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PSICANÁLISE E FORMALISMO
Aprovada por:
__________________________
Ana Beatriz Freire (Orientadora)
Doutora em Psicologia Clínica – PUC-RJ
__________________________
Jefferson Machado Pinto
Doutor em Psicologia – USP
__________________________
Waldir Beividas
Doutor em Lingüística – USP
__________________________
Raphael de Haro Junior
Dr. rer. nat – Friedrich-Wilhelmsche Universität Vu Bonn
__________________________
Ricardo Kubrusly
Phd – Universidade do Texas
- ii -
FICHA CATALOGRÀFICA
- iii -
Agradecimentos:
- iv -
Resumo
-v-
Résumé
- vi -
À memória de meu pai, que, por seu
modo de inserção na vida, é causa do
presente trabalho.
- vii -
Sumário
Introdução .................................................................................................. 3
Capítulo I ................................................................................................... 6
Capítulo II ................................................................................................ 39
Capítulo IV .............................................................................................. 71
- viii -
CAPÍTULO V........................................................................................ 118
Conclusão ....................................................................................................
- ix -
Introdução
SOBRE O TÍTULO
1
As aspas ficam por conta de avaliarmos se, de fato, a utilização lacaniana de certos
aspectos formais, importados da lógica e da matemática, permite-nos assimilar seu
ensino e seu estilo a um formalismo. É muito duvidoso que um matemático enxergue,
no texto de Lacan, um formalismo no sentido que seu “treinamento” em matemática lhe
transmitiu.
1
comum2. Mas tomemos textos como o Projeto Para uma Psicologia
Científica (1895b/1950/1975), ou o livro Sobre as Afasias
(1891/1953/1977). Aparentemente, são textos “neurológicos”, médicos. No
entanto são, de fato, textos em que Freud estabelece a sintaxe mínima, sua
“máquina formal”, subjacente à psicanálise. E são textos reputados como
áridos, “abstratos”, em que observamos um certo tipo de dificuldade, de
embaraço, em relação ao formal. Quer dizer, as dificuldades existente
nesses textos são menos devidas à medicina do que em razão do caráter
abstrato e formal de suas formulações.
2
A esse respeito lembramos como usualmente Freud situa o leitor como um interlocutor
imaginário que é cético em relação a suas idéias. Ele procede tentanto demover esse
interlocutor de seu ceticismo através de uma argumentação convincente e plausível.
3
Teremos que insistir muito nesse aspecto, é importante que se entenda que
abordaremos a questão da cientificidade da psicanálise para, de certa forma, dela nos
desvencilhar. Isto porque, que pese sua relevância, nossos propósitos são o de situar o
valor e a pertinência dos formalismos em psicanálise e não a cientificidade da
psicanálise. Esperamos que ao longo do texto essa decisão se esclareça em sua razão de
ser.
-2-
se demarca nesse encontro queixoso, ou faltoso, que colegas e alunos
fazem em relação principalmente à presença de conceitos matemáticos no
texto de Lacan. Ao sublinharmos esse ponto, estamos situando-nos quanto
ao tipo de preocupação que anima nosso trabalho: a transmissão da
psicanálise e de uma certa forma, a problemática do estilo.
4
Como veremos, os aspectos de topologia de que ele se vale são introdutórios e muito
próximos de uma apreensão intuitiva. Em verdade, as pessoas estranham a presença da
topologia porque nunca estudaram essa disciplina na escola secundária. Em razão desse
fato imaginam que se trata de algo dificílimo, o que não é o caso, pelo menos em seus
aspectos mais introdutórios, que são aqueles mais explorados por Lacan.
-3-
cientificista, é um risco para psicanálise cair na literatura, para Lacan, o
poético está lá de saída, no texto, na palavra, assinalando a irredutibilidade
da psicanálise senão à ciência, pelo menos ao seu estilo canônico de
comunicação – com o qual muitas vezes a ciência se confunde -
demarcando na base seu lugar como uma teoria, uma práxis e uma ética
referida à palavra e seus efeitos no real, isto é, nos laços sociais no sentido
mais concreto possível.
-4-
exemplo, se de alguma maneira ele é suporte da cientificidade da
psicanálise – se é o caso de ser ela uma ciência –, isso não é simples nem
direto. A seguir, apresentaremos um capítulo que discute a relação entre
psicanálise e ciência a partir do “episódio” Sokal. Após, propomos, em três
capítulos, um exame extenso dos conceitos matemáticos que julgamos
relevantes para encaminhar nosso estudo da relação entre matemática e
psicanálise. Nossa discussão nesses capítulos se fará num estilo que
valoriza a intuição. A seguir, no capítulo V, encaminharemos uma longa
discussão que visa demonstrar que o conceito freudiano de recalque
primário é conseqüência e afim com o conceito forjado por Newton e por
Leibniz de número real. No capítulo VI abordaremos a utilização da
topologia por Lacan. Finalmente, formularemos uma conclusão que
resumirá nossos resultados.
-5-
Capítulo I
5
O livro foi publicado em português pela editora Record em 1999, com o título,
Imposturas Intelectuais.
-6-
dessas disciplinas no campo das ditas ciências humanas e na filosofia, por
parte desses autores.
6
É óbvio que para eles moda é alguma coisa essencialmente negativa, algo que se opõe
à seriedade, ao rigor, que seria a bússola da pesquisa científica.
-7-
De um lado, colocavam-se aqueles com uma orientação mais claramente
positivista, que simplesmente alocavam a psicanálise e o marxismo no
campo da pseudociência7. De outro, aqueles que buscavam algum tipo de
composição, como é o caso, por exemplo, dos trabalhos de David Rapaport
(1959/1982) e Merton Gill & Karl Pribam (1976) e da psicologia do ego,
no campo da psicanálise, e do behaviorismo de Clark Hull no campo da
psicologia da aprendizagem; este último acatava a influêcia de Freud8,
apesar de uma orientação profundamente marcada pelo positivismo. A
própria posição de Popper e de seu realismo era bem matizada. Embora
crítico de Freud e de Marx, ele relevava a contribuição dos dois,
principalmente da de Freud, como é patente no trabalho mesmo que
citamos. Entretanto, ele recusava o status de ciência para a psicanálise.
7
É o que pensava, por exemplo, Mario Bunge (1976, p. 58-60) que situava a psicanálise
no escaninho da pseudociência.
8
O próprio Clark Hull assumia essa influência, mas foram dois discípulos seus, J.
Dollard e N. Miller (in: MARX & HILLIX, 1973/?, p. 485-490), que produziram os
trabalhos nessa direção mais significativos, quando procuraram traduzir em termos
experimentais a teoria, segundo eles, de inspiração freudiana, que articulava a frustração
à agressão.
-8-
Foram estas, mais ou menos, as razões que me levaram, em 1919, a
rejeitar as pretensões dos freudianos (...). Rejeitei as suas pretensões
porque descobri que as suas teorias não satisfaziam o critério de
testabilidade, de refutabilidade ou de falsificabilidade (obra citada, p. 181-
193).
9
Popper diz sobre Freud:
(...) porque, apesar de graves defeitos, alguns dos quais vou tentar expor aqui, ele
contém, para lá de qualquer dúvida razoável, uma grande descoberta. Estou, pelo menos,
convencido de que há um mundo inconsciente, e de que as análises que Freud dá neste
livro estão, no fundamental, corretas, ainda que, sem dúvida, incompletas (como o
próprio Freud salienta) e, necessariamente, de certo modo distorcidas” (p. 181-193).
10
Para Popper, como se sabe, as confirmações, mesmo quando obedecendo aos cânones
lógicos, têm um poder informativo menor do que a refutabilidade.
-9-
Os tempos são outros e tudo indicava que esse tipo de realismo
epistemológico refluíra, saíra de “moda”. Grande era a profusão de obras
sobre ciência publicadas de uma maneira não especializada, isto é, escritas
em prosa ao invés da árdua e penosa estenografia característica dos textos
técnicos e científicos. Propunham elas as mais inovadoras e surpreendentes
relações entre certas teorias científicas e os mais variados sistemas
ideológicos e doutrinas, como se o mercado editorial fosse de fato um
indicador seguro do que pensam e fazem os cientistas. Parecia que
finalmente os tempos eram outros e que o pensamento científico tinha
alargado seus critérios; que finalmente uma nova aliança despontava no
horizonte, entre as ciências “duras”, especialmente seus ramos mais
avançados – a mecânica quântica e a relatividade geral –, e as ciências
“moles”, aquelas que englobam as coisas do espírito, do social e do
homem. De fato, o cenário ideológico contemporâneo, essa imagem
totalizada a respeito do que é o mundo, constituída em boa medida através
do que se publica e se difunde nos meios de comunicação, é muito
marcado por esse tipo de “sincretismo”. Evidentemente, temos aí uma
produção intelectual muito vasta quanto à quantidade e desigual quanto à
qualidade. Mas, de qualquer forma, eis que essa manobra de Sokal e
Bricmont fizeram ressurgir esse “antigo”11 debate, atravessado pela
exigência de demarcação entre ciência e pseudociência, sustentada pelo
realismo epistemológico. E ele ressoará bastante nos meios de
comunicação após a revelação e a publicação do paródia, colocando em
questão justamente as produções que eles qualificam de “pós-modernas”
sem quaisquer distinções.
11
Na verdade, não pensamos que seja um debate antigo. Ao contrário, trata-se de uma
questão sempre presente e que ultrapassa, a nosso ver, o campo da filosofia ou da
ciência, por suas implicações éticas e políticas. Ver também o livro de Yves Jeanneret
(1998) sobre o episódio.
- 10 -
dos termos deles para situar nossa visão da relação entre a psicanálise e os
diversos discursos que organizam a vida social, em especial o discurso da
ciência. Esta nos pareceu uma forma fecunda de aproveitar o trabalho
deles, já que em relação a Lacan eles não afirmam nem negam, a rigor,
nada. A crítica deles a Lacan limita-se a dizerem que não entenderam coisa
alguma! Eles fazem longas citações de Lacan, quer dizer, expõem o leitor
ao estilo de Lacan, que de fato tem a característica de truncar a
significação, e confrontam, dessa maneira, o leitor a esse estilo. Ao final de
cada citação, eles remetem o efeito inevitável de nonsense produzido pelo
texto de Lacan, a ser um mero truque retórico12. Eles então aproveitam a
oportunidade para acusarem Lacan de superficialismo, de ignorante em
matemática13, e adjetivos desse calão. No entanto, é o entendimento deles
do texto de Lacan que é superficial, ou nenhum. Eles não discriminam um
argumento sequer na longa produção de Lacan, que, segundo eles, teria
enganado a cultura francesa e alguns de seus representantes maiores, essa
comunidade de ingênuos e inocentes – gente como Lévi-Strauss, Ferdinand
Braudel e outros do mesmo nível – por mais de 30 anos! E eles não agem
dessa forma tão sumária, sem malícia, porque, como já aludimos, o estilo
de Lacan é intencionalmente problemático semanticamente. Muitas
reações negativas a Lacan derivam desse fato, e ficar preso a isso, reenviá-
lo, como eles o fazem, a uma impostura é mais do que uma crítica. É um
incitamento a que Lacan não seja tomado a sério. E isso é o que eles visam:
estimular reações negativas para transformá-las num critério de leitura. Em
nome de um ideal de clareza e transparência semântica que textos
científicos e filosóficos devem apresentar, o que eles promovem é muito
12
O que seguramente deve agradar bastante aqueles que já tinham suas posições
firmadas contra Lacan e confundir os que se iniciam em seu ensino, especialmente
aqueles, como deve ser o caso dos norte-americanos, que não possuem outras
referências de Lacan – tais como a prática clínica e os dispositivos institucionais – além
de seus textos.
13
Eles fazem uso inclusive de reconhecidos erros tipográficos e de tradução (para o
inglês!) do texto de Lacan, para sublinhar a sua ignorância em matemática. A esse
respeito ler o artigo de C. Melman e Marc Darmon na revista La Recherche de fevereiro
de 1998.
- 11 -
mais uma censura do que uma crítica, como eles mesmos dizem defender,
racional.
- 12 -
De que posição eles podem diluir a figura de Lacan, e de todos
aqueles pensadores, num bloco só, de forma que, evidentemente,
homogeneiza-os? Sokal e Bricmont são dois cientistas e tomam-se como
representantes da ciência; eles julgam em nome e a partir dela – é o que
ambos fazem supor. A tese deles é a de que a utilização de termos
científicos por aqueles franceses não faz da produção desses autores uma
produção científica, ou mesmo relevante sob um critério mais abrangente
de racionalidade. Ao contrário, eles, esses franceses, expõem-se ao
ridículo, já que suas metafóras e analogias são, em boa parte, ou erradas ou
destituídas de sentido.
- 13 -
global, quando, sob a rubrica de “pós-moderno”, eles examinam as
produções desses autores como um “todo” – o pós-moderno, justamente,
ou o relativismo epistêmico –; outra específica, quando eles tomam em
consideração cada autor separadamente. E os dois níveis de análise
referenciam-se mutuamente e reforçam, desse modo, a carga semântica
negativa que eles atribuem à produção daqueles franceses. A tática é
demonstrar que cada autor está cometendo um erro crasso na utilização de
conceitos físicos e matemáticos, ou que cada um faz, com sua citação dessa
ou daquela noção científica, um truque de prestidigitação, isto é, quando
examinadas de perto, elas não dizem nada, são destituídas de sentido. O
livro deles é uma coleção extensa de exemplos de utilização, por esses
autores, de conceitos físicos e matemáticos que eles se dão ao trabalho,
para cada autor citado, de tornar visível o erro crasso ou o truque de
prestidigitação. Como cada autor examinado pertence ou está referido14 a
essa totalidade “pós-modernismo” e como cada um deles engana ou
comete erros crassos na utilização de conceitos físicos e matemáticos,
segue-se que o dizer desses franceses, em seu conjunto, ou pelo menos
através do que nos é dado a ver pela sua utilização dos conceitos físicos e
matemáticos, é irrelevante, para dizer o mínimo. Desse modo, os dois
cientistas buscam solapar aquele discurso que é, para eles, repetimos,
muito mais uma retórica vazia, uma sofística, uma estratégia de sedução
através da qual o relativismo epistêmico é transmitido, escapando da
apresentação de uma argumentação séria, rigorosa e racional que o
justifique. A essa retórica vazia, mas sedutora, eles vão contrapondo as
exigências e as regras de uma discursividade com a qual estão
compromissados; está sim, mais justa e correta, que releva o bom senso,
que não nos faz esperar muito tempo pelo significado de cada frase, aquela
preconizada pelo realismo epistemológico.
14
Eles observam que agrupar esses autores é problemático. Mas justificam esse fato
com o seguinte argumento: “se nós, contudo, empregamos este termo por comodidade, é
porque todos os autores aqui analisados são vistos como pontos de referência
fundamentais no discurso pós-modernista em idioma inglês”(p.27).
- 14 -
Ao nos depararmos com tais críticas, uma das tentações quase
inevitáveis é reconduzi-las a um tipo de mal-entendido sociocultural entre
a França e os países anglo-americanos15. Eles chegam a mencionar esse
aspecto ainda na introdução de seu livro quando observam que,
15
Julia Kristeva, uma das autoras examinadas por eles no livro, pergunta: “qual é a
intenção de tal polêmica, tão longe das preocupações atuais? Isto corresponde a uma
iniciativa intelectual antifrancesa. Face a aura dos pensadores franceses nos Estados
Unidos, a francofilia cedeu passo à francofobia”. Le monde, Janeiro de 1997.
- 15 -
Deleuze, Guattari, Paul Virillio e outros num mesmo conjunto. Esta
reunião é a aquela depreendida da leitura de textos sobre cultura (literatura
e artes), filosofia, e ciência publicados nos EUA. Nos capítulos em que
eles consideram cada autor em particular, eles fazem alguma advertência;
por exemplo, a propósito de Gilles Deleuze, dizem:
16
Andréa Loparic (1991, p. 242), uma lógica profissional, que comentou a utilização
por Lacan de aspectos da escritura lógica moderna, diz o seguinte sobre essa
apropriação:
Eis o que pode deixar um lógico perplexo – e, mais freqüentemente,
irritado. No pequeno país que é aquele dos lógicos, vive-se de uma
produção artesanal obtida com ferramentas cuidadosamente forjadas para
funcionar sob regras muito estritas; eis que um estrangeiro de passagem
- 16 -
daí? Por que não deveriam usar? Quem disse que os termos, as palavras, os
dizeres dos cientistas, pertencem exclusivamente a eles próprios e à
ciência?17 Os elementos do jargão da ciência são entidades lingüísticas
especiais, excepcionais, que devem permanecer isoladas do uso ordinário
das palavras e dos conceitos? Não pensamos assim. Para nós, de fato, eles
são posse, propriedade da linguagem do Outro. Desde que vieram à luz,
eles são como seres com vida própria, que seguirão seu próprio destino,
aquele que a linguagem e seu funcionamento lhes reservar. Ora, a ciência é
uma prática social altamente relevante sob vários aspectos e é mais do que
“natural”, como foi o caso da filosofia grega e do cristianismo séculos
antes, que ela libere também seus termos para a cultura, e não apenas seus
produtos diretos e intencionalmente visados.
(...)A menos que...a menos que uma certa cumplicidade lhe sopre uma
pausa benfazeja...a menos que ele se coloque a investigar o sentido deste
fato diverso diretamente em seu aspecto escandaloso. A hipótese
interpretiva seria: não é o caso que Lacan se serve da linguagem simbólica
exatamente porque a transgressão das regras da gramática aí é mais
evidente? Não é o caso que o estrangeiro tomou nossos instrumentos
precisamente porque, bem mais que aqueles da linguagem comum, eles
fazem ruído, quando eles servem a operar uma peça desviante?
17
Uma posição radicalmente oposta podemos encontrar nos comentários de Jacques
Bouveresse (1998) sobre o episódio Sokal.
- 17 -
generalização planetária sob os auspícios da dita globalização. Foi dessa
maneira – isto é, como autores passíveis de freqüentar artigos científicos –
que os franceses entraram e adquiriram influência nos EUA. É lá que
Lacan é conhecido principalmente como um exótico professor de literatura
e filosofia – e não, como seria mais preciso, como um psicanalista com
uma extensa prática clínica, que a partir dessa prática, teria uma importante
influência na cultura francesa. Mas a esse respeito e nesse ponto de nossos
comentários sobre o episódio Sokal, temos de limitar o alcance de nossas
considerações sobre ele.
- 18 -
Sobre a Ciência II: Lacan e a Ciência
O que falta para definir uma ciência? Ele acrescenta então que uma
ciência expressa seu saber a respeito de seu objeto através de fórmulas. Ele
observa que nenhum desses critérios – ter um objeto, um nível de operação
reprodutível (praxis) e formalização – em si mesmos são suficientes para
caracterizar uma ciência. O segundo, o referente a ser ela uma práxis, pode
também definir uma mística, como, por exemplo, a alquimia – que por
sinal interessou muito a Newton (WESTFALL, 1993). Para o terceiro,
tanto “uma falsa ciência como uma verdadeira podem ser colocadas em
- 19 -
fórmulas” (LACAN, 1964, p. 15). Por exemplo, a astrologia18 – que, além
disso, pode estar referida a uma prática mística.
