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PRÁTICAS DISCURSIVAS

Só podemos entender bem uma época sentindo seus


A subversão odores. Os humores sociais e instintivos são mais
eloqüentes a seu respeito do que muitos tratados

pós-moderna e o eruditos. Neles exprimem-se os afetos, as paixões,


as crenças que a permeiam. É assim que se manifes-
tam os sonhos mais desvairados com que ela joga
diabólico ou dos quais vem a ser joguete. É assim que
podemos entender que a “parte destruidora”, a do

Maffesoli: uma excesso ou da efervescência, é exatamente o que


sempre antecipa uma nova harmonia

breve discussão (Maffesoli, 2004, p.17).

sobre o mal como


essência
necessária à
mídia
contemporânea NAS ÚLTIMAS DÉCADAS do século XX, os inte-
lectuais e a mídia de vários países do mun-
RESUMO do se surpreenderam com o pensamento
O artigo foi escrito à luz do pensamento de Michel sociológico de Michel Maffesoli. Polêmico,
Maffesoli, com inspiração no livro “A parte do diabo”. É um e absolutamente contemporâneo, Maffesoli
ensaio sobre o polêmico pensamento do autor, que estuda é um desses raros cientistas sociais que têm
as ciências sociais mesclando o trágico e o banal. Ao desafi- a coragem de estudar assumidamente o co-
ar seus leitores e estudiosos a discutir a sociedade contem- tidiano. No Brasil, o interesse por sua obra
porânea, Maffesoli conta com o diabo, neste caso, como um foi despertado nas estações finais da dita-
companheiro de suas provocações. dura militar e começou a ganhar grande
força na época da retomada da democracia
ABSTRACT no país. Era um momento em que muitos
This text deals with Michel Maffesoli’s new book A parte do pensadores sul-americanos recorriam à vo-
Diabo (2004) where he discusses with his readers the cação européia de influência nos paradig-
contemporaneous mixing of the tragic with the ordinary. mas críticos da sociedade, especialmente
aqueles considerados de vanguarda políti-
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) ca. Desde então, Michel Maffesoli, titular
-Diabólico (Evil) da cadeira de Émile Durkheim na Sorbon-
-Mídia (Media) ne, tem se destacado por suas propostas
-Contemporaneidade (Contemporaneity) epistemológicas que incorporaram às ciên-
cias sociais temas aparentemente parado-
xais como a paixão e o banal.
Na sua obra, lidamos com o trágico e
a festa para entender o mundo. Pode-se rir
ou chorar, mas é impossível não levar seus
objetivos a sério. Povoado por ancestrais
como Durkheim, Weber e Simmel, em um
rápido exemplo, sua forma de trabalhar
Ricardo Ferreira Freitas privilegia o presente e o instante vivido
FCS - UERJ como assuntos fundamentais à discussão

