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PSICANÁLISE E FORMALISMO

Francisco Leonel F. Fernandes

Tese submetida ao programa de Pós-


Graduação em Teoria Psicanalítica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor.

Rio de Janeiro, 2000

i
PSICANÁLISE E FORMALISMO

Francisco Leonel F. Fernandes

Tese submetida ao programa de Pós-


Graduação em Teoria Psicanalítica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor.

Aprovada por:

__________________________
Ana Beatriz Freire (Orientadora)
Doutora em Psicologia Clínica – PUC-RJ

__________________________
Jefferson Machado Pinto
Doutor em Psicologia – USP

__________________________
Waldir Beividas
Doutor em Lingüística – USP

__________________________
Raphael de Haro Junior
Dr. rer. nat – Friedrich-Wilhelmsche Universität Vu Bonn

__________________________
Ricardo Kubrusly
Phd – Universidade do Texas

Rio de Janeiro, 2000

- ii -
FICHA CATALOGRÀFICA

Fernandes, Francisco Leonel de Figueiredo


Psicanálise e Formalismo, Rio de Janeiro, UFRJ,
Instituto de Psicologia, Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, 2000, VIII, 252f.

Tese: Doutor em Teoria Psicanalítica


1. Psicanálise 2. Formalismo 3. Matemática

- iii -
Agradecimentos:

À Ana Beatriz Freire, pela orientação, pelo encorajamento, pela paciência


e por ter corrido os riscos em convocar-me ao trabalho de maneira
decidida apesar de nossa amizade.

Aos professores da Pós-Graduação da UFRJ, em especial Luis Alfredo


Garcia Rosa, Waldir Beividas, Ana Carolina Lo Bianco, Angélica Bastos
e Regina Herzog, pelas sugestões e discussões suscitadas durante suas
aulas e reuniões de trabalho.

Aos colegas do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica a quem devo


boa parte dos melhores argumentos dessa tese. Agradeço especialmente a
Antônio Carlos Rocha a quem atribuo ter-me transmitido essa direção de
reflexão que afirma a especificidade da psicanálise, sem contudo ignorar
sua inserção social. Aos colegas, Fernanda T. Costa-Moura, Dionísia R.
Andrade, Valmir Sbano, Luiz Romão, Eduardo C. Rocha, Ana C.
Manfroni, Ana Carolina Lo Bianco, Pedro Duarte da Silveira, Luiza
Ribeiro e Joana de Barros da Costa por terem sustentado comigo uma
discussão que permitiu-me avançar nesse trabalho.

A Raphael de Haro Jr e Gilda Gomes Carneiro por nossas discussões a


respeito da matemática. E também Paula Borsoi e Nestor Lima Vaz pelas
discussões a respeito do seminário sobre a Identificação.

À minha irmã Cléa pela revisão e pelas sugestões.

Aos colegas da Universidade Federal Fluminense pelo apoio, e acolhida.

- iv -
Resumo

Nosso propósito foi o de examinar a presença de formalismos


matemáticos na psicanálise. Em primeiro lugar, estabelecemos a noção
do que seja formalismo. Para isso investigamos a história da matemática
no sentido de observar o percurso conceitual que desembocou na idéia de
formalismo. Examinamos a seguir como a ciência moderna (Descartes,
Galileu e Newton) foi determinada, do ponto de vista das idéias, pelo
avanço de uma concepção mais formalizada de seus conceitos maiores
(número, ordem, contínuo, etc.). A ciência só foi possível, através do
passo de Descartes e Fermat, com a “invenção” da álgebra
propriamanente dita. Finalmente, abordamos como o “formal” teve lugar
na teorização de Freud e, posteriormente, de Lacan. Quanto a Freud,
demonstramos que certos aspectos do conceito de número real – o
número real como escrita do impossível – sustentam alguns conceitos
maiores da psicanálise, tal como o de recalque primário e o de pulsão.
Em Lacan, o “formal” é muito mais evidente. Lacan é um autor que
acompanhou todo debate em torno da questão dos fundamentos da
matemática no início do século XX. Para ele é bastante claro que a
ciência é “matematização” do real. Nosso trabalho deteve-se em
particular na sua utilização de conceitos da topologia algébrica (as
superfícies) e geral (noção de vizinhança) para estabelecer os conceitos
psicanalíticos.

-v-
Résumé

Notre but a été d’examiner la présence de formalismes mathématiques


dans la psychanalyse. En premier lieu, nous avons cerné la notion de ce
qu’est le formalisme. Aussi, avons-nous mené la recherche dans l’histoire
des mathématiques en vue de considérer le parcours conceptuel ayant
abouti à l’idée de formalisme. Nous avons ensuite examiné comment la
science moderne (Descartes, Galilée et Newton) a été établie du point de
vue des idées par les avancées d’une constitution plus formalisée de ses
concepts les plus importants (nombre, ordre, continu, etc ). La science n’a
été possible que par l’élan donné par Descartes et Fermat, grâce à
“l’invention”de l’algèbre proprement dite. Enfin, nous avons abordé la
façon dont le “formel” a pris place dans la théorisation de Freud, puis
plus tard, de Lacan. Chez Freud, nous avons démontré que certains
aspects du concept de numéro réel – le numéro réel comme écrit de
l’impossible – soutiennent quelques concepts plus larges de la
psychanalyse, tel celui de refoulement primaire et celui de pulsion. Chez
Lacan, le “formel” est beaucoup plus évident. Cet auteur a suivi tout le
débat sur la question des fondements des mathématiques au début du xx
ème siècle. Pour lui, il est bien clair que la science est “mathématisation”
du réel. Notre travail s’est particulièrement attardé sur l’usage, fait par
lui, de concepts de la topologie algébrique (les surfaces) et plus
généralement (la notion de voisinage) a visé à mettre en place les
concepts psychanalytiques.

- vi -
À memória de meu pai, que, por seu
modo de inserção na vida, é causa do
presente trabalho.

À minha mãe, com gratidão, por ter-me


dado meios de realizá-lo.

A Miguel e Paulo, meus filhos,


companheiros inquietos e alegres, dedico
esses esforços.

E também para Letícia, uma chance rara


e propiciadora do desejo.

- vii -
Sumário

Introdução .................................................................................................. 3

SOBRE O TÍTULO ............................................................................... 3

Capítulo I ................................................................................................... 6

PSICANÁLISE TRANSMISSÃO E CIÊNCIA .................................... 6

Sobre a Ciência I: O Estilo de Lacan e o Episódio Sokal.................. 6

Sobre a Ciência II: Lacan e a Ciência.............................................. 19

Capítulo II ................................................................................................ 39

PSICANÁLISE E MATEMÁTICA .................................................... 39

Psicanálise, Matemática e a Ciência ................................................ 39

Matemática, Intuição e Significante ................................................ 42

Capítulo III .............................................................................................. 49

CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A MATEMÁTICA ............. 49

A Geometria Euclidiana: Demonstração, Intuição e Negativização.


A Fundação da Matemática ............................................................. 49

O Formal, a Letra e o Significante. Matemática como Escritura .... 59

Capítulo IV .............................................................................................. 71

A NOÇÃO DE CORTE ....................................................................... 71

A Propósito do Movimento e da Continuidade ............................... 71

A Noção de Número e a Distinção entre Sintaxe e Semântica ........ 78

Aritmética e Geometria: Algumas Diferenças Fundamentais. ........ 96

A Noção de Corte .......................................................................... 102

- viii -
CAPÍTULO V........................................................................................ 118

PENSANDO FREUD COM A MATEMÁTICA.............................. 121

Freud e o Corte .............................................................................. 118

Psicanálise e Cognição .................................................................. 136

A Clínica Freudiana no Projeto... . ................................................ 139

O Conceito de Recalque Primário e a Idéia de Corte .................... 146

A Noção de Corte, o Conceito de Pulsão e de Recalque Primário 155

Capítulo VI ............................................................................................ 164

LACAN E A MATEMÁTICA .......................................................... 164

A Topologia e o Estilo de Lacan ................................................... 164

A Exigência da Topologia ............................................................. 181

Superfícies Fechadas ..................................................................... 200

Trabalho Combinatório.................................................................. 205

O corte e a Superfície .................................................................... 216

Conclusão ....................................................................................................

BIBLIOGRAFIA ................................................................................... 243

- ix -
Introdução

SOBRE O TÍTULO

Iniciamos com a composição de um certo quadro no qual se


justifica o estudo do que é indicado em nosso título – psicanálise e
formalismo. Sentimo-nos compelidos a iniciar com esse esforço por várias
razões, sendo a principal delas a motivação que a relação entre psicanálise
e estruturas formais nos tem assinalado durante um tempo, não pequeno,
de ensino da psicanálise, em instituições dos mais diversos tipos.
Fundamentalmente, nossa questão tem um contorno eminentemente
localizado, até mesmo regional: sua motivação são os embaraços surgidos
no ensino em relação aos aspectos formais utilizados na psicanálise. A
figura mais importante a respeito da utilização desses elementos é,
evidentemente, Jacques Lacan. É principalmente em seus ensinamentos
que, de uma maneira explícita, verificamos uma ampla utilização de
conceitos oriundos da lógica e da matemática. Mas não devemos nos
enganar quanto a Freud. Embora em seu texto o “formalismo”1 não esteja
em posição de destaque em sua teorização, e em seu estilo ele tenha
sempre procurado a argumentação plausível, muitas das articulações
essenciais da psicanálise de fato estão ancoradas numa espécie de
gramática que ele nos fez aceitar através de sua argumentação plausível
que é, por isso mesmo e, em verdade, sedutora. É uma argumentação
inteligente, que visa o interlocutor, dirige-se a ele, propondo-lhe a
compreensão e a inevitabilidade de certas conclusões que ferem o senso

1
As aspas ficam por conta de avaliarmos se, de fato, a utilização lacaniana de certos
aspectos formais, importados da lógica e da matemática, permite-nos assimilar seu
ensino e seu estilo a um formalismo. É muito duvidoso que um matemático enxergue,
no texto de Lacan, um formalismo no sentido que seu “treinamento” em matemática lhe
transmitiu.

1
comum2. Mas tomemos textos como o Projeto Para uma Psicologia
Científica (1895b/1950/1975), ou o livro Sobre as Afasias
(1891/1953/1977). Aparentemente, são textos “neurológicos”, médicos. No
entanto são, de fato, textos em que Freud estabelece a sintaxe mínima, sua
“máquina formal”, subjacente à psicanálise. E são textos reputados como
áridos, “abstratos”, em que observamos um certo tipo de dificuldade, de
embaraço, em relação ao formal. Quer dizer, as dificuldades existente
nesses textos são menos devidas à medicina do que em razão do caráter
abstrato e formal de suas formulações.

Já pelo exposto, introduzimos o traço sempre presente quando a


relação entre o conceito e o formal vem à cena: sua dificuldade, o difícil do
formal. Freqüentemente assistimos até mesmo à seguinte denúncia: o
formalismo em psicanálise está lá para nada. Isto porque ele introduz uma
dificuldade inútil, já que no manejo, na operação analítica propriamente
dita, aquela que ocorre no cenário clínico, a matemática e a lógica não
jogam nenhum papel relevante.

Então, o primeiro ponto de nossa tese parte da demanda, da queixa,


ou mesmo da denúncia e detratação, como veremos adiante, em relação à
presença do formal no ensino da psicanálise. E a esse respeito, iniciamos já
por fornecer alguns contornos de nossa posição. Algumas das questões por
muitos consideradas as mais relevantes terão que se situarem num plano
secundário para nós. Um exemplo disso são as discussões sobre a
cientificidade ou não da psicanálise – que abordaremos um pouco mais
adiante3. Insistimos nesse ponto sintomático porque nosso objeto de estudo

2
A esse respeito lembramos como usualmente Freud situa o leitor como um interlocutor
imaginário que é cético em relação a suas idéias. Ele procede tentanto demover esse
interlocutor de seu ceticismo através de uma argumentação convincente e plausível.
3
Teremos que insistir muito nesse aspecto, é importante que se entenda que
abordaremos a questão da cientificidade da psicanálise para, de certa forma, dela nos
desvencilhar. Isto porque, que pese sua relevância, nossos propósitos são o de situar o
valor e a pertinência dos formalismos em psicanálise e não a cientificidade da
psicanálise. Esperamos que ao longo do texto essa decisão se esclareça em sua razão de
ser.

-2-
se demarca nesse encontro queixoso, ou faltoso, que colegas e alunos
fazem em relação principalmente à presença de conceitos matemáticos no
texto de Lacan. Ao sublinharmos esse ponto, estamos situando-nos quanto
ao tipo de preocupação que anima nosso trabalho: a transmissão da
psicanálise e de uma certa forma, a problemática do estilo.

Naturalmente, não pensamos que o problemático tanto em Freud


quanto em Lacan seja o formalismo. Por exemplo, nas discussões sobre a
cientificidade da psicanálise não faltam aqueles que lhe recusam esse
status e a alocam muito mais no lado da literatura do que no lado da
ciência. O próprio Freud observava essa apreciação, que para ele tinha lá
sua pertinência ou sua razão de ser, quando nos assinala o caráter
romanesco de suas histórias clínicas. Quanto a Lacan, nem de longe, o
difícil em seu texto é a matemática, que, diga-se de passagem, e já
antecipando algumas discussões, nunca ultrapassa, um nível de dificuldade
até certo ponto elementar, até mesmo colegial4 em seus escritos e
seminários. Na verdade, a queixa dirigida a ele não é tanto com relação ao
formal em seu discurso, mas em relação ao truncamento da significação. E
é justamente esse truncamento que opera um “trazer-para-frente” o
significante em sua materialidade – marca decisiva em seu estilo – e que,
por essa razão, determina uma exigência de leitura, de decifração, de
reenvios sucessivos, para muitos insuportável pelo preço a pagar em
termos do não-sentido a suportar para atravessar esse discurso. A
matemática aí seria apenas um dos componentes retóricos dessa operação
discursiva acionada por um estilo, que, embora peculiar, singular, está
inteiramente voltado para a transmissão de um discurso, sem se limitar a
produzir um efeito estético, no caso, poético, como em Joyce, na língua
inglesa, ou Guimarães Rosa, na língua portuguesa. Se para Freud,

4
Como veremos, os aspectos de topologia de que ele se vale são introdutórios e muito
próximos de uma apreensão intuitiva. Em verdade, as pessoas estranham a presença da
topologia porque nunca estudaram essa disciplina na escola secundária. Em razão desse
fato imaginam que se trata de algo dificílimo, o que não é o caso, pelo menos em seus
aspectos mais introdutórios, que são aqueles mais explorados por Lacan.

-3-
cientificista, é um risco para psicanálise cair na literatura, para Lacan, o
poético está lá de saída, no texto, na palavra, assinalando a irredutibilidade
da psicanálise senão à ciência, pelo menos ao seu estilo canônico de
comunicação – com o qual muitas vezes a ciência se confunde -
demarcando na base seu lugar como uma teoria, uma práxis e uma ética
referida à palavra e seus efeitos no real, isto é, nos laços sociais no sentido
mais concreto possível.

Entretanto, nosso trabalho não é um trabalho sobre o estilo; apesar


de poder lançar algumas luzes sobre essa questão indiretamente. E, mesmo
motivado sintomaticamente por problemas apresentados pelo ensino,
também não é um trabalho sobre o ensino e a transmissão. Nosso trabalho
trata, fundamentalmente, da função que o formalismo joga na psicanálise, a
que necessidades ele responde, sendo dado, é claro, que ele é interno a um
estilo que visa a transmissão de um discurso determinado: o psicanalítico.
Assim, a menção dos termos estilo, transmissão e ensino é necessária para
fazer aparecer nossa “topologia” – isto é, a que reenvia, a que remete – e
demonstrar as interconexões que o formal, principalmente certos aspectos
da teoria dos números e a topologia, entretêm com os demais conceitos
psicanalíticos na composição de seu estilo.

O curso de nossa exposição será o seguinte. Ainda nesta introdução


situaremos certos comentários e julgamentos a respeito da relação entre
psicanálise e formalismo. Neste caso, será inevitável abordar o tema da
cientificidade da psicanálise, uma vez que, em geral, os dois termos,
ciência e formalismo, exigem-se mutuamente. Embora a ciência seja
freqüentemente pensada como sendo essencialmente a formalização do
real, nossa preocupação nesse momento não será tanto a de destacar os
fundamentos científicos da psicanálise, ou ainda, de situar o tipo muito
especial, segundo alguns, de ciência que ela é. Nossa preocupação maior
será a de efetuar um certo “desbastamento”, isto é, visaremos
principalmente a mostrar o quê o formalismo não é em psicanálise. Por

-4-
exemplo, se de alguma maneira ele é suporte da cientificidade da
psicanálise – se é o caso de ser ela uma ciência –, isso não é simples nem
direto. A seguir, apresentaremos um capítulo que discute a relação entre
psicanálise e ciência a partir do “episódio” Sokal. Após, propomos, em três
capítulos, um exame extenso dos conceitos matemáticos que julgamos
relevantes para encaminhar nosso estudo da relação entre matemática e
psicanálise. Nossa discussão nesses capítulos se fará num estilo que
valoriza a intuição. A seguir, no capítulo V, encaminharemos uma longa
discussão que visa demonstrar que o conceito freudiano de recalque
primário é conseqüência e afim com o conceito forjado por Newton e por
Leibniz de número real. No capítulo VI abordaremos a utilização da
topologia por Lacan. Finalmente, formularemos uma conclusão que
resumirá nossos resultados.

-5-
Capítulo I

PSICANÁLISE TRANSMISSÃO E CIÊNCIA

Sobre a Ciência I: O Estilo de Lacan e o Episódio Sokal

Há poucos anos, um físico provocou uma enorme polêmica na


mídia mundial a respeito, dentre outras coisas, justamente, da utilização
realizada pelos “filósofos pós-modernos” de conceitos oriundos da física e
da matemática (SOKAL, 1996a). Fazendo uma paródia, ele publicou numa
revista norte-americana de estudos sociais e culturais, Social Text, um
artigo repleto de referências e citações que soavam absurdas, uma colagem
de citações, no qual defendia e propunha uma ciência libertária e “pós-
moderna”, cujos fundamentos podem ser encontrados em certos autores
franceses. O artigo foi aceito pelos editores da revista, pois foi publicado.
A seguir, numa outra revista, também norte-americana e com uma
orientação análoga à da primeira, Lingua Franca, ele publicou outro artigo
em que expôs seu estratagema. São suas palavras:

Para testar os critérios intelectuais, eu decidi tentar uma experiência


modesta (embora, eu o reconheça, não controlada). Publicaria um
prestigioso jornal de estudos culturais norte-americano (...) um artigo
cheio de contrasensos se a) ele soasse bem e b) se satisfizesse as pré-
concepções do editor? A resposta, infelizmente, é sim” (SOKAL, 1996b).

Finalmente em outubro de 1997, ele publica um livro na França,


Impostures Intelectuelles5, juntamente com Jean Bricmont. Neste livro os
dois expõem as razões de sua farsa, bem como analisam a obra de alguns
dos autores franceses – citados como fundamentais –, nos quais eles
denunciam o que consideram ser um uso mistificador da física e da
matemática: um emprego abusivo e sem as devidas justificativas
(científicas, metodológicas, lógicas, etc.) de conceitos e termos oriundos

5
O livro foi publicado em português pela editora Record em 1999, com o título,
Imposturas Intelectuais.

-6-
dessas disciplinas no campo das ditas ciências humanas e na filosofia, por
parte desses autores.

Convém observar a razão que eles dão, ainda na introdução do


livro, ao fato de se deterem apenas nesses autores franceses, e não em
outros, dentre os quais alguns anglo-saxões. Sublinhamos na explicação
dada por eles o seguinte aspecto: a moda, “aos abusos que estão atualmente
em moda em influentes círculos intelectuais”. É isso: os franceses estão na
moda6, são “influentes” e, ao que parece, são o pivô do que eles
denominam e denunciam como orientação epistêmica relativística ou
construtivista da ciência, influência que eles julgam nociva, principalmente
tendo em vista os termos como essa influência se organiza nos EUA. Não
se trata então de uma crítica usual, na qual se discutem os argumentos de
um autor ou de uma doutrina, eles propõem mais. Eles julgam a obra dos
diversos autores – Lacan, Deleuze, J. Kristeva e outros como um todo e
concluem: a influência dos franceses é inconsistente, ela é sobretudo uma
moda. Ou seja, eles não conseguem enxergar argumentos nas obras desses
autores. Voltaremos a essa indicação a respeito da moda mais adiante.

A análise de Sokal e Bricmont interessa-nos sob alguns aspectos, a


começar por parecer uma espécie de reedição de uma longa polêmica que
assumiu um contorno bem definido nos anos 50-60, envolvendo tanto a
psicanálise quanto o marxismo. Justamente essa polêmica ocupou um
papel preponderante nas discussões naquela época, uma vez que ambas as
disciplinas eram os principais alvos dos ataques realizados pela orientação
realista em ciência. Essas disciplinas, ao serem atestadas como ciências, na
verdade, se constituiam como uma nefasta e nociva presença do
irracionalismo em ciência. O nome mais proeminente da primeira edição
dessa polêmica era, sem dúvida nenhuma, o de Karl Popper (1956/1987, p.
180-190). Contudo, a polêmica desdobrou-se nos vários matizes possíveis.

6
É óbvio que para eles moda é alguma coisa essencialmente negativa, algo que se opõe
à seriedade, ao rigor, que seria a bússola da pesquisa científica.

-7-
De um lado, colocavam-se aqueles com uma orientação mais claramente
positivista, que simplesmente alocavam a psicanálise e o marxismo no
campo da pseudociência7. De outro, aqueles que buscavam algum tipo de
composição, como é o caso, por exemplo, dos trabalhos de David Rapaport
(1959/1982) e Merton Gill & Karl Pribam (1976) e da psicologia do ego,
no campo da psicanálise, e do behaviorismo de Clark Hull no campo da
psicologia da aprendizagem; este último acatava a influêcia de Freud8,
apesar de uma orientação profundamente marcada pelo positivismo. A
própria posição de Popper e de seu realismo era bem matizada. Embora
crítico de Freud e de Marx, ele relevava a contribuição dos dois,
principalmente da de Freud, como é patente no trabalho mesmo que
citamos. Entretanto, ele recusava o status de ciência para a psicanálise.

O cerne da crítica de Sokal e Bricmont aos “pós-modernos” está em


continuidade com aquele observado nos anos 50. Naqueles anos, as
discussões enfocavam os critérios de demarcação entre ciência e não-
ciência. A psicanálise não era uma ciência porque não obedecia a certos
canônes de construção relativos aos modos que possibilitam verificar ou
falsear suas proposições. Nos dizeres de Popper, a testabilidade,
refutabilidade ou falsificabilidade deveria ser aceita “como critério de
demarcação entre ciência empírica, por um lado, e matemática pura,
lógica metafísica, e pseudociência, por outro” (1953/1987, p. 191). Nesse
momento, Popper não só enuncia seu critério de demarcação em relação à
ciência empírica como também se posiciona em relação ao positivismo
lógico, quando assinala que a testabilidade não é, para ele, um critério de
significado. Em relação à psicanálise ele diz:

7
É o que pensava, por exemplo, Mario Bunge (1976, p. 58-60) que situava a psicanálise
no escaninho da pseudociência.
8
O próprio Clark Hull assumia essa influência, mas foram dois discípulos seus, J.
Dollard e N. Miller (in: MARX & HILLIX, 1973/?, p. 485-490), que produziram os
trabalhos nessa direção mais significativos, quando procuraram traduzir em termos
experimentais a teoria, segundo eles, de inspiração freudiana, que articulava a frustração
à agressão.

-8-
Foram estas, mais ou menos, as razões que me levaram, em 1919, a
rejeitar as pretensões dos freudianos (...). Rejeitei as suas pretensões
porque descobri que as suas teorias não satisfaziam o critério de
testabilidade, de refutabilidade ou de falsificabilidade (obra citada, p. 181-
193).

É importante, aqui, nesse contexto, mencionarmos mais ou menos


em que consiste sua demarcação em relação ao positivismo. Tendo
assumido a testabilidade (testabilidade = verificabilidade) como critério de
significado, a conseqüência era uma certa redução fisicalista
(extensionalismo fisicalista) no caso das ciências empíricas: têm
significado aquelas proposições que podem ser verificadas empiricamente,
mas aquelas que não o podem são destituídas de sentido. Um exemplo
sempre mencionado pelos positivistas de um corpo de proposições
destituído de sentido, sem significado, era a metafísica – 90% da filosofia
ocidental! Então, a crítica de Popper em relação a Freud não era a de que
suas proposições eram destituídas de sentido, ou sem significado9, mas a
de que a teoria psicanalítica tinha uma tal armação lógica, que ela não era
refutável. Ele observava que a “mecânica”, a articulação lógica, por
exemplo, do dispositivo clínico, através do conceito de resistência, sempre
acarretava a correção das interpretações do analista – o analista sempre
possuía os meios de ele mesmo produzir a confirmação de suas hipóteses10.
Nesse sentido, para ele, embora as idéias de Freud fossem muito
interessantes, até do ponto de vista científico, elas não compunham
propriamente uma teoria científica e corriam todo o risco, por serem
imunes aos mecanismos corretivos da ciência (aqueles que tornam possível
a refutabilidade), de se tornarem um dogmatismo (ibid. p. 185-193).

9
Popper diz sobre Freud:
(...) porque, apesar de graves defeitos, alguns dos quais vou tentar expor aqui, ele
contém, para lá de qualquer dúvida razoável, uma grande descoberta. Estou, pelo menos,
convencido de que há um mundo inconsciente, e de que as análises que Freud dá neste
livro estão, no fundamental, corretas, ainda que, sem dúvida, incompletas (como o
próprio Freud salienta) e, necessariamente, de certo modo distorcidas” (p. 181-193).
10
Para Popper, como se sabe, as confirmações, mesmo quando obedecendo aos cânones
lógicos, têm um poder informativo menor do que a refutabilidade.

-9-
Os tempos são outros e tudo indicava que esse tipo de realismo
epistemológico refluíra, saíra de “moda”. Grande era a profusão de obras
sobre ciência publicadas de uma maneira não especializada, isto é, escritas
em prosa ao invés da árdua e penosa estenografia característica dos textos
técnicos e científicos. Propunham elas as mais inovadoras e surpreendentes
relações entre certas teorias científicas e os mais variados sistemas
ideológicos e doutrinas, como se o mercado editorial fosse de fato um
indicador seguro do que pensam e fazem os cientistas. Parecia que
finalmente os tempos eram outros e que o pensamento científico tinha
alargado seus critérios; que finalmente uma nova aliança despontava no
horizonte, entre as ciências “duras”, especialmente seus ramos mais
avançados – a mecânica quântica e a relatividade geral –, e as ciências
“moles”, aquelas que englobam as coisas do espírito, do social e do
homem. De fato, o cenário ideológico contemporâneo, essa imagem
totalizada a respeito do que é o mundo, constituída em boa medida através
do que se publica e se difunde nos meios de comunicação, é muito
marcado por esse tipo de “sincretismo”. Evidentemente, temos aí uma
produção intelectual muito vasta quanto à quantidade e desigual quanto à
qualidade. Mas, de qualquer forma, eis que essa manobra de Sokal e
Bricmont fizeram ressurgir esse “antigo”11 debate, atravessado pela
exigência de demarcação entre ciência e pseudociência, sustentada pelo
realismo epistemológico. E ele ressoará bastante nos meios de
comunicação após a revelação e a publicação do paródia, colocando em
questão justamente as produções que eles qualificam de “pós-modernas”
sem quaisquer distinções.

Nosso interesse nesse debate não é tanto participar dele,


respondendo, como psicanalistas, a Sokal e a Bricmont. Valer-mos-emos

11
Na verdade, não pensamos que seja um debate antigo. Ao contrário, trata-se de uma
questão sempre presente e que ultrapassa, a nosso ver, o campo da filosofia ou da
ciência, por suas implicações éticas e políticas. Ver também o livro de Yves Jeanneret
(1998) sobre o episódio.

- 10 -
dos termos deles para situar nossa visão da relação entre a psicanálise e os
diversos discursos que organizam a vida social, em especial o discurso da
ciência. Esta nos pareceu uma forma fecunda de aproveitar o trabalho
deles, já que em relação a Lacan eles não afirmam nem negam, a rigor,
nada. A crítica deles a Lacan limita-se a dizerem que não entenderam coisa
alguma! Eles fazem longas citações de Lacan, quer dizer, expõem o leitor
ao estilo de Lacan, que de fato tem a característica de truncar a
significação, e confrontam, dessa maneira, o leitor a esse estilo. Ao final de
cada citação, eles remetem o efeito inevitável de nonsense produzido pelo
texto de Lacan, a ser um mero truque retórico12. Eles então aproveitam a
oportunidade para acusarem Lacan de superficialismo, de ignorante em
matemática13, e adjetivos desse calão. No entanto, é o entendimento deles
do texto de Lacan que é superficial, ou nenhum. Eles não discriminam um
argumento sequer na longa produção de Lacan, que, segundo eles, teria
enganado a cultura francesa e alguns de seus representantes maiores, essa
comunidade de ingênuos e inocentes – gente como Lévi-Strauss, Ferdinand
Braudel e outros do mesmo nível – por mais de 30 anos! E eles não agem
dessa forma tão sumária, sem malícia, porque, como já aludimos, o estilo
de Lacan é intencionalmente problemático semanticamente. Muitas
reações negativas a Lacan derivam desse fato, e ficar preso a isso, reenviá-
lo, como eles o fazem, a uma impostura é mais do que uma crítica. É um
incitamento a que Lacan não seja tomado a sério. E isso é o que eles visam:
estimular reações negativas para transformá-las num critério de leitura. Em
nome de um ideal de clareza e transparência semântica que textos
científicos e filosóficos devem apresentar, o que eles promovem é muito

12
O que seguramente deve agradar bastante aqueles que já tinham suas posições
firmadas contra Lacan e confundir os que se iniciam em seu ensino, especialmente
aqueles, como deve ser o caso dos norte-americanos, que não possuem outras
referências de Lacan – tais como a prática clínica e os dispositivos institucionais – além
de seus textos.
13
Eles fazem uso inclusive de reconhecidos erros tipográficos e de tradução (para o
inglês!) do texto de Lacan, para sublinhar a sua ignorância em matemática. A esse
respeito ler o artigo de C. Melman e Marc Darmon na revista La Recherche de fevereiro
de 1998.

- 11 -
mais uma censura do que uma crítica, como eles mesmos dizem defender,
racional.

A psicanálise é tributária da ciência. Isso é inegável. Freud entendia


sua invenção como uma espécie de ciência – “jovem”, precária, mas, de
qualquer forma, uma ciência (1915/1975). A crítica de Sokal e Bricmont
toca nesse ponto preciso. Contudo, a questão deles não é, como na época
de Popper, considerar se a psicanálise era ou não uma ciência – eles
mencionam sua suposta juventude como ciência (SOKAL & BRICMONT,
1999, p. 47) –, mas se, a versão lacaniana, a linguagem em que ela se
exprime, carregada de termos de científicos, especialmente aqueles
oriundos da matemática, têm algum valor científico – é sobretudo a esse
ensino de psicanálise conduzido por Lacan que eles examinam. A resposta
deles é considerar sem nenhum valor científico a linguagem e o discurso
nela articulado. Eles sugerem um uso leviano, supérfluo, mistificador
desses termos científicos por parte de Lacan. Para eles, não é o caso de
Lacan estar simplesmente errado. A produção de Lacan é exterior à esfera
do certo e do errado, pois o que ele produz é “assemântico”, é impossível
determinar os valores de verdade das sentenças. Sokal e Bricman
qualificam essa produção então como uma mística (ibid. p.48), porque
apenas os iniciados teriam acesso a ela. Eles afirmam que, se Lacan
pretende com essa utilização autorizar-se como um cientista, ou fazer de
seu ensino o de uma ciência, isso é uma fraude. Eles não identificam
nenhum argumentação capaz de trazer inteligibilidade ao discurso de
Lacan, cujo discurso é vazio de sentido, não diz nada inteligível.

Eles desautorizam, portanto, Lacan depois de alocá-lo no mesmo


conjunto de pensadores “pós-modernos” de origem francesa. A psicanálise
de Lacan está nesse lugar para compor junto com outros autores franceses
e seus respectivos textos uma espécie de ideologia “pós-moderna”, matriz,
ou em grande medida inspiradora, do que se produz nos EUA sob essa
rubrica.

- 12 -
De que posição eles podem diluir a figura de Lacan, e de todos
aqueles pensadores, num bloco só, de forma que, evidentemente,
homogeneiza-os? Sokal e Bricmont são dois cientistas e tomam-se como
representantes da ciência; eles julgam em nome e a partir dela – é o que
ambos fazem supor. A tese deles é a de que a utilização de termos
científicos por aqueles franceses não faz da produção desses autores uma
produção científica, ou mesmo relevante sob um critério mais abrangente
de racionalidade. Ao contrário, eles, esses franceses, expõem-se ao
ridículo, já que suas metafóras e analogias são, em boa parte, ou erradas ou
destituídas de sentido.

Agora, Sokal e Bricmont julgam o quê? O que os incomoda tanto


nos “pós-modernos” franceses? Só pode ser uma coisa: o estilo. Por que
falamos em estilo ao invés de concepções? Porque não conseguimos
enxergar nada que nos permita agrupar os autores por eles comentados
como mentores, ou promotores, de um conjunto de concepções comuns
capazes de definir uma doutrina específica. Se há alguma coisa em comum
entre esses autores, isso diz respeito ao fato de serem franceses: algumas
referências comuns e traços que mal chegam a esboçar um estilo. Maio de
68, o estruturalismo de Saussure, a influência de Heidegger e de Nitszche
são algumas dessas referências. Quanto ao estilo, alguns poucos traços:
algo como uma concepção de verdade que ressalta mais “coerência”, ou
melhor dizendo, os nexos discursivos, do que a semântica; uma
compenetração maior da dimensão histórica condicionando a razão, os
termos, as idéias, as operações, etc.

A pretensão de Sokal e Bricmont é a de desmontar, neutralizar, a


eficácia de um estilo que, para eles, é muito mais sedutor do que portador
de alguma verdade significativa exposta de uma forma consistente, isto é,
justificada racionalmente. Trata-se de um estilo que agencia uma espécie
nova de sofística, mais ao gosto dos tempos atuais. Esse é o traço marcante
do livro deles como um todo. As críticas têm duas direções básicas: uma

- 13 -
global, quando, sob a rubrica de “pós-moderno”, eles examinam as
produções desses autores como um “todo” – o pós-moderno, justamente,
ou o relativismo epistêmico –; outra específica, quando eles tomam em
consideração cada autor separadamente. E os dois níveis de análise
referenciam-se mutuamente e reforçam, desse modo, a carga semântica
negativa que eles atribuem à produção daqueles franceses. A tática é
demonstrar que cada autor está cometendo um erro crasso na utilização de
conceitos físicos e matemáticos, ou que cada um faz, com sua citação dessa
ou daquela noção científica, um truque de prestidigitação, isto é, quando
examinadas de perto, elas não dizem nada, são destituídas de sentido. O
livro deles é uma coleção extensa de exemplos de utilização, por esses
autores, de conceitos físicos e matemáticos que eles se dão ao trabalho,
para cada autor citado, de tornar visível o erro crasso ou o truque de
prestidigitação. Como cada autor examinado pertence ou está referido14 a
essa totalidade “pós-modernismo” e como cada um deles engana ou
comete erros crassos na utilização de conceitos físicos e matemáticos,
segue-se que o dizer desses franceses, em seu conjunto, ou pelo menos
através do que nos é dado a ver pela sua utilização dos conceitos físicos e
matemáticos, é irrelevante, para dizer o mínimo. Desse modo, os dois
cientistas buscam solapar aquele discurso que é, para eles, repetimos,
muito mais uma retórica vazia, uma sofística, uma estratégia de sedução
através da qual o relativismo epistêmico é transmitido, escapando da
apresentação de uma argumentação séria, rigorosa e racional que o
justifique. A essa retórica vazia, mas sedutora, eles vão contrapondo as
exigências e as regras de uma discursividade com a qual estão
compromissados; está sim, mais justa e correta, que releva o bom senso,
que não nos faz esperar muito tempo pelo significado de cada frase, aquela
preconizada pelo realismo epistemológico.
14
Eles observam que agrupar esses autores é problemático. Mas justificam esse fato
com o seguinte argumento: “se nós, contudo, empregamos este termo por comodidade, é
porque todos os autores aqui analisados são vistos como pontos de referência
fundamentais no discurso pós-modernista em idioma inglês”(p.27).

- 14 -
Ao nos depararmos com tais críticas, uma das tentações quase
inevitáveis é reconduzi-las a um tipo de mal-entendido sociocultural entre
a França e os países anglo-americanos15. Eles chegam a mencionar esse
aspecto ainda na introdução de seu livro quando observam que,

“nosso livro enfrenta um contexto institucional inteiramente diferente na


França e no mundo da língua inglesa. Enquanto os autores por nós
criticados têm tido uma profunda influência na educação superior francesa
e dispõem de numerosos discípulos na mídia, nas editoras e na
intelligentsia – daí algumas das furiosas reações ao nosso livro –, seus
equivalentes anglo-americanos são ainda uma minoria encastelada dentro
dos círculos intelectuais” (p.13).

É certo que há nas críticas deles algo referente a essa diferença


cultural. Mas qual é o ponto? Para nós, que somos marcados pela cultura
francesa e especialmente pela psicanálise lacaniana, soa muito estranho ver
Lacan ao lado de autores com os quais ele não tinha muita coisa em
comum, a não ser, é claro, um certo estilo e um conjunto de referências
comuns. Mas afora os traços comuns, as diferenças entre os autores
examinados são enormes sob inúmeros aspectos. Só para citar um
exemplo: em que sentido Lacan poderia ser caracterizado como um
advogado do relativismo epistêmico, na acepção que eles detratam? Ora,
simplesmente, Lacan não era um relativista: o real – vejam bem, o real – da
castração é, para ele, um imperativo que determina o sujeito
independentemente de qualquer contexto sócio-histórico-cultural; é uma
condição “absoluta” correlata à nossa condição de falantes. Nossa surpresa,
e a pergunta que lhe segue, é “topológica”: de que lugar, de que distância,
pensadores tão diferentes entre si, podem ser vistos como exemplares,
variações de um mesmo pensamento ou doutrina?

Logo constatamos que eles falam dos franceses de uma perspectiva


norte-americana. Assim, não foram eles quem agruparam Lacan, Derrida,

15
Julia Kristeva, uma das autoras examinadas por eles no livro, pergunta: “qual é a
intenção de tal polêmica, tão longe das preocupações atuais? Isto corresponde a uma
iniciativa intelectual antifrancesa. Face a aura dos pensadores franceses nos Estados
Unidos, a francofilia cedeu passo à francofobia”. Le monde, Janeiro de 1997.

- 15 -
Deleuze, Guattari, Paul Virillio e outros num mesmo conjunto. Esta
reunião é a aquela depreendida da leitura de textos sobre cultura (literatura
e artes), filosofia, e ciência publicados nos EUA. Nos capítulos em que
eles consideram cada autor em particular, eles fazem alguma advertência;
por exemplo, a propósito de Gilles Deleuze, dizem:

...estamos bem conscientes de que o objeto de Deleuze e Guattari é a


filosofia, não a popularização da ciência. Contudo, que função filosófica
pode ser preenchida por esta avalanche de jargão científico (e
pseudocientífico) mal digerido?” (SOKAL & BRICMONT, 1999, p.156)

Por que o jargão de Deleuze é pseudocientífico se ele não faz


ciência, se ele foi de maneira assumida, pública, um filósofo até sua morte?

A postura desleixada em relação ao rigor científico encontrada em Lacan,


Kristeva, Baudrillard e Deleuze teve inegável sucesso na França durante
os anos 70 e nela ainda é bastante influente” (SOKAL & BRICMONT,
1999, p.224).

Para Sokal e Bricmont, a influência desses autores é nefasta para a


pesquisa e ambos chegam a deplorar a influência de Lacan e de Deleuze na
literatura e nos estudos culturais (ibid. p. 223-224). Esses autores ofendem
a racionalidade científica e por isso devem ser denunciados. Mas eles
nunca se declararam cientistas! Tanto Lacan quanto Deleuze sempre se
demarcaram em relação à ciência! E isso não quer dizer, de maneira
alguma, que o que tinham a dizer não tivesse nada a ver com a ciência. Ao
contrário, para Lacan, a ciência não era um discurso qualquer, ele a tomava
muito a sério. Ora, essa identificação com a ciência que eles denunciam
nesses autores não pode ser afirmada sem problemas, já que boa parte
deles não faziam ciência de maneira declarada, pública. E quanto ao uso do
jargão científico por aqueles franceses16, eles usam os termos da ciência? E

16
Andréa Loparic (1991, p. 242), uma lógica profissional, que comentou a utilização
por Lacan de aspectos da escritura lógica moderna, diz o seguinte sobre essa
apropriação:
Eis o que pode deixar um lógico perplexo – e, mais freqüentemente,
irritado. No pequeno país que é aquele dos lógicos, vive-se de uma
produção artesanal obtida com ferramentas cuidadosamente forjadas para
funcionar sob regras muito estritas; eis que um estrangeiro de passagem

- 16 -
daí? Por que não deveriam usar? Quem disse que os termos, as palavras, os
dizeres dos cientistas, pertencem exclusivamente a eles próprios e à
ciência?17 Os elementos do jargão da ciência são entidades lingüísticas
especiais, excepcionais, que devem permanecer isoladas do uso ordinário
das palavras e dos conceitos? Não pensamos assim. Para nós, de fato, eles
são posse, propriedade da linguagem do Outro. Desde que vieram à luz,
eles são como seres com vida própria, que seguirão seu próprio destino,
aquele que a linguagem e seu funcionamento lhes reservar. Ora, a ciência é
uma prática social altamente relevante sob vários aspectos e é mais do que
“natural”, como foi o caso da filosofia grega e do cristianismo séculos
antes, que ela libere também seus termos para a cultura, e não apenas seus
produtos diretos e intencionalmente visados.

Mas essa questão é, na verdade, norte-americana, porque são eles,


os norte-americanos, que situaram esses franceses como referências
científicas em seus trabalhos. E são os norte-americanos que têm uma
atitude de devoção quase religiosa em relação à ciência – esse é um traço
marcante da cultura norte-americana, ao qual, inclusive, assistimos a sua

nos rouba alguns desses instrumentos, e se põe a utilizá-los, diante da


multidão de seus compatriotas, ignorando os objetivos para os quais eles
foram inventados, e não tendo o menor respeito para com as condições de
seus funcionamentos. E, pior ainda, ele [Lacan] sugere às pessoas de seu
país que ele tem um bom entendimento conosco e com nosso método de
trabalho... e que ele se serve de nossas ferramentas exatamente porque
eles são estritos e rigorosos. De muito mal humor, o lógico vem a público
denunciar: é um louco, é uma farsa, é um mimetismo infantil, ou bem é
prestidigitação; em todo caso, não é sério e a lógica está para nada.

(...)A menos que...a menos que uma certa cumplicidade lhe sopre uma
pausa benfazeja...a menos que ele se coloque a investigar o sentido deste
fato diverso diretamente em seu aspecto escandaloso. A hipótese
interpretiva seria: não é o caso que Lacan se serve da linguagem simbólica
exatamente porque a transgressão das regras da gramática aí é mais
evidente? Não é o caso que o estrangeiro tomou nossos instrumentos
precisamente porque, bem mais que aqueles da linguagem comum, eles
fazem ruído, quando eles servem a operar uma peça desviante?

17
Uma posição radicalmente oposta podemos encontrar nos comentários de Jacques
Bouveresse (1998) sobre o episódio Sokal.

- 17 -
generalização planetária sob os auspícios da dita globalização. Foi dessa
maneira – isto é, como autores passíveis de freqüentar artigos científicos –
que os franceses entraram e adquiriram influência nos EUA. É lá que
Lacan é conhecido principalmente como um exótico professor de literatura
e filosofia – e não, como seria mais preciso, como um psicanalista com
uma extensa prática clínica, que a partir dessa prática, teria uma importante
influência na cultura francesa. Mas a esse respeito e nesse ponto de nossos
comentários sobre o episódio Sokal, temos de limitar o alcance de nossas
considerações sobre ele.

Naturalmente, em razão de nossos propósitos, não prosseguiremos


com o exame dessa problemática aqui. Ela envolveria uma pesquisa muito
abrangente do conteúdo e da forma da produção teórica ditas “pós-
modernas” na França e, principalmente, nos EUA. Seria um esforço que se
afastaria muito do foco de nossa pesquisa. Nós mencionamo-la porque ela
surgiu de maneira significativa no contexto do exame da relação entre a
psicanálise e a ciência. Isto é, ao focarem em suas denúncias,
especificamente o estilo de Lacan, e não o conteúdo do que ele quis dizer,
Sokal e Bricmont de fato situaram uma questão importante. Nosso tema – a
função e o sentido dos formalismos no texto de Lacan – não pode ignorar a
incidência desse efeito de truncamento da significação, detratado por eles e
em operação no ensino de Lacan – já que a matemática em Lacan está
visivelmente a serviço desse estilo, ela é interna a seus desígnios. Quem
sabe, essa é uma de nossas esperanças, ao abordarmos apenas o ensino de
Lacan e o “formalismo” nele presente, possamos de maneira indireta lançar
algumas luzes a respeito do debate mais amplo entre as ciências da
natureza e os estudos humanos e culturais, que eles resumem e julgam de
forma tão peremptória?

- 18 -
Sobre a Ciência II: Lacan e a Ciência

Vamos iniciar com algumas indicações de Lacan sobre a ciência.


Lacan não tinha uma visão da ciência concreta, especialmente a física e a
matemática, que se fazia à sua volta, muito distante do que o “realismo”
defende. Na primeira lição do seminário XI (1964) sobre os conceitos
fundamentais da psicanálise, de 15 de janeiro de 1964, no qual ele aborda
os episódios institucionais ocorridos naqueles anos, uma lição que, em
razão desses acontecimentos ficou denominada A Excomunhão; nessa lição
ele destaca as seguintes questões: (I) se a psicanálise é uma ciência; (II) o
que é uma ciência? A primeira questão será abordada ao longo do
seminário e retomada na última lição. Nessa lição inicial ele encaminha sua
resposta iniciando pela segunda questão. Ele diz:

O que especifica uma ciência, é ter um objeto. Podemos sustentar que


uma ciência é especificada por um objeto definido, pelo menos, por um
certo nível de operação, reprodutível, que chamamos experiência (p. 12).

Mas, o que é experiência? Ele responde:

Se nos sustentamos na noção de experiência, entendida como o campo de


uma práxis, nós vemos bem que ela não basta para definir uma ciência
(ibid. p.13).

O que falta para definir uma ciência? Ele acrescenta então que uma
ciência expressa seu saber a respeito de seu objeto através de fórmulas. Ele
observa que nenhum desses critérios – ter um objeto, um nível de operação
reprodutível (praxis) e formalização – em si mesmos são suficientes para
caracterizar uma ciência. O segundo, o referente a ser ela uma práxis, pode
também definir uma mística, como, por exemplo, a alquimia – que por
sinal interessou muito a Newton (WESTFALL, 1993). Para o terceiro,
tanto “uma falsa ciência como uma verdadeira podem ser colocadas em

- 19 -
fórmulas” (LACAN, 1964, p. 15). Por exemplo, a astrologia18 – que, além
disso, pode estar referida a uma prática mística.

De fato, não nos parece que na lição introdutória ao seminário


daquele ano, Lacan esteja simplesmente a se perguntar se a psicanálise é
ou não uma ciência, já que ele situa também a religião como um registro
em relação ao qual a psicanálise está relacionada (LACAN, 1964, p. 12).
Podemos ver portanto de que maneira ele releva a questão da cientificidade
ou não da psicanálise.

Em primeiro lugar, Lacan não tem nenhuma pressa em respondê-la.


Se a questão se apresentou, uma vez que Freud supunha ser uma ciência o
que ele inventou com o nome de psicanálise, não é caso de aderir a essa ou
aquela epistemologia para nos situarmos muito rapidamente no campo da
ciência. Lacan convoca-nos então a nos determos na abertura proposta
pelas questões: o que é ciência? o que é religião? e o que é a psicanálise?
Ele vinha trabalhando essas balizas já há algum tempo. No seminário sobre
a identificação, o antepenúltimo, ele introduz certas formas de representar
novas, até então não utilizadas em seu ensino19 para manejar os conceitos
psicanalíticos, oriundas da matemática e da lógica – termos que provêm da
ciência. No seminário sobre a angústia, o penúltimo, o seguinte ao da
identificação, a referência central gira em torno do sacrifício de Abrãao e
das considerações de Kierkegaard sobre esse tema bíblico e a angústia –
termos que procedem da religião.

Freqüentemente a pressa em se responder a essa questão nos leva a


recair numa oposição entre a ciência e a religião, que situa a religião como
o campo da ilusão e a ciência como o campo da verdade “verdadeira”. Um
defensor da ciência diria que uma afirmação empírica sustentada apenas
por argumentos religiosos – por exemplo, a proibição de comer tal fruta

18
A astrologia é passível de ser formalizada no sentido trivial de que, por exemplo,
programas de computadores fazem mapas astrais.
19
Justamente a topologia das superfícies.

- 20 -
por ser uma ordem de uma divindade – não é legítima cientificamente; por
isso não o deveria ser também na vida ordinária. A ciência propõe uma
ordem de saber tal, que ela pode assinalar certas diretivas na vida comum
como sendo melhores ou piores sob uma série de parâmetros. Nos
argumentos de Sokal e Bricmont é constante algo que vai nessa direção, o
bordão a respeito da irracionalidade da religião. Para eles, trata-se de uma
denúncia, e não de uma simples descrição, qualificar o ensino de Lacan
como sendo uma mística. Já para Lacan é uma boa questão, do mesmo
modo que para a ciência, (I) saber o que é uma religião e (II) a relação
entre a psicanálise e a religião. O importante para Lacan não é estabelecer
em que os diversos discursos considerados são homogêneos – são
discursos – mas em que eles são distintos – psicanálise, religião ou ciência.
Boa parte do trabalho de Lacan é fazer essa essa tensão durar. Suspender a
boa qualificação em favor do que pode nos fazer questão. Não há pressa
em responder se a psicanálise é uma religião, uma ciência, ou se nem uma
coisa nem outra, uma terceira coisa, ou ainda uma soma das duas coisas
nas mais diversas proporções. É urgente, entretanto, que nós psicanalistas
coloquemo-nos essas questões, que não nos acomodemos no sucesso de
nossa prática ou inserção social.

Preliminarmente, consideremos certos aspectos da religião. Por


exemplo, aquele em que ela está relacionada a ser uma matriz simbólica
básica, fundante, da qual a própria ciência é uma conseqüência, como de
resto, qualquer discurso que marque nossa civilização. Lacan situa o
judaísmo como a matriz na base da ciência moderna20. O esvaziamento da
divindade de seus aspectos imaginários nessa religião21abre uma
possibilidade de escritura completamente nova, “algébrica”, combinatória
– combinatória, quer dizer, um manejo da letra que demarca uma distância
entre a operação da letra e seu efeito de sentido. O que não é o caso na
20
Ver seminário VII, A Ética da Psicanálise, lição IX de 27/1/1960, p.147.
21
Esse é um dos temas do seminário, A Angústia e o subseqüênte, interrompido ainda na
primeira lição, Os Nomes do Pai.

- 21 -
geometria grega – um saber racional já constituído –, resumido nos
Elementos de Euclides, em que a significação segue de perto os
desdobramentos da dedução racional. A geometria grega desdobra-se no
campo de uma intuição visual22, no qual ela se supõe completa no sentido
de que a cada manipulação sintática temos uma correspondência semântica
dada no espaço e vice-versa. No judaísmo observa-se o funcionamento da
letra descolado da imagem, do suporte imaginário e da significação, nele
aparece a exigência de demarcação que distingue o que é da ordem da
letra, como o traço unário: puro “princípio” distintivo, em que só existem
diferenças e a disseminação das diferenças23 e o efeito metafórico, de
sentido e signifcação. Só a partir do judaísmo podemos falar de idéia no
sentido em que Freud fala, como algo deslocado em relação aos elementos
estéticos/perceptivos/qualitativos que a inscrevem como traço mnêmico.
Para Freud, uma idéia poderia ser descrita como uma entidade “neurônica”,
uma rede, uma trilha inscrita nessa rede, um conjunto de trilhas articuladas
numa rede, etc. – todas essas especificações representam entidades sem
qualidades, puras contingências no fluxo da energia que escoa pelo interior
do “sistema nervoso”, contingências que retardam esse fluxo, retêm
quantidades no interior da rede de neurônios, etc. Já para o grego, a idéia
não é separada do estético, da aparência. O Bem, categoria ética, não se
separa do Belo, categoria estética, que, por sua vez, não se separa do
cognitivo, do Verdadeiro, etc. O que o grego não tolera no mundo sensível
não é tanto a qualidade que nos atinge a partir dos sentidos; o grego não
tolera o movimento de qualquer natureza, seja mecânico, seja qualitativo.
E a sua recusa no sensível não é a qualidade – a física de Aristóteles é uma
física “qualitativa”, quase uma biologia cósmica, em que os entes físicos

22
A partir de Poincaré (1902/1968, p. 64-108) podemos pensar que o grego “recalca” a
fundação da geometria na motricidade, isto é, no movimento. Voltaremos a esse tema
mais adiante.
23
No seminário Os Nomes do Pai, Deus se mantém suspenso à enunciação de seu nome:
Eu sou eu sou. É essa a direção Freudiana também, é suficiente para constatá-la ler seu
texto, Moisés e o Monoteismo.

- 22 -
estão agrupados em genêros e espécies e situados quanto às causas que lhes
dão razão. A recusa do grego é o movimento, aquilo que impede serem as
coisas consideradas na identidade que entretêm, ou deveriam entreter,
consigo mesmas, isto é, de serem idênticas a si mesmas, para toda a
eternidade.

Dessa maneira, apresentamos uma situação em que precisamente


um saber tributário a práticas religiosas, ou à religião, introduz uma
possibilidade de desenvolvimento nova para a racionalidade dominante no
mundo antigo, que é a racionalidade grega. No entanto, não há nada de
muito surpreendente em uma prática mística, considerada irracional, trazer
para o campo do pensamento matemático – o pensamento racional por
excelência – sua contribuição. É um fato histórico que a aritmética e a
álgebra fazem sua entrada no ocidente através dos povos vindos do médio
oriente, dentre os quais os árabes e os judeus, povos que aderiam a
esquemas conceituais, implícitos em suas respectivas concepções místicas,
diferentes daqueles dos gregos. Mas a matemática grega também deriva do
misticismo. Pitágoras foi um místico. É um equívoco, e muito difundido,
associar-se a evolução histórica da matemática e da ciência estritamente
em relação à práticas ofertadas à reflexão racional desde tempos remotos
como o comércio e a engenharia/arquitetura. Isso não é verdade. Aspectos
místicos sempre estiveram presentes, em maior ou menor grau, no
desenvolvimento da matemática e na mente de matemáticos importantes. A
loucura de Cantor, um matemático “moderno” e revolucionário – do século
passado – não é de forma alguma uma situação única e excepcional. Jean
Dieudonné (1987), um grande matemático francês, cujo nome está
diretamente ligado ao do grupo Bourbaki, também relativizando essa
relação, principalmente no que diz respeito ao caráter “inútil”, não-
prático24, da matemática, situa uma outra grande motivação “irracional”

24
Ele cita G. H. Hardy , um grande matemático inglês contemporâneo de B. Russel, em
sua autobiografia (1940/1985, p. 60): “Eu não realizei nada de “útil” Nenhuma de
minhas descobertas nada acrescentou, nem verdadeiramente acrescentará, diretamente

- 23 -
para os matemáticos, além do misticismo e, para ele, mais essencial: o
jogo, os enigmas e os quebra-cabeças (DIEUDONNÉ, 1987, p. 39). Ele
refere, e sublinha, como um móvel fundamental para a criação em
matemática essa “prática” perfeitamente inútil e inócua como a resolução
de um quebra-cabeças.

Retornando à religião, outro aspecto seu também demarcado por


Lacan é sua fundação na palavra; num certo sentido ela é o testemunho da
inauguração da palavra como tal. Os deuses suportam o real da palavra, o
que há de “efetivo” nela. Toda eficácia da religião se situa nesse plano, o
da crença. Mesmo aquela forma de religiosidade inaugurada por uma
conformação simbólica da divindade, aquela que “inventa” o pai – o
judaísmo e sua versão mais ampla e “popular”, que o difundiu pelo mundo
ocidental e parte do oriente, que é o cristianismo – situa o real no núcleo de
Deus. Isso é inequívoco no judaísmo, em que o Desejo de Javé é situado
como enigma (enigma = real). E qual é a função primeira da religião, a
mais geral? É aquela assinalada por Freud em Totem e Tabu (1913/1975):
a nomeação, aquilo que permite aos sujeitos se constituírem para si
mesmos e para um mundo, em referência à palavra. Quer dizer, os mitos
são em essência a operação da palavra que nos faz entrar, nós e as coisas,
no campo do sentido e da significância. Neste campo podemos nos situar
como sujeitos num mundo. Os mitos são, portanto, a possibilidade de duas
ordens absolutamente heterogêneas encontrarem uma espécie de substância

ou não, para o bem ou para o mal, aos consentimentos desse mundo aqui de baixo”.
Dieudonné (1987, p. 37) sublinha bastante essa independência relativa do pensamento
matemático e até mesmo da ciência até bem recentemente, de qualquer preocupação
prática. Por exemplo, ele nos lembra que as aplicações práticas, isto é, tecnológicas, da
mecânica clássica só se verificaram muitos anos após sua formulação: “(...) é necessário
reconhecer que até o início do século XX, a mecânica e a física teórica não tinham ainda
influenciado as invenções tecnológicas “úteis” (...) a máquina a vapor precedeu a
termodinâmica e mesmo o motor a explosão e a aviação nasceram de “bricolagens” do
que de teorias”. Insistimos nesse ponto para fazer contraponto com certas afirmações de
Sokal e Bricmont (1999, p. 65) onde eles revelam um espantoso desconhecimento da
história da ciência e até mesmo da história. Por exemplo, quando dizem: “Para nós o
método científico não é radicalmente diferente da atitude racional na vida do dia-a-dia
ou em outros domínios do conhecimento humano”.

- 24 -
comum; a coisa – o real – pode ser declinada como significação, sentido,
enfim, ser tomada na palavra – simbólico. Por isso, todo mito versa em
última instância sobre as origens – origem: a passagem do real para a
palavra, para a significação, para o sentido e para o discurso (ELIADE,
1947/1969). A religião diz respeito a esse tempo em que ainda não
podemos fazer qualquer distinção entre uma poética e um saber.

Ora, é no plano “originário” que as categorias fundamentais que nos


constituem fazem sua entrada: a sexualidade e a morte; a partição sexual e
as relações de parentesco; o desejo e o Outro. Então, remonta a um tempo
bem anterior a existência de uma ciência como tal para cada um de nós,
aquilo que nos determina como sujeitos sexuados e desejantes: um bebê
tem acesso ao seu nome e ao seu sexo sem fazer uso da ciência, ele passa à
condição de falante apenas por deixar-se atravessar pelas palavras que o
circundam em sua língua materna. A criança nada mais é do que esse lugar
em que um sujeito pode tomar corpo desde que extraído da coisa através da
palavra.

Somos lúcidos de que esse tipo de reflexão é inteiramente


irrelevante para a argumentação de Sokal e Bricmont, e mais adiante
veremos por quê. Mas consideramos oportuno mencioná-la, visto não se
tratar para nós, lacanianos, de simplesmente fazer valer a religiosidade, e
demais discursividades que articulam a palavra – a filosofia, a metafísica, a
moral, etc. – como uma espécie de lata de lixo do pensamento utilizada
pela racionalidade moderna – fundada na ciência – para invalidar ou
desautorizar como irracional essa ou aquela doutrina. Para Lacan, certas
incidências basais da palavra se apresentam no quadro do que podemos
designar como religiosidade. A questão apontada para a psicanálise a partir
dessas considerações é: o que a psicanálise deve à religião como o
testemunho mais básico da fundação do sujeito na palavra, no sentido de
que toda significação, a própria ordem do sentido é, no limite, religiosa?

- 25 -
É certo que a psicanálise é uma prática da palavra, seu efeito a ela
está referido. A psicanálise é uma prática da palavra, assim como o são
também a encenação do ator, o discurso do político na Assembléia, a
confissão ao padre, o ministrar de sacramentos do sacerdote, a defesa do
advogado, a aula do professor, etc. O que é a palavra? É o efeito do
funcionamento da linguagem no qual estamos instalados, fundados no fato
de que a verdade do que é dito é anterior à possibilidade de qualquer
“verificação” possível. Nesse caso, a posição de quem fala é primeira em
relação ao conteúdo – verificável ou não – sobre o qual se fala, como é o
caso dos exemplos listados mais acima. Se não há palavra, não existe ainda
um sujeito capaz de desconfiar, perguntar, negar, afirmar, o que quer que
seja. A palavra é o momento primordial de determinação do sujeito, em
que uma ou outra palavra significa isso ou aquilo porque significa, sem
razões. Nesse nível importa mais o endereçamento, o remetimento, do que
propriamente o conteúdo do que é dito. É o plano em que temos de acatar
nossa alienação fundamental na linguagem ou não falamos, isto é, em que
temos de acatar a autoridade da palavra; ela diz o que diz, e não uma outra
coisa, pois o porquê, que poderia interrogar suas razões, ou nos coloca
numa regressão infinita – signo da recusa da palavra – ou se cessa,
tornando possível o dizer, esse cessar se dá ao preço de termos consentidos
com o que a palavra tem a dizer, com o acatamento de sua “autoridade”.
Por que verde é verde? Por que mesa é mesa? Porque papai e mamãe assim
o quiseram. Ou aceitamos essas “imposições” ou não falamos. Daí, o
essencial a respeito desse plano é o fato de nós, enquanto somos sujeitos,
falantes, constituírmo-nos no acatamento dessa autoridade que não fornece
suas razões. Se o saber pode nos aliviar quanto à arbitrariedade do poder da
palavra, não devemos nos esquecer de que os esclarecimentos promovidos
pelo saber são posteriores à nossa entrada no discurso, vale dizer, eles são
posteriores à nossa alienação fundante.