18
A astrologia é passível de ser formalizada no sentido trivial de que, por exemplo,
programas de computadores fazem mapas astrais.
19
Justamente a topologia das superfícies.
- 20 -
por ser uma ordem de uma divindade – não é legítima cientificamente; por
isso não o deveria ser também na vida ordinária. A ciência propõe uma
ordem de saber tal, que ela pode assinalar certas diretivas na vida comum
como sendo melhores ou piores sob uma série de parâmetros. Nos
argumentos de Sokal e Bricmont é constante algo que vai nessa direção, o
bordão a respeito da irracionalidade da religião. Para eles, trata-se de uma
denúncia, e não de uma simples descrição, qualificar o ensino de Lacan
como sendo uma mística. Já para Lacan é uma boa questão, do mesmo
modo que para a ciência, (I) saber o que é uma religião e (II) a relação
entre a psicanálise e a religião. O importante para Lacan não é estabelecer
em que os diversos discursos considerados são homogêneos – são
discursos – mas em que eles são distintos – psicanálise, religião ou ciência.
Boa parte do trabalho de Lacan é fazer essa essa tensão durar. Suspender a
boa qualificação em favor do que pode nos fazer questão. Não há pressa
em responder se a psicanálise é uma religião, uma ciência, ou se nem uma
coisa nem outra, uma terceira coisa, ou ainda uma soma das duas coisas
nas mais diversas proporções. É urgente, entretanto, que nós psicanalistas
coloquemo-nos essas questões, que não nos acomodemos no sucesso de
nossa prática ou inserção social.
- 21 -
geometria grega – um saber racional já constituído –, resumido nos
Elementos de Euclides, em que a significação segue de perto os
desdobramentos da dedução racional. A geometria grega desdobra-se no
campo de uma intuição visual22, no qual ela se supõe completa no sentido
de que a cada manipulação sintática temos uma correspondência semântica
dada no espaço e vice-versa. No judaísmo observa-se o funcionamento da
letra descolado da imagem, do suporte imaginário e da significação, nele
aparece a exigência de demarcação que distingue o que é da ordem da
letra, como o traço unário: puro “princípio” distintivo, em que só existem
diferenças e a disseminação das diferenças23 e o efeito metafórico, de
sentido e signifcação. Só a partir do judaísmo podemos falar de idéia no
sentido em que Freud fala, como algo deslocado em relação aos elementos
estéticos/perceptivos/qualitativos que a inscrevem como traço mnêmico.
Para Freud, uma idéia poderia ser descrita como uma entidade “neurônica”,
uma rede, uma trilha inscrita nessa rede, um conjunto de trilhas articuladas
numa rede, etc. – todas essas especificações representam entidades sem
qualidades, puras contingências no fluxo da energia que escoa pelo interior
do “sistema nervoso”, contingências que retardam esse fluxo, retêm
quantidades no interior da rede de neurônios, etc. Já para o grego, a idéia
não é separada do estético, da aparência. O Bem, categoria ética, não se
separa do Belo, categoria estética, que, por sua vez, não se separa do
cognitivo, do Verdadeiro, etc. O que o grego não tolera no mundo sensível
não é tanto a qualidade que nos atinge a partir dos sentidos; o grego não
tolera o movimento de qualquer natureza, seja mecânico, seja qualitativo.
E a sua recusa no sensível não é a qualidade – a física de Aristóteles é uma
física “qualitativa”, quase uma biologia cósmica, em que os entes físicos
22
A partir de Poincaré (1902/1968, p. 64-108) podemos pensar que o grego “recalca” a
fundação da geometria na motricidade, isto é, no movimento. Voltaremos a esse tema
mais adiante.
23
No seminário Os Nomes do Pai, Deus se mantém suspenso à enunciação de seu nome:
Eu sou eu sou. É essa a direção Freudiana também, é suficiente para constatá-la ler seu
texto, Moisés e o Monoteismo.
- 22 -
estão agrupados em genêros e espécies e situados quanto às causas que lhes
dão razão. A recusa do grego é o movimento, aquilo que impede serem as
coisas consideradas na identidade que entretêm, ou deveriam entreter,
consigo mesmas, isto é, de serem idênticas a si mesmas, para toda a
eternidade.
24
Ele cita G. H. Hardy , um grande matemático inglês contemporâneo de B. Russel, em
sua autobiografia (1940/1985, p. 60): “Eu não realizei nada de “útil” Nenhuma de
minhas descobertas nada acrescentou, nem verdadeiramente acrescentará, diretamente
- 23 -
para os matemáticos, além do misticismo e, para ele, mais essencial: o
jogo, os enigmas e os quebra-cabeças (DIEUDONNÉ, 1987, p. 39). Ele
refere, e sublinha, como um móvel fundamental para a criação em
matemática essa “prática” perfeitamente inútil e inócua como a resolução
de um quebra-cabeças.
ou não, para o bem ou para o mal, aos consentimentos desse mundo aqui de baixo”.
Dieudonné (1987, p. 37) sublinha bastante essa independência relativa do pensamento
matemático e até mesmo da ciência até bem recentemente, de qualquer preocupação
prática. Por exemplo, ele nos lembra que as aplicações práticas, isto é, tecnológicas, da
mecânica clássica só se verificaram muitos anos após sua formulação: “(...) é necessário
reconhecer que até o início do século XX, a mecânica e a física teórica não tinham ainda
influenciado as invenções tecnológicas “úteis” (...) a máquina a vapor precedeu a
termodinâmica e mesmo o motor a explosão e a aviação nasceram de “bricolagens” do
que de teorias”. Insistimos nesse ponto para fazer contraponto com certas afirmações de
Sokal e Bricmont (1999, p. 65) onde eles revelam um espantoso desconhecimento da
história da ciência e até mesmo da história. Por exemplo, quando dizem: “Para nós o
método científico não é radicalmente diferente da atitude racional na vida do dia-a-dia
ou em outros domínios do conhecimento humano”.
- 24 -
comum; a coisa – o real – pode ser declinada como significação, sentido,
enfim, ser tomada na palavra – simbólico. Por isso, todo mito versa em
última instância sobre as origens – origem: a passagem do real para a
palavra, para a significação, para o sentido e para o discurso (ELIADE,
1947/1969). A religião diz respeito a esse tempo em que ainda não
podemos fazer qualquer distinção entre uma poética e um saber.
- 25 -
É certo que a psicanálise é uma prática da palavra, seu efeito a ela
está referido. A psicanálise é uma prática da palavra, assim como o são
também a encenação do ator, o discurso do político na Assembléia, a
confissão ao padre, o ministrar de sacramentos do sacerdote, a defesa do
advogado, a aula do professor, etc. O que é a palavra? É o efeito do
funcionamento da linguagem no qual estamos instalados, fundados no fato
de que a verdade do que é dito é anterior à possibilidade de qualquer
“verificação” possível. Nesse caso, a posição de quem fala é primeira em
relação ao conteúdo – verificável ou não – sobre o qual se fala, como é o
caso dos exemplos listados mais acima. Se não há palavra, não existe ainda
um sujeito capaz de desconfiar, perguntar, negar, afirmar, o que quer que
seja. A palavra é o momento primordial de determinação do sujeito, em
que uma ou outra palavra significa isso ou aquilo porque significa, sem
razões. Nesse nível importa mais o endereçamento, o remetimento, do que
propriamente o conteúdo do que é dito. É o plano em que temos de acatar
nossa alienação fundamental na linguagem ou não falamos, isto é, em que
temos de acatar a autoridade da palavra; ela diz o que diz, e não uma outra
coisa, pois o porquê, que poderia interrogar suas razões, ou nos coloca
numa regressão infinita – signo da recusa da palavra – ou se cessa,
tornando possível o dizer, esse cessar se dá ao preço de termos consentidos
com o que a palavra tem a dizer, com o acatamento de sua “autoridade”.
Por que verde é verde? Por que mesa é mesa? Porque papai e mamãe assim
o quiseram. Ou aceitamos essas “imposições” ou não falamos. Daí, o
essencial a respeito desse plano é o fato de nós, enquanto somos sujeitos,
falantes, constituírmo-nos no acatamento dessa autoridade que não fornece
suas razões. Se o saber pode nos aliviar quanto à arbitrariedade do poder da
palavra, não devemos nos esquecer de que os esclarecimentos promovidos
pelo saber são posteriores à nossa entrada no discurso, vale dizer, eles são
posteriores à nossa alienação fundante.
- 26 -
Eis que a palavra destaca então o problema da mestria. A palavra
diz respeito precisamente às relações que situam o mundo e nós próprios
em relação à mestria. A palavra não vem sozinha, pura; ao contrário, ao
advir, ela inaugura para cada um a possibilidade do laço social, da
convivência societária, com tudo o que isso implica: as paixões, o poder, o
amor, a sugestão, etc., enfim, tudo aquilo que Freud nos ensinou a situar a
partir da transferência. Sokal e Bricmont mencionam a questão da mestria
de uma maneira inteiramente negativa, bem visivelmente o sentido maior
do livro deles é esse: a denúncia da mestria25. Como se fosse possível um
discurso sobre a subjetividade limpo desta – esse seria o papel da ciência,
articular um tal discurso26.
25
Para eles a autoridade legítima está referida à lógicidade que instrumentaliza a
ciência. Eles não admitem qualquer especificidade à palavra. Por exemplo, eles não se
perguntam por que milhares de seres humanos que têm muita dificuldade de entender
Lacan, como eles, se dizem lacanianos. Ou por que milhares de pessoas se matam em
nome de serem judeus, ou muçulmanos, ou negros, etc. A resposta deles para esses fatos
é a tradicional – apesar de eles tentarem aparentar que não são os velhos positivistas
retintos dos anos 50 – ou uma acusação moral (Lacan e os demais franceses, são uns
enganadores) ou de irracionalismo e preconceito em relação à religião.
26
Eles não fazem a menor idéia de quanto essa denúncia da mestria é tributária de uma
posição religiosa intrínseca ao protestantismo: o puritanismo.
- 27 -
no real, ou seja, a religião, a filosofia, a moral, a metafísica – são
destituídos de valor quanto à verdade; essas discursividades são reduzidas
a quimeras destituídas de sentido.
27
Logo nas primeiras páginas do Projeto vemos Freud, justamente, iniciar sua
argumentação especificando o real dessa maneira – ele diz massas em movimento.
- 28 -
sujeito é foracluído do discurso da ciência, porque, justamente, esse
discurso não o representa como sujeito. O significante que representa o
sujeito é, precisamente, aquele que o funda na palavra, é o Nome-do-Pai. A
incidência desse significante é truncada no discurso da ciência. Por isso
vemos Lacan articular muitas vezes o discurso da ciência com a psicose e
com o delírio. A ciência propõe o real por ela escrito com as “letrinhas” –
maneira jocosa de Lacan muitas vezes se referir ao aspecto algébrico
constitutivo da ciência moderna – no lugar do Nome-do-Pai. É um real
opaco à palavra. A foraclusão então é esse fato de que os significantes da
ciência não singularizam o sujeito como tal; pretendem retê-lo numa malha
em que ele será depurado de suas marcas singularizantes e será reduzido a
ser um sujeito pontual, pura evanescência, sem qualquer suporte
imaginário que o situe como corpo. Esse sujeito assim esvaziado,
purificado, dos elementos que o lançavam no mundo tem apenas uma
missão: sustentar, ligar, os enunciados produzidos pela ciência. Trata-se
então de um sujeito mínimo, sem nome, correlato e mero suporte da lógica
que comanda a produção discursiva da ciência.
- 29 -
fundamentos da palavra, enquanto articulada pelo significante Nome-do-
Pai.
28
O capitalismo, com suas abstrações, “Todos são iguais perante a Lei”, por exemplo,
ilustra bem o que queremos ressaltar. Esse enunciado é exemplar da contingência que
todos temos que enfrentar uma vez que um tal princípio é posto na base do
funcionamento social. Revirando a questão, poderíamos recolocá-la então: como é um
fato evidente que ninguém é igual a ninguém o que é que desempata a partida, sendo
dado que todos são iguais perante a lei? A esse respeito ver Roland Chemama (1994).
- 30 -
como o discurso da universidade se apropria dos efeitos da ciência para se
instalar.
- 31 -
de entidades tão vagas no contexto como que a pode denotar o termo
capitalismo tal como o empregamos aqui, ou mesmo, mas um pouco
menos, o termo ciência. É freqüente vermos citações de Lacan nas quais
seu pessimismo – nesse ponto tão próximo e tão longe de Freud – sugere
uma condenação à ciência. Isso tem que ser bem entendido. A ciência e o
capitalismo são irreversíveis, a psicanálise é um termo dessa ordem, é
interna e efeito dela. E não podemos saber até onde vão ou podem ir os
efeitos dessa organização social marcada pela ciência. Por outro lado, a
psicanálise não tem nenhuma proposta global a oferecer. O que ela tem de
essencial a oferecer depende de cada um mesmo, isto é, tomado um a um.
Apenas a psicanálise não pode deixar de assinalar os riscos para o sujeito
de não assumir sua contingência como desejo – sua economia, sua
demissão. Afinal, o que é a psicanálise senão esse convite ao sujeito de
articular sua palavra como sujeito lá onde isso goza?
29
Nossas referências a Newton encontram-se, no essencial, no livro de Richard S.
Westfall (1993/1995).
- 32 -
a produziu. Não há nenhuma marca que especifique Newton em sua
singularidade em, por exemplo, F = m.a (a força F é igual ao o produto da
massa m pela aceleração a). Vemos, como temos reiterado, que a ciência
tende a prescindir da palavra. Eis porque nossos dois cientistas denunciam
os argumentos de autoridade: porque na ciência, enquanto referida à
palavra, a autoridade tende a zero, importando o valor de verdade das
proposições enquanto estão referidas a uma certa lógica que as articula
com os fenômenos empíricos. Aí podemos observar a importância da
distinção estabelecida por Popper entre o contexto da descoberta e o da
prova. Não importa muito se Newton era louco, vaidoso, arbitrário, ou, ao
contrário, um sujeito exemplar. Não importa para a ciência se ele teve o
insight a respeito da gravitação quando repousava embaixo de uma
macieira, quando sonhava, ou mesmo quando trabalhava num laboratório.
O importante é a validação da proposição segundo a lógica acima referida.
Assim, constatamos que a ciência opera um corte. Ela acata com a
subjetividade do cientista em seu máximo – de fato, os cientistas não são
necessariamente um tipo específico de gente, não existe algo como a
“personalidade do cientista”, apesar de existirem tentativas de santificá-los
– porque ela sabe que é nessa condição que ele produzirá o que lhe importa
Mas, uma vez produzido o saber, ela submete esse saber a uma lógica
própria, determinando o que dessa produção ela reterá como pertencente a
seu corpus. É por essa razão que ninguém faz menção ao fato de que
Newton, entre outras coisas, calculou o diâmetro do inferno. Quem se
lembra? Isso é uma mera curiosidade histórica. Para ciência, para seu
corpus de saber, isso não tem a menor relevância e portanto pode ser
descartado. Não é necessário que o cientista saiba ele próprio dessa
operação que incide em sua subjetividade. A ciência pode aparentemente
ser muito permissiva e liberal no sentido de conter muitas perspectivas
diferentes, algumas das quais flagrantemente divergentes entre si. Mas não
é. Seu mecanismo é de certa forma implacável. O que a ciência retém para
si, como lhe concernindo, é efeito de um tratamento lógico-matemático da
- 33 -
experiência e nada mais. A ciência sugere-nos uma ordem fundada no
necessário, mas, de fato, ela afirma, apenas e exclusivamente, uma
necessária contingência30. Por que matéria atrai matéria na razão direta
das massas e na inversa do quadrado da distância? Por que não é a razão
direta mais um (+1), por que não é inverso do cubo da distância? Suas leis
formulam e descrevem algo que acontece. Mas a necessidade desse
acontecer...Acontece assim porque acontece. Se isso ficar muito aflitivo é
permitido dizer: “acontece assim porque Deus quer” – uma maneira de
tentar referir o dito científico a uma enunciação divina. Mas sabemos que a
palavra nesse momento é inócua. Ela pode nos apaziguar, o resultado da
experiência, porém, não se altera de qualquer maneira.
30
Mencionamos a esse respeito o artigo de Jean-Claude Milner (1991), Lacan et la
Science moderne.
- 34 -
estritamente pela palavra – à causa final e a ciência – a organização do
saber através da escrita31 – à causa formal.
31
E que implica um laço social específico no qual o sujeito não se faz representar, no
qual o sujeito é foracluído, como repetimos inúmeras vezes.
32
Por exemplo, no seminário XI, p.12-13.
- 35 -
pragmáticos estabelecidos, o que não é o mesmo que, nem apenas, se opor
ou contrapor a esses esquemas hegemônicos.
- 36 -
sublinhar: a psicanálise situa um conjunto de efeitos do significante e da
palavra exteriores ao sentido, à comunicação. Em função disso, ela destaca
uma questão que ultrapassa o campo do saber, e portanto de qualquer
ciência: aquela relativa à ação como o termo que, em última instância,
responde à injunção que nos constitui – a pulsão33.
33
Um conjunto de discussões estavam presentes em nosso espírito quando escrevemos
este capítulo. O texto de Antônio Carlos Rocha “Sobre o Ensino e a Transmissão”
(1999), a discussão entre Luciano Elia e Waldir Beividas (1999) sobre esse tema, a
própria discussão de Waldir Beividas (1999) sobre a cientificidade da psicanálise. Nossa
posição é próxima daquela de Milner (1989, p. 23) quanto ao que caracteriza o discurso
da ciência. Ele diz:
Por ciência, entenderemos aqui uma configuração discursiva que tomou
forma com Galileu e não cessou de funcionar desde então. Desde A.
Koyré, caracterizamo-la pela combinação de dois traços: (I) a
matematização do empírico (a física matemática devendo antes ser dita
física matematizada); (II) a constituição de uma relação com a técnica, tal
que a técnica se defina como aplicação prática da ciência (de onde o tema
da ciência aplicada) e a ciência se defina como a téoria da técnica (de
onde o tema da ciência fundamental).
- 37 -
Por ora, vamos nos deter nesse ponto de nossa exposição sobre a
relação entre a psicanálise e a ciência a fim de passarmos à nossa próxima
etapa. Demarcadas as fronteiras entre a ciência e a psicanálise, vamos
introduzir e discutir as relações e a utilização pela psicanálise, tal como
Lacan a concebe, de esquemas conceituais oriundos da disciplinas formais,
os quais são, em geral, supostamente intrínsecos e exclusivos da ciência –
o que é evidentemente falso.
- 38 -
Capítulo II
PSICANÁLISE E MATEMÁTICA
34
Conseguimos localizar duas, uma no vol. IX Delírios e Sonhos na Gradiva de Jessen
e outra no vol. XIX, Algumas notas adicionais sobre a Interpretação dos Sonhos. Mas
nenhuma dessas menções toca, sequer longinquamente, no que estamos a discutir aqui.