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sobre as construções simbólicas e as repre- mais diversas tribos do cotidiano, tecendo
sentações que os múltiplos grupos sociais e entrelaçando imensas teias sem fim. Um
ordenam e desordenam a cada dia. A mídia enredo no qual as ambiências tribais esti-
e os eventos promotores de ajuntamentos muladas pela comunicação social e basea-
de pessoas1 são, portanto, referências ins- das na lógica da identificação convivem
trumentais para analisar sociologicamente com totalitarismos religiosos, ditaduras e
questões que muitas vezes são considera- conflitos étnicos. Esse panorama instala a
das secundárias como o frívolo e a aparên- atualidade em redes que se sobrepõem a
cia. Ao mesmo tempo, Maffesoli também outras redes, todas emaranhadas, mas cada
contempla o debate sobre os grandes confli- uma mantendo alguma motivação própria
tos mundiais, sejam de origem étnica ou fi- para existir.
nanceira, enriquecendo a compreensão a A sensação de insegurança e a denún-
respeito da estética da contemporaneidade. cia mundial da decadência do conceito de
Suas idéias vão além dos limites do políti- Estado-nação levam os cidadãos a se da-
co e do econômico, abordando a realidade rem conta que a crise é totalmente planetá-
social em variadas dimensões e possibili- ria. A poluição, a aids, as gangues de jo-
tando, assim, novas propostas à sociologia vens, os atentados terroristas são elementos
e área afins. Para alguns intelectuais, sua que permeiam todo o globo e que fazem
obra é vazia de provas, é apenas um jogo parte da vida de cada cidadão consumidor.
de palavras. Essa é uma maneira rasteira e Mais do que nunca, céu e inferno se mistu-
equivocada de interpretar o trabalho de ram na vida das pessoas seja para viver o
Maffesoli. Como sabemos, os inovadores horror dos dias de hoje, seja para aprovei-
incomodam e, por isso, geralmente, susci- tar o conforto e a vida mais longa possibili-
tam sentimentos opostos de animosidade tados pelas tecnologias. Em todos esses
ou de admiração. Maffesoli é um dos gran- processos a comunicação é palavra-chave.
des nomes das ciências sociais contemporâ- Eis o enredo deste artigo, escrito, com mui-
neas e isso se deve justamente à coragem to prazer, à luz do pensamento de Michel
de estudar o ordinário, os ritos urbanos, a Maffesoli e com inspiração especial no li-
rua e colocá-los lado a lado a assuntos me- vro A parte do diabo.
gaprojectivos como as guerras e as bolsas
de valores em todo o mundo.
O corpo, a moda e a aparência são, no A cidade e o inferno formado na mídia
quadro maffesoliano, alguns dos compo-
nentes estruturais, ou mesmo constitutivos, A forma, com efeito, nos incita a pen-
da sociedade. Não à toa, são também três sar a partir do paroxismo ou do exces-
vértices importantes da publicidade e pro- so. Por isso, possui uma função
paganda na contemporaneidade, sempre le- epistemológico-metodológica inegá-
vando as pessoas a desejarem o reconheci- vel. (...) para retomar uma perspectiva
mento dos outros; na maioria das vezes, pe- weberiana, o “irreal” do tipo “ideal” é
los produtos da cultura de massa. Por ou- particularmente pertinente para com-
tro lado, assistimos ao crescimento do espe- preender todos os fatos “reais” da
táculo dos clubes de fidelização que tribali- vida cotidiana que, sem isso, passari-
zam os consumidores em categorias apa- am totalmente despercebidos. É nesse
rentemente menores, mais “personaliza- sentido que a forma é uma força de
das”. Em todas essas situações, é sabido atração. Ela acentua, caricaturiza, car-
que o cidadão contemporâneo reage contra rega no traço e, assim, faz sobressair o
o que lhe incomoda comprando coisas, fi- invisível, o subterrâneo, quase se po-
cando cada vez mais refém dos objetos e deria dizer o subliminal, que a ciência
dos serviços. No consumo configuram-se as oficial tem muita dificuldade para