- 26 -
Eis que a palavra destaca então o problema da mestria. A palavra
diz respeito precisamente às relações que situam o mundo e nós próprios
em relação à mestria. A palavra não vem sozinha, pura; ao contrário, ao
advir, ela inaugura para cada um a possibilidade do laço social, da
convivência societária, com tudo o que isso implica: as paixões, o poder, o
amor, a sugestão, etc., enfim, tudo aquilo que Freud nos ensinou a situar a
partir da transferência. Sokal e Bricmont mencionam a questão da mestria
de uma maneira inteiramente negativa, bem visivelmente o sentido maior
do livro deles é esse: a denúncia da mestria25. Como se fosse possível um
discurso sobre a subjetividade limpo desta – esse seria o papel da ciência,
articular um tal discurso26.

Avancemos agora então em considerações relativas à ciência. De


fato, uma das operações principais e instauradoras da ciência é sua
demarcação em relação à palavra. Essa demarcação pode ser conduzida,
pode ser argumentada, de formas muito variadas. Uma dada visão
epistemológica pode assinalar o corte em relação ao domínio da palavra
operado pela ciência, como Koyré (1957/1962; 1966/1986). Este, ciente do
corte, nem por isso deixou de destacar os nexos históricos, o profundo
drama subjetivo, por vezes a tragédia, naqueles que foram seus
protagonistas mais decididos, no processo histórico da emergência da
ciência no mundo ocidental. Essa demarcação pode ser argumentada
também de uma forma sumária, como a sugerida por muitos positivistas –
já assinalamos esse aspecto – na qual a palavra e todos os discursos que a
organizam – agenciam-na, procuram pensá-la, regulá-la em sua incidência

25
Para eles a autoridade legítima está referida à lógicidade que instrumentaliza a
ciência. Eles não admitem qualquer especificidade à palavra. Por exemplo, eles não se
perguntam por que milhares de seres humanos que têm muita dificuldade de entender
Lacan, como eles, se dizem lacanianos. Ou por que milhares de pessoas se matam em
nome de serem judeus, ou muçulmanos, ou negros, etc. A resposta deles para esses fatos
é a tradicional – apesar de eles tentarem aparentar que não são os velhos positivistas
retintos dos anos 50 – ou uma acusação moral (Lacan e os demais franceses, são uns
enganadores) ou de irracionalismo e preconceito em relação à religião.
26
Eles não fazem a menor idéia de quanto essa denúncia da mestria é tributária de uma
posição religiosa intrínseca ao protestantismo: o puritanismo.

- 27 -
no real, ou seja, a religião, a filosofia, a moral, a metafísica – são
destituídos de valor quanto à verdade; essas discursividades são reduzidas
a quimeras destituídas de sentido.

De qualquer forma, é verdade que o discurso científico nega poder à


palavra. Ele a reduz a um mínimo necessário para que o sujeito possa
operar a seu favor. O suposto ateísmo da ciência, seu naturalismo, o
materialismo, todos esses termos que vemos ser promovidos nas ideologias
cientificistas dizem respeito a esse fato. “Deus não existe” significa dizer
que na ciência o saber não é tributário de nenhuma subjetividade, nem
mesmo a subjetividade maior, a de Deus, que o situe em relação à palavra.
O saber científico não é palavra de ninguém, sua pretensão é dizer o real,
sendo o real identificado ao puro dinamismo a-subjetivo, não-
antropomórfico, da matéria e das forças que a animam27. Se
desconsiderarmos essas e outras ideologias cientificistas que pretendem
freqüentemente propor uma ontologia a partir da ciência, em geral a partir
de sua própria visão particular da ciência, e a considerarmos apenas em sua
lógica, podemos constatar a redução da palavra a um mínimo para que um
sujeito depurado de suas marcas singularizantes torne possível sua
operação – um sujeito propriamente falando não pode estar limpo das
marcas que o singularizam, a começar pelos significantes que dizem sua
história. Estamos comentando o que Lacan designou como foraclusão do
sujeito na ciência. É uma formulação que vale a pena nos determos um
pouco em razão de ela se prestar a muitas confusões.

Em primeiro lugar, não devemos confundir foraclusão do sujeito


com ausência de sujeito na ciência. O sujeito opera na ciência, está
presente nela; a ciência é efeito de um jogo significante e, em razão disso –
como o sujeito é representado por um significante para outro significante –,
ele está na operação que produzirá o saber propriamente científico. O

27
Logo nas primeiras páginas do Projeto vemos Freud, justamente, iniciar sua
argumentação especificando o real dessa maneira – ele diz massas em movimento.

- 28 -
sujeito é foracluído do discurso da ciência, porque, justamente, esse
discurso não o representa como sujeito. O significante que representa o
sujeito é, precisamente, aquele que o funda na palavra, é o Nome-do-Pai. A
incidência desse significante é truncada no discurso da ciência. Por isso
vemos Lacan articular muitas vezes o discurso da ciência com a psicose e
com o delírio. A ciência propõe o real por ela escrito com as “letrinhas” –
maneira jocosa de Lacan muitas vezes se referir ao aspecto algébrico
constitutivo da ciência moderna – no lugar do Nome-do-Pai. É um real
opaco à palavra. A foraclusão então é esse fato de que os significantes da
ciência não singularizam o sujeito como tal; pretendem retê-lo numa malha
em que ele será depurado de suas marcas singularizantes e será reduzido a
ser um sujeito pontual, pura evanescência, sem qualquer suporte
imaginário que o situe como corpo. Esse sujeito assim esvaziado,
purificado, dos elementos que o lançavam no mundo tem apenas uma
missão: sustentar, ligar, os enunciados produzidos pela ciência. Trata-se
então de um sujeito mínimo, sem nome, correlato e mero suporte da lógica
que comanda a produção discursiva da ciência.

Entretanto, os efeitos das marcas coartadas, cortadas, separadas, não


deixam de existir. Essas marcas singularizantes, efeitos do corte para
produzir e sustentar a ciência, restos da operação constitutiva da ciência,
desdobram-se então em outra cena, aquela passível de ser designada como
o social, ou ainda a vida. Nesse cenário, a ciência exerce uma dupla
influência. Uma é ser a ciência uma prática profundamente e extensamente
social, que arregimenta quadros, que está organizada institucionalmente,
que drena recursos para si, etc. Outra é a influência que ela exerce nos
fundamentos mesmos da organização social. O sujeito da ciência e a
operação que o constitui não se restringem apenas à produção
propriamente científica, uma produção restrita a um “público interno”; eles
vazam esse domínio e passam a reorganizar, na cena da vida, os laços
sociais até então – antes do advento da ciência – organizados segundo os

- 29 -
fundamentos da palavra, enquanto articulada pelo significante Nome-do-
Pai.

Todo aquele conjunto de coisas que num outro tempo – antes do


advento da ciência – o sujeito supunha co-natural e intrínseco a si (uma
necessidade) por efeito dos desígnios de seu nascimento, de sua origem,
garantidos pela paternidade e pela palavra de Deus, revela-se em seu
aspecto de montagem, isto é, como uma conjugação “artificial” dos
elementos (eles não se mesclam mais, são exteriores entre si), uma
construção extensamente atravessada pela contingência. E os efeitos dessa
constituição subjetiva recaem no social, evidentemente. O mundo da
ciência exila o sujeito da representação do cosmos e o lança numa situação
em que, para se fazer representar – fazer-se representar, porque isto não
está mais garantido de antemão, como no caso das sociedades tradicionais
que prescrevem o lugar de seus membros a partir de sua condição de
nascimento –, ele deve atravessar uma história marcada pela contingência
na qual ele, como sujeito, possa estar posicionado. A ordem antiga
suportada e garantida, para além do bem e do mal, na figura do mestre,
detentor da palavra, o lugar de onde se pode falar, cai. Era essa ordem que
assegurava, pelo reconhecimento da origem e através da mecânica do
parentesco, um lugar fixado a cada um – o tema do sagrado pode ser
pensado a partir da aí. Os sujeitos estavam de tal modo relacionados a seus
personagens, que viviam esse estado de coisas como efeito dos desígnios
divinos da palavra do mestre. Com a ciência, com o capitalismo28, seu
agregado inseparável, o sujeito reduzido ao real de uma pura evanescência,
separado dos meios para poder se susbstancializar, terá que se exercer num
campo em que a autonomia susposta do saber faz figura de comando – eis

28
O capitalismo, com suas abstrações, “Todos são iguais perante a Lei”, por exemplo,
ilustra bem o que queremos ressaltar. Esse enunciado é exemplar da contingência que
todos temos que enfrentar uma vez que um tal princípio é posto na base do
funcionamento social. Revirando a questão, poderíamos recolocá-la então: como é um
fato evidente que ninguém é igual a ninguém o que é que desempata a partida, sendo
dado que todos são iguais perante a lei? A esse respeito ver Roland Chemama (1994).

- 30 -
como o discurso da universidade se apropria dos efeitos da ciência para se
instalar.

Outra possibilidade é a histeria, o sintoma. O sujeito recusa como


necessárias as contingências que o singularizam exatamente porque elas,
na sua singularidade, como contingências, situam-no no máximo de
pontualidade, de evanescência – elas são singulares até porque portam as
marcas do tempo, mas não são intrinsecamente ele, sujeito, não lhe são
mais co-naturais. Tais marcas singularizantes, na contingência que as
especifica, suportam o fato de não existir laço intrínseco capaz de nos
fundar como sujeitos – em seu conjunto, elas são algo como nosso estoque
de identificações. Sendo essas contingências significantes, o que o sujeito
recusa na histeria é a parcialidade implicada nessas contingências. Se sou
isso, não sou aquilo, mas poderia ser isso ou aquilo. Na contingência, a
amarração identificatória é valorada como subtração de um todo que nunca
é especificado, e que, ao mesmo tempo, nunca delimita seu contorno.
Numa ordem marcada pelo necessário, o atributo tem suas propriedades na
medida certa. Já na ordem da contingência, qualquer coisa poderia ser
outra coisa, vivemos entre o déficit e o excesso, na desmedida. Poderia,
mas não é esse o caso; na verdade se é o que se é, ou seja, o segundo tempo
da contingência é essa sua resolução na necessária e inevitável
irreversibilidade do tempo. O tempo já passou, já fomos isso ou aquilo – e
poderíamos ter sido qualquer outra coisa. Consistimos no sintoma porque é
nele que está cifrado a necessária contingência que nos constituiu, para a
nossa eterna insatisfação – pois é no sintoma que estamos instalados,
inclusive em nossa alienação. E só a partir dele se abre o único caminho
possível para acedermos à nossa singularidade. Enfim, esse é o campo do
desejo.

Outra conseqüência do discurso da ciência no social é a própria


psicanálise. E, em relação a ela temos que observar o seguinte cuidado
quando discorremos sobre essas coisas. Por exemplo, quando nos valemos

- 31 -
de entidades tão vagas no contexto como que a pode denotar o termo
capitalismo tal como o empregamos aqui, ou mesmo, mas um pouco
menos, o termo ciência. É freqüente vermos citações de Lacan nas quais
seu pessimismo – nesse ponto tão próximo e tão longe de Freud – sugere
uma condenação à ciência. Isso tem que ser bem entendido. A ciência e o
capitalismo são irreversíveis, a psicanálise é um termo dessa ordem, é
interna e efeito dela. E não podemos saber até onde vão ou podem ir os
efeitos dessa organização social marcada pela ciência. Por outro lado, a
psicanálise não tem nenhuma proposta global a oferecer. O que ela tem de
essencial a oferecer depende de cada um mesmo, isto é, tomado um a um.
Apenas a psicanálise não pode deixar de assinalar os riscos para o sujeito
de não assumir sua contingência como desejo – sua economia, sua
demissão. Afinal, o que é a psicanálise senão esse convite ao sujeito de
articular sua palavra como sujeito lá onde isso goza?

Vamos a algumas ilustrações dessas coisas. Sir Isaac Newton29 era


místico, escreveu mais sobre esse assunto do que sobre ciência
propriamente dita. Não são muito exatas, por exemplo, as afirmações de
Sokal e Bricmont a respeito desse assunto, quando eles dizem que os
argumentos de Newton sobriveram porque eram bem estabelecidos
racionalmente. Isso é certo com a ressalva de que o próprio Newton não
fazia essa distinção. A ciência não fez de Newton um sujeito mais coerente
e sem divisões, especialmente no campo da vida – Newton não foi nenhum
exemplo de virtude, sanidade mental ou sociabilidade. Mas a subjetividade
não interessa para a ciência. É nesse sentido que Lacan afirma ser a ciência
um campo que não se perde: a ciência de Newton prescinde totalmente de
sua mestria para ser transmitida, inclusive seu nome pode ser suprimido. O
que é uma fórmula em matemática? Podemos ver que a fórmula, entre
outras funções, apaga, anula, todo drama ou tragédia subjetiva daquele que

29
Nossas referências a Newton encontram-se, no essencial, no livro de Richard S.
Westfall (1993/1995).

- 32 -
a produziu. Não há nenhuma marca que especifique Newton em sua
singularidade em, por exemplo, F = m.a (a força F é igual ao o produto da
massa m pela aceleração a). Vemos, como temos reiterado, que a ciência
tende a prescindir da palavra. Eis porque nossos dois cientistas denunciam
os argumentos de autoridade: porque na ciência, enquanto referida à
palavra, a autoridade tende a zero, importando o valor de verdade das
proposições enquanto estão referidas a uma certa lógica que as articula
com os fenômenos empíricos. Aí podemos observar a importância da
distinção estabelecida por Popper entre o contexto da descoberta e o da
prova. Não importa muito se Newton era louco, vaidoso, arbitrário, ou, ao
contrário, um sujeito exemplar. Não importa para a ciência se ele teve o
insight a respeito da gravitação quando repousava embaixo de uma
macieira, quando sonhava, ou mesmo quando trabalhava num laboratório.
O importante é a validação da proposição segundo a lógica acima referida.
Assim, constatamos que a ciência opera um corte. Ela acata com a
subjetividade do cientista em seu máximo – de fato, os cientistas não são
necessariamente um tipo específico de gente, não existe algo como a
“personalidade do cientista”, apesar de existirem tentativas de santificá-los
– porque ela sabe que é nessa condição que ele produzirá o que lhe importa
Mas, uma vez produzido o saber, ela submete esse saber a uma lógica
própria, determinando o que dessa produção ela reterá como pertencente a
seu corpus. É por essa razão que ninguém faz menção ao fato de que
Newton, entre outras coisas, calculou o diâmetro do inferno. Quem se
lembra? Isso é uma mera curiosidade histórica. Para ciência, para seu
corpus de saber, isso não tem a menor relevância e portanto pode ser
descartado. Não é necessário que o cientista saiba ele próprio dessa
operação que incide em sua subjetividade. A ciência pode aparentemente
ser muito permissiva e liberal no sentido de conter muitas perspectivas
diferentes, algumas das quais flagrantemente divergentes entre si. Mas não
é. Seu mecanismo é de certa forma implacável. O que a ciência retém para
si, como lhe concernindo, é efeito de um tratamento lógico-matemático da

- 33 -
experiência e nada mais. A ciência sugere-nos uma ordem fundada no
necessário, mas, de fato, ela afirma, apenas e exclusivamente, uma
necessária contingência30. Por que matéria atrai matéria na razão direta
das massas e na inversa do quadrado da distância? Por que não é a razão
direta mais um (+1), por que não é inverso do cubo da distância? Suas leis
formulam e descrevem algo que acontece. Mas a necessidade desse
acontecer...Acontece assim porque acontece. Se isso ficar muito aflitivo é
permitido dizer: “acontece assim porque Deus quer” – uma maneira de
tentar referir o dito científico a uma enunciação divina. Mas sabemos que a
palavra nesse momento é inócua. Ela pode nos apaziguar, o resultado da
experiência, porém, não se altera de qualquer maneira.

Que tal forma de considerar as coisas logo tenha extrapolado seu


campo de aplicação originário, na pesquisa científica referida às coisas da
natureza, foi mais ou menos natural. E o mesmo pode ser dito em relação
aos homens terem começado a se perguntar a respeito da possibilidade de
entenderem a si próprios segundo os mesmos princípios. O que é que teria
mudado? Tanto uma ordem fundada na palavra quanto a científica
aparentemente visam a mesma forma: um “isso é assim porque é”. Mas a
palavra funda-se em seu próprio exercício – exercício/praxis que nada
mais é do que o exercer-se no desejo como sujeito. A lei científica não
situa nenhuma subjetividade, nenhum desejo, ela afirma uma necessidade
intransponível ao mesmo tempo que uma radical contingência nas
dependências mútuas entre as coisas. A lei científica não faz nenhum
sentido, portanto. Ela afirma um “é assim porque é” limpo de qualquer
desejo. A ciência poderia dizer “é assim porque é, por puro acaso”. Em
referência à doutrina das quatro causas de Aristóteles, Lacan descreveu
essa situação equiparando a religião – a organização do laço social

30
Mencionamos a esse respeito o artigo de Jean-Claude Milner (1991), Lacan et la
Science moderne.

- 34 -
estritamente pela palavra – à causa final e a ciência – a organização do
saber através da escrita31 – à causa formal.

Como é que fica a questão da organização social, do laço social,


quando os homens se perguntam sobre o real daquilo que os faz se
organizarem, a partir de uma perspectiva orientada cientificamente? Será
que a única perspectiva para essa pergunta é a fundação de uma inevitável
ciência social, ou do homem, que afirmará a também inevitável mistura de
palavra e da lei (na acepção científica), em doses diferentes conforme os
credos epistemológicos e metodológicos desse ou daquele autor?

A resposta de Lacan a essa pergunta é não. Mais do que isso, ele


não consideraria essa pergunta relevante. Por quê? Porque ela se situa no
interior de um categorial que deixa escapar o essencial. Podemos observar
isso tanto em sua recusa à hermenêutica32 quanto nas inúmeras denúncias
dele dirigidas à psicologia do ego – nada mais do que, segundo ele, de uma
tentativa de enquadrar a psicanálise numa orientação empiricista e
positivista. A resposta de Lacan é propor e afirmar uma nova
discursividade: a psicanálise. Mas o modo como ele a propõe e a afirma
nos interessa igualmente. Trata-se de uma proposição “estrutural”, isto é,
através de um estilo que trunca os remetimentos discursivos habituais, que
nos faz confrontar com o nonsense, um estilo cuja compreensão não se dá
facilmente. Exatamente aquilo que afetou Sokal e Bricmont: um estilo que
nos ofende e nos obriga à resistência. É um dizer articulado de tal modo,
que pode ser recusado na íntegra – justamente como fizeram os dois e mais
uma multidão de pessoas que pretendem salvar os incautos das teias
retóricas e sofísticas de Lacan. De qualquer modo, e esse é o ponto
essencial, um dizer articulado num estilo que não se poupa em se afirmar
numa radical heterogeneidade com os esquemas sintáticos, semânticos e

31
E que implica um laço social específico no qual o sujeito não se faz representar, no
qual o sujeito é foracluído, como repetimos inúmeras vezes.
32
Por exemplo, no seminário XI, p.12-13.

- 35 -
pragmáticos estabelecidos, o que não é o mesmo que, nem apenas, se opor
ou contrapor a esses esquemas hegemônicos.

Trata-se então de uma manobra isolacionista da psicanálise? De um


gosto pela “subversão”? De uma manobra “estética” em que a psicanálise
seduz ao fazer brilhar sua diferença? Quer dizer, o discurso analítico só
pode ser abordado a partir do interior? Então se trataria da afirmação de
uma imunidade, de uma desautorização ao exterior que é unilateral: a
psicanálise seria um novo dogmatismo, um dogmatismo laico, que
habilmente se protegeria ao se propor à moda e ter um certo êxito nessa
empreitada? Também não é, evidentemente, esse o caso.

A psicanálise é uma práxis, organizada institucionalmente


inclusive. Ela não é uma prática clandestina, secreta. Além do que ela é
formulada valendo-se dos termos, dos significantes que ordenam a vida
ordinária, que expressam a cultura, as artes, as ciências, etc. Não se deve
confundir o fato de a psicanálise lacaniana não apostar todas suas fichas no
diálogo, de não se reduzir ao denominador comum da crítica e dos ideais
de comunicabilidade, de não abrir mão de sua heterogeneidade discursiva,
com a indiferença pelo exterior. Apenas o modo de ela responder às
discursividades que a interrogam não é homogêneo à interrogação feita.
Ela responde a seu modo, em um registro próprio pelo qual ela tem as
maiores responsabilidades, da mesma maneira que ela é interrogada e
avaliada segundo critérios que a ela não são próprios – como o
demonstram patentemente as críticas de Sokal e Bricmont. E, “a seu
modo” neste trabalho não quer dizer que ela responda a seu gosto, ao seu
arbítrio – por isso propomos o termo responsabilidade; quer dizer, a
psicanálise sustenta ser de sua responsabilidade, entre outros desígnios,
sustentar um dizer que apresente o heterogêneo – e isso tanto em intenção,
sua destinação essencial, quanto em extensão. As discursividades chocam-
se, batem-se, influenciam-se, o que não quer dizer que se comuniquem,
que se entendam, que se traduzam umas nas outras. E esse é o ponto a

- 36 -
sublinhar: a psicanálise situa um conjunto de efeitos do significante e da
palavra exteriores ao sentido, à comunicação. Em função disso, ela destaca
uma questão que ultrapassa o campo do saber, e portanto de qualquer
ciência: aquela relativa à ação como o termo que, em última instância,
responde à injunção que nos constitui – a pulsão33.

33
Um conjunto de discussões estavam presentes em nosso espírito quando escrevemos
este capítulo. O texto de Antônio Carlos Rocha “Sobre o Ensino e a Transmissão”
(1999), a discussão entre Luciano Elia e Waldir Beividas (1999) sobre esse tema, a
própria discussão de Waldir Beividas (1999) sobre a cientificidade da psicanálise. Nossa
posição é próxima daquela de Milner (1989, p. 23) quanto ao que caracteriza o discurso
da ciência. Ele diz:
Por ciência, entenderemos aqui uma configuração discursiva que tomou
forma com Galileu e não cessou de funcionar desde então. Desde A.
Koyré, caracterizamo-la pela combinação de dois traços: (I) a
matematização do empírico (a física matemática devendo antes ser dita
física matematizada); (II) a constituição de uma relação com a técnica, tal
que a técnica se defina como aplicação prática da ciência (de onde o tema
da ciência aplicada) e a ciência se defina como a téoria da técnica (de
onde o tema da ciência fundamental).

Esses dois traços extrínsecos se combinam com um traço intrínseco: para


pertencer à ciência uma configuração discursiva deve emitir proposições
falsificáveis. Essa caracterização, devida a Popper, é necessária mas não
suficiente, pois a ciência não tem o monopólio das proposições
falsificáveis. (...)

Num desenvolvimento mais intuitivo de nossa posição situaríamos o seguinte. A


psicanálise não é ciência porque ela não cumpre os requisitos para o estabelecimento da
objetividade. Seu objeto não se constroi, nem se suporta, numa estrutura “lá-fora” que
cristaliza e ancora o objeto em alguma estrutura, em geral matemática, que garante sua
identidade/estabilidade. As analogias com a mecânica quântica – disciplina científica
que supostamente “inclui” o sujeito – são inadequadas justamente porque ela não abre
mão desse efeito de objetividade. O objeto da psicanálise não é “invisível” porque é
muito pequeno e assim se confunde com o aparelho que o apreende. A mecânica
quântica não deixa de supor que seu objeto está aí de alguma maneira, “lá-fora”,
independente das estruturas que o apreendem. Mesmo no caso de uma posição
relativista em mecânica quântica, as estruturas matemáticas nas quais ela se expressa
garantem um acordo intersubjetivo suficientemente forte para fundamentar os critérios
de reprodutibilidade experimental que sustentam o efeito de objetividade enquanto tal.
Já o objeto da psicanálise só “existe” no exercício da linguagem, é ele que responde pelo
o real da linguagem – ele é esse real. Esse objeto, no entanto, não aparece articulado a
nenhuma estrutura unívoca, que o apreenda como estando “lá-fora”, ou em alguma
regularidade sintática sobre a qual possa fundar sua univocidade. A estrutura que
circunscreve esse objeto, o circunscreve “por fora” do efeito de objetividade: é a
estrutura da palavra enquanto se manifesta na transferência. Não observamos uma
atitude favorável dos cientistas em relação à psicanálise justamente em razão desse
aspecto. Mais adiante retomamos alguns aspectos dessa discussão.

- 37 -
Por ora, vamos nos deter nesse ponto de nossa exposição sobre a
relação entre a psicanálise e a ciência a fim de passarmos à nossa próxima
etapa. Demarcadas as fronteiras entre a ciência e a psicanálise, vamos
introduzir e discutir as relações e a utilização pela psicanálise, tal como
Lacan a concebe, de esquemas conceituais oriundos da disciplinas formais,
os quais são, em geral, supostamente intrínsecos e exclusivos da ciência –
o que é evidentemente falso.

- 38 -
Capítulo II

PSICANÁLISE E MATEMÁTICA

Psicanálise, Matemática e a Ciência

O sub-título acima pode parecer surpreendente, já que em Freud


não há, se é que existe alguma, referências à matemática34. Mas como já
mencionamos na introdução isso é equívoco. O alinhamento de Freud à
ciência de sua época implica, mesmo não o sabendo nem tendo explicitado
sua posição, uma certa concepção matemática dos processos envolvidos
em seu campo de estudos. Consideremos, por exemplo, os seguintes
trechos do Projeto...:

A intenção é prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é,


representar os processos psíquicos como estados quantitativamente
determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim esses
processos claros e livres de contradição. Duas são as idéias principais
envolvidas: [1] A que distingue a atividade do repouso deve ser
considerada como Q, sujeita às leis gerais do movimento. (2) Os
neurônios devem se encarados como as partículas materiais.

Onde se originam as qualidades? Não no mundo externo. Pois lá, segundo


o parecer da nossa ciência natural, à qual também devemos submeter a
psicologia aqui [no Projeto...], só existem massas em movimento e nada
mais.

Carlos Paes de Barros (1975/1998, p. 76) comenta o equívoco


implícito na primeira das formulações acima:

O que nos pareceu surpreendente, entretanto, é que, ao anunciar a


construção de um modelo neuromecânico, em que os neurônios
correspondem a partículas materiais, obedecendo ao Princípio de Inércia,
e nos quais a distinção entre a atividade e o repouso é definida por uma
quantidade (Q), sujeita às leis gerais do movimento – Freud estava, na
realidade, iniciando a montagem de um bem concatenado modelo
neurotermodinâmico (e não mecânico), em que os neurônios
correspondem a sistemas em equilíbrio estacionário, obedecendo ao
Princípio de Le Chatelier (e não a partículas materiais, obedecendo ao

34
Conseguimos localizar duas, uma no vol. IX Delírios e Sonhos na Gradiva de Jessen
e outra no vol. XIX, Algumas notas adicionais sobre a Interpretação dos Sonhos. Mas
nenhuma dessas menções toca, sequer longinquamente, no que estamos a discutir aqui.

- 39 -
Princípio de Inércia), e nos quais a distinção entre a atividade e o repouso
é definida por uma grandeza (Q = Soma de Excitação, que é
correspondente a um potencial termodinâmico), sujeita aos Princípios e
concepções da Energética (e não as leis gerais do movimento). (os itálicos
são do autor).

O equívoco de Freud, entretanto, é bem interessante. Ele revela-nos,


sobretudo, que o termo por ele considerado mais proeminente para dar
conta em relação ao psíquico concernia ao “movimento psíquico”. Isso é
confirmado por nossa segunda citação do Projeto.... Assumindo o
“equívoco” teórico de Freud como uma postulação, esse postulado
significa que, para ele, o fundamental a ser considerado em primeiro lugar
está afeito ao fato do movimento, concebido nos termos da mecânica
clássica, em consonância com a ciência natural – ao que parece, remetida à
Newton. A retificação proposta por Paes de Barros redireciona essa
indicação do movimento para a energética. Tal interpretação talvez seja
mais adequada e conforme ao próprio texto freudiano, no plano de uma
sugestão de entendimento que ele fazia à comunidade científica de seu
tempo. A utilização por Freud de conceitos físicos é mais uma tentativa sua
de representar o que está em jogo na psicanálise, relevando sua inserção no
campo da ciência – aquele que ele próprio pensava pertencer.

A energética assinala uma certa exigência de trabalho, um conjunto


de eventos que exigem situarmos também as coisas a partir de um
entendimento da questão do “movimento”, não o mecânico, o
deslocamento espacial, mas as transformações energéticas e suas leis de
equilibração.

A nosso ver, porém, há algo nisso tudo anterior ao fato de que


referência física Freud, realmente, se valeu para dar conta dos dados
clínicos. Algo correlato ao fato de ele discriminar como fundamental em
sua teorização a consideração do movimento. Esse algo diz respeito à
matemática; mais precisamente aos fundamentos matemáticos necessários
para um entendimento adequado de qualquer “movimento”.

- 40 -
Não se trata tanto de “movimento”, mas, matematicamente, de
variação, e, em especial, as variações contínuas. Foi a estipulação
matemática das variações contínuas, o estabelecimento do continuum
matemático, o que permitiu a Newton a formulação da mecânica clássica –
o movimento mecânico concebido como função de entidades contínuas:
massa, tempo, deslocamento, etc. Sabemos que a solução newtoniana da
problemática do contínuo não se limitou à mecânica, embora tenha se
originado na sua aplicação a ela. Na verdade, sabemos que sua maior
contribuição a humanidade foi a criação dos instrumentos matemáticos que
permitiram abordar de maneira precisa e rigorosa as variações contínuas
quaisquer que fossem elas: o cálculo diferencial e integral.

Podemos entender então a referência a Newton no Projeto... Freud


indicava através dela a exigência de aplicar ao domínio do psíquico um
modo de pensar tributário à ciência, que para ele estava referido à
mecânica clássica. Pouco claro é o fato de exatamente essa importação
dizer respeito aos fundamentos matemáticos da ciência. Essa observação
nos importa porque é nesse plano que Lacan intervém, modificando o
rumo da teoria psicanalítica: ao invés de avançar em sua teorização,
retomando as construções energéticas e fisicalistas propostas pelo próprio
Freud, ele reconduz a teorização freudiana a seus “fundamentos”
matemáticos para desse ponto propor então a topologia e a lógica no lugar
da energética. Vale dizer, Lacan entende ser um pensamento “diferencial”,
e não tanto a analogia física como sendo o aspecto importante na utilização
freudiana da energética. Vale dizer, Lacan observa que na energética
freudiana temos antes de mais nada uma lógica associada à uma
topologia.35

Nesse ponto temos de introduzir uma distinção esclarecedora


referente à matemática; é aquela que nos permite, em relação ao vocábulo

35
São precisamente essas duas referências que Lacan trabalha no seminário que aqui
nos concentraremos, o seminário da Identificação (1961-1962).

- 41 -
“matematização”, estabelecer a distinção entre um papel instrumental e um
papel constitutivo que a matemática pode jogar numa dada disciplina
qualquer (CRÉPEL, 1990, p. 1563-4). Naturalmente encontramos na física
esses dois aspectos implicando-se mutuamente. Mas nem sempre é assim.
Podemos encontrar situações nas quais a matemática cumpre um papel
limitado ao instrumental e outras nas quais ela joga apenas um papel
constitutivo. Para essas situações, é bom dizer, não é possível a formulação
de algoritmos para operar com o que é especificado pela teoria no campo
prático. A psicanálise seria justamente um exemplo dessa última situação.
Um exemplo de um papel meramente instrumental é a aplicação da
estatística em sociologia ou psicologia experimental.

Matemática, Intuição e Significante

Nossos objetivos nesta tese são também propedêuticos. Vamos aqui


também “revolver”, “movimentar”, alguns tópicos e discussões
matemáticas e tecer, a partir daí, algumas considerações sobre o sentido da
matemática que devem ocupar o psicanalista antes dele tecer qualquer
julgamento sobre a pertinênica da matemática em seu campo discursivo.

Entre os psicanalistas, de uma maneira geral, a matemática está


associada ao mesmo tempo a um campo de saber tão difícil quanto inútil
para os fins a que se destina a psicanálise. Tal reação à matemática não é
original nem limitada à sua utilização na psicanálise, ela é a visão comum,
compartilhada inclusive pelos próprios matemáticos. É uma visão
confirmada, inclusive, nos bancos escolares, embora não se origine neles.
E se formos verificar, comprovaremos ser a presença ou a ausência da
matemática numa carreira um fator decisivo na sua escolha desta por
alguém. Na verdade, essa reação faz parte da própria matemática como
podemos constatar ao examinar sua história.

Muitos historiadores e matemáticos, citam essa marca: a


matemática é uma disciplina difícil, que enfrenta um grande problema: a

- 42 -
incompreensão (DIEUDONNÉ, 1987, p. 15-27). Mais do que uma
verdade, isso funciona como uma espécie de critério de demarcação que
separa as diversas ocupações universitárias e superiores segundo uma
escala que marca, numa extremidade, um máximo de matemática e um
mínimo de humanidades e, no outro, um mínimo e um máximo dessas
mesmas disciplinas respectivamente.

Esse estado de coisas não é de modo algum exterior ao nosso


problema. É necessário abordá-lo para podermos entender o que está em
jogo quando Lacan lança mão de esquemas conceituais oriundos das
disciplinas formais.

De onde deriva essa reação negativa em relação à matemática? Em


geral, o que se aprende na escola a respeito das disciplinas formais são
algoritmos que visam sobretudo a instrumentalização dos indivíduos na
vida prática. Aprendemos na escola elementar, sobretudo, a fazer contas.
Raramente o ensino ultrapassa esse nível. E mesmo nesse nível não há
facilidades. Quantas pessoas não fazem piadas a respeito de até hoje
ignorarem por que tiveram de aprender a calcular o “mdc” ou o “mmc”?

O teor dessa reação parece estar relacionado ao afastamento


promovido pela matemática – o que muitos designam como seu caráter
abstrato – do concreto, do prático, enfim, daquilo que faz sentido. Na
psicanálise vemos críticas assim surgirem na oposição entre a teoria e a
clínica, entre aqueles que pensam melhor e aqueles que fazem melhor –
como se esses dois tempos fossem incompatíveis e não pudessem estar
juntos numa mesma pessoa. E eis um tipo de acusação que não faltou a
Lacan. Sua teoria foi e é reputada por muitos como um excesso
intelectualista, desnecessário; não falta quem a julgue até mesmo nociva.
Correlativamente, não falta na psicanálise aqueles que defendem serem seu
instrumento operatório básico a intuição e a sensibilidade.

- 43 -
Essa oposição pode assumir configurações bem mais sutis, bem
menos esquemáticas da que estamos a sugerir. Nosso esquematismo visa
sobretudo destacar, tornar sensível, a questão que o formal apresenta e o
lugar onde ele pode incidir. É certo que a matemática tem muito a ver com
esse tipo de reclamação, o que, inclusive, está relacionado a uma verdade
histórica. A matemática só avançou na medida de sua ruptura com o
empírico, com a experiência imediata, com os problemas práticos mais
urgentes, mesmo podendo ser recuperada em seguida para fins práticos e
imediatos. A matemática só existiu – isso foi inclusive sublinhado, ainda
na Antiguidade, por Aristóteles – naquelas sociedades que permitiram a
existência de pessoas não ocupadas com afazeres comuns, pessoas
“desocupadas” que podiam gastar seu tempo pensando. Sociedades que de
alguma maneira toleravam e/ou cultivavam o ócio, para praticarem esse
tipo de atividade inútil que é pensar.

Como isso aconteceu? Poderíamos ser levados a pensar que a


matemática surgiu porque os problemas práticos exigiam soluções não
fornecidas apenas pela prática. Essa crença grosseira também admite várias
nuances, algumas bem sutis. Mas ela é inteiramente falsa. Jean Dieudonné
(1987, p.36) lembra-nos, por exemplo, que as aplicações concretas, isto é,
tecnológicas da mecânica clássica, só ocorreram no início do século XX! E
que, outro exemplo, um artefato que revolucionou a ordem econômica e
social, a máquina a vapor, precedeu a termodinâmica – a teoria física que
explica o calor matematicamente – e que até mesmo o avião e o motor a
explosão “nasceram antes de “bricolagens” do que de teorias” (ibid. p. 36-
37). A mecânica de Newton foi considerada em seu surgimento um passo
fundamental para a humanidade, a ponto de ter ensejado uma revolução no
pensamento filosófico que foi a filosofia crítica de Kant. Mas, bem
entendido, ela não teve nesse momento nenhuma conseqüência prática, ou
tecnológica de envergadura. Ela foi valorizada como um saber, como uma
teoria, que permitia um entendimento mais profundo do real.

- 44 -
Por outro lado, o surgimento da matemática propriamente dita, isto
é, como teoria, e entenda-se, a resumida nos Elementos de Euclides, deu-se
na contramão dos interesses práticos. A geometria euclidiana é uma
espécie de ruptura com a práticas algorítmicas de seu tempo, que eram
realizadas para os mais diversos fins sociais, como a engenharia, a
contabilidade, a produção, etc. Ninguém vá imaginar que uma pirâmide
tenha sido construída sem cálculos; acontecia de essas práticas de cálculo
não constituírem um sistema de saber, uma teoria. Quando a matemática
surge propriamente como um sistema de saber, uma teoria, ela nega, então,
valor àquelas práticas de cálculo. Por exemplo, Platão desprezava os
calculadores profissionais porque eles se valiam de frações próprias. Para
ele, um matemático só deveria se ocupar de números inteiros
(DIEUDONNÉ, 1987, p. 54).

As práticas algorítmicas e referidas ao cálculo numérico foram


resgatadas e incorporadas à matemática através dos árabes, alguns séculos
depois dos gregos. Aliás, foi a contribuição vinda dos árabes que tornou
possível um modo de representação dos números e das operações com eles
não-geométrica36, de maneira que o que hoje entendemos como aritmética
e sua generalização, a álgebra, pôde adquirir autonomia e desenvolver-se37.
A geometria euclidiana, a primeira teoria propriamente matemática,
emergiu não apenas na contramão do prático, como também na do
empírico e do sensível. Os termos de Platão a esse respeito são eloqüentes:

36
Os geômetras gregos representavam os números geometricamente, eles
representavam-nos como grandezas interpretadas geometricamente, isto é, como
comprimentos, áreas, ou volumes (EVES, 1990/1995; BOYER, 1968/1974; HEATH,
1921/1981, DIEUDONNÉ, 1987; CARAÇA, 1942/1998; COSTA 1929/1981;
BOURBAKI, 1969/1976). Fazemos observar que as referências históricas presentes
nessa tese estão ligadas aos autores que acabamos de listar. Doravante, em relação a
história da matemática só indicaremos uma referência específica quando o contexto
assim o exigir.
37
Essa estenografia que estamos acostumados a associar à matemática é recente. Ela é
contemporânea ao desenvolvimento da aritmética e da álgebra e sua origem é a
matemática hindu, que nos chegou através dos árabes – os algarismos arábicos –, e
começou a ter a conformação que hoje lhe damos a partir do século XVII com os
trabalhos de Descartes e Fermat.

- 45 -
Você deve saber ainda que eles [os geometras] fazem um outro uso das
figuras visíveis e que, sobre essas figuras, eles constroem raciocínios, sem
ter no espírito estas figuras mesmas, mas as figuras perfeitas das quais
estas são imagens, raciocinando em vista do quadrado ele mesmo, de sua
diagonal ela mesma, mas não em vista da diagonal que eles traçam; e do
mesmo modo para outras figuras. (A República, Livro VI).

Então, é compreensível o “mal-estar” em relação à matemática. Na


verdade ele sequer configura uma crítica, pois até mesmo seus grandes
nomes reconhecem nela seu afastamento do empírico, sua “inutilidade” e
outros traços dessa natureza. A diferença é serem essas características
negativas para maioria das pessoas e isso explica o porquê de elas
buscarem distância dos formalismos. Mas, para os matemáticos e aqueles
que de alguma forma a apreciam, essas características não só são reputadas
como positivas, como também estão na origem dela como uma disciplina
essencialmente teórica.

Uma primeira consideração sobre a relação entre a matemática e a


psicanálise já pode ser estabelecida. Todos têm em mente a maneira como
Lacan caracterizou o significante desde o início de seu ensino. O
significante é considerado como algo que diz respeito ao elementar e que
possui uma natureza discreta; sua “essência” é seu caráter diacrítico38. Isto
é, o significante é alguma coisa por sua diferença em relação aos outros
significantes. Assim, o conceito de significante confunde-se com o de
seqüência significante. Não existe um significante, mas sempre vários, de
maneira que a diferença possa se articular e se sustentar. Para Lacan, o
significante como elemento do signo, está em segundo plano. Ele não
privilegia a função semântica associada ao conceito de significante como
elemento do signo, ele privilegia seu caráter sintático, de elemento
diacrítico necessário para articular o conceito de estrutura. E submete o
aspecto semântico ao sintático que, por sua vez, é inerente ao conceito de
significante. São inúmeros os momentos em sua obra em que ele explicita
38
Diacrítico não quer dizer apenas discreto, quer dizer que o discreto só existe na sua
relação com os demais elementos discretos. Vale dizer, o discreto só existe na relação,
em relação. Assim, “diacrítico” já sugere uma topologia.

- 46 -
essa posição. Podemos ler no seminário sobre as psicoses, um seminário do
início de seu ensino, por exemplo, “é que todo verdadeiro significante é,
enquanto que tal, um significante que não significa nada” (1956, p. 210).
Ainda nessa mesma lição:

Obter uma lei natural, é obter uma fórmula insignificante. Menos ela
significa alguma coisa, mais estamos contentes. É porque nós estamos
perfeitamente contentes do advento da física einsteniana. Vocês estariam
errados em acreditarem que as pequenas fórmulas de Einstein que
colocam em relação a massa de inércia e alguns expoentes, tenham a
menor significação. É um puro significante. E é por essa razão que graças
a ele, nós temos o mundo nas palmas da mão. (p. 208-209).

Há algo no matemático que diz respeito ao significante, ao puro


significante, isto é, aos elementos diferenciais que armam, que sustentam
uma sintaxe mínima a partir da qual nós próprios e o mundo se constituem.
A relação de ordem é clara: o sintático é primeiro em relação ao semântico.

Visivelmente, a afirmação de Lacan citada acima o situa como um


“algebrista”, alguém que ataca uma dada problemática, partindo do
princípio de que pode descrevê-la, explicá-la, em termos discretos. Essa
não é uma posição interna à psicanálise. Na verdade, trata-se de uma
posição que possibilitou o advento da psicanálise. É, portanto, anterior a
ela. Essa posição faz parte de um conjunto de outras que possibilitaram a
emergência da ciência moderna. Nesse sentido, a noção lacaniana de
significante não é meramente um termo descritivo referente a uma entidade
aí no mundo que determina nosso psiquismo e nossas ações. Essa noção
está do lado de uma certa opção epistemológica que, sob esse aspecto,
alinha a psicanálise com a ciência moderna.

Para dar conta dessa relação vamos abordar certos aspectos da


história das matemática. Vamos examinar seu percurso desde a geometria
de Euclides até o advento da álgebra no século XVII com Descartes e
Fermat dentre inúmeros outros nomes importantes nesse período. Nosso
propósito nesse caminho é indicar o que aqui designamos como
“negativização” em relação ao empírico e à intuição. Essa operação de

- 47 -
“negativização” é constitutiva de maneira explícita da própria matemática.
Veremos que é nesse movimento de “negativização” que se estabelecem as
bases da ciência moderna. Após termos indicado essas referências
especificamente matemáticas, abordaremos em que a psicanálise, na
teorização mesma de Freud, está relacionada com esse movimento.
Finalmente num capítulo dedicado a Lacan examinaremos a questão da
intuição, do retorno de um certo pathos, que se dá a partir mesmo desse
processo de “negativização” constitutivo, como é o caso da topologia da
qual ele, Lacan, lança mão.

- 48 -
Capítulo III

CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A MATEMÁTICA

A Geometria Euclidiana: Demonstração, Intuição e Negativização. A


Fundação da Matemática

O matemático russo, A. D. Aleksandrov (1956/1982a), diz:

Sabemos que a geometria nasceu do experimento, de uma investigação


empírica das formas espaciais e da relação entre os corpos: da medida de
partes de terras, de volumes de recipientes, etc. É pois, em sua origem,
uma teoria física, como o é o caso da mecânica. (vol. 3, p. 215).

Isso nega nossa afirmação anterior sobre o afastamento da


matemática em relação ao sensível, ao empírico e ao prático. No entanto,
há algo verdadeiro nessa afirmação. Vejamos em primeiro lugar por que de
fato a geometria de Euclides é uma teoria matemática, que aspectos estão
presentes nela que fazem os matemáticos a classificarem como tal.

Os historiadores são unânimes quanto ao caráter dedutivo da


geometria euclidiana39. Todos concordam quanto ao fato de cada
proposição sua ou ser uma proposição primitiva – aceita sem demonstração
–, ou ser uma proposição demonstrada, isto é, derivada, de proposições
primitivas ou de outras proposições derivadas. Mas, esse caráter dedutivo é
suficiente para designá-la como matemática? A resposta é não. O que a
torna uma teoria matemática, além de sua organização dedutiva, é a sua
ruptura com a experiência no sentido assinalado na citação que fizemos de
Platão. Consideremos as proposições primitivas da geometria plana –

39
Eis a primeira frase de BOURBAKI (1990, p.E.I. 8):
Desde os gregos, quem diz matemática, diz demonstração; alguns
duvidam mesmo que se encontre, fora da matemática, demonstrações no
sentido preciso e rigoroso que esta palavra recebeu dos Gregos e que nós
lhe damos aqui.

- 49 -
denominadas axiomas ou postulados40. Elas versam sobre os objetos e as
relações primeiras, aquelas a partir das quais todas as outras serão
conseqüências. Esses objetos primeiros são: ponto, reta, ângulo, círculo e
polígonos. Consideremos, por exemplo, a definição de ponto: o ponto é
sem extensão. Sob que aspecto essa definição é conforme à experiência?
Sob nenhum41. Não existe nada nesse mundo que não tenha extensão. No
entanto, é inegável que essa “definição” traduz o que para nós é uma
evidência. Mas, se nos aproximamos dessa evidência, não compreendemos
bem quais são suas bases racionais, pois é impossível definir ponto a partir
da extensão – embora essa definição seja negativa, quer dizer, ela afirma o
que ponto não é, ou não tem, e é bem verdade que a negação de alguma
coisa pressupõe que ela esteja definida de alguma maneira. Se pensamos
sobre essa definição, logo chegamos a paradoxos. Por exemplo,
compreender ponto a partir do processo de dividir indefinidamente um
comprimento. Essa é a nossa primeira tentação. Ponto seria como que a
extensão mínima, a menor extensão possível, uma espécie de átomo da
extensão. Mas isso seria absurdo, porque um comprimento mínimo ainda
assim é um comprimento, ainda assim é extenso. Ele pode ser mínimo para
nós, mas não para uma outra criatura; portanto, a extensão mínima é ainda
divisível. Na verdade, percebemos ser a tentação de dividir o comprimento
indefinidamente para finalmente chegarmos ao ponto uma quimera, porque
a cada etapa do processo o que se tem é um novo comprimento a dividir, e
não um comprimento mínimo. O espaço supõe que qualquer item
localizado em seu interior seja extenso, isto é, pode ser dividido em partes
constituintes indefinidamente. O fato da indivisibilidade indefinida define
uma propriedade fundamental da geometria euclidiana: a de que o espaço é
contínuo. Se refletirmos bem, veremos que a continuidade é incompatível

40
Esses dois termos não são sinônimos, mas no contexto nossa simplificação evita uma
sofisticação desnecessária já que ela não acarreta nenhum erro para nossa argumentação.
41
A exposição de Poincaré sobre a problemática do espaço sempre releva esse aspecto.
Seus artigos, “A Noção do Espaço” e “O Espaço e suas três Dimensões” reunidos no
livro O Valor da Ciência, de 1905, são exemplares a esse respeito.

- 50 -
com a idéia de encontrarmos uma extensão mínima, um átomo de
comprimento. Sendo um comprimento dado, por hipótese, formado de
pontos-átomos, entre um átomo e outro teríamos uma interrupção e, nesse
caso, a reta que indicaria esse comprimento seria um pontilhado e não um
traço contínuo, sem interrupções, como deve ser uma reta. Dessa forma,
observamos que, para preservar a idéia de continuidade, temos de supor a
divisão de uma extensão qualquer como um processo infinito. Isto é, entre
um ponto e outro sempre haverá uma infinidade de outros pontos. Vemos
por que Euclides, matemático, tem que se libertar do empírico, da physis,
do espaço tal como o experimentamos; por isso ponto não possui extensão.
Porque o sem-extensão é compatível com a idéia de continuidade e a
preserva, justamente por não bloquear o processo de divisão indefinida da
extensão. Por outro lado, se ponto é inextenso, como ele pode marcar
alguma coisa? Por que, embora dito sem extensão, ele permite que nos
localizemos na extensão? Poderíamos pensar que, sendo inextenso, ele não
é nada, é alguma coisa diluída no nada. Mas não é assim, ponto é alguma
coisa inextensa mas localizável – aliás, ele é a encarnação mais elementar
da possibilidade de localizar o que quer que seja na extensão. O ponto tem
que ser vazio e, se ele é sem extensão, é porque ele é heterogêneo à
extensão. A divisão não abole jamais a extensão; não posso derivar a
nulidade necessária para definir o ponto a partir dela. Mas o ponto incide
na extensão, ele referencia a extensão de dentro dela mesma, porque ele é
dado nela; mas ele é dado nela por não estar, como extensão, nela – ele é
inextenso: ele não ocupa um lugar, ele indica-o – justamente porque ele,
ponto, é heterogêneo à extensão. O ponto demarca-se por cortar, por
marcar, uma certa distinção mínima na homogeneidade da reta, do plano,
etc. Ele é aquilo em que algo dado a ver admite distinções, não está diluído
numa pura homogeneidade de todas as coisas. Ponto então é corte, é
interrupção. E como corte, ele é uma espécie de subtração, de passagem do
extenso como positividade para uma ausência de extensão que se deixa
demarcar, que se deixa escrever de alguma forma. Vale dizer, sua

- 51 -
incidência local afeta a extensão: ele marca-a, distingue-a. Essa coisa
inextensa, o ponto, existe em um número infinito, já que o espaço admite
esse tipo de divisão infinita que, como vimos, não tem uma extensão
mínima, que seria ponto, que, no entanto, demarca, indica, um certo ponto
como corte e interrupção possível em cada lugar. Essa infinidade de pontos
permite que cada ponto se deixe localizar em relação aos demais.

Resumamos então o movimento que estamos propondo a respeito


de noções básicas da geometria, no caso a definição de ponto. O que está
em jogo nessas definições primeiras é uma certa “negativização” da
extensão como presença dada. Daí o caráter negativo dessas definições:
ponto é sem extensão, reta não tem espessura. Esse é o corte com o
empírico, de uma certa maneira com o físico, pois a extensão enquanto
uma entidade positiva é algo que imaginamos existir fisicamente aí no
mundo como uma grandeza dada. Operada a “negativização”, o espaço é
então construído no pensamento, sendo a construção racional,
rigorosamente dedutiva, que denominamos geometria.

Mas avancemos um pouco mais. A extensão passa então a ser


pensada em termos daquilo que se subtrai a ela. A reta é um conjunto de
pontos? Então, ela não poderia existir. Por que, como pode uma coisa
extensa, a reta, ser constituída de entidades não extensas, os pontos?
Acontece, contudo, que reta não é definida a partir de ponto. A reta contém
pontos, mas ela em sua essência não depende deles. A reta também é uma
noção básica capaz de ser também, como ponto, “evidente” por si mesma.
A reta é a relação entre os pontos que a formam, numa disposição...reta! É
como se ela fosse uma espécie de moldura, de fôrma, que pré-existe a seus
supostos conteúdos, os pontos, que garante estarem eles dispostos,
“enfileirados”, em linha reta. Nós apreendemos melhor uma reta quando
dizemos que entre dois pontos dados passa apenas uma reta, do que quando
pensamos nela em termos de pontos “enfileirados”.

- 52 -
Contudo, as reflexões acima não são, a rigor, propriamente
matemáticas. Elas seriam pré-matemáticas no sentido de que preparam, são
um exercício conceitual, que antecipam a matemática, ou seriam
considerações filosóficas subjacentes às teorias propriamente matemáticas.
Em relação às discussões sobre as definições dos termos primitivos da
geometria – ponto, reta, etc. –, de sua pretensa “evidência”, Jean
Dieudonné (1987, p. 50) afirma serem elas na verdade pseudodefinições,
pois, sendo uma definição uma espécie de abreviação, de substituição de
termos por outros termos,

...não vemos nunca Euclides ‘substituir’ estas duas ‘definições’ [ponto


inextenso; reta sem espessura] aos termos ‘ponto’, ‘linha’; nós podemos
então considerar que nele estes termos não são definidos.

Com tal observação, Dieudonné quer nos advertir de que não há


nenhum uso propriamente matemático da equivalência entre os termos
ponto e reta e suas respectivas definições, porque, justamente, elas não
freqüentam o jogo dedutivo caracterizador da matemática. Esta se iniciaria
com esses termos – por isso ele os considera indefinidos. Mas por que
então essas definições são dadas? A título de que elas estão lá?

A nosso ver, se não são internas ao jogo dedutivo, elas dizem


respeito à pretensão semântica do sistema dedutivo. Elas estão no limite do
que é anterior à instalação do sistema dedutivo e esse sistema dedutivo ele
próprio. Por isso fizemos menção ao fato de nossa discussão sobre elas ser
de uma natureza pré-matemática ou filosófica. Nesse encaminhamento
podemos entender a pertinência da citação de Aleksandrov feita
anteriormente a respeito da geometria ser uma espécie de física. Se as
“definições” de ponto e reta assinalam o corte com a extensão enquanto
positividade, se elas assinalam que o tratado no manejo dedutivo a seguir
diz respeito ao pensamento, pensamento esse só possível a partir da
“negativização” da materialidade física das entidades definidas, elas
também dizem que o furtar-se da positividade está a serviço da

- 53 -
positividade, da verdadeira positividade, aquela do pensamento ou da razão
–, aquela que assegura a inteligibilidade das coisas.

O traço de evidência, de significação, dessas definições, traço que


escamoteia seu fundamento formal – conforme assinala Dieudonné, ponto
e reta são termos indefinidos que não se apresentam explicitamente como
tais –, assinalam em que o formal é difícil de conceber fora de sua função
metafórica ou de signo – como é difícil conceber o formal em si e por si.
Esse fato foi uma verdade histórica. Mesmo tendo a compenetração de que
sua construção nada tinha a ver com a experiência, Euclides se viu
compelido a assinalar a pertinência estética – o espaço, as figuras – da
geometria e isso no ato mesmo em que indicava a distância em relação ao
empírico.

Através de sua teoria da reminiscência, o próprio Platão chamava a


atenção para o fato de que mesmo nossa apreensão do espaço concreto,
empírico, envolve um processo construtivo suportado na idéia. O real do
espaço é intrínseco, sua origem está no conceito (na idéia), embora
possamos ter a impressão de que esse real está lá fora e de que é lá de fora
que ele nos afeta enquanto real. Nossa apreensão do espaço permite-nos
localizar nele pontos, retas, etc. Coisas fundadas na “inextensão” do ponto
e da reta, que portanto não “existem”, mas que ainda assim nos permitem
localizar e operar no espaço experimentado, concreto. O espaço de
entidades (pontos, retas, planos, etc.) existentes, esse espaço “fictício”, é
considerado ou confundido com o espaço real, ou pelo menos não
podemos mais falar em espaço real sem considerar os diversos modos
possíveis de apreendê-lo a partir da idéia. Platão sugere essa inversão em
relação ao que usualmente experimentamos. Não é o espaço real, enquanto
exterior – como é nossa impressão mais imediata –, que se reflete em nossa
sensibilidade. Para nós, nossa experiência mais imediata mostra-nos que o
índice maior da concretude e da realidade das coisas nos chegaria do lado
do sensível.

- 54 -
Em nossa sensibilidade, como o registro passivo das coisas,
localizaríamos esse ponto de real espelhado na sensibilidade, já que ela é
concebida como espelho do mundo. Para Platão, ao contrário, a
concretude, o real, do espaço é derivado da idéia; é dela que ele retira toda
sua consistência, toda substância. A contribuição da experiência, do
empírico, é disparar a memória de nossa participação no mundo, perfeito, o
mundo das idéias, onde de fato o real do espaço – e de qualquer outra coisa
– está alojado. O empírico é então o lugar do que não-é, da negatividade
que diz respeito ao irreal, ao derrisório. A experiência é essa cena onde o
empírico encontra sua verdadeira concretude – a única que lhe é possível –
na idéia que o fixa, que lhe confere a devida concretude. A nossa
experiência é a de que o espaço já está em acordo com nossa idéia a priori,
ele é uma realização dela. Em resumo, Platão distingue um espaço onde as
coisas nos são dadas ( o mundo das aparências) daquele onde elas são reais
(idéias). A geometria diz respeito somente a esse espaço real; real porque
ideal. Espaço situado a uma distância tão intransponível do espaço
empírico, ordinário, quanto, ao mesmo tempo, é a nossa única
possibilidade de apreendê-lo, de determiná-lo de alguma maneira.

Contudo, temos que entender a natureza da distância entre o ideal e


o empírico. De fato, o formal não se destaca do estético, na matemática
grega. Embora pontos, retas e planos, etc. não existam fisicamente, só
existam no pensamento, é um fato que as asserções da geometria dizem
respeito ao espaço como uma entidade referida ao campo estético, à
sensibilidade. Platão inverte os termos, assinala a degradação ontológica
do empírico em relação ao ideal, mas de qualquer maneira o empírico e o
ideal são um para o outro; eles se esclarecem e se requisitam mutuamente.
Esse fato confundiu durante muito tempo não só os matemáticos, mas
também os filósofos e os cientistas. Jean Dieudonné (1987. p. 52) faz
menção a esse tema; ele nos dá o seguinte depoimento:

Uma longa habituação parece ter embotado nos geometras a consciência


da ousadia que representa a passagem do mundo dos objetos sensíveis a

- 55 -
aqueles os quais eles não são senão as imagens grosseiras. Enquanto que
está consciência é tão visível em Platão e Aristóteles, nós somos
surpreendidos em ver pensadores tão profundos como Descartes e Pascal
– eles que não hesitaram em atacar frontalmente a escolástica – proclamar
com vigor a “verdade evidente” dos axiomas da geometria.

E ele esclarece-nos:

Não é apenas senão no último terço do século XIX, com o estudo


aprofundado dos números reais, que se pode dar conta do fosso que separa
a “intuição geométrica” dos axiomas pretensamente destinados a fundá-la
racionalmente. (p. 52).

A compenetração do formal como “limpo” de qualquer


remetimento estético, até mesmo a ruptura do formal em relação ao
discurso significativo não é grega. Tampouco está presente em Descartes42,
embora se inicie com ele. Ela é de nosso tempo: o formal preconizado por
Hilbert e outros formalistas, vazio de qualquer intuição, oriunda da
sensibilidade ou não. Para Platão, para o grego, a forma é uma espécie de
imagem, nós lembramo-nos da forma perfeita através da experiência
sensível. Apesar dele assinalar a distância em relação ao empírico, a
referência da geometria tem uma conformação espacial. Ideal, mas mesmo
assim conforme a intuição de espaço. Esse ideal é uma espécie de duplo do
fenomênico, um duplo “perfeito”. Dieudonné dá-nos um exemplo
interessante. É uma espécie de brincadeira com os axiomas de Hilbert
proposta pelo próprio. Ele considera os dois primeiros axiomas de sua lista
e propõe trocar as palavras ponto e reta por mesa e cadeira
respectivamente:

“Dois pontos distintos pertencem a uma reta e apenas a uma”,


“Existe ao menos dois pontos distintos pertencendo a uma mesma reta”

42
Descartes não consegue admitir o formal em sua pura arbitrariedade e contingência.
Ele supõe que o mecanismo dedutivo preserva a verdade dada nas proposições
primeiras. Dieudonné vê nessa concepção um retrocesso em relação ao grego. É como
se Descartes trouxesse para o interior do sistema dedutivo aquilo que deveria ficar de
fora. Quando Dieudonné assinala que as definições dos objetos primeiros da geometria
por Euclides (ponto, reta, ângulo, etc.) são pseudodefinições, ele quer com isso chamar a
atenção para o fato de que Euclides não operava com elas como verdadeiras definições,
isto é, realizando substituições no interior das demonstrações. Elas apenas assinalam
para o discurso – no caso, a filosofia – a pretensão semântica da geometria, mas elas não
operam no interior do sistema dedutivo.

- 56 -
tornam-se:
“Duas mesas distintas pertencem a uma cadeira e a uma somente”,
“Existe ao menos duas mesas distintas pertencendo a uma mesma
cadeira.”
(...) Isto pode parecer uma gozação; de fato, esta dissociação do sentido e
do não concretizado, para a geometria elementar, o processo que liberou a
matemática das cadeias que a ligavam muito estreitamente ao real
[empírico/fenomênico]; ele permitiu todas as conquistas inesperadas
realizadas desde um século e suas aplicações surpreendentes à física. (p.
53-54).

De fato, Platão não entendia forma no sentido esboçado acima. Essa


designação de entidades formais completamente vazias semanticamente é
uma formulação só possível após o advento da álgebra a partir do século
XVII. Para ele, a geometria retinha na trama de uma rede conceitual um
certo elemento estético presente nas coisas que responde pelo que as
qualifica, o que as distingue umas das outras enquanto qualidades. É a
figura. Para Platão a forma é uma escritura que se apresenta sobretudo
como uma figuração daquilo que dá à coisa sua identidade consigo mesma,
sua identidade de ser esta ou aquela coisa, com essas, e não aquelas outras,
características. É a qualidade chamada a suportar a estabilidade da
distinção, como se o número, ou melhor, a letra, não tivesse essa força. A
geometria confunde-se com essa figuração, com nossa intuição do espaço,
com certos termos dessa intuição. A figura, seu contorno, a distinção entre
uma linha quebrada ou curva, um polígono, etc., todas essas entidades são
entendidas como traços que descrevem, discriminam certas características
básicas das coisas que nos são dadas pelos sentidos, e, no caso, em
particular, a visão, isto é, das coisas que nos são dadas no espaço enquanto
campo da visão43.