- 39 -
Princípio de Inércia), e nos quais a distinção entre a atividade e o repouso
é definida por uma grandeza (Q = Soma de Excitação, que é
correspondente a um potencial termodinâmico), sujeita aos Princípios e
concepções da Energética (e não as leis gerais do movimento). (os itálicos
são do autor).
- 40 -
Não se trata tanto de “movimento”, mas, matematicamente, de
variação, e, em especial, as variações contínuas. Foi a estipulação
matemática das variações contínuas, o estabelecimento do continuum
matemático, o que permitiu a Newton a formulação da mecânica clássica –
o movimento mecânico concebido como função de entidades contínuas:
massa, tempo, deslocamento, etc. Sabemos que a solução newtoniana da
problemática do contínuo não se limitou à mecânica, embora tenha se
originado na sua aplicação a ela. Na verdade, sabemos que sua maior
contribuição a humanidade foi a criação dos instrumentos matemáticos que
permitiram abordar de maneira precisa e rigorosa as variações contínuas
quaisquer que fossem elas: o cálculo diferencial e integral.
35
São precisamente essas duas referências que Lacan trabalha no seminário que aqui
nos concentraremos, o seminário da Identificação (1961-1962).
- 41 -
“matematização”, estabelecer a distinção entre um papel instrumental e um
papel constitutivo que a matemática pode jogar numa dada disciplina
qualquer (CRÉPEL, 1990, p. 1563-4). Naturalmente encontramos na física
esses dois aspectos implicando-se mutuamente. Mas nem sempre é assim.
Podemos encontrar situações nas quais a matemática cumpre um papel
limitado ao instrumental e outras nas quais ela joga apenas um papel
constitutivo. Para essas situações, é bom dizer, não é possível a formulação
de algoritmos para operar com o que é especificado pela teoria no campo
prático. A psicanálise seria justamente um exemplo dessa última situação.
Um exemplo de um papel meramente instrumental é a aplicação da
estatística em sociologia ou psicologia experimental.
- 42 -
incompreensão (DIEUDONNÉ, 1987, p. 15-27). Mais do que uma
verdade, isso funciona como uma espécie de critério de demarcação que
separa as diversas ocupações universitárias e superiores segundo uma
escala que marca, numa extremidade, um máximo de matemática e um
mínimo de humanidades e, no outro, um mínimo e um máximo dessas
mesmas disciplinas respectivamente.
- 43 -
Essa oposição pode assumir configurações bem mais sutis, bem
menos esquemáticas da que estamos a sugerir. Nosso esquematismo visa
sobretudo destacar, tornar sensível, a questão que o formal apresenta e o
lugar onde ele pode incidir. É certo que a matemática tem muito a ver com
esse tipo de reclamação, o que, inclusive, está relacionado a uma verdade
histórica. A matemática só avançou na medida de sua ruptura com o
empírico, com a experiência imediata, com os problemas práticos mais
urgentes, mesmo podendo ser recuperada em seguida para fins práticos e
imediatos. A matemática só existiu – isso foi inclusive sublinhado, ainda
na Antiguidade, por Aristóteles – naquelas sociedades que permitiram a
existência de pessoas não ocupadas com afazeres comuns, pessoas
“desocupadas” que podiam gastar seu tempo pensando. Sociedades que de
alguma maneira toleravam e/ou cultivavam o ócio, para praticarem esse
tipo de atividade inútil que é pensar.
- 44 -
Por outro lado, o surgimento da matemática propriamente dita, isto
é, como teoria, e entenda-se, a resumida nos Elementos de Euclides, deu-se
na contramão dos interesses práticos. A geometria euclidiana é uma
espécie de ruptura com a práticas algorítmicas de seu tempo, que eram
realizadas para os mais diversos fins sociais, como a engenharia, a
contabilidade, a produção, etc. Ninguém vá imaginar que uma pirâmide
tenha sido construída sem cálculos; acontecia de essas práticas de cálculo
não constituírem um sistema de saber, uma teoria. Quando a matemática
surge propriamente como um sistema de saber, uma teoria, ela nega, então,
valor àquelas práticas de cálculo. Por exemplo, Platão desprezava os
calculadores profissionais porque eles se valiam de frações próprias. Para
ele, um matemático só deveria se ocupar de números inteiros
(DIEUDONNÉ, 1987, p. 54).
36
Os geômetras gregos representavam os números geometricamente, eles
representavam-nos como grandezas interpretadas geometricamente, isto é, como
comprimentos, áreas, ou volumes (EVES, 1990/1995; BOYER, 1968/1974; HEATH,
1921/1981, DIEUDONNÉ, 1987; CARAÇA, 1942/1998; COSTA 1929/1981;
BOURBAKI, 1969/1976). Fazemos observar que as referências históricas presentes
nessa tese estão ligadas aos autores que acabamos de listar. Doravante, em relação a
história da matemática só indicaremos uma referência específica quando o contexto
assim o exigir.
37
Essa estenografia que estamos acostumados a associar à matemática é recente. Ela é
contemporânea ao desenvolvimento da aritmética e da álgebra e sua origem é a
matemática hindu, que nos chegou através dos árabes – os algarismos arábicos –, e
começou a ter a conformação que hoje lhe damos a partir do século XVII com os
trabalhos de Descartes e Fermat.
- 45 -
Você deve saber ainda que eles [os geometras] fazem um outro uso das
figuras visíveis e que, sobre essas figuras, eles constroem raciocínios, sem
ter no espírito estas figuras mesmas, mas as figuras perfeitas das quais
estas são imagens, raciocinando em vista do quadrado ele mesmo, de sua
diagonal ela mesma, mas não em vista da diagonal que eles traçam; e do
mesmo modo para outras figuras. (A República, Livro VI).
- 46 -
essa posição. Podemos ler no seminário sobre as psicoses, um seminário do
início de seu ensino, por exemplo, “é que todo verdadeiro significante é,
enquanto que tal, um significante que não significa nada” (1956, p. 210).
Ainda nessa mesma lição:
Obter uma lei natural, é obter uma fórmula insignificante. Menos ela
significa alguma coisa, mais estamos contentes. É porque nós estamos
perfeitamente contentes do advento da física einsteniana. Vocês estariam
errados em acreditarem que as pequenas fórmulas de Einstein que
colocam em relação a massa de inércia e alguns expoentes, tenham a
menor significação. É um puro significante. E é por essa razão que graças
a ele, nós temos o mundo nas palmas da mão. (p. 208-209).
- 47 -
“negativização” é constitutiva de maneira explícita da própria matemática.
Veremos que é nesse movimento de “negativização” que se estabelecem as
bases da ciência moderna. Após termos indicado essas referências
especificamente matemáticas, abordaremos em que a psicanálise, na
teorização mesma de Freud, está relacionada com esse movimento.
Finalmente num capítulo dedicado a Lacan examinaremos a questão da
intuição, do retorno de um certo pathos, que se dá a partir mesmo desse
processo de “negativização” constitutivo, como é o caso da topologia da
qual ele, Lacan, lança mão.
- 48 -
Capítulo III
39
Eis a primeira frase de BOURBAKI (1990, p.E.I. 8):
Desde os gregos, quem diz matemática, diz demonstração; alguns
duvidam mesmo que se encontre, fora da matemática, demonstrações no
sentido preciso e rigoroso que esta palavra recebeu dos Gregos e que nós
lhe damos aqui.
- 49 -
denominadas axiomas ou postulados40. Elas versam sobre os objetos e as
relações primeiras, aquelas a partir das quais todas as outras serão
conseqüências. Esses objetos primeiros são: ponto, reta, ângulo, círculo e
polígonos. Consideremos, por exemplo, a definição de ponto: o ponto é
sem extensão. Sob que aspecto essa definição é conforme à experiência?
Sob nenhum41. Não existe nada nesse mundo que não tenha extensão. No
entanto, é inegável que essa “definição” traduz o que para nós é uma
evidência. Mas, se nos aproximamos dessa evidência, não compreendemos
bem quais são suas bases racionais, pois é impossível definir ponto a partir
da extensão – embora essa definição seja negativa, quer dizer, ela afirma o
que ponto não é, ou não tem, e é bem verdade que a negação de alguma
coisa pressupõe que ela esteja definida de alguma maneira. Se pensamos
sobre essa definição, logo chegamos a paradoxos. Por exemplo,
compreender ponto a partir do processo de dividir indefinidamente um
comprimento. Essa é a nossa primeira tentação. Ponto seria como que a
extensão mínima, a menor extensão possível, uma espécie de átomo da
extensão. Mas isso seria absurdo, porque um comprimento mínimo ainda
assim é um comprimento, ainda assim é extenso. Ele pode ser mínimo para
nós, mas não para uma outra criatura; portanto, a extensão mínima é ainda
divisível. Na verdade, percebemos ser a tentação de dividir o comprimento
indefinidamente para finalmente chegarmos ao ponto uma quimera, porque
a cada etapa do processo o que se tem é um novo comprimento a dividir, e
não um comprimento mínimo. O espaço supõe que qualquer item
localizado em seu interior seja extenso, isto é, pode ser dividido em partes
constituintes indefinidamente. O fato da indivisibilidade indefinida define
uma propriedade fundamental da geometria euclidiana: a de que o espaço é
contínuo. Se refletirmos bem, veremos que a continuidade é incompatível
40
Esses dois termos não são sinônimos, mas no contexto nossa simplificação evita uma
sofisticação desnecessária já que ela não acarreta nenhum erro para nossa argumentação.
41
A exposição de Poincaré sobre a problemática do espaço sempre releva esse aspecto.
Seus artigos, “A Noção do Espaço” e “O Espaço e suas três Dimensões” reunidos no
livro O Valor da Ciência, de 1905, são exemplares a esse respeito.
- 50 -
com a idéia de encontrarmos uma extensão mínima, um átomo de
comprimento. Sendo um comprimento dado, por hipótese, formado de
pontos-átomos, entre um átomo e outro teríamos uma interrupção e, nesse
caso, a reta que indicaria esse comprimento seria um pontilhado e não um
traço contínuo, sem interrupções, como deve ser uma reta. Dessa forma,
observamos que, para preservar a idéia de continuidade, temos de supor a
divisão de uma extensão qualquer como um processo infinito. Isto é, entre
um ponto e outro sempre haverá uma infinidade de outros pontos. Vemos
por que Euclides, matemático, tem que se libertar do empírico, da physis,
do espaço tal como o experimentamos; por isso ponto não possui extensão.
Porque o sem-extensão é compatível com a idéia de continuidade e a
preserva, justamente por não bloquear o processo de divisão indefinida da
extensão. Por outro lado, se ponto é inextenso, como ele pode marcar
alguma coisa? Por que, embora dito sem extensão, ele permite que nos
localizemos na extensão? Poderíamos pensar que, sendo inextenso, ele não
é nada, é alguma coisa diluída no nada. Mas não é assim, ponto é alguma
coisa inextensa mas localizável – aliás, ele é a encarnação mais elementar
da possibilidade de localizar o que quer que seja na extensão. O ponto tem
que ser vazio e, se ele é sem extensão, é porque ele é heterogêneo à
extensão. A divisão não abole jamais a extensão; não posso derivar a
nulidade necessária para definir o ponto a partir dela. Mas o ponto incide
na extensão, ele referencia a extensão de dentro dela mesma, porque ele é
dado nela; mas ele é dado nela por não estar, como extensão, nela – ele é
inextenso: ele não ocupa um lugar, ele indica-o – justamente porque ele,
ponto, é heterogêneo à extensão. O ponto demarca-se por cortar, por
marcar, uma certa distinção mínima na homogeneidade da reta, do plano,
etc. Ele é aquilo em que algo dado a ver admite distinções, não está diluído
numa pura homogeneidade de todas as coisas. Ponto então é corte, é
interrupção. E como corte, ele é uma espécie de subtração, de passagem do
extenso como positividade para uma ausência de extensão que se deixa
demarcar, que se deixa escrever de alguma forma. Vale dizer, sua
- 51 -
incidência local afeta a extensão: ele marca-a, distingue-a. Essa coisa
inextensa, o ponto, existe em um número infinito, já que o espaço admite
esse tipo de divisão infinita que, como vimos, não tem uma extensão
mínima, que seria ponto, que, no entanto, demarca, indica, um certo ponto
como corte e interrupção possível em cada lugar. Essa infinidade de pontos
permite que cada ponto se deixe localizar em relação aos demais.
- 52 -
Contudo, as reflexões acima não são, a rigor, propriamente
matemáticas. Elas seriam pré-matemáticas no sentido de que preparam, são
um exercício conceitual, que antecipam a matemática, ou seriam
considerações filosóficas subjacentes às teorias propriamente matemáticas.
Em relação às discussões sobre as definições dos termos primitivos da
geometria – ponto, reta, etc. –, de sua pretensa “evidência”, Jean
Dieudonné (1987, p. 50) afirma serem elas na verdade pseudodefinições,
pois, sendo uma definição uma espécie de abreviação, de substituição de
termos por outros termos,
- 53 -
positividade, da verdadeira positividade, aquela do pensamento ou da razão
–, aquela que assegura a inteligibilidade das coisas.
- 54 -
Em nossa sensibilidade, como o registro passivo das coisas,
localizaríamos esse ponto de real espelhado na sensibilidade, já que ela é
concebida como espelho do mundo. Para Platão, ao contrário, a
concretude, o real, do espaço é derivado da idéia; é dela que ele retira toda
sua consistência, toda substância. A contribuição da experiência, do
empírico, é disparar a memória de nossa participação no mundo, perfeito, o
mundo das idéias, onde de fato o real do espaço – e de qualquer outra coisa
– está alojado. O empírico é então o lugar do que não-é, da negatividade
que diz respeito ao irreal, ao derrisório. A experiência é essa cena onde o
empírico encontra sua verdadeira concretude – a única que lhe é possível –
na idéia que o fixa, que lhe confere a devida concretude. A nossa
experiência é a de que o espaço já está em acordo com nossa idéia a priori,
ele é uma realização dela. Em resumo, Platão distingue um espaço onde as
coisas nos são dadas ( o mundo das aparências) daquele onde elas são reais
(idéias). A geometria diz respeito somente a esse espaço real; real porque
ideal. Espaço situado a uma distância tão intransponível do espaço
empírico, ordinário, quanto, ao mesmo tempo, é a nossa única
possibilidade de apreendê-lo, de determiná-lo de alguma maneira.
- 55 -
aqueles os quais eles não são senão as imagens grosseiras. Enquanto que
está consciência é tão visível em Platão e Aristóteles, nós somos
surpreendidos em ver pensadores tão profundos como Descartes e Pascal
– eles que não hesitaram em atacar frontalmente a escolástica – proclamar
com vigor a “verdade evidente” dos axiomas da geometria.
E ele esclarece-nos:
42
Descartes não consegue admitir o formal em sua pura arbitrariedade e contingência.
Ele supõe que o mecanismo dedutivo preserva a verdade dada nas proposições
primeiras. Dieudonné vê nessa concepção um retrocesso em relação ao grego. É como
se Descartes trouxesse para o interior do sistema dedutivo aquilo que deveria ficar de
fora. Quando Dieudonné assinala que as definições dos objetos primeiros da geometria
por Euclides (ponto, reta, ângulo, etc.) são pseudodefinições, ele quer com isso chamar a
atenção para o fato de que Euclides não operava com elas como verdadeiras definições,
isto é, realizando substituições no interior das demonstrações. Elas apenas assinalam
para o discurso – no caso, a filosofia – a pretensão semântica da geometria, mas elas não
operam no interior do sistema dedutivo.
- 56 -
tornam-se:
“Duas mesas distintas pertencem a uma cadeira e a uma somente”,
“Existe ao menos duas mesas distintas pertencendo a uma mesma
cadeira.”
(...) Isto pode parecer uma gozação; de fato, esta dissociação do sentido e
do não concretizado, para a geometria elementar, o processo que liberou a
matemática das cadeias que a ligavam muito estreitamente ao real
[empírico/fenomênico]; ele permitiu todas as conquistas inesperadas
realizadas desde um século e suas aplicações surpreendentes à física. (p.
53-54).
43
Já mencionamos a observação de Poincaré a propósito da geometria euclidiana omitir
o movimento. Ver, por exemplo, o capítulo IV de seu livro A Ciência e a Hipótese, de
1902, denominado “O Espaço e a Geometria”, onde nos instruímos a respeito da
discussão que estamos a promover, embora nosso esforço vá numa direção oposto à sua,
no sentido de que aqui estamos a ressaltar a relevância de uma reflexão cuja direção é
formalista.
- 57 -
geometria euclidiana, em favor de uma apresentação figurada daquilo que
traz a intuição, a compreensão, enfim, a significação, a síntese que reenvia
a verdade formal do teorema à experiência do espaço. A univocidade da
letra consigo mesma se superpõe ao dado fenomênico e, através dessa
superposição, é emprestada ao dado fenomênico, que, dessa forma alça
então ao efeito que designamos como “objetividade”, um certo tipo de
consistência, de unidade, aquilo a partir do que o dado fenomênico deixa
de ser um mero dado para se tornar um objeto.
- 58 -
construção racional é reputada conforme nossa experiência concreta do
espaço – isto é, as coisas acontecem como se de fato, realmente, o espaço
fosse tal qual é descrito pela geometria euclidiana – e é nessa
conformidade, nesse acordo, que situamos a verdade da geometria
euclidiana, seu alcance universal e absoluto.
- 59 -
que, ao ser regido pelo “é”, conta-se, do que a qualidade disso que “é”, sua
figura, em sua relação com o mundo ou a sensibilidade44. Trata-se então,
de um semântico esvaziado – que em sua estrutura a mais reduzida é pura
disseminação do um contável45, que, por não se totalizar, isto é, por não ser
idêntico a si mesmo, por ser, portanto, diferente de si mesmo, engendra a
problemática do infinito.
- 60 -
um sujeito acéfalo. Enfim, se o discreto não pode se apresentar sem ser
através dos restos daquilo que é experimentado, ele é, no entanto,
autônomo em sua ordenação, em sua composição possível, dessa
movimentação do imagético, do significativo, do sentido. Algo se perfila
para aquém da dimensão do semântico, da significação, do sentido, e lhe é
logicamente anterior, além de ser sua condição de possibilidade –
poderíamos dizer que esse algo é “pré-semântico”. É o que abre o campo
do real em psicanálise como um registro específico.
46
A psicanálise nesse sentido, seria a teoria que dá conta dos efeitos da demarcação
histórica do significante – efeito do discurso da ciência – no campo do sujeito.
- 61 -
composição combinatória – quanto ao significado. Quer dizer, em sua
“neutralidade”, a letra é exterior à significação, à intuição. Nossa expressão
tanto pode representar “2 + 2 = 4”, uma expressão aritmética, quanto “azul
(a) misturado (*) com amarelo (b) dá (=) verde (c)”, uma expressão que
assevera um fenômeno no campo do espectro das cores. Isso dependerá do
domínio onde essa expressão, que denota uma operação, será aplicada.