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distinguir, e ainda mais para integrar pós-modernas...” (Maffesoli, 1992, p. 194).
às suas análises. De tanto dissecar, Nesta mudança de milênio, a técnica
distinguir, o pensamento moderno es- reaparece como grande ator expressando-
queceu que o todo possui uma força se por cabos de fibra óptica, satélites, ban-
específica que é, qualitativamente, di- cos de dados e muita imagem. Rapidez em
ferente da soma de suas partes... nome do conforto e da suposta necessidade
(Maffesoli, 1998, p. 89). de informação. E é exatamente o excesso de
comunicações nas grandes cidades do iní-
Os confins misteriosos da alma huma- cio do século XXI que esvazia as possibili-
na são interrogações irresistíveis sobre as dades de formalizações entre os enigmas
viagens individuais e coletivas a que a hu- do bem e os do mal. Ainda tentamos classi-
manidade está sujeita. Mas uma coisa é cer- ficá-los, mas cada dia é mais difícil. A famí-
ta: a mídia está lá. Seja onde for. Nesse ce- lia diz uma coisa, a política diz outra e os
nário, a obra de Michel Maffesoli é exem- meios de comunicação de massa tentam
plar e de fundamental importância para a deter a verdade. Dada a desintegração de
composição teórica de alguns fenômenos diversos valores modernos a favor do que
comunicacionais pós-modernos, especial- poderia ser entendido como o bem ou o
mente os “formados” ou ambientados nas correto, a mídia ocupa, hoje, o lugar da to-
grandes cidades. Neste texto, optamos em mada de partido, ou seja, das definições
alçar um exemplo da mídia carioca contem- das coisas que são da ordem de Deus e da-
porânea, o caso dos pitboys, para estimu- quelas que são da ordem do Diabo. Nem
larmos a discussão sobre as aplicações do por isso, ela escapa de um permanente pa-
campo teórico maffesoliano às praticas do radoxo crítico e ideológico no qual, por
jornalismo diário. exemplo, num mesmo número de jornal,
As megalópoles são povoadas por podem oferecer, em páginas diferentes,
mensagens em todos os seus recantos. versões antagônicas sobre os fatos apura-
Além de superpopulosas, elas são tentacu- dos. Por esse motivo, é irresistível comen-
lares compondo-se de estradas aéreas, ter- tar neste texto a cobertura jornalística que
restres, subterrâneas e virtuais que as li- tem sido dada a um personagem das trevas,
gam, irremediavelmente, ao resto do globo, segundo o discurso da imprensa carioca,
fazendo com que forma e conteúdo ga- consolidado pela expressão pitboy 2 . No
nhem significados conjuntos e até insepará- Rio de Janeiro, e em outras grandes cida-
veis em muitos casos. É o mundo da dita- des do planeta, identificamos esse persona-
dura da comunicação e da transfiguração gem, em princípio do mal, mas que alcança
do político; dois campos que se entrecru- notoriedade midiática e, muitas vezes,
zam o tempo todo, tanto nos espaços físi- transforma-se em ídolo, quase sempre efê-
cos como nos virtuais. Mundo visitado por mero, proveniente da cultura de massa. Os
Maffesoli através dos ritos do cotidiano ur- pitboys são protagonistas de inúmeras no-
bano que geram uma cadência desenfreada tícias de violência em espaços de lazer na
de acontecimentos sociais. grande mídia e ganham rápida e passagei-
Emergência: vivemos a tirania da rapi- ra notoriedade. Entretanto, o personagem
dez e da velocidade. “Maquinismo a não po- pitboy parece ainda ter longa vida no ima-
der mais, lazeres invasores e imperativos, ra- ginário da cidade visto que a cada dia
pidez de relações e meios de comunicação, sabe-se de mais algum caso em algum bair-
tudo contribui a esta ‘intensificação da vida ro. Nos jornais do Rio de Janeiro, a Barra
dos nervos’ (Einsteigerung des Nervensle- da Tijuca é campeã no número de notícias
bens) que, segundo Simmel, é próprio das sobre o assunto.
metrópoles modernas e que obviamente au- A Barra da Tijuca, bairro novo basea-
mentou consideravelmente nas megalópoles do no conceito de condomínios fechados e

