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OS LIVROS DA FUVEST

MENSAGEM
FERNANDO PESSOA

Alamy Stock Photo/Fotoarena

Análise da obra, seleção de textos


ROGÉRIO HAFEZ E
FERNANDO TEIXEIRA DE ANDRADE

Questionário
ROGÉRIO HAFEZ
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MENSAGEM
FERNANDO ANTÔNIO NOGUEIRA PESSOA
Lisboa, 1888-1935

1. VIDA

1.1. O espaço e o tempo poéticos de Pessoa

• 1887
– Data suposta do nascimento do heterônimo RICARDO REIS, no
Porto. Um horóscopo feito por Pessoa situa-o em 19 de setembro, às
16h5m da tarde.

• 1888
– Nasce FERNANDO ANTÔNIO NOGUEIRA PESSOA, em l3 de
junho, às 15h20m.

• 1889
– Data suposta do nascimento do heterônimo ALBERTO CAEIRO,
em Lisboa, às 13h45m, em l6 de abril, segundo horóscopo feito por
Pessoa.

• 1891
– Data suposta do nascimento do heterônimo ÁLVARO DE
CAMPOS, em Tavira, às 13h30m, no dia 15 de outubro, segundo
horóscopo elaborado por Pessoa.

• 1893
– Fernando Pessoa perde o pai.

• 1894
– Morre o irmão Jorge.
– Fernando Pessoa cria o primeiro heterônimo infantil. Como relata o
poeta: “um certo CHEVALIER DE PAS dos meus seis anos, por
quem escrevia cartas dele a mim mesmo”.

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FERNANDO PESSOA
• 1895
– Fernando Pessoa escreve o seu primeiro poema, a quadra “À Minha
Querida Mamã”.
– A mãe do poeta casa-se por procuração com João Miguel Rosa,
cônsul português em Durban, na África do Sul.

• 1896
– Fernando Pessoa parte com a família para Durban, deixando em
Portugal a avó paterna, louca e internada num asilo.
– Começa seus estudos em uma escola católica irlandesa, o convento
de West Street, em Durban, onde aprende inglês e faz a primeira
comunhão. Sua leitura predileta: — “As Aventuras do Sr. Pickwick”,
de Charles Dickens.

• 1899
– Matricula-se na High School.
– Aparece um novo heterônimo: ALEXANDER SEARCH, em nome
do qual Pessoa escreve cartas em inglês a si mesmo.

• 1901
– Começa a escrever poemas em Inglês.
– Viagem de férias a Lisboa, com a mãe e o padrasto, que transportam
na viagem o corpo de uma meia-irmã morta.

• 1902
– Escreve em Durban o poema “Quando Ela Passa”, presumivelmente
inspirado na morte da irmã.

• 1904
– Pessoa recebe o “Queen Victoria Memorial Prize”, pela sua prova
de admissão à Universidade do Cabo.
– Leituras em inglês: Milton, Byron, Shelley, Keats, Tennyson, Carlile
e Edgar Allan Poe.

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MENSAGEM
• 1905
– Fernando Pessoa regressa definitivamente a Lisboa, com intenção
de se inscrever no Curso Superior de Letras. Lê Shakespeare,
Wordsworth, os filósofos gregos e alemães. Toma contato com a
poesia francesa, especialmente a de Baudelaire. Lê os poetas portu-
gueses: CESÁRIO VERDE e CAMILO PESSANHA. Continua a
escrever poesia e prosa em língua inglesa.

• 1907
– Fernando Pessoa abandona o Curso Superior de Letras e monta uma
tipografia: a Empresa Ibis – Tipografia Editora – Oficinas a Vapor,
que mal chega a funcionar.

• 1908
– Começa a trabalhar como “correspondente estrangeiro” em casas
comerciais, profissão que exerceu até a morte. Pessoa escolhe uma
vida discreta, mas livre, sem obrigações fixas, nem horários. O ser
poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação.

• 1910
– Revolução Republicana em Portugal. Teófilo Braga assume a
presidência do Governo Provisório da República.

• 1912
– Fernando Pessoa começa sua colaboração na revista A Águia. Inicia
correspondência com Mário de Sá-Carneiro, que, de Paris, manda a
Pessoa notícias do Cubismo e do Futurismo. Desenha-se na mente
do poeta o primeiro perfil de RICARDO REIS.

• 1913
– Surge o Paulismo, movimento poético que Pessoa considera um
avanço em relação ao Simbolismo e ao Neossimbolismo.
– Pessoa escreve, em inglês, o poema “Epithalamium” e, em
Português, o drama estático “O MARINHEIRO”, em que há
influência também do Simbolismo. Vai elaborando o projeto de
vários livros.

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FERNANDO PESSOA
• 1914
– Eclode a Primeira Grande Guerra.
– Pessoa publica “Pauis”, sob o título de “Impressões do Crepúsculo”.
Inicia-se a ruptura com a corrente saudosista de Teixeira dos Pascoais
e Afonso Lopes Vieira.
– Aparecimento do heterônimo ALBERTO CAEIRO, com os
poemas de “O GUARDADOR DE REBANHOS”. Surgem textos
também dos dois discípulos do “mestre” Caeiro: — RICARDO
REIS e ÁLVARO DE CAMPOS.
– Pessoa compõe a “ODE TRIUNFAL”, encaminhando-se para o
SENSACIONISMO e o FUTURISMO, sob o heterônimo de
Álvaro de Campos. Compõe ainda “CHUVA OBLÍQUA” (poesia
ortonímica), delineando o INTERSECCIONISMO.

• 1915
– Surge a revista Orpheu, marco inicial do Modernismo Português. O
primeiro número de Orpheu, dirigido por Luís de Montalvor e
Ronald de Carvalho, publica os poemas “Ode Triunfal” e “Opiário”
(Álvaro de Campos) e “O Marinheiro” (F. Pessoa). No segundo
número, saem “Chuva Oblíqua” e “Ode Marítima”.
– Fernando Pessoa inicia-se no esoterismo, traduzindo um Tratado de
Teosofia.

• 1916
– Sá-Carneiro suicida-se. “Morre jovem o que os deuses amam”, dirá
mais tarde Pessoa do amigo morto, e cuja morte fora por ele
“pressentida”, numa premonição que acometera o poeta, nessa época
envolvido com a astrologia, com o cabalismo, com o esoterismo.
Essa vertente ocultista e mística terá outros desdobramentos na vida
e na obra de Pessoa.

• 1917
– Surge a revista Portugal Futurista, dirigida por Almada Negreiros e
Santa-Rita Pintor, com colaborações de Fernando Pessoa, que
também escreve para as revistas Exílio e Centauro.

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MENSAGEM
• 1918
– Pessoa publica Antinous e 35 Sonnets, em inglês.
– Atentado a Sidônio Pais, o “Presidente-Rei”, a quem Pessoa dedi-
cará um poema, e em que via uma encarnação momentânea de
D. Sebastião.

• 1919
– O heterônimo Ricardo Reis exila-se no Brasil, pois não aceita a
República.
– Pessoa escreve os “Poemas Inconjuntos”, assinados por Alberto
Caeiro (apesar da morte presumida deste, em 1915).

• 1920
– Pessoa passa a morar com sua mãe, que regressara, viúva, da África
do Sul.
– Escreve cartas de amor a Ofélia, única ligação amorosa do poeta que
se conhece, distante e fugaz.