O caráter discreto do que está em jogo na possibilidade de


discriminar as coisas tão univocamente assim se encontra omitido na

43
Já mencionamos a observação de Poincaré a propósito da geometria euclidiana omitir
o movimento. Ver, por exemplo, o capítulo IV de seu livro A Ciência e a Hipótese, de
1902, denominado “O Espaço e a Geometria”, onde nos instruímos a respeito da
discussão que estamos a promover, embora nosso esforço vá numa direção oposto à sua,
no sentido de que aqui estamos a ressaltar a relevância de uma reflexão cuja direção é
formalista.

- 57 -
geometria euclidiana, em favor de uma apresentação figurada daquilo que
traz a intuição, a compreensão, enfim, a significação, a síntese que reenvia
a verdade formal do teorema à experiência do espaço. A univocidade da
letra consigo mesma se superpõe ao dado fenomênico e, através dessa
superposição, é emprestada ao dado fenomênico, que, dessa forma alça
então ao efeito que designamos como “objetividade”, um certo tipo de
consistência, de unidade, aquilo a partir do que o dado fenomênico deixa
de ser um mero dado para se tornar um objeto.

Mas, sublinhamos, na geometria euclidiana, na matemática grega,


há esse ocultamento da letra, o pólo do objeto como um complexo do
diverso representado numa figuração, enquanto referido a uma estética,
aspira para si todas as propriedades que asseguram sua estabilidade, sua
consistência de objeto, ou seja, por suas qualidades imagéticas, o objeto é
uma totalidade com esta ou aquela qualidade e, por portar o discriminante
tomado de empréstimo da letra, ele é contável, isto é, associado ao número,
cai sob a determinação do número. Os três lados do triângulo, os quatros
lados do quadrilátero, o que especifica o quadrado, seus quatro ângulos
retos e o mesmo comprimento de seus lados, etc. A geometria euclidiana
apresenta-se, então, como uma escritura que visa a qualidade, ela situa o
discriminante na qualidade – o que não quer dizer que ele de fato esteja na
qualidade, como os algebristas irão demonstrar. Ela omite, ou melhor, não
destaca o número da figura, esconde-o nela: o número é configurado como
entidade geométrica, como métrica univocamente associada a traços
qualitativos, abstraídos do perceptivo, imaginados, tais como reta, curva,
ponto, ângulo, etc. Essa coisa é redonda, quadrada, com tanto de volume,
com essas medidas, etc. – essa coisa é, por exemplo, um copo (redondo,
cilíndrico, maior do que aquele outro, etc.).

É nesse sentido que ela é, retomando nossa citação de Aleksandrov,


uma espécie de física do espaço. Ela é uma teoria do espaço real, sua
construção racional, isto é, aquela dada ao saber. A semântica dessa

- 58 -
construção racional é reputada conforme nossa experiência concreta do
espaço – isto é, as coisas acontecem como se de fato, realmente, o espaço
fosse tal qual é descrito pela geometria euclidiana – e é nessa
conformidade, nesse acordo, que situamos a verdade da geometria
euclidiana, seu alcance universal e absoluto.

O Formal, a Letra e o Significante. Matemática como Escritura

O que hoje em dia entendemos como matemática tem um modo de


apresentação bem diferente da dos gregos. A matemática hoje é para nós
indissociável de uma estenografia árdua, econômica no sentido de liberar
significações específicas, imagens e intuições. Ela é para nós, aliás,
bastante ascética sob este aspecto: em seus traços mais fundamentais, ela é
“desligada” da experiência sensível, ela aparenta não possuir qualquer
pretensão sensível. Se algo da ordem da significação, da intuição, está
inevitavelmente presente, esse algo está intimamente associado ao vazio da
conformação “lateral”, “metonímica”, do discreto, da letra, do
discriminante, enquanto puro diferencial – a letra como o aspecto mais
material do significante. Lateral, quer dizer, na conexão contígua da letra
com outra(s) letra(s) é reconhecido o semântico, essa ou aquela
especificação semântica. O sintático no comando do semântico. O
semântico como uma espécie de sintoma irredutível do sintático, de sua
articulação. O semântico descolado do empírico, do fenomênico, da
intuição sensível.

O fato de, de uma certa maneira, o sintático depender, para poder se


articular, da admissão, do reconhecimento, da diferença.
“Reconhecimento” quer dizer alguma coisa que tem a estrutura análoga ao
juízo, “isto é isto outro”, “essa coisa é tal outra”, sendo o aspecto mais
essencial da atribuição não tanto a coisa especificada, referenciada, mas a
passagem da diferença para a identidade, o “é”, também dito a cópula,
permitindo a contagem. O semântico é muito mais fundamentalmente isso

- 59 -
que, ao ser regido pelo “é”, conta-se, do que a qualidade disso que “é”, sua
figura, em sua relação com o mundo ou a sensibilidade44. Trata-se então,
de um semântico esvaziado – que em sua estrutura a mais reduzida é pura
disseminação do um contável45, que, por não se totalizar, isto é, por não ser
idêntico a si mesmo, por ser, portanto, diferente de si mesmo, engendra a
problemática do infinito.

E, para nós, psicanalistas, esse semântico mínimo são aqueles


termos que nos permitem colocar, demarcar, localizar o fato da existência
do sujeito. Em última instância, o que assegura uma certa unidade a uma
dada aglutinação, uma dada composição, de elementos discretos é um
sujeito; é um efeito sujeito que está associado à disseminação da diferença
– se há diferença, é porque um sujeito a suporta, nem que seja, nesse nível,
44
A esse respeito é fundamental a construção freudiana do juízo em seu livro, Projeto
para uma Psicologia Científica, em que ele situa justamente isso que acabamos de
descrever. É muito sofisticada a construção freudiana embora ela pareça muito simples e
em continuidade com uma certa perspectiva empirista. Foi Lacan quem, em várias
ocasiões, chamou a atenção para a complexidade da construção freudiana.
Descreveremos essa construção em dois tempos, cada um desses tempos requisitando,
por sua vez, dois momentos para se articular. Freud vale-se da estrutura do juízo
“atômica”, isto é, a ligação sujeito-predicado pela cópula, o “é”. Então, 1° tempo. O
seio. A pura afirmação do seio. Numa segunda experiência o seio está de perfil, então
nosso pequeno bebê, que, sem saber, é um geômetra, descobre que através de sua
movimentação é capaz de igualar, de fazer coincidir, a imagem do 1° seio, que teria sido
frontal, com a percepção atual do seio de perfil. Nosso sujeito já possui a priori esse
critério de identidade geométrico: se duas figuras se recobrem exatamente, então elas
são iguais. Estabelecida a identidade, ocorre a seguir, subordinada a ela, a descarga. 2°
tempo. É impossível qualquer tipo de atribuição no 1° momento, isto é, não há nenhuma
atribuição nesse momento, não é possível articular nada do tipo “é um seio”. É no 2°
momento, quando surge o seio de perfil, que essa necessidade se coloca. Mas por que
esse momento é 2°? Ele só é 2° em razão do fato de requisitar, de exigir, um 1° em
relação ao qual ele é idêntico. É a partir do segundo momento que o primeiro é
inventado – a origem é uma invenção. Eis então a estrutura mínima da identidade, essa
exigência de que uma dada atribuição sempre se colocar em sua atualidade como
“reconhecimento”, como segunda, em relação a um primeiro tempo em que essa coisa
dada nesse segundo momento, já estaria lá num primeiro momento, já teria sido
afirmada nesse primeiro momento, teria sido lá onde nada ainda poderia ser. Toda
complexidade da temporalidade na psicanálise está presente nessa formulação. Mais
adiante retomaremos, no texto, essa questão.
45
Estamos tratando nesse momento de maneira indistinta letra e o traço unário. Em
nosso entendimento, o traço unário é uma literalização do significante, é sua redução ao
mínimo: sua referência ao “um” contemporânea à sua disseminação como marca da
diferença numa seqüência infinita de “uns”. Lacan situa no seminário da angústia (lição
de 9 de janeiro de 1963) a letra como a localização pura da identidade. Nesse sentido, o
unário é o que marca a identidade da diferença, que é a característica intrínseca e
definidora do significante.

- 60 -
um sujeito acéfalo. Enfim, se o discreto não pode se apresentar sem ser
através dos restos daquilo que é experimentado, ele é, no entanto,
autônomo em sua ordenação, em sua composição possível, dessa
movimentação do imagético, do significativo, do sentido. Algo se perfila
para aquém da dimensão do semântico, da significação, do sentido, e lhe é
logicamente anterior, além de ser sua condição de possibilidade –
poderíamos dizer que esse algo é “pré-semântico”. É o que abre o campo
do real em psicanálise como um registro específico.

A psicanálise destaca fundamentalmente a seguinte relação. Não a


relação entre, de um lado o significante e de outro, a significação, saber,
intuição, síntese – o sujeito situado como efeito da, ou fundamentado na
representação. Ela destaca a relação entre o significante e o significante, o
que faz diferença, aquilo a partir do que se pode contar, enumerar, dispor
as coisas em seqüência. Para a psicanálise, a problemática do campo do
real está situada muito mais do lado dessa diferença que conta, do que
propriamente da relação com o mundo, com a physis. Em outras palavras,
para nós psicanalistas, o real, muito antes de qualquer consideração sobre o
mundo exterior, a natureza, concerne a esse fato: há diferença – e
diferença, quer dizer, incidência do significante. Foi esse fato que a
escritura algébrica, literal, demarcou e isolou46.

A letra na matemática não tem a menor “lembrança” de sua relação


com a intuição. Exemplo: a * b = c; fórmula que poderia ser lida como,
“qualquer coisa” (a), “operada com” (*) “qualquer outra coisa” (b) “resulta
em” (=) uma “outra coisa” (c). A relação dessa escrita com o figurado, com
aquilo que remete à experiência e à representação, dá-se como por um ato
de força. Eis aí a função da semântica lógica, assegurar a unicidade do
signo por meio de regras explícitas, a partir da suposição de que a letra em
si é “neutra” – ela só portaria a necessária distinção e a regra de

46
A psicanálise nesse sentido, seria a teoria que dá conta dos efeitos da demarcação
histórica do significante – efeito do discurso da ciência – no campo do sujeito.

- 61 -
composição combinatória – quanto ao significado. Quer dizer, em sua
“neutralidade”, a letra é exterior à significação, à intuição. Nossa expressão
tanto pode representar “2 + 2 = 4”, uma expressão aritmética, quanto “azul
(a) misturado (*) com amarelo (b) dá (=) verde (c)”, uma expressão que
assevera um fenômeno no campo do espectro das cores. Isso dependerá do
domínio onde essa expressão, que denota uma operação, será aplicada.

Naturalmente, essa visão formalista é discutível. Não nos interessa,


no entanto, defendê-la, ou mesmo debatê-la aqui. Nosso interesse nela em
relação ao campo de nossa discussão reside nas condições que a tornaram
possível. Em sua radicalidade, essa posição demarca a prioridade do
sintático em relação ao semântico entendido como intuição significação,
efeito de sentido. Esse é um o ponto de ligação da epistemologia da
matemática com a psicanálise. Em cada momento na história da
matemática foi possível demarcar a autonomia do sintático em relação ao
representativo, ao semântico. Situamos dois momentos cruciais: o
surgimento da matemática como sistema de saber, com a geometria de
Euclides e o desenvolvimento da álgebra a partir do século XVII com
Descartes e Fermat. É claro que essa demarcação como pretenderam os
formalistas, nem de longe esgota a questão da significação, da intuição, na
matemática. Nosso exemplo é ambíguo, justamente, em relação a esse
ponto. Nele situamos como significado de nossa expressão tanto a soma,
uma operação aritmética, interna à matemática, quanto uma operação de
natureza física, a mistura de duas cores, externa à matemática. E sabemos
ser discutível essa assimilação.

Contudo, tanto a aritmética quanto a geometria, ambas teorias


matemáticas, guardam uma certa relação com a intuição física, conforme
temos visto. Como o campo da intuição é, em geral e a partir de uma
perspectiva kantiana, adstrito à sensibilidade e versa sobre nossas
impressões do mundo exterior, é como se a matemática pudesse ser
reduzida a uma forma de expressão mais abstrata de nossas manipulações

- 62 -
com as coisas do mundo externo. Nesse sentido, portanto, observamos
muitas vezes a sugestão, por parte dos próprios matemáticos e
historiadores da matemática, de que a matemática é uma espécie de ciência
empírica. Isso é nítido quando vamos buscar sua definição nos dicionários.
A geometria está referida ao estudo das figuras, das propriedades do
espaço. A aritmética está referida às magnitudes, à quantidade. E o que
queremos demarcar, sublinhar é esta distinção: de um lado a mera
combinatória apoiada num sistema de diferenças sem qualquer relação com
o exterior – onde a matemática encontra seus verdadeiros fundamentos –,
em particular com a representação, a significação; de outro lado, a
representação, a intuição, a significação – não importando muito nesse
momento, para nós, se essa significação, se essa representação, está mais
próxima dos dados da sensibilidade e da imaginação, ou é um tipo de
intuição de outra ordem47.

Muitos historiadores situam a álgebra em continuidade com a


aritmética, sendo ela considerada sua generalização, sua extensão, uma
aplicação mais abstrata dos princípios já contidos nela. Para nós, esse
conceito de generalização é indevido, senão vago. Para nós, a álgebra só
aparece em ruptura com a aritmética. O fato histórico foi ter sido através da
escritura aritmética que o homem começou a fazer uma experiência da
letra, da escritura, mais afastada do campo estético. De fato, a geometria
grega prescindiu da criação de um formalismo muito desenvolvido, o que
não foi o caso da aritmética. Esta, para se desenvolver, necessitou da
criação de um sistema de escrita bastante meticuloso. Mas a álgebra só
surge quando esse sistema de escrita, essa prática da escrita, passa a ser
valorizada por si mesma, e não como um meio de expressão dos números,
ou dos entes espaciais. Vale dizer, a álgebra só surge quando ultrapassa a
aritmética (que está relacionada a uma semântica que a refere à intuição
das magnitudes, das quantidades), enquanto uma prática de escrita, quando

47
Como veremos mais adiante, no capítulo sobre Lacan e a topologia, ser esse o caso.

- 63 -
ela se firma em visar o discreto, aquilo que faz diferença, por si só e em si
mesmo. Justamente dizemos que a geometria analítica de Descartes é uma
teoria algébrica porque ela não está a representar diretamente relações
entre entidades espaciais, mas porque ela é uma escritura que trata em
termos discretos o que até então só era pensado com instrumentos
analógicos – a régua e o compasso.

Resumamos o que apresentamos até aqui. Temos nos esforçado em


tentar estabelecer a especificidade da matemática e, especialmente para
nossos desígnios, o sentido de sua utilização na psicanálise. Partimos do
consenso ordinário a respeito da dificuldade da matemática e remetemos
essa queixa usual ao exame de seus traços caracterizadores: seu caráter
dedutivo e o corte em relação ao empírico que a afasta radicalmente da
intuição estética (negativização). Nossa estratégia narrativa tem se valido
de algumas poucas referências históricas com a finalidade precisa de fazer
observar que a dificuldade com a matemática é uma dificuldade mais
fundamental em se tratar diretamente com o formal. Através dessa
estratégia, temos sugerido não ser essa dificuldade simplesmente um
problema de “gosto” de cada um. Ela foi uma dificuldade histórica. E, mais
do que isso, no plano da atualidade, ela é, na verdade, uma dificuldade
estrutural.

Sugerimos que o formal na matemática tem uma relação muita


estreita com o aquilo que Lacan designou ser o significante. E que a
dificuldade com a matemática está relacionada, embora assim não se
identifique, com aquela do sujeito em se confrontar com o “significante
puro”, isto é, o significante fora de sua função metafórica, de sua função de
signo. Num certo sentido, a realização histórica da matemática foi a
demarcação do significante como tal – a matemática é um esforço de
literalização do significante. Sem essa demarcação, a ciência moderna tal
como a concebemos hoje, não poderia existir.

- 64 -
Abordamos também a demarcação entre a matemática – disciplina
estritamente formal – e a física, ciência relacionada com a experiência. A
matemática distingue-se da física exatamente porque, por mais que
pretensamente ela possua uma referência concernente ao estético ou a
algum outro tipo de intuição, ela tem suas proposições determinadas tão
somente pelo jogo dedutivo, em que de fato a experiência não decide nada.
Justamente, a geometria euclidiana é equívoca sob esse aspecto, porque ela
joga com a experiência do espaço, apesar de ser autônoma em relação a
ela. As verdades da geometria euclidiana são seus teoremas derivados, a
partir de regras lógicas, de seus postulados e axiomas, ao contrário da
física, ou das ciências ditas empíricas, que, apesar de seu arcabouço
dedutivo, têm que se haver com a experiência. A decisão concernente ao
valor de verdade de suas proposições se estabelecem em função não apenas
do jogo dedutivo, mas também de um certo tratamento lógico da
experiência a partir do qual os fenômenos passam a valer como
argumentos.

Finalmente, introduzimos também, sem nos determos muito nela,


mas supondo-a dada, a distinção entre sintaxe e semântica. Distinção que
correlacionamos com aquela, oriunda da lingüística estrutural, entre
significante e significado.

Nossa preocupação foi a de discorrer a respeito da identificação


entre o caráter formal da matemática e a noção de significante. Chegamos
mesmo a afirmar ter sido a partir do trabalho realizado no campo da
matemática que a noção de significante pôde se demarcar em sua pureza,
isto é, separada de seu valor de signo, de denotar e conotar as coisas. O
significante, como a letra em matemática – aquilo que responde
precipuamente por seu aspecto formal –, é isso que opera a conexão entre
as representações, mas que enquanto tal escapa à representação mesma no
ato de representar. A primazia da matemática deve-se ao fato de que,
quando examinamos a história da ciência de uma perspectiva estritamente

- 65 -
interna, podermos registrar que foi a solução matemática da questão do
movimento que tornou possível a ciência moderna.

Consideremos agora como uma prática voltada para especificação


do objeto – a ciência – pôde permitir a demarcação da subjetividade
concebida pela psicanálise.

A primazia do objeto, ou pelo menos da objetivação, é um evento


estrutural. O significante não significa a si próprio, o significante não se
deixa dizer, ele diz. Sem qualidades, eles são as trilhas de Freud, o
significante incide em algo que é suposto dado: o campo dos fenômenos.
Em razão de o significante cortar esse campo, o sujeito pode aparecer
juntamente com o advento da significância. Ele é então um personagem de
um enredo que ele desconhece, mas que, de qualquer forma, o faz aparecer
em sua determinação básica: um sujeito tecido em seu mito de sujeito. Seu
drama, sua fantasia e seu sintoma são signos dela.

O significante não significa a si mesmo, quer dizer que não há


como designar univocamente o significante, designá-lo como algo estático,
dado como um corpo geométrico em equilíbrio, lá fora no espaço. O
significante é passagem, diferença; ele não se deixa identificar em si
mesmo e a si mesmo a não ser sendo, a cada vez, outra coisa que ele fora.

Então, tudo isso para constatar que, se não há signo próprio para o
sujeito, ele se fará representar valendo-se dos elementos dados em ... sua
“experiência”. Isto é, o seu acesso a si dá-se através desses cortes no
campo da experiência; desses cortes emergirá um corpo, o vivido e o
processo de subjetivação subseqüente.

Em geral, valemo-nos de uma partição dual para representar a


origem das coisas. A própria noção de signo lingüístico em Saussure faz
apelo a esse tipo de partição: de um lado, os significantes representando o
lado do “sujeito”, dos a priori subjetivos; do outro, o significado
representando o lado do “objeto”, do mundo, da natureza. Supõe-se que

- 66 -
essas duas ordens são autônomas e que se relacionam, sendo o produto
dessa interação o campo do signo que, por sua vez, vem a ser o campo
mesmo da realidade, daquilo que nos é dado.

A respeito desse esquematismo, tão antigo quanto a história da


filosofia, Lacan toma uma posição: a de afirmar a primazia do significante.
Já a lingüística estrutural representava uma relativização desse dualismo,
isto é, a distinção significante/significado não é meramente uma
duplificação da relação sujeito/objeto, pensamento/realidade, saber/real.
Isso em razão de que a linguagem, através da lingüística estrutural, pode se
liberar pela primeira vez, em algum grau, tanto do pensamento quanto da
coisa, isto é, a linguagem pôde ser concebida, demarcada em relação a essa
exigência de correspondência, de reenvio de uma ordem à outra. Ou seja,
através da lingüística a linguagem pôde ser pensada em si mesma, em seus
termos, destacada, isolada, até um certo ponto, de suas funções na
comunicação, na articulação dos saberes, etc – daí a relevância do
estrutural – estrutural quer dizer, um campo gerado a partir de seu próprio
interior.

Além disso, a demarcação da linguagem enquanto conceito


permitiu um certo avanço em relação a esse velho dualismo. O que poderia
garantir o pensamento, o saber, senão ou sua fundamentação no supra-
sensível, concebido como uma espécie de hiper-realidade ou a realidade
mesma entendida como natureza? É um fato que a idéia subjacente à noção
de correspondência é aquela apresentada desde Platão, a relação modelo-
cópia, fundada na analogia48. O conceito de linguagem proposto pela
lingüística estrutural permite então uma certa liberação da caracterização
da linguagem através do fato da significância. A significância é reenviada à
noção de valor, isto é, ela é relevada não pela especificação semântica que

48
Lembramos a esse respeito que a noção de verdade em geometria está baseada na
possibilidade de figuras, sólidos, enfim, os entes geométricos, coincidirem. Duas figuras
são consideradas iguais caso se recubram tão exatamente, a ponto de uma não se
distinguir da outra.

- 67 -
introduz, mas por se reduzir a um traço que apenas assinala a pertinência
de cada elemento ao sistema. Por meio dessa redução ao valor, dessa
redução do semântico ao mínimo para apenas assinalar a presença ou a
ausência do elemento que marca a pertinência ao sistema, a lingüística
opera o recenseamento de seus termos, bem como torna possível o
estabelecimento da distribuição desses elementos em função de níveis
intrínsecos ao sistema (fonemas, morfemas, etc.). Por outro lado, a
pertinência ao sistema não é a pertinência a uma totalidade dada e
estabelecida a priori. O sistema nada mais é que esse caráter estrutural, isto
é, essa “solidariedade” entre seus termos estabelecida de um modo
inteiramente local, através da operação que recenseia esses mesmos termos
a partir da redução da multiplicidade metafórica do semântico à binaridade
do valor – ter ou não ter valor.

Os movimentos que vão da operação de recenseamento ao sistema e


à distribuição de seus elementos em seus níveis e, retroativamente, do
sistema à operação de recenseamento que o fundamenta, estabelecem a
linguagem construtivamente, entendendo-a fundamentalmente como uma
sintaxe, senão no sentido estrito, pelo menos como uma ordem em que
cada termo se sustenta nas relações laterais que entretém com os demais, e
não nas relações verticais, fundadas no aspecto semântico, na relação
linguagem/mundo.

Sem dúvida, essa manobra toda demarca uma posição bem


específica para a linguagem, ela pode assumir uma conformação bem
distinta em relação ao jogo da significação. Não obstante, essa
conformação ainda é referida ao campo do objeto. A linguagem, sua
combinatória está a serviço da representação, quer dizer, representação
enquanto esse efeito de sentido suportado na imagem, na figuração. Já
nosso movimento perceptivo visual “classifica” as coisas como entidades
geométricas dados no espaço – como corpos, fluidos, etc. – em função de
parâmetros geométricos. O horizonte que articula as ordens – a

- 68 -
combinatória e as imagens, intuições, a significância – não desaparece e
parece voltado inteiramente a estabelecer a consistência ontológica do
mundo tomado como natureza. Essa direção para o objeto, considerado
como estando no exterior, no espaço, e identificado à sua própria figura –
inaugurando, então, a eterna tensão entre o ser e a aparência – continua ser
a destinação última de uma reflexão que leva em conta a linguagem.

É a psicanálise, e mais decisivamente, o trabalho de Jacques Lacan


que permite uma nova perspectiva, uma revirada, na maneira de considerar
essas coisas. Nessa direção devemos entender, por exemplo, a sua negativa
em se aliar à psicologia de sua época. A denúncia da psicologização, por
exemplo, é uma de suas críticas mais repetidas à psicanálise norte-
americana – a dita psicologia do ego. O que é a psicologia senão a
orientação que especifica o que poderíamos chamar de a “problemática do
sujeito”, em termos de entendê-la como a de uma problemática de
entidades objetivadas, dadas no espaço, conformes às suas respectivas
figuras? Nós tomamos as coisas em consideração a partir do exterior, as
coisas são vistas do exterior e seu ser é identificado com sua figura nessa
conformação objetivante. Esse privilegiar do lado do objeto é, então, efeito
da própria incidência da linguagem, é uma característica dela. Antes de
dizer qualquer coisa, a linguagem faz-nos crer49 num mundo, numa
realidade múltipla e diversa que está lá fora, numa realidade “granulada”,
isto é organizada em termos de itens limitados, separados entre si – os
corpos.

Apenas num outro giro se pode destacar essa virada do pólo do


objeto para o pólo do sujeito introduzida pela psicanálise. Tal virada não
institui a perspectiva simétrica à objetivação, que seria a subjetivação, ou

49
Charles Melmann refere o mecanismo da crença à transferência. Ele diz: “(...) de
qualquer modo, essa palavra em seu endereço vai o mais freqüentemente vir a concernir
aquele que seria o suporte, em alguma parte, de um saber, seu próprio saber, que teria o
saber sobre ele mesmo. É isso que banalmente chamamos de transferência” (1997/1999
p. 17).

- 69 -
seja, a postulação de um mundo “interior”, subjetivo, igualmente espacial,
em cujo interior as entidades psicológicas também seriam distinguíveis
numa operação análoga àquela que fixa o objeto em relação ao jogo da
aparência.

Assim, podemos ver que Lacan se apropria da reflexão


estruturalista sobre a linguagem, mas, num outro remetimento, aquele em
jogo na prática psicanalítica: o de relevar a posição subjetiva de quem toma
a palavra visando confrontá-lo a seu modo próprio de gozo – aquele
sempre em ação em seu sintoma. Trata-se para ele da questão subjetiva,
mas a ser trabalhada a partir de uma orientação que assinala sua
dependência em relação ao significante, só que ao significante “puro”, quer
dizer, não em sua função metafórica de fazer signo dessa “coisa” sujeito.
Isto é, o sujeito não é referenciado, descrito. Não é uma entidade que,
ocupando um lugar no espaço/tempo, tenha um nome. O sujeito não está
“fora” do significante da mesma maneira que esse copo d’água, designado
por ele, lhe é exterior, está lá fora como uma coisa dada e autônoma. O
significante acarreta o sujeito do simples fato de ser significante; e quem
suporta esse efeito sujeito é... outro significante. Lacan resume essas
distinções dizendo que o signo é o que representa alguma coisa para
alguém e que o significante é o que representa o sujeito para outro
significante.

Passamos agora a uma discussão que visa exprimir o conceito de


número real – e isso de uma maneira a mais intuitiva possível. Focaremos a
problemática do movimento e traçaremos o caminho conceitual até a noção
de corte em Dedekind.

- 70 -
Capítulo IV

A NOÇÃO DE CORTE

A Propósito do Movimento e da Continuidade

Como já dissemos, o tratamento matemático da continuidade tornou


possível a emergência da ciência moderna. Embora a antigüidade não
tenha resolvido esse problema, tendo apenas o colocado, não é verdade que
o tipo de reflexão capaz de solucionar o problema da continuidade tenha
surgido somente no nascimento da época moderna. As reflexões de
Arquimedes são sempre citadas pelos historiadores como exemplares de
uma concepção que poderia ter resolvido esse problema já na antigüidade,
mas foi fato que suas concepções não triunfaram. A concepção triunfante
foi a aristotélica, ou seja, o entendimento de que a ciência estuda as
qualidades num esforço de organizá-las em termos de gêneros e espécies50.
E a humanidade teve de esperar até o renascimento para a retomada dessa
problemática. Mas em que consiste o problema da continuidade?

Podemos apresentá-lo de inúmeras maneiras. A principal, a


clássica, é a encontrada nos famosos paradoxos de Zenão. O grego não
concebe o movimento, justamente porque não consegue formular bem –
“bem”, quer dizer, newtonianamente diríamos hoje – a problemática do
contínuo envolvida nele. Aquiles nunca poderia alcançar a tartaruga porque
quando atingisse o ponto em que ela se encontrava, ela, por sua vez teria se
deslocado um tanto; quando novamente ele atingisse o ponto em que ela
estava, novamente ela teria avançado outro tanto, assim ad infinitum.

50
Koyré nos diz: “A física de Aristóteles é falsa, o sabemos perfeitamente. Está
irremediavelmente superada. Entretanto, é uma física, isto é, uma teoria altamente,
embora não matematicamente, elaborada”. Mais adiante ele enumera os dois princípios
que norteiam a física de Aristóteles: “a) a crença na existência de “naturezas” bem
determinadas, e b) a crença na existência de um Cosmos, isto é, a crença na existência
de princípios de ordem em virtude dos quais o conjunto dos entes reais formam um todo
(naturalmente) bem ordenado”. (1966/1986, p. 8-9).

- 71 -
Enfim, cada avanço de Aquiles corresponde igualmente a um avanço da
tartaruga; portanto a dianteira da tartaruga será sempre preservada,
contraditando no plano da teoria o fato empírico óbvio: Aquiles não só
alcança como também ultrapassa a tartaruga. Portanto, a hipótese implícita
no sofisma acima, a de conceber a continuidade da extensão percorrida,
como a possibilidade de sua divisão infinita, conduz a uma contradição.

Há uma formulação mais simples da impossibilidade do movimento


devido ao entendimento da extensão como infinitamente divisível. Não é
possível deslocar-se de um ponto A para um ponto B porque antes se tem
de atingir a metade desse caminho, mas antes de atingirmos essa primeira
metade temos de atingir a metade da metade e assim ad infinitum. O
movimento não pode sequer iniciar. Se a suposição de que a divisão
infinita como expressão da continuidade leva a uma contradição, então a
suposição contrária, a de que a extensão não é contínua, ela é discreta,
deveria ser verdadeira, ou seja, a continuidade é uma ilusão; de fato, tudo o
que existe fisicamente é decomponível a um limite mínimo, ao elementar,
ao indivisível. Nesse caso, o espaço seria uma composição de elementos,
de “pedaços” de espaço, separados entre si. A flecha não poderia mover-se
de um pedaço de espaço para outro, pois isso seria o mesmo que dizer que
ela poderia estar em dois lugares num mesmo instante, o que seria um
absurdo, ... uma contradição. Tanto a concepção de que o espaço, por ser
infinitamente divisível, é contínuo, quanto a sua contrária, a de que ele é
uma composição de “átomos espaciais”, é discreto, conduzem a
contradição.

Uma outra anedota para ilustrar a dificuldade do grego em relação à


continuidade implícita no movimento está expressa no denominado dilema
de Demócrito:

Se cortamos um cone por um plano paralelo à base [plano bem próximo à


base], o que podemos dizer das superfícies que formam as seções? Elas
são iguais ou diferentes? Se elas são diferentes, elas tornarão o cone
irregular, cheio de dentes, como degraus, e imparidades; mas se elas são
iguais, as seções serão iguais, e parece que o cone terá a propriedade do

- 72 -
cilindro de ser constituído por círculos iguais e não diferentes: o que é um
grande absurdo! (BARON, 1974/1985,: p. 20).

Ou seja, não podemos pensar esse fato óbvio que é a “conidade” do


cone, isto é, o fato da inclinação de sua face única em relação à base.

Enfim, são inúmeros os exemplos que apresentam anedoticamente,


ou através de sofismas como os paradoxos de Zenão, as dificuldades do
homem grego em conceber racionalmente o movimento e a continuidade.
Os historiadores alegam razões de várias ordens (sociológicas, filosóficas,
matemáticas propriamente, etc.) para esse fato, mas todas incidem em um
ponto decisivo: a maneira como conceberam a exigência de um corte entre
a teoria e a prática. Por exemplo, é bastante surpreendente que o grego
omita as exigências de movimento no próprio ato de identificar e
classificar as figuras. No plano da teoria, qualquer operação indicando o
movimento jamais é formulada, quando sabemos que fatos elementares da
geometria envolvem necessariamente o movimento, como é o caso da
medição de extensões, o que envolve o deslocamento de réguas. Poincaré
discutiu esse aspecto em vários trabalhos seus e de inúmeras maneiras. Por
exemplo, no livro A Ciência e a Hipótese (1902/1968, p. 63-76), quando
ele discorre sobre os axiomas implícitos:

Aliás, estudando as definições e as demonstrações da geometria, vemos


que se é obrigado a admitir, sem o demonstrar, não somente a
possibilidade deste movimento, mas ainda algumas de suas propriedades.

Mais adiante um pouco:

Muitas demonstrações, como aqueles casos de igualdades de triângulos,


da possibilidade de baixar uma perpendicular de um ponto sobre uma reta,
supõem proposições que nos dispensamos de enunciar, porque elas
obrigam a admitir que é possível transportar uma figura no espaço de uma
certa maneira. (1902/1968, p. 71).

Jean Dieudonné menciona o entendimento comum de que “as


concepções matemáticas gregas eram fundamentalmente estáticas e se as
opõe à idéia de variação que domina o pensamento científico moderno”
(1987, p. 67). Mas ele introduz uma certa relativização nesse entendimento

- 73 -
comum, fazendo-nos relevar “as tentativas de compreensão dos
movimentos e das mudanças de forma ou de natureza” que preocupavam
os gregos. Ele menciona o fato de que noções de movimento uniforme
foram claramente distinguidas por eles. Mas ele não pode evitar o limite de
sua relativização: a variação do movimento – sua aceleração – não é
abordada pelo grego.

O “estaticismo” da geometria grega, que na filosofia de Platão


atinge seu máximo, tem a ver com o fato de que a idealidade dos entes
matemáticos tem de ser separada radicalmente daquilo que os conecta ao
mundo concreto. Como assinalou de inúmeras maneiras Poincaré, é certo
que tudo o que diz respeito à geometria é dependente em algum grau do
movimento, no sentido mais concreto possível, isto é, de nosso
movimento, da ação de nossos músculos. Mas esse é um fato omitido no
pensamento grego. Por quê? Porque o movimento concerne ao sensível, ao
manual – ao trabalho do escravo – ao mecânico. E também à “causalidade
técnica” em jogo no trabalho do artesão. No plano da teoria, o movimento
assinala a degradação do sensível em relação ao domínio do ser, à
“mistura” de ser e não-ser. O movimento domina o sensível e lhe impõe
sua natureza essencial: a desordem. Por isso o movimento é rechaçado do
mundo da matemática. Para Platão, existe um mundo exemplar, onde as
coisas são eternamente idênticas a si próprias, curiosamente sempre como
se estivessem fixas e de frente para nós.

A fim de tornar essas observações mais sensíveis, consideremos o


seguinte comentário de Plutarco:

... essa arte de inventar e construir instrumentos e máquinas, que se chama


a mecânica ou orgânica, tão amada e apreciada por toda espécie de gente,
foi primeiramente posta em relevo por Arquitas e por Eudóxio, em parte
para tornar agradável e embelezar um pouco a ciência da geometria por
esta coisa graciosa, e em parte para alicerçar e fortificar, por exemplos de
instrumentos materiais e sensíveis, algumas proposições geométricas, de
que se não podem achar as demonstrações intelectivas por razões
indubitáveis e necessárias, como é a proposição que ensina a achar duas
linhas médias proporcionais, a qual não se pode achar por razão
demonstrativa e, contudo, é um princípio e fundamento necessário a

- 74 -
muitas coisas que dizem respeito à pintura. Um e outro reduziram-na à
manufatura de alguns instrumentos que se chamam mesolábios e
mesógrafos que servem para achar estas linhas médias proporcionais,
tirando certas linhas curvas e secções secantes e oblíquas. Mas depois,
tendo-se Platão encolerizado contra eles, fazendo-lhes ver que eles
corrompiam a dignidade do que havia de excelente na geometria, fazendo-
a descer das coisas intelectivas e incorporais às coisas sensíveis e
materiais ao fazer-lhe usar de matéria corporal em que é preciso vilmente
e baixamente empregar obra da mão; desde esse tempo, digo, a mecânica,
ou arte dos engenheiros, veio a ser separada da geometria e, sendo
longamente tida em desprezo pelos filósofos, tornou-se uma das artes
militares. (Plutarco, Marcelo, livro XXI)51.

É certo que muitas dessas dificuldades com o movimento podem


estar referidas a essas questões sociológicas e históricas que estamos a
aludir. Mas as razões internas à própria matemática e à instauração do
pensamento racional para essa atitude também são importantes e, além do
mais, são as que nos interessam aqui. Será que poderíamos falar
rigorosamente de matemática se não fosse a atitude firme de Platão no
sentido de distinguir o pertencente à esfera da demonstração do pertencente
à esfera da experimentação? Esse é o ponto decisivo. O equacionamento
moderno do problema do movimento não significa, de maneira alguma, o
retorno da matemática ao empírico. Nesse caso ela não se distinguiria mais
de uma física, disciplina que, sem dúvida, marcou a história da
matemática, mesmo sendo uma disciplina que cuida do hipotético e do
contingente.

Mas no que importa para nós é o inverso; só após a consolidação de


seus contornos fundamentais, ainda no marco de um platonismo estrito, a
matemática pôde avançar e, a partir do renascimento, abordar de uma
maneira e com ferramentas estritamente matemáticas, as questões
colocadas pelo movimento, isto é, as variações contínuas. Ela justamente
pôde conceituá-las a partir de idéias fundamentais da matemática, como

51
Indicação sugerida pelo matemático português Bento de Jesus Caraça, em seu livro,
Conceitos Fundamentais da Matemática de 1941 (reedição de 1998).

- 75 -
por exemplo, a idéia de correspondência52. Somente após esses
desenvolvimentos matemáticos pôde a física clássica, como teoria do
movimento mecânico dado no espaço “real”, avançar.

No entanto, a firmeza de Platão tinha um preço, em razão de ela se


verificar no interior de um campo de reflexão já constituído, afirmado em
seus compromissos e limitado a determinados instrumentos. Como diz
Boyer, “Platão é importante na história da matemática principalmente por
seu papel inspirador e guia de outros” (1968/1974, p. 64). Ele vai situar a
especificidade da matemática na idealidade de seus entes numa linha de
demarcação severa que corta a relação da matemática não tanto com o
empírico, como ele supõe, mas com o operatório53, principalmente com a
possibilidade desse operatório se “exprimir” – talvez fosse melhor dizer ao
invés de exprimir, escrever – em termos próprios.

É assim que ele, ao separar a aritmética – ou teoria dos números, na


verdade teoria do “um”, própria aos filósofos – da logística – técnicas
computacionais ou algorítmicas próprias dos comerciantes e guerreiros – e
interpretá-la geometricamente, todo o campo das operações algébricas
subjacentes às demonstrações ficou distanciado de uma possibilidade de
estudo em seus próprios termos (BOYER, 1968/1974, p. 64).
Conseqüência: a impossibilidade de uma formulação estritamente
matemática da questão do contínuo. Vale dizer, como é um fato
consagrado, a formulação adequada do problema do contínuo dependeu de
uma concepção “aritmetizante”, “algebrizante”, e não apenas de seu
entendimento em termos geométricos. Em resumo, uma formulação

52
Na verdade, o conceito de função, fundamental em análise matemática, nada mais é
do que uma aplicação do conceito de correspondência – uma das idéias mais
fundamentais e constitutivas da matemática. Não citamos nenhum autor específico para
apoiar essa afirmação porque todos os autores consultados, sem exceção, repetem-na.
53
É como se Platão jogasse fora a criança (a noção de operação) junto da água suja (o
empírico). Ele não pode destacar da atividade própria do escravo – os trabalhos manuais
de toda ordem, inclusive o que hoje entendemos como arte (pintura, escultura, música,
etc.) o conceito de operação, que só pode ser adequadamente conceitualizado a partir de
uma escritura adequada, no caso, a álgebra.

- 76 -
adequada do campo das operações – a álgebra – foi essencial para o
entendimento matemático do contínuo.

Numa perspectiva mais ampla, podemos afirmar que Platão não


admite ser o campo do “identitário”, aquele concernente à matemática,
tributário de um certo tratamento e “reconhecimento” da diferença. A
solução matemática do problema do contínuo é justamente isto: a redução
da diferença ao identitário. Como o que diz respeito à diferença, Platão
lança, exila, um mundo para ele ontologicamente degradado no mundo
sensível. Assim, fica truncada a possibilidade de um tratamento no plano
do pensamento, no campo da idealidade matemática, da diferença. Isso não
significa de modo algum que a matemática trate da diferença, no sentido de
incorporá-la como tal, hoje em dia. Isso não é verdade. A matemática
refere-se estritamente ao campo do identitário e isso é o que a fundamenta.
Quer dizer, para ser matemática, ela tem de expulsar a diferença e afirmar a
identidade. Nesse sentido, a matemática atual continua a ser tão platônica
quanto na antigüidade – mesmo que muitas epistemologias da matemática
procurem disfarçar esse fato.

A época moderna agrega à matemática a possibilidade de


considerar o contínuo como variação assimilável a uma escritura que o
torna apto a ser pensado, trabalhado, no campo do identitário. Isso ocorre
também no sentido de articulá-lo de uma forma tal, que ele pode ser
aplicado extensamente aos mais variados campos do saber científico.
Apropriada pela ciência moderna, a matemática passa a ser um meio de
expressão – melhor dizendo, de escrita – para o contingente, para o
empírico, para o que varia, para o que é transitório54. Mas entenda-se:
expressão, quer dizer, a tomada do contingente no identitário, condição
necessária para o discurso científico.

54
A esse respeito acompanhamos a análise de Jean-Claude Milner sobre a relação entre
o pensamento de Lacan e a ciência, em Lacan avec les Philosophes (1991, p. 335-351).

- 77 -
É nessa direção que Freud pensa. Os mecanismos que respondem
pela determinação subjetiva devem ser entendidos a partir da aplicação,
exitosa no campo da física, da solução matemática do problema das
variações contínuas. Como veremos com mais detalhes adiante, a noção
mesma de recalque primário é uma “aplicação” dessa solução. O recalque
é entendido como a escrita da diferença, uma operação que, ao expulsá-la,
produz seu efeito de ser significada no campo da representação ou
“consciência”, e, por essa passagem, dela poder ser contada como um. Esta
escrita inaugurará em Lacan a problemática do significante primordial a
partir da noção de traço unário. Ao mesmo tempo que, do lugar exterior no
qual a diferença, por sua expulsão, foi posta em sua irredutibilidade radical
e absoluta ao identitário, ela é causa – o que inaugurará, também em
Lacan, a problemática do objeto a.

Vamos prosseguir com a abordagem do manejo da diferença pela


matemática com a formulação mais proeminente situada ainda na
antiguidade: a dos números irracionais. Abordaremos essa questão porque
a partir dela localizaremos a idéia de corte formulada pelo matemático
alemão Richard Dedekind. E tal idéia é fundamental para podermos
entender em que sentido Freud se relaciona com a matemática e a razão
pela qual Lacan se refere à topologia e à álgebra.

A Noção de Número e a distinção entre Sintaxe e Semântica

Para o grego só existe uma classe de números, a dos números


naturais sem o zero, isto é, 1, 2, 3, ....etc. O grego, afeito que está ao ser, à
presença, não pode conceber um sinal, uma letra, que denote e localize
justamente o vazio, o “coisa-nenhuma”. Assim também, ele não pode
conceber “números negativos”, números que indicam além do nada, a
privação de alguma coisa determinada, como por exemplo, “menos cinco
coelhos”. De fato, “menos cinco coelhos” não existem de modo algum.

- 78 -
Então, não é possível falar deles!55 O grego também não pode conceber as
frações próprias, entidades que denotam coisas partidas. Dentro do
rigorismo platônico, não há lugar para formulações do tipo “meia maçã”,
“meio quilo de carne”. Uma coisa só pode ser uma coisa na medida em que
é inteira e completa.

Naturalmente, uma matemática com tais restrições não serve para


muita coisa do ponto de vista prático. Mas isso é um fato, a matemática
defendida por Platão, a matemática propriamente dita, teórica, fundada na
idéia de dedução lógica, a que nasceu e se desenvolveu por efeito do
trabalho dos filósofos56, foi orientada nessa direção.

Então, número é número natural e inteiro. Isso significa, pelo


menos, a conjunção de dois princípios básicos da matemática e de um
princípio ontológico. Os princípios matemáticos básicos são aqueles que
dizem respeito à idéia de contagem: a idéia de seqüência e a idéia de
correspondência. O princípio ontológico é aquele que supõe a necessidade
de que as coisas, para serem contadas, têm que ser coisas inteiras, com um
contorno bem definido e bem classificadas. Muitos historiadores sugerem
que as idéias acima estão entre aquelas mais básicas e fundamentais da
matemática, embora, como já mencionamos anteriormente, o simples fato
de operar com elas não especifique a matemática como teoria. Aliás, o fato
mesmo de a matemática enquanto teoria ter sido a geometria, e não a
aritmética – já que a contagem é uma idéia aritmética –, levanta uma
questão interessante a respeito do que seja a relação entre uma idéia básica
e a história.

55
Embora do ponto de vista prático, naturalmente, eles tivessem alguma forma de
representar as dívidas.
56
Ver Jean Dieudonné (1987, p. 54): “Enquanto as matemáticas grega se elaboravam
como um sistema “hipotético dedutivo” nas escolas filosóficas, as necessidades da vida
de todos os dias nas cidades gregas acarretavam, como em outras civilizações, a
existência de uma classe de “calculadores” profissionais. Nós sabemos pouco ou quase
nada destes “logísticos”, como os chamavam, senão o desprezo que lhes testemunha
Platão...”

- 79 -
Mas, deixemos essas questões históricas de lado e nos voltemos
para o sentido da idéia de contagem. É uma idéia que requisita alguns
elementos míticos: aqueles que situam um certo homem primitivo e a sua
necessidade de fazer contas, de recensear algumas coisas. Suponhamos que
ele precise recensear seus carneiros. O que ele faz? Provavelmente alguma
coisa do tipo: associar a cada carneiro uma pedrinha – a propósito, o
vocábulo cálculo quer dizer pequena pedra –, reuni-las todas num saco e
guardá-lo supondo que ele possui tantos carneiros quantas pedras existem
reunidas naquele saco. Essa idéia é tão óbvia que muitos se surpreendem
de ela constar como uma idéia fundamental de uma disciplina tão abstrata e
difícil como a matemática. Mas é isso mesmo. E mais, deve ter levado
algum tempo até ela se consolidar e receber seu devido crédito. Podemos
intuir por quê.

Quando fazemos a experiência de contar uma quantidade de coisas


numerosas, observamos que facilmente incorremos em erros e repetimos a
operação. Freqüentemente lá pelas tantas perdemos a conta, nos
atrapalhamos e recomeçamos. Isso ocorria no mundo antigo, mas não tão
antigo assim, já que nossos índios, por exemplo, os quais supomos terem
uma habilidade análoga ao homem dos últimos estratos da pré-história,
nossos indios, então, não fazem contas. Deve ter levado algum tempo até
que se distinguissem os tipos de erro e depositassem de fato confiança
nesse mecanismo de contagem. Com efeito, para uma quantidade pequena
de coisas ele funciona muito bem, mas não é esse o caso quando a
quantidade aumenta. A que atribuir o erro?

É claro que a partir do que conhecemos hoje é fácil responder a essa


questão: o mecanismo de contagem, tal como o apresentamos, não
apresenta erros, ele é consistente. O erros sempre dizem respeito ou a quem
conta, ou ao que é contado, mas não ao mecanismo de contagem em si
mesmo. Dramatizemos algumas situações para ressaltar mais esses
elementos presentes na idéia de contagem.

- 80 -
Imaginemos que numa dada situação o nosso homem constate que
ele tem mais pedras do que carneiros. Como entender o que aconteceu? ele
foi roubado? carneiros morreram? alguém colocou indevidamente mais
pedras no saco? Perguntas análogas podem ser feitas no caso da situação
contrária, aquela em que o número de carneiros é maior do que o de
pedras. Imaginemos a seguinte cena. Um chefe, um rei, sem o menor
interesse em fazer contas, mas com todo interesse em preservar seus
tesouros, como ele poderia se certificar de não estar sendo roubado por
seus súditos e colaboradores mais próximos? É certo que ele não só teria
de confiar em alguém, mas também que ele teria de confiar em alguma
técnica de contagem. No plano em que estamos considerando as coisas,
devemos sublinhar que estamos tecendo considerações em relação a um
tempo em que o homem dispõe de uma escrita incipiente e que a noção
acerca do que seja uma operação – soma, subtração, multiplicação, etc. – e
coisas afins é igualmente parca. Enfim, um tempo em que afirmar a
diferença entre o caráter necessário dos resultados obtidos pelo processo de
contagem e os erros derivados das contingências humanas e das situações é
quase impossível em virtude de não existirem ferramentas que possibilitem
isso.

Mas as coisas, mesmo nesse patamar, são mais complexas ainda.


Vamos supor uma situação na qual um número muito grande de coisas
deva ser computado. Uma quantidade tal que, no caso de erro, é bastante
dispendioso repetir o processo de contagem novamente. Entram em cena as
exigências que solicitam meios mais econômicos para realizar e garantir os
resultados das contagens. Por exemplo, uma certa padronização dos sacos:
um saco de tal cor tem tantas pedrinhas; o de outra cor, uma quantidade
ainda maior, e assim por diante.

Esse tipo convenção, para nós trivial – ele é subjacente ao nosso


sistema de numeração –, encerra um passo complicado. Aquele de
confiarmos que a acumulação assim convencionada de fato corresponde ao

- 81 -
procedimento mais elementar da contagem, que associa cada item a cada
pedrinha. Para nós soa quase como uma tolice mencionar esse tipo de
problema. Mas imaginemos um infeliz escriba tentando provar a seu faraó
que ele tem tantas cabeças de gado porque sua contabilidade assim o
prova. Será o faraó sensível a seus argumentos? Hoje em dia, em que
contamos com mais recursos, isso é um problema!

De qualquer forma, quaisquer que tenham sido as dificuldades


enfrentadas, a idéia de associar um conjunto A de coisas de mais fácil
manuseio, e aptos a uma série de manobras combinatórias e de
concatenação, a um outro conjunto B e de verificar quais combinações do
conjunto A repercutiam no conjunto B e vice-versa se consolidou ainda na
antigüidade. Os historiadores dão conta de inúmeros procedimentos que
indicam inclusive que os antigos, já antes dos gregos, foram bem mais
longe do que esse nível elementar sobre o qual estamos a discorrer um
tanto alegoricamente.

Uma situação mais complicada é aquela em que o ente a ser


trabalhado não é apto a ser contado. O ente não é exatamente “inteiro”. A
entidade clássica a esse respeito são as extensões de terra – aquelas que
darão origem à geometria (que quer dizer medida-metria de terra-geo)
justamente. Uma coisa é associar pedrinhas a carneiros, outra é associar
uma coisa análoga a pedrinhas a extensões. Como contar algo que não tem
um contorno definido? Qual a natureza dessa coisa análoga às pedrinhas?
Na primeira situação sabemos que temos poucas razões para duvidar da
consistência de nosso procedimento de cálculo. Mas na segunda não. Por
quê?

O procedimento adotado tem uma semelhança fundamental com o


de contar carneiros ou quaisquer outras entidades distintas e encerradas
num contorno definido – as coisas inteiras. Apenas na falta de um
elemento a que associar a unidade, inventou-se um, por exemplo, postula-
se um pequeno quadrado, cuja área é conhecida de alguma maneira, e

- 82 -
conta-se quantas vezes esse quadrado está contido na superfície a ser
medida. O tamanho da extensão considerada será esse: os tantos quadrados
que cabem nela. Esse exemplo vem a propósito de considerarmos os
seguintes pontos. Nossa medição é necessariamente inexata, já que a
irregularidade do contorno da superfície a ser medida sempre fará com que
tenhamos quadrados de mais ou quadrados de menos, ou com que
tenhamos de nos valer de proporções variáveis do quadrado tomado como
unidade. Como é difícil se estabelecer a unidade quando se trata de
computar situações sem contornos e limites claros!

As extensões de terra introduzem uma situação nova: a imprecisão,


ao que parece, irremovível. Introduzem também uma exigência nova: a de
aproximar. Ela revela também o caráter eminentemente “arbitrário” da
unidade. Talvez fosse melhor falar não tanto em arbitrário, mas em seu
caráter teórico. Arbitrária é mais sua implementação concreta nas
situações. Mas é justamente porque ela é arbitrária que seu estatuto
essencial é teórico. Por que dizemos isso?

Porque para nós associarmos pedrinhas, “uns”, a entes separados, é


procedimento que não se esclarece a partir da evidência. É equívoco o
aspecto “natural” da contagem. Parece-nos natural que num rebanho a
unidade seja identificada a cada carneiro. Isso é “natural” porque
aparentemente não fazemos nenhum esforço para acionar esse mecanismo.
Associar a cada animal uma pedrinha, depois juntá-las todas num saco,
supondo que existem tantos animais quantas pedras é um procedimento
que parece se impor por si mesmo. Sabemos que não é assim e nem foi
historicamente assim. Mas essa é a nossa impressão. Impressão confirmada
pelo fato de os próprios matemáticos terem batizado esse tipo número de
número natural. Poincaré chega mesmo a afirmar que se trata de um a
priori, não da sensibilidade, mas do entendimento – uma “intuição” a
priori do entendimento (1902/1968, p. 31-60).

- 83 -
Que a inteireza da coisa não seja necessária para vigência do “um”
no procedimento de contagem não foi uma aquisição simples. A rigor,
podemos dizer que esse tipo de problemática só se encaminhou
adequadamente a partir de meados do século XIX. Para nós, os equívocos
em relação a essa história são preciosos porque, mais do que qualquer
outro episódio na história da ciência, ele ilustra o tipo de obstáculo que
nossa própria constituição subjetiva impõe à organização do saber.

Poderíamos supor que, ao afirmar o campo da geometria como


sendo o campo próprio da matemática, Platão e seus discípulos tivessem
dado um passo no sentido de se aperceberem do caráter relativo de
qualquer padrão de contagem e medida. De certa forma foi assim. A crítica
de Platão aos “logísticos”57 vai nessa direção. E a geometria está liberada
de pensar a unidade como sendo simplesmente o discreto, aquilo que mais
facilmente está oferecido à associação com o “um” da contagem. Mas não
é bem assim.

Na verdade, a geometria, conforme já salientamos, desprende-se do


empírico, e não do discreto. Ela desprende-se do empírico no sentido de
que se desobriga de considerar essa ou aquela coisa como unidade, esse ou
aquele padrão de medida, sempre convencional, como a encarnação da
unidade. O manejo com a pura extensão parece ser a forma através da qual
a unidade se desvencilhou, enfim, de ser confundida com qualquer
entidade empírica O geômetra trabalha com o puro “um”. Vale dizer, o
“um” é estritamente interno ao jogo dedutivo. Isso é ilustrado pelo fato de
os “instrumentos” matemáticos gregos – a régua e o compasso – não
possuírem qualquer graduação escalar58; além disso, o compasso desmonta
ao ser levantado (o que impede sua utilização para estabelecer um padrão
graduado, ou fixar uma unidade). Isso posto, a concepção grega de número

57
Ver referências supra a esse respeito (Plutarco, Platão, Dieudonné, Boyer)
58
As nossas réguas são em geral graduadas em centímetros, tendo como referência
padrão o metro. E os compassos, além de fixarem uma certa distância estão referidos ao
transferidor, os quais são graduados em graus .

- 84 -
é a de que ele é discreto no sentido de, afinal de contas, sempre denotar
uma extensão, que nas demais extensões está contido um número (par ou
ímpar – outra mania dos gregos, essa de anotar a propriedade de um
número ser par ou impar) inteiro de vezes.

Essa é a razão da ironia de Platão com relação àqueles que lidam


com frações próprias. Não existem números “partidos”, o que existe é uma
relação entre inteiros. E, quando se trata de trabalhar com essas relações,
sempre é possível referi-las a uma medida comum. Isto é, sempre é
possível encontrar uma extensão contida um número inteiro de vezes nos
segmentos de extensão que estão sob a égide de alguma operação. Por
exemplo, vamos supor a fração 3/5. O que temos aí é a relação entre o
número inteiro 3 e o número inteiro 5. E essa relação é a de que tomamos 3
partes de um total de 5 partes de, por exemplo, um dado segmento de reta
dividido em 5 partes iguais, cada uma delas correspondendo a 1/5, que,
desse modo funciona como a unidade relativa à totalidade que contém as
cinco partes (5/5 = 1) – é essa a relação então representada pela fração 3/5.
Cada 1/5 conta como “um”; se tomo três, tenho então 3/5. Podemos operar
com essas relações, somá-las, diminuí-las, etc.

Todos nós aprendemos a operar com frações na escola e talvez


muitos não tenham atentado para o que expomos aqui. O que é somar, por
exemplo, os nossos 3/5 com 2/3. Vamos dramatizar um pouco a situação.
Tenho 3 pedaços de um segmento de reta, tomando 1/5 como unidade. E
tenho 2 pedaços de um segmento de reta, tomando 1/3 como unidade.
Como adicionar as extensões aí envolvidas? Temos de encontrar a medida
comum entre 3/5 e 2/3, isto é, uma nova “unidade” tal que nos permita
expressar tanto 3/5 quanto 2/3 a partir dela. O que a escola nos ensinou a
esse respeito? Achamos o MMC – o mínimo múltiplo comum – entre os
denominadores 3 e 5, que é 15. A nova “unidade” então é o inverso do
MMC, 15, ela é, 1/15. E expressamos nossas duas frações em termos dessa
nova unidade, 3/5 é equivalente nove 1/15s e 2/3 a dez 1/15s. Então, para a

- 85 -
nova “unidade” de 1/15, pudemos determinar que 3/5 corresponde a nove
vezes essa unidade e 2/3, dez vezes. Nove e dez são números inteiros e,
assim, podemos reduzir a diferença entre as extensões dadas e determinar
quantas vezes uma certa “unidade”, ou medida comum, está contida em
cada uma, no nosso exemplo, nove e dez vezes respectivamente. A
interpretação geométrica para nosso exemplo é igualmente óbvia, mas vale
a pena ressaltá-la. O que é geometricamente falando achar o inverso do
MMC? É basicamente dividir o segmento de reta em pedaços menores até
alcançarmos numa extensão tal a medida comum, que nos possibilite
exprimir 3/5 como uma extensão que a contenha m vezes e 2/3 como uma
extensão que a contenha n vezes, sendo m e n números inteiro.

Esse procedimento era reputado poder expressar qualquer relação


entre segmentos de reta. Dados dois segmentos quaisquer com
comprimentos diferentes, aplicando-se a técnica de seccioná-los, sempre
alcançaremos uma extensão comum a ambos no sentido de podermos
expressar a diferença entre eles através de uma relação que iguala cada
segmento a ser um número inteiro de vezes a medida comum tomada como
unidade. Observamos, assim, como para o grego a unidade está sempre
referida a uma extensão. Sempre que estamos operando com as extensões –
e é isso que a geometria faz o tempo todo –, a suposição é a de que
podemos encontrar a medida comum entre elas, que servirá então como
unidade, como o “um” ao qual todas se referem. A unidade permitirá a elas
se distinguirem entre si pelo fato de poderem ser expressas em termos da
quantidade de vezes que a unidade está presente em cada uma.

Observemos serem essas suposições, embora hoje em dia revisadas,


muito plausíveis. Na verdade, do ponto de vista prático, elas representam
com bastante exatidão a maneira como procedemos. Mais do que isso, elas
parecem conformes a uma intuição fundamental das coisas, difícil de abrir
mão. Se queremos saber quanto de água cabe num reservatório, é mais ou
menos “natural” que tomemos como referência um recipiente que

- 86 -
manuseamos com facilidade e expressemos a quantidade do reservatório a
partir do nosso recipiente. Poderíamos dizer algo como, por exemplo,
“nesse recipiente cabem 27 panelas de água”. Poderia ser o caso que o
resultado não fosse as 27 panelas, mas 27 panelas e meia. E nesse caso
minha “unidade” teria se modificado para meia panela e então meu
recipiente conteria 55 meias panelas. Quem, em sã consciência, negaria a
pertinência, a validade, dessa maneira de pensar?

De fato, ela não é incorreta, mas não cobre todas as situações. E


isso é um fato surpreendente, que contraria nossa intuição. Os gregos, não
podemos deixar de mencioná-los, detectaram-no, mas não conseguiram
avançar em relação a ele. Esse fato é o que diz respeito aos números
irracionais. O que é um número irracional?

É exatamente uma relação entre grandezas que não se expressa em


termos de uma relação entre inteiros. A situação clássica é aquela que
envolve a relação entre o lado de um quadrado e sua diagonal. O lado do
quadrado e sua diagonal são dois segmentos de reta e são diferentes em
tamanho, evidentemente. Então seria propício aplicarmos a eles nossa
técnica de divisão. Dividir ambos os segmentos em pedaços menores até
encontrarmos um segmento mínimo que fosse a medida comum de ambos,
de tal sorte que pudéssemos expressar o comprimento dos dois segmentos
por meio do número de vezes que cada um contivesse a medida comum.

Acontece que, nessa situação, nossa técnica de dividir não só não


funciona como também conduz a um absurdo. Ou seja, de um lado, não
encontramos a razão entre ambos os segmentos – daí a designação,
números irracionais – e de outro, alcançamos um absurdo. A inexistência
de razão vem do fato de que a divisão não pára nunca. E o absurdo é que,

- 87 -
se essa medida comum existisse, ela seria ao mesmo tempo um número par
e um número ímpar59.

É importante ficar claro o impasse delimitado nessa circunstância.