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shopping centers, oferece várias possibili- neira de garantir o território de acordo com
dades de entretenimento diurno e noturno. os bíceps ou os tríceps. Apesar de espanca-
Globalizada e poluída pela estética Miami, rem namorados que tentam proteger suas
a Barra é elencada por atividades direta- companheiras, esbofetearem as moças e, in-
mente ligadas ao consumo que ajudam a variavelmente, estarem envolvidos em bri-
construir uma nova espécie de sujeito mais gas de médias ou grandes proporções, há
do que nunca contaminado pelas supostas sempre uma lei que os ampara e os liberta.
benesses do capital. Apesar das lindas Poderíamos dizer que os pitboys são, por-
praias e das montanhas ainda existentes ao tanto, a representação do mal. Do mal bur-
redor do bairro, seus moradores preferem a guês e arrogante dos que detêm o domínio
reclusão em grupo. Em boates, academias, de certos bens materiais ou intelectuais e
shoppings, clubes, pedaços quase privados que, em países como o Brasil, conseguem
de areia na praia ou nas áreas do condomí- estar acima da ética baseada no respeito a
nio, cidadãos pensam afirmar-se como in- todos. A ética, neste caso, é essencialmente
divíduos autônomos que transitam entre as tribal e parte muito mais de princípios es-
tribos que bem escolhem. No entanto, a téticos do que morais ou cristãos, os quais,
proposta de privatização dos espaços de aliás como sabemos, estão em permanente
lazer e moradia com o objetivo de oferecer transfiguração há muito tempo.
segurança e convivialidade entre particula- Naturalmente, não podemos simplifi-
res demonstra sua saturação quando não car as coisas a esse ponto, dividindo inge-
consegue dar conta da violência cada vez nuamente as pessoas entre boas e más. A
mais presente nesse pedaço da cidade. humanidade não se permite mais ser julga-
Mais do que nunca, o sentimento de hete- da entre o bem e o mal apesar de haver
ronomia substitui a fantasia da autonomia criado normas e leis em toda sua história.
vendida pelos anúncios publicitários dos Então, o problema já não é só a violência
condomínios e dos shoppings da região. urbana do jeito “comum”, dos assaltos e
As ordens estão dadas pela tecnologia, assassinatos, da falta de liberdade de ir e
pela violência e pela mídia. vir, mas sim do poder da retórica (as pala-
A agressividade de jovens nascidos vras), do dinheiro (os bens) e do corpo
no próprio bairro e dos freqüentadores ha- (sexo). A relação desses três ingredientes
bituais é o exemplo aqui escolhido, mas faz com que a atitude nefasta desses rapa-
poderíamos falar dos assaltos às mansões, zes receba também outros olhares, inclusi-
dos acidentes mortais com carros possan- ve o do desejo sexual ligado à força – as-
tes, do tráfico de drogas e de tantas outras pecto, aliás, que eles fazem questão de co-
notícias sobre esse bairro planejado, mas locar em pauta. Muitas vezes, eles deixam
que mantém o mesmo imaginário de peri- as boates, os bares ou os restaurantes com
go e risco que o resto da cidade. Escolhe- brigas porque não quiseram pagar as con-
mos os pitboys, pois, apesar de suas infra- tas; nesse caso, eles se desestabilizam justa-
ções, os jornais também fazem questão de mente por faltar com aquilo que pode pro-
mostrar o lado família e o sofrimento da- vocar adesão ao próximo, ou seja, o capital.
queles que lhes são caros, provocando, ob- Já quanto à palavra, seus argumentos resi-
viamente, um sentimento dúbio no leitor. dem nos dois elementos anteriores: eles
Nesse quadro, poder-se-ia mesmo di- verbalizam a força do corpo para agredir e
zer que os pitboys são uma exacerbação da demonstrar poder e usam o dinheiro ou a
falta de perspectivas nas heranças do proje- influência política dos pais para ter a lei a
to moderno da busca de dignidade e de seu favor. Do espaço público de socializa-
identidade. Geralmente amantes de exercí- ção passamos a uma permanente zona de
cios físicos pesados e de lutas, esses rapa- conflito, mesmo em espaços privados. É
zes gostam de expor seus corpos como ma- importante também notar, ainda à luz da

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visão maffesoliana, que esse comportamen- – ser conatural ao dado humano. Te-
to pode ser interpretado como uma nega- mos, para começar – o que está longe
ção do fim da modernidade, já que os valo- de ser desprezível – a vox populi, que
res masculinos são tão exacerbados. Aceitar bem sabe, em seu saber incorporado,
a pós-modernidade implicaria lidar com que, em suas diversas modulações, o
uma certa feminilização do mundo e acatar, conflito (ou a antinomia dos valores)
portanto, a cultura dos sentimentos plurais capilariza-se no conjunto do corpo so-
que não deixam de valorizar o corpo, mui- cial, ou ainda que é extremamente
to pelo contrário, mas na qual o corpo deve complexo e, ao mesmo tempo, extre-
ser simultaneamente emissor e depositário mamente simples. É precisamente
de diversas expressões misturadas da ra- esta dupla estrutura que o torna im-
zão e da emoção. permeável aos sistemas filosóficos.
Aliás, como Maffesoli constata há Estes, para explicar, precisam reduzir
anos, em nome do bem ou do mal, para o o que abordam à sua expressão mais
melhor ou para pior, os transbordamentos simples. Ora, apesar desta redução, o
sociais são fenômenos da dimensão animal mal está aí mesmo, constante, irre-
da humanidade que, na verdade, são da or- futável. Ele tem uma realidade maciça
dem do sentimental e do plural. O homem que não se pode negar (Maffesoli,
deve, então, aceitar tanto o seu corpo como 2004, pp. 76-77).
a sua sombra. Uma tal implicação traduz,
de certa maneira, os entusiasmos baseados Em nome do bem, o homem construiu
no afeto ou simplesmente no estar-junto. diversos episódios polêmicos em sua his-
O jornalismo e a publicidade são tória cultural. Os etnocídios e genocídios
grandes estimuladores das confusões con- convocados pelos colonialismos e imperia-
temporâneas. Nesse sentido, o exemplo lismos econômicos e políticos ocorridos no
dos pitboys aqui explorado é uma mera re- ocidente, como a Inquisição na Europa da
ferência às inúmeras contradições que po- Idade Média e as missões jesuítas na Amé-
dem ser encontradas na mídia sobre qual- rica do Sul, bem exemplificam a defesa do
quer fato. De nenhuma maneira, estamos bem contra o mal como base teórica ou ide-
imputando a Maffesoli a defesa do com- ológica. Mesmo depois da Revolução In-
portamento bárbaro dos pitboys. Quere- dustrial, os velhos desentendimentos entre
mos somente lançar um outro olhar sobre vizinhos ou entre fiéis de diferentes religi-
os editoriais e as reportagens que se contra- ões continuam inspirando as desavenças
dizem tão recorrentemente nos grandes ve- entre as pessoas, separando-as entre boas e
ículos de massa, como já é sabido. Nossa más. Das grandes Guerras às conseqüênci-
intenção é ressaltar a impossibilidade da as do 11 de setembro, os últimos cem anos
escolha perfeita e justa do bem e do mal, o continuaram a viver grandes conflitos em
que evidentemente, é bastante diferente da que matar pelo bem era o argumento mais
opção pelo conceito do “politicamente cor- importante.
reto”, tão difundido em todo o mundo, e Mas, como sabemos, o inferno está
que rege a maioria das redações jornalísti- cheio de boas intenções políticas. Esse qua-
cas. dro tem inspirado Michel Maffesoli a anali-
sar, ao longo de sua carreira, a sociedade
contemporânea dando atenção especial às
A parte do Diabo: o mal como valor tribos urbanas e às questões do presente.
implícito ao bem-estar do homem Em A Parte do Diabo, Maffesoli, novamente
instigante, discute o esvaziamento político,
Mergulhemos mais fundo sob este a violência e os conflitos da atualidade, te-
mal que sabemos – aceitemos ou não orizando sobre sensações e situações que