- 62 -
com as coisas do mundo externo. Nesse sentido, portanto, observamos
muitas vezes a sugestão, por parte dos próprios matemáticos e
historiadores da matemática, de que a matemática é uma espécie de ciência
empírica. Isso é nítido quando vamos buscar sua definição nos dicionários.
A geometria está referida ao estudo das figuras, das propriedades do
espaço. A aritmética está referida às magnitudes, à quantidade. E o que
queremos demarcar, sublinhar é esta distinção: de um lado a mera
combinatória apoiada num sistema de diferenças sem qualquer relação com
o exterior – onde a matemática encontra seus verdadeiros fundamentos –,
em particular com a representação, a significação; de outro lado, a
representação, a intuição, a significação – não importando muito nesse
momento, para nós, se essa significação, se essa representação, está mais
próxima dos dados da sensibilidade e da imaginação, ou é um tipo de
intuição de outra ordem47.
47
Como veremos mais adiante, no capítulo sobre Lacan e a topologia, ser esse o caso.
- 63 -
ela se firma em visar o discreto, aquilo que faz diferença, por si só e em si
mesmo. Justamente dizemos que a geometria analítica de Descartes é uma
teoria algébrica porque ela não está a representar diretamente relações
entre entidades espaciais, mas porque ela é uma escritura que trata em
termos discretos o que até então só era pensado com instrumentos
analógicos – a régua e o compasso.
- 64 -
Abordamos também a demarcação entre a matemática – disciplina
estritamente formal – e a física, ciência relacionada com a experiência. A
matemática distingue-se da física exatamente porque, por mais que
pretensamente ela possua uma referência concernente ao estético ou a
algum outro tipo de intuição, ela tem suas proposições determinadas tão
somente pelo jogo dedutivo, em que de fato a experiência não decide nada.
Justamente, a geometria euclidiana é equívoca sob esse aspecto, porque ela
joga com a experiência do espaço, apesar de ser autônoma em relação a
ela. As verdades da geometria euclidiana são seus teoremas derivados, a
partir de regras lógicas, de seus postulados e axiomas, ao contrário da
física, ou das ciências ditas empíricas, que, apesar de seu arcabouço
dedutivo, têm que se haver com a experiência. A decisão concernente ao
valor de verdade de suas proposições se estabelecem em função não apenas
do jogo dedutivo, mas também de um certo tratamento lógico da
experiência a partir do qual os fenômenos passam a valer como
argumentos.
- 65 -
interna, podermos registrar que foi a solução matemática da questão do
movimento que tornou possível a ciência moderna.
Então, tudo isso para constatar que, se não há signo próprio para o
sujeito, ele se fará representar valendo-se dos elementos dados em ... sua
“experiência”. Isto é, o seu acesso a si dá-se através desses cortes no
campo da experiência; desses cortes emergirá um corpo, o vivido e o
processo de subjetivação subseqüente.
- 66 -
essas duas ordens são autônomas e que se relacionam, sendo o produto
dessa interação o campo do signo que, por sua vez, vem a ser o campo
mesmo da realidade, daquilo que nos é dado.
48
Lembramos a esse respeito que a noção de verdade em geometria está baseada na
possibilidade de figuras, sólidos, enfim, os entes geométricos, coincidirem. Duas figuras
são consideradas iguais caso se recubram tão exatamente, a ponto de uma não se
distinguir da outra.
- 67 -
introduz, mas por se reduzir a um traço que apenas assinala a pertinência
de cada elemento ao sistema. Por meio dessa redução ao valor, dessa
redução do semântico ao mínimo para apenas assinalar a presença ou a
ausência do elemento que marca a pertinência ao sistema, a lingüística
opera o recenseamento de seus termos, bem como torna possível o
estabelecimento da distribuição desses elementos em função de níveis
intrínsecos ao sistema (fonemas, morfemas, etc.). Por outro lado, a
pertinência ao sistema não é a pertinência a uma totalidade dada e
estabelecida a priori. O sistema nada mais é que esse caráter estrutural, isto
é, essa “solidariedade” entre seus termos estabelecida de um modo
inteiramente local, através da operação que recenseia esses mesmos termos
a partir da redução da multiplicidade metafórica do semântico à binaridade
do valor – ter ou não ter valor.
- 68 -
combinatória e as imagens, intuições, a significância – não desaparece e
parece voltado inteiramente a estabelecer a consistência ontológica do
mundo tomado como natureza. Essa direção para o objeto, considerado
como estando no exterior, no espaço, e identificado à sua própria figura –
inaugurando, então, a eterna tensão entre o ser e a aparência – continua ser
a destinação última de uma reflexão que leva em conta a linguagem.
49
Charles Melmann refere o mecanismo da crença à transferência. Ele diz: “(...) de
qualquer modo, essa palavra em seu endereço vai o mais freqüentemente vir a concernir
aquele que seria o suporte, em alguma parte, de um saber, seu próprio saber, que teria o
saber sobre ele mesmo. É isso que banalmente chamamos de transferência” (1997/1999
p. 17).
- 69 -
seja, a postulação de um mundo “interior”, subjetivo, igualmente espacial,
em cujo interior as entidades psicológicas também seriam distinguíveis
numa operação análoga àquela que fixa o objeto em relação ao jogo da
aparência.
- 70 -
Capítulo IV
A NOÇÃO DE CORTE
50
Koyré nos diz: “A física de Aristóteles é falsa, o sabemos perfeitamente. Está
irremediavelmente superada. Entretanto, é uma física, isto é, uma teoria altamente,
embora não matematicamente, elaborada”. Mais adiante ele enumera os dois princípios
que norteiam a física de Aristóteles: “a) a crença na existência de “naturezas” bem
determinadas, e b) a crença na existência de um Cosmos, isto é, a crença na existência
de princípios de ordem em virtude dos quais o conjunto dos entes reais formam um todo
(naturalmente) bem ordenado”. (1966/1986, p. 8-9).
- 71 -
Enfim, cada avanço de Aquiles corresponde igualmente a um avanço da
tartaruga; portanto a dianteira da tartaruga será sempre preservada,
contraditando no plano da teoria o fato empírico óbvio: Aquiles não só
alcança como também ultrapassa a tartaruga. Portanto, a hipótese implícita
no sofisma acima, a de conceber a continuidade da extensão percorrida,
como a possibilidade de sua divisão infinita, conduz a uma contradição.
- 72 -
cilindro de ser constituído por círculos iguais e não diferentes: o que é um
grande absurdo! (BARON, 1974/1985,: p. 20).
- 73 -
comum, fazendo-nos relevar “as tentativas de compreensão dos
movimentos e das mudanças de forma ou de natureza” que preocupavam
os gregos. Ele menciona o fato de que noções de movimento uniforme
foram claramente distinguidas por eles. Mas ele não pode evitar o limite de
sua relativização: a variação do movimento – sua aceleração – não é
abordada pelo grego.
- 74 -
muitas coisas que dizem respeito à pintura. Um e outro reduziram-na à
manufatura de alguns instrumentos que se chamam mesolábios e
mesógrafos que servem para achar estas linhas médias proporcionais,
tirando certas linhas curvas e secções secantes e oblíquas. Mas depois,
tendo-se Platão encolerizado contra eles, fazendo-lhes ver que eles
corrompiam a dignidade do que havia de excelente na geometria, fazendo-
a descer das coisas intelectivas e incorporais às coisas sensíveis e
materiais ao fazer-lhe usar de matéria corporal em que é preciso vilmente
e baixamente empregar obra da mão; desde esse tempo, digo, a mecânica,
ou arte dos engenheiros, veio a ser separada da geometria e, sendo
longamente tida em desprezo pelos filósofos, tornou-se uma das artes
militares. (Plutarco, Marcelo, livro XXI)51.
51
Indicação sugerida pelo matemático português Bento de Jesus Caraça, em seu livro,
Conceitos Fundamentais da Matemática de 1941 (reedição de 1998).
- 75 -
por exemplo, a idéia de correspondência52. Somente após esses
desenvolvimentos matemáticos pôde a física clássica, como teoria do
movimento mecânico dado no espaço “real”, avançar.
52
Na verdade, o conceito de função, fundamental em análise matemática, nada mais é
do que uma aplicação do conceito de correspondência – uma das idéias mais
fundamentais e constitutivas da matemática. Não citamos nenhum autor específico para
apoiar essa afirmação porque todos os autores consultados, sem exceção, repetem-na.
53
É como se Platão jogasse fora a criança (a noção de operação) junto da água suja (o
empírico). Ele não pode destacar da atividade própria do escravo – os trabalhos manuais
de toda ordem, inclusive o que hoje entendemos como arte (pintura, escultura, música,
etc.) o conceito de operação, que só pode ser adequadamente conceitualizado a partir de
uma escritura adequada, no caso, a álgebra.
- 76 -
adequada do campo das operações – a álgebra – foi essencial para o
entendimento matemático do contínuo.
54
A esse respeito acompanhamos a análise de Jean-Claude Milner sobre a relação entre
o pensamento de Lacan e a ciência, em Lacan avec les Philosophes (1991, p. 335-351).
- 77 -
É nessa direção que Freud pensa. Os mecanismos que respondem
pela determinação subjetiva devem ser entendidos a partir da aplicação,
exitosa no campo da física, da solução matemática do problema das
variações contínuas. Como veremos com mais detalhes adiante, a noção
mesma de recalque primário é uma “aplicação” dessa solução. O recalque
é entendido como a escrita da diferença, uma operação que, ao expulsá-la,
produz seu efeito de ser significada no campo da representação ou
“consciência”, e, por essa passagem, dela poder ser contada como um. Esta
escrita inaugurará em Lacan a problemática do significante primordial a
partir da noção de traço unário. Ao mesmo tempo que, do lugar exterior no
qual a diferença, por sua expulsão, foi posta em sua irredutibilidade radical
e absoluta ao identitário, ela é causa – o que inaugurará, também em
Lacan, a problemática do objeto a.
- 78 -
Então, não é possível falar deles!55 O grego também não pode conceber as
frações próprias, entidades que denotam coisas partidas. Dentro do
rigorismo platônico, não há lugar para formulações do tipo “meia maçã”,
“meio quilo de carne”. Uma coisa só pode ser uma coisa na medida em que
é inteira e completa.
55
Embora do ponto de vista prático, naturalmente, eles tivessem alguma forma de
representar as dívidas.
56
Ver Jean Dieudonné (1987, p. 54): “Enquanto as matemáticas grega se elaboravam
como um sistema “hipotético dedutivo” nas escolas filosóficas, as necessidades da vida
de todos os dias nas cidades gregas acarretavam, como em outras civilizações, a
existência de uma classe de “calculadores” profissionais. Nós sabemos pouco ou quase
nada destes “logísticos”, como os chamavam, senão o desprezo que lhes testemunha
Platão...”
- 79 -
Mas, deixemos essas questões históricas de lado e nos voltemos
para o sentido da idéia de contagem. É uma idéia que requisita alguns
elementos míticos: aqueles que situam um certo homem primitivo e a sua
necessidade de fazer contas, de recensear algumas coisas. Suponhamos que
ele precise recensear seus carneiros. O que ele faz? Provavelmente alguma
coisa do tipo: associar a cada carneiro uma pedrinha – a propósito, o
vocábulo cálculo quer dizer pequena pedra –, reuni-las todas num saco e
guardá-lo supondo que ele possui tantos carneiros quantas pedras existem
reunidas naquele saco. Essa idéia é tão óbvia que muitos se surpreendem
de ela constar como uma idéia fundamental de uma disciplina tão abstrata e
difícil como a matemática. Mas é isso mesmo. E mais, deve ter levado
algum tempo até ela se consolidar e receber seu devido crédito. Podemos
intuir por quê.
- 80 -
Imaginemos que numa dada situação o nosso homem constate que
ele tem mais pedras do que carneiros. Como entender o que aconteceu? ele
foi roubado? carneiros morreram? alguém colocou indevidamente mais
pedras no saco? Perguntas análogas podem ser feitas no caso da situação
contrária, aquela em que o número de carneiros é maior do que o de
pedras. Imaginemos a seguinte cena. Um chefe, um rei, sem o menor
interesse em fazer contas, mas com todo interesse em preservar seus
tesouros, como ele poderia se certificar de não estar sendo roubado por
seus súditos e colaboradores mais próximos? É certo que ele não só teria
de confiar em alguém, mas também que ele teria de confiar em alguma
técnica de contagem. No plano em que estamos considerando as coisas,
devemos sublinhar que estamos tecendo considerações em relação a um
tempo em que o homem dispõe de uma escrita incipiente e que a noção
acerca do que seja uma operação – soma, subtração, multiplicação, etc. – e
coisas afins é igualmente parca. Enfim, um tempo em que afirmar a
diferença entre o caráter necessário dos resultados obtidos pelo processo de
contagem e os erros derivados das contingências humanas e das situações é
quase impossível em virtude de não existirem ferramentas que possibilitem
isso.
- 81 -
procedimento mais elementar da contagem, que associa cada item a cada
pedrinha. Para nós soa quase como uma tolice mencionar esse tipo de
problema. Mas imaginemos um infeliz escriba tentando provar a seu faraó
que ele tem tantas cabeças de gado porque sua contabilidade assim o
prova. Será o faraó sensível a seus argumentos? Hoje em dia, em que
contamos com mais recursos, isso é um problema!
- 82 -
conta-se quantas vezes esse quadrado está contido na superfície a ser
medida. O tamanho da extensão considerada será esse: os tantos quadrados
que cabem nela. Esse exemplo vem a propósito de considerarmos os
seguintes pontos. Nossa medição é necessariamente inexata, já que a
irregularidade do contorno da superfície a ser medida sempre fará com que
tenhamos quadrados de mais ou quadrados de menos, ou com que
tenhamos de nos valer de proporções variáveis do quadrado tomado como
unidade. Como é difícil se estabelecer a unidade quando se trata de
computar situações sem contornos e limites claros!
- 83 -
Que a inteireza da coisa não seja necessária para vigência do “um”
no procedimento de contagem não foi uma aquisição simples. A rigor,
podemos dizer que esse tipo de problemática só se encaminhou
adequadamente a partir de meados do século XIX. Para nós, os equívocos
em relação a essa história são preciosos porque, mais do que qualquer
outro episódio na história da ciência, ele ilustra o tipo de obstáculo que
nossa própria constituição subjetiva impõe à organização do saber.
57
Ver referências supra a esse respeito (Plutarco, Platão, Dieudonné, Boyer)
58
As nossas réguas são em geral graduadas em centímetros, tendo como referência
padrão o metro. E os compassos, além de fixarem uma certa distância estão referidos ao
transferidor, os quais são graduados em graus .
- 84 -
é a de que ele é discreto no sentido de, afinal de contas, sempre denotar
uma extensão, que nas demais extensões está contido um número (par ou
ímpar – outra mania dos gregos, essa de anotar a propriedade de um
número ser par ou impar) inteiro de vezes.
- 85 -
nova “unidade” de 1/15, pudemos determinar que 3/5 corresponde a nove
vezes essa unidade e 2/3, dez vezes. Nove e dez são números inteiros e,
assim, podemos reduzir a diferença entre as extensões dadas e determinar
quantas vezes uma certa “unidade”, ou medida comum, está contida em
cada uma, no nosso exemplo, nove e dez vezes respectivamente. A
interpretação geométrica para nosso exemplo é igualmente óbvia, mas vale
a pena ressaltá-la. O que é geometricamente falando achar o inverso do
MMC? É basicamente dividir o segmento de reta em pedaços menores até
alcançarmos numa extensão tal a medida comum, que nos possibilite
exprimir 3/5 como uma extensão que a contenha m vezes e 2/3 como uma
extensão que a contenha n vezes, sendo m e n números inteiro.
- 86 -
manuseamos com facilidade e expressemos a quantidade do reservatório a
partir do nosso recipiente. Poderíamos dizer algo como, por exemplo,
“nesse recipiente cabem 27 panelas de água”. Poderia ser o caso que o
resultado não fosse as 27 panelas, mas 27 panelas e meia. E nesse caso
minha “unidade” teria se modificado para meia panela e então meu
recipiente conteria 55 meias panelas. Quem, em sã consciência, negaria a
pertinência, a validade, dessa maneira de pensar?
- 87 -
se essa medida comum existisse, ela seria ao mesmo tempo um número par
e um número ímpar59.
59
A demonstração é através do teorema de Pitágoras. Supomos um quadrado cujo
comprimento de seus lados é igual a 1, isto é, à unidade. Desejamos saber a razão entre
o lado do quadrado e sua diagonal. Pelo teorema chego à expressão (m/n)2=2. Logo
m2=2n2 caso em que m é um número par, já que o quadrado de um número par é par.
Nesse caso n tem que ser um número ímpar, já que a razão entre os dois segmentos tem
de ser expressa através de uma fração irredutível – uma fração em que numerador e
denominador são primos entre si. Mas não é esse o caso, n também é par – o que é um
absurdo, pois nesse caso a fração m/n, sendo seus dois termos pares, admitiria ainda pelo
menos uma redução. Com efeito, se m é par, convocamos sua metade k, m=2k.
Substituímos então na expressão utilizada mais acima e chegamos à expressão
(2k)2=2n2, que vem a ser igual a 4k2=2n2, ou seja, n2=2k2. Logo, n também é par.
- 88 -
menores, que podem assumir a função da unidade. É mais ou menos a
lógica da régua graduada.
60
Há também essa característica, que não discutiremos aqui, que é o fato de a régua
graduada sempre manter uma referência escalar às ordens de grandeza relativas à nossa
base numérica Assim, no caso do padrão metro, estabelecemos escalas em função da
base numérica decimal (1/1000, 1/100, 1/10, 1, 10, 100, 1000).
- 89 -
razão de seu enquadramento teórico adequado em relação ao contínuo e ao
movimento.
- 90 -
são geométricos61. Passamos de uma outra e, com isso, alimentamos a
suposição de que tanto faz raciocinarmos de uma maneira “aritmética” ou
de uma maneira “geométrica”, pois ambas as maneiras são equivalentes.
Não são. E isso é um fato surpreendente. Entendamos por quê.
61
Sobre esse ponto ver o desenvolvimento extremamente interessante para nós,
psicanalistas, de Poincaré (1913, p. 27-40), “A Intuição e a Lógica nas matemáticas”.
- 91 -
facilmente manipuláveis, uma vez dada a mecânica operatória com os
números decimais, tais como os conhecemos hoje. Já para representá-los
geometricamente simplesmente temos de enfrentar uma questão metafísica
com ... Platão!
- 92 -
modo. É muito mais simples fazer uma subtração, uma multiplicação
através dos tradicionais algoritmos que aprendemos na escola do que com
régua e compasso!
- 93 -
fato a que temos aludido: o da unidade poder ser recuada tanto quanto
queiramos, quando operamos com frações.
62
A prova é a seguinte. Como os números racionais são escritos como uma relação entre
inteiros, podemos representá-los como o produto cartesiano de N X N. Dispomos esse
produto de uma determinada maneira. A prova é completada quando exibimos uma
maneira de contar os pares (ni, nj), exaustivamente, isto é, quando apresentamos uma
maneira de associar a cada par um número natural.