Por isso corremos o risco de uma certa redundância em nossa explanação;
formulando o impasse da maneira mais simples possível. Estamos diante
de uma situação em que nossa estratégia para encontrar a medida comum
entre dois segmentos não funciona. A divisão indefinida dos segmentos de
reta envolvidos na operação não cessa exatamente porque a medida
comum escapa sempre. Por que isso acontece, já que os dois segmentos de
retas envolvidos na operação não são diferentes em si mesmos de
quaisquer outros segmentos? Qual é o mistério?

A resposta não pode ser dada dentro dos pressupostos da


matemática grega, a qual, como vimos, define número como número
inteiro – os números naturais sem o zero. Vimos também como habilmente
os gregos tratavam as frações como maneiras de expressar relações entre
inteiros. Isto é, não existem propriamente falando números fracionários,
nós nos valemos deles para especificar o fato de a unidade poder recuar
sempre quando estamos operando com as extensões, tecendo comparações
entre elas. Uma outra maneira de expressar esse fato é dizer que as frações
dizem respeito ao fato de sempre podermos dividir indefinidamente uma
extensão; ou ainda, o fato de que entre uma fração e outra existir uma
infinidade de outras frações, outros segmentos de extensão, cada vez

59
A demonstração é através do teorema de Pitágoras. Supomos um quadrado cujo
comprimento de seus lados é igual a 1, isto é, à unidade. Desejamos saber a razão entre
o lado do quadrado e sua diagonal. Pelo teorema chego à expressão (m/n)2=2. Logo
m2=2n2 caso em que m é um número par, já que o quadrado de um número par é par.
Nesse caso n tem que ser um número ímpar, já que a razão entre os dois segmentos tem
de ser expressa através de uma fração irredutível – uma fração em que numerador e
denominador são primos entre si. Mas não é esse o caso, n também é par – o que é um
absurdo, pois nesse caso a fração m/n, sendo seus dois termos pares, admitiria ainda pelo
menos uma redução. Com efeito, se m é par, convocamos sua metade k, m=2k.
Substituímos então na expressão utilizada mais acima e chegamos à expressão
(2k)2=2n2, que vem a ser igual a 4k2=2n2, ou seja, n2=2k2. Logo, n também é par.

- 88 -
menores, que podem assumir a função da unidade. É mais ou menos a
lógica da régua graduada.

Tomemos o padrão metro. Podemos medir uma dada extensão


como tendo 10 metros, uma outra, 10 quilômetros, isto é, 10 vezes mil
metros. Nessas circunstâncias, assumimos 1 metro como unidade e
observamos quantas vezes essa unidade está presente nas extensões
consideradas. Mas como medimos extensões menores do que 1 metro?
Todos nós aprendemos isso na escola. Dividimos nosso padrão metro em
extensões cada vez mais menores – decímetros, centímetros, milímetros,
etc. – até encontrarmos uma extensão menor que possa funcionar como
uma nova unidade de referência para medir a extensão que procuramos
medir60. Pois muito bem, a existência de números irracionais derroga o
caráter universal desse procedimento tão razoável. O número irracional
representa a circunstância de não existir medida comum para os segmentos
dados. Isto é, esses segmentos só poderiam ser comparados entre si
aproximadamente. De fato, eles seriam incomparáveis – o vocábulo que os
matemáticos usam para designar essa situação é “incomensurável”; os
segmentos seriam então incomensuráveis.

Mas o que há de tão especial nessa circunstância? Na verdade, do


ponto de vista prático, o procedimento de dividir a extensão funciona
muito bem. Não se tem uma medida exata; mas o erro, se levamos longe
suficientemente a divisão, é desprezível. E apesar dessa imperfeição, é
dessa forma que procedemos até hoje – mesmo sabendo que o
procedimento não é exato. Vê-se logo, então, que a importância dos
irracionais não é imediatamente prática. Essa importância é sobretudo
teórica, e terá uma enorme repercussão prática posterior justamente em

60
Há também essa característica, que não discutiremos aqui, que é o fato de a régua
graduada sempre manter uma referência escalar às ordens de grandeza relativas à nossa
base numérica Assim, no caso do padrão metro, estabelecemos escalas em função da
base numérica decimal (1/1000, 1/100, 1/10, 1, 10, 100, 1000).

- 89 -
razão de seu enquadramento teórico adequado em relação ao contínuo e ao
movimento.

E o que vem a ser esse enquadramento adequado? Precisamente


aquele presente no bojo da criação das principais estruturas matemáticas
que fundamentam a ciência moderna. Este é o ponto: a solução adequada
dos problemas, cujo o problema do número irracional é um representante
ilustre, estabeleceu as bases para o advento da ciência moderna. Em
especial, foi a partir desses estudos que se pôde compreender a questão do
movimento e, por extensão, a das variações contínuas de uma maneira
geral.

Na primeira parte deste capítulo, apresentamos as dificuldades do


grego para conceber racionalmente o movimento. Observamos de
inúmeras maneiras que essa dificuldade estava ligada ao fato de eles
sempre suporem a extensão como uma positividade. A solução da
dificuldade que está no fundo do problema dos irracionais vai exigir um
longo e radical desvio na história da matemática. Vai exigir que a
matemática se libere da, ultrapasse a idéia de extensão enquanto
positividade, ou seja, vai exigir que ela se libere da intuição geométrica.
Para isso, ela terá que avançar na direção da aritmética e da álgebra. Mas
para seguir essa direção, ela terá que forjar as ferramentas necessárias. Para
os propósitos do presente trabalho fazemos a seguinte afirmação: Para
encaminhar os problemas que giram em torno dos irracionais, os
matemáticos terão que possuir uma concepção clara do que seja uma
operação; do caráter sintático que fundamenta essa noção. E para isso eles
têm de já estar freqüentando uma prática que representa as operações em si
mesmas, isto é, liberadas de uma interpretação geometrizante em termos da
intuição de extensão.

Até o presente momento em nossa exposição, não nos preocupamos


em distinguir uma argumentação aritmética de uma outra cujos argumentos

- 90 -
são geométricos61. Passamos de uma outra e, com isso, alimentamos a
suposição de que tanto faz raciocinarmos de uma maneira “aritmética” ou
de uma maneira “geométrica”, pois ambas as maneiras são equivalentes.
Não são. E isso é um fato surpreendente. Entendamos por quê.

O pensamento grego submete o aritmético ao geométrico. Isso


significa que eles avançam na matemática até o limite prescrito pela
geometria. Eles sequer representam em termos próprios o que é do âmbito
da aritmética. Por exemplo, a prova que fornecemos em nota de rodapé a
respeito do irracional é aritmética prescinde completamente da idéia de
extensão, ela é correta simplesmente porque a combinatória das letras, as
seqüências das expressões assim o estipula. Embora admita uma
interpretação geométrica, ela não é em si mesma, isto é, seu raciocínio,
geométrica. Não é o caso de não existir uma aritmética, por exemplo, nos
Elementos de Euclides. Ela existe, todos os historiadores a mencionam.
Simplesmente, ela não tem expressão própria, seus raciocínios estão
vestidos com roupas geométricas, isto é, pontos, retas, figuras e
manipulações com o compasso e a régua. Vamos destacar agora os dois
campos; vamos situar de um lado segmentos de reta, nos quais
encontramos pontos e, de outro lado, vamos situar letras e operações, que
concatenam essas letras gerando novas composições de letras. De um lado,
a intuição geométrica, ligada à idéia de extensão; de outro, a escritura que
caracteriza a aritmética e a álgebra. Vejamos no que isso dá.

Examinemos em primeiro lugar a idéia de número natural. Será que


os dois planos coincidem? A resposta é sim com algumas ressalvas. A
principal é a de que com uma aritmética formulada em termos próprios
podemos ir muito mais longe do que com um raciocínio aritmético
amarrado a uma interpretação geométrica. Vejamos em que sentido
fazemos essa declaração. Tomemos os números negativos. Eles são

61
Sobre esse ponto ver o desenvolvimento extremamente interessante para nós,
psicanalistas, de Poincaré (1913, p. 27-40), “A Intuição e a Lógica nas matemáticas”.

- 91 -
facilmente manipuláveis, uma vez dada a mecânica operatória com os
números decimais, tais como os conhecemos hoje. Já para representá-los
geometricamente simplesmente temos de enfrentar uma questão metafísica
com ... Platão!

Depois de muita discussão, voltamos à calma, até porque a


interpretação geométrica dos números negativos é bastante plausível, não
tendo nada de assustadora. Eles fazem parte de um conjunto maior
denominado Inteiros. Simplesmente, tomamos uma reta e a dividimos em
duas semiretas, assinalamos ao ponto de divisão, ou origem, o valor 0, à
direita assinalamos os valores positivos e à esquerda, os valores negativos.
Pronto! Na verdade podemos observar que negativo, positivo dizem
respeito a uma convenção. É um esquema de pensamento que pode ser
muito útil em certas circunstâncias, esse de arbitrar um centro, ou origem, e
caracterizar como positivo o campo à direita desse centro e de negativo o
campo à esquerda. Voltamos à calma porque podemos observar que, na
verdade, número negativo não derroga a idéia de extensão. Número
negativo não é correlato de um tipo estranho de extensão que seria
negativa, uma “anti-extensão”. Trata-se apenas de uma propriedade
referida à instituição de uma convenção que arbitra uma origem. Nesse
caso é trivial verificarmos que, para cada número negativo ou positivo, não
importa, podemos encontrar um ponto, ou mesmo um segmento, na reta
que lhe corresponda e vice-versa.

O que podemos fazer com os Inteiros? Essencialmente, as


operações de soma, multiplicação e subtração, achar a potência de um
número e algumas outras operações. Mas não podemos realizar inúmeras
outras, como é o caso, por exemplo, da divisão porque essa operação
redunda em números fracionários. Uma diferença importante a mencionar
entre a aritmética e a geometria, no que tange aos números inteiros, é o fato
de ser infinitamente mais simples e econômico operar a partir dos métodos
aritméticos do que a partir dos geométricos. Isso é sensível do seguinte

- 92 -
modo. É muito mais simples fazer uma subtração, uma multiplicação
através dos tradicionais algoritmos que aprendemos na escola do que com
régua e compasso!

Já vimos que as frações também não anulam a idéia de extensão


como positividade. Isto é, posso representar cada fração como um
segmento de reta e cada segmento de reta como uma fração. Basicamente,
os números racionais – como são chamados os números fracionários –
acrescentam a possibilidade de operarmos a divisibilidade. Já vimos que a
divisibilidade não derroga a idéia de extensão. Ao contrário, ela a implica.
A divisibilidade apenas relativiza a unidade. Relativização essa já
assumida ao tempo de Platão. Chegamos até a sugerir que o fato mesmo da
dominância da geometria na matemática grega tinha a ver com esse fato.

Para Platão, a unidade é uma idéia, que, como tal, é irredutível a


qualquer implementação que se faça dela. Podemos recuá-la ou avançá-la,
fazê-la maior ou menor o quanto queiramos, que ela não perderá seu
caráter de unidade. E qual é esse caráter? É seu “ser” discreto, aquele que
possibilita a contagem. E esse caráter discreto é sempre pensado em termos
de uma entidade geométrica, uma extensão, arbitrária, mas contida num
limite definido, por mínimo que seja, que vale como “um”.

Uma propriedade que poderia sugerir serem os números racionais


muito diferentes dos Naturais ou dos Inteiros está no fato de podermos
fazer em reação a eles uma formulação. Esta sugere que eles dão conta do
contínuo, o que não é o caso em relação aos Naturais e Inteiros – que
supõem uma unidade com um tamanho definido e fixado, não admitindo
sua divisão. Quando dizemos que entre uma e outra fração existe uma
infinidade de outras frações, isso corresponde, no plano da intuição
geométrica, a existência de uma infinidade de outros pontos entre um e
outro ponto de uma reta. Existe um conhecido teorema de Cantor que
prova que essa característica não diz respeito à continuidade. Dá-se o nome
de densidade a essa característica. E, na verdade, ela tem a ver com esse

- 93 -
fato a que temos aludido: o da unidade poder ser recuada tanto quanto
queiramos, quando operamos com frações.

De fato, frações é justamente isso: operar admitindo o deslocamento


infinito do termo a ser tomado como unidade. Cantor prova que podemos
“contar” as frações, isto é, que podemos associar cada fração a um número
natural, não restando nenhuma fora desse mecanismo de associação e
correspondência. Isto prova que os números racionais têm o mesmo
“tamanho” que a seqüência dos naturais62. O mais surpreendente nessa
prova é ela apontar para a existência de alguma coisa na reta que o
processo de divisão indefinida não apanha, não cobre, por mais longe que
ele prossiga63. E esse fato só pode ser adequadamente destacado através
das ferramentas introduzidas pela aritmética e pela álgebra. A prova de
Cantor é ela mesma “aritmética”, no sentido de que ele maneja com letras e
regras de composição dessas letras, ou seja, regras sintáticas, e não com
extensões e manipulações dessas extensões com régua e compasso. Com
Cantor estamos em cheio na inversão que caracteriza a modernidade. A
álgebra e a aritmética submetendo a intuição geométrica.

O que vimos até aqui pertence ao escopo da idéia de se pensar a


unidade como identificada à positividade de um segmento de extensão. O
conjunto numérico que por excelência encarna essa idéia é o dos números
naturais. Os números relativos (quando afetamos um número de possuir a
característica de ser positivo ou negativo) e as frações não modificam, não
interrogam, essa idéia. Na verdade, esses números representam aspectos
distintos dessa idéia, maneiras diferentes de implementá-la e de também a

62
A prova é a seguinte. Como os números racionais são escritos como uma relação entre
inteiros, podemos representá-los como o produto cartesiano de N X N. Dispomos esse
produto de uma determinada maneira. A prova é completada quando exibimos uma
maneira de contar os pares (ni, nj), exaustivamente, isto é, quando apresentamos uma
maneira de associar a cada par um número natural.
63
Isso também é provado por Cantor. Ele prova que nem todo conjunto infinito é
enumerável, isto é, é passível de a cada elemento seu ser associado um número natural.
Ele prova que o intervalo unitário [0, 1] não é enumerável. Com isso ele demonstra a
existência de um conjunto que não pode ser pensado a partir da enumerabilidade.

- 94 -
utilizarmos para determinados fins. Cantor provou, como dissemos, que
esses conjuntos todos têm o mesmo tamanho, isto é, correspondem à
seqüência infinita dos números Naturais. Tal fato lhe permitiu classificar
esses números sob uma mesma categoria, aquela cujo tipo de infinito é
correlativa à seqüência dos números Naturais. Essas classes numéricas
(Naturais, Inteiros e Racionais) possuem todas a mesma cardinalidade, isto
é, são todas do mesmo tamanho – são do tamanho da classe dos números
naturais – e por isso são ditas possuírem a cardinalidade64 À0 (leia-se aleph
zero). Esses conjuntos e todos aqueles que possuem a cardinalidade são
ditos conjunto enumeráveis, isto é, são conjuntos que são identificáveis à
seqüência dos Naturais. Nesta, a unidade é representada em termos de uma
extensão positiva limitada, isto é, discreta, passível de ser contada,
associada univocamente à seqüência dos naturais.

O grande passo que possibilitará o advento da ciência moderna será


aquele que interrogará justamente a conexão entre unidade, o “um” que
permite a contagem, e a positividade da extensão65. É a idéia de corte. Essa
idéia estava em operação quando Newton criou o cálculo diferencial e
integral, mas ela só foi adequadamente formalizada a partir do século
passado, justamente com os trabalhos de Cantor e Dedekind, dentre outros.
O que significa corte? Em relação à linha de argumentação que temos
adotado, significa uma ruptura com a idéia de correspondência entre
números naturais e seu correlato extensivo geométrico. Mas, para abordar
esse conceito, temos que nos deter em considerações a respeito das
diferenças entre aritmética e geometria.

64
Cardinalidade é o termo que denota o tamanho de um conjunto.
65
Esses números são os números reais e a cardinalidade deles é simbolizada por c. Daí
temos a famosa hipótese do contínuo formulada por Cantor. Ele apoiava a idéia que não
existe nenhum conjunto cuja cardinalidade tenha um valor intermediário situado entre a
cardinalidade dos naturais e a dos reais, isto é, entre À0 e c.

- 95 -
Aritmética e Geometria: Algumas Diferenças Fundamentais. A
Escritura

Para entendermos algumas diferenças entre a aritmética e a


geometria, devemos destacar em nossa argumentação um protagonista
poderoso: é aquele que diz respeito à idéia de operação. Mais do que
qualquer outra, a idéia de operação é essencial para entendermos o sentido
do conceito de número formulado em termos aritméticos, em termos
próprios. Chamamos de aritmética a escritura que expressa números e suas
operações correlatas através de uma sintaxe estrita.

A aritmética, tal como aprendemos na escola, é a disciplina que


estuda os números e as operações com eles. Mas nesse contexto, número é
entendido de uma maneira intuitiva, é a expressão de uma magnitude, de
uma quantidade. Dessa “expressão de uma magnitude”, dessa “ciência da
quantidade”, é curto o caminho para entendermos número como a
expressão de uma positividade qualquer. Isso não é errado. Mas o
encaminhamento intuitivo ofertado pela escola deixa escapar um aspecto
essencial, que é o aspecto sintático, muito mais importante do que o fato de
número ser um conceito que denota a positividade, a quantidade, do que
quer que seja. Esse entendimento, na verdade, ainda é tributário de uma
concepção geométrica. Ao darmos ênfase à aritmética, na verdade
queremos ressaltar uma concepção algébrica, uma concepção que
justamente prescinde do apoio na intuição, na medida em que a intuição,
como temos a caracterizado até aqui, é sempre a intuição de uma extensão
enquanto positividade dada. Nesse sentido o que significa então operação?

Significa basicamente uma regra de reescrita. Por exemplo, 2 + 2 =


4. Posso entender essa operação intuitivamente, isto é, pelo lado de sua
semântica. Tomamos duas maçãs e juntamos outras duas, ao final desses
movimentos contamos quatro maçãs. No caso em questão, identificamos a
operação de somar aos atos motores, o que é bastante intuitivo. Essa é a

- 96 -
maneira que aprendemos na escola, que, como vimos, não é errada, mas
que escamoteia o fato de que o semântico, o intuitivo, é, nessa situação,
completamente subordinado ao manejo sintático. Esse manejo é mais ou
menos o seguinte: numa expressão posso substituir os sinais “2 + 2”, pelo
sinal “4”. Nesse tempo da operação são completamente dispensáveis os
significados de “2”, “+”, “=” e “4”. São sinais, e o que importa são as
regras que regem suas concatenações. Vamos ao inferno infantil no que diz
respeito à matemática – por que tivemos de decorar a tabuada? Pela razão
exposta acima.

Embora tenhamos a ilusão de que fazemos nossas contas guiados,


comandados, pelo semântico, pelo intuitivo, não é nada disso o que
acontece. Nós nos deixamos conduzir pela regra. A ilusão de que o
semântico dirigiu a cena vem do fato de que, felizmente, nesse nível que
usualmente fazemos nossas contas, a aritmética é logicamente completa,
isto é, seu funcionamento sintático se correlaciona com o que aguardamos
do ponto de vista semântico e vice-versa. Por exemplo, a operação 2.345 +
317 =2.662, alguém tem a intuição desse resultado? É pouco provável.
Confiamos nele porque ele “dá certo”. De fato, se juntarmos 2.345 feijões
a 317 feijões, ao final contaremos 2.662 feijões. Ou seja, o jogo de
substituições, substituir o “7” e o “5” por “2” na primeira parcela,
compensar com o fator “+1” (vai um) e juntamente com o “4” e o “1”
escrever “6” na parcela seguinte, na próxima parcela substituir o “3” de
“2345” e o “3” de “317” por “6” e finalmente na última parcela
simplesmente escrever “2”, já que ele não está compondo com nenhum
termo – somamos então 2.662.

Enfim, esse mecanismo de escrever tais sinais em substituição a


outros tais é consistente, é coerente, com o mecanismo de contagem,
aquele que correlaciona cada item com um sinal e depois os acumula numa
espécie de saco. Mas a rigor, não temos qualquer intuição desse número,
aceitamo-lo porque ele é coerente com uma série de outras contas e

- 97 -
verificações que podemos fazer e que o envolvem. Então, retomando nossa
citação a respeito da tabuada, por que decoramos a tabuada de 1 a 10 para a
soma e a multiplicação? Porque dez é o número de nossa base de
numeração.

Nosso sistema de numeração, que é um sistema de escrita, uma


sintaxe muito elegante e prática, possui dez sinais diferentes para expressar
qualquer número. Vejam bem, existem infinitos números e nós com esse
engenhoso sistema podemos expressar, pelo menos em princípio, qualquer
um, por maior ou menor que ele seja. E o que quer dizer “expressar” nesse
contexto? Quer dizer que, para cada número, podemos determinar pelo
menos uma seqüência de sinais que o denota univocamente, sem qualquer
tipo de ambigüidade. Vale dizer, com uma quantidade finita de elementos,
nossos dez algarismos, podemos expressar uma infinidade de números.
Mas não é só isso. Nós podemos operar com esses números também, não
importando, em tese, quão grandes ou pequenos eles sejam. Por isso
usamos a tabuada; porque, para operarmos com essa infinidade de
números, é suficiente conhecermos as substituições que podemos praticar
relevando tão somente os dez algarismos de nossa base decimal.

Em termos práticos e fundamentais, bastam a tabuada de somar e a


de multiplicar. Se repararmos bem, sempre que estamos fazendo uma
conta, por maior ou menor que sejam as quantidades envolvidas, estamos
sempre somando ou multiplicando dois algarismos e dando o devido
desconto conforme as operações existentes dentro da operação ultrapassem
as ordens de grandeza com que trabalhamos. É assim que procedemos,
substituímos uma conta grande por uma série de contas menores e as
embutimos umas nas outras em consonância com regras precisas. Assim,
tudo o que precisamos saber é por que sinal, algarismo ou seqüência deles,
devemos substituir, por exemplo, um “9 + 9” quando damos de frente com
ele numa conta de somar, por exemplo, “19 + 9”. Nós fixamos o algarismo
8 relativo ao 18 (que seria o resultado da soma caso ela fosse apenas de 9 +

- 98 -
9) e damos o desconto relativo a ele ultrapassar a ordem de grandeza da
dezena – o “vai um” – quando estivermos a operar com a parcela seguinte,
a que contém apenas o algarismo “1”, relativo ao “19”. Desta forma,
podemos nos aperceber como, com um conjunto finito de elementos e
umas poucas regras, podemos manejar um domínio indefinido e muito
amplo de números.

Seria impensável realizarmos a façanha descrita acima com os


elementos fornecidos pela geometria. Mais do que isso, nossa escritura
aritmética é uma máquina de produzir sinais unívocos a partir dos sinais
elementares. Na verdade, colocando as coisas de um modo um pouco
diferente, poderíamos dizer que existem tantos entes matemáticos quantos
podemos escrevê-los. Isto não significa a existência de entes matemáticos
em algum mundo especial e que um sistema de escrita possa expressá-los
melhor ou pior do que outro sistema. Os entes matemáticos são como que
internos às diversas formas de escrevê-los. O que nos obriga a
retrospectivamente pensar a geometria como uma escritura tal como a
aritmética. Só que uma escritura com um limite claro, aquele traçado pela
exigência, o compromisso, de estar em acordo com a intuição de extensão
enquanto positividade.

A aritmética, pelo contrário, é uma escritura com potência


praticamente infinita de produzir univocamente sinais discriminantes, que
poderão ou não ser interpretados como concernindo a essas ou aquelas
entidades. Esse é o sentido mais amplo da álgebra. Muitas estruturas
matemáticas importantes e fundamentais para a ciência foram
desenvolvidas em acordo com os princípios que estamos a esboçar. A
interpretação, a semântica, de certos sinais, das regras de combiná-los e das
regras de derivar uns dos outros, de substituir uns pelos outros, sem
qualquer apelo a qualquer tipo de intuição só pode ser foi estabelecida após
a elaboração da álgebra.

- 99 -
O passo de Descartes foi precisamente nessa direção. Ele obteve
êxito, como diz Jean Dieudonné, em “traduzir todo problema de geometria
plana em um problema de álgebra equivalente” (1987, p. 66). Esse passo
significa uma modificação fundamental no modo de operar. Daí para
frente, não mais as operações com régua e compasso, mas escrituras nas
quais se expressam, se fixam algoritmos de cálculos, cuja origem é indiana
e não grega66. A aritmética e a álgebra comandam os próximos avanços da
matemática. É importante transmitirmos o que está em jogo de uma
maneira muito concreta nesse passo. Por exemplo, toda essa estenografia
meticulosa que associamos à matemática simplesmente não existia. Ela
começou a ser implementada e desenvolvida nessa época. E foi justamente,
Descartes um dos seus construtores principais e isso não apenas num
sentido concreto, porque ele elaborou algumas das ferramentas mais
fundamentais de que dispomos hoje, mas também porque ele formulou os
princípios básicos para o desenvolvimento do novo cenário. O mundo
moderno não poderia existir não fossem esses desenvolvimentos.

Vamos ilustrar isso de uma forma bem concreta simplesmente


afirmando o seguinte: toda base operacional na qual estamos imersos, e
que rege pormenorizadamente nossas vidas, é tributária de um
processamento “algébrico”. As aspas estão aí para demarcar que não se
trata de álgebra no sentido estrito desta ou daquela estrutura definida, mas
de uma maneira de tratar as coisas, pensando-as a partir de certos
esquemas sintáticos, que podem ser mais ou menos estritos ou específicos,
em conformidade com as situações. Vamos tomar alguns exemplos
aleatórios, mas que freqüentam nosso cotidiano assiduamente.

66
Os historiadores mencionam o fato de que essas técnicas foram também
desenvolvidas pelos gregos e chegaram a florescer no Helenismo. Mas essas técnicas se
perderam para nós, restando delas uns poucos manuscritos. Quando no século XVII a
matemática toma um novo impulso, este se faz com elementos que chegaram até nós via
os árabes. O próprio Jean Dieudonné comenta esse aspecto em um parágrafo que já
citamos em parte (1987, p. 54).

- 100 -
Essa coisa fabulosa que, segundo muitos, caracteriza nosso tempo –
o computador. Trata-se de uma máquina, que, do ponto vista teórico, foi
“inventada” ainda na primeira metade de nosso século. O que assistimos
hoje é muito mais efeito da ciência dos materiais, cujo êxito em
miniaturizar os circuitos eletrônicos viabilizou, do ponto de vista físico,
algo já existente em seus princípios fundamentais do ponto de vista teórico.
O computador é uma máquina estritamente sintática, no sentido de que
descrevemos acima quando examinamos a maneira como fazemos contas.
De fato ele faz pouquíssimas coisas, ele somente maneja seqüências de
caracteres, reescreve seqüências de caracteres ou sinais a partir de outras
seqüências, apaga seqüências, etc. Isso é quase inacreditável para um leigo,
mas um computador sequer sabe somar! Somar, no sentido dessa operação
que fazemos orientados semanticamente, é alguma coisa que o computador
sem dúvida “desconhece” – se é que podemos falar em ele conhecer ou
desconhecer alguma coisa. O que ele faz, e com uma rapidez
impressionante, são aquelas substituições de caracteres por caracteres já
descritas acima quando discorremos sobre a operação de somar. É
importante mencionar, mesmo que superficialmente, como será
inevitavelmente o caso aqui, o alcance prático dessa forma de operar.

Isso fica bastante sensível se trouxermos à luz o funcionamento


bancário, por exemplo. Que ninguém imagine a realização do ponto de
vista físico de todas as operações bancárias efetivadas diariamente. Se as
intensas trocas de moedas, nas contas bancárias, fossem de fato
executadas, isso equivaleria a algo como caminhões de dinheiro
transportando papel moeda de um lado para o outro, para efetivar
concretamente o que é significado pelas operações. Nós não nos
apercebemos muito disso, porque estamos tomados, inseridos numa
perspectiva das coisas orientada semanticamente. Mas o estatuto material
do valor é hoje em dia simplesmente o de expressões numéricas
armazenadas na memória dos computadores. O lastro dessas operações

- 101 -
está muito distante da concretude, como há algumas poucas décadas
passadas era o padrão ouro. O lastro dessas operações todas é, hoje em dia,
alguma coisa vaga, “complexa”, que gira em torno da produtividade, do
comércio, enfim, das trocas em vários níveis e que são aferidas em termos,
mais uma vez, sintáticos, isto é, contas e mais contas, isto é, expressões
numéricas e mais expressões numéricas, cuja relação com os processos
reais é extremamente complexa.

A Noção de Corte

Vamos trabalhar agora, finalmente, o conceito de corte. Vamos


apresentá-lo numa via que se vale ainda da intuição geométrica, embora
essa idéia seja eminentemente aritmética. É a idéia de corte tal como foi
formulada pelo matemático alemão Richard Dedekind.

Supomos uma reta, isto é, estamos diante de algo que excita em nós
a idéia de continuidade. Tomemos um ponto P qualquer sobre ela. É
imediata a compreensão que, em relação a esse ponto, podemos definir
uma classe de pontos A, situados à esquerda, e uma outra, B, de pontos
situados à direita de P. O ponto P pode ser colocado numa classe ou noutra
arbitrariamente. Temos um corte quando repartimos uma reta em duas
classes de pontos tal que: 1) nenhum ponto escapa à repartição e 2) todo
ponto da classe A está à esquerda de todo o ponto da classe B. Desse
desenvolvimento é imediato que qualquer ponto na reta produz nela um
corte, isto é, pode produzir uma situação como a que acabamos de
estabelecer. Temos então as quatro seguintes possibilidades quanto ao
corte: 1) a existência de um máximo para a secção esquerda e um mínimo
para a direita; 2) um máximo para a secção esquerda e a ausência de
mínimo para a direita; 3) a ausência de máximo para a secção esquerda e a
existência de um mínimo para a secção direita e, finalmente; 4) a ausência
tanto de máximo quanto de mínimo para as respectivas secções inferiores e

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superiores67. A partir da configuração dessa situação apresentamos o
seguinte resumo do texto de Dedekind:

... nós atribuímos à reta a qualidade de ser completa, sem lacunas, ou seja,
contínua. Mas esta continuidade, em que consiste? A resposta a esta
pergunta deve compreender em si tudo, e somente ela permitirá
desenvolver em bases científicas o estudo de todos os campos contínuos.
Naturalmente, não se consegue nada quando, para explicar a continuidade,
se fala, de um modo vago, de uma conexão ininterrupta nas suas partes
mais pequenas; o que se procura é formular uma propriedade
característica e precisa da continuidade que possa servir de base a
deduções verdadeiras e próprias.

Pensei nisso sem resultado por muito tempo mas, finalmente achei o que
procurava. O meu resultado será talvez julgado, por várias pessoas, de
vários modos mas a maior parte, creio, será concorde em considerá-la
bastante banal. Consiste ela na consideração seguinte:

Verificou-se que todo ponto da reta determina uma decomposição da


mesma em duas partes, de tal natureza que todo ponto de uma delas está à
esquerda de todo ponto da outra. Ora, eu vejo a essência da continuidade
na inversão dessa propriedade e, portanto, no princípio seguinte: “se uma
repartição de todos os pontos da reta em duas classes é de tal natureza
que todo ponto de uma das classes está esquerda de todo ponto da outra,
então existe um e um só ponto pelo qual é produzida esta repartição de
todos os pontos em duas classes, ou esta decomposição da reta em duas
partes”.

Como já disse, creio não errar admitindo que toda a gente reconhecerá
imediatamente a exatidão do princípio enunciado. A maior parte dos meus
leitores terá uma grande desilusão ao aprender que é esta banalidade que
deve revelar o mistério da continuidade. A este propósito escrevo o que
segue. Que cada um ache o princípio enunciado tão evidente e tão
concordante com a sua própria representação da reta, isso satisfaz-me ao
máximo grau, porque nem a mim nem a ninguém é possível dar deste
princípio uma demonstração qualquer. A propriedade da reta expressa por
este princípio não é mais que um axioma, e é sob a forma deste axioma
que nós pensamos a continuidade da reta, que reconhecemos à reta a sua
continuidade. (DEDEKIND, 1963, [1901], pps. 10-12).

Consideremos, de um lado, nosso sistema de escrever os números,


os diversos conjuntos numéricos (Naturais, Inteiros, Racionais e Reais) e,
de outro, a reta ou conjunto de pontos dados nela. Vejamos como cada
conjunto numérico se relaciona com a reta e com seus pontos. É evidente
que não posso, por exemplo, associar aos números naturais os pontos da
67
Nessa etapa da argumentação, reproduzimos os passos de B. Russel sobre esse tema
em Introdução à Filosofia da Matemática (1974 [1903], cap. VII, pps. 66-78).

- 103 -
reta compreendidos entre os pontos nela associados a dois números que se
sucedem. Assim, por exemplo, os pontos na reta compreendidos entre os
pontos associados ao número 1 e ao número 2 não são discriminados pelos
números naturais. Um corte na reta sob a égide dos números naturais
realiza, então, a primeira possibilidade. Cortamos, por exemplo, a reta no
ponto 1. Se esse ponto for alocado à esquerda, isto é, se ele for o máximo
desse segmento, o número 2 será necessariamente o mínimo do segmento à
direita – e todos os pontos entre 1 e 2 se “perdem”. Na verdade, da
perspectiva dos números naturais não existem pontos entre dois termos
consecutivos. Se o número 1 pertencer ao segmento à direita, isto é, se ele
for o mínimo desse segmento, o número 0 será necessariamente o máximo
do segmento à esquerda, que, no caso dos números naturais, será
constituído apenas desse único ponto associado ao número 0. Em relação
aos números racionais, realizam-se as possibilidades 2 e 3. No caso desse
conjunto, ao que parece, encontramos uma correspondência com a reta que
satura todos os seus pontos, isto é, cada número racional corresponde, na
reta, a um ponto e vice-versa. Não ocorre em relação a esses números,
como na seqüência dos números naturais, o caso em que os pontos entre os
pontos que correspondem a dois números consecutivos da seqüência ficam
a descoberto. Em relação aos racionais, em nossa reta delimitamos duas
classes de pontos de tal sorte, que todo ponto pertencente à classe A
encontra-se à esquerda de todo ponto pertencente à classe B. Em termos de
máximos e mínimos e, de acordo com o axioma de Dedekind – apenas um
ponto responde pelo corte. Assim, temos que, dado um certo corte num
ponto determinado, na suposição de que esse ponto é o máximo do
segmento a esquerda, da classe A. Nesse caso, o segmento à direita, a
classe de pontos B não possui mínimo. Temos então aí a realização da
possibilidade 2. A situação contrária é a realização da possibilidade 3,
aquela em que o segmento à esquerda não possui máximo, já que o ponto
que responde pelo corte está alocado à direita, na classe B, que, nesse caso,
então possui mínimo.

- 104 -
Vamos considerar agora o ponto que corresponderia ao número
2 , isto é, vamos considerar a possibilidade 4. Colocamos à esquerda
desse ponto todos os racionais cujo quadrado é menor que 2 (m2 < 2), e à
direita, todos os racionais cujo quadrado é maior que 2 (n2 > 2). Qualquer
que seja o número racional escolhido, podemos situar o ponto que lhe
corresponde do lado direito ou esquerdo da reta, ou na classe A’ ou B’ dos
racionais por ele repartido, isto é, ou m2 < 2, ou n2 > 2. Só não podemos
arbitrar em qual semi-reta ou classe devemos localizar o ponto
correspondente ao número 2 , porque ... porque ele não “existe”! Ao
número 2 não corresponde nenhum ponto da reta, mesmo a título de que
a cada número racional corresponde um, e somente um, ponto. Nesse caso
temos uma lacuna. Vejamos o que ocorreu em termos de máximos e
mínimos. Podemos gerar, em relação ao número que corresponderia ao
2 , uma infinidade de números racionais cada vez mais próximos do que
seria esse número (a classe A dos m2 < 2), podemos também gerar uma
infinidade de números racionais maiores do 2 infinitamente próximos do
que seria esse número (a classe dos n2 > 2). Mas em ambas situações não
teríamos nem um máximo nem um mínimo para as classes interessadas A,
e B nessa exposição. Russel distingue entre termos máximos, mínimos e
limites inferiores e superiores de uma seqüência, para articular a idéia de
fronteira. Limite superior ou inferior abarcaria a situação em que uma dada
classe não possuiria um termo máximo ou um termo mínimo, mas que um
termo exterior a ela a limitaria como que de fora, pelo exterior. E máximo
e mínimo corresponderia àquelas classes que são limitadas por seus termos
extremos. A primeira situação pode ser ilustrada intuitivamente através de
uma substância líquida, um copo de água, por exemplo, onde o que limita a
expansão da água não pertence a ela própria, a água, pertence ao copo; o
próprio copo é, aliás, esse limite – a água é assim limitada em sua
expansão, de fora. A segunda situação pode ser ilustrada por todos aqueles
contextos cujo elemento limitante pertence à própria coisa. Exemplo: os

- 105 -
elementos maximais de nosso corpo seriam seus elementos mais
“exteriores”, isto é, a nossa pele. Ambas as situações produzem uma
fronteira. Diz Russel:

Assim, a “fronteira superior” de um conjunto de termos tomados fora de


uma série é o seu último membro, se o conjunto tiver um último membro,
e, caso contrário, é o primeiro termo depois de todos eles, se houver tal
termo. Se não houver nem um máximo nem um limite, não haverá
fronteira superior. A “fronteira inferior” é o limite inferior ou mínimo.
(pp. 73).

Nas situações onde figuram números do tipo 2 , após essa


sofisticação da discussão com a introdução da noção de fronteira adotada
inicialmente por Russel, verifica-se que para esses números não existem
fronteiras. Ou seja, no caso do 2 , a partição que se produz não pode ser
apreendida fazendo-se apelo a elementos máximos ou mínimos. Como eles
não existem, pode-se dizer que ela não se produz a partir de algum termo
que seja interno a uma das duas classes. Ela também não pode ser
apreendida fazendo-se apelo aos limites superior ou inferior. Como eles
também não existem, isso significa dizer que a partição também não se
produz a partir de algum termo que lhe seja exterior. O que autoriza a
partição então? Justamente um buraco, como diz Russel, uma “lacuna” na
reta enquanto intuição do que é a extensão como presença dada e atual. O
que importa é justamente a ausência de fronteira. Esse é o sentido do
axioma proposto de Dedekind. Através desse axioma, ele positiva, inventa,
o número irracional como se ele fosse um número que corresponde a um
ponto na reta que é limite para a partição. Esse ponto suposto responde
pela partição, mas não é nem um elemento máximo dos pontos à esquerda
nem elemento mínimo dos pontos à direita. Como limite, o número
irracional é completamente exterior a ambas as séries de pontos, à esquerda
e à direita, as classes A e B de pontos e dos números que lhes
correspondem. O número irracional é então uma outra classe de números
que corresponde a uma espécie de pontos “impossíveis” sempre exteriores
a qualquer divisão concreta da reta, são pontos propriamente matemáticos.

- 106 -
São pontos que contam mais por serem lacunas do que por serem a
positividade de uma extensão mínima localizada efetivamente na reta.

Russel não aprecia essa solução. Para ele, ela ainda é tributária de
uma concepção marcada pela “imaginação espacial”, isto é, segundo ele,
supôs-se

que as séries deviam ter limites nos casos em que parecia estranho não os
terem. Assim, percebendo não haver limite racional algum para as razões
cujos quadrados são menores do que 2, elas se permitiram “postular” um
limite irracional, que se destinava a preencher a lacuna de Dedekind. (...).

(...) O método de “postular” o que queremos oferece muitas vantagens;


são as mesmas vantagens do roubo sobre o trabalho honesto. (pps. 73-74,
os itálicos são do autor).

De fato, temos aí uma arguta observação de Russel. O que fez


Dedekind foi justamente transformar uma impossibilidade numa
positividade, qual seja, a “invenção” de um novo tipo de número, os
irracionais que seriam limites para seqüências de racionais. Seu axioma é
que só existe um e apenas um ponto associado biunivocamente a um
número, que responde tanto pela partição da reta quanto pela partição na
seqüência de números a ela relacionada. Esse ponto não é encontrável pelo
método usual porque a operação de radiciação, tanto em sua expressão
aritmética (a técnica que aprendemos na escola manejando com os
algarismos) quanto geométrica (à maneira grega, com régua e compasso),
itera infinitamente, isto é, ela não libera um número com uma quantidade
finita de elementos, ou uma extensão finita e determinada, única maneira
de localizarmos efetivamente um número na reta. A infinitude implícita na
iteração deixa a decisão sobre a expressão própria do número 2 em
suspenso, bem como sua localização na reta. É essa suspensão que
Dedekind ultrapassa com seu axioma. A expressão 2 deixa de designar
apenas uma operação que itera infinitamente e que por isto permanece
vaga quanto ao quê ela que designa, para passar a designar uma entidade
única, o número irracional que se escreve 2 . Vale dizer, ali onde se

- 107 -
observava uma iteração infinita, alça-se essa infinitude ao estatuto de uma
coisa única e completa. Dedekind supõe que essa infinitude atualizou-se,
realizou-se em sua inteireza e a conta, por força dessa atualização,
comportou-se como se fosse uma entidade discernível. Ela não o é, mas ele
opera com ela como se ela o fosse. É esse fazer-de-conta de que ali, onde
vigorava uma iteração infinita, passasse a existir esse infinito que se
atualiza e, portanto, conta como uma coisa que Russel acha tributário da
imaginação espacial. E é com essa solução que ele não está de acordo. Ele
não concorda com ela sob o aspecto de que ela se suporta numa espécie de
ato de força – o axioma. Para ele, esse criacionismo, conforme ele expressa
na citação, não é muito honesto. Ele retomará a seguir em seu texto a essas
concepções de Dedekind numa direção, segundo ele próprio, construtiva
(RUSSEL, 1901/1981, p. 75).

No entanto, para nós, a solução de Dedekind interessa-nos. E ele é


bem explícito quanto ao que quer dizer sobre do aspecto que nos interessa:

Sempre que tivermos de lidar com um corte (A1, A2) produzido por um
número não racional, nós criamos um novo, um número irracional a, o
qual consideramos completamente definido por este corte (A1, A2); nós
diremos que o número a corresponde a este corte ou que ele produz esse
corte. (Dedekind, 1963, [1901], pp.15, grifo nosso).

Assinalaremos dois aspectos. O primeiro gira em torno do caráter


algébrico das concepções de Dedekind e o segundo diz respeito ao termo
criação por ele utilizado. De um lado, temos um sistema de escrita que é
apto a escrever qualquer número; de outro, temos a reta na qual,
teoricamente, podemos localizar qualquer ponto em correspondência com
qualquer número. Esse sistema de escrita – no caso a escrita decimal – é
uma sintaxe que combina caracteres com caracteres (os algarismos) de
acordo com determinadas regras. Como vimos na seção anterior, podemos
pensar essa sintaxe, essa mecânica de combinar esses sinais,
completamente em separado de qualquer significação, em especial;
podemos ignorar que elas representam o que intuímos como números ou

- 108 -
pontos numa reta. Desse ponto de vista, o sinal 2 indica que podemos
reescrevê-lo como uma fila de letras desde que procedamos de uma
determinada maneira: escrevemos o 1, após o qual colocamos uma vírgula,
depois escrevemos o sinal 4, depois o sinal 1, e assim indefinidamente
( 2 = 1,41...). No caso em apreço, o 2 , nossa reescrita não termina
nunca. A situação é diferente, por exemplo, quando temos o sinal 4 , em
que, obedecendo as mesmas regras estipuladas a respeito do sinal 2,
reescrevemo-lo apenas com um sinal, o algarismo 2. No primeiro caso
temos uma expressão interminável – infinita – e no segundo, uma
expressão finita e mínima, o algarismo 2 ( 4 = 2). É esse caráter
mecânico da escrita que associamos ao algébrico. É um fato, no entanto,
que não lidamos com a escrita desse modo, como uma mera mecânica
destituída de sentido – essa maneira de operar com os sinais seria aquela
que os computadores trabalham. Nós atribuímos significações à escrita, de
forma que ela nunca é vazia e destituída de sentido ou significado. É aí que
entra nossa reta. Ela introduz essa dimensão semântica, ela traz consigo
uma certa intuição de extensão e continuidade. De maneira que, ao
trabalharmos com os números, até mesmo obedecendo cegamente seu
mecanismo sintático, não temos a impressão de estarmos presos a uma
sintaxe; ao contrário, temos a impressão de estarmos aproximando-nos ou
afastando-nos de pontos, de estarmos a percorrer distâncias. Tomemos
como exemplo a seqüência 1, 1/2, 1/3, 1/4 , 1/5 ..., temos a impressão,
conforme vão surgindo os termos, que cada vez mais nos aproximamos do
0. Isto porque interpretamos a seqüência como que colada, mesclada, a
uma reta. Cada termo numérico está associado a um ponto na reta e esta,
por sua vez, sugere, torna sensível, uma certa ordem e uma certa direção
(para o 0) implícita na seqüência. Mas de fato, poderíamos escrever a
seqüência em pauta prescindindo completamente da idéia de que ela se
aproxima ou se afasta de 0. Basta observarmos que cada termo seu é
escrito com o algarismo 1 constando na parte superior sobre uma barra e,

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sob ela, a série natural dos números 1, 2, 3,... .Temos então: 1, 1/2, 1/3,
...1/n+1, 1/n+2, ... . Ou seja, sabemos como escrever cada termo da
seqüência a partir de qualquer outro, vale dizer, possuímos uma estipulação
estrita de determinada regra que gera a seqüência de maneira consistente.
Além do mais, quando associamos essa seqüência com a reta, isto é, com
algo que nos faz compreendê-la no contexto de uma intuição de nos
afastarmos ou nos aproximarmos de algo, no caso, o ponto associado ao 0,
ela de fato corresponde univocamente às divisões na reta. Assim, o
primeiro termo corresponde ao segmento tomado em sua totalidade, ele
corresponde ao 1, à unidade. O segundo termo corresponde à metade, a
divisão da unidade em dois segmentos iguais. O terceiro termo
corresponde à divisão do segmento unitário em três partes iguais, e assim
por diante. Estamos na situação em que o sintático se casa perfeitamente
com o semântico, isto é, cada termo gerado sintaticamente corresponde a
uma certa divisão da reta em tantas partes de tamanho igual e vice-versa.
Portanto, para qualquer divisão da reta em tantas partes iguais,
encontramos um, e apenas um, termo gerado sintaticamente que lhe
corresponde. O casamento é tão perfeito que chega a ser difícil distinguir
entre, de um lado, nossa estipulação literal e sintática, nossa regra de
escrever essa seqüência de frações e, de outro, esse processo de dividir
uma reta em tantas partes iguais de acordo com métodos geométricos.
Estes dizem respeito ao uso da régua e do compasso associado ao fato de
que estes movimentos – cortar, medir, comparar – fornecem-nos uma certa
intuição do que é dividir (cortar uma coisa em pedaços, no caso um
segmento de reta), do que é igual (um pedaço é igual a outro quando se
recobrem perfeitamente e são diferentes quando isso não ocorre), e de
ordem (os pedaços diferentes estão ordenados do maior para o menor).

A importância para a história da matemática dos irracionais diz


respeito precisamente a esse ponto. Foi em torno deles que pela primeira
vez que o homem percebeu não ser perfeito o casamento entre sintaxe e

- 110 -
semântica. Isto é, trata-se de duas ordens que se relacionam mas que nem
sempre andam juntas. É esse fato que está envolvido na noção de corte de
Dedekind.

Os antigos colocaram o problema, mas de fato não puderam sequer


destacar seus termos. Já vimos isso nas seções anteriores. Por isso dizemos
que os antigos mais experimentaram do que colocaram o problema. Eles
experimentaram-no como um impasse, já que colocar bem um problema é
formulá-lo em seus termos constitutivos – e, de fato, isso não aconteceu na
matemática da antigüidade. O incomensurável é justamente a expressão
desse impasse. A demonstração, já conhecida por Aristóteles, de que a
relação entre o lado do quadrado e sua diagonal se expressa num número
que é ao mesmo tempo par e ímpar. Ou, o que é outra maneira de dizer
dramaticamente a mesma situação, é uma relação cujo processo de medir
não cessa nunca, um processo a que sempre somos relançados na exigência
de mais uma estipulação da extensão. Então, essa demonstração é o
testemunho da experiência de disjunção entre o sintático e o semântico.
Mas, nos termos nos quais ela se apresenta para o homem antigo, não é
possível o estabelecimento das distinções necessárias para bem equacioná-
la. Com efeito, o grego não se dá conta de que há algo na utilização mesma
da régua e do compasso, que é completamente opaco, “indiferente”, à
significação, e que é, por isso, estritamente sintático. Enfim, o grego é
como que enganado por sua intuição, dirá Lacan, por seu imaginário. O
problema aparece quando o nível sintático “propõe” algo que excede o que
o nível semântico pode relacionar em correspondência. É isso precisamente
que produz a situação em torno dos irracionais. Vejamos como isso se dá.

Voltemos à escola e consideremos as duas seguintes formas de


escrever números fracionários a partir de números naturais. Aquela em que
eles são expressos por dois inteiros colocados um sobre o outro, isto é, as
assim denominadas frações próprias, em que o termo superior é chamado
de numerador e o inferior, de denominador. Essa forma de escrever os

- 111 -
números racionais não deixa de se fazer acompanhar de uma certa intuição
que gira em torno da idéia da divisão de uma dada extensão. Temos
insistido nisso, por exemplo, 2/3 significa que dividimos uma dada
extensão em três partes iguais e dessas três partes retemos duas delas, ou
seja, consideramos dois terços, tendo cada um terço uma função análoga à
da unidade. Mas podemos converter essa forma de expressão em sua
expressão decimal, no caso de nosso exemplo, 2/3, podemos expressá-lo
como a dízima periódica 0,666... . A expressão decimal realiza
efetivamente o algoritmo de divisão e expressa o número como uma fila
infinita do algarismo 6 que se coloca após um 0 seguido de uma vírgula.
Essa representação cria imediatamente um embaraço, enquanto a primeira
forma não. Essa útima expressão, o 0,666..., refere-se a que ponto na reta?
Isto é, como representar na reta um número que não termina, um número
constituído de uma infinidade de 6s? Felizmente, somos socorridos a tempo
porque sempre que estamos diante de um número infinito desse tipo
podemos reescrevê-lo como um número finito pelo primeiro método, isto
é, como uma fração própria – e através desta relacioná-lo univocamente a
um ponto ou a uma extensão da reta.

Mas não é esse o caso em relação ao 2 . Nesse caso, ocorre um


fenômeno importante. Sempre que realizamos o algoritmo da divisão,
quando a conta não termina nunca porquanto a existência de um resto
exige a reiteração da operação, podemos estar certos de que alcançaremos
uma dízima periódica. E o que é uma dízima? É uma certa seqüência de
algarismos que se repetirá indefinidamente após um determinado número
de iterações do algoritmo da divisão. Nessa seqüência pode constar apenas
um algarismo como no caso do 6 em relação ao 2/3 e sua expressão
decimal, 0,666...; podemos encontrar outras variações que também são
dízimas, uma em que, após uma seqüência irregular de algarismos, advém
uma seqüência repetitiva (por exemplo, 0,2326666...)e outra em que uma
seqüência irregular se repete (por exemplo, 43674367...).

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As dízimas são números “infinitos”, mas, como aprendemos no
primário, por meio de uma regra, podemos expressá-los em termos de
frações, podendo relacioná-las univocamente à reta. O número irracional, a
respeito dessas situações, representa uma circunstância inusitada. É que a
expressão , como a barra nos números racionais, indica uma operação
(a divisão), no caso, a de radiciação, e ela deveria nos fornecer a tradução
do 2 em termos de sua expressão decimal. De fato ela faz, mas não nos
fornece uma expressão decimal com um número finito de termos,
tampouco nos fornece uma dízima – uma seqüência de algarismos que se
repetem periodicamente –, o que nos possibilitaria relacioná-lo a uma dada
fração própria. Ele libera uma seqüência de algoritmos na qual só podemos
conhecer o n-ésimo termo se realizarmos efetivamente a operação. E nesse
caso, essa expressão infinita não pode ser localizada na reta porque, como
ela não termina, e, do fato de não termos meios de traduzi-la numa
expressão racional, finita, ela não tem, então, onde “cair” na reta, cair em
um lugar só seu, único e específico.

Além do mais, aparecem outras situações ainda mais complicadas


do que essa. Números como o 2 são conhecidos também como números
algébricos. São números referidos a um determinado radical. E, nesse caso,
eles não representam uma situação tão monstruosa assim porque podemos
calcular cada termo a partir de termos anteriores. Isto é, conhecemos a
regra que determina a construção de suas expansões decimais infinitas –
por essa razão, esses números também são denominados computáveis
porque para ele podemos calcular uma quantidade indefinida de seus
termos, embora não possamos calcular todos eles. O fato é que existem
números não-computáveis na acepção acima, números para os quais não
podemos calcular sua expansão, mesmo sendo também tais números um
“efeito” de escrita (PENROSE, 1989/1991, p. 31-107).

Mas, para nossos propósitos aqui vamos nos deter apenas no caráter
infinito dos irracionais, de eles não possuírem uma expressão finita. Ora,

- 113 -
qual é o estatuto desses números “infinitos”? Não é o caso de eles
quebrarem a correspondência unívoca em relação à reta. Porque esse
número infinito gerado pela operação corresponde, na reta, a um processo
no qual também temos de dividi-la infinitamente. Assim, essa
correspondência é mantida de forma negativa. Quer dizer, cada ciclo da
operação sintática, que engendra um novo termo, corresponde a um
processo também iterativo no campo da geometria. Também nesse campo,
uma seqüência infinita de gestos – as medições com régua e compasso –
coloca-se como uma exigência necessária. As duas ordens – aritmética e
geométrica – ao invés de produzirem uma positividade limitada,
reproduzem a cada ciclo da operação a necessidade de mais um ciclo,
indefinidamente.

É aí que entra o conceito de corte de Dedekind. No lugar da


negatividade, ele estipula uma positividade: o número irracional. A
seqüência dos racionais possui “furos”, quer dizer, a reta não se completa
no campo dos números racionais. Faz-se necessário a convocação de mais
um tipo de número, cuja postulação vem preencher uma necessidade de
completude semântica – a exigência da reta ser uma entidade sem furos,
sendo absolutamente contínua. A criação de mais um tipo de número no
lugar onde antes emergiam apenas impasses, satifaz essa necessidade. O
suposto número, o número “inventado”, obedece às mesmas leis algébricas
que os números “não-inventados”, ou seja, 2+ 2=2 2, 2´ 2 = 2,
2 ÷ 2 = 1 , etc. Ele pode ser tratado em inúmeras situações como um
número finito. Mas para ele ser bem caracterizado quanto à sua função
algébrica, toda uma série de concepções referidas hoje em dia ao campo da
topologia geral tiveram que ser desenvolvidas para o equacionamento
daquelas situações em que a conformação numérica envolve a infinitude.
São as noções que compõe o campo da análise matemática e que giram em
torno da problemática do erro, da aproximação, dos limites, das
vizinhanças, das fronteiras, etc (Dieudonné, 1987, p. 151-153). Enfim, a

- 114 -
postulação de Dedekind situa a noção de número, em função do que
sustenta sua semântica usual, na exigência de expressar algo “inteiro”, algo
que é, algo que, por ser, é discernível então na completude: o número
irracional completa a reta real.

Interessa-nos o modo como ele realizou seu passo. Ele se desloca da


positividade da extensão e a situa em sua negatividade como corte, como
lacuna. E é dessa ausência de ser, que é a lacuna, que ele afirma a
positividade do irracional que completa a reta real. O número é então a
pura idealidade referida ao corte, àquilo que no campo da extensão é
subtração, é negatividade – repetimos: lacuna.

Podemos ver, no entanto, que essa coisa-infinita-suposta, o 2, é


gerada apenas porque entramos num processo evidentemente iterativo. Não
estamos diante de um problema verdadeiramente prático, ou
imediatamente prático. Nas situações ordinárias, ninguém perde tempo
com a infinitude. Valendo-se de seu próprio bom-senso, as pessoas
aproximam, praticam aproximações. Mas a questão da infinitude é
absolutamente interna ao sistema de escrita, no qual se expressa e se
confunde a matemática. A escrita muitas vezes não acompanha o concreto,
vai além dele, mantendo, contudo, a suposição de que está situada em seu
plano – esse do concreto – e que as coisas escritas se corresponderão com
coisas dadas no concreto. O número irracional completa a reta real, ele
restabelece, num outro nível, (a escrita como idealidade, em
correspondência absoluta com o vazio de sua significação que é a “coisa-
nenhuma” contida na lacuna) a positividade da extensão, agora declinada
como continuidade da reta. Outro nível porque a realidade do irracional é
“fictícia”, é “inventada”. É a escrita que excede a realidade representativa,
é ela que nos obriga a supor a existência de uma insuficiência no campo da
realidade, da nossa realidade enquanto representada.

Entretanto, não se trata exatamente de insuficiência. O sistema de


escrita numérica é suficientemente expressivo para poder gerar entidades

- 115 -
que não possuem interpretação, semântica, em relação ao, e no, concreto
imediato e que exigem um mundo virtual, onde coisas impossíveis ou
improváveis estão supostamente atualizadas, realizadas68.

É essa criatividade do significante que interessa à psicanálise em


relação à matemática. A matemática isola e depura na forma da letra a
potência criativa da linguagem. Na aridez de sua articulação, na economia
de seus termos, ela expõe como o significante ultrapassa o campo da
experiência e o potencializa em figuras as mais exorbitantes – ela força
então nossas possibilidades de significar as coisas. Ela apresenta todo um
universo de criaturas fantasmáticas e fantásticas, que são efeitos de fato do
acréscimo “criativo” intrínseco à nossa chance de estarmos constituídos
numa combinatória cujos elementos foram tomados da experiência, mas
que a distância em relação a ela é infinita.

A verdade é que o semântico não pode ser inteiramente separado do


sintático. O ato de postular diz respeito a esse fato. É óbvio que um
conteúdo inesperado passa a entrar em linha de consideração após o ato de
postulação e em razão dele. O ato de postular não é neutro, ele carreia uma
pretensão expositiva, o que para nós, psicanalistas, é indicativo de algo que
diz respeito ao campo de desejo.

Voltando a nossos números. A continuidade da reta, o fato de ela


ser completa não está simplesmente no fato de, entre dois números reais,
sempre existirem uma infinidade de outros números reais. Essa
propriedade também está presente nos números racionais e recebe o nome
de densidade. Os números reais respondem por uma conversão da extensão
à pura negatividade. Em essência, eles são positivações de buracos
acarretados por operações supostamente limitadas aos inteiros e racionais,
como é o caso, dentre muitas, justamente da operação de radiciação – uma

68
Outros exemplos importantes dessa “criatividade” matemática encontramos em
relação aos números complexos e à geometria não-euclidiana. Ver o artigo de A. D.
Aleksandrov (1956/1982, vol III, p. 123-227), “Geometrias Não-Euclidianas”.

- 116 -
operação que visa detectar a medida comum. Com a invenção implícita no
postulado de Dedekind reconhecemos o desmedido – aquilo que não se
deixa apanhar e que, a cada tentativa de se apanhá-lo, reitera a exigência de
mais uma etapa, de mais um esforço de busca. O desmedido até um certo
ponto é conservado como tal na noção de infinito. Mas, ao positivarmos os
números irracionais, atualizamos o infinito e podemos então discriminar
entre o vários números “infinitos”, como este ou aquele número real, uma
entidade em acordo com princípios algébricos fundamentais, com as quais
podemos lidar como se fossem coisas positivas e inteiras.

Por ora nos deteremos nessas considerações sobre os números,


bastando apenas ainda mencionar que a solução de Dedekind – e aí reside
seu valor para a matemática como um todo – teve uma repercussão
bastante abrangente no campo da matemática. Ela fixa um outro patamar
na história dessa disciplina. O que nos interessa é o modo como ele
freqüentou o pensamento de Freud. Na fundamentação dos números reais
estão em jogo justamente determinados instrumentos essenciais da ciência,
aos quais ele aderiu sem possuir a menor compenetração desse fato.

- 117 -
CAPÍTULO V

PENSANDO FREUD COM A MATEMÁTICA

Freud e o Corte

O primeiro tema a ser abordado é o modo como podemos


estabelecer uma relação entre as entidades com as quais a psicanálise lida –
basicamente amostras de verbalizações das pessoas obtidas em
circunstâncias específicas, a assim denominada associação livre – e o que
estabelecemos a respeito do contínuo, da geometria, da álgebra, etc.
anteriormente. O que nesse material aparentemente caótico, que é o da
narrativa sobre a vida das pessoas, pode ser assimilado a pontos, extensões,
algarismos, etc. e qual a relevância dessa assimilação?

Iniciemos com a segunda pergunta, sobre a relevância da associação


entre conceitos psicanalíticos e a matemática. Sob um certo aspecto, essa
pergunta não tem nenhuma originalidade, nem mesmo pertinência. Tendo a
psicanálise alguma pretensão científica, e científica na acepção moderna –
e sob a pena de Freud, ela tinha essa pretensão –, essa pergunta já está de
alguma maneira respondida. A ciência moderna caracterizou-se justamente
por ter tido êxito em associar variações observadas em determinados
recortes da realidade a determinados conjunto numéricos e às operações
admitidas por esses conjuntos. Em especial, destacou-se em sua
constituição, como temos insistido, a elaboração do corpo dos números
reais. Em relação a esse conjunto numérico, como mencionamos, trata-se,
de uma estrutura matemática básica. Os fundamentos da Análise
Matemática e do Cálculo Diferencial estão relacionados a esse conjunto.
Uma enormidade de conceitos científicos estão articulados a esse corpo
numérico e são impensáveis se não estiverem referidos a ele de algum
modo.

- 118 -
Tomemos, por exemplo, o conceito de massa e o consideremos sob
um ponto de vista fundamental. Façamos um exercício de imaginação e
perguntemos o que autorizaria legitimamente um físico a fazer uma
formulação que associa, por exemplo, o número 100u (cem unidades de
uma medida de massa qualquer) às coisas que estão no meu quarto. Como
a água que está no copo, os livros na estante, o colchão, o armário, enfim,
como todas essas diversas coisas podem ser homogeneizadas e associadas
univocamente ao número 100u? Observemos que a resposta ginasiana de
que as coisas, sendo corpos, isto é, poções ou quantidades limitadas de
matéria, pertencentes a um mesmo fundo comum, podem por isso ser
somadas não é suficiente para responder a pergunta.