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se desenrolam na vida cotidiana. Inspirado está lá, com o diabo no corpo, nessas comu-
em alguns de seus livros anteriores, nos nidades de destinos tribais que expressam
quais as controvérsias do bem relacionadas o tempo do plural.
aos supostos territórios do diabo estiveram O retorno da assepsia ideal das gran-
em pauta, o sociólogo se dedica integral- des teorias ocidentais não resiste às imun-
mente, nesta obra, ao lugar do mal, delica- dícies da política e da economia. A pessoa
do tema dos nossos tempos sombrios. Face plural num mundo policultural tende a in-
aos excessos e às múltiplas efervescências tegrar o mal como mais um elemento entre
de diversas ordens que não cessam de in- outros. Nesse quadro, o real plural relativi-
comodá-lo, Michel Maffesoli retoma uma za os valores, dando uma sensação de tran-
problemática que o perturba há tanto tem- sitoriedade aos estatutos sociais suposta-
po: a aposta na mutação pós-moderna con- mente imutáveis como, por exemplo, os di-
siste também na tarefa de reconhecer a par- reitos dos trabalhadores e das categorias
te do diabo de nossas sociedades cristãs. O socioprofissionais. O emprego não é mais
bem não seria mais o único fim das institui- um valor essencial já que a precarização
ções humanas, mas um elemento entre ou- dos contratos distancia a possibilidade de
tros. A teatralização festiva e barroca do de- se fazer carreira numa mesma instituição.
mônio, expressão de um sentimento trágico Se conseguir um trabalho seguro é uma
da vida, torna-se então uma maneira eficaz possibilidade remota, a energia juvenil dei-
de afagar o mal, de se proteger, homeopati- xa de ter como projeto a reivindicação, o
zando-o. futuro, a história. Ela se manifesta e se es-
O mal é complementar ao bem. Ele é gota no instante – festas, chats, trabalhos
irredutível já que faz parte da estruturação temporários – e não carece de uma tradu-
social. Assim, negá-lo é mais destrutivo do ção política. Nesse contexto, os jornais e os
que aceitá-lo. Reconhecer o aspecto estru- livros são cada vez menos lidos pelos jo-
tural do mal significa participar, de uma vens que preferem a Internet com seus fo-
maneira ou de outra, da força das coisas da ros de discussão e outras buscas de encon-
vida. Nas sociedades pós-modernas em tro. Mas, por outro lado, Maffesoli também
gestação, desencantadas pela saturação dos defende que a parte destruidora, a do ex-
valores universais, onde o pouco interesse cesso ou da efervescência, sempre antecipa
pela política é só mais uma ilustração, as uma nova harmonia. O fim do ciclo do bem
marginalidades criativas, as alteridades fe- como valor absoluto não significa que esta-
cundas, a exacerbação da crueldade, a rea- remos todos queimando nas fogueiras do
nimação do selvagem são alguns dos extre- inferno em futuro próximo, mas sim que é
mos dos recursos sociais, nômades e tri- possível o povo ter uma visão mais crítica
bais. Mergulhar ritualisticamente na lama em relação aos princípios morais de facha-
para um culto vodu ou remexer o lodo da e estabelecer outra relação com as reali-
numa festa techno são sintomas revelado- dades da vida, como já podemos perceber
res de uma intensidade exponencialmente em uma série de comunidades onde a ine-
existencial das tramas contemporâneas. A xistência de referências básicas de cidada-
ambivalência das comunhões comunitárias nia obriga as pessoas a tomarem medidas
pós-modernas, onde o lugar faz o elo, pode em benefício do grupo, sobretudo devido à
abrigar as histerias das mais diversas or- ausência do poder público governamental.
dens em nome do gozo como nos grandes Assim, os excessos de todas as or-
eventos artísticos, esportivos e mesmo reli- dens, as inúmeras práticas de risco, as no-
giosos. Os ritos coletivos se difundem pela vas rebeliões juvenis e todas as efervescên-
capilaridade no cotidiano da vida social já cias da pós-modernidade são expressões
que são baseados no politeísmo de valores, dessa sede do infinito que acontece no dia-
espécie de erotismo social no qual o outro a-dia; infinito que, como vemos, é bastante