• 1921
– Publicação dos English Poems I, II e III.

• 1922
– Publicação, na revista Contemporânea, da novela “O Banqueiro
Anarquista”.

• 1924
– Na revista Athena, Álvaro de Campos polemiza com Fernando
Pessoa, “ele mesmo”, no ensaio “O que é a Metafísica?”
—Na mesma revista, publica os “Apontamentos a uma Estética
não Aristotélica”, que comparam as geometrias não euclidianas às
teorias de Einstein sobre a Relatividade.

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FERNANDO PESSOA
• 1925
– Morte da mãe do poeta.
– Fim da revista Athena.

• 1929
– Novas cartas de Pessoa a Ofélia, manifestando a incompatibilidade
entre o casamento e projetos literários dele.

• 1930
– Pessoa é implicado no que aconteceu com o ocultista esotérico
Aleister Crowley, desaparecido misteriosamente durante uma visita
a Portugal.
– Período fecundo de criação poética: poemas de Caeiro, Reis, Campos
e Pessoa, “ele mesmo”.

• 1933
– Pessoa sofre uma crise profunda de neurastenia. A produção poética
continua intensa, sobretudo a de Fernando Pessoa “ortônimo”.

• 1934
– Publica MENSAGEM, livro de poemas de cunho místico-naciona-
lista, única obra em português editada em vida. Concorre, com esse
livro, a um prêmio literário. Obtém o segundo lugar.

• 1935
– Morre Fernando Pessoa, em 30 de novembro, no Hospital São Luís,
em Lisboa, onde tinha sido internado dois dias antes, com “cólica
hepática” – cirrose.

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MENSAGEM
1.2. A poesia e a prosa de Fernando Pessoa

Poesia

a) Mensagem (1934). Único livro, em língua portuguesa, editado em


vida. Poemas de sentido místico-nacionalista. Desdobra-se, quanto
ao tema, nas seguintes obras:
– À Memória do Presidente-Rei Sidônio Pais.
– O Quinto Império.
– Cancioneiro.
b) Poemas Dramáticos, incluindo o drama estático O Marinheiro.
c) Quadras ao Gosto Popular.
d) Poemas Ingleses – Poemas Franceses – Poemas Traduzidos.
e) Poemas de ALBERTO CAEIRO.
f) Odes de RICARDO REIS.
g) Poesias de ÁLVARO DE CAMPOS.
h) Poesias de FERNANDO PESSOA.

Prosa

a) O Livro do Desassossego, por BERNARDO SOARES.


b) Páginas Íntimas e de Autointerpretação.
c) Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literária.
d) Textos Filosóficos.
e) Sobre Portugal – Introdução ao Problema Nacional.
f) Da República.
g) Ultimatum e Páginas de Sociologia Política.
h) Cartas de Amor.
i) Textos de Crítica e Intervenção.

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FERNANDO PESSOA
2. ASPECTOS GERAIS DA POESIA
DE FERNANDO PESSOA

2.1. “O que em mim sente ‘stá pensando”

Fernando Pessoa desfruta da posição de maior poeta da língua


portuguesa, ao lado de Camões, e da mais universal e mais intrigante obra
poética moderna em nossa língua.
Sua modernidade principia pela densa posição metalinguística, pela
consciência crítica e autocrítica, pela negação do sentimento autêntico,
pessoal como conteúdo poético (“O que em mim sente ‘stá pensando”).
A essência de sua linguagem nova reside na constante conversão do
sentimento em pensamento, na constante alquimia do sentido em elaboração
estética que o excede.
Essa “inteligência sensível” possibilitou a realização de uma poética
densamente experimental que, partindo das formas líricas tradicionais,
ultrapassa-as de forma criativa, evoluindo em várias etapas – o saudosismo
esotérico, o nacionalismo místico, o Paulismo, o Futurismo, o Interseccio-
nismo e o Sensacionismo.
Autodefinindo-se como um “poeta dramático”, como se fosse perso-
nagem, Pessoa realiza uma poesia multipessoal e pIurissubjetiva, entre a poesia
pessoal e subjetiva em crise, e a poesia impessoal e objetiva das vanguardas que
derivam de Mallarmé. Essa foi a sua verdadeira revolução poética.

2.2. A pluralidade: os heterônimos

Em carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro, que transcrevemos


parcialmente, Fernando Pessoa, respondendo ao seu amigo, explica o plano
futuro de publicação de sua obra, a gênese dos heterônimos e ocultismo:

Caixa Postal 147


Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.
(...)
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a gênese dos meus
heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo

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MENSAGEM
traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou,
mais propriamente, um histeroneurastênico. Tendo para esta segunda hipótese,
porque há em mim fenômenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não
enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus
heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização
e para a simulação. Estes fenômenos — felizmente para mim e para os outros —
mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática,
exterior e de contato com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós
comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenômenos histéricos rompem em
ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais
histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou
homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim
tudo acaba em silêncio e poesia...
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo.
Vou agora fazer-lhe a história direta dos meus heterónimos. Começo por aqueles que
morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no
passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo
fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem
entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas,
como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo
aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos,
carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas
como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real.
Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me
acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta,
mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou,
antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus
seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não
inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com
a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me
não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival
do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida —
ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal
modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

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Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este
mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais
esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente
alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou.
Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo
nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e
gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários
amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos
de distância, ouço, sinto, vejo. Repito: ouço, sinto vejo... E tenho saudades deles.
(Em eu começando a falar — e escrever a máquina é para mim falar —,
custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou
entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber.
Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia
escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no
estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso.
Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa
que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida
ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e
apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns
dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira —
foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um
papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta
e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir.
Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um
título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém
em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo
da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive.
E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente
peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva
Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de
Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reação
de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e
subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo

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Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o
via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me
impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem
interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com
esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de
realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as
discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador
de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de
mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão
estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e
como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar
qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao
Sá-Carneiro que eu fizesse um poema “antigo” do Álvaro de Campos — um poema
de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a
sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes
do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver
ainda qualquer traço de contato com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho
escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive
que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém
qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou
escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido — , diga, que
de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao
escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro
de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está
lidando, meu caro Casais Monteiro!
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço
incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de
Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me
lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente
no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas
viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma.
Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde,
diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está

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certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em
Lisboa em inatividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil
(morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas
muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de
altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada
todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos
entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e
normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação
que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e
deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha,
tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no
Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um
latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de
Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar
engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente
de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada
inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de
uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza numa ode. Campos,
quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-hete-
rónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de
Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um
pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um
constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a
minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos
o raciocínio e a afetividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha,
é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal
o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer “eu próprio” em
vez de “eu mesmo”, etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero
exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de
Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).
Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair,
por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a
incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse
falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim,
passariam meses sem eu conseguir escrever.