Já os antigos tinham a idéia de reduzir a diversidade das coisas a


uma ordenação de apenas um elemento – no caso, os atomistas – ou a uma
composição de uns poucos elementos – terra, fogo, ar e água. Mas nenhum
formulou o conceito de massa, que é um conceito recente e atinente à
mecânica clássica. Por quê? Justamente porque eles não possuíam o
contínuo numérico. Portanto, não podiam associar univocamente
quantidade de matéria a um cálculo que correlaciona seus valores a certas
variações da qual ela é uma função – no caso a força e a aceleração –, já
que F = m.a (força é igual ao produto da massa pela aceleração). Logo, m
= F/a.

Entendamos por que Freud, não tendo nenhum conhecimento


específico de matemática, tenha feito uso do único recurso à sua mão para
se apropriar do categorial científico a fim de abordar seu objeto de
pesquisa. Esse recurso não podia ser outro, como já antecipamos, senão
uma redução fisicalista. Vale dizer, é sob uma roupagem fisicalista –
mecanicista ou termodinamicista, não importa – que Freud tratará das
variações concernentes à sua investigação. E ele é bastante criterioso a esse
respeito. Vejamos como e por quê.

- 119 -
De saída, Freud tem uma dificuldade fundamental, uma dificuldade
que é a de todos nós e que foi também observada na história. É a
dificuldade em admitir os irracionais, isto é, a dificuldade em ultrapassar a
exigência de estarmos sempre referidos a entidades positivamente extensas
e finitas. É daí que ele parte. E isso é muito curioso, porque poderíamos
supor que, ao adotar a mecânica de Newton como modelo, ainda no
Projeto... (1895b), ele estaria dessa forma comprando o pacote inteiro. Na
medida em que a mecânica pressupõe, num nível fundamental, o corpo dos
números reais, sem o saber, Freud estaria assumindo as implicações dessa
importação. Mas não é bem esse o caso. Na verdade, ele terá muita
dificuldade em situar a psicanálise em relação à interrogação implícita na
idéia de número real. Por outro lado, nossa tese justamente é a de que a
psicanálise surge no exato momento em que Freud toma a posição em
relação a essa interrogação, de incorporá-la sob um certo aspecto.

O ponto de partida de Freud é aquele exposto nos livros Estudos


sobre a Histeria (1895a) e no Projeto para uma Psicologia Científica
(1895b), ambos do mesmo ano. Foquemos a histeria. Ele a aborda de
várias maneiras que nem sempre são compatíveis entre si. Alguns
supostos, porém, são gerais. Um deles, a suposição de que a doença
histérica é conseqüência do modo de funcionamento do psiquismo, já nesse
momento entendido por ele como uma “máquina” que manipula certos
itens, as representações. Tal manipulação condiciona os processos de
descarga de um certo tipo de energia – de natureza biológica e sexual – e
de ação motora. Sua unidade de análise é o sintoma histérico. Como ele o
entende? É um processo dissociativo, quer dizer, uma conseqüência de um
mecanismo que operou uma separação onde essa separação, numa situação
normal, “saudável”, não existiria – uma parte do psiquismo adquire uma
espécie de autonomia (dissocia-se) em relação ao sistema psíquico como
um todo.

- 120 -
Qual é a conseqüência dessa interrupção? É simples, aquilo que
deveria escoar por uma via normal, aquela que seria percorrida caso não
tivesse ocorrido a interrupção, é escoado por uma outra via. Esse caminho
alternativo de escoamento Freud nomeia de processo conversivo, ou
conversão simplesmente. No caso da histeria e da conversão – os dois
conceitos se implicam mutuamente – esse escoamento aternativo é na
direção do corpo, mais precisamente das “enervações corporais”, ou ainda,
dos representantes psíquicos do corpo – eis, então, o sintoma histérico.

Assim, vê-se que o sintoma histérico está referido a uma espécie de


processo de descarga e de ação. Mas por que os processos referidos ao
sintoma são anormais, patológicos? Qual é o critério para analisá-los? Por
que o sintoma, enquanto processo de descarga e ação, não produz a
satisfação ou o equilíbrio esperado de uma verdadeira ação. Verdadeira
ação, aquela que se realizaria por um processo de descarga normal, aquele
que se realizaria sem interrupções, ou pelo menos sem as interrupções de
uma determinada classe, dita patógena.

Conversamente, somos obrigados a inferir que um processo de


descarga e de ação normais deveria ter como conseqüência uma certo
contentamento, ou pelo menos, um mal-estar tolerável e manejável em
função das disponibilidades do ambiente. Entretanto, quando olhamos mais
de perto o que vem a ser esse signo de anormalidade, principalmente nas
descrições dos casos clínicos, verificamos que ele se desdobra em duas
figuras. De um lado, numa certa modulação do sintoma – os sintomas
desaparecem por uns tempos e depois retornam, transformam-se. Por
exemplo, uma paralisia cede lugar a uma anestesia, o paciente queixa-se de
uma anestesia que está afetando uma outra parte do corpo antes não afetada
e assim por diante. De outro lado, na presença relatada de um certo
sofrimento que insiste e assinala para o sujeito uma certa incompatibilidade
para consigo mesmo e também em relação a seus próximos e aos
infortúnios reservados pela vida.

- 121 -
Sabemos que Freud não reage do mesmo lugar em que a histérica o
coloca, enquanto representante do Outro, em derrisão. Ele toma a sério o
queixume histérico, deixa-se levar pela deriva que ele propõe. E nesse
tempo, ele o toma como um fato natural, como evento a explicar. Coisa
curiosa, é muitos defensores e críticos de Freud sublinharem essa ontologia
naturalizante que ele abraça – uns a elogiam, outros a detratam – sendo ela
em si mesma, na verdade, um fato secundário, sem muita importância
intrínseca para a psicanálise. Mais espantoso ainda é que poucos tenham se
detido no fato de que, com esse categorial, limitado ou não, pouco importa,
Freud,através da psicanálise, tenha operado um curioso corte e uma
passagem de nível em relação a determinadas ordens de fenômenos: o de
situar o campo da significância, campo articulado pela linguagem, como
concernindo ao real e não apenas à representação do real.

Vale dizer, para a psicanálise, a linguagem não nos fornece apenas


as razões para esta ou aquela atitude ou ato, ela diz respeito às causas. Em
Freud, é desse modo que ele inicia sua conceitualização, a função do jogo e
da dinâmica das representações, seus mecanismos, seus efeitos, é realizar
um tipo de “homeostase”, um análogo de equilibração das coisas psíquicas
tomadas como se fossem processos bio-físicos. Em tais processos, a
produção de significações e sentido é correlata e contemporânea de um
“metabolismo”, de um jogo econômico supostamente real, isto é, detentor
de efetividade. Como não ver nesse ataque aos fenômenos, nessa
“metodologia”, o anúncio de toda uma reflexão que dispõe, de um lado, o
que responde pelo contínuo e, de outro, o que responde pelo discreto? O
contínuo é a energia, ente que se relaciona a ele de forma direta e concisa.
Já o discreto é o ideacional69. Como não ver nessa “metodologia” aqueles

69
Freud inicia seu livro Mal-Estar na Civilização de 1930 de uma forma que sugere sua
posição em relação ao que estamos tratando. Ele se refere a seu amigo Romain Rolland
a quem enviou seu livro Futuro de uma Ilusão e de quem ele recebeu uma resposta que
justamente ele está a comentar no contexto que citamos a seguir. “Acredita ele [Romain
Rolland] que uma pessoa, embora rejeite toda crença e toda ilusão, pode corretamente
chamar-se a si mesma de religiosa com fundamento apenas nesse sentimento
oceânico.As opiniões expressas por esse amigo que tanto respeito, e que outrora já

- 122 -
elementos que podem ser arranjados, articulados, nos termos de uma
sintaxe?

Muito claramente, desde o inicio de sua obra, Freud nunca supõe


que possamos lidar com o contínuo – a energia70 – diretamente,
prescindindo da mediação do discreto – as representações. Isto é, como
alguém em consonância com o movimento da ciência em seus níveis mais
fundamentais, ele ataca o contínuo com o discreto.

Detenhamo-nos por ora no mecanismo em que está baseada a


produção sintomática. Observamos então que o recalque é, nesse
momento, concebido como uma operação, isto é, como uma seqüência
finita de eventos concatenados incidentes exclusivamente nos conteúdos
ideacionais que fazem a mediação do contínuo – dos elementos que,
portanto, controlam os processos de descarga e de ação referidos ao
contínuo energético.

O sintoma pressupõe a seguinte seqüência de eventos. A


continuidade do fluxo energético, entendida como seu fluir sem problemas,
é função da disponibilidade dos conteúdos ideativos que lhe servem de
mediação. Por alguma razão, que resta a explicar, esse fluxo é
interrompido, ou truncado, porque um determinado conteúdo ideacional
não pode comparecer em seu lugar para garantir o fluxo em seu
movimento normal. O fluxo então é escoado por um caminho patológico,

louvara a magia da ilusão num poema, causaram-me não pequena dificuldade. Não
consigo descobrir em mim esse sentimento ‘oceânico’. Não é fácil lidar cientificamente
com sentimentos. Pode-se tentar descrever os seus sinais fisiológicos. Onde isso não é
possível — e temo que também o sentimento oceânico desafie esse tipo de
caracterização —, nada resta senão cair no conteúdo ideacional que, de forma mais
imediata, está associado ao sentimento.”
70
Freud toma energia como modelo de continuidade; agora, fenomenologicamente ele
supõe a continuidade em relação a entes psicológicos tais como afetos e sentimentos –
como mostra a nota acima. A atitude vivamente negativa de Freud em relação aos
sentimentos deve-se sobretudo a que ele não admite, por princípio, que possamos
manejar o contínuo diretamente, sem a mediação do discreto, isto é do ideacional – para
ele, de fato, aquele que crê manejar diretamente com esses entes deve ser reconhecido
como místico. Uma outra questão é de se saber da propriedade, da validade, em ele
assimilar esses fenômenos psicológicos à categoria do contínuo. O que o autoriza a isso?
Qual é a evidência que ele tem para justificar minimamente essa assimilação?

- 123 -
aquele que traduz as manifestações corporais conversivas histéricas
(paralisias, analgesias, anestesias, dores, alucinações, etc.). O sintoma
acontece porque a energia é investida numa certa idéia que não pode mais
participar do trajeto pelo qual ela deve escoar. Em razão do trânsito
impedido, essa energia tem que encontrar uma via alternativa de
escoamento. Será essa via alternativa a que estará em jogo na conversão
histérica.

Para dar inteligibilidade a essa construção, Freud constrói o


seguinte cenário. Sua idéia é a de que o psiquismo é uma espécie de
superfície sobre a qual um fluido escorre, tal como, por exemplo, uma
montanha sobre a qual a água da chuva corre em diversas direções. Em que
direções a água vai escoar? Nesse ponto intervém um conceito matemático
com o qual Freud opera mas sem fazer a menor idéia desse fato, de uma
forma inteiramente intuitiva. É o conceito de geodésica.
(ALEKSANDROV, 1956/1981b, vol. II, p. 75-141) Evidentemente não
trabalharemos esse conceito aqui, mas é inevitável termos uma certa
intuição do tipo de situação a qual ele convém.

Aprendemos na escola que o caminho mais curto entre dois pontos


é a reta. Infelizmente, essa intuição tão óbvia para nós nem sempre é
verdadeira. Isso depende das propriedades do espaço onde consideramos
os eventos. Tomemos então nossa montanha como um espaço de duas
dimensões. Isto no sentido de que, entre dois pontos da montanha, a água
não pode voar, nem perfurar a rocha para percorrer seu caminho. Ela tem
de se “curvar” à superfície; sua movimentação é completamente aderente e
rente a esse chão onde só são possíveis os movimentos para frente, para
trás e os laterais. Que caminhos ela escolherá para fluir? Podemos supor
que essa escolha é aleatória, mas nem sempre o é. É possível calcular para
uma dada superfície as linhas de escoamento possíveis. Essas linhas
formam uma rede compacta e hierarquizada porque, a cada “momento” da
relação entre as quantidades de fluido e as irregularidades da superfície,

- 124 -
temos uma configuração a que podemos recorrer. Nossa tendência é pensar
que a distribuição da água será aleatória. Embora saibamos, por
experiência, que a água tende a dirigir-se para baixo, e, por essa razão, ela
sempre corre pelo caminho que a conduza para baixo mais facilmente.
Numa área muito grande, as possibilidades de ela se espalhar e correr são
tantas, em função das irregularidades, que preferimos considerar que sua
distribuição pela superfície da montanha é aleatória. Mas não é.

Pode-se calcular, em princípio, as possíveis distribuições de água


pela superfície. Muito bem! As geodésicas são os caminhos mais curtos,
levando em conta a topografia nos diversos pontos da superfície, pelos
quais a água pode escorrer. As geodésicas não são o que intuímos como
retas, mas parecem ser. Numa superfície irregular elas são os caminhos
mais curtos entre dois pontos. Se encaramos as irregularidades da
superfície como constitutivas do nosso espaço bidimensional, então as
geodésicas são retas intrínsecas à superfície em questão. Elas só não são
retas em referência a uma superfície ideal, perfeitamente plana e lisa – caso
em que de fato a distância mais curta entre dois pontos é o que intuímos
por reta. Mas, se “amassamos” esse plano, introduzirmos irregularidades,
ainda assim aquela reta, agora tornada meio curva, meio irregular,
continuará a ser o caminho mais curto entre os dois pontos. Eis, em poucas
palavras a intuição do que seja uma geodésica.

É imediato, para quem tenha lido o Projeto..., que as ditas trilhas


são geodésicas. Daí porque na tradução inglesa elas serem chamadas de
facilitações ao invés de trilhas termo escolhido pelos franceses e,
especialmente, por Lacan. É por se tratar de trilhas nessa acepção – de
serem geodésicas71 - por serem os caminhos mais “curtos”72, numa dada

71
A tradução inglesa privilegia o caráter mais “curto” das geodésicas, daí o termo
facilitação. Já Lacan privilegiou o aspecto da conectividade, daí ele preferir as trilhas.
72
“Curto” não remete necessariamente à distância tal como a entendemos usualmente.
Se a energia “escolhe” um caminho, e não outro, por exemplo, porque num, a barreira
de contato é menos resistente à passagem de energia do que noutro neurônio. Essa maior
ou menor resistência à passagem de energia das barreiras de contato pode ser entendida,

- 125 -
área, para a passagem de energia (que Freud concebe como uma espécie de
fluido) que incide localmente em áreas determinadas. A passagem de um
fluxo de energia privilegia os caminhos mais “curtos”.

Isto posto, temos de relevar o fato de Freud pensar os mecanismos


em jogo na neurose como se o nosso psiquismo fosse um tipo de espaço –
a rede neurônica – como o descrito acima. O que nesse espaço diz respeito
ao contínuo e o que diz respeito ao discreto? O contínuo é mais simples de
abordar nesse momento. É a energia. O aparelho psíquico enfrenta duas
frentes energéticas: a que deriva do interior do organismo e a que se
origina no mundo exterior. E o discreto? Sublinhamos que, para Freud, o
discreto comanda, dirige, o contínuo, o fluxo energético. Em relação ao
“cérebro” por ele proposto, o discreto são os caminhos, as conexões
neurônicas, que, por sua vez, ele correlaciona às idéias, as representações,
que, como tais, têm determinadas propriedades. A principal é a que
caracteriza os conjuntos de entidades discretas. Essas coisas todas, trilhas,
conexões-entre-elas, idéias, associações, etc., são entidades contáveis.

Posso, portanto, associar um número natural a cada idéia, ou


conjunto neurônico a ela associado. Ou seja, a cardinalidade do campo do
ideacional, no primeiro momento da teorização de Freud, é a dos números
naturais no sentido de que podemos enumerar as idéias. Estas, ou
associações, ou ainda pensamentos73, podem ser infinitos, mas são
discerníveis um a um. Em resumo, o que responde, na rede neurônica, pelo
contável-discreto são as trilhas-idéias-representações-pensamentos, nossas
geodésicas. É evidente também que os pontos de encontro entre os
neurônios, as “barreiras de contato”, e os próprios neurônios também são
contáveis.

contabilizada, como um fator de distância, embora elas não sejam um comprimento,


uma extensão. É como se a maior ou menor permeabilidade dos neurônios à passagem
de energia pudesse ser entendida como elemento da topografia estranha desse espaço
igualmente estranho, que é a rede neurônica.
73
Freud não tem um vocábulo único para designar os elementos discretos.

- 126 -
Vejamos então o que Freud construiu com seus pretendidos
conceitos “neuro-fisiológicos”. Ele havia definido logo na parte inicial do
Projeto, quando trata do problema da qualidade, o nível do contínuo, ao
situar a realidade física, o mundo “exterior”, como massas em
movimento74. Isso é o contínuo. Não é simplesmente o contínuo da nossa
intuição em relação aos fenômenos físicos. É o contínuo físico (nossa
intuição do contínuo) enquanto já mediatizado pelo conceito de número
real, isto é, trata-se do contínuo físico processado, configurado, suportado,
pelo contínuo matemático (o contínuo “aritmetizado”)75. É claro que a
expressão “massas em movimento” remete a Newton. No entanto, a única
coisa que importa no “fisicalismo” de Freud, é o fato de, através da física,
ele ter introduzido no campo psicanalítico as estruturas matemáticas
mínimas, como esquemas de pensamento, para articulá-lo. O que a rede
introduz? Ela introduz uma série articulada de cortes, de separações, no
contínuo. E esses cortes se dão a vários níveis. Façamos um inventário
deles.

O primeiro corte está no fato mesmo de ele propor a idéia de rede.


A rede é como se fosse uma barragem, uma separação, um adiamento76
nesse fluxo ininterrupto das “massas em movimento”. A rede corta essa
“maçaroca”, essa massa homogênea ou caótica, tanto faz, compacta, de
várias maneiras. Ela expulsa ou reflete a energia funcionando, assim como
um tampão – é a função dos neurônios Φ, os “neurônios perceptivos”. Em
seguida, a rede representa uma exigência para as “massas em movimento”
de estreitamento, de redução. Por quê? De fato, ela não interrompe o fluxo.
74
Ver citação no início deste capítulo.
75
Poincaré (1902/1968, p. 47-60) formula do seguinte modo nossa intuição do contínuo
físico. Nossos orgãos do sentidos podem nos forçar à seguinte situação paradoxal: uma
experiência A é idêntica a uma experiência B; e esta experiência B é idêntica a uma
experiência C. Isto é, não percebemos nenhuma diferença entre, de um lado, A e B e, de
outro lado, entre B e C. Mas percebemos uma diferença entre A e C – o que contraria o
princípio segundo o qual se uma coisa A é igual a uma outra coisa B, e se essa coisa B,
é, por sua vez, igual a uma outra coisa C, então a coisa A e a coisa C também deveriam
ser iguais. O que “resolve” eese impasse é a fundamentação matemática do contínuo.
76
Ver PAES de BARROS (1971/1998, p. 26).

- 127 -
O fluxo continuará a existir, mas agora ele se limita aos canais, às
conexões prescritas pela rede. Se essas “massas em movimento” a cada
instante saturam o espaço todo no qual elas estão contidas, com a rede elas
cedem espaço justamente para a rede; as “massas em movimento”, ao
atingirem o aparelho terão que caber, terão de se reduzir aos canais
prescritos por ela. Finalmente, as conexões neurônicas são impermeáveis
relativamente à passagem de energia. Isso quer dizer que a energia não se
distribuirá homogeneamente no interior da rede, no sentido de, a cada
trilha, encontrarmos a mesma quantidade de energia. Existem diferenças
quanto à permeabilidade, à passagem da energia pelos neurônios –
justamente as ditas “barreiras de contato”. E o fato da energia se distribuir
desigualmente pela rede, “escolhendo” esta ou aquela via, e não essa ou
aquela outra, corresponde justamente à nossa organização de memória – é
por esse razão que explicitamos o conceito de geodésica anteriormente.

Então, sem entrarmos no mérito de verificar se esses cortes de que


estamos falando têm a ver com o que descrevemos mais acima sobre corte
de Dedekind, é bastante claro o caráter de suspensão, de adiamento, de
interrupção, na rede proposta por Freud. E como energia é alguma coisa
que exige trabalho, que produz trabalho – isto é, algum tipo de atividade –
nosso sistema, por ser uma passagem para a energia, é um sistema
dinâmico que produz um certo tipo de trabalho. Trabalho esse cujas
manifestações psicológicas de toda ordem são o signo. Observamos, então,
que a proposta freudiana é uma manobra conceitual que visa associar uma
estrutura, cujos elementos são enumeráveis (a rede), a uma entidade, as
“massas de energia em movimento”, que, em princípio, são heterogêneas a
essa estratégia de ataque. Essas massas, em si mesmas, não são abordáveis,
elas são como que um puro fluir, são um continuum77. A estratégia de

77
É claro que “energia” em Freud está referida à narrativa dos pacientes. “Energia”,
“contínuo” são, num certo sentido, essa narrativa ela própria. É essa narrativa, louca,
estranha, implícita nas formações do inconsciente – sonhos, atos falhos, esquecimentos,
etc. É também a loucura, a desordem, dos sintomas e das vidas dos sujeitos tais como
são narradas e observadas na situação analítica. É essa “maçaroca” – esse termo é de

- 128 -
Freud ao propor a rede, permite que abordemos essas massas através da
interação delas com a rede. Ele considera, no momento em que escreve o
Projeto..., que a subjetividade, nada mais é do que essa interação mesma.
São de Freud as seguintes palavras, exatamente nesse sentido no Projeto...:

Enquanto que no mundo exterior os processos constituem um continuum


em duas direções, tanto em ordem de quantidade como na do período
(qualidade), os estímulos que lhes correspondem são, segundo a
quantidade, em primeiro lugar reduzidos e em segundo lugar limitados por
um corte; e segundo a qualidade são descontínuos, de maneira tal que
certos períodos não podem atuar como estímulos. (1895b, p. 358).

Retomemos então o tema do sintoma. Nessa época, 1895, Freud


ainda não propôs a idéia de inconsciente propriamente dito. Ele fala em
dupla consciência ou dissociação. O sintoma é uma descarga alternativa,
uma espécie de ação truncada. A energia que corria por uma trilha A, em
razão de algum evento, não pôde mais percorrer esse caminho, escoará
então pela trilha alternativa B. O que determina a mudança de rota? Temos
uma “lembrança traumática”, isto é, uma lembrança de um evento que
produziu a necessidade do desvio. O que produz essa necessidade é
pensado ou como trauma – algum acontecimento disruptivo ocorrido na
realidade – ou como estado hipnóide, ou ainda uma mistura de ambos
fatores. Então, à “memória traumática” corresponde um evento disruptivo
ocorrido no mundo exterior. Esse evento disruptivo é traumático porque
produz um acréscimo de energia no sistema. Esse acréscimo excede à
capacidade de drenagem dada naquele instante, criando imediatamente a
exigência de novas vias, ou trilhas, serem estabelecidas para o escoamento;
na verdade, ele é disruptivo justamente por implicar esse acréscimo
excessivo.

Marx quando ele caracteriza o capital como trabalho acumulado (MARX) – que para
Freud é o contínuo enquanto dado, análogo ao contínuo físico tal como o caracteriza
Poincaré. Esse contínuo, como tal é inabordável porque ele trunca a possibilidade de
discernimento – como o contínuo físico descrito por Poincaré. A rede neurônica, nada
mais é do que a “matemática” necessária para dotar esse contínuo de alguma
possibilidade de ordenação para que ele possa ser abordado conceitualmente.

- 129 -
O acréscimo excessivo tem uma qualidade “penosa” – o que é
postulado, que se impõe como tal por deter uma certa evidência. Daí ser
denominado de traumático, porque é assim que os neurônios ω – aqueles
que traduzem períodos em qualidades – interpretam os acréscimos: a partir
de um certo limite, os acréscimos são experimentados como desprazer. É
importante sublinhar, no entanto, que não é a dor ou desprazer em si
mesmo enquanto qualidades, que determina qualquer coisa. A
determinação está situada inteiramente do lado da interação entre a rede e o
acréscimo energético – a dor ou o desprazer é apenas a qualidade refletida
no sistema ω desses processos.

As qualidades de dor e desprazer terão, entretanto, um lugar na


determinação numa etapa subseqüente, na prova de realidade. Nesse
momento, a qualidade do desprazer ou da dor enquanto efeito de um
processo que traduz quantidade (excesso energético) em qualidade
(desprazer/dor) passa a ter uma efetividade como informação, como
qualidade, deixando de ser o mero epifenômeno, efeito de tradução entre
quantidade e qualidade. Mas, consideremos a pergunta: dor e desprazer são
a mesma coisa? Isso não é tão simples.

A experiência de dor cria uma situação paradoxal. De um lado, ela


tem de ser evitada – a exigência de ser evitada está no núcleo da idéia de
defesa. Isto significa dizer que, se a experiência traumática é uma trilha, ou
um circuito delas, então, esses caminhos, devem ser evitados. De outro
lado, se como dor ela é a expressão qualitativa de um excesso quantitativo,
ela então forçará uma nova trilhagem entre neurônios antes não existente.
Curiosamente, em Freud, é como se qualquer processo verdadeiramente
criativo ou inovador jogasse com a dor, porque é apenas em relação ao
excesso que novas trilhas se armam. A drenagem sem problemas, isto é,
sem dor, sem excesso é um escoamento que percorre as vias já
estabelecidas e que, portanto, não inauguram vias, caminhos, trilhas novas.

- 130 -
Mas, retornando à problemática da defesa e da dor, como evitar que
a energia escoe por um caminho “mais fácil”, uma geodésica? Se a
experiência traumática é um acréscimo brusco de energia no sistema que o
ameaça com um colapso e se esse colapso não ocorre, isso significa que o
sistema foi capaz de processar esse excesso, que ele cavou ou estabeleceu
vias alternativas. Nesse caso, a energia excessiva terá escoado pelas vias
alternativas e o excesso terá sido uma condição “criativa”, já que, para
escoar, ele determinou inevitavelmente a abertura de novas trilhas, novas
geodésicas. E uma vez passada a experiência, não haveria nenhuma razão
para que sua lembrança produzisse qualquer fato aversivo. Ao contrário, a
lembrança do evento traumático sendo uma trilha, ou um conjunto delas,
passada a experiência do trauma criou novas possibilidades de drenagem e,
sendo assim, condições para que o evento, ocorrendo novamente na
realidade, não se produza mais com as propriedades penosas de um trauma.
Cabe então a pergunta: por que a lembrança do trauma deveria ser, ela
mesma, penosa? Isso não é um fato óbvio dentro do modelo proposto por
Freud da rede e de seus princípios de funcionamento. Pelo contrário, de
acordo com esses princípios, a energia deveria seguir justamente o
caminho da “memória traumática”, porque ele corresponde à trilha ou ao
conjunto delas que são os mais curtos, eles são as geodésicas que estão
concernidas naquela região da rede.

Uma conclusão então se impõe. Não podemos caracterizar prazer,


dor e desprazer simplesmente como a expressão qualitativa, no sistema ω,
de processos econômicos. Freud inicialmente nos propôs essa idéia. O
prazer ou desprazer determinariam alguma coisa, na medida em que eles
estariam estritamente associados a eventos na rede que são processos
econômicos: prazer, aos processos de descarga e ação e desprazer, aos
processos retensivos, acumulativos.

- 131 -
Impõe-se então a conclusão de que a dor78 não é a mesma coisa que
o desprazer. Assim, deve existir alguma coisa a mais no evento traumático
transmitida para sua lembrança, que faz com que sua reprodução psíquica
ou seja evitada ou, no casos em que isso não é possível, a lembrança
produza um efeito quase tão penoso quanto a experiência real que lhe deu
origem. O desprazer, um acréscimo qualquer de energia, não produz
necessariamente por si só uma lembrança traumática – que provoca dor – e
não está, por isso, associado a qualquer situação especial. Ele pode estar
associado a um tipo especial de “satisfação”, aquele em jogo nos processos
alucinatórios. Tomemos como exemplo dessa situação o sedento no
deserto que alucina água por toda parte. E, após uma experiência dura e
penosa de sede, é raro que alguém adquira um “trauma” de água, no
sentido de, daí para frente, procurar evitar a lembrança de água ou sua
presença real.

Evidentemente, Freud proporá uma teoria mais sofisticada a


respeito desses fatos – o prazer, o desprazer e a dor –, uma teoria que
contemple com aspectos dessas qualidades “afetivas” que não se reduzem
simplesmente a uma explicação econômica. Quanto à dor, ela não pode ser
meramente um fato “econômico”, um acréscimo repentino de energia
numa dada região da rede, determinando uma urgência de dissipação. Isso
pode ser dito do desprazer em geral, inclusive do desprazer envolvido na
dor, mas não é o que caracteriza propriamente a dor. Ele tem de postular
uma qualidade irredutível ao econômico da dor, senão ele não resolve o
paradoxo descrito acima. A dor não é um fato simétrico ao continuum
prazer-desprazer. Vejamos por quê.

78
É importante que o termo dor em Freud, especialmente no Projeto... e nos Estudos...
não sejam assimilados à idéia de dor física. Nesses textos dor está mais próximo da
noção de trauma psíquico. Quer dizer, a dor enquanto “afeto” que diz respeito ao real
“penoso” de uma experiência significativa (morte do pai, de um filho, um repúdio no
amor, etc.) e “existencial”. Nesse sentido a dor está mais próxima da angústia.

- 132 -
Não nos deteremos na solução de Freud referente à preservação da
coêrencia do modelo do “fisicalista” projeto. Reteremos aqui apenas o fato
de ele ter dito que a dor “possui uma qualidade particular, que faz com que
a reconheçamos junto ao desprazer” (1895b,. p. 365). Embora ligada ao
desprazer, a dor possui uma qualidade particular.

A solução de Freud conjuga os dois termos: de um lado, enquanto


desprazer, a dor é um acréscimo de energia intolerável e, de outro,
enquanto qualidade particular, ela é o fato da memória do objeto hostil ou
traumático ter a qualidade daquilo que é penoso. A sua solução é a de que a
lembrança do evento traumático, ou a lembrança da presença do objeto
hostil, causa desprazer. É importante sublinhar essa sutileza. O fator
disruptivo, quando ele considera a dor, não está simplesmente no
“exterior”79, no objeto hostil, ele encontra-se também, de alguma maneira,
na representação mnêmica desse objeto80. Ele dá como exemplo para a
especificidade da dor o funcionamento sexual, em que o “desprendimento
de desprazer pode ser extraordinário com um investimento ínfimo da
recordação hostil” (1895b p. 366). O prazer está sempre ligado a um
processo de descarga e ação. O desprazer, não; o desprazer em geral diz
respeito a um processo retentivo, de acúmulo de excitação. Faz-se
necessária então a seguinte distinção quanto ao desprazer. De um lado, o
desprazer associado à experiência de satisfação – nesse caso ele não está
associado ao processo que afasta o objeto de satisfação do campo da
presença; ao contrário, a alucinação radicaliza essa presença. E de outro, o
desprazer associado à experiência de dor, à incidência do objeto hostil que

79
Exterior para Freud tanto pode ser o mundo exterior, quanto as fontes endógenas de
excitação. Ou seja, exterior quer dizer exterior ao sistema neuronal.
80
Esse é um ponto importantíssimo. Podemos dizer então que o objeto hostil é tanto
“exterior” quanto “interior”. Não há como separar sua incidência na realidade de sua
incidência na memória, como ocorre na prova de realidade em relação ao objeto de
satisfação, onde a alucinação se distingue da presença da coisa na realidade. Lacan vai
tirar muitas conseqüências desse fato. Toda a articulação que ele propõe no seminário
sobre a angústia (1962) entre, justamente, a angústia, o Estranho e o objeto a segue esse
encaminhamento.

- 133 -
incita, justamente, a ação específica que é a de afastá-lo do campo da
presença. A dor, sobretudo, mais do que o prazer, introduz a exigência de
que o sistema opere com um fator “extra-econômico”, um fator
“informacional”, aquele que distingue o desprazer gerado pela ausência do
objeto de satisfação do desprazer gerado pela presença do objeto hostil. Eis
aí o fator “extra-econômico” ou “extra-energético”, que está no fato de que
o que faz o objeto hostil, justamente a presença de algo ameaçador ou
estranho, não ser pura e simplesmente um acréscimo repentino da energia,
mas sua “qualidade” particular – sobre a qual, aliás, Freud não especifica
muito qual seja no Projeto....

Esses elementos são suficientes para explicar em linhas gerais o


mecanismo do sintoma. Um evento traumático produz uma lembrança de
si, desse modo se inscrevendo na rede como um evento, uma trilha nessa
rede. Essas lembrança-trilhas passam então a estar associadas a um
mecanismo que produz enorme desprazer – isto é, um incremento
localizado de energia – quando investidas. Faz-se necessário, dessa forma,
que o sujeito se defenda não apenas do evento traumático ocorrido no
mundo exterior, mas de sua lembrança-trilha ela mesma. O sistema tem
então de operar na contramão de sua tendência. Ele tem de evitar aquelas
trilhas que representam a lembrança do evento traumático, porque essa
lembrança, ao mesmo tempo que é uma trilhagem com as características do
que demos a entender a partir do conceito de geodésica – o que favoreceria
os processos de descarga e de ação –está associada a um incremento da
energia insuportável noutro ponto da rede81. Sua tendência seria a de
drenar a energia pelos caminhos mais “curtos”, pelas geodésicas. Mas
esses caminhos causarão dor. Então faz-se necessário evitá-los e, para tal,
faz-se necessário que trilhas alternativas sejam produzidas, que a energia
que corria numa determinada trilha ou circuito delas se desloque para outra

81
Freud fala em “neurônios chaves”. As trilhas que representam o fato traumático estão
conectadas a esses neurônios, os quais têm a propriedade de liberarem um acréscimo de
energia quando ativados (1895b, p. 364 e segs).

- 134 -
trilha ou circuito delas, sem acarretar mais qualquer excesso acionado no
plano das lembranças. Eis assim, o “esquecimento histérico”, a energia que
investiria a trilha que é a lembrança do objeto hostil ou da situação
traumática se desvia dessa trilha e é escoada através da “enervação
corporal” – temos aí a conversão histérica.

O sintoma é uma espécie de descarga e de ação, ele dá conta da


trilhagem alternativa que se desvia da lembrança do evento traumático.
Mas por que esse processo é patológico? Na verdade, ele não é em si
mesmo patológico. O que é patológico é o fato de ele não funcionar
adequadamente, em acordo com sua finalidade defensiva, que é
exatamente a de evitar a ativação da lembrança traumática. Se de fato a
energia se desviasse completamente do trajeto no qual está inscrita a
lembrança do evento traumático, que, como vimos é provocadora de dor,
não teríamos nenhum problema. O problema ocorre porque a excitação não
é toda deslocada pelo caminho alternativo. O fato de a lembrança
traumática ser também uma geodésica impõe sua determinação82. Alguma
excitação insiste em não percorrer as rotas alternativas e, desse modo, ativa
a lembrança da situação traumática, o que, por sua vez, suscita a
experiência de dor. Por essa razão, o sintoma que concerne à psicanálise,
desde os seus primórdios, é muito mais o fracasso da manobra defensiva
do que seu êxito. Quer dizer, o sintoma não é apenas o êxito de um desvio
da excitação que possibilita, no plano da ação, uma satisfação substitutiva,
ele é também o fracasso dessa estratégia, pelo fato de revelar de maneira

82
Esse ponto também é importantíssimo. Por aí podemos ver como é apropriada a
proposta de Lacan de entender o texto do Projeto... como uma topologia, e mais
especificamente ainda como uma superfície. Na psicologia ingênua supomos que se algo
é desagradável basta que nos afastemos da coisa para que a condição desagradável
também desapareça. Freud nos mostra nesse trecho que independente do afeto –
agradável ou penoso – a conectividade com o objeto hostil está estabelecida. Vale dizer
a coisa hostil não é “solta”, “despregada”, do conjunto de inscrições que constituem o
sujeito, ao contrário, ela é conexa a esse conjunto de alguma maneira. É esse aspecto da
lembrança traumática que, alguns anos depois, na Interpretação dos Sonhos (1900), dirá
respeito à atração exercida pela idéia inconsciente em relação as idéias substitutivas.
Conferir também nos artigos metapsicológicos, especialmente no artigo sobre a
Repressão (1915).

- 135 -
enigmática a fonte mnemônica – a lembrança traumática – em relação a
qual ele é um caminho alternativo. E o signo por excelência dessa
lembrança, a qual o sintoma está remetido, é o sofrimento que vem
associado às suas manifestações. Se não houvesse sofrimento, signo da
presença do objeto hostil inscrita na lembrança da experiência traumática, a
estratégia substitutiva teria dado certo e a manobra defensiva teria tido
êxito.

Psicanálise e Cognição

Estamos cônscios de que essa apresentação do mecanismo


defensivo produtor do sintoma está muito resumida. Deixamos de lado
muitos detalhamentos essenciais, por exemplo, a passagem da teoria do
afeto estrangulado – que fundamenta a teoria da ab-reação – para a teoria
da idéia incompatível – que fundamenta o conceito de conflito83.
Transformações teóricas ocorridas nesses anos de 1890. Também
desconsideramos as asserções de Freud acerca dos processos de
pensamento em jogo no processo defensivo, o que, por si só, valeria muitas
teses. É que nossos objetivos não são o de estudar a idéia de defesa
enquanto tal. Nossa preocupação foi a de caracterizá-la bem, mas de uma
perspectiva geral no período que vai do ano de 1895 ao ano de 1900. Nossa
investigação foi até o ponto considerado necessário para expor certas
concepções matemáticas em jogo na teorização de Freud e que, pelo fato
de ele não possuir qualquer clareza a esse respeito, ser conduzido a uma

83
Os propósitos terapêuticos se modificam conforme a determinação patógena seja
entendida como “afeto estrangulado” ou “idéia incompatível”. No primeiro caso, a
psicoterapia é entendida como promoção da ab-reação e recuperação da lembrança, isto
é, o recordar, e no segundo caso, somente a ab-reação e o recordar não são suficientes,
faz-se necessário um trabalho associativo suplementar, de elaboração, para tornar a
lembrança “compatível”. Já a idéia de que o conflito é irremovível, não há como
compatibilizá-lo, é a idéia mesmo de recalque primário, idéia que fundamenta o
conceito de inconsciente. E nesse caso, estamos no campo próprio da psicanálise e não
mais dos procedimentos estritamente psicoterapêuticos.

- 136 -
série de dificuldades, justamente para aplicar o conceito de corte. É o que
trabalharemos a seguir.

A essa altura esperamos ter deixado claro que a rede neurônica de


Freud é um instrumento conceitual que visa estabelecer a unidade de um
campo clínico, de um conjunto de fenômenos relativos às narrativas que as
pessoas fazem de suas vidas na circunstância especial que é a situação
analítica. A sua característica neurológica é a menos importante. Aliás, é
notável a falta de clareza que autores das mais variadas orientações
possuem a respeito do neurológico.

Permitimo-nos o seguinte desvio. Atualmente, o vocábulo


“cérebro” transformou-se numa espécie de palavra mágica que, ao
anunciar um certo reducionismo à massa cinzenta assim denominada pelos
anatomistas, assegura a vocação científica das construções, em geral de
cunho “cognitivista”, desse ou daquele autor. Para outros, o vocábulo é
uma espécie de demônio a exorcizar, pois sua presença denota um
positivismo primário – é o que pensam muitos psicanalistas84 – ou um
antropomorfismo substancialista – era o que pensava, por exemplo, B. F.
Skinner com seu behaviorismo radical nos anos 60 e 70. Para nós,
psicanalistas lacanianos, quanto ao uso desse vocábulo, o que vemos
sempre é o psicológo, em nome da ciência, varrer de seu campo de estudos
tudo o que diz respeito à problemática do sujeito – justamente o que há de
mais relevante a considerar! Esse que é o ponto essencial.

Quando vamos ver o que o psicólogo produziu em sua teorização, o


que encontramos? Nada mais nada menos do que esses “esquemas de
conectividade”, isto é, topologias. Quase todos, senão todos, os conceitos
cognitivistas são dessa ordem –, isto é, redes, seqüências, mapas, grafos,

84
É curiosíssima a posição de Pierre Fédida a respeito desse ponto. Num debate com
Joëlle Proust, filósofa realista que trabalha no campo das ciências cognitivas, cuja a
questão era “A psicanálise já não fez seu tempo?”, Fédida responde coisas do tipo: “O
psicológico é puramente metafórico, os fenômenos essenciais são bioquímicos” (1999,
p.25).

- 137 -
etc., que articulam em termos topológicos e sintáticos (algébricos) as
diversas funções e subfunções. O expediente é um velho conhecido de nós,
psicanalistas, porque Freud foi um de seus eméritos promotores,
justamente com seu Projeto para uma Psicologia Científica. Nesse texto,
que, não sem razão, Freud não o publicou – somos nós psicanalistas e
historiadores que o agregamos ao conjunto dos textos que formulam a
teoria psicanalítica –, ele fez exatamente, num certo sentido, o que fazem
nossos psicólogos atualmente: propor “topologias”, esquemas de
conectividade, formulados visando uma referência neurológica ou outra
que assimila o cérebro a uma máquina “energético-informacional”, uma
espécie de rôbo cibernético avant la lettre.

Em geral chama a atenção na produção dos psicólogos o fato de ela


propor, em termos práticos, sob a rubrica de modernas “técnicas
científicas” derivadas dos estudos sobre o cérebro, as táticas pedagógicas
de sempre, que quase sempre visam o conformismo do sujeito,
implicitamente definido como norma de saúde. Nesse sentido, a posição de
Freud tem muito a nos ensinar.

Freud sabia que não podia prescindir de um certo esquema de


conectividade para dar conta dos dados clínicos sobre os quais se
debruçava. Daí seu ensaio que é o texto mesmo do Projeto em que ele
explicita esse esquema de conectividade. Mas ele logo reconheceu sobre o
que esse esquema de conectividade incidia: a problemática do sujeito. E ele
se apercebia de que, reduzindo essa problemática ao esquematismo,
deixava escapar o essencial a considerar: justamente a problemática do
sujeito aludida. O esquematismo é saturante, ele define a extensão daquilo
a que se aplica, é completo do ponto de vista lógico. Em geral, ele denota
as operações e a articulação hierarquizada entre elas. Então, sem renunciar
ao esquematismo, à estipulação de uma sintaxe – caso em que ele cairia
numa filosofia especulativa, ou mesmo no misticismo, como aliás ocorreu
com Jung – Freud passa a referir sua teorização à psicologia. Por que

- 138 -
psicologia? Porque ele se dá conta de que, para poder abordar a
problemática do sujeito, ele tem que supor que o esquematismo é
incompleto do ponto de vista lógico85. E fazer psicologia, considerando a
epistemologia que ele abraçava é o modo de ele dizer essa incompletude.

Retomando nosso fio. Estávamos dizendo que, na teorização de


Freud, o neurológico é o que menos importa. Essa não é uma afirmação
qualquer. Ela contraria uma perspectivação da psicanálise possível, que é a
de assimilá-la a um certo tipo de cognitivismo informado por uma
epistemologia realista: a mente ou espírito como correlato epifenomênico
do funcionamento fisico-químico do cérebro86. Nossa tese é a de que o
importante na rede neurônica é, sobretudo, a rede e, menos, o “neurônico”.

A Clínica freudiana no Projeto...

Voltemo-nos para a prática clínica. A clínica de Freud de fato


prescinde completamente de qualquer referência anatômica ou
fisiopatológica efetiva. O material sobre o qual ele se debruça são tão
somente as verbalizações do paciente – fornecidas em associação livre.
Por que então a referência ao cérebro? É simples. Freud entende as
associações como um encadeamento, como uma seqüência enumerável.
Ora, ele não concebe essas seqüências soltas no espaço, elas são entendidas

85
Essa formulação até um certo ponto é explícita na pena mesma daqueles que melhor
expressavam a epistemologia realista que Freud, num certo registro, adotava. Vejamos
essa indicação de Bois-Reymond de 1918:
Brücke e eu juramos solenemente por em vigência essa verdade: não
existem no organismo outras forças ativas que as físico-químicas comuns;
que nos casos que não podem, no momento, serem explicados por estas
forças devemos, seja descobrir o modo ou forma específica de sua ação
através do método físico-matemático, seja, supor novas forças iguais em
dignidade às forças físico-químicas inerentes à matéria, redutíveis à força
de atração e repulsão (in: Rapaport & Shakow, 1976, p.38).

Essas “novas forças iguais em dignidade” são aquelas que dizem respeito ao campo da
psicologia, ou seja, um campo em que, naquela ocasião, um reducionismo estrito – isto
é, ao físico-químico-matemático – não podia ser aplicado.
86
Essa era a tese do Dr. Carlos Paes de Barros (1975/1998).

- 139 -
como as trilhas, elementos de uma totalidade que as integra, justamente a
rede neurônica87. Assim, vemos que o cérebro está aí, como rede, para
assegurar uma certa unidade na dispersão que são os ditos do sujeito.
Desde essa formulação, os ditos são entendidos a partir de uma certa
organização intrínseca. Em primeiro lugar, eles são seqüências de ditos,
depois, tais seqüências estão articuladas entre si em rede. Vale dizer, o
cérebro é sobretudo a rede, isto é, um princípio que estipula a conexão dos
ditos em seqüências com estas entre si formando uma rede. De tal modo
que, pela conectividade, podemos supor um tipo de influência lateral entre
os ditos e suas seqüências. Desse modo, o que é dito aqui num contexto
padece dos efeitos e da influência do que é dito acolá, num contexto
completamente diferente.

Para Freud, considerando a epistemologia que ele abraçava, a


articulação entre os ditos dos pacientes não podia ser pensada como
intrínseca ao próprio fato do dizer. A unidade dos ditos é assegurada pelo
fato mesmo de eles serem entidades lingüísticas. Nesse caso basta portanto
tomarmos a linguagem como princípio de concatenação entre eles para
assinalarmos sob quais aspectos eles são internos entre si, constituindo
dessa maneira uma ordem própria, apesar da lineariedade temporal de sua
dispersão e proliferação (diacronia). Freud tem que imaginar uma entidade
física, o cérebro, para assegurar-se da implicação que os ditos possuem
entre si (sincronia). Ele não possui o conceito de estrutura. Dito de outra
forma, o conceito de estrutura como princípio de concatenação que articula

87
“As verbalizações do paciente”, quer dizer, a associação livre. A “rede neuronal”
nada mais é que espaço bidimensional, a superfície então, onde se localizam os ditos,
em associação livre, do sujeito. Tais ditos em sua dimensão própria – nos termos do
estruturalismo a dimensão própria dos ditos é a diacronia – são unidimensionais. É o
efeito de retroação do significante que requisita pelo menos uma dimensão a mais. Daí
porque Freud postula a rede. A rede nada mais é do que isso que permite colocar a
questão da conectividade entre os ditos desde o interior; a estrutura que assegura que os
ditos não fazem um conjunto de entidades dispersas, reunidas numa fronteira colocada a
partir do exterior. A rede é propriamente falando a superfície, a estrutura, aquilo que
responde pela dimensão sincrônica do significante.

- 140 -
as narrativas do paciente como um campo no qual elas lhe são intrínsecas
se esconde sob a utilização do conceito de cérebro enquanto rede.

Outro aspecto importante a assinalar nessa etapa gira em torno do


termo concatenação ou conectividade. Por que a necessidade de um
princípio de conectividade88?

Esse é um fato fundamental, se pudéssemos imaginar que as


lembranças de um indivíduo refletem a ordem do mundo, estaríamos então
instalados num realismo extremo: o que o sujeito representaria seria
isomorfo ao que lhe ocorreu. O aparelho representador não introduziria
nenhuma contribuição própria sua: as conexões assinaladas na
representação são como cópias exatas das conexões reais efetivamente
acontecidas. O cérebro-estrutura então garante para Freud uma outra ordem
de conectividade diferente da que ocorre efetivamente no mundo. E é esse
padrão próprio de conectividade que marca sua relativa autonomia e
independência em relação às “massas em movimento”. A ordem registrada
no aparelho mental é uma ordem estruturada em seu próprio campo,
obedecendo a injunções combinatórias intrínsecas, ela não é reflexo do
real, daquilo que Freud nomeia como “massas em movimento”.

Vejamos as etapas que Freud atravessou até chegar à psicanálise.


Para simplificar as coisas, vamos caracterizar apenas dois tempos. O
primeiro momento é aquele que podemos designar como “realista”. É
realista em várias acepções. Sua idéia básica é a de que as lembranças
estão associadas à eventos ocorridos efetivamente. São suas palavras:

Nossas experiências, porém, têm demonstrado que os mais variados


sintomas, que são ostensivamente espontâneos e, como se poderia dizer,
produtos idiopáticos da histeria, estão tão estritamente relacionados com o
trauma desencadeador quanto aos fenômenos a que acabamos de aludir e
que exibem a conexão causal de maneira bem clara (1895a, p. 44).

88
No próximo capítulo, quando trabalharmos sobre o seminário A Identificação (1961)
de Lacan, teremos que nos deter mais pormenorizadamente sobre as implicações da
conectividade.

- 141 -
Os eventos ocorridos efetivamente são os traumas. Mas a tomada
realista de Freud não é simples. O evento é traumático porque ao tempo de
sua ocorrência representou, do ponto de vista da quantidade, uma condição
excessiva e, do ponto de vista da qualidade, foi a presentificação do objeto
hostil. Já vimos ser essa segunda condição que garante que tanto o evento
exterior traumático, quanto sua evocação enquanto lembrança, enquanto
inscrição na rede neurônica, possuam um caráter aversivo, penoso. Mas
nesse primeiro momento que tipo de circunstância faz do trauma um
evento traumático? O trauma refere-se àquelas situações que, de acordo
com o senso comum, são aversivas. Assim no caso Emmy, Freud diz:

Seu medo dos estranhos e das pessoas em geral revelou-se originário da


época em que estava sendo perseguida pela família |do marido| e tendia a
ver um agente deles em cada estranho, e de quando lhe pareceu provável
que os estranhos soubessem das coisas que estavam sendo espalhadas por
toda parte a respeito dela, por escrito e verbalmente. (1895a. p. 44).

Temos inúmeros exemplos análogos a esse no texto. Interessa-nos


sublinhar essa caracterização do traumático. São situações penosas da vida
que respondem pelo traumático. Freud nos Estudos já recuou até a
infância. Haveria então um trauma básico infantil, “algum fato da infância
que estabelece um sintoma mais ou menos grave que persiste durante os
anos que se seguem” (1895a, p. 44). Mas a infância ainda não é decisiva:

Qualquer experiência que possa evocar afetos aflitivos — tais como os de


susto, angústia, vergonha ou dor física — pode atuar como um trauma
dessa natureza; e o fato de isso acontecer de verdade depende,
naturalmente, da suscetibilidade da pessoa afetada (bem como de outra
condição que será mencionada adiante). No caso da histeria comum não é
rara a ocorrência, em vez de um trauma principal isolado, de vários
traumas parciais que formam um grupo de causas desencadeadoras.
(1895a, p.46).

Então, essas situações representam, de um lado, um acréscimo de


energia e, de outro lado, na qualidade do penoso, o traço da particularidade
da dor. De tal sorte que:

...a relação causal entre o trauma psíquico determinante e o fenômeno


histérico não é de natureza a implicar que o trauma atue como mero agent
provocateur na liberação do sintoma, que passa então a levar uma

- 142 -
existência independente. Devemos antes presumir que o trauma psíquico
— ou, mais precisamente, a lembrança do trauma — age como um corpo
estranho que, muito depois de sua entrada, deve continuar a ser
considerado como um agente que ainda está em ação; encontramos a
prova disso num fenômeno invulgar que, ao mesmo tempo, traz um
importante interesse prático para nossas descobertas.

É que verificamos, a princípio com grande surpresa, que cada sintoma


histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando
conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia
provocado e despertar o afeto que o acompanhara, e quando o paciente
havia descrito esse fato com o maior número de detalhes possível e
traduzido o afeto em palavras. A lembrança sem afeto quase
invariavelmente não produz nenhum resultado. (1895a, p. 46-47).

A pergunta mais óbvia a se fazer nessas caracterizações é: por que


fatos penosos da vida apresentam uma injunção energética? Por que a
morte de alguém representaria um tal acréscimo, por exemplo? Como fatos
da vida podem ser assimilados à variação de uma grandeza? A pergunta
torna-se mais relevante, quando nos confrontamos com o fato de que tais
acontecimentos são muito mais coisas significadas do que propriamente
eventos que ocorrem independentemente de um mundo de cultura a partir
do qual elas adquirem a conotação penosa que têm. O caráter penoso desse
ou daquele acontecimento é muito mais uma significação, suportada numa
narrativa do que um evento físico que libera uma cota excessiva de energia
que afetará nosso cérebro. No entanto, Freud não tem o menor pudor em
relação a esse tipo de consideração. Ele considera esses acontecimentos
como eventos, que possuem uma incidência econômica ou, para retomar o
termo de que ele se vale na situação acima, uma incidência “afetiva”89.
Vale dizer, Freud não pensa a significância, o sentido, a significação, como
processos meramente representativos. Eles trazem consigo a incidência de
algo real concebido por ele como energia, isto é, naquilo mesmo que é
discursivo, dependente de várias maneiras da linguagem e da cultura,
reside um elemento extra-discurso, extra-linguagem, extra-cultura, algo
que não é da ordem das razões, mas da ordem da causa.

89
No contexto, afeto denota uma entidade referida à energia, e não ao campo da
sensibilidade e dos sentimentos como é usual.

- 143 -
O elemento energético presente nas situações penosas, como vimos,
transmite-se para a lembrança delas – ele alude a esse fato na citação
acima. A idéia terapêutica que ele defende, também anotada acima, encerra
uma concepção de real passível de ser referida às nossas reflexões a
respeito da matemática. Podemos caracterizá-la de algumas maneiras. A
primeira é que Freud situa a origem do fato traumático num evento
efetivamente ocorrido no mundo exterior, na realidade. Ele precisa de
eventos penosos ocorridos na realidade para assegurar o caráter igualmente
penoso do evento psíquico, que é a lembrança desses eventos ocorridos na
realidade.

Temos então a seguinte partição: de um lado, os eventos reais, que


ocorreram na realidade, e, de outro, os eventos “psíquicos”, que são as
lembranças dos primeiros. A explicação para o caráter patógeno da
lembrança é seu conteúdo aversivo no mundo exterior ser correlato a uma
ação de fuga e o correlato psíquico dessa ação ser justamente a defesa. Em
outras palavras, é separar a lembrança de sua possibilidade de evocação; no
plano da explicação em termos das trilhas, é evitar as trilhas com as quais a
lembrança se confunde, as trilhas que são a lembrança. Temos assim o par,
fuga na realidade e esquecimento no plano psíquico. Trata-se de uma
correspondência “perfeita”. É como se o que é da ordem da presença,
daquilo que é dado, fosse tanto acionado pelo que acontece na realidade
(percepção) quanto pelo que pode ser lembrado (memória). Sob um certo
aspecto tanto o acontecimento traumático quanto sua lembrança trazem
uma mesma exigência para o sujeito: o de escapar da presença daquilo que
é hostil. É um plano em que realidade e memória não se distinguem, pois
que ambas têm o poder de trazer a presença o hostil, juntamente com uma
exigência – escapar ou defender-se desse hostil.

O terapêutico nesse momento está baseado na correspondência


entre o psíquico e o real. Ao trazer a lembrança à tona por um artifício –
uma narrativa sob hipnose – o sintoma se esvanece. Por quê? A presença

- 144 -
da lembrança, ativada por sua narrativa, permite que a suposta energia a ela
ligada possa se dissipar. Ao fazer isso, ela releva o conjunto das conexões
do qual ficara desligada por força da manobra defensiva, que, como vimos,
é dissociativa. O terapêutico então é a dissipação ab-reativa e a
reintegração associativa da lembrança ao conjunto das representações.

Tal concepção implica uma teoria semântica de cunho realista e


objetivante. Para a pergunta – por que o objeto hostil é hostil? – só há duas
respostas. Uma é a de que a genética inscreveu em nosso cérebro certas
formas em relação às quais temos um temor “natural”. No escopo da
teorização dos Estudos, através da idéia de “simbolismo”, Freud formula
que esse temor pode transferir-se para objetos inócuos e neutros (1895a, p.
45 e o cap IV). Outra resposta é o conteúdo aversivo da experiência de dor
ser aprendido, mas a exigência de nos defendermos daquilo que produz dor
é um mecanismo adaptativo inato.

A explicação de Freud é bastante sedutora e é também plausível.


No entanto, ela implica uma certa naturalização dos conteúdos e uma certa
concepção, segundo a qual sempre podemos localizar o hostil num
conjunto especificável de lembranças (uma ou várias lembranças
traumáticas) ou de situações efetivamente ocorridas. De qualquer modo, o
hostil vem de fora como uma entidade especificável no espaço-tempo,
como um evento e, além disso, como algo que porta um valor aversivo em
si mesmo. Quem não vai achar naturalíssimo que uma jovem fique tomada
de horror, fique traumatizada, enfim, com a morte repentina do pai ou do
marido? Essa situação e outras do mesmo tipo são entendidas como fatos
que portam em si mesmos um valor aversivo.

Freud na verdade joga tanto com explicações genéticas quanto com


as que defendem a aprendizagem. O que importa é nesse momento o hostil
ser uma entidade localizável, especificável, com um contorno definido. É
um algo que pode ser bem descrito através de uma narrativa que enumere a
sucessão dos acontecimentos que lhe deram origem no espaço-tempo. Há

- 145 -
um entendimento implícito de normalidade, que é mais ou menos o
seguinte: um sujeito normal, sem sintomas, seria aquele que a qualquer
momento pudesse evocar qualquer lembrança sua, que fosse capaz de
articular uma narrativa completa, na qual a lembrança de cada fato,
aversivo ou não, nunca fosse omitida. Esse sujeito é, em tese, capaz de
listar todo seu estoque de lembranças sem problemas: trata-se de um
sujeito sem dissociações. Enfim, Freud ainda não formulou o conceito,
idéia de inconsciente propriamente dito. Com a idéia de defesa, ele
formulou o conceito de dissociação que é relativo a uma patologia e a
define.

O Conceito de Recalque Primário e a Idéia de Corte

Essa idéia é correlata da idéia matemática, presente na geometria


euclidiana, da extensão como positividade. Ela implica uma ontologia:
aquela dos números naturais. Curiosamente, Freud não afirma a
“ontologia” com a qual ele argumenta no Projeto, aquela que fala em
“massas em movimento”. Quando vamos para os Estudos, a “ontologia” ali
implícita não supõe no real “massas em movimento”, mas eventos
enumeráveis, aptos a serem registrados no aparato mental como
lembranças igualmente enumeráveis. No Projeto, a “ontologia” das
“massas em movimento” está muito mais a serviço de Freud afirmar o
caráter sem qualidades do mundo exterior, do que de afirmar uma ruptura
na relação de correspondência entre o mundo e a rede neuronal.

A qualidade para Freud é uma interpretação de um dado sistema


neuronal (sistema w) modelado em função do caráter ondulatório da luz e
do som. Esse sistema interpreta o período associado a estímulos em termos
das qualidades. De qualquer modo, está implícito nesse sistema que a
relação entre o período (fato objetivo) e as qualidades (eventos subjetivos)
guarda uma certa correspondência. Só não podemos afirmar que essa
correspondência é sempre biunívoca porque, no caso da alucinação, o

- 146 -
sistema w homologa como real uma qualidade não existente. No caso da
alucinação, temos uma qualidade dada como percebida para qual não
existe nenhuma fonte no exterior da qual emana um estímulo de natureza
periódica; na verdade, na alucinação, essa qualidade percebida é uma
composição de uma ou mais lembranças – entes que, enquanto trilhas, não
possuem qualquer qualidade – figurada pelo sistema w como imagens.

Mas na prova de realidade, justamente essa correspondência é


decisiva. A contribuição do sistema w é exatamente a de afirmar que a
coisa desejada pelo sujeito com aquela qualidade está presente, existe
efetivamente na realidade ou não90. Freud sublinha bastante esse aspecto,
no Projeto trata de uma “psicologia quantitativa” (Projeto..., item 8 –
Consciência). Sua pretensão é a de explicar a subjetividade a partir de uma
perspectiva quantitativa. Por quê?

O quantitativo em Freud nesse momento não introduz a


negativização da extensão como positividade. A infinitude irredutível
introduzida pela iteração indefinida da operação e a subseqüente invenção
do suposto número irracional que, “atualizando” o infinito, completa na
ficção, a extensão antes vazada, atravessada pelo infinito ou pelo
absurdo91. O quantitativo para Freud neste momento está sobretudo a
serviço de uma redução a partir da qual ele articula a subjetividade, em
termos de um mecanismo implacável, puro efeito de um automatismo, de
um funcionamento referido ao caráter material e inerte de uma máquina
complicada.

Nesse sentido, o quantitativo no Projeto... é muito mais a teorização


da subjetividade pelo enumerável do que o compromisso com a mecânica

90
Como estamos a ver, no Projeto, as qualidades estão afeitas ao sistema w, a memória
corresponde ao sistema Ψ e a percepção ao sistema Φ. O desejo se forma no sistema Ψ,
sua “substância”, por assim dizer, são as lembranças. Observar também que para a
Freud a percepção também não é qualitativa. A qualidade está sempre localizada no
sistema w.
91
A física quantitativa de Newton, em oposição à física qualitativa de Aristóteles, faz
justamente isso: ela explica o movimento através do contínuo matemático.

- 147 -
de Newton em todas as suas conseqüências, em especial o contínuo
matemático. Isso se refere mesmo à interpretação da estipulação mítica de
que a máquina neuronal corta, interrompe, o fluxo das “massas em
movimento” e desse modo dá ordem ao caos. Mesmo essa interpretação
não introduz o contínuo matemático. A ordenação que a máquina impõe
implica uma certa disposição das coisas em termos discretos e enumeráveis
em que elas são localizáveis, dadas no espaço-tempo e contidas em
contornos próprios e bem definidos. Para comprovar essa direção presente
no Projeto..., basta ver como Freud conceitualiza a prova de realidade: a
idéia biológica de adaptação é instrumentalizada por um procedimento
judicativo, um “mecanismo cognitivo” que nada mais é do que uma
formulação da idéia de verdade como correspondência e adequação.