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influenciado, para não dizer ameaçado, 2 A expressão pitboy é uma paródia à raça de cão chamada
pela heteronomia que constitui o novo cor- de pitbull. Essa relação se expressa, sobretudo, pela vio-
po social. lência em comum entre esses rapazes e essa raça de ca-
chorro e também porque, muitas vezes, são esses jovens
os proprietários desses cães. Geralmente tatuados, eles
Por uma última maldade habitam boa parte das academias de musculação da ci-
dade e fazem escola entre os adolescentes. A estética
O lugar central da experiência contemporâ- pitboy está na moda. Durante os anos de 2003 e 2004, O
nea se exprime pelo deslizamento que vai Globo e o Jornal do Brasil, além de outros jornais cariocas,
da História Geral, e segura de si mesma, às dedicaram dezenas de páginas aos conflitos gerados por
pequenas histórias que constituem o ci- essa tribo.
mento social. Esses deslizamentos subli-
nham a saturação da consciência tão pensa-
da pelas ciências e disciplinas modernas. Referências
Consciência de si, própria do individualis-
mo epistemológico, consciência de classe, MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. Rio de Janeiro, Foren-
fundamento da ação política, ou consciên- se Universitária, 1987.
cia cidadã, típica do ideal democrático e do
contrato social moderno. Em compensação, _____. La transfiguration du politique. Paris, Grasset, 1992.
vemos surgir uma consciência espontânea,
porém heteronômica, muitas vezes até sim- _____. Elogio da razão sensível. Petrópolis, Vozes, 1998.
plesmente institucional. Consciência, tudo
indica, de um desejo de ideal comunitário, _____. A parte do diabo: resumo da subversão pós-moderna. Rio de Ja-
no qual o bem e o mal estão irremediavel- neiro, Record, 2004.
mente unidos.
As interpretações da obra de Maffeso- _____. Le rythme de la vie: variations sur les sensibilités postmodernes.
li rendem infinitos tratados, pensamentos, Paris, La Table Ronde, 2004.
idéias. E é justamente aí que reside seu
maior mérito: seu trabalho nos impõe a re-
flexão. Muitas vezes, tendo o trágico como
campo de estudo, Maffesoli consegue dis-
tanciar-se, como é necessário ao espírito ci-
entífico, tanto do passado enquanto refe-
rência pesada e definitiva como também do
futuro onde o risco da previsão pode ser
fatal. Neste pequeno artigo, mais uma ho-
menagem do que uma certidão teórica, ten-
tamos mostrar que, além de toda sua serie-
dade profissional, Maffesoli continua se di-
vertindo em desafiar seus leitores e estudi-
osos a discutirem a sociedade contemporâ-
nea e conta com o diabo, neste caso, como
um companheiro de suas provocações .

Notas

1 Referimo-nos nesse caso tanto aos espetáculos artísticos


e esportivos com platéia como também aos ajuntamen-
tos virtuais.

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