63
Isso também é provado por Cantor. Ele prova que nem todo conjunto infinito é
enumerável, isto é, é passível de a cada elemento seu ser associado um número natural.
Ele prova que o intervalo unitário [0, 1] não é enumerável. Com isso ele demonstra a
existência de um conjunto que não pode ser pensado a partir da enumerabilidade.
- 94 -
utilizarmos para determinados fins. Cantor provou, como dissemos, que
esses conjuntos todos têm o mesmo tamanho, isto é, correspondem à
seqüência infinita dos números Naturais. Tal fato lhe permitiu classificar
esses números sob uma mesma categoria, aquela cujo tipo de infinito é
correlativa à seqüência dos números Naturais. Essas classes numéricas
(Naturais, Inteiros e Racionais) possuem todas a mesma cardinalidade, isto
é, são todas do mesmo tamanho – são do tamanho da classe dos números
naturais – e por isso são ditas possuírem a cardinalidade64 À0 (leia-se aleph
zero). Esses conjuntos e todos aqueles que possuem a cardinalidade são
ditos conjunto enumeráveis, isto é, são conjuntos que são identificáveis à
seqüência dos Naturais. Nesta, a unidade é representada em termos de uma
extensão positiva limitada, isto é, discreta, passível de ser contada,
associada univocamente à seqüência dos naturais.
64
Cardinalidade é o termo que denota o tamanho de um conjunto.
65
Esses números são os números reais e a cardinalidade deles é simbolizada por c. Daí
temos a famosa hipótese do contínuo formulada por Cantor. Ele apoiava a idéia que não
existe nenhum conjunto cuja cardinalidade tenha um valor intermediário situado entre a
cardinalidade dos naturais e a dos reais, isto é, entre À0 e c.
- 95 -
Aritmética e Geometria: Algumas Diferenças Fundamentais. A
Escritura
- 96 -
maneira que aprendemos na escola, que, como vimos, não é errada, mas
que escamoteia o fato de que o semântico, o intuitivo, é, nessa situação,
completamente subordinado ao manejo sintático. Esse manejo é mais ou
menos o seguinte: numa expressão posso substituir os sinais “2 + 2”, pelo
sinal “4”. Nesse tempo da operação são completamente dispensáveis os
significados de “2”, “+”, “=” e “4”. São sinais, e o que importa são as
regras que regem suas concatenações. Vamos ao inferno infantil no que diz
respeito à matemática – por que tivemos de decorar a tabuada? Pela razão
exposta acima.
- 97 -
verificações que podemos fazer e que o envolvem. Então, retomando nossa
citação a respeito da tabuada, por que decoramos a tabuada de 1 a 10 para a
soma e a multiplicação? Porque dez é o número de nossa base de
numeração.
- 98 -
9) e damos o desconto relativo a ele ultrapassar a ordem de grandeza da
dezena – o “vai um” – quando estivermos a operar com a parcela seguinte,
a que contém apenas o algarismo “1”, relativo ao “19”. Desta forma,
podemos nos aperceber como, com um conjunto finito de elementos e
umas poucas regras, podemos manejar um domínio indefinido e muito
amplo de números.
- 99 -
O passo de Descartes foi precisamente nessa direção. Ele obteve
êxito, como diz Jean Dieudonné, em “traduzir todo problema de geometria
plana em um problema de álgebra equivalente” (1987, p. 66). Esse passo
significa uma modificação fundamental no modo de operar. Daí para
frente, não mais as operações com régua e compasso, mas escrituras nas
quais se expressam, se fixam algoritmos de cálculos, cuja origem é indiana
e não grega66. A aritmética e a álgebra comandam os próximos avanços da
matemática. É importante transmitirmos o que está em jogo de uma
maneira muito concreta nesse passo. Por exemplo, toda essa estenografia
meticulosa que associamos à matemática simplesmente não existia. Ela
começou a ser implementada e desenvolvida nessa época. E foi justamente,
Descartes um dos seus construtores principais e isso não apenas num
sentido concreto, porque ele elaborou algumas das ferramentas mais
fundamentais de que dispomos hoje, mas também porque ele formulou os
princípios básicos para o desenvolvimento do novo cenário. O mundo
moderno não poderia existir não fossem esses desenvolvimentos.
66
Os historiadores mencionam o fato de que essas técnicas foram também
desenvolvidas pelos gregos e chegaram a florescer no Helenismo. Mas essas técnicas se
perderam para nós, restando delas uns poucos manuscritos. Quando no século XVII a
matemática toma um novo impulso, este se faz com elementos que chegaram até nós via
os árabes. O próprio Jean Dieudonné comenta esse aspecto em um parágrafo que já
citamos em parte (1987, p. 54).
- 100 -
Essa coisa fabulosa que, segundo muitos, caracteriza nosso tempo –
o computador. Trata-se de uma máquina, que, do ponto vista teórico, foi
“inventada” ainda na primeira metade de nosso século. O que assistimos
hoje é muito mais efeito da ciência dos materiais, cujo êxito em
miniaturizar os circuitos eletrônicos viabilizou, do ponto de vista físico,
algo já existente em seus princípios fundamentais do ponto de vista teórico.
O computador é uma máquina estritamente sintática, no sentido de que
descrevemos acima quando examinamos a maneira como fazemos contas.
De fato ele faz pouquíssimas coisas, ele somente maneja seqüências de
caracteres, reescreve seqüências de caracteres ou sinais a partir de outras
seqüências, apaga seqüências, etc. Isso é quase inacreditável para um leigo,
mas um computador sequer sabe somar! Somar, no sentido dessa operação
que fazemos orientados semanticamente, é alguma coisa que o computador
sem dúvida “desconhece” – se é que podemos falar em ele conhecer ou
desconhecer alguma coisa. O que ele faz, e com uma rapidez
impressionante, são aquelas substituições de caracteres por caracteres já
descritas acima quando discorremos sobre a operação de somar. É
importante mencionar, mesmo que superficialmente, como será
inevitavelmente o caso aqui, o alcance prático dessa forma de operar.
- 101 -
está muito distante da concretude, como há algumas poucas décadas
passadas era o padrão ouro. O lastro dessas operações todas é, hoje em dia,
alguma coisa vaga, “complexa”, que gira em torno da produtividade, do
comércio, enfim, das trocas em vários níveis e que são aferidas em termos,
mais uma vez, sintáticos, isto é, contas e mais contas, isto é, expressões
numéricas e mais expressões numéricas, cuja relação com os processos
reais é extremamente complexa.
A Noção de Corte
Supomos uma reta, isto é, estamos diante de algo que excita em nós
a idéia de continuidade. Tomemos um ponto P qualquer sobre ela. É
imediata a compreensão que, em relação a esse ponto, podemos definir
uma classe de pontos A, situados à esquerda, e uma outra, B, de pontos
situados à direita de P. O ponto P pode ser colocado numa classe ou noutra
arbitrariamente. Temos um corte quando repartimos uma reta em duas
classes de pontos tal que: 1) nenhum ponto escapa à repartição e 2) todo
ponto da classe A está à esquerda de todo o ponto da classe B. Desse
desenvolvimento é imediato que qualquer ponto na reta produz nela um
corte, isto é, pode produzir uma situação como a que acabamos de
estabelecer. Temos então as quatro seguintes possibilidades quanto ao
corte: 1) a existência de um máximo para a secção esquerda e um mínimo
para a direita; 2) um máximo para a secção esquerda e a ausência de
mínimo para a direita; 3) a ausência de máximo para a secção esquerda e a
existência de um mínimo para a secção direita e, finalmente; 4) a ausência
tanto de máximo quanto de mínimo para as respectivas secções inferiores e
- 102 -
superiores67. A partir da configuração dessa situação apresentamos o
seguinte resumo do texto de Dedekind:
... nós atribuímos à reta a qualidade de ser completa, sem lacunas, ou seja,
contínua. Mas esta continuidade, em que consiste? A resposta a esta
pergunta deve compreender em si tudo, e somente ela permitirá
desenvolver em bases científicas o estudo de todos os campos contínuos.
Naturalmente, não se consegue nada quando, para explicar a continuidade,
se fala, de um modo vago, de uma conexão ininterrupta nas suas partes
mais pequenas; o que se procura é formular uma propriedade
característica e precisa da continuidade que possa servir de base a
deduções verdadeiras e próprias.
Pensei nisso sem resultado por muito tempo mas, finalmente achei o que
procurava. O meu resultado será talvez julgado, por várias pessoas, de
vários modos mas a maior parte, creio, será concorde em considerá-la
bastante banal. Consiste ela na consideração seguinte:
Como já disse, creio não errar admitindo que toda a gente reconhecerá
imediatamente a exatidão do princípio enunciado. A maior parte dos meus
leitores terá uma grande desilusão ao aprender que é esta banalidade que
deve revelar o mistério da continuidade. A este propósito escrevo o que
segue. Que cada um ache o princípio enunciado tão evidente e tão
concordante com a sua própria representação da reta, isso satisfaz-me ao
máximo grau, porque nem a mim nem a ninguém é possível dar deste
princípio uma demonstração qualquer. A propriedade da reta expressa por
este princípio não é mais que um axioma, e é sob a forma deste axioma
que nós pensamos a continuidade da reta, que reconhecemos à reta a sua
continuidade. (DEDEKIND, 1963, [1901], pps. 10-12).
- 103 -
reta compreendidos entre os pontos nela associados a dois números que se
sucedem. Assim, por exemplo, os pontos na reta compreendidos entre os
pontos associados ao número 1 e ao número 2 não são discriminados pelos
números naturais. Um corte na reta sob a égide dos números naturais
realiza, então, a primeira possibilidade. Cortamos, por exemplo, a reta no
ponto 1. Se esse ponto for alocado à esquerda, isto é, se ele for o máximo
desse segmento, o número 2 será necessariamente o mínimo do segmento à
direita – e todos os pontos entre 1 e 2 se “perdem”. Na verdade, da
perspectiva dos números naturais não existem pontos entre dois termos
consecutivos. Se o número 1 pertencer ao segmento à direita, isto é, se ele
for o mínimo desse segmento, o número 0 será necessariamente o máximo
do segmento à esquerda, que, no caso dos números naturais, será
constituído apenas desse único ponto associado ao número 0. Em relação
aos números racionais, realizam-se as possibilidades 2 e 3. No caso desse
conjunto, ao que parece, encontramos uma correspondência com a reta que
satura todos os seus pontos, isto é, cada número racional corresponde, na
reta, a um ponto e vice-versa. Não ocorre em relação a esses números,
como na seqüência dos números naturais, o caso em que os pontos entre os
pontos que correspondem a dois números consecutivos da seqüência ficam
a descoberto. Em relação aos racionais, em nossa reta delimitamos duas
classes de pontos de tal sorte, que todo ponto pertencente à classe A
encontra-se à esquerda de todo ponto pertencente à classe B. Em termos de
máximos e mínimos e, de acordo com o axioma de Dedekind – apenas um
ponto responde pelo corte. Assim, temos que, dado um certo corte num
ponto determinado, na suposição de que esse ponto é o máximo do
segmento a esquerda, da classe A. Nesse caso, o segmento à direita, a
classe de pontos B não possui mínimo. Temos então aí a realização da
possibilidade 2. A situação contrária é a realização da possibilidade 3,
aquela em que o segmento à esquerda não possui máximo, já que o ponto
que responde pelo corte está alocado à direita, na classe B, que, nesse caso,
então possui mínimo.
- 104 -
Vamos considerar agora o ponto que corresponderia ao número
2 , isto é, vamos considerar a possibilidade 4. Colocamos à esquerda
desse ponto todos os racionais cujo quadrado é menor que 2 (m2 < 2), e à
direita, todos os racionais cujo quadrado é maior que 2 (n2 > 2). Qualquer
que seja o número racional escolhido, podemos situar o ponto que lhe
corresponde do lado direito ou esquerdo da reta, ou na classe A’ ou B’ dos
racionais por ele repartido, isto é, ou m2 < 2, ou n2 > 2. Só não podemos
arbitrar em qual semi-reta ou classe devemos localizar o ponto
correspondente ao número 2 , porque ... porque ele não “existe”! Ao
número 2 não corresponde nenhum ponto da reta, mesmo a título de que
a cada número racional corresponde um, e somente um, ponto. Nesse caso
temos uma lacuna. Vejamos o que ocorreu em termos de máximos e
mínimos. Podemos gerar, em relação ao número que corresponderia ao
2 , uma infinidade de números racionais cada vez mais próximos do que
seria esse número (a classe A dos m2 < 2), podemos também gerar uma
infinidade de números racionais maiores do 2 infinitamente próximos do
que seria esse número (a classe dos n2 > 2). Mas em ambas situações não
teríamos nem um máximo nem um mínimo para as classes interessadas A,
e B nessa exposição. Russel distingue entre termos máximos, mínimos e
limites inferiores e superiores de uma seqüência, para articular a idéia de
fronteira. Limite superior ou inferior abarcaria a situação em que uma dada
classe não possuiria um termo máximo ou um termo mínimo, mas que um
termo exterior a ela a limitaria como que de fora, pelo exterior. E máximo
e mínimo corresponderia àquelas classes que são limitadas por seus termos
extremos. A primeira situação pode ser ilustrada intuitivamente através de
uma substância líquida, um copo de água, por exemplo, onde o que limita a
expansão da água não pertence a ela própria, a água, pertence ao copo; o
próprio copo é, aliás, esse limite – a água é assim limitada em sua
expansão, de fora. A segunda situação pode ser ilustrada por todos aqueles
contextos cujo elemento limitante pertence à própria coisa. Exemplo: os
- 105 -
elementos maximais de nosso corpo seriam seus elementos mais
“exteriores”, isto é, a nossa pele. Ambas as situações produzem uma
fronteira. Diz Russel:
- 106 -
São pontos que contam mais por serem lacunas do que por serem a
positividade de uma extensão mínima localizada efetivamente na reta.
Russel não aprecia essa solução. Para ele, ela ainda é tributária de
uma concepção marcada pela “imaginação espacial”, isto é, segundo ele,
supôs-se
que as séries deviam ter limites nos casos em que parecia estranho não os
terem. Assim, percebendo não haver limite racional algum para as razões
cujos quadrados são menores do que 2, elas se permitiram “postular” um
limite irracional, que se destinava a preencher a lacuna de Dedekind. (...).
- 107 -
observava uma iteração infinita, alça-se essa infinitude ao estatuto de uma
coisa única e completa. Dedekind supõe que essa infinitude atualizou-se,
realizou-se em sua inteireza e a conta, por força dessa atualização,
comportou-se como se fosse uma entidade discernível. Ela não o é, mas ele
opera com ela como se ela o fosse. É esse fazer-de-conta de que ali, onde
vigorava uma iteração infinita, passasse a existir esse infinito que se
atualiza e, portanto, conta como uma coisa que Russel acha tributário da
imaginação espacial. E é com essa solução que ele não está de acordo. Ele
não concorda com ela sob o aspecto de que ela se suporta numa espécie de
ato de força – o axioma. Para ele, esse criacionismo, conforme ele expressa
na citação, não é muito honesto. Ele retomará a seguir em seu texto a essas
concepções de Dedekind numa direção, segundo ele próprio, construtiva
(RUSSEL, 1901/1981, p. 75).
Sempre que tivermos de lidar com um corte (A1, A2) produzido por um
número não racional, nós criamos um novo, um número irracional a, o
qual consideramos completamente definido por este corte (A1, A2); nós
diremos que o número a corresponde a este corte ou que ele produz esse
corte. (Dedekind, 1963, [1901], pp.15, grifo nosso).
- 108 -
pontos numa reta. Desse ponto de vista, o sinal 2 indica que podemos
reescrevê-lo como uma fila de letras desde que procedamos de uma
determinada maneira: escrevemos o 1, após o qual colocamos uma vírgula,
depois escrevemos o sinal 4, depois o sinal 1, e assim indefinidamente
( 2 = 1,41...). No caso em apreço, o 2 , nossa reescrita não termina
nunca. A situação é diferente, por exemplo, quando temos o sinal 4 , em
que, obedecendo as mesmas regras estipuladas a respeito do sinal 2,
reescrevemo-lo apenas com um sinal, o algarismo 2. No primeiro caso
temos uma expressão interminável – infinita – e no segundo, uma
expressão finita e mínima, o algarismo 2 ( 4 = 2). É esse caráter
mecânico da escrita que associamos ao algébrico. É um fato, no entanto,
que não lidamos com a escrita desse modo, como uma mera mecânica
destituída de sentido – essa maneira de operar com os sinais seria aquela
que os computadores trabalham. Nós atribuímos significações à escrita, de
forma que ela nunca é vazia e destituída de sentido ou significado. É aí que
entra nossa reta. Ela introduz essa dimensão semântica, ela traz consigo
uma certa intuição de extensão e continuidade. De maneira que, ao
trabalharmos com os números, até mesmo obedecendo cegamente seu
mecanismo sintático, não temos a impressão de estarmos presos a uma
sintaxe; ao contrário, temos a impressão de estarmos aproximando-nos ou
afastando-nos de pontos, de estarmos a percorrer distâncias. Tomemos
como exemplo a seqüência 1, 1/2, 1/3, 1/4 , 1/5 ..., temos a impressão,
conforme vão surgindo os termos, que cada vez mais nos aproximamos do
0. Isto porque interpretamos a seqüência como que colada, mesclada, a
uma reta. Cada termo numérico está associado a um ponto na reta e esta,
por sua vez, sugere, torna sensível, uma certa ordem e uma certa direção
(para o 0) implícita na seqüência. Mas de fato, poderíamos escrever a
seqüência em pauta prescindindo completamente da idéia de que ela se
aproxima ou se afasta de 0. Basta observarmos que cada termo seu é
escrito com o algarismo 1 constando na parte superior sobre uma barra e,
- 109 -
sob ela, a série natural dos números 1, 2, 3,... .Temos então: 1, 1/2, 1/3,
...1/n+1, 1/n+2, ... . Ou seja, sabemos como escrever cada termo da
seqüência a partir de qualquer outro, vale dizer, possuímos uma estipulação
estrita de determinada regra que gera a seqüência de maneira consistente.
Além do mais, quando associamos essa seqüência com a reta, isto é, com
algo que nos faz compreendê-la no contexto de uma intuição de nos
afastarmos ou nos aproximarmos de algo, no caso, o ponto associado ao 0,
ela de fato corresponde univocamente às divisões na reta. Assim, o
primeiro termo corresponde ao segmento tomado em sua totalidade, ele
corresponde ao 1, à unidade. O segundo termo corresponde à metade, a
divisão da unidade em dois segmentos iguais. O terceiro termo
corresponde à divisão do segmento unitário em três partes iguais, e assim
por diante. Estamos na situação em que o sintático se casa perfeitamente
com o semântico, isto é, cada termo gerado sintaticamente corresponde a
uma certa divisão da reta em tantas partes de tamanho igual e vice-versa.