Vejamos agora o seguinte trecho da correspondência de Freud a


Fliess. A carta datada de 21 de setembro de 1897:

E agora quero confiar-lhe, de imediato, o grande segredo que foi


despontando lentamente em mim nestes últimos meses. Não acredito mais
em minha neurótica. Provavelmente, isso não será inteligível sem uma
explicação (...). O desapontamento contínuo em minhas tentativas de levar
uma única análise a uma conclusão real, a debandada de pessoas que, por
algum tempo, tinham estado aferradíssimas, a falta de sucessos absolutos
com que eu havia contado e a possibilidade de explicar a mim mesmo de
outras formas os sucessos parciais, à maneira habitual – esse foi o
primeiro grupo de motivos a constatar. Depois, a surpresa de que, na
totalidade dos casos, o pai, sem excluir o meu, tinha de ser acusado de
pervertido – a percepção da inesperada freqüência da histeria, com
predomínio precisamente das mesmas condições em cada caso, muito
embora, certamente, essas perversões tão generalizadas contra as crianças
não sejam muito prováveis. (FREUD, 1986, p.265).

O fato com que Freud se bate é o caráter fantasioso da denúncia


contra o pai. Sua teoria do trauma evoluíra. No início, um conjunto vasto
de situações aversivas podiam figurar como traumáticas. A seguir, ele
observa que as lembranças mais associadas ao trauma versam sobre uma
temática amorosa e “sexual” – dificuldades de freqüentar certos laços
sociais – e, finalmente, ele designa a infância como o tempo do fato
traumático. Ele chega então ao sexual e ao infantil. Mas para ele a sedução

- 148 -
é real, aconteceu. Na carta em questão, ele fala de sua decepção em relação
a essa teoria. Na verdade, o que ele tem em mãos são resultados que ele
julga muito parciais. Em geral, uma inequívoca relação entre o fato de
expor numa narrativa as lembranças e uma série de modulações no
sintoma. Mas os resultados são parciais – nenhuma análise conduzida até
seu desfecho real. Agora ele se abate porque se dá conta de que a perversão
do pai é freqüentemente uma mera fantasia. Fantasia que opera, no entanto,
como se fosse a lembrança de um fato traumático.

É difícil não exagerar quanto ao valor dessa decepção. Ela informa


toda uma conjuntura que leva Freud a interrogações decisivas. Ele por
exemplo, não poderá mais fundar o caráter penoso das situações
traumáticas no consenso da comunidade de falantes a respeito do que é e
do que não é aversivo, e depois naturalizar essas significações como se
fossem eventos reais portadores de uma certa carga energética. Por que o
trauma é traumático? O que é traumático não é esse ou aquele evento em
particular, tomado como um conteúdo, um evento. O traumático é o
advento mesmo da significância, o fato de o sujeito constituir-se numa
ordem e para uma ordem regida pela palavra.

É essa decepção que obrigará Freud a adotar, sem saber, a


concepção do contínuo como corte. A postulação da teoria do recalque e a
idéia de inconsciente como efeito da ação do recalque nada mais é do que a
implementação dessa idéia. A decepção obriga Freud a admitir o caráter
contigente da referência localizada na realidade em relação à lembrança
traumática. Não é o caso de que não aconteça efetivamente a sedução. O
ponto decisivo é que seguramente muitas vezes ela não ocorreu e ainda
assim o sujeito situa a lembrança de uma cena de sedução em sua história.
E a questão passa a ser de onde deriva a exigência de construir uma cena
inventada, justamente com esse teor?

Estamos na situação em que, no lugar onde deveria existir a


presença efetiva na realidade – o fato da sedução –, temos uma lacuna.

- 149 -
Situação análoga à que exigiu a formulação do conceito de número
irracional, sob o aspecto de que ali onde deveria comparecer uma entidade
positivamente extensa – a lembrança de um evento –, comparece uma
lacuna. Vejamos como essa situação se constrói. Evidentemente, a solução
de que a chave da neurose está na sedução pelo pai não é uma boa resposta.
Acatamos essa explicação – e Freud se apoiou nesse fato – porque ela é
consensual, vale dizer, todos aceitamos isso. Mas a questão é: por que a
sedução paterna desencadeia o que desencadeia? Do ponto de vista
biológico, limitando-nos ao caso das histéricas, por que haveria de ser
“traumático” o encontro de uma fêmea apta ao coito – a filha – com um
homem – no caso, o pai? Evidentemente, não se sustenta a explicação,
segundo a qual a reação de horror ao incesto seria uma significação natural,
algo como um padrão pré-programado, genético, para espécie humana,
uma vez que em outras culturas não se observam reação semelhante. Da
onde deriva então essa valoração?

A primeira coisa a considerar é o fato de os personagens envolvidos


na cena incestuosa, ou em outras “fantasias”, não serem “naturais”. Isto é,
pai, mãe e filho representam sobretudo uma incidência da cultura, na
ligação sexual. É uma incidência prescritiva, no sentido de que não é
possível entre os humanos a associação sexual entre quaisquer homens e
quaisquer mulheres. Apenas certos homens podem entreter com certas
mulheres o concurso sexual. E as várias formas que essa prescrição assume
permite aos vários grupamentos humanos se distinguirem culturalmente
entre si.

Freud não possuía os recursos conceituais acessíveis para nós


(como a antropologia, a lingüística e a matemática), ainda no início do
século92. Em grande medida ele permaneceu um autor do século XIX,
principalmente se considerarmos seu arsenal conceitual. Mas ele articulará
92
Estamos a nos referir nesse momento, evidentemente, à antropologia, à linguística, à
própria matemática e a lógica que de disciplinas técnicas e adstritas às ciências da
natureza passaram a ocupar um papel importânte nas ciências humanas e sociais.

- 150 -
para nós, com esse instrumental conceitual mesmo, em que consiste essa
“realidade” que produz o trauma presente na cena incestuosa. O incesto só
pode produzir trauma porque os termos “pai”, “mãe” e “filho” são
significações, são fatos de linguagem depositados na realidade, efeitos de
linguagem que, no entanto, articulam uma diferenciação social “real”, isto
é, são significações naturalizadas inevitáveis, que justamente estabelecem,
pela prescrição, uma ordenação que inaugura a própria possibilidade do
laço social. E nesse caso, somos que conduzidos à idéia de que o horror ao
incesto deve-se ao fato de que sua realização derroga a prescrição que
institui o laço social. O horror do incesto seria então uma espécie de
proteção da regra que permite o laço social, ele estaria a serviço de
preservar a coerência necessária, no sentido de que se alguém se relaciona
sexualmente com seu pai, este deixa de existir, porquanto pai se define
justamente pela prescrição.

No entanto, não é bem assim que Freud coloca as coisas. Para ele, o
horror do incesto tem um sentido muito mais “positivo” do que ser uma
espécie de advertência visando a conservação da coerência necessária para
a organização social. Esse sentido é o de que, justamente, o derrogar da
regra que funda o laço social não a anula de maneira alguma. Vale dizer, a
prescrição não deixa de existir porque a regra foi quebrada. A quebra da
regra pode acarretar em neurose, loucura, crime, ou somente o horror e a
angústia sem maiores conseqüências psicopatológicas93. O que importa é
que ela não é indiferente. A realização do incesto, a desobediência à regra
que o institui, inaugura o campo da transgressão e não provoca o retorno à
ordem animal em que não se distinguem mais “pai”, “mãe” e “filho”94, em

93
Não é incomum encontrarmos realizações do incesto, especialmente no caso da
menina com seu pai. Nós mesmos já trabalhamos com essas situações. No entanto,
nunca pudemos observar um incesto realizado envolvendo a mãe e o filho.
94
Por razões de economia estamos situando nossa organização familiar como a estrutura
que define o incesto. Naturalmente, as estruturas variam culturalmente. Mas, em relação
ao que queremos abordar, é suficiente citarmos apenas uma, e por isso escolhemos a de
nosso mundo ocidental, judeu e cristão, enfim, a família monogâmica.

- 151 -
que só teríamos machos e fêmeas aptos ou não para o acasalamento, caso
em que qualquer macho poderia acasalar-se com qualquer fêmea desde que
ambos cumprissem os requisitos biológicos para tal.

Como pode-se ver, é uma situação bastante difícil de caracterizar do


ponto de vista lógico. Se o que sustenta o laço social é uma prescrição,
uma regra, que limita quem pode se relacionar com quem, é lógico que a
suspensão dessa regra acarretaria na dissolução da organização que se
apóia nela. Mas não é esse o caso para a psicanálise. Freud assinala que a
negação implícita no incesto não derroga a estrutura de parentesco, não a
anula. Ao contrário, essa negação é produtiva, pois ela inaugura a ordem
do propriamente sexual. Trata-se de uma negatividade que engendra uma
espécie de “espaço” onde podemos constatar a determinação do sujeito no
sexual e em relação ao sexual. Mas o que tem a ver esse “espaço”, a
sexualidade, com números e principalmente com o corte de Dedekind?

É que esse “espaço” novo é conseqüência de uma escritura que nos


constitui. Da mesma forma que os números irracionais cuja exigência de
postulação deriva do fato de que uma escritura engendra uma situação
tanto paradoxal – o número irracional é ao mesmo tempo par e ímpar –
quanto iterável infinitamente – gerando a necessidade do “infinito atual” –,
o “cérebro” freudiano nada mais é do que uma escritura suficientemente
“complexa” para engendrar uma situação análoga. Ora, a situação
paradoxal que conduziu ao número irracional, não levou à invalidação da
idéia de número. Ao contrário, ela implicou a necessidade de uma
ampliação do conceito de número de tal forma, que ele relevasse as
aparentes contradições que giravam em torno dos irracionais. Do mesmo
modo, o paradoxo do incesto não implica a anulação da combinatória que
inaugura as relações de parentesco e engendram o campo do sexual como
campo do desejo.

Nesse ponto podemos destacar a postulação de Dedekind criticada


por Bertrand Russel. É que esse efeito de escritura que é o irracional não

- 152 -
referencia a própria escritura enquanto tal. Diversamente disso, o que
Dedekind nos dá a entender com sua postulação é que, ao impasse gerado
pela escritura, somos levados a postular a existência do número irracional.
Esse número “existiria” da mesma maneira que os racionais. Eles também
estariam referidos à positividade da extensão, vale dizer, as lacunas que
eles representam são anexadas à reta e a completam. Essas lacunas não são
anexadas como tais, elas são anexadas como pontos “fictícios” existentes
como efeito de um pulo, de se ter transpassado o infinito, de se tê-lo
atualizado. Evidentemente, a atualização do infinito é um modo de afirmar
a “positividade” da lacuna, realizando sobretudo uma vocação do símbolo,
no caso, a escritura matemática, de dirigir-se, de apontar, para a coisa. Uma
vez que a extensão não está efetivamente lá, não existe extensão
correspondente ao 2 , o que existe é uma lacuna. Por isso só um sujeito
pode responder por sua suposição de lá onde o que há é o vazio da lacuna,
por essa lacuna deixar-se localizar de alguma maneira, então essa lacuna é
de alguma maneira – Lacan falará a respeito do vazio que é o objeto a e da
angústia que indica sua “presença”: a angústia não é sem objeto.

Analogamente, o incesto é uma afirmação supostamente real,


extensiva, de uma impossibilidade gerada no plano da escritura. Na
verdade, é impossível se relacionar sexualmente com “pai”, “mãe” e
“irmão” pelo simples fato de que essas entidades são símbolos pendurados
às pessoas reais, símbolos identificados a corpos; mas não são esses
corpos, pelo menos não são no sentido de que tais predicados – ser pai,
mãe ou filho – não especificam nenhum indivíduo do ponto de vista físico,
como o odor do cio que especifica a fêmea. “Pai”, “mãe” e “filho” são
relações “coisificadas”, que são encarnadas em pessoas efetivas. São
símbolos que nos precipitam a que os concretizemos nas pessoas. Quer
dizer, essa “coisificação” do símbolo não é inocente. É uma vocação dele
porquanto é apenas a partir dela, desde que ela esteja efetivamente
realizada, que acreditemos ser o Sr. Fulano de tal nosso pai, a Sra. Fulana,

- 153 -
nossa mãe e nós, seus filhos que podemos nos situar no mundo e nos laços
com nossos semelhantes.

Desse modo, a postulação de Dedekind evidencia a “criatividade”


implícita no símbolo e no modo como as coisas são organizadas a partir de
sua incidência. A realização do incesto não significa então a anulação dos
termos que constituem a classificatória mais básica na organização social
dos humanos: a diferença entre os sexos, e a diferença geracional. Muito
pelo contrário, ela engendra um “fato novo”: o próprio campo do desejo.
Por quê?

A realização do incesto não faz desaparecer seus personagens


identificados. Ela os situa como transgressores de um tabu, de uma lei, de
um pacto que rege a ordem social. Ora, é essa dimensão da transgressão e
do pacto, da lei e do crime, do certo e do errado que aparece a partir da
instituição do tabu do incesto e de seu correlato, sua transgressão –
correlato esse que não é simplesmente sua contradição. É esse outro campo
de referência, em função do qual estão situadas as ações dos humanos, os
seres falantes, que surge a partir do tabu de incesto.

O número irracional, o 2 , também é um termo “tenso”. Ele nos


faz sentir a exigência de uma expressão decimal finita que lhe corresponda
univocamente. Ou ele é um número simultaneamente par e ímpar, ou então
ele é um número infinito. Em ambas as situações, ele acarreta uma
impossibilidade; os números irracionais, produzem uma entidade
absolutamente vazia ou impossível de realizar-se num mundo em que a
existência se identifica, se mistura, com a presença da coisa. O passo de
Dedekind foi o de positivar essa impossibilidade. A iteração da operação
que engendra o 2 , permite conceitualizar que a seqüência gerada é um
processo limite discernível. Uma certa ordenação se produz no
desdobramento da iteração. Pode-se então calcular a partir dessas

- 154 -
ordenações. E um novo campo numérico surge: o campo dos números
reais. Campo que responde pelos principais avanços da ciência.

A afirmação do tabu de incesto supõe sua realização de alguma


forma. O tabu é uma prescrição. O tabu faz “existir” algo impossível de
existir, algo que passa a existir a partir de sua negação. É a proibição do
incesto quem cria os personagens em torno dos quais o incesto arma seu
cenário trágico. A proibição justamente supõe realizada a cena que ela,
enquanto prescrição, visa coibir, interditar. Mas por que dizemos que o
tabu faz existir algo impossível de existir? Dissemos que pai, mãe e filho
(ou qualquer outra estrutura elementar de parentesco), esses personagens,
só existem a partir da proibição, mas a troco de que essa situação inusitada
se apresentaria?

A resposta de Freud é a de que a proibição, o tabu do incesto, essa


regra com toda aparência de contigência, uma vez que de fato pode ser
desrespeitada, essa regra cobre, simboliza uma impossibilidade que não é
para nós neutra ou indiferente. Essa impossibilidade é, ao contrário, tensa,
ela nos acossa e exige uma solução, na medida mesmo em que é
impossível equacioná-la. O nome dessa impossibilidade é a pulsão.

A noção de corte, o conceito de pulsão e de recalque primário

O que é a pulsão a partir dos termos que temos levantado aqui?


Essa estrutura matemática sobre a qual temos nos dobrado, a dos números
reais, nos dá uma indicação importante desse conceito fundamental. A
pulsão, como conceito limite, especifica justamente uma exigência que se
coloca para todos nós, falantes, de que a satisfaçamos através da posse de
algum objeto, de um objeto que, caso existisse, ela não seria pulsão, seria
mais uma das inúmeras necessidades biológicas para as quais existem os
objetos adequados, objetos disponibilizados pelo mundo. Mas justamente a
pulsão se coloca para nós como uma exigência de objeto, que, no entanto,
não pode ser atendida – é impossível de ser atendida.

- 155 -
É como o nosso 2 , trata-se de uma operação que exige como
resultado um número finito, ou uma extensão finita. Trata-se, enfim, de
uma operação que nos lança na busca desse número ou dessa extensão,
apesar de nem esse número nem essa extensão existirem. Ou ainda mais,
trata-se de um número ou de uma extensão que temos de buscar, que
sabemos como buscar – a operação de radiciação é o meio de encontrá-lo –
mas que na verdade, esse único meio de encontrá-lo – a própria operação
de radiciação – engendra a cada etapa o buraco por onde o objeto
procurado escapa, furta-se a ser tomado. A cada etapa, temos um número
“próximo”, cada vez mais próximo ao número procurado. Mas a cada
etapa, estamos infinitamente distantes dele porque, ao nos aproximamos
dele, ele nos escapa mais uma vez.

Matematicamente falando o número procurado é o número finito


que, multiplicado por ele mesmo, tem como resultado o número 2. Esse
número não “existe”, como já vimos, não há outro meio de conhecermos a
expansão decimal da radiciação de 2 que não seja a execução indefinida do
algoritmo de radiciação, isto é, a radiciação de 2 não libera um número
finito.

O difícil de se dar conta nessa situação é que a razão pela qual não
atingimos um resultado finito na execução do algoritmo de radiciação está
no mecanismo mesmo de escritura numérica. Não é o caso de termos
errado na conta, ou de que não termos paciência nem tempo, de executar o
algoritmo até o fim, até encontrarmos um resultado finito embora muito
grande. Também não é o caso de esse número, que é a medida comum
entre o lado do quadrado e sua diagonal, ser um número muito pequeno
para o qual não temos meios de determinar seu valor. Não é nada disso. É
que a radiciação de 2 nunca liberará um número finito. Esse fato está
inscrito nos pressupostos mesmos da escritura numérica e da operação de
radiciação. No entanto, o fato de a “infinitização” estar inscrita na escritura
não é explícito; ao contrário, a escritura, muito “sedutoramente”, precipita-

- 156 -
nos no real da crença na existência de um número finito que corresponde a
uma extensão finita, perfeitamente localizável na reta.

Vale dizer, a própria escritura nos convida a resolver o impasse


implicado por ela como escritura no plano do objeto. A escritura não se
apresenta com seu “truque”. Ao contrário, muito inocentemente, ela nos
faz supor que tal número ou extensão existem. Isso inclusive foi uma
verdade histórica, uma vez que foi somente a partir do século XVII que os
problemas relativos aos irracionais e outras situações anômalas na
matemática começaram encontrar o caminho de uma solução definitiva.

O fator decisivo é a escritura ultrapassar o que nos pode ser dado


através do mundo. A escritura é excessiva em relação ao mundo. E ela não
nos adverte disso. Ela nos lança na ilusão de que o mundo pode preencher
a lacuna que ela produziu, mas que aparece como lacuna na coisa e não
nela, escritura. A lacuna não pode ser preenchida por nada desse mundo,
posto que ela é reinaugurada a cada vez que supostamente é satisfeita ou
preenchida por alguma coisa do mundo. Daí a importância do ato de
Dedekind. Ao postular a existência dos irracionais, ele completa com uma
inventiva, uma ficção, a lacuna que é efeito da escritura. Qual é a
importância dessa invenção? É que através dela a própria escritura pode ser
relevada como tal, já que o objeto suposto existir, o número irracional
postulado, é o reconhecimento do fato de uma exigência posta pela
escritura. Vale dizer, só uma invenção, uma ficção, pode corresponder a
uma exigência posta pela escritura.

Notável é tudo isso, sobre o que estamos discorrendo – sobre os


números irracionais, sobre a escritura que os engendra –, adaptar-se muito
bem ao conceito de pulsão e de recalque primário. As representações
psíquicas são elementos de um sistema significante que Freud concebe
como uma escritura em sua materialidade. As leis de composição desse
sistema, o processo primário, engendra exigências de satisfação
completamente desatreladas de quaisquer compromissos biológicos e

- 157 -
adaptativos. São exigências internas, derivadas da escritura. Como
respondemos a essas exigências?

Em primeiro lugar, com um tipo muito particular de inventivas, de


ficções – a alucinação. Se algo não comparece no lugar onde uma
exigência de escritura assim o determina, a escritura “inventa”
alucinatoriamente esse algo. Mas esse funcionamento “louco” tem de ser
barrado. E para tal se faz necessário que a escritura, ou em termos
freudianos, o aparelho mental, represente esse transbordamento, que é ele
próprio. Faz-se necessário que o sistema articule a ordem própria na qual
suas exigências podem ser satisfeitas – a ordem do discurso. Por que
discurso? Porque discurso significa o campo inaugurado pelo significante,
aqui indicado pela idéia de escritura. Nesse campo o que é dado deixa-se
submeter às suas leis, demarcando-se em relação à coisa absoluta
alucinada. A postulação do número irracional libera-nos de ter de encontrá-
lo e de, ao buscá-lo, cairmos no buraco do infinito.

Pela postulação, ele tem uma existência suposta, fictícia, isto é,


discursiva. Ele é suposto, e não alucinado. Sua postulação faz dele uma
entidade teórica. Vale dizer, a postulação tanto nos permite trabalhar com
ele como se ele fosse real, como contempla os diversos aspectos em que
ele é uma entidade teórica completamente afastada do mundo e por isso
insuficiente, isto é, que suporta uma falha.

É numa direção análoga à esboçada acima que podemos entender,


numa perspectiva psicanalítica, o caráter paradoxal do incesto. Os
personagens do tabu de incesto, como a idéia de irracional, são como
ficções que nos orientam porque apresentam para nós o caráter simbólico
da ordem de linguagem que nos determina. E mais, é o caráter paradoxal
do tabu de incesto que simboliza nossa constituição na linguagem.
Podemos entender então o que diz respeito ao registro pulsional: não
estamos liberados da exigência de termos de encontrar certos objetos para
acalmar certos tipos de apetites. No entanto, esses apetites são derivados do

- 158 -
aparelho de linguagem e não possuem qualquer compromisso com a
adaptação. Por isso Lacan lembra-nos de que, para nós, o objeto é perdido.
Trata-se de uma exigência objetal, que, mesmo não podendo ser
preenchida por qualquer item, seja do mundo, seja do imaginário, mantém
a exigência de que objetos a preencham – essa é a ordem da demanda. Eis
porque o registro pulsional é abusivo: ele nos solicita o impossível. Lança-
nos na busca de um algo, efeito de uma injunção de escritura que, no
entanto, supomos ser uma coisa dada aí no mundo. É como a operação de
radiciação, que nos solicita um número não existente, nem possível. Ao
nos solicitar o número, ela renova infinitamente a circunstância de esse
número não ser encontrado e de termos de retornar infinitamente à
exigência descabida de encontrá-lo.

Quanto à idéia de recalque primário e de seu correlato, o tabu de


incesto e sua virtual realização, enfim, o conjunto de termos com os quais
Freud articula o complexo de castração e a lei paterna, verificamos que na
verdade, não existe nenhum conteúdo primariamente recalcado, no sentido
de que um dado evento efetivamente ocorrido seja inacessível à
rememoração. A função do recalque é a de nos apresentar o caráter
simbólico do objeto que a linguagem exige de nós. Simbólico quer dizer,
objeto tecido na e pelas palavras. A lei paterna em jogo no recalque
primário apenas “proíbe” – esse é o sentido do tabu do incesto – como se
fosse um fato contigente, que satisfaçamos uma exigência impossível de
ser satisfeita. Proíbe o impossível. Mas por que o contrasenso de interditar
uma impossibilidade? Não é a impossibilidade ela própria o limite à sua
efetivação?

Se algo é impossível é porque não pode acontecer, não havendo


portanto, nenhuma necessidade de proibição. Infelizmente, para o sujeito a
modalidade do impossível não se comporta dessa maneira consagrada pela
tradição oriunda da lógica de Aristóteles – onde o impossível é o que não
pode acontecer. A impossibilidade nua e crua precipita o sujeito na

- 159 -
alucinação, que tanto é presença da coisa quanto, ao mesmo tempo, é
aniquilamento do sujeito. Sob esse aspecto, a impossibilidade é equivalente
à “infinitização” inerente à problemática dos irracionais, ela é como um
buraco ou uma radical inconsistência que petrifica o sujeito em sua própria
falha constitutiva. Faz-se necessário então que a impossibilidade se
represente como tal; que, em seu ponto de incidência mais agudo, o vazio
se coloque como espaço para o sujeito em seu ato, o sujeito enquanto
representado pelo significante paterno, significante do discurso que abre a
única via possível para o sujeito: se exercer como desejo no discurso. O
recalque primário basicamente nos assegura que nenhum objeto deste
mundo, que nenhuma imagem é o Objeto; que todos os objetos desse
mundo, que todas as imagens e significações são substitutos, são como
“aproximações”, tão próximos quanto distantes do objeto primordial – que
sequer existe ou, dito de outra forma, que existe apenas como exigência da
linguagem. Esta, ao se marcar em seu excesso quanto a se satisfazer com
qualquer coisa que lhe venha em resposta, ao se marcar como pura
exigência, nesse movimento declina-se então como a lei do pai cujo
mandamento é: deseje95. Cumpre assinalar que essa pura exigência, essa
exigência que se destaca da atividade alucinatória, essa pura exigência
representada como tal, essa exigência é, enfim, suportada pelo significante
paterno.

O significante paterno e os termos que giram em torno dele –


Complexo de Édipo, Complexo de Castração, Tabu do Incesto, etc. – são
como o nosso 2 , não o radical que exige a operação, mas o símbolo do

95
Podemos ler na lição de XIV de 21 de março de 1962 do semininário da Identificação:
É essencialmente isto, uma relação entre uma demanda que toma um valor
tão privilegiado que ela se torna o comando absoluto, a lei, e um desejo, o
qual é o desejo do Outro, do Outro que se trata no Édipo. Esta demanda se
articula assim: você não desejará aquela que foi meu desejo.

- 160 -
irracional quando o infinito é atualizado96. A postulação afirma o símbolo e
com ele podemos operar, fazer avançar o discurso matemático, mas isso ao
preço de uma perda essencial. É como se a “infinitização” fosse promessa
eterna da coisa e a atualização do infinito barrasse a queda no buraco da
“infinitização”; a atualização do infinito implica tanto que a coisa se deu
sem ter se dado – supomos que o irracional se comporta como se fosse
uma entidade inteira, temos aí a dimensão algébrica implícita na solução da
problemática dos irracionais – quanto implica que essa coisa enquanto tal,
com o seu contorno definido, é perdida desde sempre. O que podemos reter
dela é o que nela se pode contar97. Do mesmo modo, o significante paterno
simboliza a “infinitização” implícita no registro da demanda. É nesse
registro que se coloca para nós inicialmente a problemática do irracional,
da existência de um objeto que, ao satisfazê-la situaria a demanda como
uma exigência biológica marcada por um ritmo oscilante entre a
necessidade e a satisfação.

Justamente o registro da demanda como homólogo ao pulsional


implica a “infinitização” da demanda. Cada demanda, no exato momento
em que encontra o suposto objeto por ela visado, produz a exigência de sua
reiteração e portanto de que um “novo” objeto venha satisfazê-la. O que
barra então essa “infinitização” é o significante paterno. E essa é a
dimensão estrutural em jogo no parentesco. “Proibir” a mãe é pura e
simplesmente barrar a “infinitização” em jogo no registro da demanda. A
mãe é isso: a “infinitização” intrínseca ao registro da demanda.
“Infinitização” que precipita o sujeito na alucinação. O significante paterno
então atualiza esse infinito com a conseqüência de uma perda para o
sujeito. Essa perda esta no fato do objeto alucinado pôr-se em seu estatuto
próprio, isto é, como impossível e perdido desde sempre. É porque o

96
A letra pode ser a mesma, 2 , mas o valor é completamente diferente caso a
situemos apenas como signo da operação de radiciação ou como símbolo que denota o
irracional 2 .
97
A esse respeito ver a lição II de 21 de novembro de 1962 do seminário A Angústia.

- 161 -
significante paterno em sua aparente contradição apenas assinala o
caminho que vai da demanda (satisfazer-se da mãe) ao desejo (como o pai
que não tomou a própria mãe como objeto, mas que tomou uma outra
mulher). Desejo nada mais é do que realizar o pulsional na via do discurso,
dos objetos substitutivos e de, principalmente, sustentar-se na própria
palavra.

Encerramos este capítulo aqui. Apenas relevamos dois pontos


essenciais e conexos. Eles dizem respeito à relação entre a psicanálise e a
ciência. Poderíamos formulá-los a partir da seguinte pergunta: se, como
vimos, a psicanálise se articula numa conceitualização que toca em
aspectos essenciais aos fundamentos da ciência por que ela não é uma
ciência?

O primeiro encaminhamento para essa pergunta é o de que, a partir


da resposta dada à problemática dos irracionais, a ciência teve êxito em
estipular as leis básicas e os fundamentos do cálculo. Não é esse o caso na
psicanálise. Freud não formulou nenhum cálculo ou algoritmo de acordo
com o qual uma análise pudesse se desdobrar. Na psicanálise, trata-se de
palavra e discurso, e não de cálculo e demonstrações. O segundo
encaminhamento é o de que, se a ciência enquanto discursividade que
constitui a modernidade se caracterizou por ter relevado a questão do resto,
do erro, das aproximações, é de se perguntar em nome de que ela operou
nessa direção. De fato, não existiria ciência tal como entendemos hoje não
fosse esse fato. Como vimos, a negativização da extensão foi um passo
fundamental para se equacionar a problemática do movimento e das
variações em geral. A ciência grega não avançou porque certamente esse
passo não foi possível na conjuntura na qual ela se desdobrava. Mas a
pergunta retorna, em nome de que a ciência deu esse passo?

A resposta é: em nome do objeto. A ciência reconhece e computa os


restos, os erros; postulou a solução, que vimos em torno dos irracionais e
muitas outras, não para considerar a relação do impossível aí posto com o

- 162 -
sujeito, mas para melhor caracterizar os objetos. Na verdade, a astúcia da
ciência é a seguinte: relevar o erro, a problemática dos restos, enfim, a
infinitização implícita em sua operação para melhor desconsiderá-los. O
foco da ciência não é, portanto, o sujeito; seu foco é o objeto. E não se trata
nela do objeto levado ao limite em que poderia se articular como causa do
desejo. Em sua articulação com o capitalismo, o objeto de que se trata na
ciência são os objetos ofertados à demanda. Como inúmeras vezes Lacan
colocou, a discursividade que recolhe os efeitos subjetivos dessa lógica da
ciência e do capitalismo é a psicanálise.

- 163 -
Capítulo VI

LACAN E A MATEMÁTICA

A Topologia e o estilo de Lacan

Apesar da alegada complicação do texto lacaniano, não podemos


deixar de considerar de saída o seguinte aspecto: ele é mais exato e preciso
do que o texto de Freud quanto ao que se trata de dizer em psicanálise. Ele
é mais exato em razão da equivocidade explícita própria a seu estilo, o que
não é o caso de Freud. Este busca o entendimento, a comunicação, e
freqüentemente produz o efeito das coisas parecerem mais simples do que
realmente são98. A começar com a formulação a respeito do objeto da
psicanálise. Entende-se Freud como “biólogo” da mente, psicólogo,
sociólogo, neurólogista, etc. Eis um tipo de equívoco difícil de ocorrer na
pena de Lacan. Ainda que pese a multiplicidade de referências por ele
convocadas para dar conta da experiência analítica, é raro, e mesmo muito
estranho, considerá-lo um lingüista, um matemático ou um crítico literário
– para designar algumas referências com as quais ele trabalha.

De fato, desde o início de sua produção teórica, Lacan marca a


exigência de demarcação da psicanálise em relação a outras
discursividades, mesmo aquelas em relação às quais ele se sente mais em
dívida, como o estruturalismo e a própria psiquiatria. Não temos dúvida: a
leitura sui generis que ele opera em relação a essas outras disciplinas
conexas não é um capricho. Ao contrário, é uma maneira de ele situar as
particularidades intrínsecas do campo freudiano na deformação que este
impõe aos conceitos oriundos dessas disciplinas.

98
Essa posição de Freud é inevitável. Que ele busque o dialógo com seus
contemporâneos, sendo ele o fundador de uma nova disciplina, é prova de que ele não
era um louco, que ele situava seu trabalho e sua pesquisa numa exigência de laço social.

- 164 -
Naturalmente, esse é o caso com a matemática. A título de que ela
freqüenta seu texto? Descartemos de saída certas considerações sobre esse
uso. A esse respeito nos são bastante úteis as críticas de Sokal e Bricmont
já comentadas no capítulo I. Principalmente porque elas denunciam em
Lacan uma pretensão que ele nunca teve: a de fazer valer as asserções
psicanalíticas como científicas em razão do manejo de um certo jargão
sancionado pela ciência. Nada mais afastado do texto de Lacan do que o
estilo característico de uma apresentação em física ou matemática ou em
qualquer “ciência dura”, ou mesmo na tradição filosófica. Isso é explícito.

Os dois críticos na verdade, atribuem a Lacan um manejo da


linguagem matemática que ele nunca pretendeu ter. Eles inventam, não
sem malícia, uma pretensão de Lacan não existente para a seguir denunciá-
la como uma manobra mistificadora. Não se trata apenas de uma manobra
de auto-promoção da parte deles. Mesmo sem fazerem sequer uma crítica
efetiva a Lacan, eles o pintam como um mistificador. Assim, com essa
manobra de denúncia, eles afirmam, como dois heróis, uma concepção de
ciência e do bom manejo da matemática que passa como natural e óbvio. É
uma manobra inteiramente retórica: “criticar” Lacan e os franceses para
promover, como se fosse o fino do fino, o realismo empiricista o mais
primário possível. Mas eles tocam num ponto sensível. Afinal, não são
poucos, mesmo entre os lacanianos, que não vêem qualquer razão nem
sequer compreendem os motivos pelos quais ele insistiu tanto em trabalhar
seus conceitos numa referência matemática.

É óbvio que a matemática não está em seu texto tal como num texto
científico. Não é necessária nenhuma denúncia para nos darmos conta
desse fato. Basta lermos Lacan e trabalharmos um texto em matemática
para logo nos apercebermos disso. Para nos limitarmos à matemática,
tomemos ao acaso alguns textos técnicos. Por exemplo, Nós e Vínculos
(Knots and Links) de Dale Rolfsen (1976/1990). Ele começa com uma
brevíssima indicação de natureza histórica a respeito dos nós – menos de

- 165 -
uma página – para logo a seguir especificar, explicitar, os elementos com
os quais vai trabalhar: seu código de notação e definições. Seguem-se os
teoremas, exercícios propostos, novos teoremas, novos exercícios e dessa
maneira o texto vai discorrendo a respeito do que se propõe a dizer. Com
algumas variações, outros textos de matemática estão estabelecidos desse
modo. Existem os manuais, por exemplo, o livro Topologia Geral de
Seymour Lipscchutz (1965/1979). As notações, a “estenografia” e as
noções são introduzidas através de uma exposição em linguagem ordinária
que faz apelo a uma certa intuição. Mas isso é por pouco tempo. Nos
capítulos iniciais vemos o autor se esforçar nessa direção, especialmente
porque neles ele introduz a linguagem na qual os teoremas da topologia
geral vão se expressar – a teoria dos conjuntos. Ele também apresenta
muitos exercícios resolvidos. Esses exercícios especificam de uma maneira
“prática” como manejar os conceitos e as noções vistas ali.

Vejamos como se organiza um “clássico”: o texto de Dedekind


(1901/1963) sobre os irracionais, Continuidade e Números Irracionais99.
Ele começa por apresentar a problemática sobre a qual vai discorrer; a
seguir, discorre sobre as propriedades dos números racionais de um ponto
de vista aritmético. Essa apresentação é em prosa, com pouco formalismo e
intuitiva, no sentido de que entendemos perfeitamente o que ele quer dizer,
embora ele maneje noções como classe, maior que, menor que, número,
que logo em seguida sofrerão um exame exaustivo por parte dos lógicos e

99
Tem sua importância observar que esse estilo de comunicação científica a que
estamos submetidos atualmente é datado. Ele surgiu na metade do século XIX. Foi então
um problema real a autoria em ciência. E, embora hoje em dia bastante atenuado, ele
ainda persiste – vide por exemplo as questões sobre a descoberta do vírus da Aids Por
exemplo, Newton e Leibniz se valeram de uma técnica de divulgação de suas idéias que
soaria para nós hoje bastante surpreendente: eles as anunciavam por meio de anagramas!
Foi muito lentamente que se chegou a esse estilo que exige uma revisão bibliográfica,
uma discussão com os principais autores de um dado campo, uma delimitação do
problema, etc. E que permite de alguma maneira discriminar-se, até um certo ponto e
dentro de certos limites, a contribuição de cada um. Um sociólogo, Robert K. Merton
observou que 92% das descobertas simultâneas do século XVII terminaram em disputas,
72% no século XVIII, 59% no século XIX e 33% na primeira metade do século XX.
(HELLMAN, 1998, p. 63-89).

- 166 -
matemáticos interessados nos fundamentos de sua disciplina. Em seguida,
ele convoca a noção de extensão ou continuidade – pontos de uma linha
reta – e examina a relação dessa noção com os números racionais.
Estabelece a necessidade da postulação do número irracional como único
recurso para fundar a continuidade e a completude da reta. No item VI, ele
demonstra que os irracionais obedecem às regras aritméticas básicas e, no
item VII, apresenta a conexão do que ele expôs com os fundamentos da
análise matemática.

Vamos considerar agora um texto em filosofia da matemática,


Introdução à Filosofia da Matemática de Bertrand Russel (1901/1981). É
um texto dirigido a um leitor razoavelmente cultivado em que ele expõe o
essencial sobre suas idéias matemáticas e lógicas. É um texto em prosa,
econômico em demonstrações embora elas não faltem, pois não seria
possível, sem elas, caracterizar adequadamente determinadas situações
próprias da matemática e da lógica. Mas é um texto que busca expressar a
matemática e a lógica em “linguagem comum”. Entendemos o “filosófico”
no título dessa obra justamente como a pretensão em expressar em
linguagem comum, em uma linguagem a princípio acessível a todos,
“universal”, os temas fundamentais da matemática e da lógica.

Todos esses textos, com propósitos diferentes, dirigidos a públicos


diferentes, têm uma característica em comum: a de se valerem de uma
concepção a respeito de como funciona a linguagem. Eles são
semanticamente bem orientados. Quer dizer, a formulação lingüística
busca cernir a significação, apresentar um significado a cada passo de sua
articulação. O sujeito nesses textos é essa “vontade” de dizer as coisas
precisamente, com a menor equivocidade possível.

Embora não possamos definir precisamente o que seja esse “a cada


passo de sua articulação”, podemos sugerir, a título de uma maior clareza,
que ele tende a se confundir com a frase, ou com um conjunto pequeno
delas que formula uma idéia completa. A argumentação nesses textos

- 167 -
prossegue dessa maneira: somos sempre bem assistidos do ponto de vista
de uma certa completude semântica que acompanha e estofa o que eles
pretendem dizer. Além disso, o nexo entre as “unidades” significativas
também não é qualquer um. É aquele que dizemos ser pautado na
coerência em sua acepção clássica, a de que, se num certo contexto o autor
afirma a proposição p como verdadeira, ele não pode afirmar mais adiante
em sua argumentação a proposição não-p. A teoria do funcionamento da
linguagem implícita nesse manejo é a de que a linguagem é maximamente
eficaz quanto a seus propósitos discursivos quando utilizada dessa forma.
Tais propósitos são identificados à comunicação, vale dizer, essa é a
melhor maneira de dar a entender alguma coisa a outrem, no sentido de
que, ao cabo da exposição, o que autor pretendeu expressar coincide com o
que leitor entendeu. É uma concepção da linguagem que a orienta para a
coisa, a linguagem é instrumento para expressar a coisa. Nesse contexto,
coisa não é apenas o nome que genericamente designa os objetos concretos
constitutivos do mundo físico; coisa é também tudo aquilo que pode
freqüentar a articulação lingüística a título de “extralingüístico”, como se
fosse objeto, “lá-fora” de alguma maneira. Só falando assim podemos
entender que as formulações matemáticas e lógicas expressam alguma
coisa, uma vez que os entes aos quais elas se referem não são entidades
físicas.

Evidentemente, o texto de Lacan, seus seminários e,


principalmente, seus escritos interrogam a concepção de linguagem
implícita nos textos de natureza filosófica ou científica. Não interrogam
numa acepção acadêmica. Eles interrogam, em ato, por simplesmente não
serem construídos desse modo e ainda assim serem lidos e reputados por
articularem um saber psicanalítico tão importante quanto sui generis. Não
há, então, a menor necessidade de esse fato ser denunciado, porque ele é
patente, explícito, e mais do que isso, é integrante do que é dito em seu
texto. A questão então é: o que visa o texto de Lacan?

- 168 -
Tendemos, hoje em dia, a identificar o conceito de “racionalidade”
ao tipo de expressividade encontrada nos textos de matemática. Não
queremos dizer, naturalmente, que somente esses textos possuem tal
característica. Mas a linguagem científica e toda uma certa tradição
filosófica defendem e praticam uma discursividade que tende para esse
extremo de explicitação e de articulação significante, de redução à letra,
que encontramos na matemática100. O que estamos dizendo não coincide
de maneira alguma com as questões sobre ontologia e linguagem, sobre o
realismo, o convencionalismo, etc. Mesmo um texto da pragmática –
tradição que se opõe ao realismo – desdobra-se da maneira que estamos a
discorrer. Por exemplo, no texto de Quine, um autor importante da tradição
pragmática, A Relatividade da Ontologia (1969/1977, p. 40) podemos ler:

A semântica ingênua é o mito de um museu onde os itens expostos são as


significações, e as etiquetas as palavras. Passar de uma linguagem a outra
equivale a mudar de etiquetas. A objeção principal de um filósofo
naturalista contra essa concepção não diz respeito às significações
enquanto entidades mentais, embora isso já seja uma objeção. Sua objeção
principal permanece mesmo se consideramos os itens expostos
etiquetados, não como idéias no espírito, mas como idéias platônicas,
mesmo como objetos concretos denotados. Um mentalismo pernicioso
infecta a semântica, desde que olhemos a semântica de um indivíduo
como determinada em seu espírito para além disso que pode estar
implícito em suas disposições ao comportamento manifesto. São os fatos
tocando à significação, e não as entidades significadas, que é necessário
analisar em termos de comportamento.

As afirmações de Quine são claras. Embora ele defenda o ponto de


vista de que não existem coisas independentes da linguagem e do indivíduo
que as formula, suas afirmações não são ambíguas ou equívocas. Como
filósofo, ele está situado em um ponto em que podemos entender todos os
exemplos de equivocidade por ele descritas em seu texto. Mas esses
equívocos estão “lá-fora”, eles estão expressados por suas palavras como
se fossem coisas “lá-fora”. Melhor dizendo, não fazemos em relação ao
texto de Quine a experiência do que está em questão em sua crítica. Ao

100
Essa foi, por exemplo, a posição que o wittgensteiniano Jacques Bouveresse assumiu
em relação ao “episódio Sokal” (BOUVERESSE, 1998).

- 169 -
contrário, o que ele expressa não está situado ali onde ele diz. Está situado
lá, no lugar da significação – não importando muito se esse lugar são
essências puras platônicas, entidades mentais, coisas na realidade, produtos
históricos circunstanciais, etc. Mais adiante ele diz:

Abraçando, com Dewey, uma concepção naturalista da linguagem e uma


concepção behaviorista da significação, o que abandonamos não é apenas
a metáfora do museu. Nós abandonamos também uma garantia de
determinação (1969/1977, p. 41).

O que queremos enfatizar é o fato de o texto de Quine não praticar


o que ele advoga ser a ausência de determinação no uso da linguagem. Por
outro lado, o texto de Lacan é a colocação em ato de um manejo da língua,
cujo primeiro sentimento que temos é de uma radical indeterminação. A
ponto de muitos críticos sequer avançarem muito em seu texto, alegando
obscurantismo e outros adjetivos afins. O texto de Quine afirma a
indeterminação, mas é, ele mesmo, escrito na forma universalmente
consagrada: é claro, apresenta uma certa coerência, busca a plausibilidade,
etc. No entanto, embora o estilo de Lacan realize de uma maneira radical o
que é descrito por Quine, não podemos afirmar que, em razão desse fato,
Lacan esteja a propor uma discussão sobre a relação entre ontologia e a
linguagem ou qualquer outra discussão afim com essa, como é o caso de
Quine.

O próprio texto desta tese segue o princípio de comunicabilidade


que estamos indicando. Nós não visamos aqui a equivocidade; se ela
ocorre, é porque isso é inevitável e nosso esforço é na direção contrária a
esse efeito inevitável. Não é esse o caso, mais uma vez, do texto de Lacan.
A experiência que fazemos de seu texto é, em primeiro lugar, a do
desamparo semântico. Esse é inclusive o primeiro ponto situado por
aqueles que tiveram contato com seu texto – contra ou a favor, não
importa. Não é o caso de que coloquemos qualquer interrogação ontológica
acerca da natureza do que ele quer dizer. Simplesmente fazemos uma
experiência desagradável: não entendemos o que está escrito na página do

- 170 -
livro – qualquer que seja a acepção dada a “entender” nesse contexto. A
decisão de se prosseguir ou não na leitura é tomada por muitos nesse
primeiro contato com o texto. A crítica de Sokal, por exemplo, ressalta
sobretudo esse primeiro tempo. Ela visa aumentar, estimular esse elemento
aversivo, mesmo repulsivo, que aí aparece e que conduz alguns a rejeitar o
texto lacaniano ou relegá-lo à indiferença. Por exemplo, em relação ao dito
de Quine mais acima. Mesmo procedendo como ele indica, não supondo
uma semântica para “além do que pode estar implícito do comportamento
manifesto” de Lacan e ficando no plano da significância e menos no dos
significados, ficamos no desamparo no sentido de que não temos êxito em
reconduzir os contextos propostos por Lacan a uma unidade significativa
qualquer, mesmo a mais conjuntural e contigente. Por que lê-lo então? Por
que se ocupar dele?

Sem dúvida, uma das razões é que Lacan não se apresenta a nós
apenas por seu texto. Ele se apresenta por sua palavra também. Há todo um
conjunto de intervenções diretas e em vários níveis, como analista,
psiquiatra, maitre à penseur, etc., que se desenrolaram ao longo do tempo
por um período de mais de cinqüenta anos no influente contexto cultural
francês. Ele foi alguém que não só marcou sua geração como também
nunca deixou de estar a frente da organização dos dispositivos
institucionais psiquiátricos e de transmissão da psicanálise na França.

Existe toda uma história na qual ele se situou como um foco de


transferência tão evidente quanto inevitável. Transferência nesse contexto
quer dizer que ele se constituiu como uma autoridade no sentido de que sua
posição não se sustentava apenas pela racionalidade, inteligibilidade,
plausibilidade presentes em seus textos. Sua autoridade derivava, além da
existente na ordem das razões, do efeito de seus atos na cena pública nos
diversos níveis em que ele pôde incidir. Isso significa que os textos de
Lacan não podem ser tomados desarticulados do que foi sua figura e dos

- 171 -
dispositivos institucionais por ele propostos quanto às condições de
transmissão da psicanálise.

Nesse sentido, aproximamo-nos de Quine no mesmo capítulo de


suas citações (1969/1977, p. 40-41), quando ele diz que o conhecimento de
uma palavra (e por extensão da linguagem) consiste em dois processos.
Um é a capacidade de reproduzi-la – fazendo prevalecer aí o aspecto
fonético, sendo a imitação o modo de adquirir essa competência
simplesmente. O outro, que ele designa como semântico, consiste em saber
como empregar uma palavra. Aproximamo-nos de Quine no sentido de que
os textos de Lacan não podem ser apreendidos desarticulados dos vários
contextos pragmáticos por ele propostos, que vão desde a psicanálise tout
court, até os dispositivos concretos nos quais esses textos são trabalhados.

Mas seria falsa a impressão de que o contexto pragmático do


lacanismo esclareceria o texto de Lacan. Isto porque o que está em jogo em
seu texto é exatamente a exigência de esclarecimento. Há um ponto
irredutível em seu texto a qualquer esclarecimento; um ponto não coberto
pela operação que produz esse efeito-de-saber que denominamos
esclarecimento. É dizer então que Lacan é matéria de fé, de dogmatismo?

Os americanos são especialmente severos a esse respeito. Toda uma


linhagem crítica da psicanálise tem se desenvolvido atualmente justamente
no tocante a esse ponto (CIOFFI, 1998; CREWS, 1998; GRÜNBAUM
1984/1996; BOUVERESSE, 1991/1996). Eles visam Freud. Apesar das
dificuldades que podemos ter com seu texto, Freud foi um autor cujo estilo
segue uma estratégia de esclarecimento, pela via de uma argumentação
plausível. Não falta inclusive quem alegue ser o freudismo o efeito de uma
iniciativa deliberada de Freud em enganar para se constituir como um
grande homem na história – ele teria sido uma “personalidade messiânica”
(WEBSTER, 1995/1999, p. 14-15). Todas essas críticas giram em torno da
questão da testabilidade da teoria psicanalítica, da distinção entre um efeito
real produzido por seus instrumentos operatórios efetivos e um efeito

- 172 -
produzido pela sugestão do analista. Por não estar referida a certas
exigências impostas pela iniciativa que visa o esclarecimento, a psicanálise
é então identificada, por alguns desses autores, como um tipo de
charlatanismo “pseudocientífico” (WEBSTER, 1999/1995).

As críticas dirigem-se precisamente ao ponto em que algo na


psicanálise não se reduz às táticas de esclarecimento, mesmo as mais
abrangentes (GRÜNBAUN, 1984), as mais “contextualistas”. O fato de o
acatamento da psicanálise sempre jogar com a presença da figura de Freud
é entendida, por esses autores, como índice de mistificação e do caráter
dogmático e religioso da psicanálise (WEBSTER, 1995/1999). Lacan,
segundo eles, a esse respeito fez pior. Não só promoveu sua própria
idolatria como também formulou uma “mística” a partir de uma linguagem
só acessível aos iniciados. Podemos dizer que esses autores estão errados?
Que não fazem justiça ao valor das obras de Freud e de Lacan? Que são
cegos? Que resistem? Resposta: sim e não.

Sob um certo aspecto, eles estão corretos, pois apenas defendem a


perspectiva de esclarecimento, que é a deles e que, considerada em seus
pressupostos é bastante plausível e coerente. Como eles não entendem nem
Lacan, nem Freud, nem a psicanálise, recusam então o que não entendem.
Sendo tão inteligentes e até cultos, se eles não entendem é porque não há
nada mesmo a entender. Aqueles que defendem as idéias desses autores ou
são iludidos ou são mistificadores iguais a eles. Esses autores defendem a
idéia de que a ciência ou as formulações esclarecedoras de cunho filosófico
são uma alternativa a esse estado de coisas, porque podem estar a serviço
de constituírem dispositivos que de fato nos aproximam, conforme a
ontologia abraçada, da verdade, daquilo que é, do consenso, ou através do
estilo polêmico, de uma relativização dos credos, o que minimiza os riscos
do culto à personalidade ou de submissão à autoridade de um mestre. Eles
acreditam que as discursividades, ao visarem o esclarecimento, de cunho
científico ou filosófico, herdeiras do iluminismo, poderiam nos liberar da

- 173 -
injunção de termos de nos constituir na submissão à palavra do pai,
principalmente no que ela está fundada em sua autoridade (no caso, a de
Freud e Lacan), e não na objetividade científica que porventura ela pudesse
ter.

Entretanto, a questão colocada por Lacan, através de seu estilo, não


é uma questão ideológica. Nem Freud, nem Lacan muito menos ainda,
propuseram doutrinas cujos objetivos fossem promover qualquer ordem de
valores no campo do humano como um todo101. O objetivo de ambos, e
deliberadamente o de Lacan, foi o de demonstrar o real da incidência da
linguagem na causação do humano. Que real é esse? Para Lacan, a relação
do sujeito com a palavra é anterior ao advento da significância e, portanto,
a esse efeito de saber que é o esclarecimento, sendo este freqüentemente
assimilado à idéia de consciência, de lucidez. Somos constituídos pela
palavra tanto no plano da representação das coisas, e dos laços com nossos
semelhantes, quanto no nosso investimento nas coisas como coisas e em
nossos próprios semelhantes. Quer dizer, as coisas e nossos semelhantes
não são para nós antes de sermos introduzidos na linguagem. Investir em
algo já é identificá-lo de alguma maneira a partir da linguagem, quer
saibamos disso, quer não; já é concebê-lo e isso supõe que estejamos
constituídos na e pela linguagem. Essa é a porta de entrada no texto de
Lacan. Entramos nele se acatamos com o fato de que, para atravessá-lo,
faz-se necessário tolerar a experiência desagradável de “experimentar”
como déficit de saber nossa relação com esse texto.

A entrada no texto de Lacan atesta, sobretudo, que não estamos


vinculados à palavra apenas no ponto em que a articulação de linguagem é
efeito de saber, de esclarecimento, ou mesmo de significação de que
podemos nos apossar com um baixo custo subjetivo. A entrada no texto de

101
Os textos de Freud Mal-Estar na Civilização (1930), O Futuro de uma Ilusão (1927)
e a “Questão da Weltanschauung” (1932), não deixam dúvida sobre esse aspecto. Lacan
retoma inúmeras vezes esse tema e se posiciona na mesma direção que Freud. Conferir o
artigo de Ana Beatriz Freire (1996) “Weltanschauung: Ciência, Magia e Religião”.

- 174 -
Lacan exige de nós algo que soa excessivo, inoportuno, desatual; algo que
implica acatarmos sua “autoridade” e confiarmos que, naquele texto
confuso, no limite do inabordável, existe uma indicação que nos interessa
em relação à psicanálise e à questão de que ela trata: o sujeito. É natural
que a relação a esse texto soe estapafúrdia ao filósofo, cientista ou
ideólogo. Afinal, para eles, que sentido há em se praticar a leitura de um
texto que não libera significações ou conteúdos com uma certa
regularidade, facilidade ou ainda conseqüência de um manejo explícito das
regras de linguagem? E que, além disso, demanda uma submissão à sua
letra, ou seja, justamente isso que a filosofia vem denunciando como a
fonte de todos os males da modernidade – a submissão ao mestre?

É natural que um texto assim, seja considerado, na melhor das


hipóteses, um texto sagrado, e não um texto científico. Tomemos, por
exemplo, a acusação de sugestão. As interpretações psicanalíticas seriam
arbitrárias e seus efeitos, quando existissem, seriam devidos à sugestão
mas não a qualquer outro tipo de eficácia da palavra.

Ora, a questão da psicanálise não é se destacar da sugestão. Freud


não abandonou a sugestão por escrúpulo moral, ele abandonou-a porque
ela não era “eficaz”. Poderíamos até pensar que, se a hipnose e a sugestão
tivessem sido eficazes para modificar os quadros neuróticos, a psicanálise
não existiria – vide Estudos sobre a Histeria. No entanto, para ele, o que
lhe interessava na sugestão era sobretudo o efeito da palavra. Esse é o fato
a ressaltar. O sintoma cedia apenas parcialmente em função da sugestão.
Quer dizer, de qualquer modo, a sugestão expunha o fato de que a palavra
tem uma incidência no plano do corpo mesmo, que passa muitas vezes
completamente desapercebida pelo sujeito.

Mas não é só isso. Se olharmos bem de perto, veremos que a


sugestão enquanto fenômeno encerra um fato muito mais fundamental: ela
põe a nu a nossa condição de sermos constituídos através da passagem pelo
campo do Outro. Num certo sentido, significação e sugestão coincidem.

- 175 -
Concordamos com Quine (1969/1977) que compreender uma palavra é
saber como empregá-la. Acrescentamos que quaisquer circunstâncias que
envolvem palavras implicam também um laço social, pois aprendemos as
palavras numa exposição a elas a partir dos outros. Por isso é evidente que
compreender uma palavra é, num primeiro tempo, deixar-se “sugestionar”
por ela. Para psicanálise seria até impróprio o uso do verbo deixar em sua
forma reflexiva nesse contexto. Isto porque, para ela, não existe um sujeito
já constituído antes da palavra, um sujeito apto a sofrer passivamente sua
influência mesmo que concebamos essa influência como absoluta e radical.
Para a psicanálise, a situação é muito mais radical porque é a palavra, é na
palavra, que o sujeito se constitui.

Lacan (1964/1973, p. 115) diz-nos que:

... o inconsciente é os efeitos da palavra sobre o sujeito – na medida que


estes efeitos são tão radicalmente primários que eles são propriamente isto
que determina o estatuto do sujeito como sujeito.

É, então, num segundo giro, que podemos atribuir ao sujeito a


recusa disto ou daquilo, o concordar ou o discordar, enfim, suas atitudes,
atos e julgamentos a respeito das coisas e do que os outros dizem – o ponto
em que ele pode ultrapassar a sugestão. Num primeiro tempo, temos
apenas a palavra e sua sugestionabilidade. É o tempo da alienação, quando
não há como distinguir a sugestão da incidência do Outro, ou da palavra:
simplesmente, saber empregar uma palavra implica termos acatado, em
algum nível, sua influência ou sugestão.

Descrevamos melhor essa situação a partir do texto de Lacan. Ele


nos seduz? É certo que Freud relaciona o fenômeno da sugestão ao amor
(1921/1975). No contexto em que a sugestionabilidade é concebida como
uma abertura “emotiva”, “total”, sem críticas ou reservas ao Outro,
declinado como um outro, como semelhante, qual o é efeito que
observamos nessa relação? Justamente um efeito de consistência do lado
do sujeito. É nesse plano que amor e sugestão coincidem, o plano do

- 176 -
narcisismo. E a exigência de satisfação narcísica está sempre presente na
relação que entretemos, por exemplo, com um texto.

Se um texto é absoluta transparência, se ele não oferece qualquer


resistência a ser tomado como significação, é provável que ele se torne
enfadonho. Tratar-se-ia, no caso, de um texto redundante, que associamos
rapidamente ao tédio. No extremo oposto, teríamos um texto que não libera
significação alguma. Nesse caso, o sentimento não é tanto de enfado, mas
de irritação, ou mesmo de rejeição. Seria o caso então de dizer que em
geral os textos se situam entre esses dois extremos. Mas isso não é bem
verdade, embora essa indicação possa nos ser útil de alguma maneira.

Examinemos a relação dos textos com a ordem da significância. Há


textos em que a significação não é dada a cada instante e, apesar de nos
escapar aqui ou ali, ela é estabelecida logo adiante. Esses textos têm como
referência a oferta de significações. O que eles fazem é temperar a
redundância para que a atenção do leitor – Freud diria a libido – não se
desinteresse, não o “desinvista”. Em outros textos, porém, a significação é
de fato muito difícil de ser liberada, exigindo muitos retornos à letra do
texto. De qualquer modo ela ainda está presente lá, como que em espera.
Considerar que a significação já está lá funciona como uma espécie de
garantia. Arriscaríamos a dizer que os melhores exemplos desse tipo de
texto são os de matemática. Embora o acesso que se tenha a eles dependa
muito das condições do leitor, é certo que eles não liberam sua
“significação” facilmente, ainda que ela esteja lá articulada de uma
maneira unívoca.

Em outros textos não é certo que a significação esteja lá. Muitos


textos poéticos se propõem desse modo, sendo o efeito de significação
muito mais importante do que as significações específicas por ele
veiculadas. Esses textos são “provocantes”, eles provocam sobretudo as
atribuições de significação do leitor. Eles ativam-nas e fazem-nas entrar na
dança do que o texto se propõe a dizer.

- 177 -
De uma maneira geral, os textos de natureza científica, ou que
visam transmitir algum saber, arranjam sua semântica de modo a fazer
parecer estar “lá-fora”, como coisa dada “lá-fora”, o que é dito no texto, o
que a linguagem descreve e com que ela se corresponde. Encontramos essa
disposição nos próprios textos de relativistas como Quine. Embora ele
combata a idéia de objetividade – quer dizer, a de que os itens do mundo
estejam já dados “lá-fora” como peças de museu –, seu escrito procede
como uma descrição que pretende dar a saber justamente esse “fato” de
que a coisa lá-fora não existe sem as práticas de linguagem que a dizem. O
próprio texto de Freud se arranja desse modo. A “ontologização” tão
criticada por Lacan não é de modo algum ausente na pena de Freud. Seu
estilo propõe “lá-fora” um campo de objetos, seus conceitos maiores –
inconsciente, pulsão, repressão, etc. – que ele busca descrever, apresentar
suas evidências, etc.

Temos então que, de uma maneira geral, um texto é pensado através


da relação com sua semântica. É tentador usar nesse contexto a palavra
referência. Mas não estamos propondo nenhuma ontologia, não nos
interessa saber se o que é significado por um texto existe mesmo “lá-fora”,
independente de nossa formulação e de nossa sugestão ou se, ao contrário,
não passa de um efeito de nossa formulação e de nosso poder de persuasão.
Interessa-nos mesmo é esse “fato”: os textos em geral, em especial aqueles
que pretendem dar algo a saber, precipitam-nos para “fora” deles, para
“fora” de sua letra. Mesmo um texto sobre a linguagem toma como
“objeto” os fatos de linguagem em geral, dados como que se estivessem
“lá-fora”; ele não inclui o seu dizer mesmo. Em suma, os textos propõem-
nos, sugerem-nos um “lá-fora” onde devemos encontrar as coisas que ele
diz. É como se o próprio fato de compreender algo, acessar uma
significação dependesse da espacialização proposta pela linguagem102 entre

102
Estamos generalizando, passando do texto para a linguagem, para seus diversos
contextos em geral. Isto porque entendemos o texto, o escrito, como uma circunstância
de linguagem particular na qual se cristalizam, se localizam, certos aspectos da

- 178 -
uma ordem própria aos ditos e outra das coisas ditas, das coisas no lugar
das quais está o que é dito, e da correspondência entre elas. Reconduzimos
então a problemática da significação à situação que nos dedicamos no
capítulo anterior a respeito do número real, entre o nível “algébrico-
aritmético” da escrita da operação – da forma – e o termo que encarna o
pólo semântico, que é a reta real. Esse tratamento, essa redução tem o
mérito de considerar apenas o mínimo necessário para situar a questão da
significância tal como ela é articulada por Lacan, no esteio de Freud, e que
está realizada em seu estilo103.

