termos políticos, aliança e hesed são, também, termos afetivos, na
medida em que também servem para explicar a relação marido-mulher, pais-fi-
lhos. No projeto político do Deus libertador, o povo se constitui como família,
realidade na qual as relações de poder são marcadas pela fraternidade e soli-
dariedade, pela fidelidade ao projeto comum, pelo amor entre pessoas que se
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complementam umas às outras. Assim também na esfera política: as relações de
poder são humanizadoras, ou seja, criam laços de solidariedade, de fraternidade,
de igualdade ética na diversidade de papéis e funções sociais.
O terceiro tema é o do reino de Deus que, já em Êxodo 15, é ligado ao tema da
libertação. Da imensa riqueza deste tema, que ressaltar dois aspectos principais que
importam para uma ética política: (a) Deus reina libertando os povos oprimidos
de nações imperialistas: fez assim com os hebreus no Egito, com os etíopes e ara-
meus (Am 9,7), com os judeus na Babilônia (Is 40:9-11; 52:7ss.), e assim promete,
também, fazer a egípcios e assírios, se, deixando de ser imperialistas, estiverem em
condição de necessidade e clamarem ao Senhor (Is 19:16-25). É claro que nem todos
os textos veterotestamentários que falam da libertação utilizam a linguagem do rei-
nado de Deus, mas ambos os temas são mutuamente complementares. O exercício
do poder soberano de Deus não visa a dominação dos povos, nem sua destruição,
mas a sua emancipação, a libertação para uma vida marcada por justiça e direito.
Diferentemente dos “reinos” vétero-orientais, que se sustentavam pela domina-
ção do campesinato e de trabalhadores urbanos, bem como pela subjugação de outros
povos e nações – e faziam isso com o “aval” de seus deuses, também conquistado-
res como seus adoradores – o reinado de Javé é definido por sua ação libertadora. O
êxodo dos hebreus, do Egito, é, então, exemplar para a nossa compreensão do reinado
de Deus e, nesta conexão, o cântico de Êx 15:1-18 é emblemático: o triunfo de Javé
sobre os deuses e exércitos egípcios é descrito como salvação (v. 2), resgate amoroso (v.
13), aquisição do povo (v. 16), entrada na terra e possessão da herança (v. 17). O braço
poderoso e majestoso de Deus, que derrota os inimigos do seu reinado de liberdade,
é celebrado, enfim, como soberania sem fim, “O Senhor reinará eternamente” (v. 18).
(b) Deus reina mediante o direito e a justiça. Este par se tornou um termo
técnico em todo o Antigo Oriente, e também no Antigo Testamento. Na Escritura
judaico-cristã, direito e justiça têm sentido bastante definido de libertação e orga-
nização justa da sociedade. O par é usado em contextos jurídicos, definindo como
devem ser os julgamentos nos tribunais: caracterizados por direito e justiça, ou
seja, julgamentos não corruptos. É usado em contextos políticos específicos, indi-
cando os critérios que devem nortear o governo humano, a partir do governo
divino que se exerce com direito e justiça. Dentre a multidão de textos bíblicos
que usam este par, gostaria de destacar o Salmo 97, um dos salmos do reinado
de Javé (com os salmos 47, 93, 96, 98 e 99), que celebra a majestade soberana de
Deus sobre Israel e sobre toda a criação.
No Salmo 97, trata-se de um convite a toda a terra e povos, para se alegra-
rem porque Javé reina (v. 1). Ora, por que se alegrar diante da ação soberana de
um deus? Porque esse Deus age para libertar e salvar. A linguagem do Salmo 97
nos revela sua origem no período exílico neo-babilônico, e se apropria das anti-
gas tradições da realeza de Javé, em Jerusalém, especialmente mediante o uso da
forma literária da teofania. Nessa descrição teofânica do reinado de Deus, res-
salto a descrição inicial: “Nuvens escuras e espessas o cercam, direito e justiça
são a base do seu trono” (v. 2). Imagine a cena: o trono soberano de Javé, invi-
sível pelas nuvens espessas que o rodeiam, tem como seu fundamento o direito
e a justiça. E com esse fundamento o reinado de Javé se manifesta sobre a terra
(v. 3-5) com glória e majestade. A alegria de toda a terra é a expectativa do sal-
mista, que celebra a alegria de Israel já libertado por Deus e sob a sua aliança
e proteção (v. 9-12). Da majestade de Deus surge a exortação: “odeiem o mal,
vocês que amam o Senhor” (v. 10). O mal é a negação do direito e da justiça, o
oposto do bem: salvar e libertar com justiça (cp. Am 5:11ss). Quem vive debaixo
do reinado de Javé não pode praticar o mal, ou seja, não exerce o poder de forma
dominadora, repressora, desumanizadora, idolátrica.
Como estes temas são reformulados no Novo Testamento? Não de forma
espiritualizante, ou seja, eles não são transformados de temas políticos em temas
espirituais, abstratos. Não de forma individualista, ou seja, eles não são trans-
formados de temas políticos em temas existenciais, ligados à mera salvação da
alma individual. A primeira grande alteração é de cunho escatológico. Libertação,
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aliança e reino de Deus passam a ser vistos como formas escatológicas do agir
poderoso de Deus, ou seja, são reconhecidos como já inaugurados historicamente,
mas ainda não consumados. Em outras palavras, como valores norteadores do
político, eles devem ser vistos como presentes de forma parcial, conflitiva e espe-
rançosa no mundo atual, na história humana, nos povos e nações da terra. Dito
de outra maneira, o Novo Testamento reafirma que a realidade humana integral,
inclusive sua dimensão política, está indelevelmente caracterizada pela pecami-
nosidade, na qual a libertação, a aliança e a soberania de Deus são recebidas por
fé e esperança, e se concretizam parcialmente nas vidas das pessoas e comuni-
dades cristãs no mundo.