Portanto, para qualquer divisão da reta em tantas partes iguais,
encontramos um, e apenas um, termo gerado sintaticamente que lhe
corresponde. O casamento é tão perfeito que chega a ser difícil distinguir
entre, de um lado, nossa estipulação literal e sintática, nossa regra de
escrever essa seqüência de frações e, de outro, esse processo de dividir
uma reta em tantas partes iguais de acordo com métodos geométricos.
Estes dizem respeito ao uso da régua e do compasso associado ao fato de
que estes movimentos – cortar, medir, comparar – fornecem-nos uma certa
intuição do que é dividir (cortar uma coisa em pedaços, no caso um
segmento de reta), do que é igual (um pedaço é igual a outro quando se
recobrem perfeitamente e são diferentes quando isso não ocorre), e de
ordem (os pedaços diferentes estão ordenados do maior para o menor).
- 110 -
semântica. Isto é, trata-se de duas ordens que se relacionam mas que nem
sempre andam juntas. É esse fato que está envolvido na noção de corte de
Dedekind.
- 111 -
números racionais não deixa de se fazer acompanhar de uma certa intuição
que gira em torno da idéia da divisão de uma dada extensão. Temos
insistido nisso, por exemplo, 2/3 significa que dividimos uma dada
extensão em três partes iguais e dessas três partes retemos duas delas, ou
seja, consideramos dois terços, tendo cada um terço uma função análoga à
da unidade. Mas podemos converter essa forma de expressão em sua
expressão decimal, no caso de nosso exemplo, 2/3, podemos expressá-lo
como a dízima periódica 0,666... . A expressão decimal realiza
efetivamente o algoritmo de divisão e expressa o número como uma fila
infinita do algarismo 6 que se coloca após um 0 seguido de uma vírgula.
Essa representação cria imediatamente um embaraço, enquanto a primeira
forma não. Essa útima expressão, o 0,666..., refere-se a que ponto na reta?
Isto é, como representar na reta um número que não termina, um número
constituído de uma infinidade de 6s? Felizmente, somos socorridos a tempo
porque sempre que estamos diante de um número infinito desse tipo
podemos reescrevê-lo como um número finito pelo primeiro método, isto
é, como uma fração própria – e através desta relacioná-lo univocamente a
um ponto ou a uma extensão da reta.
- 112 -
As dízimas são números “infinitos”, mas, como aprendemos no
primário, por meio de uma regra, podemos expressá-los em termos de
frações, podendo relacioná-las univocamente à reta. O número irracional, a
respeito dessas situações, representa uma circunstância inusitada. É que a
expressão , como a barra nos números racionais, indica uma operação
(a divisão), no caso, a de radiciação, e ela deveria nos fornecer a tradução
do 2 em termos de sua expressão decimal. De fato ela faz, mas não nos
fornece uma expressão decimal com um número finito de termos,
tampouco nos fornece uma dízima – uma seqüência de algarismos que se
repetem periodicamente –, o que nos possibilitaria relacioná-lo a uma dada
fração própria. Ele libera uma seqüência de algoritmos na qual só podemos
conhecer o n-ésimo termo se realizarmos efetivamente a operação. E nesse
caso, essa expressão infinita não pode ser localizada na reta porque, como
ela não termina, e, do fato de não termos meios de traduzi-la numa
expressão racional, finita, ela não tem, então, onde “cair” na reta, cair em
um lugar só seu, único e específico.
Mas, para nossos propósitos aqui vamos nos deter apenas no caráter
infinito dos irracionais, de eles não possuírem uma expressão finita. Ora,
- 113 -
qual é o estatuto desses números “infinitos”? Não é o caso de eles
quebrarem a correspondência unívoca em relação à reta. Porque esse
número infinito gerado pela operação corresponde, na reta, a um processo
no qual também temos de dividi-la infinitamente. Assim, essa
correspondência é mantida de forma negativa. Quer dizer, cada ciclo da
operação sintática, que engendra um novo termo, corresponde a um
processo também iterativo no campo da geometria. Também nesse campo,
uma seqüência infinita de gestos – as medições com régua e compasso –
coloca-se como uma exigência necessária. As duas ordens – aritmética e
geométrica – ao invés de produzirem uma positividade limitada,
reproduzem a cada ciclo da operação a necessidade de mais um ciclo,
indefinidamente.
- 114 -
postulação de Dedekind situa a noção de número, em função do que
sustenta sua semântica usual, na exigência de expressar algo “inteiro”, algo
que é, algo que, por ser, é discernível então na completude: o número
irracional completa a reta real.
- 115 -
que não possuem interpretação, semântica, em relação ao, e no, concreto
imediato e que exigem um mundo virtual, onde coisas impossíveis ou
improváveis estão supostamente atualizadas, realizadas68.
68
Outros exemplos importantes dessa “criatividade” matemática encontramos em
relação aos números complexos e à geometria não-euclidiana. Ver o artigo de A. D.
Aleksandrov (1956/1982, vol III, p. 123-227), “Geometrias Não-Euclidianas”.
- 116 -
operação que visa detectar a medida comum. Com a invenção implícita no
postulado de Dedekind reconhecemos o desmedido – aquilo que não se
deixa apanhar e que, a cada tentativa de se apanhá-lo, reitera a exigência de
mais uma etapa, de mais um esforço de busca. O desmedido até um certo
ponto é conservado como tal na noção de infinito. Mas, ao positivarmos os
números irracionais, atualizamos o infinito e podemos então discriminar
entre o vários números “infinitos”, como este ou aquele número real, uma
entidade em acordo com princípios algébricos fundamentais, com as quais
podemos lidar como se fossem coisas positivas e inteiras.
- 117 -
CAPÍTULO V
Freud e o Corte
- 118 -
Tomemos, por exemplo, o conceito de massa e o consideremos sob
um ponto de vista fundamental. Façamos um exercício de imaginação e
perguntemos o que autorizaria legitimamente um físico a fazer uma
formulação que associa, por exemplo, o número 100u (cem unidades de
uma medida de massa qualquer) às coisas que estão no meu quarto. Como
a água que está no copo, os livros na estante, o colchão, o armário, enfim,
como todas essas diversas coisas podem ser homogeneizadas e associadas
univocamente ao número 100u? Observemos que a resposta ginasiana de
que as coisas, sendo corpos, isto é, poções ou quantidades limitadas de
matéria, pertencentes a um mesmo fundo comum, podem por isso ser
somadas não é suficiente para responder a pergunta.
- 119 -
De saída, Freud tem uma dificuldade fundamental, uma dificuldade
que é a de todos nós e que foi também observada na história. É a
dificuldade em admitir os irracionais, isto é, a dificuldade em ultrapassar a
exigência de estarmos sempre referidos a entidades positivamente extensas
e finitas. É daí que ele parte. E isso é muito curioso, porque poderíamos
supor que, ao adotar a mecânica de Newton como modelo, ainda no
Projeto... (1895b), ele estaria dessa forma comprando o pacote inteiro. Na
medida em que a mecânica pressupõe, num nível fundamental, o corpo dos
números reais, sem o saber, Freud estaria assumindo as implicações dessa
importação. Mas não é bem esse o caso. Na verdade, ele terá muita
dificuldade em situar a psicanálise em relação à interrogação implícita na
idéia de número real. Por outro lado, nossa tese justamente é a de que a
psicanálise surge no exato momento em que Freud toma a posição em
relação a essa interrogação, de incorporá-la sob um certo aspecto.
- 120 -
Qual é a conseqüência dessa interrupção? É simples, aquilo que
deveria escoar por uma via normal, aquela que seria percorrida caso não
tivesse ocorrido a interrupção, é escoado por uma outra via. Esse caminho
alternativo de escoamento Freud nomeia de processo conversivo, ou
conversão simplesmente. No caso da histeria e da conversão – os dois
conceitos se implicam mutuamente – esse escoamento aternativo é na
direção do corpo, mais precisamente das “enervações corporais”, ou ainda,
dos representantes psíquicos do corpo – eis, então, o sintoma histérico.
- 121 -
Sabemos que Freud não reage do mesmo lugar em que a histérica o
coloca, enquanto representante do Outro, em derrisão. Ele toma a sério o
queixume histérico, deixa-se levar pela deriva que ele propõe. E nesse
tempo, ele o toma como um fato natural, como evento a explicar. Coisa
curiosa, é muitos defensores e críticos de Freud sublinharem essa ontologia
naturalizante que ele abraça – uns a elogiam, outros a detratam – sendo ela
em si mesma, na verdade, um fato secundário, sem muita importância
intrínseca para a psicanálise. Mais espantoso ainda é que poucos tenham se
detido no fato de que, com esse categorial, limitado ou não, pouco importa,
Freud,através da psicanálise, tenha operado um curioso corte e uma
passagem de nível em relação a determinadas ordens de fenômenos: o de
situar o campo da significância, campo articulado pela linguagem, como
concernindo ao real e não apenas à representação do real.
69
Freud inicia seu livro Mal-Estar na Civilização de 1930 de uma forma que sugere sua
posição em relação ao que estamos tratando. Ele se refere a seu amigo Romain Rolland
a quem enviou seu livro Futuro de uma Ilusão e de quem ele recebeu uma resposta que
justamente ele está a comentar no contexto que citamos a seguir. “Acredita ele [Romain
Rolland] que uma pessoa, embora rejeite toda crença e toda ilusão, pode corretamente
chamar-se a si mesma de religiosa com fundamento apenas nesse sentimento
oceânico.As opiniões expressas por esse amigo que tanto respeito, e que outrora já
- 122 -
elementos que podem ser arranjados, articulados, nos termos de uma
sintaxe?
louvara a magia da ilusão num poema, causaram-me não pequena dificuldade. Não
consigo descobrir em mim esse sentimento ‘oceânico’. Não é fácil lidar cientificamente
com sentimentos. Pode-se tentar descrever os seus sinais fisiológicos. Onde isso não é
possível — e temo que também o sentimento oceânico desafie esse tipo de
caracterização —, nada resta senão cair no conteúdo ideacional que, de forma mais
imediata, está associado ao sentimento.”
70
Freud toma energia como modelo de continuidade; agora, fenomenologicamente ele
supõe a continuidade em relação a entes psicológicos tais como afetos e sentimentos –
como mostra a nota acima. A atitude vivamente negativa de Freud em relação aos
sentimentos deve-se sobretudo a que ele não admite, por princípio, que possamos
manejar o contínuo diretamente, sem a mediação do discreto, isto é do ideacional – para
ele, de fato, aquele que crê manejar diretamente com esses entes deve ser reconhecido
como místico. Uma outra questão é de se saber da propriedade, da validade, em ele
assimilar esses fenômenos psicológicos à categoria do contínuo. O que o autoriza a isso?
Qual é a evidência que ele tem para justificar minimamente essa assimilação?
- 123 -
aquele que traduz as manifestações corporais conversivas histéricas
(paralisias, analgesias, anestesias, dores, alucinações, etc.). O sintoma
acontece porque a energia é investida numa certa idéia que não pode mais
participar do trajeto pelo qual ela deve escoar. Em razão do trânsito
impedido, essa energia tem que encontrar uma via alternativa de
escoamento. Será essa via alternativa a que estará em jogo na conversão
histérica.
- 124 -
temos uma configuração a que podemos recorrer. Nossa tendência é pensar
que a distribuição da água será aleatória. Embora saibamos, por
experiência, que a água tende a dirigir-se para baixo, e, por essa razão, ela
sempre corre pelo caminho que a conduza para baixo mais facilmente.
Numa área muito grande, as possibilidades de ela se espalhar e correr são
tantas, em função das irregularidades, que preferimos considerar que sua
distribuição pela superfície da montanha é aleatória. Mas não é.
71
A tradução inglesa privilegia o caráter mais “curto” das geodésicas, daí o termo
facilitação. Já Lacan privilegiou o aspecto da conectividade, daí ele preferir as trilhas.
72
“Curto” não remete necessariamente à distância tal como a entendemos usualmente.
Se a energia “escolhe” um caminho, e não outro, por exemplo, porque num, a barreira
de contato é menos resistente à passagem de energia do que noutro neurônio. Essa maior
ou menor resistência à passagem de energia das barreiras de contato pode ser entendida,
- 125 -
área, para a passagem de energia (que Freud concebe como uma espécie de
fluido) que incide localmente em áreas determinadas. A passagem de um
fluxo de energia privilegia os caminhos mais “curtos”.
- 126 -
Vejamos então o que Freud construiu com seus pretendidos
conceitos “neuro-fisiológicos”. Ele havia definido logo na parte inicial do
Projeto, quando trata do problema da qualidade, o nível do contínuo, ao
situar a realidade física, o mundo “exterior”, como massas em
movimento74. Isso é o contínuo. Não é simplesmente o contínuo da nossa
intuição em relação aos fenômenos físicos. É o contínuo físico (nossa
intuição do contínuo) enquanto já mediatizado pelo conceito de número
real, isto é, trata-se do contínuo físico processado, configurado, suportado,
pelo contínuo matemático (o contínuo “aritmetizado”)75. É claro que a
expressão “massas em movimento” remete a Newton. No entanto, a única
coisa que importa no “fisicalismo” de Freud, é o fato de, através da física,
ele ter introduzido no campo psicanalítico as estruturas matemáticas
mínimas, como esquemas de pensamento, para articulá-lo. O que a rede
introduz? Ela introduz uma série articulada de cortes, de separações, no
contínuo. E esses cortes se dão a vários níveis. Façamos um inventário
deles.
- 127 -
O fluxo continuará a existir, mas agora ele se limita aos canais, às
conexões prescritas pela rede. Se essas “massas em movimento” a cada
instante saturam o espaço todo no qual elas estão contidas, com a rede elas
cedem espaço justamente para a rede; as “massas em movimento”, ao
atingirem o aparelho terão que caber, terão de se reduzir aos canais
prescritos por ela. Finalmente, as conexões neurônicas são impermeáveis
relativamente à passagem de energia. Isso quer dizer que a energia não se
distribuirá homogeneamente no interior da rede, no sentido de, a cada
trilha, encontrarmos a mesma quantidade de energia. Existem diferenças
quanto à permeabilidade, à passagem da energia pelos neurônios –
justamente as ditas “barreiras de contato”. E o fato da energia se distribuir
desigualmente pela rede, “escolhendo” esta ou aquela via, e não essa ou
aquela outra, corresponde justamente à nossa organização de memória – é
por esse razão que explicitamos o conceito de geodésica anteriormente.
77
É claro que “energia” em Freud está referida à narrativa dos pacientes. “Energia”,
“contínuo” são, num certo sentido, essa narrativa ela própria. É essa narrativa, louca,
estranha, implícita nas formações do inconsciente – sonhos, atos falhos, esquecimentos,
etc. É também a loucura, a desordem, dos sintomas e das vidas dos sujeitos tais como
são narradas e observadas na situação analítica. É essa “maçaroca” – esse termo é de
- 128 -
Freud ao propor a rede, permite que abordemos essas massas através da
interação delas com a rede. Ele considera, no momento em que escreve o
Projeto..., que a subjetividade, nada mais é do que essa interação mesma.
São de Freud as seguintes palavras, exatamente nesse sentido no Projeto...:
Marx quando ele caracteriza o capital como trabalho acumulado (MARX) – que para
Freud é o contínuo enquanto dado, análogo ao contínuo físico tal como o caracteriza
Poincaré. Esse contínuo, como tal é inabordável porque ele trunca a possibilidade de
discernimento – como o contínuo físico descrito por Poincaré. A rede neurônica, nada
mais é do que a “matemática” necessária para dotar esse contínuo de alguma
possibilidade de ordenação para que ele possa ser abordado conceitualmente.
- 129 -
O acréscimo excessivo tem uma qualidade “penosa” – o que é
postulado, que se impõe como tal por deter uma certa evidência. Daí ser
denominado de traumático, porque é assim que os neurônios ω – aqueles
que traduzem períodos em qualidades – interpretam os acréscimos: a partir
de um certo limite, os acréscimos são experimentados como desprazer. É
importante sublinhar, no entanto, que não é a dor ou desprazer em si
mesmo enquanto qualidades, que determina qualquer coisa. A
determinação está situada inteiramente do lado da interação entre a rede e o
acréscimo energético – a dor ou o desprazer é apenas a qualidade refletida
no sistema ω desses processos.
- 130 -
Mas, retornando à problemática da defesa e da dor, como evitar que
a energia escoe por um caminho “mais fácil”, uma geodésica? Se a
experiência traumática é um acréscimo brusco de energia no sistema que o
ameaça com um colapso e se esse colapso não ocorre, isso significa que o
sistema foi capaz de processar esse excesso, que ele cavou ou estabeleceu
vias alternativas. Nesse caso, a energia excessiva terá escoado pelas vias
alternativas e o excesso terá sido uma condição “criativa”, já que, para
escoar, ele determinou inevitavelmente a abertura de novas trilhas, novas
geodésicas. E uma vez passada a experiência, não haveria nenhuma razão
para que sua lembrança produzisse qualquer fato aversivo. Ao contrário, a
lembrança do evento traumático sendo uma trilha, ou um conjunto delas,
passada a experiência do trauma criou novas possibilidades de drenagem e,
sendo assim, condições para que o evento, ocorrendo novamente na
realidade, não se produza mais com as propriedades penosas de um trauma.
Cabe então a pergunta: por que a lembrança do trauma deveria ser, ela
mesma, penosa? Isso não é um fato óbvio dentro do modelo proposto por
Freud da rede e de seus princípios de funcionamento. Pelo contrário, de
acordo com esses princípios, a energia deveria seguir justamente o
caminho da “memória traumática”, porque ele corresponde à trilha ou ao
conjunto delas que são os mais curtos, eles são as geodésicas que estão
concernidas naquela região da rede.
- 131 -
Impõe-se então a conclusão de que a dor78 não é a mesma coisa que
o desprazer. Assim, deve existir alguma coisa a mais no evento traumático
transmitida para sua lembrança, que faz com que sua reprodução psíquica
ou seja evitada ou, no casos em que isso não é possível, a lembrança
produza um efeito quase tão penoso quanto a experiência real que lhe deu
origem. O desprazer, um acréscimo qualquer de energia, não produz
necessariamente por si só uma lembrança traumática – que provoca dor – e
não está, por isso, associado a qualquer situação especial. Ele pode estar
associado a um tipo especial de “satisfação”, aquele em jogo nos processos
alucinatórios. Tomemos como exemplo dessa situação o sedento no
deserto que alucina água por toda parte. E, após uma experiência dura e
penosa de sede, é raro que alguém adquira um “trauma” de água, no
sentido de, daí para frente, procurar evitar a lembrança de água ou sua
presença real.
78
É importante que o termo dor em Freud, especialmente no Projeto... e nos Estudos...
não sejam assimilados à idéia de dor física. Nesses textos dor está mais próximo da
noção de trauma psíquico. Quer dizer, a dor enquanto “afeto” que diz respeito ao real
“penoso” de uma experiência significativa (morte do pai, de um filho, um repúdio no
amor, etc.) e “existencial”. Nesse sentido a dor está mais próxima da angústia.
- 132 -
Não nos deteremos na solução de Freud referente à preservação da
coêrencia do modelo do “fisicalista” projeto. Reteremos aqui apenas o fato
de ele ter dito que a dor “possui uma qualidade particular, que faz com que
a reconheçamos junto ao desprazer” (1895b,. p. 365). Embora ligada ao
desprazer, a dor possui uma qualidade particular.