O primeiro tempo do contato com o texto de Lacan é precisamente


este quando se experimenta uma ruptura com a operação de
correspondência implicada sempre que se trata de apreender uma
significação. Alguma coisa no texto de Lacan impede-nos, barra o
movimento que logo nos precipita na captura de uma significação. A boa
relação, mas nem sempre tão boa assim, que instaura a significância e a
dança das significações, é interrogada de uma maneira pouco usual.
Digamos que o escrito nos conduza a um “buraco” na significação. Se o

linguagem que são tão gerais quanto essenciais. Um exemplo disso é justamente a
“ontologia” ou, dito de uma forma menos “dramática”, a espacialização implicada pela
linguagem, entre o espaço dos ditos e o que lhe corresponde “lá-fora”, o das entidades
significadas. Enfim, a própria idéia de que a significação requisita pelo menos dois
termos para ser “engendrada” – é este “fato” que está cifrado na idéia de
correspondência.
103
Observemos o texto de um autor cuja a tendência é marcada pela pragmática. Searle
(1972/1996, p. 37) diz:
De que maneira as palavras se ligam à realidade? Como se faz que,
quando um locutor se encontra face a um auditor, e que ele emite uma
seqüência acústica, possam se produzir fatos tão notáveis quanto os
seguintes: o locutor tem a intensão de significar alguma coisa, os sons que
ele emite significam alguma coisa, o auditor compreende isso que se quis
lhe dizer ...

Como podemos ver, esse texto reune todas as características em relação a produzir um
efeito de esclarecimento que enumeramos. Mais do que isso, ele mantem a suposição de
que os termos constitutivos da estrutura da palavra – o locutor e o auditor – são dados e
não constituídos no ato de fala ele próprio. É notável que o foco do autor seja muito
mais a relação de “dar algo a entender através da linguagem” do que a constituição do
sujeito pela palavra. Esse curta citação deixa bem claro a distância quanto ao que se
trata na discussão psicanalítica da linguagem e do que se trata na filosofia da linguagem.

- 179 -
leitor prossegue com a leitura e não desiste no primeiro contato, o que vem
à cena, de um lado, é o próprio sujeito, já que esse buraco na significação é
o fato de o Outro, no caso o texto de Lacan, não liberar a significação e
convocar o sujeito a exercer-se em seu texto, numa série de renvios dentro
desse texto mesmo, cujo propósito é o de “capturar” a significação que
escapa. Nesse jogo, o que se realiza é um trabalho do sujeito que acaba por
produzir alguma significação, algum saber. Mas o essencial é que essa
significação-saber não é completa, nem é da inteira responsabilidade de
Lacan, não é uma doação de seu texto apenas. Ela de alguma maneira
implicou o sujeito e seu trabalho, “responsabilizou-o” – a significação que
ele alcança é, até um certo ponto, uma leitura sua, “própria”.

De outro lado, a “leitura própria” não é o descanso do cético, que se


autoriza a qualquer coisa porque tudo pode ser, já que não há em que
fundar uma palavra. Pelo contrário, essa leitura está sempre marcada por
um déficit em relação ao que Lacan pretendeu dizer. Isto é, somos
continuamente confrontados com o desejo de Lacan, na forma de uma
pergunta: “O que ele quis dizer?” Ao propor um furo na significação, a
leitura do texto de Lacan não propõe o relativismo. Propõe, sim, uma certa
relação com sua palavra e seu dizer, sendo nesse nível onde se coloca a
questão de sua “autoridade”. Esta nada mais é do que o acatar esse furo na
significação, é situá-lo como causa, pôr-se a trabalhar e, nessa via, resgatar
sempre de forma parcial e incompleta – isto é, reenviando ao texto e ao
trabalho – as pistas que Lacan vai distribuindo ao longo de seu texto de
forma lateral e econômica. Essas pistas têm várias funções, elas são tanto
referência para o trabalho quanto estofo da significação, metonímias da
significação maior buscada. Elas servem também como retificadoras da
leitura e, além disso, o testemunho de que o acesso ao texto de Lacan joga
com a circulação do objeto-causa de desejo, o objeto a, desde que nos
dispusamos a efetivamente trabalhá-lo.

- 180 -
Por aí também se pode ver que a questão de uma ciência que inclua
a psicanálise, tal como Lacan a formula, é muito complexa e difícil, tanto
do ponto de vista ético quanto do ponto de vista político e também do
ponto de vista epistemológico. Este seria o caso de uma ciência que
reconheceria no estilo de Lacan uma efetividade não apenas retórica, mas
uma efetividade necessária para a própria “pesquisa” psicanalítica104.

O texto de Lacan conclama um outro tipo de efetividade associada ao


significante, uma que é constitutiva do sujeito como desejo e que é
anterior a essa efetividade do discurso representativo que sustenta o
saber. O discurso psicanalítico tem também a pretensão de dar algo a
saber como conceito, o discurso mesmo de Lacan tem que articular duas
exigências antagônicas; uma, a de se dirigir ao sujeito, colocá-lo em
questão e a outra, a mais usual, a de apresentar, propor o conceito105. O
aspecto importante a sublinhar nessa etapa é que o texto de Lacan
“resolve” esse antagonismo apresentando-nos, em ato, aquilo mesmo
sobre o que ele discorre como conceito. Esse é um dos sentidos mais
amplos para sua “topologia”. E é a partir dessa consideração que
discorreremos a seguir sobre a topologia.

A Exigência da Topologia

No livro de Seymour Lipschutz (1979/1965 p. 94), Topologia


Geral, podemos ler a seguinte definição sobre o que seja uma topologia:

Seja X um conjunto não-vazio. Uma classe T de subconjuntos de X é uma


topologia em X se, e somente se T satisfaz os seguintes axiomas:

[01] X e Ø pertencem a T .

104
É importante que se diga que colocamos a questão, e não a recusamos. Apenas
queremos sublinhar de passagem, já que este não é nosso tema, que a relação entre a
psicanálise e a universidade deveria nos ocupar mais, a nós analistas, já que não é
suficiente para a psicanálise um estilo que apenas situe o conceito e ignore a forma
através da qual ele passa como lhe sendo exterior.
105
A esse respeito, remetemos o leitor ao artigo de Antônio Carlos Rocha sobre esse
tema, “Sobre o Ensino e a Transmissão”, (1999, p. 135).

- 181 -
[02] A união de um número qualquer de T pertence a T.

[03] A intersecção de dois conjuntos quaisquer de T pertence a T.

Os elementos de T chamam-se conjuntos T-abertos, ou simplesmente


abertos, e X, juntamente com T, isto é, o par (X, T) é chamado um espaço
topológico.

O seguinte exemplo esclarece o formalismo:

Consideremos as seguintes classes de subconjuntos de X = {a, b, c, d, e}

T1 = {X, Ø, {a}, {c, d}, {a, c, d}, {b, c, d, e}}

T2 = { X, Ø, {a}, {c, d}, {a, c, d}, {b, c, d}}

T3 = { X, Ø, {a}, {c, d}, {a, c, d}, {a, b, d, e}}

Dos três exemplos, apenas o primeiro é uma topologia. T2 não é


uma topologia porque {a, c, d} U {b, c, d} = {a, b, c, d} conjunto não
listado em T2. T3 não é uma topologia porque {a, c, d} ∩ {a, b, d, e}={a,
d} conjunto não listado em T3.

Podemos simplificar esse formalismo todo para nossos propósitos


com as seguintes indicações. Uma topologia é um conjunto de conjuntos
nos quais se incluem tanto o conjunto vazio, Ø, quanto o conjunto de base,
X. Além disso, dadas duas operações fundamentais entre conjuntos, a
união e a intersecção, os resultados dessas operações devem fazer parte da
topologia, isso na acepção bem forte de que os conjuntos resultantes dessas
operações devem estar listados na topologia. A intuição que podemos ter
dessa definição é a de que uma topologia define um “interior”, no sentido
de que as operações sobre seus elementos sempre geram outros elementos
também pertencentes a ela, isto é, listados nela.

A implicação desse fato para a teoria do significante é direta. Se


nossa teoria do significante situa como exteriores ao campo do significante
os itens gerados pelas operações significantes sobre os significantes, então
nossa teoria não é uma topologia. Caso contrário, se os resultados das

- 182 -
operações significantes também são concebidos como internos ao campo
do significante, então nossa teoria é uma topologia. Esse é o ponto de vista
de Lacan em oposição ao ponto de vista tradicional. Para Lacan todos os
efeitos do significante são internos a seu campo. Esses efeitos podem ser
listados: a significação, o sentido, a realidade, o sujeito, o real, o objeto, o
significante, etc., diferentemente do ponto de vista tradicional, que postula
uma fronteira intransponível entre palavras e coisas. Nessa concepção,
palavras e coisas se correspondem, mas o nexo, a correspondência,
mantém a exterioridade e a heterogeneidade dos termos entre si: uma
palavra é uma não-coisa e uma coisa é uma não-palavra. Já para Lacan, o
estatuto de coisa ou de palavra é interno ao campo do significante, tudo
depende do lugar – podemos dizer que uma topologia também pode ser
definida como uma organização dos lugares, ou melhor, das vizinhanças
que compõem um certo espaço – onde comparece o significante. O próprio
real é entendido como intrínseco ao campo do significante, se ele é exterior
à palavra, trata-se de uma exterioridade interna ao campo da palavra.

Algumas indicações de Lacan (1998/1966, p. 563) deixam isso que


acabamos de mencionar claro e explícito. Tomemos como exemplo a
fórmula da metáfora que resume a constituição do sujeito:

S S' 1
! ®
S' x s

Que é desdobrada da seguinte maneira:

Nome - do - Pai Desejo - da - Mãe æ A ö


! ® Nome - do - Paiç ÷
Desejo - da - Mãe Significado - para - o - sujeito è Falo ø

Podemos observar que o significante “desejo-da-mãe” comparece


no primeiro termo a título de significado e no segundo, como significante
propriamente. Já o significante “falo” comparece como significado no
terceiro termo- o Falo seria uma “significação” que enquanto tal é

- 183 -
“significante”. No artigo “A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão
desde Freud” (1966/1998, p. 519), a possibilidade de se transpor a barra da
significação é distinta conforme seja o caso de uma articulação significante
metonímica – caso em que a barra não é “transposta” – ou de uma
articulação significante metafórica – caso em que a barra é “transposta”.
Observemos também uma questão que poderia passar desapercebida e que,
no entanto, é crucial para entendermos a topologia lacaniana. O “desejo-
da-mãe” é significado no 1º termo da fórmula e significante no 2º termo. Já
o significante Nome-do-Pai em momento algum é significado. No artigo,
“De uma questão preliminar a todo Tratamento possível da Psicose”
(1966/1998, p. 564), ele diz que:

A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do


significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o
Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o
qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo
correspondente no lugar da significação fálica.

O que quer dizer “Desejo-da-Mãe” ora como significante ora como


significado? Pensavámos definir significante pela oposição
significante/significado, mas agora observamos que existe um item, para o
qual não sabemos ainda que nome dar, que pode ser tanto significante
quanto significado, dependendo apenas do lugar que ocupa para ser uma
ou outra coisa. O lugar parece ser mesmo o termo decisivo quanto à
propriedade de esse item ser tomado como significante ou significado. Na
escritura de Lacan, “embaixo” especifica o lugar do significado e em
“cima”, o do significante – no “meio” temos a barra da significação, que
realiza a fronteira entre os lugares. Retenhamos agora essas palavras de
Lacan, “a Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do
significante” (ver cit. supra), que equipara foraclusão do significante à
carência do efeito metafórico. Nesse mesmo artigo, mais adiante (p. 582),
ele fala da “foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro”, estando aí a
indicar que, na psicose, no 3º termo presente na fórmula, o Nome-do-Pai,
como se fosse um conteúdo, não aparece em seu lugar, ou no lugar devido.

- 184 -
æ A ö
A fórmula fica: ç ÷ com o lugar do Nome-do-Pai vazio, e não
è Falo ø
æ A ö
ç ÷ simplesmente. Ela também não tem como resultado apenas o valor
è Falo ø
æ A ö
zero, Nome - do - Paiç ÷ Û 0 , pois o Nome-do-Pai, sendo supostamente
è Falo ø
“igual” a zero, daria numa “conta” na qual teríamos
æ A ö 0
0!ç ÷Û Û 0 . A foraclusão do significante é a foraclusão do
è Falo ø Falo
Nome-do-Pai do lugar do Outro, isto é, não podemos simplesmente
associar a ausência desse significante num certo lugar com o valor zero da
operação metafórica, embora seja isso mesmo que Lacan, num certo
sentido, queira indicar. Não podemos tratar a operação metafórica como
estritamente “aritmética” ou “algébrica”, pois, se fosse esse o caso,
teríamos de assumir seu valor nulo, se associamos o valor 0 ao significante
Nome-do-Pai; ou à impossibilidade de a operação sequer poder começar,
pela ausência de pelo menos um operador ou operando. Esse seria o caso
de uma conta qualquer escrita de uma maneira que, matematicamente
diríamos ser errada, por exemplo, “2 __ 2 =”, em que o sinal da operação a
ser realizada está ausente, o que, por isso, impossibilitaria a realização
qualquer operação.

Num certo sentido, como falamos, porém, é isso mesmo que Lacan
quer dizer. O psicótico não entretém uma relação com o mundo, consigo
mesmo, com seus semelhantes mediatizada pelos termos próprios à ordem
do discurso: a palavra, o sentido e a significação. Esses termos são
conseqüência da operação metafórica, que desse modo é como se fosse
“nula” ou não pudesse se realizar por faltar um termo sem o qual ela não
pode iniciar-se. O que melhor especifica a subjetividade psicótica é a
alucinação. A alucinação psicótica é alguma coisa de absolutamente
presente para o sujeito ao ponto de ele situá-la como invasão – daí os temas

- 185 -
tão comuns a respeito da perseguição. A alucinação é a incidência de algo
experimentado pelo sujeito psicótico como real, mas ela diz respeito a algo
que um sujeito neurótico diria ser uma significação106. Vale dizer, no lugar
onde o psicótico nos dá o testemunho de uma experiência tida por ele
como real, na qual ele padece de uma invasão, o neurótico no máximo
situa uma significação penosa da qual ele pode se desvencilhar, valendo-se
das operações discursivas usuais. A “invasão” psicótica é justamente isso,
imagens que dão conta, como que testemunhos, da falência ou ineficácia,
em seu caso, das operações discursivas usuais. Nesse sentido, o psicótico é
alguém para quem a operação da metáfora deu como resultado um valor 0,
ou para quem tal operação sequer pode iniciar-se, por conta da ausência de
um operador essencial que a especificaria.

Mas nesse ponto faz-se necessário um tipo de pensamento não


estritamente “algébrico” ou “combinatório”. A fórmula da metáfora, como
toda fórmula “algébrica” anuncia um resultado completo, cabal.
Lembremo-nos da radiciação quadrada de 2, o 2 , a respeito do qual
discorremos tanto no capítulo anterior. Ela anuncia um resultado cabal: o
número que multiplicado por ele mesmo é igual a 2. Não somos avisados
de que a operação não tem fim pela própria operação. Nesse aspecto, a
operação é completamente “burra”, pois não há nela, em seus termos,
qualquer sinal de quando ela deve parar, caso o resultado cabal pretendido
demore muito a ser alcançado. Por exemplo, como vamos saber se essa
operação prosseguirá infinitamente e não cessará na bilionésima casa
decimal, alcançando dessa forma uma decimal finita, embora muito
grande? A informação de que a operação de radiciação de 2 prosseguirá
infinitamente não é derivada dela própria, vem de outro lugar. Esse outro
106
E muitas vezes é desse modo que vemos os fenômenos psicóticos serem tratados.
Inclusive por psicanalistas. Não faltam aqueles que tentam em vão convencer o sujeito
psicótico de que o que ele experimenta são “loucuras” de sua cabeça, como se para o
psicótico fosse possível essa diminuição de intensidade de uma experiência vivida
através de uma manobra significante e discursiva, no caso, aquela que o neurótico tem
bem a mão quando ele, se valendo da palavra, deprecia como “loucura de sua cabeça”
uma intensa experiência subjetiva.

- 186 -
lugar é justamente o corpo axiomático que estabelece os números reais e
seus fundamentos topológicos. Do ponto de vista da regra que comanda a
operação, ela só deve cessar quando encontrar uma decimal finita – não
importa o tamanho - e, como vimos, a operação não tem meios de conceber
que naquele caso, tomando o 2 como operando, ela prosseguirá
infinitamente.

É que a operação não se reduz ao seu procedimento combinatório


quando ela é referida aos números reais. Há como que uma significação
imanente a ela, que de alguma maneira ultrapassa seu aspecto meramente
“combinatório”. Essa “significação” é aquela que diz respeito à noção de
espaço ou, se quisermos, de extensão. E se, quisermos ser mais precisos do
ponto de vista matemático, diríamos que essa “significação” está na
estreita relação entre a operação meramente sintática, que é a radiciação, e
idéias topológicas como distância e, mais rigorosamente ainda, vizinhança
e noções conexas como limites, pontos de acumulação, seqüências
convergentes, divergentes, etc. (DIEUDONNÉ, 1987, p.70-77 & p. 151).

Na verdade, do ponto de vista estrito da combinatória, sequer é


possível falarmos em infinito (MANIN, 1998, p. 92-128). Infinito é uma
noção que releva da relação estreita entre esse nível combinatório e o
topológico. Isto é, interpretamos cada iteração da operação como um
movimento que nos aproxima cada vez mais do ponto que é o 2 . Sendo
evidente que esta “significação” de pontos mais ou menos próximos uns
dos outros, os mais próximos compondo totalidades por vizinhança, sendo
interiores a uma vizinhança dada, e os mais distantes referidos a entidades
separadas, pertencendo a vizinhanças diferentes, não é definida na própria
regra operatória. São por raciocínios que relevam essas considerações
topológicas que podemos vir a saber que no caso da operação 2 ela é
“infinita”, e não simplesmente indefinida.

- 187 -
Com essas considerações, queremos apenas assinalar o seguinte
ponto: não basta apenas o aspecto combinatório, seu aspecto “escritural”
para entendermos a fórmula lacaniana da metafóra paterna. Faz-se
necessário também termos acesso à topologia a ela associada. Quando
percebemos esse aspecto topológico, podemos entender que a ausência do
Nome-do-Pai em seu lugar não acarreta simplesmente uma anulação do
efeito metafórico ou um travamento da operação. A operação prossegue de
qualquer modo, ela prossegue sem aquele termo em seu lugar.

No momento em que o termo deve entrar em cena e cumprir sua


função, o que ocorre no caso de ele não estar lá? A resposta é uma outra
conformação da subjetividade, de sua relação com o significante.
Chegamos então à pergunta, se o significante Nome-do-Pai não comparece
no lugar do Outro, para onde ele vai? A resposta de Lacan é: ele retorna do
real – como alucinação, “objeto alucinado”. Não é que o significante
Nome-do-Pai tenha simplesmente faltado em seu lugar. A questão é a de
por que ele, faltando lá, retorna do real como alucinação? O cerne do
conceito de foraclusão gira em torno desse ponto. Lacan, no artigo em
apreço, situa aí a contingência. Ele diz:

É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, na


foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora
paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição
essencial, com a estrutura que a separa da neurose (p.582).

Frase difícil de ser lida. Ela pode ser facilmente entendida como
uma apreensão da psicose inteiramente negativa e em referência à neurose.
Tal significação é sugerida pela expressão “fracasso da metáfora paterna”.
Ora, esse fracasso é um “fato”. Mas, nesse fracasso está “a falha que
confere à psicose sua condição essencial”. “Com a estrutura que a separa
da neurose”. O termo estrutura não deixa margem para dúvidas: a ausência
do Nome-do-Pai engendra uma estrutura em seu lugar. Vale dizer, a
operação metafórica ao se pôr em seu próprio movimento, sem contar com
o significante Nome-do-Pai em seu lugar, engendra a estrutura psicótica.

- 188 -
Mas como entender o termo “falha”? Articulando a seguinte frase: “a falha
que confere à neurose sua condição essencial”. Essa falha seria justamente
a castração, aquela que tem como conseqüência, precisamente, o efeito
metafórico em função do qual vivem os neuróticos. Conclui-se então que o
vocábulo falha não especifica apenas a psicose; ele especifica todas as
estruturas clínicas. Assim, uma estrutura clínica é apenas o modo através
do qual a linguagem engendrou e organizou uma falha, constituindo nesse
modo uma subjetividade que lhe é correlata. Finalmente, resta o termo
“acidente”. Nesse termo entendemos a radicalidade da contigência
introduzida pelo significante em relação a qual todo falante deve se
confrontar para se constituir. Num certo sentido, o sujeito nada mais é do
que essa contigência retomada no campo da palavra.

Mas o que tem a matemática a ver com isso tudo? É ela que dá
lastro para interpretação que fizemos da frase acima. A operação
metafórica com o Nome-do-Pai em seu lugar – lugar do significante –
engendra a “topologia usual do neurótico”, quer dizer, a “nossa” topologia.
E a operação metafórica com o Nome-do-Pai ausente de seu lugar
engendra uma “topologia psicótica” – aquela que responde no texto de
Lacan pelo termo aparentemente absurdo de “metáfora delirante” –
absurdo porque, se é metáfora não é delírio, isto é, toda metáfora se dá
num fundo de dúvida e, se é delírio, não é metáfora, porque delírio está
referido à certeza. É a topologia que recolhe e localiza aquilo que não se
especifica no plano da operação puramente sintática, “algébrica”, no caso,
daquilo que não se deixa localizar claramente na fórmula da metáfora. Esse
é um ponto importante na obra de Lacan explicitado cabalmente a partir do
seminário da identificação de 1961-1962 quando ele passa a se valer da
topologia das superfícies bidimensionais ou variedades bidimensionais
para situar seus matemas, e não apenas os esquemas e os grafos.

- 189 -
Situamos o seminário sobre a Identificação porque até então a
posição de Lacan em relação a seus esquemas “topológicos” tendia para a
posição que ele nos informa no texto sobre “De uma Questão...”:

Será possível situarmos os pontos geométricos do esquema R num


esquema da estrutura do sujeito ao término do processo psicótico? É o que
tentamos no esquema I, apresentado adiante.

Sem dúvida, esse esquema participa do exagero a que se obriga toda


formalização que quer se apresentar no intuitivo (p. 571).

E mais adiante:

Mais valeria, no entanto, jogar esse esquema no lixo, se ele tivesse, à


semelhança de tantos outros, que ajudar alguém a esquecer numa imagem
intuitiva a análise que a sustenta (p. 581).

Ou seja, essas apresentações “topologizantes” respondiam a uma


exigência, no plano da teoria, de fornecer alguma “intuição” da articulação
formal – para ele, por suas posições epistemológicas, formal quer dizer,
“algébrico”, “combinatório” –, esta, sim, decisiva do significante. É nesse
seminário, o da Identificação, que esse retorno da “intuição”, mesmo de
um certo pathos, é assumido enquanto uma negatividade radical. A
topologia deixa de ser então uma simples esquematização intuitiva,
visando a facilitação da apreensão do conceito para ser ela própria uma
espécie de práxis associada ao manejo do conceito. Ela passa a ser um
momento do conceito, tal como o manejo combinatório, destinada a
recolher aquilo que o aspecto combinatório não assinala, não demarca. O
que ela aporta a essa praxis do conceito é justamente uma certa “intuição”,
um certo pathos, aquele referente ao objeto pequeno a. Com a topologia,
trata-se de pensar isso mesmo que se recusa ao conceito – isso que é da
ordem do puro pathos. Isso, no seminário do ano seguinte (1962-1963), o
seminário sobre a Angústia, será referido como o único afeto que importa à

- 190 -
psicanálise, precisamente a angústia107. A topologia então seria uma
iniciativa, ainda no plano do conceito, mas no limite do conceito108, de
recolher, de apresentar no formal algo que diz respeito ao objeto a. Sua
introdução cabal no seminário sobre a identificação corresponde então a
essa virada que Lacan operou nos anos 60 na direção de articular a
psicanálise em torno da questão do objeto a.

Essa é uma questão difícil de demarcar em Lacan, principalmente


porque ela tem matizes bem nuançados. Por exemplo, não é inteiramente
verdadeira a nossa alegação de que é a partir do seminário da identificação
que a topologia é introduzida numa acepção própria diversa da de
esquemas que visam uma certa apreensão intuitiva do conceito. Podemos
ler, por exemplo, no seminário IV, A Relação de Objeto de 1956 o seguinte
a respeito do famoso esquema L, nesse texto simplesmente denominado O
Esquema:

Ao termo desses anos críticos, hei-nos então, armados de um certo


número de termos e esquemas. A espacialidade destes últimos não é a
tomar no sentido intuitivo do termo esquema, mas num outro sentido,
perfeitamente legítimo, que é topológico – não se trata de localizações,
mas de relações de lugares, interposição, por exemplo, ou sucessão,
seqüência (p.12).

É claro que os esquemas são desde sempre topologias. Como é


claro também que para ele “intuição” está relacionada à espacialidade e a
temporalidade – a uma estética – que ele situa, através da topologia, uma
outra estética “combinatória” – e seus termos a interposição, a sucessão, a
seqüência. Além disso, conforme já discutimos em relação à fórmula da
metáfora, temos nela tanto uma especificação estritamente combinatória
quanto uma especificação espaço-temporal, “topológica”. É combinatória
porque, na seqüência da operação, tal letra se substitui a outra, tal letra se

107
A esse respeito é particularmente importante a lição II de 21 de novembro de 1962.
Ver também o artigo já citado de Antonio Carlos Rocha a respeito do conceito e do
ensino em psicanálise.
108
No limite do conceito – é por isso que nos valemos do termo “intuição”.

- 191 -
apaga em relação a se duplicarem em lugares diferentes (é o caso do
Desejo-da-Mãe). É topológica porque os lugares demarcam certas relações
funcionais intrínsecas que os termos, heterogêneos entre si, podem entreter
conforme variem suas posições relativas.

Uma certa simplificação nesse ponto é tentadora. Diríamos que até


os anos 60, importa para Lacan estabelecer o conceito de significante, sua
primazia e seus termos conexos – sincronia, estrutura, série, combinatória,
etc. Há então, nesses anos, o privilegiar das operações combinatórias, de
natureza “algébrica” e da questão do sujeito enquanto sujeito do
significante. A reflexão topológica nesses anos se apresenta sobretudo
através de grafos e esquemas109 que assinalam as relações mútuas entre os
conceitos. Após os anos 60, a questão desloca-se em direção ao real e ao
objeto, do sujeito enquanto referido ao objeto – com o conseqüente
deslocamento para a topologia das superfícies ou variedades
bidimensionais110. E após a introdução dessa topologia, ele chegará a
afirmar que seu manejo conceitual com ela não tem nada a ver com o uso
de modelos. Com isso, ele dá a entender que os propósitos referidos ao
manejo da topologia não dizem respeito à representatividade “pictográfica”
e “geometrizante” dos conceitos (LACAN, 1972/1973, p. 26-42).

Tanto a combinatória quanto a topologia – no caso desta última, o


que ela implica em termos de um certo manejo da espaço-temporalidade –
concernem a uma praxis do conceito. Isso visa trazer para o interior do

109
Seria um erro afirmar que Lacan, com a topologia, supera seus grafos e esquemas
substituindo-os pela topologia da superfície. Ele não abandonou seus grafos; pelo
contrário, ele passou a afirmá-los ainda com mais veemência, designando-os por aquilo
que efetivamente eles já eram desde o primeiro momento: topologias. A partir dos anos
60, esses grafos e esquemas retornam sempre, mas como indicações topológicas, e não
como mero esquemas de compreensão. Confira-se, por exemplo, o seminário “De um
outro ao Outro” de 1969, onde ele dedica várias lições ao Grafo-do-Desejo.
110
A Topologia da Superfícies bidimensionais ou Variedades bidimensionais é um
capítulo da topologia algébrica ou combinatória que estuda esses objetos que Lacan
privilegiou: a esfera, o toro, o plano projetivo – principalmente sua conformação como
cross cap – e a garrafa de Klein

- 192 -
campo conceitual, no ato mesmo de sua formulação enquanto conceito, o
real tratado pelo conceito ele próprio.

A topologia das superfícies bidimensionais ou variedades


bidimensionais agrega um elemento novo à praxis conceitual, que deve
sustentar a psicanálise. Mas esse elemento novo não está em ruptura com
teoria do significante. Pelo contrário, ele é uma conseqüência dessa teoria,
a qual exigiu alguns remanejamentos conceituais dos quais essa topologia é
um signo.

Há um aspecto bastante impressionante que corrobora essa


interpretação. O texto do artigo “De uma Questão...” data de 1957. Nesse
momento, a operação da metáfora é situada por Lacan em alguns de seus
efeitos em termos “geométricos” e não “topológicos”. Melhor dizendo, ele
não separa muito claramente esses dois aspectos. A operação da metáfora
executada com o Nome-do-Pai em seu lugar engendra o esquema R
(p.559), um “quadrado” que dramatiza duas coisas: 1- a “geometria” do
neurótico é plana e euclidiana, com um “fator de curvatura” igual a zero,
simbolizada no quadrado no qual ela se apresenta; 2- o campo da realidade
tem uma delimitação definida – o quadrilátero, no caso um trapézio, da
realidade, que inclusive dá o nome do esquema, R. Já a “geometria” do
psicótico é: 1- hiperbólica, com um “fator de curvatura” negativo111; 2- o
campo da realidade não tem uma delimitação circunscrita e definida, sua
delimitação são as duas assintotas definidas por uma dada função
hiperbólica, que formam uma área “aberta”.

No entanto, Lacan se vale da topologia geral para indicação, nesses


planos diferentes, das diversas funções significantes e imaginárias. Isto é,
os termos que noutra forma de apresentação estão escritos através dos

111
Para uma discussão bastante acessível dessas questões conferir o livro A Forma do
Espaço (The Shape of Space) de Jeffrey R. Weeks de 1985, em particular o capítulo 12,
“A Fórmula de Gauss-Bonnet e o Número de Euler” (The Gauss-Bonnet Formula and
the Euler Number) (p. 165-185) que estabelece certas dependências que articulam a
geometria com a topologia das superfícies.

- 193 -
grafos, nos esquemas R e I estão a indicar não necessariamente pontos
precisos, mas “abertos” e suas relações de vizinhança. Lacan apenas
assinala a região que lhes corresponde. Essas regiões são “abertos” – na
acepção desse termo em topologia geral –, isto é, essas regiões, que podem
ser áreas, segmentos de reta ou pontos localizados no quadrado, não
contêm nelas mesmas suas próprias fronteiras, sendo delimitadas por
vizinhança umas em relação às outras. Desta forma, como ilustração, a
extremidade inferior à direita é o lugar do Pai, a região superior à esquerda
é o lugar do Falo, a região superior à direita é o lugar da Mãe e assim por
diante. Com delimitação por vizinhança queremos dizer que, por exemplo,
não temos, no esquema, nenhuma marca explícita informando-nos onde
terminam as figuras do outro imaginário, i, e o ponto M que assinala o
significante do objeto primordial. Temos apenas a indicação de que se
“caminharmos” do ponto i em direção à sua direita alcançaremos o ponto
M, ou a região a do vértice superior direito do quadrado que assinala o
objeto primordial M. Entre i e M temos a seqüência Si, Sa1, Sa2, San,...,
SM – i e M são pontos limites referenciados “geometricamente”, isto é,
ambos são vértices de polígonos dados, i do trapézio da realidade e M do
triângulo simbólico – sendo as indicações análogas válidas para os demais
termos.

O esquema R:

- 194 -
O Esquema I:

Numa nota de rodapé datada de 1966 (p. 559-560), ano da


publicação desse artigo na coletânea de artigos Écrits, Lacan assinala que o
caráter, que referia essas construções dos anos 50 à “geometria”, provém
de uma forma mais fundamental, à topologia das superfícies ou variedades
bidimensionais. O resultado, como chegamos a indicar, é surpreendente
porque fica claro que a montagem feita naqueles anos é compatível com a
topologia das superfícies. A referida nota de rodapé pode então ser
entendida como uma “operação topológica” que, no aprés coup do ano de
1966 para o ano de 1958, explicita o fato de que a estrutura não-orientável

- 195 -
do plano projetivo já operava em ato nos anos 50. A partir da nota de
rodapé podemos manter intactos os dois esquemas, o R que especifica o
sujeito neurótico e o I que especifica a subjetividade psicótica com os
seguintes acréscimos.

A topologia basal implicada pela relação do sujeito com a


linguagem é a do plano projetivo. A distinção entre neurose e psicose é um
corte/interpretação sobre essa superfície. O corte/interpretação tem essa
propriedade porque é o sujeito que é tratado nele. O corte é a operação
necessária para o advento – ou não – do sujeito. Na neurose o corte se dá
de tal maneira que ele decompõe o plano projetivo em duas superfícies
abertas, um disco e uma faixa de Möebius. Assim, o corte que divide o
plano projetivo em duas outras superfícies analisa essa superfície, destaca,
distingue as duas estruturas heterogêneas – a banda de Möebius e o disco –
que a compõem. Tomando em consideração o esquema R, temos que o
campo da realidade se identifica ao sujeito, conforma-se a uma banda de
Möebius e os triângulos restantes identifican-se ao objeto a e conformam-
se a um disco. E tomando em consideração o esquema I, a subjetividade
psicótica conforma-se a um disco apenas. A subjetividade psicótica tende a
se resumir no objeto a sem qualquer estrutura que suporte e recolha os
efeitos sujeitos propriamente ditos referentes ao corte, como é o caso do
sujeito neurótico em relação à banda de Möebius. É bom dizer, o corte que
define a estrutura psicótica não analisa a topologia implicada pela
linguagem em sua relação constituinte do sujeito. Ele colapsa a distinção
dos termos heterogêneos que, articulados, constituem-na como estrutura do
sujeito enquanto articulado pela linguagem e suportado na fantasia.

Alguns parágrafos acima, mencionamos a relação da topologia das


superfícies – ou variedades bidimensionais referentes a um certo pathos
exigido pela psicanálise – com a necessidade de a teorização em
psicanálise estar sempre situada em relação a algo que não se deixa
apanhar no conceito e que, no entanto, é uma efetividade. A topologia das

- 196 -
superfícies introduz algum acréscimo em relação ao combinatório já
implicado no estruturalismo mesmo?

Ela permite uma outra retomada justamente da intuição, numa


acepção distinta daquela em jogo na filosofia kantiana, como aquilo que a
priori condiciona nossa apreensão de alguma coisa enquanto dada à
sensibilidade. Essa retomada nova, implicada pela topologia das
superfícies, coloca em cena, especifica, destaca, um elemento que vem no
lugar da intuição usual do espaço e do tempo – que é kantianamente
“sintética” em oposição à “analítica”. Esse elemento novo é uma visada da
problemática do espaço e do tempo, não em termos de síntese, mas em
termos da conectividade local e “discreta”, “analítica”, de vizinhanças. A
conectividade é uma propriedade passível de ser especificada localmente,
isto é, ela pode ser associada a entes discretos, que permitem, na passagem
ao global, uma classificação algébrica da estrutura, da “totalidade”. Na
verdade, uma “totalidade” especifica-se pelo arranjo peculiar permitido
pela conexão de suas vizinhanças. Algumas citações de Lacan do
seminário sobre a Identificação esclarecem esse ponto.

Em primeiro lugar, apresentamos uma citação que nos mostra que


para ele o recurso ao visual em jogo na topologia não era mais um apelo à
intuição, à compreensão, que escamoteava toda uma análise anterior –
como no artigo “De uma Questão...”. Neste seminário, o recurso à
topologia, relevando mesmo seu aspecto “visual”, já está inteiramente
situado do lado de uma praxis do conceito:

É para vos mostrar como graças a esse artifício topológico, o qual, não
duvidem disso, eu confiro um pouco mais de peso do que ser somente um
artifício, do mesmo modo, e pela mesma razão, pois é a mesma coisa que,
respondendo a uma questão que me colocaram em relação à raiz quadrada
de -1 tal que eu a introduzi na função do sujeito:

“É que articulando a coisa assim”, perguntavam-me, “você pretende


manifestar outra coisa que uma pura e simples simbolização substituível
por não importa qual outra, ou alguma coisa que convém mais
radicalmente à essência mesma do sujeito?” “Sim”, eu disse, “é neste
sentido que é necessário entender o que desenvolvi diante de vocês”, e é o

- 197 -
que me proponho a continuar a desenvolver com a forma do toro (lição
XII, de 7 de março de 1962).

Sobre a estética transcedental kantiana:

É assim que a estética kantiana não é de modo algum sustentável, pela


simples razão que ela é, para ele, fundamentalmente apoiada de uma
argumentação matemática que está relacionada ao que podemos designar
como a época geometrizante da matemática. É porque a geometria
euclidiana é incontestável no momento onde Kant persegue sua meditação
que, para ele, é sustentável que exista na ordem espaço-temporal certas
evidências intuitivas (Lição XI de 28 de fevereiro de 1962).

Logo adiante:

... o “nada é fecundo que não seja o julgamento sintético”, pode-se ainda,
após todo o esforço de logicização da matemática, ser considerado como
sujeito à revisão. A pretensa infecundidade do julgamento analítico a
priori, a saber, isto que chamaremos simplesmente do uso puramente
combinatório de elementos extraídos da posição primeira de um certo
número de definições, que este uso combinatório tenha em si uma
fecundidade própria, é o que a critica mais recente, a mais bem dirigida
dos fundamentos da aritmética por exemplo, pode seguramente
demonstrar. Que exista em seu último termo mesmo, no campo da criação
matemática, um resíduo obrigatoriamente indemonstrável, é o que sem
dúvida a exploração logicizante, ela própria, nos ter conduzidos, o
teorema de Gödel, com um rigor até aqui irrefutável, mas disso não resta
menos que é pela via da demonstração formal que esta certeza pode ser
adquirida. E quando digo formal, eu digo os procedimentos os mais
expressamente formalistas da combinatória logicizante (Lição XI de 28 de
fevereiro de 1962).

Adiante ele nos informa que essa combinatória é então precipitada


sobre o espaço/tempo com a conseqüência de delimitar nossa experiência,
nossa intuição do espaço/tempo:

O que adveio a ele, um Gagarim, um Titov, ou um Glenn, de sua intuição


do espaço e do tempo em momentos onde seguramente ele tinha, como se
diz, outras coisas com que se preocupar? (...) O que constato é que
qualquer que seja o ponto onde estejamos ou sejamos conduzidos, pelo
menos podemos ser pressionados a ter respostas da experiência, ele
[aqueles astronautas ou o sujeito] em todo caso, isto não o impediu de ser
inteiramente capaz disso que chamaria apertar os botões, pois é claro, ao
menos para o último, que o negócio foi comandado num certo momento, e
mesmo decidido do interior. Ele permanecia então com a plena posse dos
meios para uma combinatória eficaz (lição XI de 28 de fevereiro de 1962).

Então, a pretensão de Lacan com a topologia das superfícies é


introduzir um certo trabalho conceitual que faz considerar a suposta

- 198 -
continuidade dada no espaço/tempo não intuição sintética a priori, mas
uma combinatória estritamente analítica, propriamente algébrica. Quer
dizer, o que escapa do conceito e de qualquer estratégia de apresentação
não se diz de uma forma muito especial e específica quando consideramos
as coisas topologicamente. Não se dizer não é o mesmo que não dizer
nada; é, pelo contrário, dizer algo não dizendo:

... eu cheguei a vos fazer conceber, apreender, que existe na apreensão, no


Begriff, alguma coisa de sensível, alguma coisa de uma estética
transcendental que não deve ser aquela recebida, pois é justamente em
razão desta que foi recebida que o lugar do desejo até o momento se
furtou. Mas é isto que explica a vocês minha tentativa, que espero ser
exitosa, de conduzi-los a caminhos que são também da estética enquanto
eles ensaiam de propor alguma coisa que não foi vista em todo seu relevo,
em toda sua fecundidade ao nível das intuições não tanto espaciais quanto
topológicas, (...) (lição XX de 16 de maio de 1962).

Mais adiante ele diz:

Eu ensaio de fazê-los sentir mais intimamente esta ligação do significante


à estrutura subjetiva. Isto a que eu conduzo vocês sob essas fórmulas
topológicas, as quais vocês já devem sentir que elas não são puramente e
simplesmente esta referência intuitiva a qual nos habituou a prática da
geometria, é a considerar que estas superfícies (esfera, toro, plano
projetivo e garrafa de klein) são estruturas.

(...) trata-se agora de desenhar em sua unidade, que o significante é corte,


e, ao sujeito e a sua estrutura, trata-se de fazê-lo dele depender. Isto é
possível nisto, que peço a vocês de admitirem e de me seguirem ao menos
um tempo, que o sujeito tem a estrutura da superfície, ao menos
topologicamente definida. Trata-se então de apreender, e isso não é difícil,
como o corte engendra a superfície (lição XXIII de 6 de junho de 1962).

Mas isso não é tudo, pois os grafos seriam sufucientes para


introduzir essa outra “estética”. Há mesmo algo na idéia de variedade que
interessou especialmente a Lacan:

No momento isso que proponho a nós é encontrar um modelo topológico,


um modelo de estética transcendental que nos permita dar conta de uma
só vez de todas estas funções do falo. Existe alguma coisa que concretize
isso? que, como isto, ou seja, o que se chama em topologia uma superfície
fechada, noção que toma sua função, à qual temos o direito de dar um
valor homólogo, um valor equivalente da função da significância, porque
podemos defini-la pela função do corte (Lição XIX, de 9 de maio de
1962).

- 199 -
Vamos situar esse interesse preliminarmente em torno dos seguintes
pontos sublinhados por Lacan: 1- as superfícies pelas quais ele se interessa
são “fechadas”; 2- essas superfícies exigem um trabalho combinatório que
é cerrado para articulá-las e que envolve um questionamento radical da
intuição espacial; 3- é o corte que engendra a superfície.

O que é então uma variedade bidimensional ou superfície fechada?

...eu proponho a vocês de considerar como mais evidente [em razão da


captura imaginária], mais simples, mais certa [pois ligada à ação], mais
estrutural partir da superfície para definir o espaço, do qual penso sermos
pouco assegurados, digamos antes definir o lugar, que partir do lugar para
definir a superfície. [Vocês podem aliás se referirem ao que a filosofia
pode dizer do lugar]. O lugar do (A)Outro já tem seu lugar em nosso
seminário.

Para definir a face de uma superfície não é suficiente dizer um lado e


outro, tanto mais que isso não tem nada de satisfatório, e se alguma coisa
nos dá a vertigem de Pascal, é bem estas duas regiões a qual o plano
infinito dividiria todo espaço. Como definir esta noção de face? É o
campo onde pode se estender uma linha, um caminho, sem reencontrar
uma borda. Mas existem superfícies sem borda, o plano infinito, a esfera,
o toro e várias outras que como superfícies sem borda...(lição XIX de 16
de maio de 1962)

Superfícies fechadas112

São aquelas em que podemos “correr”, traçar um caminho, sem


nunca observar qualquer solução de continuidade no percurso. Podemos
retomar inclusive o mesmo lugar. O importante é não sofrermos qualquer
interrupção, qualquer que seja o caminho seguido. Numa superfície
esférica, por exemplo, é precisamente isso que acontece, podemos
percorrer, sem nos descolar dessa superfície uma infinidade de caminhos
em qualquer direção, sem verificarmos qualquer interrupção ao longo do
percurso. Coisa diferente ocorre em relação a, por exemplo, um disco, uma
secção limitada do plano. Nessa superfície, ao “andarmos” indefinidamente
para “frente” – um dos quaisquer caminhos possíveis –, em algum

112
Essas características são um resumo da apresentação “informal” realizada por C. E.
Zeeman (?/1975, p. 6-10) do Teorema da Classificação.

- 200 -
momento estancaremos porque esbarraremos em seu bordo. A tão
comentada banda de Möebius é uma superfície aberta no sentido de que, ao
andarmos numa certa direção, em algum momento toparemos com seu
bordo único.

Existem duas outras características topológicas importantes


implícitas no modo como Lacan utiliza essas superfícies e que têm a ver
com essa característica de elas serem ditas fechadas. São essas três
características reunidas que propriamente especificam as superfícies de que
ele se vale: o toro, o plano projetivo e a garrafa de Klein. A segunda
característica é o fato de elas serem superfícies conexas, isto é, quaisquer
dois pontos da superfície podem ser ligados por um caminho ininterrupto.
Uma visão mais intuitiva desse aspecto é dizer que nossa superfície forma
um bloco só. Quer dizer, quaisquer dois pontos marcados nesse bloco
podem ser ligados por um caminho, o que não ocorreria se nosso objeto
fosse composto de, por exemplo, dois anéis entrelaçados. Isto porque, entre
um anel e outro, há justamente o vazio, a falta de conexão, que faz com
que percebamos duas entidades distintas entrelaçadas, no caso, os dois
anéis.

A terceira característica é o fato de essas superfícies serem


trianguláveis, o que significa que elas podem ser cobertas por um conjunto
finito de polígonos – fala-se em triangulação porque o menor polígono
possível é o triângulo –, não importando o número de polígonos com o
qual a superfície é coberta. Essa terceira característica encerra uma das
propriedades mais profundas e surpreendentes da topologia. A descoberta
dessa característica deve-se ao matemático alemão Leonhard Euler, uma
das maiores figuras da matemática do século XVIII. É essa característica,
mais do que as outras duas, para usar um termo de que se vale Zeeman
(1975), que melhor dramatiza a independência da espacialidade tal como é
concebida pela topologia, da forma geométrica.

- 201 -
Euler113 descobriu que, através de uma “conta” que computa o
número de polígonos, o número de arestas e o número de vértices, esse
número é o mesmo para um certo tipo de superfície. Isso se refere a um
dado tipo de superfície, não importando se ela está deformada ou não (por
exemplo, se nosso toro/câmara-de-ar está cheio e tem aquela aparência
típica de toro ou se está vazio e tem a aparência de uma coisa informe e
amarrotada), não importando também o número de polígonos ou triângulos
com que a cubramos, não importando ainda se os polígonos/triângulos são
regulares ou não.

Tomando, por exemplo, uma esfera, “cubrimo-la” com dois


“triângulos”. Para cobri-la com dois triângulos, basta que desenhemos
sobre ela apenas um triângulo. E o outro triângulo? Ele não é um triângulo
no sentido usual, geométrico, identificado a uma forma definida. Se
desenho um triângulo na superfície de uma esfera, a face do outro
“triângulo” seria a área exterior à área “interna” do triângulo desenhado.
Assim, ao pensar que desenhamos apenas um triângulo na superfície da
esfera, na verdade, sem saber, desenhamos dois. Esses dois triângulos têm
arestas em comum, têm vértices em comum, só não têm faces em comum.
Fazendo a conta que associa faces, arestas e vértices – a fórmula de Euler
é: Característica de Euler = nº de vértices – nº de arestas + nº de faces –
temos que, no caso da esfera, essa conta sempre tem como resultado 2.

Nesse caso, ao desenharmos dois triângulos da maneira sugerida


acima, teríamos 3 vértices – 3 arestas + 2 faces, e o resultado da conta seria
dois. Desenhemos três triângulos da maneira sugerida acima, isto é, dois
triângulos juntos mais o triângulo cuja face é o “espaço” exterior, a conta
então seria 4 vértices – 5 arestas + 3 faces, cujo resultado é 2. Não é

113
Euler descobriu essa invariância apenas para a esfera em 1752. Zeeman comenta que
essa propriedade talvez já fosse conhecida por Arquimedes. O resultado para as demais
superfícies foi estabelecido por Poincaré na década de 1890. E a primeira prova rigorosa
da invariança da característica de Euler é da década de 1930 (Zeeman, 1975, p. 30 & p.
53-55).

- 202 -
necessário que os polígonos sejam triângulos. Façamos uma “triangulação”
com um quadrilátero apenas, um quadrado. A conta seria 4 vértices – 4
arestas + 2, que é igual a 2. Com dois quadriláteros a conta seria 6 vértices
– 7 arestas + 3 faces, cujo resultado também é 2. A “triangulação” não
precisa ser feita sempre com os mesmos polígonos, apenas triângulos,
apenas quadriláteros, ou quaisquer outros. Façamos uma triangulação com
um quadrado e um triângulo juntos, isto é, com uma aresta em comum. A
conta seria, 5 vértices – 6 arestas + 3 faces, cujo resultado também seria 2.
Os mesmos procedimentos aplicados a um toro dá sempre como resultado
0, aplicados a um plano projetivo dá como resultado 1, aplicados à garrafa
de Klein o resultado é 0 – o mesmo resultado do toro.

Ao lado temos uma esfera


“triangulada”. Temos 6
vértices, 12 arestas e 8
faces. O número de Euler é
6 – 12 + 8 = 2.

- 203 -
Ao lado temos um bi-toro
“triangulado”. Ele tem 8
vértices, 12 arestas e 6
faces. Seu número de Euler
é: 8 – 16 + 6 = -2

Essas três características reunidas especificam as superfícies


bidimensionais ou variedades bidimensionais (manifolds) com as quais
Lacan trabalha. Observemos que essas superfícies são “totalidades”. Vale
dizer, são coisas que contam como um. Mas contamo-nas como um de uma
maneira diferente dos processos de “síntese” usuais. Nestes, a coisa que
conta como um, a coisa sintetizada num todo e dada à nossa frente é
identificada a uma figuração qualquer. As três propriedades reunidas, essas
superfícies são fechadas, conexas e trianguláveis, não especificam nada de
figurável. Trata-se então de uma “totalização estrutural”, não passível de
ser traduzida em imagens, nem, tampouco, de ser construída pela
imaginação. Em relação a elas, a intuição enquanto apreensão de uma
totalidade se perde. A intuição não é ausente, no sentido de ela inexistir e
de estarmos mergulhados então numa combinatória cega, num
“sintaticismo” indefinido e vazio. A presença da intuição é dada como
perda da intuição do todo, trata-se de uma intuição “local”, uma intuição
situada no nível “elementar”, “parcial”.

Mas a “totalidade” estrutural mobiliza como que “pedaços” de


intuição para se constituir e se configurar como tal, uma espécie de
intuição “parcial” da espacialidade/temporalidade. Melhor dizendo, a

- 204 -
topologia quebra com nossa intuição usual, kantiana, da espacialidade e da
temporalidade. Ela demarca seus “elementos” constitutivos numa espécie
de intuição da espacialidade/totalidade que não joga mais com a totalização
e a identificação da entidade com sua figura/imagem-totalizada. A intuição
então passa a ser uma certa apreensão do real-estrutural114, revelado pela
topologia115. Para Lacan o único afeto que interessa à psicanálise, a
angústia, identifica-se a essa intuição do real-estrutural, ela é como seu
pathos116, signo da relação direta do sujeito a esse real, real que o constitui.

Trabalho combinatório

Essas superfícies exigem um trabalho combinatório cerrado para


articulá-las, o que envolve um questionamento radical da intuição espacial.
Esse segundo aspecto é o prosseguimento natural do que acabamos de
avançar no item 1. Ele é o mais abrangente de uma perspectiva

114
A seguinte colocação de Lacan em seu texto “L’Etourdit” (1973/1972): “O matema
se profere do único real primeiramente reconhecido na linguagem, a saber, o número.
Contudo, a história da matemática demonstra (é o caso de dizer) que ele pode se
estender à intuição, com a condição que esse termo seja tão castrado quanto possível de
seu uso metafórico” (p. 37).
115
Podemos ler também no “L’Etourdit”: “Minha topologia não diz respeito a uma
substância a colocar para além do real do que uma prática se motiva. Ela não é teoria.
Mas ela deve dar conta disto que, cortes do discurso, existem tais que modificam a
estrutura que ele acolhe na origem” (p. 34). Mais adiante podemos ler: “O que a
topologia ensina, é a ligação necessária que se estabelece do corte ao número de voltas
que ela comporte para que do corte seja obtido uma modificação de estrutura ou da a-
esfera, único acesso concebível ao real, e concebível do impossível nisto que ele [o
corte] o demonstra” (p. 42).
116
Essa questão pode ser rastreada no seminário da identificação e no seminário
seguinte, sobre a angústia. No seminário sobre a identificação as lições XVI e XVII de 4
e 11 de abril respectivamente, tocam diretamente nessa relação entre a topologia e as
categorias maiores da teoria psicanalítica (desejo, pulsão, Outro, etc.). Na lição XVII ele
chega a dizer, tendo identificado o desejo ao caminho longitudinal que corta o toro, “...a
introdução do desejo do Outro como tal para dizer que é a angústia, mais exatamente,
que a angústia é a sensação deste desejo”. No seminário sobre a angústia as lições, III,
IV e V, de 28 de novembro, 5 e 12 de dezembro respectivamente onde ele situa a
questão do Desejo do Outro a partir de Hamlet, da espacialidade ser articulada a partir
do vazio e não do pleno e cheio da figura dada no espaço – o exemplo do pote – e do
cross-cap.

- 205 -
matemática, pois envolve uma “inversão” em relação à perspectiva
clássica, kantiana e euclidiana.

Em nosso funcionamento ordinário, supomos – temos a intuição, de


acordo com Kant – que o espaço é dado e que as coisas estão situadas
dentro desse espaço. Digamos assim, para Kant, o espaço/tempo é uma
“intuição”/totalidade dada a priori na qual os fenômenos – o que
designamos acima como coisas, Kant as designa em referência ao espaço,
como fenômenos – acontecem “lá-fora”, isto é, dentro dele. Se o
espaço/tempo não é uma totalidade no sentido de não poder ser tomado
como um todo, ele é a intuição de um dentro absoluto e universal, no
sentido de não existir nenhum fenômeno que possa nos ser dado sem estar
localizado dentro dele.

Uma “outra” espacialidade/temporalidade surge com Gauss117,


Bolyai, Lobatchevski, e alguns outros, ainda na 1ª metade do século
passado, quando estes homens intensificaram os questionamentos a
propósito da geometria de Euclides, especialmente em relação ao
denominado 5° postulado118. As conseqüências teóricas desses
questionamentos foi a formulação de geometrias não-euclidianas, isto é, o
advento de uma nova “espacialidade/temporalidade”. Esta é “não-clássica”
porque é alternativa à geometria de Euclides, considerada então a visão
clássica. Kant não só estava de acordo com ela, como também a elegera
como uma das figuras maiores de seu sistema filosófico, uma vez que,
como intuição a priori do espaço/tempo, ele entendia algo expresso e
codificado no sistema euclidiano.

117
Os historiadores da matemática contam que Gauss chegou a formular uma geometria
não-euclidiana cabalmente, que não publicou, porém, por temer os julgamentos de seus
contemporâneos, em especial de Kant de quem era amigo, todos presos a uma
concepção euclidiana da espacialidade.
118
De acordo com Dieudonné (1987, p.213) a formulação desse postulado hoje em dia
seria a de que “por um ponto A não situado numa reta Δ, é fácil produzir uma paralela
Δ’ a Δ. (...)Δ’ é a única paralela a Δ passando por A”.

- 206 -
O advento dessas geometrias não teve conseqüências apenas para a
geometria clássica. Ele marcou profundamente a história da matemática
desde então, o que resultou no que se denominou crise dos fundamentos da
matemática, circunstância histórica que, apesar do nome, foi muito fértil
em inovações e trouxe muitos desdobramentos para a ciência e o
pensamento de nosso século – dentre os quais, apenas a título de ilustração,
poderíamos listar o advento mesmo de toda essa tecnologia da qual essa
entidade denominada “computador” é a grande estrela.

Mas essas inovações todas são desdobramentos da ruptura com a


escritura geométrica, que “apanhava” o objeto matemático numa analogia
com a extensão. Já discorremos sobre esse aspecto nos capítulos anteriores.
Trata-se do surgimento da maneira discreta, “diacrítica”, de dispor os
“entes” matemáticos, essa estenografia combinatória que associamos hoje
em dia à matemática e cujas origens remontam a Descartes, a Fermat e aos
algebristas italianos do daquele período. Naturalmente, a topologia é uma
disciplina listada dentre as inovações demarcadas mais acima. É um fato
que Lacan faz dela uma referência importante. É certo que Lacan
freqüentemente faz uma referência à crise dos fundamentos como um todo
(vide a indicação a respeito do Teorema de Gödel numa citação acima, p.
200). O interesse de Lacan sobre esses aspectos mostra que, ao se reportar
à matemática para conduzir um trabalho de teorização e transmissão da
psicanálise, sua posição é de uma clara contemporaneidade. Ele não parece
recusar qualquer trabalho em matemática que tenha marcado seu tempo.
Entretanto, ele insiste na indicação da topologia, embora pudesse ter se
utilizado de qualquer outro capítulo, bizarro ou não, da matemática.

Quando Lacan passa dos grafos para a topologia das superfícies,


como já sugerimos, algo mais se diz sobre as relações entre os termos
constitutivos da subjetividade. Nos grafos ficam indicadas as permutações,
as vizinhanças, as solidariedades, os nexos desses termos. A subjetividade
correlacionada com a topologia das superfícies designa-se nessa correlação

- 207 -
mesma enquanto um conjunto de operações e especificações que
constituem uma certa espacialidade/temporalidade “estrutural” apta de
alguma forma a indicar o “lugar do desejo” (ver citação acima da lição XX
de 16 de maio de 1962), além de absorver todas as operações indicadas nos
grafos. Aliás, estes se deixam montar perfeitamente sobre as superfícies
(ver, por exemplo,.a lição XXII, de 30 de maio de 1962).

Essas superfícies suportam na teorização lacaniana várias “tensões”


conceituais. Uma delas é aquela entre Aparência versus Estrutura. É
irresistível, por exemplo, que tomemos o toro como alguma coisa
visualmente análoga a uma câmara de ar de um pneu. Mas, de fato, e em
primeiro lugar, do ponto de vista intrínseco, o toro não tem aparência
alguma. Intrínseco aqui quer dizer do ponto de vista de uma criatura que
vivesse colada à sua superfície e que, por isso, não poderia vê-lo como
totalidade, como se ele estivesse situado no espaço exterior. E, em segundo
lugar, do ponto de vista extrínseco, isto é, do ponto de vista da imersão da
superfície tórica no espaço de três dimensões, ela não tem uma aparência
fixa e definida, ela pode ser identificada, por exemplo, a qualquer
deformação da câmara de ar. Topologicamente é necessário apenas que as
deformações preservem o buraco central. Uma maneira mais rigorosa de
descrever essa situação é dizer que as relações de vizinhança que os pontos
formadores da superfície entretêm entre si são preservadas ao longo de
uma deformação da superfície que não a corrompa como superfície (que a
corte, a rasgue, etc.). Assim, se um ponto A é vizinho de um ponto B, ao
longo de uma deformação, eles continuarão vizinhos. Isso é visível na
câmara de ar, onde tanto faz que ela esteja cheia ou vazia, que ela seja mais
ou menos esticada, que dois pontos A e B “próximos” continuarão
“próximos” qualquer que seja a deformação. Assim, evidentemente, se há

- 208 -
buraco no início, preservadas as vizinhanças ao longo de uma deformação,
o buraco continuará a existir119.

É evidente, pelo exposto, que, do ponto de vista topológico, um toro


não se confunde como imagem dada, que o fixa apenas num momento de
um série possível de deformações – todas equivalentes entre si
topologicamente.

Uma acepção mais radical em que o toro nada tem a ver com uma
imagem pode ser ilustrada na figura abaixo, em que ilustramos a idéia de
variedade. A figura deixa patente que podemos representar cada um dos
ângulos Φ e Ψ como a latitude Φ e a longitude Ψ no toro.

A essência dessa situação se expressa dizendo que a variedade de todas as


possíveis posições do pêndulo plano composto, quer dizer, o toro, é o
produto topológico de dois círculos (ALEKSANDROV, 1956/1982, p.
241-242)120.

119
A noção de vizinhança é uma dessas noções que implicam na perda da intuição
enquanto uma totalidade. Para entendermos essa noção temos de permanecer num plano
de apreensão da coisa o mais rente possível do elementar, do parcial. A noção de
vizinhança implica numa certa apreensão do espaço/tempo, mas uma apreensão que
ainda não se fixou na letra de uma medida ou de uma escala qualquer. A noção de
vizinhança é uma apreensão do espaço/tempo anterior à possibilidade de medir, de
quantificar. Em matemática dizer que algo é vizinho de alguma coisa é anterior à
possibilidade de fixarmos de quanto essa relação de vizinhança é definida. Por exemplo,
temos um ponto, a vizinhança desse ponto são os pontos situados em torno dele. Na
noção de vizinhança não se especifica o tamanho desse “em torno”. Esse “em torno” é
“arbitrário”. Então, dada uma superfície, uma deformação contínua sobre ela que
preserve as relações de vizinhança é denominada um homeomorfismo ou uma
transformação topológica. Suponhamos uma superfície muito flexível, na qual dois
pontos parecem tão próximos que quase não se distinguem. Aplicamos sobre essa
superfície uma transformação continua, por exemplo, a esticamos ao máximo. Ao fazer
isso observamos que os pontos que pareciam quase mesclados agora estão muito
distantes, isto é muito separados. Do ponto de vista topológico, essa nova situação não
se distingue da primeira, é falso que antes eles estivessem juntos e agora, após a
transformação, eles estejam separados. Topologicamente falando eles continuam tão
“próximos” quanto antes. Se, após a transformação vemos que entre os dois pontos
existem muitos outros pontos – por isso dizemos que agora, após a transformação, eles
estão separados – é porque, topologicamente falando, todos aqueles pontos já estavam lá
antes da transformação. A transformação simplesmente explicitou que se temos dois
pontos, entre eles sempre existe uma infinidade de outros pontos. É por isso que
dizemos “dois pontos”, pois se entre dois pontos não existe uma infinidade de pontos,
então não teríamos dois pontos, mas apenas um ponto.
120
Lacan observa essa definição na lição XII de 7 de março de 1962.

- 209 -
Então, apesar de Lacan trabalhar com as figuras, é evidente que
esse ou aquele aspecto por ele indicado no desenho de uma variedade que
ele esteja a considerar num dado momento não diz respeito à figura ela
mesma, mas diz respeito à variedade enquanto estrutura. Observemos que
a “totalidade” não deve ser considerada a figura como um todo – por
exemplo, a câmara de ar cheia seria a totalidade. A “totalidade” é a
estrutura; o que se trata de considerar é o toro como o conjunto de todas as
suas deformações possíveis (homeomorfismo). É como se fosse possível,
num mundo ideal, ao olharmos um toro, vermos simultaneamente todas as
deformações que, apesar delas, fazem dele o mesmo toro. Poderíamos
também pensar num tipo de criatura que, quando olhasse para as coisas,
não as agruparia segundo um critério de forma, mas segundo sua
pertinência topológica: essa coisa tem um buraco central, então é um toro;
esta outra tem dois buracos, então é um bitoro; essa aqui tem uma banda de

- 210 -
Möebius, então é um plano projetivo; aquela lá tem duas bandas de
Möebius, então é uma garrafa de Klein, etc.