Ainda de outra forma, as estruturas humanas de poder devem, todas, ser vis-
tas sob o signo da provisoriedade! É assim que se deveria ler Romanos 13:1ss, por
exemplo. As autoridades, embora ministros de Deus, são pecadoras e as estru-
turas de poder nas quais elas atuam são também pecadoras. Conforme o dito
de Jesus em Marcos 10:42ss, “aqueles que vemos governar as nações as domi-
nam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não será assim [...]”. É por isso
que no Apocalipse se celebra o fim do Império Romano, a grande Babilônia que
oprime os povos (Ap 18:1ss).
A segunda alteração é a vinculação do agir de Deus a Jesus, o Messias encar-
nado. Toda a teologia neotestamentária é cristocêntrica. Libertação, aliança e reino
de Deus têm o seu sentido enriquecido e plenificado na revelação climática de
Deus na pessoa de Jesus Cristo. No agir de Jesus Cristo se concretizam, escatolo-
gicamente, a libertação, a aliança e o reinado de Deus! Na pauta política de Jesus,
o poder é exercido na forma do serviço, isto é, da libertação, da emancipação, da
todos os poderes foram criados por Deus e a Ele estão subjugados, mas nem todos
os poderes são obedientes a Deus e realizam a Sua vontade (Cl 1,15-17). Por isso,
na segunda estrofe do hino (Cl 1,19-20; cp. II Co 5,19), Paulo fala da reconcilia-
ção de todas as coisas, nos céus e na terra – o que inclui os poderes celestiais e os
terrestres. Em que consiste a reconciliação dos poderes celestiais? Basicamente,
consiste (1) no despojamento escatológico de sua condição de senhores da vida
humana (cf. Cl 2,15 e Ef 1,20-23), ou seja, em sua subordinação ao agir salví-
fico de Jesus Cristo que, como Senhor escatológico, restringe a possibilidade de
ação desses poderes – tanto sobre os cristãos como sobre o mundo em geral, até
que; (2) eles venham a ser efetivamente derrotados, totalmente subordinados a
Deus e anulados em seu agir (cf. I Co 15,24; Ef 1,10).
E, em que consiste a reconciliação dos poderes terrestres? Na concretização
da paz – que Deus faz mediante a morte do Seu próprio Filho, e não mediante a
morte dos inimigos. Temos, neste hino, uma crítica profunda contra a ideologia
da pax romana – a ausência de conflitos implantada mediante a subjugação pela
força militar, ou seja, o poder dominador travestido de emancipador. Na tradi-
ção judaico-cristã, a paz é a plena harmonia que Deus estabelece na sua criação,
com destaque – neste contexto – para a justiça social que é a harmonia cósmica
de Deus aplicada à convivência social humana. Para restaurar a harmonia rom-
pida da criação, Deus entrega Seu Filho à morte reconciliadora em benefício da
criação alienada do Pai. O que se afirma aqui é, simples e profundamente, que
o propósito divino no ato da reconciliação e estabelecimento da paz é restau-
rar a harmonia da criação original, reunir em um renovada unidade e plenitude
“todas as coisas”, quer as da terra, quer as dos céus.
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Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia”.
O povo de Deus é, agora mais do que nunca, fermento na massa, sal da terra
e luz do mundo. Podemos vislumbrar a igreja, então, como o protótipo da nova
aliança, a antecipação escatológica do reinado universal de Deus. Consequentemente,
podemos afirmar que a libertação em Cristo possibilita uma espiritualidade integral
do povo de Deus, na qual a dimensão política não pode faltar. Uma ética política
evangélica é parte da espiritualidade evangélica do agir de acordo com o exemplo
de Cristo, do andar como filhos de Deus, de imitar a Deus no exercício das rela-
ções de poder. A espiritualidade cristã, sendo cristocêntrica, será inevitavelmente,
solidária, concretização da hesed que constitui a aliança divina com a sua criação.
Espiritualidade e ética não se podem separar, assim como não se poderá, então, con-
siderar a política como algo não espiritual, como algo descolado da missão da igreja!
para que, ou indo ver-vos ou estando ausente, ouça, no tocante a vós outros, que
estais firmes em um só espírito, como uma só alma, competindo juntos em prol
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cos, cada qual representando a sua cidade (polis), dando o melhor de si para
alcançar a coroa da vitória (a medalha de outro, hoje em dia). Assim é a vida da
comunidade messiânica – no que tange à vida e missão da igreja, os interesses
pessoais devem ser deixados de lado, e o projeto comunitário deve ser assu-
mido e desenvolvido por todos os membros, sem exceção. A ação missionária
da comunidade, como a de Paulo, certamente sofrerá oposição, os adversários
tentarão de tudo para vencer, mesmo usando de recursos ilegais ou antiéticos.
Na arena, o atleta sofre para conseguir realizar a sua prova, assim também na
vida cotidiana a comunidade messiânica sofre a oposição dos que não desejam
viver a cidadania messiânica, contentando-se com a cidadania de seu próprio
tempo, sem considerar as injustiças nela presentes.