79
Exterior para Freud tanto pode ser o mundo exterior, quanto as fontes endógenas de
excitação. Ou seja, exterior quer dizer exterior ao sistema neuronal.
80
Esse é um ponto importantíssimo. Podemos dizer então que o objeto hostil é tanto
“exterior” quanto “interior”. Não há como separar sua incidência na realidade de sua
incidência na memória, como ocorre na prova de realidade em relação ao objeto de
satisfação, onde a alucinação se distingue da presença da coisa na realidade. Lacan vai
tirar muitas conseqüências desse fato. Toda a articulação que ele propõe no seminário
sobre a angústia (1962) entre, justamente, a angústia, o Estranho e o objeto a segue esse
encaminhamento.
- 133 -
incita, justamente, a ação específica que é a de afastá-lo do campo da
presença. A dor, sobretudo, mais do que o prazer, introduz a exigência de
que o sistema opere com um fator “extra-econômico”, um fator
“informacional”, aquele que distingue o desprazer gerado pela ausência do
objeto de satisfação do desprazer gerado pela presença do objeto hostil. Eis
aí o fator “extra-econômico” ou “extra-energético”, que está no fato de que
o que faz o objeto hostil, justamente a presença de algo ameaçador ou
estranho, não ser pura e simplesmente um acréscimo repentino da energia,
mas sua “qualidade” particular – sobre a qual, aliás, Freud não especifica
muito qual seja no Projeto....
81
Freud fala em “neurônios chaves”. As trilhas que representam o fato traumático estão
conectadas a esses neurônios, os quais têm a propriedade de liberarem um acréscimo de
energia quando ativados (1895b, p. 364 e segs).
- 134 -
trilha ou circuito delas, sem acarretar mais qualquer excesso acionado no
plano das lembranças. Eis assim, o “esquecimento histérico”, a energia que
investiria a trilha que é a lembrança do objeto hostil ou da situação
traumática se desvia dessa trilha e é escoada através da “enervação
corporal” – temos aí a conversão histérica.
82
Esse ponto também é importantíssimo. Por aí podemos ver como é apropriada a
proposta de Lacan de entender o texto do Projeto... como uma topologia, e mais
especificamente ainda como uma superfície. Na psicologia ingênua supomos que se algo
é desagradável basta que nos afastemos da coisa para que a condição desagradável
também desapareça. Freud nos mostra nesse trecho que independente do afeto –
agradável ou penoso – a conectividade com o objeto hostil está estabelecida. Vale dizer
a coisa hostil não é “solta”, “despregada”, do conjunto de inscrições que constituem o
sujeito, ao contrário, ela é conexa a esse conjunto de alguma maneira. É esse aspecto da
lembrança traumática que, alguns anos depois, na Interpretação dos Sonhos (1900), dirá
respeito à atração exercida pela idéia inconsciente em relação as idéias substitutivas.
Conferir também nos artigos metapsicológicos, especialmente no artigo sobre a
Repressão (1915).
- 135 -
enigmática a fonte mnemônica – a lembrança traumática – em relação a
qual ele é um caminho alternativo. E o signo por excelência dessa
lembrança, a qual o sintoma está remetido, é o sofrimento que vem
associado às suas manifestações. Se não houvesse sofrimento, signo da
presença do objeto hostil inscrita na lembrança da experiência traumática, a
estratégia substitutiva teria dado certo e a manobra defensiva teria tido
êxito.
Psicanálise e Cognição
83
Os propósitos terapêuticos se modificam conforme a determinação patógena seja
entendida como “afeto estrangulado” ou “idéia incompatível”. No primeiro caso, a
psicoterapia é entendida como promoção da ab-reação e recuperação da lembrança, isto
é, o recordar, e no segundo caso, somente a ab-reação e o recordar não são suficientes,
faz-se necessário um trabalho associativo suplementar, de elaboração, para tornar a
lembrança “compatível”. Já a idéia de que o conflito é irremovível, não há como
compatibilizá-lo, é a idéia mesmo de recalque primário, idéia que fundamenta o
conceito de inconsciente. E nesse caso, estamos no campo próprio da psicanálise e não
mais dos procedimentos estritamente psicoterapêuticos.
- 136 -
série de dificuldades, justamente para aplicar o conceito de corte. É o que
trabalharemos a seguir.
84
É curiosíssima a posição de Pierre Fédida a respeito desse ponto. Num debate com
Joëlle Proust, filósofa realista que trabalha no campo das ciências cognitivas, cuja a
questão era “A psicanálise já não fez seu tempo?”, Fédida responde coisas do tipo: “O
psicológico é puramente metafórico, os fenômenos essenciais são bioquímicos” (1999,
p.25).
- 137 -
etc., que articulam em termos topológicos e sintáticos (algébricos) as
diversas funções e subfunções. O expediente é um velho conhecido de nós,
psicanalistas, porque Freud foi um de seus eméritos promotores,
justamente com seu Projeto para uma Psicologia Científica. Nesse texto,
que, não sem razão, Freud não o publicou – somos nós psicanalistas e
historiadores que o agregamos ao conjunto dos textos que formulam a
teoria psicanalítica –, ele fez exatamente, num certo sentido, o que fazem
nossos psicólogos atualmente: propor “topologias”, esquemas de
conectividade, formulados visando uma referência neurológica ou outra
que assimila o cérebro a uma máquina “energético-informacional”, uma
espécie de rôbo cibernético avant la lettre.
- 138 -
psicologia? Porque ele se dá conta de que, para poder abordar a
problemática do sujeito, ele tem que supor que o esquematismo é
incompleto do ponto de vista lógico85. E fazer psicologia, considerando a
epistemologia que ele abraçava é o modo de ele dizer essa incompletude.
85
Essa formulação até um certo ponto é explícita na pena mesma daqueles que melhor
expressavam a epistemologia realista que Freud, num certo registro, adotava. Vejamos
essa indicação de Bois-Reymond de 1918:
Brücke e eu juramos solenemente por em vigência essa verdade: não
existem no organismo outras forças ativas que as físico-químicas comuns;
que nos casos que não podem, no momento, serem explicados por estas
forças devemos, seja descobrir o modo ou forma específica de sua ação
através do método físico-matemático, seja, supor novas forças iguais em
dignidade às forças físico-químicas inerentes à matéria, redutíveis à força
de atração e repulsão (in: Rapaport & Shakow, 1976, p.38).
Essas “novas forças iguais em dignidade” são aquelas que dizem respeito ao campo da
psicologia, ou seja, um campo em que, naquela ocasião, um reducionismo estrito – isto
é, ao físico-químico-matemático – não podia ser aplicado.
86
Essa era a tese do Dr. Carlos Paes de Barros (1975/1998).
- 139 -
como as trilhas, elementos de uma totalidade que as integra, justamente a
rede neurônica87. Assim, vemos que o cérebro está aí, como rede, para
assegurar uma certa unidade na dispersão que são os ditos do sujeito.
Desde essa formulação, os ditos são entendidos a partir de uma certa
organização intrínseca. Em primeiro lugar, eles são seqüências de ditos,
depois, tais seqüências estão articuladas entre si em rede. Vale dizer, o
cérebro é sobretudo a rede, isto é, um princípio que estipula a conexão dos
ditos em seqüências com estas entre si formando uma rede. De tal modo
que, pela conectividade, podemos supor um tipo de influência lateral entre
os ditos e suas seqüências. Desse modo, o que é dito aqui num contexto
padece dos efeitos e da influência do que é dito acolá, num contexto
completamente diferente.
87
“As verbalizações do paciente”, quer dizer, a associação livre. A “rede neuronal”
nada mais é que espaço bidimensional, a superfície então, onde se localizam os ditos,
em associação livre, do sujeito. Tais ditos em sua dimensão própria – nos termos do
estruturalismo a dimensão própria dos ditos é a diacronia – são unidimensionais. É o
efeito de retroação do significante que requisita pelo menos uma dimensão a mais. Daí
porque Freud postula a rede. A rede nada mais é do que isso que permite colocar a
questão da conectividade entre os ditos desde o interior; a estrutura que assegura que os
ditos não fazem um conjunto de entidades dispersas, reunidas numa fronteira colocada a
partir do exterior. A rede é propriamente falando a superfície, a estrutura, aquilo que
responde pela dimensão sincrônica do significante.
- 140 -
as narrativas do paciente como um campo no qual elas lhe são intrínsecas
se esconde sob a utilização do conceito de cérebro enquanto rede.
88
No próximo capítulo, quando trabalharmos sobre o seminário A Identificação (1961)
de Lacan, teremos que nos deter mais pormenorizadamente sobre as implicações da
conectividade.
- 141 -
Os eventos ocorridos efetivamente são os traumas. Mas a tomada
realista de Freud não é simples. O evento é traumático porque ao tempo de
sua ocorrência representou, do ponto de vista da quantidade, uma condição
excessiva e, do ponto de vista da qualidade, foi a presentificação do objeto
hostil. Já vimos ser essa segunda condição que garante que tanto o evento
exterior traumático, quanto sua evocação enquanto lembrança, enquanto
inscrição na rede neurônica, possuam um caráter aversivo, penoso. Mas
nesse primeiro momento que tipo de circunstância faz do trauma um
evento traumático? O trauma refere-se àquelas situações que, de acordo
com o senso comum, são aversivas. Assim no caso Emmy, Freud diz:
- 142 -
existência independente. Devemos antes presumir que o trauma psíquico
— ou, mais precisamente, a lembrança do trauma — age como um corpo
estranho que, muito depois de sua entrada, deve continuar a ser
considerado como um agente que ainda está em ação; encontramos a
prova disso num fenômeno invulgar que, ao mesmo tempo, traz um
importante interesse prático para nossas descobertas.
89
No contexto, afeto denota uma entidade referida à energia, e não ao campo da
sensibilidade e dos sentimentos como é usual.
- 143 -
O elemento energético presente nas situações penosas, como vimos,
transmite-se para a lembrança delas – ele alude a esse fato na citação
acima. A idéia terapêutica que ele defende, também anotada acima, encerra
uma concepção de real passível de ser referida às nossas reflexões a
respeito da matemática. Podemos caracterizá-la de algumas maneiras. A
primeira é que Freud situa a origem do fato traumático num evento
efetivamente ocorrido no mundo exterior, na realidade. Ele precisa de
eventos penosos ocorridos na realidade para assegurar o caráter igualmente
penoso do evento psíquico, que é a lembrança desses eventos ocorridos na
realidade.
- 144 -
da lembrança, ativada por sua narrativa, permite que a suposta energia a ela
ligada possa se dissipar. Ao fazer isso, ela releva o conjunto das conexões
do qual ficara desligada por força da manobra defensiva, que, como vimos,
é dissociativa. O terapêutico então é a dissipação ab-reativa e a
reintegração associativa da lembrança ao conjunto das representações.
- 145 -
um entendimento implícito de normalidade, que é mais ou menos o
seguinte: um sujeito normal, sem sintomas, seria aquele que a qualquer
momento pudesse evocar qualquer lembrança sua, que fosse capaz de
articular uma narrativa completa, na qual a lembrança de cada fato,
aversivo ou não, nunca fosse omitida. Esse sujeito é, em tese, capaz de
listar todo seu estoque de lembranças sem problemas: trata-se de um
sujeito sem dissociações. Enfim, Freud ainda não formulou o conceito,
idéia de inconsciente propriamente dito. Com a idéia de defesa, ele
formulou o conceito de dissociação que é relativo a uma patologia e a
define.
- 146 -
sistema w homologa como real uma qualidade não existente. No caso da
alucinação, temos uma qualidade dada como percebida para qual não
existe nenhuma fonte no exterior da qual emana um estímulo de natureza
periódica; na verdade, na alucinação, essa qualidade percebida é uma
composição de uma ou mais lembranças – entes que, enquanto trilhas, não
possuem qualquer qualidade – figurada pelo sistema w como imagens.
90
Como estamos a ver, no Projeto, as qualidades estão afeitas ao sistema w, a memória
corresponde ao sistema Ψ e a percepção ao sistema Φ. O desejo se forma no sistema Ψ,
sua “substância”, por assim dizer, são as lembranças. Observar também que para a
Freud a percepção também não é qualitativa. A qualidade está sempre localizada no
sistema w.
91
A física quantitativa de Newton, em oposição à física qualitativa de Aristóteles, faz
justamente isso: ela explica o movimento através do contínuo matemático.
- 147 -
de Newton em todas as suas conseqüências, em especial o contínuo
matemático. Isso se refere mesmo à interpretação da estipulação mítica de
que a máquina neuronal corta, interrompe, o fluxo das “massas em
movimento” e desse modo dá ordem ao caos. Mesmo essa interpretação
não introduz o contínuo matemático. A ordenação que a máquina impõe
implica uma certa disposição das coisas em termos discretos e enumeráveis
em que elas são localizáveis, dadas no espaço-tempo e contidas em
contornos próprios e bem definidos. Para comprovar essa direção presente
no Projeto..., basta ver como Freud conceitualiza a prova de realidade: a
idéia biológica de adaptação é instrumentalizada por um procedimento
judicativo, um “mecanismo cognitivo” que nada mais é do que uma
formulação da idéia de verdade como correspondência e adequação.
- 148 -
é real, aconteceu. Na carta em questão, ele fala de sua decepção em relação
a essa teoria. Na verdade, o que ele tem em mãos são resultados que ele
julga muito parciais. Em geral, uma inequívoca relação entre o fato de
expor numa narrativa as lembranças e uma série de modulações no
sintoma. Mas os resultados são parciais – nenhuma análise conduzida até
seu desfecho real. Agora ele se abate porque se dá conta de que a perversão
do pai é freqüentemente uma mera fantasia. Fantasia que opera, no entanto,
como se fosse a lembrança de um fato traumático.
- 149 -
Situação análoga à que exigiu a formulação do conceito de número
irracional, sob o aspecto de que ali onde deveria comparecer uma entidade
positivamente extensa – a lembrança de um evento –, comparece uma
lacuna. Vejamos como essa situação se constrói. Evidentemente, a solução
de que a chave da neurose está na sedução pelo pai não é uma boa resposta.
Acatamos essa explicação – e Freud se apoiou nesse fato – porque ela é
consensual, vale dizer, todos aceitamos isso. Mas a questão é: por que a
sedução paterna desencadeia o que desencadeia? Do ponto de vista
biológico, limitando-nos ao caso das histéricas, por que haveria de ser
“traumático” o encontro de uma fêmea apta ao coito – a filha – com um
homem – no caso, o pai? Evidentemente, não se sustenta a explicação,
segundo a qual a reação de horror ao incesto seria uma significação natural,
algo como um padrão pré-programado, genético, para espécie humana,
uma vez que em outras culturas não se observam reação semelhante. Da
onde deriva então essa valoração?
- 150 -
para nós, com esse instrumental conceitual mesmo, em que consiste essa
“realidade” que produz o trauma presente na cena incestuosa. O incesto só
pode produzir trauma porque os termos “pai”, “mãe” e “filho” são
significações, são fatos de linguagem depositados na realidade, efeitos de
linguagem que, no entanto, articulam uma diferenciação social “real”, isto
é, são significações naturalizadas inevitáveis, que justamente estabelecem,
pela prescrição, uma ordenação que inaugura a própria possibilidade do
laço social. E nesse caso, somos que conduzidos à idéia de que o horror ao
incesto deve-se ao fato de que sua realização derroga a prescrição que
institui o laço social. O horror do incesto seria então uma espécie de
proteção da regra que permite o laço social, ele estaria a serviço de
preservar a coerência necessária, no sentido de que se alguém se relaciona
sexualmente com seu pai, este deixa de existir, porquanto pai se define
justamente pela prescrição.
No entanto, não é bem assim que Freud coloca as coisas. Para ele, o
horror do incesto tem um sentido muito mais “positivo” do que ser uma
espécie de advertência visando a conservação da coerência necessária para
a organização social. Esse sentido é o de que, justamente, o derrogar da
regra que funda o laço social não a anula de maneira alguma. Vale dizer, a
prescrição não deixa de existir porque a regra foi quebrada. A quebra da
regra pode acarretar em neurose, loucura, crime, ou somente o horror e a
angústia sem maiores conseqüências psicopatológicas93. O que importa é
que ela não é indiferente. A realização do incesto, a desobediência à regra
que o institui, inaugura o campo da transgressão e não provoca o retorno à
ordem animal em que não se distinguem mais “pai”, “mãe” e “filho”94, em
93
Não é incomum encontrarmos realizações do incesto, especialmente no caso da
menina com seu pai. Nós mesmos já trabalhamos com essas situações. No entanto,
nunca pudemos observar um incesto realizado envolvendo a mãe e o filho.
94
Por razões de economia estamos situando nossa organização familiar como a estrutura
que define o incesto. Naturalmente, as estruturas variam culturalmente. Mas, em relação
ao que queremos abordar, é suficiente citarmos apenas uma, e por isso escolhemos a de
nosso mundo ocidental, judeu e cristão, enfim, a família monogâmica.
- 151 -
que só teríamos machos e fêmeas aptos ou não para o acasalamento, caso
em que qualquer macho poderia acasalar-se com qualquer fêmea desde que
ambos cumprissem os requisitos biológicos para tal.
- 152 -
referencia a própria escritura enquanto tal. Diversamente disso, o que
Dedekind nos dá a entender com sua postulação é que, ao impasse gerado
pela escritura, somos levados a postular a existência do número irracional.
Esse número “existiria” da mesma maneira que os racionais. Eles também
estariam referidos à positividade da extensão, vale dizer, as lacunas que
eles representam são anexadas à reta e a completam. Essas lacunas não são
anexadas como tais, elas são anexadas como pontos “fictícios” existentes
como efeito de um pulo, de se ter transpassado o infinito, de se tê-lo
atualizado. Evidentemente, a atualização do infinito é um modo de afirmar
a “positividade” da lacuna, realizando sobretudo uma vocação do símbolo,
no caso, a escritura matemática, de dirigir-se, de apontar, para a coisa. Uma
vez que a extensão não está efetivamente lá, não existe extensão
correspondente ao 2 , o que existe é uma lacuna. Por isso só um sujeito
pode responder por sua suposição de lá onde o que há é o vazio da lacuna,
por essa lacuna deixar-se localizar de alguma maneira, então essa lacuna é
de alguma maneira – Lacan falará a respeito do vazio que é o objeto a e da
angústia que indica sua “presença”: a angústia não é sem objeto.
- 153 -
nossa mãe e nós, seus filhos que podemos nos situar no mundo e nos laços
com nossos semelhantes.
- 154 -
ordenações. E um novo campo numérico surge: o campo dos números
reais. Campo que responde pelos principais avanços da ciência.