No entanto, trabalhar com as figuras, com o desenho, com certas


aparências privilegiadas das variedades, é uma forma de insistir no aspecto
“estético”, é insistir que estamos de alguma maneira considerando as
conexões entre lugares de um certo espaço/tempo em que as coisas nos são
dadas na atualidade.

Quando dizemos “atualidade”, “presença”, convocamos de alguma


maneira as noções de espacialidade/temporalidade (ver citação da lição
XIX). Lacan interroga bastante nossa noção/intuição de
espacialidade/temporalidade. Freqüentemente ele lança mão do choque
entre a espacialidade/temporalidade articulada no estudo matemático do
espaço/tempo e a intuição usual do espaço tridimensional e da
temporalidade. Esse choque serve para nos confrontar com a problemática
da dimensionalidade, que é apresentada através das dificuldades de se
trabalhar construtivamente com espaços e superfícies multidimensionais.
Ele afirma o plano, sua topologia é a de entidades “planas”
(bidimensionais), mas ele também situa a exigência de uma dimensão a
mais, às vezes fala em dit-mension:

Em relação ao plano, ele diz:

Eu comecei a articular neste sentido que, psiquicamente, eu disse a vocês


nós só temos acesso a duas dimensões (lição XVIII de 2 de maio de 1962)

...nós iremos evocar uma questão nunca colocada que concerne ao


significante; um significante não tem sempre por lugar uma superfície?
Isso pode parecer uma questão bizarra, mas ela tem ao menos o interesse,
se ela é colocada, de sugerir uma dimensão. Em primeiro lugar, o gráfico
como tal exige uma superfície, mas pode-se levantar quando
consideramos uma pedra levantada, uma coluna grega é um significante e
isso tem volume; não estejam tão certos disso, tão certos de poderem
introduzir a noção de volume antes de estarem assegurados do que implica
a noção de superfície. Sobretudo se, colocando as coisas a prova, vocês se
apercebam que a noção de volume não é apreensível de outro modo do
que a partir daquela de envelope. Nenhuma pedra erguida não nos
interessou por outra coisa, eu não diria, que por seu envelope, isto que
seria afirmar um sofisma, mas por isso que ela envelopa. Antes de serem

- 211 -
volumes, a arquitetura é feita para mobilizar, para arranjar as superfícies
em torno de um vazio (lição XX, de 16 de maio de 1962).

Em relação a uma quarta dimensão ou dimensão a mais:

Já a terceira dimensão, para nós psicólogos das profundezas, faz muitos


problemas para que a consideremos pouco assegurada. Entretanto nesta
simples figura, o cross-cap, a quarta dimensão está já implicada
necessariamente. O nó elementar feito outro dia com uma corda
presentifica já a quarta dimensão. Não existe teoria topológica válida sem
que nos faça intervir alguma coisa que nos conduzirá à quarta dimensão
(lição XX, de 16 de maio de 1962).

Como podemos atestar, em relação ao cross-cap, Lacan privilegia


sua condição plana, bi-dimensional, do ponto de vista intrínseco. Nessa
condição, como plano, não encontramos nenhum bordo, nenhuma
interrupção. Mas ele privilegia também o fato de, numa perspectiva
extrínseca, para termos uma “imagem total”, uma “intuição global”, termos
de postular uma quarta dimensão, “não-intuível”, “não-imaginarizávél” na
qual seja possível nos alojar para vê-lo, como podemos ver, a partir das três
dimensões, a lua esférica. Nessa condição se confirma o que é dado em
duas: o plano projetivo, qualquer que seja o trajeto feito sobre ele, não
encontra qualquer barreira ou limite ou, dito de outra forma, ele é conexo e
fechado também “visto de fora”, isto é, da quarta dimensão. Mas Lacan
marca também o fato de que o cross-cap, enquanto modelo de uma
imersão do plano projetivo no espaço tridimensional, é uma entidade que
necessariamente apresentará auto-intersecções. Aparentemente, ele não
será uma superfície fechada porque um “lado” parecerá “rasgado”,
interrompido, com bordos, para dar passagem ao outro “lado”, este, sim,
preservando a propriedade de conectividade. Essa “falsa conexão”, efeito
da imersão, interessará bastante a Lacan, ele associará a ela uma série de
termos importantes em sua teorização.

Uma outra tensão conceitual diz respeito à relação local/global.


Essa oposição nos dá a oportunidade de nos determos um pouco mais no
nosso entendimento a respeito do que tomamos como caráter algébrico,

- 212 -
combinatório da topologia das superfícies, esse entendimento “analítico”,
em oposição ao “sintético”, da espacialidade/temporalidade. Tomemos a
superfície mais simples, a esfera. Podemos ter uma intuição imediata,
global, da esfera, basta vê-la. Não é, no entanto, óbvio que, quando vemos
uma esfera, temos a “intuição” de que cada ponto de sua superfície tem a
mesma distância de um ponto central, sendo essa distância designada como
o raio. Mas, de alguma maneira, nossa intuição da esfera é reenviada para a
operação métrica e esta reenviada, por sua vez, para a intuição. Nessa
circulação, de uma apreensão intuitiva e global (a esfera como um todo)
para uma apreensão analítica (cada ponto guarda a mesma distância do
centro), “por partes” e vice-versa, uma certa identidade se articula entre a
intuição e os aspectos métricos. A tradução “analítica” da intuição é dada
pela operação métrica e a tradução “sintética” da operação métrica é a
intuição.

Em topologia explicita-se o fato de que o nível global se coordena


com os níveis locais. Trata-se de certas operações locais que permitem, por
construção, alçar-se ao nível global. Esse fato é da maior importância e
Lacan se vale dele em inúmeras situações. Por ora, é necessário entender
que não dispomos de intuições capazes de nos assegurar a apreensão
global de uma série de entidades matemáticas estabelecidas pelas
geometrias não-euclidianas e pela topologia. Nessas situações, em que nos
falta uma representação sintética, global e intuitiva, a passagem do nível
local ao nível global é por extensão do nível local.

Consideremos um exemplo trivial, aquele que envolve a idéia de


esfera. Para a topologia, uma esfera não é a “bola” enquanto totalidade a
que estamos tão apegados, dada a nossa intuição. Uma esfera, ou talvez
fosse melhor dizer um “esferóide”, é toda superfície na qual qualquer corte,
ou caminho fechado sobre ela, divide-a em dois pedaços. Com essa
definição, fica patente que designamos algo que de fato especifica as
esferas não em função de sua forma, mas em função de uma operação: o

- 213 -
corte ou o traçar de um caminho fechado sobre a superfície que
necessariamente a dividirá em duas partes ou delimitará, na superfície em
questão, duas regiões distintas. Sendo o corte uma operação local, é ele, e
não a forma, que permite a classificação da superfície. E essa classificação
independe da forma, do aspecto como se a esfera fosse vista de fora como
um todo. Essa classificação se dá por meios intrínsecos à superfície.

Observemos que o toro não é um esferóide, porque podemos


realizar pelo menos um corte ou caminho fechado nele sem que ele se
divida em dois pedaços ou se separe em duas regiões distintas. Na verdade,
existem infinitos cortes ou caminhos fechados que não dividem o toro em
duas coisas. Por exemplo, tanto o corte transversal quanto o corte
longitudinal (ver figura) não dividem o toro em dois pedaços, eles o
transformam-no numa casca cilíndrica.

- 214 -
Sublinhamos que todas as noções topológicas apresentadas até aqui
respeitam o critério “analítico”, “construtivo”, exposto acima. Por
exemplo, ao situarmos o conceito de superfície fechada (nível global),
apontamos para as operações em termos de caminhos ou cortes (nível
local) que sustentam esse conceito: uma superfície é fechada quando
qualquer caminho que se faça nela não encontra um bordo. É como se no
nível local dispuséssemos de “pedaços” de espaço (vizinhanças) e nossa
operação de caminhar fosse como uma colagem desses “pedaços”. O que é
surpreendente é, após alguns “passeios”, podermos fazer distinções e até
classificações bastante rigorosas sobre os espaços onde esses passeios se
deram, sem que tenhamos tido qualquer visão global, ou intuitiva, dos

- 215 -
mesmos. É surpreendente que, através de manobras tão simples e pouco
promissoras, tal como “andar para frente”, “fazer um círculo”, ou uma
“linha fechada”, possamos realizar um estudo da
espacialidade/temporalidade e de noções que lhe são conexas. É o que
podemos fazer com a repetição deles e com o exame das relações entre
esses diversos “passeios” possíveis – seus cruzamentos, as convergências,
as divergências, etc. Aqui, poderíamos invocar a idéia mais ampla de
continuidade, tão fina quanto rigorosa e que abriu horizontes conceituais
para a humanidade completamente novos e inesperados121, possibilitando
inclusive um avanço evidente no campo da ciência após Newton.

O corte e a superfície

Sem o amparo de uma intuição primeira, a priori, do espaço/tempo


o que nos resta é colocarmo-nos a caminhar mesmo assim, a cortar uma
dada superfície que sequer vemos. Lá pelas tantas, depois de algumas
andanças às cegas, poderemos recolher o “lixo” de tantas andanças inúteis
e observarmos que é a partir dessas andanças inúteis que podemos
constatar por onde andamos. Alcançaríamos desse modo a especificação
do espaço por onde andamos?. E mais, será que o espaço/tempo estava lá
antes de nossas andanças? Ou, como é mais próprio à psicanálise, não será
que o espaço foi tecido em nossas andanças? Eis a razão pela qual a
utilização da topologia não é tomada como modelo, a topologia “não é
teoria” (LACAN, 1973/1972 p. 34 – ver nota nº 15) mas ela diz respeito ao
real de nossa condição subjetiva.

O espaço/tempo, ou melhor dizendo, a espacialidade/temporalidade,


não é anterior ao significante, não é intuição a priori. É na
espacialidade/temporalidade que se recolhe e se acumula o real da

121
Fala-se muito pouco desse aspecto “criativo” da matemática. Em geral se privilegia
seu aspecto dedutivo, sua disciplina. Lacan, sem dúvida, apreciava esse aspecto, mas na
apropriação que ele faz da matemática esse aspecto “criativo” é o de maior importância.

- 216 -
incidência significante: a incidência do significante faz-se então superfície.
“Um significante não tem sempre um lugar de superfície?” (lição XX, de
16 de maio de 1962):

É a superfície, pensarão vocês, que permite o corte, e eu digo, é o corte


que nós podemos conceber, ao tomar a perspectiva topológica, como
engendrando a superfície. E é muito importante, pois afinal de contas é aí
talvez que iremos poder apreender o ponto de entrada, de inserção do
significante no real, constatar na praxis humana que é porque o real nos
apresenta, se posso dizer, superfícies naturais que o significante pode aí
entrar (lição XXII, de 30 de maio de 1962).

A espacialidade/temporalidade constitui-se no “movimento”


mesmo do significante, no significante como corte. Se existe alguma
entidade a priori, essa entidade é o significante como lugar: “O lugar do
(A)Outro já tem seu lugar em nosso seminário” (lição.XIX de 16 de maio
de 1962, ver citações anteriores, em especial a da página 202). Desse
modo, Lacan incorpora a revisão da espacialidade/temporalidade proposta
pela geometria contemporânea e a topologia. O espaço/tempo é correlativo
às operações que o constituem, ele não é a priori. Ele é contemporâneo à
operação que o engendra, mas não se reduz a essa operação, ele não lhe é
“isomorfo” como estrutura, ele é heterogêneo à operação que o engendrou.
Essa heterogeneidade é dita de muitos modos pelos matemáticos:

Sabe-se como a antiga demonstração da incomensurabilidade expõe a


evidência da conclusão: se a diagonal tem uma medida comum com o
lado, então existe um número que é ao mesmo tempo par e impar. É
impossível.

Número e grandeza, discreto e contínuo, aritmética e geometria; das


longínquas origens até hoje, o questionamento matemático não cessou de
afrontar a heterogeneidade destes dois domínios. Como escrevem os
lógicos contemporâneos:

“Preencher o corte que separa o domínio do discreto e aquele do contínuo,


ou a aritmética e a geometria, é um problema central, talvez mesmo o
problema central dos fundamentos das matemáticas” (LÉVY, 1987, p.13).

- 217 -
Essa questão é pensada pelo grupo de matemáticos franceses que se
reuniam e produziam matemática sob o codinome de Nicolas Bourbaki122.
Esse grupo marcou Lacan, já que eles seriam representantes de um ponto
de vista estrutural em matemática. Bourbaki estabelece distinções entre o
aspecto formal, mecânico da matemática, e seu aspecto “criativo” ou
“criador”. De um lado, “uma rigorosa sistematização da atividade
lingüística”123, sistematização que estabelece a sintaxe, as regras, o
mecanismo transformacional que regula as passagens de uma proposição a
outra no raciocínio matemático:

Ordenar o vocabulário desta linguagem e precisar a sua sintaxe significa


fazer um trabalho muito útil que constitui, com efeito, um dos aspectos do
método axiomático a que se pode propriamente chamar de formalismo
lógico (ou, como se diz, “logicista”). Mas, e insistimos nisto, trata-se
apenas de um aspecto e o menos importante (JURIJ, p.99).

A esperança dos matemáticos do final do século XIX e do início do


século XX era a de que a sistematização da linguagem matemática
esclarecesse seus fundamentos. Com Gödel fica demonstrada a radical
separação entre o mecanismo formal dedutivo (a “mecânica sintática”) e a
verdade matemática. Vale dizer, com Gödel sabemos que uma dada
proposição é verdadeira por fora de, exteriormente a um dado esquema
dedutivo do qual ela deveria ser derivada124. Essa questão dividiu os

122
Sabemos que Bourbaki influênciou Lacan sob vários aspectos. Nicolas Bourbaki não
é o nome próprio de nenhum matemático em particular. Sob esse nome organiza-se toda
uma proposta de produção em matemática que vai desde certas concepções
epistemológicas até a organização institucional da produção, bem como do estilo de
publicação, “anônimo”, ou melhor, no qual os autores abdicam, nas publicações do
grupo, de seus respectivos nomes próprios. Esse grupo de matemáticos, enfim, tinha um
posição bem clara a respeito da transmissão e do ensino da matemática (JURIJ, 1998, p.
97-110; DIEUDONNÉ, 1978, p. 1-17, 1982, p.15-38; BOURBAKI 1969/1976). A
revista ligada a Lacan, Scilicet, foi inspirada, quanto à sua forma, no estilo de Bourbaki
(ROUDINESCO, 1986/1988, p. 499).
123
Nessa etapa resumimos Jurij (1998, p. 97-110), Bourbaki (1990, p. E I.7-E I.11 & E
IV.33-E IV.76).
124
O que fundamenta a verdade de uma proposição matemática, senão um jogo
lingüístico bem estabelecido? Esse “jogo lingüistico bem estabelecido” é justamente, ou
deveria ser, o sistema dedutivo. Acontece na matemática sabermos que uma
determinada proposição ser verdadeira, mas não podermos demonstrar essa “verdade” a
partir do sistema formal com o qual estamos a trabalhar. Por que meios então, sabemos
que essa proposição é verdadeira? (GIRARD, 1989, p. 147-171).

- 218 -
matemáticos, grosso modo, entre aqueles que abandonam a “abstração
matemática fundamental: a idéia de infinito atual em que se apóia o
conceito de verdade” (JURIJ, 1998, p. 100) e aqueles que insistiam em tal
idéia como constituindo o núcleo fundamental da matemática. Aqueles que
abandonam a idéia de infinito atual, em razão desse abandono, vão na
direção de ressaltar o caráter “assemântico” da matemática, sua natureza
dedutiva e seu caráter algorítmico e escritural. Na direção oposta vai
Bourbaki para quem

... estas propriedades mecânicas representam apenas a parte menos


interessante do método axiomático. Na realidade a imagem idealizada da
matemática como processo generativo de todas as deduções formais que
derivam de um sistema admitido de axiomas não só está longe da
realidade como não capta um aspecto essencial dessa mesma realidade:
não considera o princípio da escolha (ou geração seletiva) das deduções
úteis e produtivas relativamente a um mar de raciocínios implausíveis,
mesmo que formalmente corretos (JURIJ, 1998, p. 100).

O que recolhe para Bourbaki isso que na matemática extrapola o


fato de ela não ser uma mera atividade combinatória de escrita? Ele
considera nas matemáticas clássicas – na história da matemática – as
propriedades dos entes matemáticos abordados utilizadas nas
demonstrações.

Bourbaki sublinha que o método axiomático, no qual a unidade central de


análise é o conceito de estrutura, apresenta-se como um método criativo
na medida em que permite observar analogias existentes entre teorias à
primeira vista relativas a objetos diferentes (JURIJ, 1998, p.106).

Existem então três grupos de estruturas básicas, as “estruturas


gerativas”, aquelas a partir das quais todas as outras são produzidas: as
estruturas algébricas, as estruturas de ordem e as estruturas topológicas.

Nesta tese assimilamos o aspecto “algébrico” à escritura. É bom


dizer, adotamos uma certa perspectivação da matemática que assimila o
aspecto sintático à escrita, à algebra, às regras de transformação. E
situamos o aspecto que escapa à combinatória, o aspecto que suporta a
“verdade”, até mesmo a intuição, do lado de uma reflexão que gira em

- 219 -
torno da continuidade, do infinito atual, enquanto
espacialidade/temporalidade. A esse respeito, nossa orientação estaria mais
próxima daquela de Poincaré quando este diz:

É impossível estudar as obras dos grandes matemáticos, e mesmo as dos


pequenos, sem notar e sem distinguir duas tendências opostas, ou antes,
dois tipos de espíritos internamente diferentes. Uns estão, antes de tudo,
preocupados com a lógica; ao ler suas obras, somos tentados a crer que só
avançaram passo a passo, com o método de um Vauban, que investe com
seus trabalhos de abordagem contra uma praça forte, sem abandonar o que
quer que seja ao acaso. Outros se deixam guiar pela intuição, e na
primeira investida fazem conquistas rápidas, mas algumas vezes precárias,
como se fossem ousados cavaleiros na linha de frente.

Não é a matéria de que tratam que lhes impõe um ou outro método. Se dos
primeiros dizemos amiúde que são analistas, e se chamamos os outros de
geômetras... (POINCARÉ, 1905/1998, p. 13).

Jean Michel Vappereau (1985, p. 171), um matemático que


colaborou com Lacan na fase final de sua obra, diz da intuição, retomando
inclusive uma citação de Lacan em seu artigo “L’Etourdit” por nós já
comentada:

Nós não reteremos aqui senão uma coisa: se pela primeira vez nós
podemos designar à topologia um lugar no campo de Freud, é porque nós
a ligamos à uma intuição “...à condição que este termo seja tão castrado
quanto possível de seu uso metafórico” (ver nota nº 15). Quer dizer a
reconduzi-la a um matema. (...)

Para nós, ao contrário, o problema topológico é aquele de uma estrutura


que Bourbaki qualifica de independente e basal. Todos os nossos
desenvolvimentos tomam sua significação desse fato importante.

A seguir, Vappereau faz uma citação de F. Klein na qual ele situa a


intuição em matemática, que é surpreendentemente próxima ao que
supomos ser o pensamento de Lacan:

Eu a considero como subsistindo por ela-mesma. Existe uma geometria


propriamente dita que não pode, como as pesquisas que nos ocuparam,
não ser senão uma forma sensível de considerações abstratas.../...Para essa
geometria, um modelo125 que seja ele executado e examinado ou somente
figurado com força, não é um meio para atingir um alvo, mas a coisa ela-
própria (KLEIN in: VAPPEREAU, 1985, p. 171-172).

125
Modelo nesse contexto indica claramente algo que produz uma intuição.

- 220 -
Resumindo, então topologia, intuição, espacialidade/temporalidade,
pathos, angústia, objeto a e real são termos que entretêm uma certa
solidariedade. Na citação que Vappereau faz de F. Klein é notável a
coincidência de ele situar a intuição, a espacialidade e a coisa ela-própria
(real) no mesmo registro, na mesma série. Observemos, finalmente, essa
indicação de Lacan a respeito da intuição no seminário da Identificação:

Metáfora intuitiva, geométrica diremos. Sabe-se a importância que tem


toda batalha entre matemáticos, ela não faz furor senão em torno de
elementos dessa espécie. Poincaré e outros sustentam que há um elemento
intuitivo irredutível, e toda escola dos “axiomáticos” (axiomaticiens)
pretendem que podemos formalizar inteiramente a partir de axiomas, de
definições e de elementos, todo o desenvolvimento das matemáticas, quer
dizer arrancar dela toda intuição topológica. Felizmente que o Sr.
Poincaré se apercebe muito bem que a topologia, é bem aí que
encontramos o sumo do elemento intuitivo, e que não podemos fazer esta
ciência que se chama topologia, a gente não pode começar a articulá-la,
porque é uma grande ciência (lição XII de 7 de março de 1962).

No texto “L’Etourdit” podemos ler:

A topologia não é “feita para nos guiar” na estrutura. Esta estrutura, ela o
é – como retroação da ordem da cadeia na qual consiste a linguagem
(1972, p. 40).

Esse ponto pode surpreender e confundir o leitor, pois não faltam


contextos nos quais Lacan detrata a intuição. A dificuldade toda é
distinguir o pathos correlativo à revisão da estética transcendental por ele
proposta (vide citações anteriores) de uma apreensão no campo da
significação referida à ordem do imaginário e à geometria. A intuição que
concerne à topologia, e ao real, é aquela anotada por Lacan despida de
efeito metafórico (nota nº 114). É essa intuição que está referida à angústia,
signo da presença do objeto a. Vejamos agora como essas indicações se
articulam de uma maneira geral.

Vamos nos deter nessa indicação genérica porque nossos objetivos


se situam nesse plano. Uma indicação mais esmiuçada da utilização
lacaniana da matemática certamente exigiria um detalhamento das
questões matemáticas e psicanalíticas que extrapolam os limites do

- 221 -
presente trabalho – já que Lacan se valeu dessas referências em toda
extensão de sua obra. Vamos nos deter em dois aspectos apenas: 1- a
proeminência da não-orientabilidade (o corte em “oito interior”) e 2- é o
corte que engendra a estrutura.

Existe um teorema da topologia combinatória implícito no manejo


lacaniano das superfícies. É o teorema da classificação126, cujo resultado é
extremamente forte e poderoso, pois, como o nome sugere, ele classifica as
superfícies. Na verdade, esse teorema classifica e ordena qualquer
superfície desde que ela possua as especificações que enumeramos
anteriormente sobre uma superfície ser fechada, conexa e triangulável.
Esse teorema trabalha com a noção de cirurgia – o termo corte de que
Lacan tanto se vale vem daí.

O núcleo da demonstração do teorema é o seguinte. Dada uma


superfície com as características acima, mas muito complicada, com vários
buracos e várias bandas de Möebius, prova-se que essa superfície, através
de uma série de procedimentos “cirúrgicos”, reduz-se a uma esfera. E se
anotamos nessa esfera efeito de cirurgia a orientação das incisões
“cirúrgicas” que lhe fizemos, o caminho inverso pode ser feito, isto é, da
esfera alcançaremos novamente a superfície complicada da qual partimos.
Através desse teorema, chegou-se à conclusão de que, qualquer que seja a
superfície com as características especificadas, por mais complicada que
seja, ela pertence a um de apenas dois grupos possíveis. Ou ela é uma
superfície orientável – uma superfície que não possui banda de Möebius,
que os processos cirúrgicos não retiram dela sequer uma banda de
Möebius. Ou ela é não-orientável, isto é, trata-se de uma superfície cujos
processos cirúrgicos extraíram pelo menos uma banda de Möebius. Não
existem superfícies híbridas. Pelo exposto é nitido que 1) a esfera é a
superfície de base a que todas as outras se referem e 2) a banda de
126
Lacan se refere explicitamente a esse teorema no seminário da Identificação na lição
XV de 28 de março de 1962: “Então tudo [qualquer superfície] pode se reduzir à
adjunção de uma esfera com um certo número de alças...”

- 222 -
Möebius, por ser a estrutura que suporta a distinção entre caminhos
orientados e não-orientados, é um elemento classificador fundamental.

Não se trata bem do caso de Lacan modificar esse teorema. Mas a


partir dele, ele postula uma espécie de deformação de seu sentido que
interessa especificamente à psicanálise. Os matemáticos que consultamos
nos disseram que tal deformação não tem nenhuma significação
propriamente matemática127. Em primeiro lugar, a superfície de base é não-
orientável e, em inúmeros contextos, temos a impressão de ela ser o plano
projetivo ou cross-cap. Já no teorema da classificação, a superfície de base
é a esfera. Em relação a esfera Lacan nos diz no seminário da
Identificação:

...trata-se de escapar da proeminência da intuição da esfera enquanto ela


comanda muito intimamente, mesmo quando não pensamos nela, nossa
lógica. Pois, certamente, se existe uma estética transcendental que nos
interessa, é porque ela domina a lógica (lição XIX de 9 de maio de 1962 –
sublinhado nosso).

Sobre a “a-esfera” podemos ler no texto “L’Etourdit”:

Linha sem pontos, tenho eu dito do corte, enquanto que ele é, ele é, a
banda de Möebius nisto que um de seus bordos, após a volta na qual ela se
fecha, se prossegue noutro bordo.

Isto entretanto não pode se produzir senão em uma superfície furada em


um ponto que eu disse fora de linha por se especificar de um duplo laço
entretanto localizável sobre uma esfera: de maneira que seja uma esfera
que se desdobra, mas de seu duplo laço que ele faça da esfera uma a-
esfera ou cross-cap. (1972, p. 38-39).

Não se trata de uma subversão do teorema, porque não vemos


Lacan com a menor intenção de formular uma alternativa ao modo como
os matemáticos classificam as superfícies. A prevalência das superfícies
não-orientáveis, em especial o plano projetivo, é um desígnio da
psicanálise. Como ele diz no texto “L’Etourdit”: “A estrutura é o a-esférico

127
Comunicação pessoal de Ricardo Kubrusly.

- 223 -
receptado [colhido] na articulação “linguageira” enquanto um efeito de
sujeito nela se apreende” (ibid. p.40).

O segundo ponto diz respeito ao aforismo “o corte engendra a


superfície” que encontramos em diversas ocasiões no seminário da
Identificação. A idéia de Lacan é como se o corte em oito interior
trouxesse sempre a “lembrança” da estrutura de base a qual ele está
referido – o cross-cap. Sabemos que o cross-cap furado é homeomorfo à
banda de Möebius (WEEKS, 1985, p. 292) e que o corte ou o percurso em
oito interior descreve o bordo único dessa estrutura que é a banda de
Möebius. Sabemos também que ela é a estrutura decisiva na classificação
das superfícies. Mas, apesar disso tudo, do ponto de vista matemático, não
podemos associar necessariamente esse percurso, que é o oito interior, ao
cross-cap já que ele é perfeitamente realizável em estruturas orientáveis. O
exemplo mais evidente de que esse percurso ou corte pode ser realizado
numa superfície orientável é uma estrutura da qual Lacan se vale para
destacar a relação entre, de um lado, a demanda e o desejo e, de outro lado,
o sujeito e o Outro. Essa estrutura é o toro – que é a primeira superfície
orientável, como a esfera, e após dela na seqüência classificatória – que em
seu fechamento divide o espaço em duas regiões, uma interior e a outra
exterior. Ele se distingue da esfera por seu “buraco” central, como já
dissemos.

Mas Lacan, sem a menor cerimônia, associa o toro ao cross-cap. O


toro apenas particulariza, destaca melhor, um conjunto de relações
estruturalmente referidas ao trajeto do oito interior, isto é, um conjunto de
relações intrínsecas ao cross-cap. Assim, o toro, o próprio cross-cap e a
garrafa de Klein – as três estruturas básicas com as quais Lacan trabalha –
são estruturas identificáveis à a-esfera pelo fato de o trajeto/corte do oito
interior por si só atualizar suas propriedades fundamentais enquanto
estrutura de base e referida ao cross-cap.

- 224 -
O que autoriza Lacan a fazer essa “violência” conceitual? A nosso
ver é a clínica. Seu movimento a esse respeito é aquele que ele explicita no
seminário XI: “O conceito é determinado pela função que ele tem numa
praxis. Esse conceito dirige a maneira de tratar os pacientes. Inversamente,
a maneira de os tratar comanda o conceito” (1964, p. 114). Ilustremos esse
ponto, finalizando desse modo esta etapa de nosso trabalho.

Na demonstração do teorema da classificação, numa determinada


etapa, dada uma superfície, temos de realizar algumas “cirurgias” sobre ela
para que possamos produzir uma situação passível de ser classificada. No
caso, por exemplo, de um toro, cortamos ele transversalmente e ficamos
com um tubo (uma casca cilíndrica comprida). Em cada extremidade desse
tubo costuramos um disco anotando também a orientação do corte
realizado. Esse tubo “tapado” pelos dois discos costurados um em cada
extremidade, é homeomorfo a uma esfera. Em relação ao plano projetivo,
procederemos de uma maneira análoga. Mas há uma diferença importante.
É que essa superfície é equivalente a uma esfera com uma banda de
Möebius nela costurada. Para a reconduzirmos o plano projetivo à uma
esfera é necessário que “retiremos” a banda de Möebius – e isso feito,
costuremos um disco. Mas isso não se faz do mesmo modo que no toro. É
suficiente que o cortemos numa certa posição, para que ele se desfaça –
batizemos esse corte de corte simples e nesse lugar costuremos apenas um
disco128 – preservando a orientação, no caso, a não-orientação, do corte.

Lacan faz menção a esse processo no artigo “L’Etourdit” só que


pelo caminho inverso. Em seu texto, ele situa uma esfera furada e nela
costura uma banda de Möebius. Aqui tomamos o cross-cap, “retiramos” a
banda de Möebius, não tanto extirpando-a, mas “destruindo-a” através de
uma maneira específica de cortar – o corte simples. O resultado dessa
operação é um disco, que é uma superfície homeomorfa a de uma esfera
128
Ao cortarmos o toro tivemos que costurar dois discos, um em cada extremidade do
tubo restante que é efeito do corte, para reconduzí-lo à esfera. No caso do plano
projetivo, é suficiente costurarmos um disco para obtermos a esfera.

- 225 -
furada. E nesse furo, como já dissemos, costuramos apenas um disco para
estabelecermos a esfera exigida pelo teorema como ponto de chegada e de
partida no processo de desconstrução e reconstrução da superfície,
necessário para sua classificação.

Essa operação não subtrai nada da superfície, apenas a destrói


quanto às suas propriedades fundamentais de ser uma superfície não-
orientável, convertendo-a numa esfera furada ou disco – ou seja,
convertendo-a numa superfície aberta e orientável. Um outro corte no
cross-cap, o oito interior propriamente falando, ou corte em dupla volta,
em oposição ao corte simples, libera duas estruturas: um disco e uma
banda de Möebius. Qual a relação entre os dois cortes? Eles são
estruturalmente o mesmo corte. A diferença entre os dois é de posição
quanto ao percurso do corte na superfície não-orientável. Isso tudo
significa que a banda de Möebius não precisa estar na estrutura como se
fosse um apêndice identificado como tal, para ela estar presente nessa
estrutura. É como se a banda de Möebius pudesse ser uma espécie de
presença “invisível”. Ela se subtrai ou se acrescenta meramente pelo efeito
da operação. Assim, basta que costuremos, numa esfera furada, os pólos
antípodas do bordo de seu furo que uma banda de Möebius se “acrescenta”
à estrutura e geramos, desse modo, um plano projetivo. Inversamente,
basta que cortemos um plano projetivo numa certa posição que retornamos
à esfera furada. Isso tudo sem que tenhamos acrescentado ou extraído
qualquer pedaço da superfície no curso das “cirurgias” – embora
estruturalmente tenhamos de fato acrescentado ou retirado uma banda de
Möebius da superfície.

Por essa razão, podemos identificar a banda de Möebius, o


elemento que classifica a superfície, como sendo pura e simplesmente o
corte ou o trajeto. Nesse nível, a banda não tem consistência nenhuma – ela
é estritamente equivalente à operação. Ela está na estrutura pelo simples
fato de a superfície apresentar as propriedades de não-orientabilidade; mas,

- 226 -
enquanto uma consistência, ela está como que “diluída” na superfície. Por
outro lado, a banda de Möebius pode ser identificada a uma consistência, a
uma “coisa”, a um “pedaço” de superfície que de fato extraímos do plano
projetivo ou de qualquer outra superfície não-orientável. Basta que
anexemos à linha do corte anterior o corte simples, uma certa vizinhança e,
a seguir, cortemos nos bordos dessa vizinhança que estabelecemos – nesse
caso, teríamos realizado no plano projetivo o corte em dupla volta ou o oito
interior. Ao cortarmos o plano projetivo dessa nova maneira, liberamos
duas “coisas”, duas superfícies abertas: um disco enquanto superfície
orientável e uma banda de Möebius enquanto superfície não-orientável.

Em torno desses elementos todos, a banda de Möebius enquanto


consistência, a banda de Möebius enquanto puro corte, o plano projetivo
como uma superfície que é uma soma topológica de duas estruturas
heterogêneas – um disco e uma banda de Möebius – que faz com que seja
impossível configurá-lo em nosso espaço usual de três dimensões, as
posições distintas de um mesmo corte que traz conseqüências topológicas
distintas, enfim, esses elementos todos, e mais alguns outros que não
listamos mas que vão na mesma direção, asseguram uma certa
proeminência das estruturas não-orientáveis e, em particular, do plano
projetivo e da superfície que o classifica, a banda de Möebius. É por aí que
Lacan traça esse truncamento envolvendo o toro, qual seja, o de alocá-lo ao
lado do cross-cap.

Façamos o corte em dupla volta – ou oito interior – no toro. O


resultado desse corte é uma superfície aberta homeomorfa a um disco.
Como o corte “simples” no plano projetivo, também libera apenas um
disco. Segue-se que podemos identificar de alguma maneira o corte
simples no plano projetivo com o de dupla volta no toro. E por aí podemos
identificar de alguma maneira o toro – que é uma superfície orientável –
com o plano projetivo. É como se o corte de dupla volta no toro, ao liberar
um disco e por reproduzir o percurso do bordo de uma banda de Möebius,

- 227 -
se “lembrasse”, ou atualizasse a estrutura möebiana do plano projetivo,
marcando dessa forma o toro com uma espécie de “sombra” do plano
projetivo – embora, pelo teorema da classificação um e outro sejam
superfícies alocadas em grupos diferentes. Um raciocínio análogo aplica-se
à garrafa de Klein que, entretanto, como o cross-cap, também é não-
orientável.

Essa proeminência da a-esfera, dessa estrutura que se organiza a


partir do corte com as propriedades arroladas acima – basicamente a não-
orientabilidade suportada na banda de Möebius –, visa dar conta do fato
clínico fundamental de que a cada corte, seja da sessão, seja do que o
analista pode testemunhar da vida do sujeito, este é sempre remetido à
estrutura que é a articulação de “heterogeneidades”, de diferenças radicais.
Uma estrutura que não cabe inteira em nosso espaço representacional usual
e que por isso requisita uma dimensão a mais, a “dit-mention”, como diz
Lacan, dimensão intangível, mas nem por isso irreal para poder realizar seu
destino: que é a realização do sujeito no campo do discurso.

Como já indicamos, muitos dos raciocínios de Lacan suportados em


sua topologia não têm valor propriamente matemático, eles são efeitos de
forçamentos provocados, induzidos, pela clínica. Esses forçamentos nos
mostram o sentido da apropriação da matemática por Lacan. Vale dizer,
seu compromisso maior não é com a coerência demonstrativa
simplesmente. A estrutura matemática funciona para ele como uma espécie
de rede ou tecido maleável – daí a topologia – que ele lança sobre a clínica
e esta, por sua vez, força essa malha inscrevendo nela suas marcas. Lacan
sabe que a rede é pequena demais, ou larga demais, para apanhar seu
objeto; ele sabe que não se trata de apanhar o objeto. Mais do que isso, ele
nos ensinou que é da essência mesmo desse objeto escapulir, que ele só
existe ao escapar. Ao ponto de sempre estarmos na situação paradoxal de
ele se produzir através da caçada no que escapa à mira do caçador. De
qualquer modo, a psicanálise demarca esse objeto paradoxal. Se para ela

- 228 -
não se trata de apreendê-lo, como na ciência, trata-se de, através das
poucas marcas que ele deixa em sua rede, articular num certo saber que
não deixa de fazer a devida reverência à demonstração, algo de acordo com
os desígnios da transmissão da psicanálise e de sua ética.

- 229 -
Conclusão

É tempo de retomarmos o percurso realizado e arriscarmos algumas


direções a título de conclusão.

Em primeiro lugar alguma consideração a respeito de nosso ponto


de partida: o estilo de Lacan e o papel que a matemática desempenha nele.
Aproveitamo-nos do episódio Sokal para situar o estilo de Lacan em sua
relação com o “mundo”, isto é, em como esse estilo se choca com a
organização ordinária do ensino.

Sokal constrói e fixa através de sua crítica uma atitude de recusa em


passar pelos significantes de Lacan. Ele sequer entra no mérito de que tipo
de trabalho esse texto “estranho”, o de Lacan, propõe. Ele o mede às
produções acadêmicas e científicas usuais, o mede principalmente
relevando em que sua organização ofende a maneira habitual dos filósofos
e cientistas se comunicarem entre si129. Essa crítica nos foi útil porque ela
coloca de uma maneira muito clara a reação comum de recusa ao texto de
Lacan. Reação que está presente em maior ou menor grau mesmo entre
lacanianos e que entra na composição da necessária resistência a esse texto.
129
Guardamos essa nota para o final intencionalmente. Sabemos que esse estílo de
comunicação científica é um produto histórico – já mencionamos esse fato em nota
anteriormente. Newton, para tomarmos o grande homem da ciência, extremamente
zeloso e lúcido da novidade e da importância de suas idéias nunca fez muita questão de
publicar suas idéias. Suas primeiras publicações versaram sobre a problemática da luz –
sua teoria corpuscular da luz – elas foram alvo de inúmeras críticas. Em razão desse fato
ele deixou de publicar durante anos. De uma certa maneira, foi através de um acidente
que a humanidade pode ter acesso aos Principia..., foi em razão de uma aposta que
Halley (o do cometa) procurou Newton para a resolução de um problema de matemática
envolvendo a problemática de órbitas. Newton lhe respondeu que já tinha solucionado
esse e muitos outros problemas do mesmo campo há muitos anos. Halley logo entendeu
que aquele homem estranho tinha a solução de inúmeros problemas fundamentais de
física e astronomia. Foi graças aos esforços de Halley – que não foram poucos – que
Newton publicou os Principia..., e ele não teve nenhuma condescendência para com a
humanidade, para ele era muito claro que pouquíssimas pessoas poderiam entender o
que ele tinha a dizer. Era a essas poucas que ele se dirigia em sua publicação. Daí
porque ele tê-la escrito em latim! Vemos por aí o quanto esse ideal de comunicabilidade,
de transparência absoluta do texto científico ainda era remoto para os espíritos.

- 230 -
Ela nos permitiu então um ataque mais preciso a um aspecto importante de
nosso tema, a saber, o papel que os formalismos jogam na apresentação da
psicanálise lacaniana.

“Necessária resistência” porque sabemos muito bem que Lacan


tinha bem claro para si que a transmissão da psicanálise exigia mais do que
um texto bem construído, semanticamente bem orientado. Curiosamente,
indo contra ao que pensa muitos psicanalistas, inclusive lacanianos, Lacan
não pensava a transmissão apenas como uma questão da análise de cada
um. Sem nunca ter deixado de observar que de fato a passagem por uma
análise era uma condição fundamental, ele mostrou, ao longo de sua obra
toda uma enorme preocupação com a transmissão da psicanálise no plano
conceitual, no plano do ensino, no plano institucional e no plano de sua
inserção na comunidade, na cidade.

Ele tinha claro que a psicanálise é um campo que se perde. Ela, para
acontecer, depende de um endereçamento do sujeito – aquele que se dá a
partir de seu sintoma. Ela depende então da tranferência e por isso mesmo,
paradoxalmente, da resistência. Ele chega mesmo a dizer, na lição de 15 de
abril de 1964 do seminário sobre Os Quatro Conceitos que:

A presença do analista é, ela própria, uma manifestação do inconsciente,


de maneira que quando ela se manifesta em nossos dias e em certos
encontros, como recusa do inconsciente – é uma tendência, e confessa no
pensamento que formulam alguns – isto mesmo deve ser integrado no
conceito de inconsciente (p.115).

Nesta mesma lição, um pouco mais adiante ele acrescenta: “...esta


causa [do inconsciente] deve ser fundamentalmente concebida como uma
causa perdida. E essa é a única chance que se tem de ganhá-la” (p.117).

Portanto, não se tratava para ele nunca de uma batalha ganha. É por
essa via que pensamos poder situar e refletir a demarcação que Lacan
sustenta em relação a ciência. Não é o caso tanto de recusar a ciência –
mesmo porque, cá entre nós, chega a ser patético o tom de alguns analistas

- 231 -
lacanianos que recusam a ciência130; ora, não somos nós, analistas, que
recusamos a ciência, é a ciência que nos recusa, é a ciência que não tolera a
psicanálise. Esse ponto, a nosso ver, tem de estar claro.

O texto de Sokal não é o único que exibe uma argumentação que


recusa a psicanálise através de recusá-la como uma ciência. Curiosamente,
esse texto e outros do mesmo genêro131, ao contrário e inadvertidamente,
demonstram a existência de tranferência – mesmo que na forma do ódio –
em relação à psicanálise. A principal recusa à psicanálise, aquela que de
fato Lacan se detinha, é aquela cegamente orientada por uma ideologia
científica, com fins da obtenção de uma certa legitimidade a partir da
ciência. Ela é da autoria dos próprios psicanalistas. Está principalmente nas
tentativas dos psicanalistas tentarem reconduzir a pesquisa psicanalítica
aos critérios de cientificidade, quaisquer que sejam eles, numa espécie de
barganha, por vezes muito sofisticada, ao preço do desconhecimento da
questão tranferencial, fundamental para vigência do discurso analítico e
dos dispositivos que o operacionalizam.

É notável que ao longo de sua obra, Lacan tenha dedicado pouca


atenção aos críticos da psicanálise. Pensamos que ele não via nesses
críticos os piores inimigos da psicanálise. Sua atitude, por exemplo, em
relação a Popper, chega a ser “afável”. Toda sua severidade crítica, mesmo
agressividade, dirige-se à psicologia do ego, a essa tentativa de assimilar a
psicanálise à psicologia geral. A citação que fizemos logo acima está
endereçada aos psicanalistas e não aos críticos da psicanálise.

Em razão do exposto, fica bastante óbvio, que a acusação de Sokal


é disparatada: jamais ocorreria ou ocorreu a Lacan se valer dos
formalismos matemáticos visando “vestir” a psicanálise com uma

130
Ver o recenceamento de alguns autores nessa posição em Beividas (1999).
131
Criticar Freud tornou-se uma espécie de pequena indústria nos EUA. Por exemplo, o
livro de Webster (1995/1999) é um calhamaço de umas 500 páginas! E ao que parece,
não foi e nem será seu último livro visando a desmitificar Freud.

- 232 -
“roupagem” científica, com fins, pelo menos é o que eles sugerem, de
aceitação. Ao contrário, sua utilização dos formalismos pretende dizer de
uma maneira ostensiva que a psicanálise é tributária da ciência, mas não é,
ela própria, uma ciência. Os formalismos em Lacan são coerentes então
com seus desígnios na transmissão. Em primeiro lugar, são coerentes com
seu estilo, em segundo lugar, são coerentes com seu ensino e, em terceiro
lugar, são adequados aos conceitos da psicanálise que ele visa transmitir.

Quanto ao estilo, é claro que a matemática o continua e o sustenta.


Mais ainda, a matemática reduplica a exigência, para o leitor, que esse
estílo inaugura e o convoca a nele se exercer. À guisa de exemplo,
tomemos o escrito que abre seus Escritos, “O Seminário sobre a «A Carta
Roubada»”. O texto da segunda parte desse artigo, onde ele articula em
termos formais “a natureza e o funcionamento da memória da cadeia
significante” (BASTOS, 1998, p.54) duplica seu comentário na primeira
parte a respeito do conto de Edgar Alan Poe, “A Carta Roubada”, que
justamente dá o nome ao seminário. Ora, visivelmente o efeito dessa
duplificação não é o esclarecimento, não é o ordenamento das
significações e do sentido. Ao contrário, o truncamento da significação
com o qual ele nos confronta na primeira parte é retomado na segunda
parte. De uma perspectiva muito abstrata, ele reenvia um “nada” de
significação da segunda parte a outro “nada” de significação da primeira
parte132. Se alguma promessa de esclarecimento se anunciava, se

132
Esse é um ponto que nunca é demais sublinhar. A teoria do après coup, do “só-
depois”, não afirma que o sentido emerge imediatamente à incidência do segundo termo
sobre um primeiro termo já dado, cujo sentido e significação se colocam como faltantes.
O “só-depois” implica uma decalagem temporal, quanto ao sentido e a significação, em
todos os níveis. No primeiro termo temos falta de sentido e significação (ignorância do
sujeito que toda significação remete ao sexual, trata-se aí da indiferença infantil ao
sexual). No segundo tempo também temos falta de sentido e significação, mais do que
isso, temos esse efeito que é o da segunda falta incidir sobre a primeira falta, que se
chama trauma – e o trauma, essa falta “angustiada”, também é ausência de sentido e
significação. O sentido e a significação são conseqüência de uma montagem posterior ao
trauma, por isso podemos dizer que são efeito da fantasia – que cobre o impossível dado
no trauma – e que são sempre “sintomáticos”.

- 233 -
antecipava, na primeira parte em relação à segunda parte, é como decepção
que ela se realiza nessa segunda parte.

É essa falta, experimentada como decepção, efeito do reenvio de


pelo menos duas outras faltas (a primeira parte reenviando à segunda parte
e vice versa) que lhe importa produzir. É a partir dela que se decide a
questão da transferência sobre seu texto. Porque a partir dela o sujeito-
leitor está confrontado com o seguinte fato “violento”, “traumático”, a
saber, um incitamento transferencial “forçado”, uma “intervenção sobre a
transferência”: ou ele recusa o texto de Lacan, ou ele concorda em passar
por sua “topologia”, isto é, ele concorda com o trabalho de ser reenviado
contínuamente a esse texto, ele mesmo. Vale dizer, o sujeito tem que tomar
uma decisão.

No caso em que ele se decide a atravessar o texto de Lacan, ele cai


então no campo dessa operação de reenvio. O sujeito tem que se exercer
nesse campo que se engendra por ele se deixar conduzir por seus
caminhos. Chamamos a atenção para o fato de que essa operação de
reenvio é estruturalmente a mesma que está em jogo numa análise. Vale
dizer, tanto numa análise quanto no ensino, temos de observar que o
campo de um e outro se constituem por esse movimento do significante em
ato nos reenvios implicados pelo uso da palavra e nos quais uma
decalagem temporal “angustiante” se coloca entre o dito e o sentido, entre
a letra e o efeito de saber. É de um ensino atravessado por essa estrutura de
reenvio que Lacan aguarda os efeitos mais fecundos para a transmissão da
psicanálise. Enfim, esse estilo de Lacan coloca em ato uma estrutrura que
nos confronta então à transferência.

Assim, atravessar o texto de Lacan é se propor a um trabalho da


letra, que visa à palavra, que identifica a efetividade nas manifestações da
fala. Envolve, como vimos, a decisão do sujeito. Esse texto é a colocação
em ato, direta, das condições necessárias para a psicanálise e sua
transmissão: que o sujeito possa, num número indefinido de planos, fazer

- 234 -
essa experiência de retomar o que tem a dizer a partir mesmo das coisas
que já disse. Isto é possível e decisivo não apenas em relação aos
significantes de sua história particular, mas também em relação aos
significantes que especificam a psicanálise enquanto um saber.

Se esse estilo transpõe para o ensino certos aspectos estruturais


quanto à questão transferencial tal como ela se dá numa análise, no plano
do conceito também temos uma questão análoga; o conceito também versa,
e também visa produzir um efeito de saber que toca ao analítico, tal como
podemos entendê-lo a partir de uma análise. A topologia, a “álgebra
lacaniana”, explicitam movimentos possíveis e uma certa
espacialidade/temporalidade, uma certa “estética transcendental” como ele
diz no seminário sobre a Identificação. A matemática nos ensina que os
reenvios implícitos em seus esquematismos não são “inocentes”. As coisas
podem se conectar uma às outras de diversas maneiras e engendrarem
nessa conexão espaço/tempos muito variados quanto às suas propriedades
fundamentais.

Nossa tese, no entanto não discute esses dois aspectos: estilo e


ensino133. Apenas cuidamos de encaminhar essas duas questões para situar
o campo de força no qual se dá a discussão e a prática do conceito, e quais
conceitos, nas práticas associadas ao ensino implicado pela psicanálise.
Práticas que são, que confundem-se, se considerarmos uma perspectiva
pragmática, com a própria psicanálise! Isto é, os conceitos da psicanálise
também nos lançam num jogo de reenvios. Eles são a explicitação mais
radical e talvez “pura”, matemática, desses reenvios eles próprios. Saber o
que é reenvio passa por experimentar, por estar em ato no curso de um
reenvio.

133
Ao longo do texto nos reenviamos as discussões sobre estilo e, principalmente,
ensino, à recente argüição entre Luciano Elia e Waldir Beividas (1999, p. 777-796). Ver
também o texto de Antônio Carlos Rocha sobre Ensino e a Transmissão (1999).

- 235 -
Chegamos a explicitar uma certa vocação propedêutica em nossa
iniciativa. Chegamos mesmo a mencionar não só um conjunto de reações
negativas em relação ao emprego por Lacan da matemática, mas também a
“fama” de difícil, relativa a essa disciplina.

De onde derivam as dificuldades reconhecidas da matemática? De


seu carácter abstrato, imaterial, mas nem por isso ineficaz. A matemática
não é apenas um saber “anotado”, escrito. Embora essa seja uma
característica fundamental sua, ou seja, que ela seja um saber que exige
mais que o movimento normal da evocação suficiente para sustentar a fala,
que ela exige um saber que está fixado numa escrita. A matemática, como
dizíamos, não é esse saber articulado apenas, ela é também o real da coisa
– a matemática, em sua articulação científica é a coisa; a coisa é
matemática materializada. O exemplo clássico dessa configuração é a
estrutura dos números reais. Não existe nenhuma estrutura material cujo
comportamento não sugira esta estrutura matemática subjacente. Nela está
dado uma estrutura que não pode ser destacada daquilo que ela apreende.
Num certo sentido, “movimento”, “movimento mecânico”, é a estrutura
dos números reais. Não posso separar uma coisa de outra. Ambos se
extraviam quando isso ocorre, tanto o movimento quanto os números. É
nesse sentido que Lacan afirma que sua topologia não é da ordem do
modelo, ela é real. Ela é o real, ela é o real do em jogo no saber.

A estratégia de apresentação que adotamos foi propor uma


genealogia e uma tematização de certos tópicos em matemática. Nosso
intuito, foi tanto o de demonstrar a presença necessária de noções
matemáticas no texto de Freud, quanto o de dar ressonância às indicações
matemáticas oferecidas, postas em jogo, por Lacan.

Lacan nos inscreve no movimento mais central, pelo menos durante


um certo tempo na primeira metade do século, da história da matemática,
na famosa “crise dos fundamentos”. Ele cita freqüentemente certos
produtos dessa tão famosa “crise”. Nós aqui retomamos alguns aspectos

- 236 -
desse tema. Outros temas nós desdobramo-os através de considerações
históricas. As discussões sobre questão da intuição, a extensão como
presença e positividade, o problema dos irracionais, as tensões entre
geometria e álgebra, etc. foram abordados por essa via de uma
historicização. Já a topologia, tema do capítulo sobre Lacan, foi
apresentada não numa “dramatização” histórica, mas numa apresentação
“informal” de algumas características e desenvolvimentos próprios. A
respeito dela seguimos a indicação de Zeeman (1975) em sua apresentação
informal do teorema da classificação.

Freqüentemente observamos entre nós, lacanianos, uma atitude que


nos convoca a um exercício de situarmos e sustentarmos a especificidade
discursiva da psicanálise. Essa orientação visa sobretudo evitar a diluição
da psicanálise em relação aos grandes campos de força que definem o
espaço da cultura, seja, a política, a religião, a filosofia e a ciência. Essa
atitude muitas vezes degenera numa espécie de “isolacionismo”, como se a
psicanálise, mais do que uma articulação discursiva específica, fosse uma
essência única e singularíssima, completamente separada da história, e dos
laços sociais – o que é um evidente contrasenso.

Por isso, nossa preocupação propedêutica desenvolveu-se na


direção de reverberar, de fazer ressoar, os termos oriundos de um desses
campos discursivos, com o qual a psicanálise lacaniana tem mais do que
relações explícitas, que é o campo da ciência, em especial o da matemática.
O fato é que bastante claramente, no emprego e no destino que Lacan dá a
esses termos ele nos conecta, a nós psicanalistas, com os grandes temas,
com as grandes discussões, que foram constitutivas dessa disciplina ao
longo de sua história. As citações que fizemos sobre sua posição em
relação à posição kantiana – colhidas do seminário da Identificação – a
respeito da matemática são uma boa ilustração desse fato.

Nosso percurso foi o seguinte. Em primeiro lugar examinamos o


surgimento da matemática enquanto sistema de saber na Grécia: a

- 237 -
geometria euclidiana. Esse sistema de saber nasce se demarcando das
práticas algorítmicas em funcionamento na antigüidade. É nessa negação
do aspecto algorítmico, nessa época associado ao prático e ao empírico, ao
fazer as contas de todos os dias, que surge no contexto do mundo
filosófico, a geometria. E é nesse contexto que constituiu, que se decantou,
os elementos fundamentais da matemática, em especial seu caráter
sistemático, teórico e dedutivo. Salientamos a importância de Platão e de
sua escola nesse desenvolvimento.

A seguir, mostramos que a matemática não pode avançar em razão


de certos pressupostos que estavam na constituição de sua fundação
mesmo enquanto ciência. O grego e sua geometria, no que essa geometria
o fixava a um entendimento do contínuo enquanto uma positividade, a
positividade da extensão, não pode avançar no movimento de
negativização implícito e essencial da matemática. Platão é lúcido dessa
exigência de negativização não só para a matemática, mas também para o
pensamento. Entretanto, o horror do grego, do mestre grego, ao
movimento, o qual que era identificado ao mundo empírico, ao mundo do
escravo, ao mundo da decadência e da corrupção das coisas, determinou a
direção de pensamento em conceber o identitário como presença, numa
certa relação com a intuição de extensão enquanto positividade e fora do
tempo (a eternidade da idéia). Essa direção acarretou que os aspectos
combinatórios, discretos, algébricos, não recebessem o devido tratamento
na matemática grega. Tratamento fundamental para a formulação adequada
do contínuo; tratamento esse que possibilitou o advento da ciência
moderna.

Essa situação se transforma na aurora do capitalismo e do


surgimento da ciência moderna. Descartes, Fermat, os algebristas italianos
e outros começam a dar o devido tratamento aos aspectos algébricos e
combinatórios implícitos na atividade matemática. Os números passam a

- 238 -
se expressarem na escritura que conhecemos hoje como aritmética, e as
operações ganham a possibilidade de serem abordadas em si mesmas.

Mostramos que esse passo foi essencial para o equacionamento da


idéia de número, em especial, foi ele que permitiu a formulação do
conceito de número real. Conceito, que é muito mais do que um conceito
no sentido usual da palavra. Trata-se de um “conceito-real”, uma vez que,
como já indicamos em inúmeras ocasiões, o próprio real do movimento, e,
por extensão, o próprio real de qualquer variação é inabordável sem a
aplicação desse conceito e suas extensões. Chegamos mesmo a discorrer
minimamente sobre a noção de corte de Dedekind que está no fundamento
desse conceito.

Poderíamos ter escolhido qualquer outro aspecto relevante para o


desenvolvimento desse conceito. Fixamo-nos na problemática dos
irracionais e da noção de corte porque foi por essa via que abordamos a
filiação, a relação interna de dependência, da psicanálise com o núcleo
fundamental do pensamento científico.

Nessa via, abordamos o desenvolvimento que conduz Freud a


estabelecer a noção de recalque primário e a idéia que inaugura a
psicanálise como tal, o inconsciente. Freud se apercebeu que a
negativização necessária para abordar cientificamente o mundo físico
guardava uma relação e um certo parentesco com o campo de desejo. Mais
do que isso, Freud pode inverter certos termos. A primazia do objeto no
pensamento científico, é um efeito de um corte muito mais radical, aquele
em jogo no recalque primário. Um corte que não só constitui esses objetos
abordados pela ciência. Trata-se de um corte que constitui o objeto
fundamental, o objeto que está no núcleo de nossa subjetividade: o “nada”,
a “coisa-nenhuma” que se produz na relação entre os significantes. “Nada”,
“coisa-nenhuma” que é engendrado pelo significante, que por sua vez é ele
quem dá o estatuto de significante ao significante que o engendrou.

- 239 -
Já com Freud podemos ver que a psicanálise se demarca da ciência,
estando contudo, como dissemos, numa relação de dependência para com
ela. Com ele podemos ver que o que interessa à psicanálise é o avesso da
operação que coloca os objetos para a ciência. Esse avesso é justamente os
restos que não entram na composição do objeto da ciência. Qual é esse
objeto da ciência? Mais do que qualquer empiricidade definida esse objeto
é a “objetividade”, isto é, a estabilidade, a reprodutibilidade, a regulação
discursiva através de uma lógica estrita – e não do apuramento de uma
língua natural tal como na filosofia – de campos de experiência bem
definidos e demarcados. E o avesso disso? Freud encontra na histeria, nas
manifestações idiosincráticas, sintomáticas, da histérica. Trata-se de algo
não localizável no espaço/tempo ordinário, não referível a qualquer
contorno definido que lhe assegure identidade e estabilidade, ou que
qualquer índice se relacione univocamente no campo da representação.
Algo que só é passível de apreensão, e de uma certa possibilidade de saber,
nessa situação incerta que é a psicanálise, isto é, a transferência conduzida
da maneira indicada por Freud. Lacan, no seminário sobre a Angústia,
concebe o objeto da psicanálise, o objeto causa do desejo como
objetalidade:

Para reunir essa oposição em fórmulas – eu me desculpo que elas devam


ser rápidas – nós diremos que a objetividade é o último termo do
pensamento analítico científico ocidental, que a objetividade é o correlato
de uma razão pura que, no final das contas, é o último termo que, para
nós, se traduz, se resume por, se articula num formalismo lógico.

A objetalidade, se vocês me seguem, desde meu ensino entorno dos


últimos cinco ou seis anos, a objetalidade é outra coisa. Para lhe dar o
relevo em seu ponto vivo, eu diria, eu formularia, balanceado, pela
fórmula precedente que acabo de dar, que a objetalidade é o correlato de
um pathos de corte ... (LACAN, Seminário sobre a Angústia, lição XVII,
de 8 de maio de 1963)

Finalmente abordamos a topologia lacaniana. Nossa tese é que seu


propósito fundamental, no plano do conceito, é especificar de uma maneira
mais precisa essa coisa inabordável que estrutura a subjetividade humana.

- 240 -
Lacan aposta que a topologia propõe uma espaço/temporalidade,
uma “estética”, mais apta para caracterizar esse inabordável que organiza a
subjetividade. Essa espaço/temporalidade não é comandada pelo visual. Ao
contrário, ela se constrói a partir de pedaços conectados, e não de uma
visão que sempre nos seduz com a totalidade da coisa contida em seu
contorno. Se pudéssemos associá-la a um campo de experiência, para
torná-la mais sensível, diríamos que esse espaço/temporalidade seria mais
próxima da experiência de um cego do que da nossa experiência de
videntes, onde as coisas são vistas de longe, “lá-fora”. Sobre essa topologia
Lacan nos diz:

Tudo isso que, no ano passado, procurei articular para vocês entorno do
cross-cap é, para acrescentar a esta dialética uma cavilha, alguma coisa
que sobre o plano deste domínio ambíguo da topologia, nisto em que ela
“emagrece” [amincit] ao extremo os dados do imaginário, que ela se
movimenta [joue sur] sobre uma espécie de trans-espaço o qual no final
das contas tudo deixa a pensar que ele é feito na pior articulação
significante, embora deixando ainda à nossa alcance alguns elementos
intuitivos ... (LACAN, seminário sobre a Angústia, lição III de 28 de
novembro de 1962).

O cego é alguém que tem de construir seu senso espacial aos


poucos, por pedaços, a cada vez, a cada passo. Falta-lhe a perspectiva e o
“lá-fora”. O cego está irremediavelmente “dentro”, ele não vê “lá-fora” a
parede, ele bate nela. Ele sempre tem que andar com cuidado, guardar os
caminhos, já que é seu corpo, sua carne, que está diretamente implicada em
sua apreensão/construção do espaço. Por outro lado, mais do que qualquer
outro, o cego é especialmente sensível ao olhar, podemos até dizer que
toda sua cautela quanto a seus movimentos reflete sobretudo sua lucidez a
respeito dos perigos do olhar: o cego se sabe “olhado”, embora não possa
ver.

A topologia que se vale Lacan é essa dos caminhos e dos cortes.


Caminhos e cortes que permitem a classificação das superfícies, da
espaço/temporalidade necessária e suficiente para se articular a questão da
subjetividade. Essa “espaço/temporalidade de cego” é mais do que uma

- 241 -
metáfora de nossa posição na vida, já que de fato, do ponto de vista do
desejo e da pulsão, somos cegos, isto é, nunca sabemos bem de onde
falamos, só nos resta tatear, correr os riscos de uma exigência de ato posta
pela vida e pela palavra, e nos renvios desse percurso tentar configurar o
campo onde nos exercemos como sujeito.

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