Aqui, como em vários outros lugares de suas cartas, Paulo aponta o fato de
que seguir o Messias implica em sofrer, em passar por perseguições, privações,
problemas de todos os tipos causados pelos confrontos entre a ética do amor
e as éticas do dever ou do poder nas sociedades em que as comunidades estão
inseridas. É evidente, porém, que esse sofrimento só existirá se a comunidade
for efetivamente messiânica, ou seja, se seu estilo de vida não se conformar com
o estilo de vida deste mundo. Doutra forma, ao invés de sofrimento, a comu-
nidade receberá os elogios do mundo ao seu redor. O critério da cidadania
messiânica é a fidelidade do Evangelho – e podemos tirar proveito da ambigui-
dade da construção genitiva no grego: (a) a fidelidade gerada pelo evangelho,
e (b) a fidelidade cujo conteúdo é o evangelho. Assim, a cidadania messiânica
não se contrapõe às cidadanias terrenas, mas as impregna com uma nova qua-
lidade: a do serviço ao próximo.
4
Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-vos. 5Seja a vossa
equidade conhecida por todas as pessoas. Perto está o Senhor. 6Não andeis
ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus,
as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graças. 7E a paz
de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a
vossa mente no Messias Jesus. 8Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro,
tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é
amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se alguma honra
existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento. 9O que também aprendes-
tes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai; e o Deus da paz
será convosco (Tradução nossa).
O texto parece uma lista desconexa de imperativos, porém, como destaca
Hansen (2009, p. 260),
estes mandamentos estão integralmente relacionados com os grandes
temas da carta e com as condições específicas da igreja em Filipos. Es-
tas diretrizes guiam a igreja para ser ‘um corpo político alternativo, go-
vernado por um diferente Senhor, ao corpo político constituído pelos
cidadãos de Filipos sob o domínio de César’. O conselho prático de
Paulo orienta a formação espiritual dos cidadãos do céu.
Em nossos termos, eu diria que estes conselhos dão uma pequena mostra do que
significa construir uma nova subjetividade messiânica cidadã, um novo modo
de ser e de viver no mundo sob a força e a mentalidade do Messias, uma cida-
dania reflexiva. Vejamos em que consistem, basicamente, esses pequenos tijolos
do novo estilo de vida:
Alegrai-vos sempre no Senhor. Alegria, contentamento, felicidade, são esta-
dos passionais que todo ser humano busca, deseja e se esforça por atingir e
manter. A alegria é a paixão humana que nos mantém motivados para viver e
agir, nos mantém “em alta”, com bom humor, com disposição, satisfeitos. O que
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caracteriza a alegria messiânica, porém, é que ela tem como critério e ambiente
o próprio Senhor. Isto é, o motivo da alegria não são as circunstâncias mutá-
veis da vida cotidiana, mas o permanente amor libertador do Senhor de todos
os céus e terra. É alegria, assim, duradoura, e não efêmera como o são as mais
comuns alegrias de uma subjetividade não-messiânica, marcado, por exemplo,
pelo desejo de consumo, de poder, de sexo ou prestígio. Não é uma alegria que
dependa de objetos, mas sua realidade é constante e permanente – porque está
no Senhor e é o próprio Senhor!
Seja a vossa equidade conhecida por todas as pessoas. O termo grego traduzido
por equidade possui várias conotações, que vão desde a mansidão e tolerância,
até a bondade e a gentileza. Optei pelo termo equidade a fim de ressaltar essa plu-
ralidade de sentidos da palavra. Uma pessoa equitativa não luta por direitos que
não lhe cabem, mas também não se deixa subjugar por injustiças. Não exagera
em suas convicções, nem desmerece as de outras pessoas, mas sabe enxergar as
diferenças e tolerá-las sempre que possível e necessário. É gentil, generosa, con-
vive bem com todos os tipos de pessoas – e é essa universalidade de disposição
para bons relacionamentos que o texto ressalta.
Não andeis ansiosos de coisa alguma: a ansiedade é o oposto da alegria. A
paixão da ansiedade ocorre quando não conseguimos os objetos ou objetivos
que desejamos. Ficamos ansiosos quando as coisas não ocorrer da maneira
como desejamos. Entretanto, quem vive na alegria do Senhor, não precisa
ficar ansioso, preocupado (cp. o conselho de Jesus no Sermão do Monte), ou
assoberbado pelas coisas da vida. Antes, ao invés de ficar ansioso, pode dirigir
suas orações ao Senhor – suplicando e agradecendo (esse duplo tom de pedido
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agir. A práxis do estilo messiânico de vida.
Vamos, agora, discutir o tema do poder a partir das reflexões de Michel Foucault
(1995).
Em seus escritos, porém, Foucault (1995) não analisa a passagem dessa forma
de poder da instituição religiosa para a instituição estatal. O objetivo deste breve
ensaio é apresentar uma hipótese explicativa dessa passagem, restrita ao campo
das ideias políticas – ou, na linguagem foucaultiana, uma hipótese sobre os pro-
cessos discursivos e institucionais que facilitaram essa mudança do poder pastoral
do campo religioso para o campo estatal, e sua contribuição para a formação
do moderno “Estado de direito”. O ensaio se divide em duas partes: primeiro,
uma descrição do conceito de poder pastoral em Foucault e, segundo, a apre-
sentação da hipótese proposta. Dados os limites de tamanho de um ensaio, na
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(1) Na concepção cristã um pastor deve prestar contas – não somente
de cada ovelha, mas de todas as suas ações, todo o bem ou o mal pelo
que são responsáveis, tudo o que lhes acontece. Além disso, entre
cada ovelha e seu pastor o Cristianismo concebe uma troca e circu-
lação complexas de pecados e méritos. ... assim, se ele (pastor) quiser
se salvar, deve correr o risco de se perder pelos outros. ... E o que eu
queria ressaltar em especial é que tais laços não somente tinham a
ver com as vidas dos indivíduos, mas também com os detalhes de
suas ações; [...]