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Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta).
Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara;
compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos
superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos
graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presu-
mivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos,
que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso,
interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do
Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (exceto a Maçonaria anglo-saxônica) a
expressão “Deus”, dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer
“Grande Arquiteto do Universo”, expressão que deixa em branco o problema de se
Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não
creio na comunicação direta com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual,
poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para
o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo,
intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho místico, que
não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho
alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma
transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes
com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso
dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem
Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho
(traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária
de Portugal, indica simplesmente — o que é facto — que me foi permitido folhear
os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde
cerca de 1881. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois
se não devem citar (indicando a ordem) trechos de Rituais que estão em trabalho.
Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas
incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em
fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder,
e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.
Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.
Fernando Pessoa

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FERNANDO PESSOA
3. O NACIONALISMO MÍSTICO DE MENSAGEM

Mensagem oferece-nos antes de mais nada, na obra de Pessoa, a pecu-


liaridade de ser o único livro publicado em português enquanto o poeta
estava vivo. Pela sua arquitetura extremamente rigorosa e acabada, ele
constitui assim um contraponto à natureza fragmentária do conjunto da obra
heteronímica.
Na obra, concretiza-se a intenção, que desde longe o acompanhava, de
publicar uma coletânea de poemas de índole “patriótica” — no sentido
muito particular (e universal) que Pessoa dá a esse termo.
Nacionalista místico, sebastianista racional: a simples justaposição
desses dois substantivos e desses dois adjetivos (e por que não falar,
indistintamente, de um nacionalismo sebastianista e de um misticismo
racionalista em Pessoa?) bastará para mostrar tudo o que há de falível numa
atribuição ao poeta de qualquer posição politicamente comprometida com
os movimentos “nacionalistas” de direita, com a ditadura fascista de Antônio
Oliveira Salazar (já então no poder). A sua visão “patriótica” é, na realidade,
essencialmente esotérica e messiânica, assumindo um simbolismo
poeticamente estruturado na Mensagem.
Esse livro deveria intitular-se, inicialmente, “Portugal”, e teria a
natureza de um “poema épico representando as navegações e descobertas
dos portugueses como provenientes da guerra entre os velhos e os novos
deuses”. É-se imediatamente levado a pensar numa réplica de Os Lusíadas,
mesmo que o poeta não cite como modelo possível senão a Ilíada. A
hipótese não é de excluir, se pensarmos que Pessoa tinha previsto o próximo
advento de um “SupraCamões”.
A “experiência simbólica” identifica-se, de fato, em Mensagem, com
a analogia, enquanto essência da própria experiência poética, subentendida
por toda a poesia de Pessoa, como estes versos do Fausto tão bem o
revelam.

Ah, tudo é símbolo e analogia!


O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento —
Sombras de vida e de pensamento.

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MENSAGEM
Tudo o que vemos é outra coisa,
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.

Mensagem não é, no fundo, mais do que uma manifestação sistemati-


camente elaborada deste simbolismo esotérico.
Estamos, na verdade, perante um livro que obedece, na sua arquitetura
interna, a uma estrutura esotérica. Ele divide-se em três partes: Brasão, Mar
Português e O Encoberto. Este esqueleto ternário corresponde sem dúvida,
para Pessoa, a uma intencionalidade oculta. O mesmo número aparece com
efeito retomado nas suas subdivisões: assim, a terceira parte do livro é
dividida, por sua vez, em três partes (Os Símbolos, Os Avisos, Os Tempos);
e a terceira dentre elas, a mais explicitamente profética, é introduzida por um
poema dividido ele mesmo em três, onde o eu lírico alude a três navegantes
misteriosos, de que um deles, o terceiro, não identificado, aguarda a ordem
de partir... Não se trata, pois, de um simples acaso ou de uma mera
preocupação de equilíbrio: o número 3 é reconhecido como central pelo
esoterismo. Da mesma forma no que respeita aos números 5, 7 e 12, que
dominam as restantes subdivisões do livro. O simples esquema gráfico da
arrumação do poema sugere a estrutura simbólica esotérica de Mensagem,
pela reiteração dos números 3, 5, 7 e 12. O título Mensagem tem o mesmo
número de letras que o título que Fernando Pessoa queria pôr – Portugal –,
com oito letras, símbolo do infinito.

Mensagem
(3 partes)

1.a parte: 2.a parte: 3.a parte:
“Brasão” “Mar Português” “O Encoberto”
(5 subdivisões) (12 subdivisões) (3 subdivisões)

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FERNANDO PESSOA

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
I – “Os Campos” — “Os Castelos”
(2 poemas) — “O das Quinas”


— “Ulisses”
— “Viriato”
— “Conde D. Henrique”
II – “Os Castelos” — “D. Tareja”
(7 + 1 mitos) — “Afonso Henriques”
— “D. Dinis”
— “D. João I e D. Filipe”

1.a parte:
“Brasão”


— “D. Duarte, Rei de Portugal”


(5 subdivisões)
— “D. Fernando, Infante de Portugal”
III – “As Quinas”
— “D. Pedro, Regente de Portugal”
(5 poemas)
— “D. João, Infante de Portugal”
— “D. Sebastião, Rei de Portugal”

IV – “A Coroa”
(um poema de 12 versos)


— “A Cabeça do Grifo”
V – “O Timbre” — “Uma asa”
(3 poemas) — “Outra asa”


I – “O Infante”
II – “Horizonte”
III – “Padrão”
IV – “O Mostrengo”
2.a parte: V – “Epitáfio de Bartolomeu Dias”
VI – “Os Colombos”
“Mar Português”
VII – “Ocidente”
(12 subdivisões) VIII – “Fernão de Magalhães”
IX – “Ascensão de Vasco da Gama”
X – “Mar Português”
XI – “A Última Nau”
XII – “Prece”

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MENSAGEM


— “D. Sebastião”
— “O Quinto Império”


I – “Os Símbolos”
— “O Desejado”
(5 poemas)
— “As Ilhas Afortunadas”
— “O Encoberto"
3.a parte:
— “O Bandarra”


“O Encoberto” II – “Os Avisos”
— “Antônio Vieira”
(3 subdivisões) (3 poemas)
— “Terceiro”


— “Noite” (3 partes)
— “Tormenta”
III – “Os Tempos”
— “Calma”
(5 poemas)
— “Antemanhã”
— “Nevoeiro”

Há, nessa direção, a presença da tradição iniciática dos templários,


ordem religiosa “em dormência”, de que Pessoa se insinua próximo.
A simbologia rosa-cruz aparece explicitamente diversas vezes. A alusão ao
Sebastianismo confere, na direção do ocultismo, uma implicação patriótica
e nacionalista metafísica.
A primeira parte de Mensagem, “Brasão”, invoca o tempo e o espaço de
Portugal, situando-os, enquanto símbolos, além da Geografia e da História.
Cada um dos cinco elementos, que compõem uma espécie de escudo de
Portugal, corresponde a fatos ou a personagens, simbolizando o seu ser
oculto. Já no primeiro poema, Portugal é visualizado como o “rosto” de uma
“Europa” que do “Oriente” contempla um “Ocidente” profetizado como
“futuro do passado”, numa esotérica circularidade do espaço e do tempo:

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FERNANDO PESSOA
I – Os Campos
Primeiro / Os Castelos

A EUROPA jaz, posta nos cotovelos:


De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;


O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico(1) e fatal,


O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

A segunda parte, “Mar Português”, centra-se na expansão ultramarina,


na constituição do verdadeiro “Império” português, que não é o império
terrestre.

“Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.


Senhor, falta cumprir-se Portugal!”