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toral enfocava o desenvolvimento do saber sobre o homem em torno
de dois pólos: um, globalizador e quantitativo, concernente à popu-
lação; o outro, analítico, concernente ao indivíduo. E isto implica que
o poder do tipo pastoral, que durante séculos – por mais de um mi-
lênio – foi associado a uma instituição religiosa definida, ampliou-se
substancialmente por todo o corpo social; encontrou apoio numa
multiplicidade de instituições. E, em vez de um poder pastoral e de
um poder político, mais ou menos ligados um ao outro, mais ou me-
nos rivais, havia uma “tática” individualizante que caracterizava uma
série de poderes: da família, da medicina, da psiquiatria, da educação
e dos empregadores.
Foucault (1995) descreve o poder pastoral nos seus três tempos: vétero-oriental,
vétero-cristão e moderno-estatal. Após essa descrição, afirma a sua tese genérica
de que a modernidade se constitui como uma nova configuração dos processos
de formação de identidade e subjetivação:
Todos aqueles movimentos dos séculos XV e XVI, e que tiveram a Re-
forma como expressão e resultado máximos, poderiam ser analisados
como uma grande crise da experiência ocidental da subjetividade, e
como uma revolta contra o tipo de poder religioso e moral que deu
forma, na Idade Média, a esta subjetividade. A necessidade de ter uma
participação direta na vida espiritual, no trabalho de salvação, na ver-
dade que repousa nas Escrituras – tudo isso foi uma luta por uma nova
subjetividade (FOUCAULT, 1995, p. 236).
Fica claro, por esta citação, que Foucault atribui a passagem do poder pasto-
ral para o ambiente “secular” como fruto do que ele chama de movimentos dos
séculos XV e XVI. Entretanto, ele não desenvolve argumentos em defesa dessa
hipótese. É nessa lacuna que se insere este ensaio: pretendo enfocar alguns
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administração dos bens salvíficos da Igreja para o Estado, em versão terrena e
secularizada. O chamado “poder temporal” se desvincula institucionalmente do
“poder espiritual”, e se apropria do seu discurso escatológico, adaptando-a à nova
organização da vida em sociedade, não mais girando ao redor do eixo religioso.
O segundo foi o processo institucional de divisão denominacional do
Cristianismo, provocado pela Reforma Protestante, aliado aos conflitos entre
Igrejas e Estado nas nascentes nações modernas. Por meio desse processo insti-
tucional, a secularização da escatologia neotestamentária redundou em um novo
tipo de dualismo, um dualismo político que colocou em lados opostos a razão
da fé e a razão de Estado. Com a fragmentação crescente dos sujeitos do poder,
houve a necessidade de se definir as fronteiras entre eles, e se legitimar o exercício
do poder estatal face ao conflito religioso eclesiástico. O embate de ideias nesse
campo foi de grandes proporções, e não é possível, aqui, descrevê-lo adequada-
mente. Por isso, remeto à obra de Q. Skinner, da qual extraio a seguinte síntese:
por fim, a aceitação da ideia moderna de Estado pressupõe que se re-
conheça que a sociedade política exista unicamente para fins políticos.
Seria impossível aceitar essa perspectiva secularizada enquanto se su-
pôs que todos os governantes temporais tivessem o dever de zelar por
um governo leal a Deus e pacífico. Os reformadores do século XVI con-
cordavam plenamente com seus adversários católicos nesse aspecto: to-
dos insistiram em que um dos principais objetivos do governo deveria
ser o de preservar a ‘verdadeira religião’ e a Igreja de Cristo. Como
vimos, isso significa, por sua vez, que as convulsões religiosas da Refor-
ma deram uma contribuição paradoxal, e no entanto vital, para cristali-
zar-se o conceito moderno e secularizado de Estado. Isso porque, assim
que os defensores de credos religiosos rivais se mostraram dispostos
a travar entre si um combate de morte, começou a evidenciar-se, aos
O terceiro processo, discursivo, enfim, foi a criação do direito moderno, que leva
ao seu termo a cisão entre Igrejas e Estado. O surgimento e o desenvolvimento do
direito moderno também vieram ao encontro da necessidade de legitimar a dis-
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Várias implicações deste processo poderiam ser retomadas nesta seção, assim
como elas e outras deveriam ser discutidas e aprofundadas em outros contextos.
Para os fins desta coleção de ensaios relativos ao caráter público da teologia, basta
destacar a conexão indissolúvel entre as práticas religiosas e as práticas políticas
do poder. Qualquer reflexão teológica que leve a sério seu caráter público terá de
levar em consideração a questão do poder do discurso teológico em particular,
do poder do saber em geral, e das imbricadas relações entre as práticas “religio-
sas” e as práticas “políticas” de poder. Dentre essas relações, está mais do que na
hora de estabelecermos diálogos significativos com o pensamento jurídico, par-
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ceiro tão negligenciado nas conversas teológicas “públicas”.
A discussão ética relativa ao poder será tratada mediante dois temas comple-
mentares, o primeiro focalizando a sociedade e o segundo, a igreja.
Na seção dois apresentei algumas pautas para uma teologia do poder que,
juntamente com a reflexão sobre o conceito de poder pastoral em Foucault,
deveria servir de base para uma ética evangélica. Para construir a ética polí-
tica evangélica é necessário fazer dialogar os conceitos teológicos com a
realidade contextual e sua explicação científica. Eticistas evangélicos reco-
nhecem, por exemplo, que o contexto político das Escrituras difere bastante
do nosso e que, portanto, uma ética contemporânea não poderia ser uma
simples repetição de preceitos bíblicos, nem uma simples adaptação de con-
ceitos teológicos a conceitos políticos ou sociológicos contemporâneos. Apesar
desse reconhecimento, todavia, é comum que em textos sobre ética política
de evangélicos seja feita tal adaptação simples. O exemplo que mais ressalta
é o de Romanos 13. Podemos encontrar textos éticos contemporâneos que
afirmam a obediência às autoridades como um princípio ético e o compre-
endem de forma puramente adaptativa: ou seja, se Paulo exortou os cristãos
o governante que exerce mandato. Mandatário não é quem “manda”, mas quem
recebeu um mandato (recebeu uma ordem) para cumprir. Isto não quer dizer,
por outro lado, que a “obediência” deveria ser dirigida, então, para os cida-
dãos pura e simplesmente. Os regimes democráticos são regimes “de direito”,
nos quais a ordem política é legitimada pelo ordenamento legislativo-jurídico,
que deve ser constantemente firmado e confirmado mediante a ação política de
toda a sociedade. Também seria um erro afirmar, simplesmente, que em regi-
mes democráticos obedecer à autoridade equivale a obedecer à lei. Nos regimes
democráticos, a ética política é mais ampla do que um mero aplicar do princípio
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da obediência a alguém em posição de mando. Tem a ver com o exercício ade-
quado das relações complexas de poderque se estabelecem entre os diferentes
agentes políticos, mediadas pelo ordenamento legislativo-jurídico. Em regimes
democráticos, o eixo ético deveria ser o da cidadania e não o da obediência.
Exercer eticamente a cidadania é um desafio ético prioritário em socieda-
des democráticas. A ação cidadã não se restringe ao voto e ao cumprimento das
leis do país. A ação cidadã implica, exige que a ação de cada cidadã e cidadão
seja dirigida à construção de uma sociedade cada vez mais justa, livre, harmo-
niosa e pacífica. Ser cidadão significa participar ativamente da vida pública do
país, seja na esfera da política partidária, seja na esfera dos movimentos sociais,
seja na esfera das instituições governamentais (municipais, estaduais e fede-
rais), seja na das instituições mistas (conselhos tutelares, etc.), seja no chamado
Terceiro Setor, seja no âmbito microssocial do bairro, da vizinhança. Participar
ativamente de modo a que cada vez mais pessoas sejam beneficiadas pela jus-
tiça, e se implante mais e mais o bem comum.
No regime político em que vivemos, no Brasil, as relações de poder estru-
turadas não são apenas as relações especificamente estatais. As sociedades
democráticas capitalistas contemporâneas possuem também outros tipos de
relações estruturadas de poder: o poder econômico, o poder científico-tecnoló-
gico, e o poder midiático. Uma ética política evangélica também tem de formular
valores e princípios apropriados para o exercício das relações de poder no âmbito
dessas estruturações sociais. Na estruturação econômica capitalista, as relações
de poder são declaradamente assimétricas e egocêntricas. Segundo teóricos do
capitalismo, o egoísmo é a forma mais eficaz do amor ao próximo: somente quem
almeja o maior lucro possível e trabalha para alcançá-lo irá contribuir para o
sucesso da ordem econômica. É claro que, para fazer isto, a ética econômica é
centrada na concorrência, na competição. Então, agir contra o bem econômico
do próximo pode ser visto como uma virtude!
Se, como é fato, reconhecemos que o poder econômico, na atualidade, engloba
todos os demais poderes, inclusive o poder estatal, precisamos reconhecer que o
maior e mais prioritário desafio ético de nosso tempo é o da transformação das
relações de poder econômico. Neste caso, a forma concreta da cidadania deverá
ser dupla: resistência contra a fome devoradora do capital e solidariedade econô-
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outras dimensões da ética política na atualidade, a dimensão ecológica também
deverá ser igualmente local e global.
E é preciso ainda mais uma distinção: a ética política evangélica deverá dis-
tinguir entre uma ética viável para estruturas “cristãs” e para estruturas “não
cristãs”. Isto é, não podemos esperar que as relações de poder entre pessoas
transformadas pela graça de Deus sejam praticadas por pessoas não transfor-
madas pela graça. Também não devemos esperar que pessoas transformadas
sejam perfeitas em seus relacionamentos, pois isso negaria o caráter escatológico
da salvação em Cristo. Todavia, é necessário que reconheçamos e afirmemos
ousadamente que o povo de Deus tem o privilégio, concedido graciosamente
por Deus, de ser modelo para as relações de poder na humanidade em geral.
Ser igreja é ser protótipo do reino de Deus, da aliança, da liberdade integral.
Ser igreja, ser cristão, é participar graciosamente da responsabilidade salvífica
integral no mundo.
Necessitamos, portanto, de uma ética das relações de poder na instituição
eclesiástica e na família cristã. Tal ética política eclesiástica terá de informar
como as igrejas deveriam articular suas estruturas de poder, de modo tal a aten-
derem os valores da libertação, aliança e reino de Deus – ou seja, que formas de
governo seriam mais adequadas? Que relações de poder deveriam ser exercidas
entre ministros ordenados e membros da igreja? Em que consiste a legitimidade
de dirigentes da denominação? É necessário reconhecer, tristemente, penso eu,
esposas a maridos, de filhos a pais, de uns aos outros, cf. Ef 5:21ss), e de obedi-
ência aos líderes cristãos, pois “aos anciãos que estão entre vós, exorto eu, que
sou ancião como eles e testemunha dos sofrimentos de Cristo e participante da
glória que há de ser revelada. Apascentai o rebanho de Deus que vos foi con-
fiado, cuidando dele, não como por coação, mas de livre vontade, como Deus o
quer, nem por torpe ganância, mas por devoção, nem como senhores daqueles
que vos couberam por sorte, mas, antes, como modelos do rebanho” (I Pedro
5,1-3). Estamos todos nós, cristãos, sob a mesma ordem: a amorosa ordem liber-
tadora, fraterna e amorosa do reino do Filho amado: “entre vós não será assim:
ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e
aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho
do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em res-
gate por muitos” (Mc 10, 43-45).