A terceira parte, “O Encoberto”, anuncia profeticamente o regresso de


Portugal à sua missão autêntica — a uma paz suprema —, reconhecida
através dos símbolos do Sebastianismo, forma portuguesa do mito do
“Quinto Império”:

“Grécia, Roma, Cristandade,


Europa — os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?”

1
Esfíngico = relativo a esfinge. Esse olhar “esfíngico” projeta já o destino de Portugal no
oceano.

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MENSAGEM
Seguem-se os três “Avisos”: o primeiro, de Bandarra, poeta que em
suas trovas popularizou e profetizou o mito da volta de D. Sebastião; o
segundo, do Padre Antônio Vieira, que em suas obras proféticas reforçou
a crença na volta do jovem rei, desaparecido nas areias do Marrocos, na
batalha de Alcácer-Quibir (1578); o terceiro “aviso” insinua-se como sendo
do próprio Fernando Pessoa, que fecha a segunda subdivisão de O enco-
berto que se aproxima messianicamente do poema “Nevoeiro”, que remete
ao século XX e é o último de Mensagem.

NEVOEIRO
(...)
“Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!”

Com Mensagem, Pessoa concorreu, em 1934, ao prêmio literário


“Antero de Quental”, então instituído pelo Secretariado de Propaganda
Nacional, órgão interessado na promoção do nacionalismo português sob o
regime salazarista, fascista. Vimos anteriormente, ao tratar do conjunto da
obra poética de Fernando Pessoa, como o autor é capaz de assumir
personalidades poéticas distintas. Mensagem veio a receber daquele órgão
um prêmio de “categoria b”, sob o pretexto de que o livro não atingia o
número de páginas previstas para o da “categoria a”, que foi atribuído a
Romaria, do Padre Vasco Reis. Acerca do livro vencedor, Pessoa escreveu
uma crítica penetrante, ironicamente elogiosa, hoje integrante de seus
escritos em prosa. Ao que tudo indica, Pessoa recebeu o resultado do
concurso de maneira bastante desinteressada, como que a sugerir que os
equívocos que se manifestavam na recepção de seu livro em nada o
surpreendiam. Há, realmente, várias dificuldades que a compreensão de
Mensagem impõe, se não quisermos fazer desse livro uma leitura muito
redutora, limitando-o apenas a determinadas vertentes do “nacionalismo”
de seu autor. A propósito, declarava Pessoa: “Sou, de fato, um nacionalista
místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso e até em contradição

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FERNANDO PESSOA
com isso, muitas outras coisas.” (“Carta a Adolfo Casais Monteiro”, in
Obras em Prosa).
Convém recordar que Mensagem faz parte da poesia ortonímica de
Fernando Pessoa e, pela sua arquitetura extremamente rigorosa e acabada,
constitui um contraponto à natureza fragmentada do conjunto da obra
heteronímica. Todavia, isso não significa que se deva ler o livro à margem
do complexo jogo dos heterônimos. No subconjunto da poesia de Fernando
Pessoa “ele mesmo”, Mensagem ocupa um lugar especial, ao lado dos
poemas de inspiração mística ou ocultista, que costumam exigir do leitor
boa familiaridade com uma linguagem concisa e plena de material
simbólico. Trata-se, afinal, da obra de composição mais complexa realizada
pelo poeta, que nela trabalhou desde 1913.

Minha loucura, outros que me a tomem


com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
mais que a besta sadia,
cadáver adiado que procria?

Os versos acima concluem o poema “D. Sebastião”. O eu lírico no


poema é o próprio rei de Portugal, que foi considerado louco no delírio de
grandeza que o levou a empreender uma campanha de conquista no norte da
África, de trágico resultado para o país, em Alcácer-Quibir, 1578.
Mensagem constituiu-se finalmente de 44 poemas, dispostos, como já
foi mostrado, em três partes (“Brasão”, “Mar Português”, “O Encoberto”),
que tematizam a ascensão, o apogeu e o declínio de Portugal. Não há um
arranjo simétrico nessa divisão, uma vez que as partes possuem um número
diverso de poemas, e já que a primeira e a terceira delas comportam várias
divisões internas. O livro tem como epígrafe a frase latina Benedictus
Dominus Deus noster qui dedit nobis signum (“Bendito Deus nosso Senhor
que nos deu o sinal”); “Brasão”, por sua vez, traz a epígrafe Bellum sine
bello (“Guerra sem guerra”), subdividindo-se em cinco seções inspiradas
nos elementos que compõem o brasão de Portugal (“Campos”, “Castelos”,
“Quinas”, “Coroa” e “Timbre”), representação emblemática da formação
da nacionalidade portuguesa; “Mar Português”, simbolizando o momento
máximo do poder lusitano, recebe a epígrafe Possessio maris (“Posse do

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MENSAGEM
mar”), sem comportar divisões em seus doze poemas; “O Encoberto”, por
fim, divide-se em três seções (“Os Símbolos”, “Os Avisos”, “Os Tempos”)
e tem como epígrafe Pax in Excelsis (“Paz nas Alturas”), talvez anunciando
profeticamente o regresso de Portugal a sua primazia anterior.

V – O Timbre (3)

IV – A Coroa (1)

III. As Quinas (5)

II. Os Castelos (7 + 1)

I. Os Campos (2)

Brasão de Portugal, com indicação das correspondências entre seus elementos e as seções da
primeira parte de Mensagem (entre parênteses, o número de poemas constantes de cada
seção). (Extraído da introdução de Carlos Felipe Moisés: F. Pessoa, Mensagem, S. Paulo:
Difel, 1986.)

Entretanto, a história de Portugal é revista em Mensagem sobretudo


através de algumas de suas figuras de maior expressão, o que nos dá a
chance de ver claramente em operação a lírica dramática de Pessoa: essas
figuras ora assumem o eu lírico (apresentando-se em primeira pessoa, como

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FERNANDO PESSOA
no exemplo de “D. Sebastião”), ora são abordadas por um eu lírico que lhes
é alheio. E é importante notar ainda que Pessoa seleciona os heróis de
Mensagem não propriamente pela grandeza de seus feitos, pela relevância
histórica e conhecida de seus gestos, mas sim pela elevação magnânima
indiciada no comportamento desses mesmos heróis, pela significação
espiritual e transcendente dos episódios em que estiveram envolvidos. As
figuras de Mensagem, inspiradas quase sempre por forças enigmáticas e
vozes proféticas, compõem uma nova história da grandeza e da “loucura”
do país. Esse fato pode ajudar a entender o recorte peculiar que Pessoa
impõe à galeria de vultos da história de Portugal: não é o dado histórico em
si o que merece a atenção primeira do poeta, mas sobretudo aquilo que na
história se deixa entrever e captar enquanto significado perene, atemporal
ou supra-histórico.
De fato, era o propósito de Pessoa celebrar um “supraPortugal”, à
maneira do “supraCamões” por ele mesmo prenunciado no início de suas
atividades como crítico literário. Camões é, aliás, a mais significativa
ausência no elenco de personalidades focalizadas no poema, embora haja
intertextualidade com Os Lusíadas. É preciso notar, nesse sentido, que
ocorre em Mensagem algo diverso do que se vê em Os Lusíadas, onde
Camões celebra a espantosa expansão marítima portuguesa e o vasto
império então conquistado, com o orgulho de poder opor à voz mítica das
musas da poesia antiga a veracidade histórica de seu canto:

Ouvi: que não vereis com vãs façanhas,


Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas (estranhas = estrangeiras)
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras* vossas são tamanhas (*subentendido: façanhas)
Que excedem as sonhadas*, fabulosas,
Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro
E Orlando, inda que fora verdadeiro.”
(Os Lusíadas, I, estância 11)

Obs.: Rodamonte, Rogério e Orlando são personagens de poemas célebres


dos renascentistas italianos Boiardo e Ariosto.

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MENSAGEM
Pessoa, por sua vez, preferindo buscar na realidade histórica o aspecto
mítico e virtual de seus eventos, destacará em Mensagem a conquista por
Portugal de uma segunda “distância”, de um outro “mar”, aberto à aventura
dos argonautas do espírito:

E ao imenso e possível oceano


Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.”(...)
(“Padrão”— “Mar Português”, III)

Tal fato, no entanto, atesta por si só que Camões e Os Lusíadas, longe


de estarem ausentes do horizonte de reflexão de Fernando Pessoa,
constituem na verdade o grande modelo com o qual se confronta Mensagem.
Se neste último Camões não recebe um poema que lhe seja especialmente
dedicado, isso ocorre porque na realidade a sua presença perpassa
sensivelmente todo o poema de Pessoa, pois Mensagem é uma obra
animada, em seu conjunto, por um espírito de emulação, de competição com
a grande epopeia da língua portuguesa.
Sendo Mensagem, enfim, um livro que mobiliza de modo muito
particular um bom número de referências históricas, onde cada poema é
dotado de autonomia apenas relativa (pois afinal estão todos, ao mesmo
tempo, voltados para figuras específicas e interligados em séries precisas),
o melhor é acompanhar atentamente alguns de seus textos mais expressivos.
Tratando-se de poemas de grande densidade e, em alguns casos, de especial
dificuldade, recomenda-se a leitura repetida de cada um deles, sempre
levando em conta os comentários e esclarecimentos que os acompanham.
Depois que todos tenham sido entendidos separadamente, é necessário
proceder a uma leitura em sequência do conjunto, o que dará uma amostra
da organização geral do livro, de cujos 44 poemas leremos quase metade.
Não se deve esquecer que Mensagem, mais do que uma coletânea de poemas
separados, é no conjunto um só poema.

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FERNANDO PESSOA
4. ANTOLOGIA E COMENTÁRIO

ULISSES

O mito é o nada que é tudo.


O mesmo sol que abre os céus (o mesmo sol = “o próprio sol”)
É um mito brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou, (Este = Ulisses)


Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre


A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre. (E a fecundá-la decorre = e, em
Em baixo, a vida, metade decorrência, a fecunda)
De nada, morre.

Nota: “Ulisses” é o primeiro poema da seção “Os Castelos”, da primeira


parte do livro (“Brasão”). Celebra o herói grego da Odisseia (Odisseu =
Ulisses) como o fundador fabuloso de Lisboa e, por extensão, da nação
portuguesa. Segundo a lenda, o nome da cidade seria derivado de
“Ulissipona”, a cidade de Ulisses. Inaugura-se assim a história mítica de
Portugal com a exaltação paradoxal do caráter puramente ideal dos feitos de
seu herói, que “sem existir nos bastou” (segunda estrofe), ou seja, sem
existir na realidade, constituiu o fundamento suficiente da realidade dos
portugueses. Observe-se o recurso às contradições agudas, ou oximoros, ou
paradoxos (“O corpo morto de Deus, / vivo e desnudo”; “Por não ter vindo
foi vindo”, etc.), presentes neste poema que proclama o primado do mito
(“o nada que é tudo“, o oximoro inaugural) em relação à vida (“metade de
nada”), que sem ele perece. Em outras palavras, é o mito que dá vida à
própria vida.

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MENSAGEM
VIRIATO

Se a alma que sente e faz conhece


Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu.

Nação porque reencarnaste,


Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste –
Assim se Portugal formou.

Teu ser é como aquela fria


Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.

Nota: “Viriato” é o segundo poema da seção “Os Castelos”, de “Brasão”.


Celebra a figura do pastor que lutou na resistência dos lusitanos contra a
invasão romana. Viriato, traído por oficiais que se deixaram subornar pelo
invasor, foi assassinado em 140 a.C. Ele ocupa em Mensagem, ao lado de
Ulisses, o lugar reservado aos precursores de Portugal, visualizados pelo
poeta na Antiguidade greco-latina. Desde o início do poema, especialmente
nos dois versos iniciais, é possível notar a presença do filósofo grego Platão,
com sua teoria da reminiscência, segundo a qual o conhecimento humano
resulta do fato de nossa alma recordar-se de uma experiência anterior por
que passou no mundo transcendente das ideias, ou das puras formas. Em
“Viriato”, de modo semelhante, a “raça” portuguesa reconhece a própria
identidade porque esta se fundamenta na enigmática memória dos gestos
daquele combatente, cujo ser se encontra “na antemanhã” de Portugal. Assim,
os portugueses existiriam como nação por serem uma reencarnação de Viriato
e seriam um povo graças à ressurreição do próprio Viriato ou daquilo que o
animava. Deve ser notada, também, a sugestão de que Viriato poderia ter
sido o instrumento ou a revelação de uma potência transcendente que operou
a formação de Portugal, como sugere a segunda estrofe, particularmente o
sétimo verso: “Ou tu, ou o de que eras a haste” (= o meio, o suporte).

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FERNANDO PESSOA
D. DINIS

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo


O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio murmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro, (arroio = regato,


Busca o oceano por achar; pequena corrente de água)
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

Nota: Este é o sexto poema da série “Os Castelos”, de “Brasão”. D. Dinis


(1261-1325), o sexto rei de Portugal, conhecido como “O Lavrador”, deu
grande impulso à agricultura e às letras. Como poeta, é um dos expoentes
do Trovadorismo em Portugal. Foi o fundador da primeira Universidade do
país, a de Lisboa, posteriormente transferida para Coimbra. Mensagem
destaca, como algo decisivo para a futura expansão marítima do país, o fato
de D. Dinis ter mandado semear o pinhal de Leiria, referindo-se ao rei como
“o plantador de naus a haver” (as embarcações futuras, cuja construção se
beneficiaria da madeira dos pinhais). Como ocorre em “Viriato”, D. Dinis
é instrumento de uma vontade metafísica, transcendente. Ele prepara de
longe o império e encarna outro momento da história oculta de Portugal: a
fala dos pinhais, cujo movimento escapa à percepção humana, confunde-se
com a vocação da nascente cantiga do rei-poeta e com o “marulho obscuro”,
que é “o som presente desse mar futuro”, o vindouro império português.