Se nosso Deus é o deus que ouve o clamor das vítimas da injustiça, uma ética
política evangélica em âmbito eclesial terá como eixo a responsabilidade: ouvir
e responder ao clamor de todas as vítimas da injustiça, especialmente e priori-
tariamente daquelas que não são ouvidas nem atendidas pela sociedade e suas
estruturas de poder. Na prática, isto quer dizer que o cumprimento eclesial da
ética política evangélica se concretiza no exercício da missão integral que Deus
confiou ao Seu povo. Ética e missão, sob o regime da graça, então, se fundem. E
o mesmo vale para a liturgia, para a educação cristã, para a comunhão ministe-
rial e fraterna entre cristãos. Educar para a cidadania e o discernimento, adorar
para imitar a Deus no cuidado e solidariedade, estar juntos para servirmos uns
aos outros e, em comunhão, servirmos à criação de Deus.
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Nosso tema, agora, será o da cidadania. Você já refletiu sobre a teologia cristã
da cidadania? Será que, em nosso país, as Igrejas dão exemplo de cidadania?
O CONCEITO DE CIDADANIA
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na luta pelo reconhecimento de identidades particulares: o movimento feminista,
por exemplo, muda seu foco, na busca da superação das dimensões ética e moral
do sexismo (fim da noção de superioridade do masculino; fim da violência con-
tra a mulher; reconhecimento do senhorio da mulher sobre seu próprio corpo,
incluindo os direitos de reprodução, entre outros) – e traz à tona a questão mais
ampla do gênero. No campo do gênero, surgem movimentos de revisão da iden-
tidade masculina (metrossexuais, andróginos, etc.) e os movimentos LGBTQ. Em
sociedades com minorias linguísticas ou étnicas, desenvolve-se o multicultura-
lismo enquanto busca de afirmação de identidades particulares diante da “cultura
nacional”; o movimento negro realiza trajetória similar à do feminista – da amplia-
ção dos direitos econômicos para a
dimensão ético-moral. Surgem as
chamadas tribos urbanas, a prole
dos movimentos hippie e estudan-
til dos anos 60, com a juventude
buscando o reconhecimento de
estilos de vida e de identidades
alternativas; e desenvolvem-se
movimentos sociais de migrantes
e imigrantes (refugiados de guerra,
etc.) diante do recrudescimento
das legislações contra estrangeiros
ilegais em países economicamente
mais abastados.
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UMA TEOLOGIA PÚBLICA DA SOBERANIA -
DEMOCRACIA
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Povo que vota em representantes – organizados partidariamente - que gover-
nam o país de acordo com as leis e em busca do bem comum, defendendo a
liberdade e os direitos de todos; governo esse distribuído entre três poderes
que se complementam e julgam: Executivo, Legislativo, Judiciário. Vejamos
a descrição, longa mas importante, da democracia pela filósofa brasileira
Marilena Chauí:
forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia (igualdade
dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em
público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em públi-
co), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres,
isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem
as mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa
democracia participativa; indiretamente, numa democracia represen-
tativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de
classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade
– sob os efeitos da desigualdade real.
Forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é
considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais
para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do con-
senso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra
dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com
os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da
mera oposição?
Pela criação dos direitos, a democracia surge como o único regime po-
lítico realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir
o novo como parte de sua existência e, consequentemente, a tempora-
lidade como constitutiva de seu modo de ser;
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(a) Privatização: o crescimento e a hegemonia do individualismo consumista,
que afasta as pessoas da vida política; e (b) Publicização: o desejo crescente de
maior influência dos indivíduos no processo de tomada de decisões políticas,
no mínimo em busca de serem ouvidas as demandas dos grupos culturais ou
identitários emergentes.
Sob a égide da aparentemente inevitável globalização da economia e das trocas
interculturais, os Estados nacionais têm cada vez menores condições para enfren-
tar as demandas do Mercado, de modo que os partidos políticos e os governos se
tornam cada vez mais dependentes do sistema econômico, com a consequente
hegemonia da lógica do dinheiro no processo de tomada de decisões nos dife-
rentes poderes do Estado democrático de direito. Assim, diminui a legitimidade
das decisões estatais e cresce a necessidade da participação-deliberação cidadã
no processo de tomada de decisões e do consequente desenvolvimento da esfera
pública. Estão em jogo, não só a legitimidade da democracia, mas, e principal-
mente, a justiça – que tem sido um dos temas mais produtivo no debate público
contemporâneo – acadêmico ou não.