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MENSAGEM
D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL

Louco, sim, louco, porque quis grandeza


Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem


Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

Nota: O quinto poema da seção “As Quinas”, de “Brasão”, celebra


D. Sebastião (1554-1578), conhecido como “O Desejado”. Filho do príncipe
D. João e neto de D. João III, seu nascimento foi aguardado com grande
ansiedade, uma vez que dele dependia a independência do reino, à falta de
outro herdeiro português. Com a morte de D. João III, foi declarado maior e
subiu ao trono, já em 1568, aos quatorze anos de idade. Na dedicatória de
Os Lusíadas, escrita antes dessa data, Camões o exortou dizendo: “Tomai as
rédeas vós do reino vosso: / Dareis matéria a nunca ouvido canto. / Comecem
a sentir o peso grosso, / Que pelo mundo todo faça espanto, / De exércitos e
feitos singulares / De África as terras e do Oriente os mares.” (I, 15) De fato,
D. Sebastião logo realizou uma primeira expedição africana, em 1573 (Tânger
e Ceuta), e em seguida lançou-se contra Mulei-Ahmed, em Marrocos, onde
veio a desaparecer, na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Pouco depois,
Portugal caía sob o domínio espanhol. Tal desastre deu origem a um poderoso
mito que é recorrente na literatura portuguesa desde então: o Sebastianismo,
ou seja, a crença de que retornará à pátria o soberano capaz de resgatar a
grandeza perdida. Pessoa retoma magnificamente esse mito, dando voz à
“loucura” de D. Sebastião, vítima do desejo do impossível, da febre de uma
grandeza interdita pela “Sorte” (o Destino). Quem nos fala diretamente não é
o rei desaparecido em algum ponto do “areal” (o deserto africano, onde está
o “ser que houve”), mas o rei mítico, ideal, atemporal (o ser “que há”).

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FERNANDO PESSOA
PADRÃO

O esforço é grande e o homem é pequeno.


Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.


Este padrão assinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano


Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a cruz ao alto diz que o que me há na alma


E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

Nota: Terceiro poema de “Mar Português”, segunda parte de Mensagem,


“Padrão” celebra Diogo Cão, que, sob o reinado de D. João II, foi um dos
maiores navegadores portugueses. De suas expedições a Mina, Zaire e
Congo (1482 e 1484) provieram os conhecimentos que permitiriam a
grande aventura de Vasco da Gama, a primeira viagem marítima às Índias
(1497-98), tema de Os Lusíadas. Em Mensagem, porém, Diogo Cão surge
como homem de espírito fervoroso, que abandona “este padrão ao pé do
areal moreno” (padrão era o marco que os navegadores erigiam nos locais
por eles conquistados, nesse caso uma localidade próxima ao deserto
africano), movido pela “febre de navegar”, pelo impulso de prosseguir
indefinidamente. Essa atração pelo que é futuro e distante é, novamente,
uma imagem para a aventura do espírito, para o desejo de superar a
natureza humana pela aproximação ao plano divino: “(...) da obra ousada,
é minha a parte feita: / O por-fazer é só com Deus” (segunda estrofe). Daí

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MENSAGEM
procede a distinção, recorrente em Mensagem, entre os dois “mares”, o
finito e o infinito, isto é, entre os planos humano e divino, o não transcen-
dente e o transcendente. O escudo de armas português, com suas cinco
quinas, representando as chagas de Cristo, aponta para a conquista do “mar
sem fim”, e Diogo Cão lança-se, nessa busca da serenidade divina, ao
“porto sempre por achar”.

O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar


Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo:
“El-Rei D. João Segundo!”

“De quem são as velas onde me roço?


De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu, e disse:
“El-Rei D. João Segundo!”

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FERNANDO PESSOA
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
“Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!”

Nota: Quarto poema de “Mar Português”, “O mostrengo” (= monstrengo)


é dos textos de Mensagem o que possivelmente mantém com Os Lusíadas
a relação mais clara. Com ele, Pessoa alude ao conhecido episódio em que
Camões narra o encontro dos portugueses, liderados por Vasco da Gama,
com o gigante Adamastor, símbolo dos perigos do mar e dos obstáculos que
se interpunham à aventura lusitana, no caso o Cabo das Tormentas na África.
Em “O Mostrengo”, porém, o comandante que se confronta com o deus das
trevas e das fronteiras extremas permanece propositadamente anônimo, o
que no entanto só confirma a sua função de representante dos navegantes
portugueses como um todo: “Aqui ao leme sou mais do que eu: / Sou um
Povo que quer o mar que é teu” (terceira estrofe). A resposta que dá ao
Mostrengo, declarando-se enviado por “El-Rei D. João Segundo” (refrão
do poema), tampouco implica uma definição particular de sua figura, uma
vez que sob esse reinado várias conquistas marítimas de vulto se realizaram,
como por exemplo a entrada de Diogo Cão no Zaire e a passagem de
Bartolomeu Dias pelo Cabo das Tormentas, no extremo sul da África
(depois rebatizado, eufemisticamente, como Cabo da Boa Esperança).

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MENSAGEM
OCIDENTE

Com duas mãos — o Ato e o Destino —


Desvendamos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o facho trêmulo e divino
E a outra afasta o véu.

Fosse a hora que haver ou a que havia


A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
Foi alma a Ciência e corpo a Ousadia
Da mão que desvendou.

Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal


A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.

Nota: “Ocidente”, sétimo poema da segunda parte, “Mar Português”, versa


de forma detida uma ideia presente em diversos poemas de Mensagem. Uma
vez sugerida a noção de que os heróis da história portuguesa poderiam ser
personagens de um enredo tramado por uma potência que os transcendia,
resta então compreender que espécie de participação propriamente humana
há na definição dessa mesma história. “Ocidente” oferece uma resposta a
essa questão, formulada nos termos de uma dualidade: no mesmo gesto de
“desvendar” (isto é, de “tirar o véú”) estão presentes duas coisas, “o Ato e
o Destino”, simbolizados, no texto, pelas duas mãos. Uma delas é o “Ato”
responsável pela própria ruptura do véu (a ultrapassagem das fronteiras do
Ocidente, tema da segunda estrofe), e a outra o “Destino”, que fornece a
luminosidade necessária à visão e consciência dessa mesma ruptura (tema
da terceira estrofe). Curiosamente, Pessoa confere a ambas as mãos assim
divididas as marcas de uma segunda dualidade, a do corpo e da alma,
tornando desse modo indissolúveis os laços do saber e da prática (“Foi alma
a Ciência e corpo a Ousadia”, segunda estrofe) e “também os elos entre o
plano divino e humano (“Foi Deus a alma e o corpo Portugal”, terceira
estrofe). Este poema reforça a ideia de que, em Mensagem, os heróis
cumprem um destino que os ultrapassa, e a história pátria obedece a um
plano oculto: Portugal é um instrumento de Deus.
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FERNANDO PESSOA
PRECE

Senhor, a noite veio e a alma é vil.


Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,


Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —,


Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância —
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Nota: Décimo segundo poema de “Mar Português”, “Prece” encerra esta


segunda parte de Mensagem e se antecipa ao tom grave e melancólico
dominante na terceira parte do livro, “O Encoberto”, que tematiza o eclipse
do império português e reclama o retorno de D. Sebastião, ou “O Desejado”.
Sobrevém aqui a obscuridade (“a noite”) e o espírito, de arrebatado e
elevado, agora se rebaixa (“a alma é vil”). Privado do império, resta a
Portugal “O mar universal”, isto é, o recomeçar a grande aventura do
espírito: “E outra vez conquistemos a Distância — / Do mar ou outra, mas
que seja nossa!”. Esse é o objetivo da prece que, interessada em renovar
“a chama do esforço” português, roga uma vez mais pelo “sopro, a aragem
– ou a desgraça ou a ânsia”.

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MENSAGEM
O QUINTO IMPÉRIO

Triste de quem vive em casa,


Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!


Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz —
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem


No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro


Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro (atro = “escuro”)
Da erma noite começou. (erma = “deserta”)

Grécia, Roma, Cristandade,


Europa — os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

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FERNANDO PESSOA
Nota: Este poema é o segundo da primeira seção, “Os Símbolos”, da terceira
parte do livro, “O Encoberto”. Canta o tema, recorrente em Mensagem, da
necessidade imperiosa da viagem, da conquista, do inconformismo diante
dos limites cotidianos. Observe-se, porém, que essa necessidade é afirmada
mesmo que, paradoxalmente, o cotidiano em questão seja feliz. “Triste de
quem é feliz!” é a contradição agora forjada por Pessoa. Isso distingue a
argumentação deste poema dos motivos que geralmente justificam a
transgressão sonhadora, o engajamento em determinada mitologia, como
acabamos de ver em “Prece”, poema anterior nesta antologia. “O Quinto
Império” caracteriza-se ainda por retornar uma imagem inicialmente
encontrada nas profecias de Daniel, que interpreta um sonho de
Nabucodonosor como sendo a representação dos quatro grandes impérios
então conhecidos pela humanidade (Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma), aos
quais se seguiria o quinto, supostamente definitivo, o império de Cristo.
Pessoa, no entanto, adapta esse mito do “Quinto Império”, fazendo-o, por
um lado, coincidir com os símbolos do Sebastianismo e, por outro lado,
explicitar a gênese da tradição espiritual portuguesa e europeia (como se vê
na última estrofe). Segundo suas próprias palavras, a tradição portuguesa
“sendo espiritual, em vez de partir do Império material da Babilônia, parte,
antes, com a civilização em que vivemos, do império espiritual da Grécia,
origem do que, espiritualmente somos. E, sendo esse o Primeiro Império, o
Segundo é o de Roma, o Terceiro o da Cristandade, e o quarto o da Europa
— isto é, da Europa laica de depois da Renascença. Aqui o Quinto Império
terá que ser outro que o inglês, porque terá que ser de outra ordem.”
E conclui: “Nós o atribuímos a Portugal, para quem o esperamos.”

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MENSAGEM
O ENCOBERTO

Que símbolo fecundo


Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.

Que símbolo divino


Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Cristo.

Que símbolo final


Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.

Nota: “O Encoberto”, quinto e último dos “Símbolos” da terceira parte de


Mensagem, lida com emblemas herméticos do Rosacrucianismo: na visão
dos rosa-cruzes, Cristo derrama seu sangue na cruz para que a “rosa do
coração” (a alma interior ignorada do homem) possa vir ou voltar à
consciência humana. O poema de Pessoa associa por fim a figura de Cristo
à do “encoberto” D. Sebastião: “Na Cruz morta e fatal / A Rosa do
Encoberto.” Torna-se claro, assim, que a associação entre Cristo e
D. Sebastião, em Mensagem, não provém apenas do messianismo judaico,
mas guarda vínculos com o esoterismo rosacruciano.

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FERNANDO PESSOA
ANTÔNIO VIEIRA

O céu ‘strela o azul e tem grandeza.


Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.

No imenso espaço seu de meditar,


Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

Mas não, não é luar: é luz do etéreo. (etéreo = céu)


É um dia; e, no céu amplo do desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.

Nota: Este é o segundo poema da série “Os Avisos”, de “O Encoberto”.


Padre Antônio Vieira (1608-97), grande orador barroco, ministro de
D. João IV, importa ao enredo ideal de Mensagem sobretudo como um
adepto fervoroso de D. Sebastião. Vieira, autor de História do Futuro, foi o
primeiro a vincular a profecia do Quinto Império, do Livro de Daniel, às
visões sebastianistas anteriormente expressas nas trovas do sapateiro da
Idade Média, Bandarra. Cristo e D. Sebastião então irmanaram-se no
universo mítico de Vieira, possibilitando que o Quinto Império fosse ao
mesmo tempo universal e português. Observem-se, para além disso, a
exaltação de Vieira como “imperador da língua” e a beleza das imagens do
poema, que partem do céu físico, passam pelo céu literário e intelectual em
que se encontra o escritor, para chegar ao “céu amplo do desejo”, em que
raia a “madrugada irreal do Quinto Império”.

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MENSAGEM
NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,


Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra (baço = sem brilho)
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder
Como o que o fogo-fátuo encerra. (fogo-fátuo = combustão
efêmera de gases em cemitério)
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!
Valete, Fratres.

Nota: “Nevoeiro” é o título significativo do poema que encerra o livro


visionário que é Mensagem. O contorno impreciso ou contraditório do
Portugal contemporâneo (“fulgor baço”, “brilho sem luz”, etc.) associa-se
ao drama universal da identidade (“Ninguém conhece que alma tem”),
questão primeira de Pessoa, poeta dos heterônimos. Os paradoxos (“Que
ânsia distante perto chora?”) surgem, neste poema, como sinal de queda em
um plano inferior de compreensão e definição do ser: “Tudo é disperso,
nada é inteiro”. Eis a razão para a exortação final a Portugal (“É a hora!”),
a fim de que se abandone o triste torpor que domina a nação. A frase latina
Valete, Fratres (“Adeus, irmãos”) soa ao mesmo tempo como despedida e
convite à reflexão.

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FERNANDO PESSOA
5. EXERCÍCIOS

I.
A.
Eis aqui se descobre a nobre Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda.

B.
Eis aqui, quase cume de cabeça
De Europa toda, o reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa.

C.
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando, (fitando = “olhando”)
E toldam-lhe românticos cabelos (toldam = “encobrem”)
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;


O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra, onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal, (esfíngico = “misterioso”)


O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

(FUVEST) – Os textos A e B iniciam respectivamente as estâncias 17 e 20


do canto III de Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, e o texto C é um poema
do livro Mensagem, de Fernando Pessoa.

1. A que movimento literário pertence cada um dos autores?

2. De que recurso comum aos dois textos se valem os autores para elaborar
a descrição da Europa?

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MENSAGEM
II.
II. “Mar Português”
I. O INFANTE

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.


Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,


Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.


Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Nota: O Infante D. Henrique (1394-1460), conhecido como “O Navegador”,


participou da conquista de Ceuta (1415) e lançou os fundamentos da epopeia
marítima portuguesa e da expansão imperial do país. Os seus bens e os da
Ordem de Cristo, de que era mestre, deram parte do suporte financeiro para
a arrancada dessa gigantesca tarefa imperialista. Há hoje dúvidas sobre a
existência de uma Escola de Navegação, em Sagres, dotada de observatório
astronômico, da qual teria sido o fundador. Nesse poema, D. Henrique é visto
como instrumento de Deus para o cumprimento do desígnio de que “a terra
fosse toda uma”. Esse destino foi cumprido com o desbravamento dos mares,
levado a efeito pelos portugueses; mas o fim do domínio dos mares não
corresponderia ainda ao fim do grande destino de Portugal.

3. Qual a metáfora que, no poema acima, pode ser associada ao feito


português de desbravamento dos mares?

4. Explique, no contexto do poema, o sentido da frase “falta cumprir-se


Portugal”.

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FERNANDO PESSOA
III.
II. “Mar Português”
II. HORIZONTE

Ó mar anterior a nós, teus medos


Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério (sidério = celeste, astral)
‘Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa – (severa = bem definida)


Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.

O sonho é ver as formas invisíveis


Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –
Os beijos merecidos da Verdade.