Nas atuais condições do mundo globalizado, a legitimidade dos Estados
não pode mais ser garantida apenas pelo voto – nem pode ser alcançada
mediante o “assembleísmo”. É necessário que sejam criados espaços e meios
para que os cidadãos tenham voz mais ativa no próprio processo de tomada
de decisões, ou seja, que os cidadãos possam participar da deliberação pública
para a concretização dos projetos nacionais. Semelhantemente, a restrição da
democracia/cidadania ao âmbito de territórios nacionais é problemática, na
medida em que a internacionalização das populações – especialmente em vista
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(e) formação permanente da cidadania;
(f) cumprimento de responsabilidades cívicas, das mais elementares às mais
transformadoras; etc.
d) Há poucos anos foi aprovada uma lei pelo Congresso Nacional, regulamen-
tando a pesquisa com células-tronco embrionárias. Quando da discussão
da lei, a Igreja Católica se manifestou contrária, argumentando que a vida
criada por Deus não poderia ser maculada pela pesquisa. A lei, mesmo assim,
foi aprovada. Posteriormente, um procurador federal ajuizou uma ação no
Supremo Tribunal Federal, pedindo pela determinação da inconstituciona-
lidade da lei. O Supremo não julgou procedente a ação e a lei continua em
vigor, mesmo contrariando a crença da maior instituição religiosa do país.
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Diante dos exemplos elencados anteriormente, precisamos discutir sobre a ques-
tão, levando em conta que a liberdade de religião é um direito da cidadania, assim
como outros direitos (liberdade de expressão, união civil, laicidade do Estado,
etc.). Não iremos “resolver” o problema. O objetivo é mais simples e mais viá-
vel: descrever alguns aspectos teóricos de uma possível resposta. Somente com
a crescente discussão desta questão, no âmbito da esfera pública e no âmbito
do Estado, é que aprenderemos a lidar com os conflitos religiosos e morais em
sociedades democráticas plurais e constitucionais.
Para realizar o nosso estudo sobre o papel da religião na esfera pública, vamos
nos basear em um texto escrito por Jürgen Habermas (“Fundamentos prepolí-
ticos del estado democrático de derecho?”). A origem deste texto é um debate
entre Habermas e o então cardeal Ratzinger, na Academia Católica da Baviera,
sobre o lugar das religiões na esfera pública da Europa.
A base da discussão de Habermas sobre a religião nasce de sua compreensão
da atual situação das sociedades ocidentais, nas quais, segundo ele, a disponibili-
dade para o serviço público e a esperança de transformação social praticamente
desapareceram. Situação, esta, causada principalmente pela aceitação quase que
universal do modelo capitalista (competitivo) da economia e pela adoção do
consumismo como o padrão de comportamento mais comum nas sociedades
ocidentais. A religião, assim, entra na discussão na medida em que os cidadãos
dos atuais estados democráticos de direito possuem um déficit motivacional com
relação ao exercício da cidadania, pois a cidadania exige solidariedade, pois sem
solidariedade ninguém se esforça para defender os direitos de outras pessoas.
As religiões, então, por se tratarem de formas culturais que, entre outras coisas,
conferem sentido e valor à vida, possuem um papel político peculiar. Diante de um
projeto de vida que está cada vez mais focado nas noções de progresso, sucesso,
competição, lucro e consumo, cabe, às religiões um papel profético, pois nelas:
na medida em que consigam evitar o dogmatismo e a coerção sobre as
consciências, permanece intacto algo que se perdeu em outros lugares
e que tampouco pode ser reproduzido apenas com o saber profissional
de especialistas: refiro-me aqui às possibilidades de expressão e a sen-
sibilidade suficientemente diferenciadas para falar da vida malograda,
das patologias sociais, dos fracassos dos projetos individuais e da defor-
mação dos contextos de vida desfigurados (HABERMAS, 2006, p. 116).
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religiões na esfera pública é o fato de que vivemos em sociedades plurais, socie-
dades em que seus habitantes praticam diversas religiões, ou mesmo em que
predominantemente não se praticam religiões. No entanto, acima disso ainda,
vivemos em sociedades em que há separação entre Instituição Religiosa e Estado,
e o Estado deve corporificar a laicidade (como vimos, esta pode ser distinta em
diversas sociedades). Como decidir diante de conflitos morais, sociais e/ou legis-
lativos quando crenças religiosas assumem papel importante na situação?
Para Habermas (2006), é preciso reconhecer que o conflito é real, mas pode ser
trabalhado por toda a sociedade. Há, porém, que se fazer um aprendizado de con-
vivência entre moralidades distintas e até mesmo contraditórias em uma mesma
sociedade. Sociedades efetivamente democráticas são aquelas em que cidadãos reli-
giosos convivem harmoniosamente com cidadãos não-religiosos. Sociedades em
que, quando há conflitos entre visões éticas religiosas e visões éticas não religiosas,
“ambas as partes, se concebem a secularização da sociedade como um processo de
aprendizagem complementar, podem realizar suas contribuições aos temas contro-
versos na esfera pública e levarem-se mutuamente a sério” (HABERMAS, 2006, p.
117). Isto é, precisamos aprender a estabelecer os limites das nossas crenças (reli-
giosas ou não) quando participamos da discussão pública. A dimensão pública é
a dimensão do bem comum e não dos bens particulares. Este é um sacrifício que
a cidadania exige: reconhecer os limites de nossas crenças e preferências, diante
dos direitos constitucionais de todos os cidadãos e cidadãs do país.
A partir desta constatação, Habermas (2006) irá desenvolver sua definição
do lugar das religiões no debate público. Uma sociedade democrática, com base
em seus valores de liberdade religiosa e tolerância, deve apresentar o mesmo
tipo de exigência aos cidadãos religiosos e aos não religiosos no tocante à par-
ticipação cidadã na esfera pública:
* (a) Exige dos “crentes que adotem, nas relações com os heterodoxos e com
os não crentes, a atitude de levar em conta, razoavelmente, a persistência de um
dissenso” (HABERMAS, 2006, p. 118); e
(b) faz o mesmo tipo de exigência aos não-crentes, sendo que, para
estes, isto significa “a exigência, nada trivial, de determinar auto critica-
mente a relação entre fé e conhecimento, a partir da perspectiva de um
saber mundano. A expectativa de um desacordo persistente entre fé e
conhecimento só merece o predicado de ‘racional’ se às convicções re-
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Em outras palavras, as pessoas não religiosas não podem impedir que as pes-
soas religiosas usem argumentos religiosos na discussão pública alegando que
tais argumentos são irracionais ou não científicos.
Nas sociedades democráticas, o Estado é leigo, entendido este termo em
sentido amplo e não só religioso, de modo que deve praticar uma consciente
neutralidade em relação às cosmovisões presentes na sociedade. Somente exer-
cendo tal neutralidade é que se pode conseguir justiça política na esfera pública
que, em sociedades democráticas, exige a plena e igual participação de todos os
cidadãos, independentemente de suas ideias amplas sobre a realidade, suas religi-
ões, cosmovisões e estilos de vida. Cabe ao Estado garantir que todos os cidadãos
e cidadãs do país tenham acesso pleno aos direitos de cidadania, inclusive os de
participação na esfera pública e nas decisões do Estado sobre a vida comum da
nação. Cabe, ao mesmo tempo, aos cidadãos que exijam do Estado a prática da
laicidade e da neutralidade diante da diversidade religiosa e moral da nação.
Apenas iniciamos uma discussão extremamente importante e bastante com-
plicada. Que ele sirva como motivação para que você, no exercício da cidadania,
aprenda a participar da esfera pública como pessoa religiosa que exerce a soli-
dariedade da fé em defesa dos direitos de todas as pessoas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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subjetividade etc. Como vimos, não se trata de mais uma corrente teológica, mas
de um ‘novo’ modo de fazer teologia, em que as questões públicas da sociedade
atual sejam a fonte dos temas em debate e em construção.
Em certo sentido, a Teologia Pública não é ‘nova’, pois retoma temas da mis-
siologia, da teologia política, da teologia da missão integral e da libertação (entre
outras). A novidade está no modo de abordar os temas e de tratá-los metodo-
logicamente. Você viu, nesta disciplina, uma forma metodológica da Teologia
Pública: o diálogo entre o pensamento contemporâneo e a Teologia Bíblica.
Existem outras formas possíveis, que você conhecerá à medida que continuar
suas leituras sobre o tema.
Liberdade, justiça, reconhecimento e soberania foram os quatro tópicos
que abordamos, após discutir o que é a Teologia Pública. Cada um destes temas
mereceria uma disciplina, pois são complexos e abrangentes, além de oferece-
rem vários desafios práticos. Ficamos, assim, no início da conversa, deixando
aquela sensação de “quero mais”!
Minha oração é que estas reflexões tenham sido úteis para sua vida e minis-
tério. Que você continue estudando estas temáticas e se dedique às questões
públicas na vida pessoal e ministerial. Que Deus abençoe a todas e todos vocês.
Obrigado por estudar conosco na UniCesumar.
Abraços!
2. Para qual autor, “soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”?
a) Schmitt.
b) Agamben.
c) Habermas.
d) Honneth.
e) Forst.
A revista acadêmica da Associação Internacional de Teologia Pública. Artigos em inglês são uma
exigência para quem quer se aprofundar nos temas da Teologia Pública contemporânea.
Web: <http://www.brill.com/international-journal-public-theology>
Material Complementar
REFERÊNCIAS
1. B.
2. A.
3. D.
4. E.
5. C.
CONCLUSÃO
Olá, caro(a) aluno(a)! Você chegou ao fim de mais uma jornada em seu curso de
Teologia na UniCesumar. Que bom! Foi necessário disciplina, esforço e dedicação
para chegar até aqui! Deus certamente tem acompanhado sua vida e seus estudos,
não é verdade?
Muito bem. Estudamos a Teologia Pública. Esta é uma disciplina nova nos currículos
acadêmicos de Teologia, pois é uma nova forma de fazer teologia que tem se de-
senvolvido ao longo dos anos 70 em diante. Como vimos, é uma forma ‘nova’, mas
não tão nova assim, na medida em que ela é a forma renovada das discussões que,
desde tempos antigos, ocupam as diversas correntes teológicas e doutrinárias das
várias Igrejas Cristãs.
As Igrejas jamais deixaram de participar da vida pública da sociedade, assim como
os crentes também sempre participaram da vida pública. A questão fundamental,
porém, é: “quais são as melhores formas de participação na vida pública à luz da
Escritura e das realidades que enfrentamos?”
Participar é preciso. Participar com sabedoria, inteligência, amor e solidariedade são
marcas fundamentais da presença cristã nos espaços públicos da vida social. Parti-
cipar, também, em todas as dimensões da vida pública, e não só naquelas que são
mais fáceis e menos desafiadoras.
Participar exige muito conhecimento e muita sabedoria. A Teologia Pública visa
construir o conhecimento necessário para a participação cristã na vida pública, mas
a sabedoria é algo que só você consegue desenvolver em seu dia a dia, na comu-
nhão com os irmãos e irmãs e, especialmente, na relação de fidelidade a Deus em,
Jesus Cristo e no Espírito Santo.
O material aqui apresentado para sua reflexão é um bom ponto de partida para o
aprendizado da teologia Pública, mas só um ponto de partida. Caberá a você conti-
nuar estudando e praticando Teologia Pública. Você, individualmente, e na comuni-
dade cristã a que pertence.
Que Deus abençoe a todas e todos vocês! Obrigado por participar desta disciplina
e de nosso Bacharelado!
Abraços fraternos.
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