Nota: “Horizonte” relata a experiência de uma conquista peculiar, a do


“Longe”, que envolve uma transformação da visão do viajante: “E, no
desembarcar, há aves, flores, / Onde era só, de longe, a abstrata linha.”
Essa conquista, feita com as “naus da iniciação”, tem um manifesto caráter
transcendental. De fato, neste contexto, iniciação quer dizer “preparação
pela qual se introduz alguém nos mistérios de alguma religião ou doutrina”.

5. O poema refere-se a uma revelação, a uma iniciação no mistério. Como


é descrita a visão do mar antes dessa iniciação, antes de ser atingida a “Linha
severa da longínqua costa”? Responda citando expressões do texto.

6. Quais são as imagens utilizadas no poema para sugerir a experiência de


realizar o “sonho” de chegar “mais perto” do “Longe”? Responda mencio-
nando expressões do texto.
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MENSAGEM
IV.
II. “Mar Português”
VI. OS COLOMBOS

Outros haverão de ter


O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca


É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história.
E por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma luz emprestada.

Nota: Os portugueses, para o poeta de Mensagem, são os Colombos em


busca, não de um continente deste mundo, mas de um espaço extramundano
— o “Longe”, uma terra metafísica que só a “Magia” pode sugerir e trazer
para o plano da realidade histórica. Portanto, mesmo tendo perdido suas
conquistas no plano material, os portugueses não teriam perdido o desejo de
conquistar esse Longe que ninguém lhes poderia tirar.

7. Explique o título desse poema, “Os Colombos”, esclarecendo por que,


na visão do poeta de Mensagem, ele se aplica aos portugueses.

8. Por que, segundo o poema, a glória dos “outros” é apenas a “auréola


dada por uma luz emprestada”? Por que seria diferente a glória dos
portugueses?

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FERNANDO PESSOA
V.
II. “Mar Português”
X. MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto de teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena


Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Nota: Este é um dos poemas mais famosos de Mensagem, seja porque não
oferece a dificuldade de outros poemas do livro, seja por seu tom
tocantemente lamentativo, seja pelos versos iniciais da segunda estrofe, que
contêm uma expressão que se tornou proverbial: “Tudo vale a pena se a
alma não é pequena”.

9. Sabendo que o Bojador é um cabo na costa ocidental da África que, até


ser ultrapassado por Gil Eanes, em 1434, era considerado o limite extremo
das navegações, responda: Qual o sentido dos versos “Quem quer passar
além do Bojador / Tem de passar além da dor”?

10. Qual o sentido dos dois versos finais do poema?

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MENSAGEM
VI.
III. “O Encoberto”
I. “Os símbolos”
I. D. SEBASTIÃO

‘Sperai! Caí no areal e na hora adversa


Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal e a morte e a desventura


Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.

Nota: Este é o segundo dos poemas dedicados a D. Sebastião em Mensagem


(o primeiro deve ser relido, na pág. 39).

11. Relacione os dois versos finais desse poema com o outro poema
dedicado a D. Sebastião (pág. 39). Qual o trecho do poema anterior que
corresponde ao sentido desses versos finais?

12. Depois de reler os poemas aqui apresentados, responda: Em que Men-


sagem se distingue de Os Lusíadas no que diz respeito à celebração de
Portugal?

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FERNANDO PESSOA
6. RESPOSTAS

1. Camões é um poeta do Classicismo ou Renascença lusa (1527-80), ou


seja, um dos autores que, nos séculos XV e XVI, tomaram os antigos
autores gregos e latinos como modelos de suas obras. Fernando Pessoa
é um poeta do Modernismo, ligado aos movimentos de renovação da
arte e da literatura no início do século XX.

2. Ambos utilizam a prosopopeia, ou personificação, para descrever o


continente europeu e, em ambos, Portugal (ou, no fragmento A, toda a
península Ibérica, que era indicada com a designação de Espanha)
ocupa o lugar da cabeça ou rosto do corpo que é a Europa.

3. É a metáfora “desvendando”. Por isso, a expansão marítima dos


portugueses é indicada através da imagem metafórica da “orla branca”,
que vai tomando conta de ilhas e continentes e acaba por abranger todo
o mundo.

4. O que Portugal cumpriu foi o desígnio de Deus de que “a terra fosse


toda uma”, mas o grande destino do país não se teria esgotado na
conquista e na perda do Império. Faltaria ainda cumprir-se o destino
que, na visão de Fernando Pessoa, vai além da conquista material,
mundana, e visa à conquista espiritual, metafísica.

5. Antes da iniciação, há “a noite e a cerração”, ou seja, a obscuridade –


a visão não era clara e parecia que o “Longe nada tinha” daquilo que,
depois da iniciação, foi revelado.

6. Depois de passadas as “tormentas” e superado o “mistério”, atingida a


“linha severa da longínqua costa”, a terra apresenta, onde nada parecia
haver, um espetáculo de “sons e cores”, “aves, flores” – as “formas
invisíveis da distância imprecisa”, que os portugueses conquistaram
com “movimentos da esp’rança e da vontade” .

7. Os portugueses são Colombos no sentido de descobridores, desbra-


vadores do mundo, mas, diferentemente dos demais navegadores como

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MENSAGEM
o descobridor da América, Cristóvão Colombo, porque as conquistas
lusas não se reduzem ao mundo material e despido de mistério, pois esses
Colombos portugueses se voltam para o Longe, evocado pela magia.

8. A auréola dos outros Colombos é de “uma luz emprestada” porque suas


descobertas se limitam ao mundo da realidade próxima e sem mistérios,
enquanto a verdadeira glória das descobertas vem da distância (o
Longe) e do mistério (a Magia), que teriam sido e continuariam sendo
os ideais dos Colombos portugueses. Daí porque apenas a glória destes
últimos seria dada por uma luz própria: eles seriam os verdadeiros
Colombos do espírito.

9. Estes versos significam que só se atinge o grande ideal à custa de


grandes sofrimentos. Só vai além dos limites dos outros homens quem
é capaz de ir além de si mesmo.

10. Nesses versos se associam, na imagem do mar, os desafios mais


extremos (“o perigo e o abismo”) e a mais extrema grandeza, altura e
beleza (“o céu”). Nesse sentido, esses versos se aproximam dos dois
outros comentados na questão anterior: só através dos maiores perigos
e dificuldades se pode atingir o que é grandioso e elevado.

11. Os versos “É O que eu me sonhei que eterno dura, / É Esse que


regressarei”, nos quais se distingue o D. Sebastião mítico, sonhado, do
D. Sebastião histórico, que morreu em Alcácer-Quibir, correspondem,
no poema anterior, aos versos “Por isso onde o areal está / Ficou meu
ser que houve”.

12. Em Os Lusíadas, Camões afirma que está celebrando feitos reais, não
imaginários, ou seja, o poeta se orgulha de ter como assunto fatos
históricos, cuja grandeza supera as façanhas dos heróis míticos da
Antiguidade. Não deixa de elaborar uma visão mítica, mas baseada na
história. Em Mensagem, ao contrário, Fernando Pessoa põe em segundo
plano os eventos da história portuguesa, para celebrar a “loucura”, o
“sonho”, o “ideal” das grandes figuras do país, que são apresentadas no
livro não em sua dimensão histórica, mas em sua estatura mítica.

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FERNANDO PESSOA

Parte da biblioteca de Fernando Pessoa e a famosa arca em que, depois de


sua morte, foram encontradas suas obras inéditas.

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