- 155 -
É como o nosso 2 , trata-se de uma operação que exige como
resultado um número finito, ou uma extensão finita. Trata-se, enfim, de
uma operação que nos lança na busca desse número ou dessa extensão,
apesar de nem esse número nem essa extensão existirem. Ou ainda mais,
trata-se de um número ou de uma extensão que temos de buscar, que
sabemos como buscar – a operação de radiciação é o meio de encontrá-lo –
mas que na verdade, esse único meio de encontrá-lo – a própria operação
de radiciação – engendra a cada etapa o buraco por onde o objeto
procurado escapa, furta-se a ser tomado. A cada etapa, temos um número
“próximo”, cada vez mais próximo ao número procurado. Mas a cada
etapa, estamos infinitamente distantes dele porque, ao nos aproximamos
dele, ele nos escapa mais uma vez.
O difícil de se dar conta nessa situação é que a razão pela qual não
atingimos um resultado finito na execução do algoritmo de radiciação está
no mecanismo mesmo de escritura numérica. Não é o caso de termos
errado na conta, ou de que não termos paciência nem tempo, de executar o
algoritmo até o fim, até encontrarmos um resultado finito embora muito
grande. Também não é o caso de esse número, que é a medida comum
entre o lado do quadrado e sua diagonal, ser um número muito pequeno
para o qual não temos meios de determinar seu valor. Não é nada disso. É
que a radiciação de 2 nunca liberará um número finito. Esse fato está
inscrito nos pressupostos mesmos da escritura numérica e da operação de
radiciação. No entanto, o fato de a “infinitização” estar inscrita na escritura
não é explícito; ao contrário, a escritura, muito “sedutoramente”, precipita-
- 156 -
nos no real da crença na existência de um número finito que corresponde a
uma extensão finita, perfeitamente localizável na reta.
- 157 -
adaptativos. São exigências internas, derivadas da escritura. Como
respondemos a essas exigências?
- 158 -
aparelho de linguagem e não possuem qualquer compromisso com a
adaptação. Por isso Lacan lembra-nos de que, para nós, o objeto é perdido.
Trata-se de uma exigência objetal, que, mesmo não podendo ser
preenchida por qualquer item, seja do mundo, seja do imaginário, mantém
a exigência de que objetos a preencham – essa é a ordem da demanda. Eis
porque o registro pulsional é abusivo: ele nos solicita o impossível. Lança-
nos na busca de um algo, efeito de uma injunção de escritura que, no
entanto, supomos ser uma coisa dada aí no mundo. É como a operação de
radiciação, que nos solicita um número não existente, nem possível. Ao
nos solicitar o número, ela renova infinitamente a circunstância de esse
número não ser encontrado e de termos de retornar infinitamente à
exigência descabida de encontrá-lo.
- 159 -
alucinação, que tanto é presença da coisa quanto, ao mesmo tempo, é
aniquilamento do sujeito. Sob esse aspecto, a impossibilidade é equivalente
à “infinitização” inerente à problemática dos irracionais, ela é como um
buraco ou uma radical inconsistência que petrifica o sujeito em sua própria
falha constitutiva. Faz-se necessário então que a impossibilidade se
represente como tal; que, em seu ponto de incidência mais agudo, o vazio
se coloque como espaço para o sujeito em seu ato, o sujeito enquanto
representado pelo significante paterno, significante do discurso que abre a
única via possível para o sujeito: se exercer como desejo no discurso. O
recalque primário basicamente nos assegura que nenhum objeto deste
mundo, que nenhuma imagem é o Objeto; que todos os objetos desse
mundo, que todas as imagens e significações são substitutos, são como
“aproximações”, tão próximos quanto distantes do objeto primordial – que
sequer existe ou, dito de outra forma, que existe apenas como exigência da
linguagem. Esta, ao se marcar em seu excesso quanto a se satisfazer com
qualquer coisa que lhe venha em resposta, ao se marcar como pura
exigência, nesse movimento declina-se então como a lei do pai cujo
mandamento é: deseje95. Cumpre assinalar que essa pura exigência, essa
exigência que se destaca da atividade alucinatória, essa pura exigência
representada como tal, essa exigência é, enfim, suportada pelo significante
paterno.
95
Podemos ler na lição de XIV de 21 de março de 1962 do semininário da Identificação:
É essencialmente isto, uma relação entre uma demanda que toma um valor
tão privilegiado que ela se torna o comando absoluto, a lei, e um desejo, o
qual é o desejo do Outro, do Outro que se trata no Édipo. Esta demanda se
articula assim: você não desejará aquela que foi meu desejo.
- 160 -
irracional quando o infinito é atualizado96. A postulação afirma o símbolo e
com ele podemos operar, fazer avançar o discurso matemático, mas isso ao
preço de uma perda essencial. É como se a “infinitização” fosse promessa
eterna da coisa e a atualização do infinito barrasse a queda no buraco da
“infinitização”; a atualização do infinito implica tanto que a coisa se deu
sem ter se dado – supomos que o irracional se comporta como se fosse
uma entidade inteira, temos aí a dimensão algébrica implícita na solução da
problemática dos irracionais – quanto implica que essa coisa enquanto tal,
com o seu contorno definido, é perdida desde sempre. O que podemos reter
dela é o que nela se pode contar97. Do mesmo modo, o significante paterno
simboliza a “infinitização” implícita no registro da demanda. É nesse
registro que se coloca para nós inicialmente a problemática do irracional,
da existência de um objeto que, ao satisfazê-la situaria a demanda como
uma exigência biológica marcada por um ritmo oscilante entre a
necessidade e a satisfação.
96
A letra pode ser a mesma, 2 , mas o valor é completamente diferente caso a
situemos apenas como signo da operação de radiciação ou como símbolo que denota o
irracional 2 .
97
A esse respeito ver a lição II de 21 de novembro de 1962 do seminário A Angústia.
- 161 -
significante paterno em sua aparente contradição apenas assinala o
caminho que vai da demanda (satisfazer-se da mãe) ao desejo (como o pai
que não tomou a própria mãe como objeto, mas que tomou uma outra
mulher). Desejo nada mais é do que realizar o pulsional na via do discurso,
dos objetos substitutivos e de, principalmente, sustentar-se na própria
palavra.
- 162 -
sujeito, mas para melhor caracterizar os objetos. Na verdade, a astúcia da
ciência é a seguinte: relevar o erro, a problemática dos restos, enfim, a
infinitização implícita em sua operação para melhor desconsiderá-los. O
foco da ciência não é, portanto, o sujeito; seu foco é o objeto. E não se trata
nela do objeto levado ao limite em que poderia se articular como causa do
desejo. Em sua articulação com o capitalismo, o objeto de que se trata na
ciência são os objetos ofertados à demanda. Como inúmeras vezes Lacan
colocou, a discursividade que recolhe os efeitos subjetivos dessa lógica da
ciência e do capitalismo é a psicanálise.
- 163 -
Capítulo VI
LACAN E A MATEMÁTICA
98
Essa posição de Freud é inevitável. Que ele busque o dialógo com seus
contemporâneos, sendo ele o fundador de uma nova disciplina, é prova de que ele não
era um louco, que ele situava seu trabalho e sua pesquisa numa exigência de laço social.
- 164 -
Naturalmente, esse é o caso com a matemática. A título de que ela
freqüenta seu texto? Descartemos de saída certas considerações sobre esse
uso. A esse respeito nos são bastante úteis as críticas de Sokal e Bricmont
já comentadas no capítulo I. Principalmente porque elas denunciam em
Lacan uma pretensão que ele nunca teve: a de fazer valer as asserções
psicanalíticas como científicas em razão do manejo de um certo jargão
sancionado pela ciência. Nada mais afastado do texto de Lacan do que o
estilo característico de uma apresentação em física ou matemática ou em
qualquer “ciência dura”, ou mesmo na tradição filosófica. Isso é explícito.
É óbvio que a matemática não está em seu texto tal como num texto
científico. Não é necessária nenhuma denúncia para nos darmos conta
desse fato. Basta lermos Lacan e trabalharmos um texto em matemática
para logo nos apercebermos disso. Para nos limitarmos à matemática,
tomemos ao acaso alguns textos técnicos. Por exemplo, Nós e Vínculos
(Knots and Links) de Dale Rolfsen (1976/1990). Ele começa com uma
brevíssima indicação de natureza histórica a respeito dos nós – menos de
- 165 -
uma página – para logo a seguir especificar, explicitar, os elementos com
os quais vai trabalhar: seu código de notação e definições. Seguem-se os
teoremas, exercícios propostos, novos teoremas, novos exercícios e dessa
maneira o texto vai discorrendo a respeito do que se propõe a dizer. Com
algumas variações, outros textos de matemática estão estabelecidos desse
modo. Existem os manuais, por exemplo, o livro Topologia Geral de
Seymour Lipscchutz (1965/1979). As notações, a “estenografia” e as
noções são introduzidas através de uma exposição em linguagem ordinária
que faz apelo a uma certa intuição. Mas isso é por pouco tempo. Nos
capítulos iniciais vemos o autor se esforçar nessa direção, especialmente
porque neles ele introduz a linguagem na qual os teoremas da topologia
geral vão se expressar – a teoria dos conjuntos. Ele também apresenta
muitos exercícios resolvidos. Esses exercícios especificam de uma maneira
“prática” como manejar os conceitos e as noções vistas ali.
99
Tem sua importância observar que esse estilo de comunicação científica a que
estamos submetidos atualmente é datado. Ele surgiu na metade do século XIX. Foi então
um problema real a autoria em ciência. E, embora hoje em dia bastante atenuado, ele
ainda persiste – vide por exemplo as questões sobre a descoberta do vírus da Aids Por
exemplo, Newton e Leibniz se valeram de uma técnica de divulgação de suas idéias que
soaria para nós hoje bastante surpreendente: eles as anunciavam por meio de anagramas!
Foi muito lentamente que se chegou a esse estilo que exige uma revisão bibliográfica,
uma discussão com os principais autores de um dado campo, uma delimitação do
problema, etc. E que permite de alguma maneira discriminar-se, até um certo ponto e
dentro de certos limites, a contribuição de cada um. Um sociólogo, Robert K. Merton
observou que 92% das descobertas simultâneas do século XVII terminaram em disputas,
72% no século XVIII, 59% no século XIX e 33% na primeira metade do século XX.
(HELLMAN, 1998, p. 63-89).
- 166 -
matemáticos interessados nos fundamentos de sua disciplina. Em seguida,
ele convoca a noção de extensão ou continuidade – pontos de uma linha
reta – e examina a relação dessa noção com os números racionais.
Estabelece a necessidade da postulação do número irracional como único
recurso para fundar a continuidade e a completude da reta. No item VI, ele
demonstra que os irracionais obedecem às regras aritméticas básicas e, no
item VII, apresenta a conexão do que ele expôs com os fundamentos da
análise matemática.
- 167 -
prossegue dessa maneira: somos sempre bem assistidos do ponto de vista
de uma certa completude semântica que acompanha e estofa o que eles
pretendem dizer. Além disso, o nexo entre as “unidades” significativas
também não é qualquer um. É aquele que dizemos ser pautado na
coerência em sua acepção clássica, a de que, se num certo contexto o autor
afirma a proposição p como verdadeira, ele não pode afirmar mais adiante
em sua argumentação a proposição não-p. A teoria do funcionamento da
linguagem implícita nesse manejo é a de que a linguagem é maximamente
eficaz quanto a seus propósitos discursivos quando utilizada dessa forma.
Tais propósitos são identificados à comunicação, vale dizer, essa é a
melhor maneira de dar a entender alguma coisa a outrem, no sentido de
que, ao cabo da exposição, o que autor pretendeu expressar coincide com o
que leitor entendeu. É uma concepção da linguagem que a orienta para a
coisa, a linguagem é instrumento para expressar a coisa. Nesse contexto,
coisa não é apenas o nome que genericamente designa os objetos concretos
constitutivos do mundo físico; coisa é também tudo aquilo que pode
freqüentar a articulação lingüística a título de “extralingüístico”, como se
fosse objeto, “lá-fora” de alguma maneira. Só falando assim podemos
entender que as formulações matemáticas e lógicas expressam alguma
coisa, uma vez que os entes aos quais elas se referem não são entidades
físicas.
- 168 -
Tendemos, hoje em dia, a identificar o conceito de “racionalidade”
ao tipo de expressividade encontrada nos textos de matemática. Não
queremos dizer, naturalmente, que somente esses textos possuem tal
característica. Mas a linguagem científica e toda uma certa tradição
filosófica defendem e praticam uma discursividade que tende para esse
extremo de explicitação e de articulação significante, de redução à letra,
que encontramos na matemática100. O que estamos dizendo não coincide
de maneira alguma com as questões sobre ontologia e linguagem, sobre o
realismo, o convencionalismo, etc. Mesmo um texto da pragmática –
tradição que se opõe ao realismo – desdobra-se da maneira que estamos a
discorrer. Por exemplo, no texto de Quine, um autor importante da tradição
pragmática, A Relatividade da Ontologia (1969/1977, p. 40) podemos ler:
100
Essa foi, por exemplo, a posição que o wittgensteiniano Jacques Bouveresse assumiu
em relação ao “episódio Sokal” (BOUVERESSE, 1998).
- 169 -
contrário, o que ele expressa não está situado ali onde ele diz. Está situado
lá, no lugar da significação – não importando muito se esse lugar são
essências puras platônicas, entidades mentais, coisas na realidade, produtos
históricos circunstanciais, etc. Mais adiante ele diz:
- 170 -
livro – qualquer que seja a acepção dada a “entender” nesse contexto. A
decisão de se prosseguir ou não na leitura é tomada por muitos nesse
primeiro contato com o texto. A crítica de Sokal, por exemplo, ressalta
sobretudo esse primeiro tempo. Ela visa aumentar, estimular esse elemento
aversivo, mesmo repulsivo, que aí aparece e que conduz alguns a rejeitar o
texto lacaniano ou relegá-lo à indiferença. Por exemplo, em relação ao dito
de Quine mais acima. Mesmo procedendo como ele indica, não supondo
uma semântica para “além do que pode estar implícito do comportamento
manifesto” de Lacan e ficando no plano da significância e menos no dos
significados, ficamos no desamparo no sentido de que não temos êxito em
reconduzir os contextos propostos por Lacan a uma unidade significativa
qualquer, mesmo a mais conjuntural e contigente. Por que lê-lo então? Por
que se ocupar dele?
Sem dúvida, uma das razões é que Lacan não se apresenta a nós
apenas por seu texto. Ele se apresenta por sua palavra também. Há todo um
conjunto de intervenções diretas e em vários níveis, como analista,
psiquiatra, maitre à penseur, etc., que se desenrolaram ao longo do tempo
por um período de mais de cinqüenta anos no influente contexto cultural
francês. Ele foi alguém que não só marcou sua geração como também
nunca deixou de estar a frente da organização dos dispositivos
institucionais psiquiátricos e de transmissão da psicanálise na França.
- 171 -
dispositivos institucionais por ele propostos quanto às condições de
transmissão da psicanálise.
- 172 -
produzido pela sugestão do analista. Por não estar referida a certas
exigências impostas pela iniciativa que visa o esclarecimento, a psicanálise
é então identificada, por alguns desses autores, como um tipo de
charlatanismo “pseudocientífico” (WEBSTER, 1999/1995).
- 173 -
injunção de termos de nos constituir na submissão à palavra do pai,
principalmente no que ela está fundada em sua autoridade (no caso, a de
Freud e Lacan), e não na objetividade científica que porventura ela pudesse
ter.
101
Os textos de Freud Mal-Estar na Civilização (1930), O Futuro de uma Ilusão (1927)
e a “Questão da Weltanschauung” (1932), não deixam dúvida sobre esse aspecto. Lacan
retoma inúmeras vezes esse tema e se posiciona na mesma direção que Freud. Conferir o
artigo de Ana Beatriz Freire (1996) “Weltanschauung: Ciência, Magia e Religião”.
- 174 -
Lacan exige de nós algo que soa excessivo, inoportuno, desatual; algo que
implica acatarmos sua “autoridade” e confiarmos que, naquele texto
confuso, no limite do inabordável, existe uma indicação que nos interessa
em relação à psicanálise e à questão de que ela trata: o sujeito. É natural
que a relação a esse texto soe estapafúrdia ao filósofo, cientista ou
ideólogo. Afinal, para eles, que sentido há em se praticar a leitura de um
texto que não libera significações ou conteúdos com uma certa
regularidade, facilidade ou ainda conseqüência de um manejo explícito das
regras de linguagem? E que, além disso, demanda uma submissão à sua
letra, ou seja, justamente isso que a filosofia vem denunciando como a
fonte de todos os males da modernidade – a submissão ao mestre?
- 175 -
Concordamos com Quine (1969/1977) que compreender uma palavra é
saber como empregá-la. Acrescentamos que quaisquer circunstâncias que
envolvem palavras implicam também um laço social, pois aprendemos as
palavras numa exposição a elas a partir dos outros. Por isso é evidente que
compreender uma palavra é, num primeiro tempo, deixar-se “sugestionar”
por ela. Para psicanálise seria até impróprio o uso do verbo deixar em sua
forma reflexiva nesse contexto. Isto porque, para ela, não existe um sujeito
já constituído antes da palavra, um sujeito apto a sofrer passivamente sua
influência mesmo que concebamos essa influência como absoluta e radical.
Para a psicanálise, a situação é muito mais radical porque é a palavra, é na
palavra, que o sujeito se constitui.
- 176 -
narcisismo. E a exigência de satisfação narcísica está sempre presente na
relação que entretemos, por exemplo, com um texto.
- 177 -
De uma maneira geral, os textos de natureza científica, ou que
visam transmitir algum saber, arranjam sua semântica de modo a fazer
parecer estar “lá-fora”, como coisa dada “lá-fora”, o que é dito no texto, o
que a linguagem descreve e com que ela se corresponde. Encontramos essa
disposição nos próprios textos de relativistas como Quine. Embora ele
combata a idéia de objetividade – quer dizer, a de que os itens do mundo
estejam já dados “lá-fora” como peças de museu –, seu escrito procede
como uma descrição que pretende dar a saber justamente esse “fato” de
que a coisa lá-fora não existe sem as práticas de linguagem que a dizem. O
próprio texto de Freud se arranja desse modo. A “ontologização” tão
criticada por Lacan não é de modo algum ausente na pena de Freud. Seu
estilo propõe “lá-fora” um campo de objetos, seus conceitos maiores –
inconsciente, pulsão, repressão, etc. – que ele busca descrever, apresentar
suas evidências, etc.
102
Estamos generalizando, passando do texto para a linguagem, para seus diversos
contextos em geral. Isto porque entendemos o texto, o escrito, como uma circunstância
de linguagem particular na qual se cristalizam, se localizam, certos aspectos da
- 178 -
uma ordem própria aos ditos e outra das coisas ditas, das coisas no lugar
das quais está o que é dito, e da correspondência entre elas. Reconduzimos
então a problemática da significação à situação que nos dedicamos no
capítulo anterior a respeito do número real, entre o nível “algébrico-
aritmético” da escrita da operação – da forma – e o termo que encarna o
pólo semântico, que é a reta real. Esse tratamento, essa redução tem o
mérito de considerar apenas o mínimo necessário para situar a questão da
significância tal como ela é articulada por Lacan, no esteio de Freud, e que
está realizada em seu estilo103.
linguagem que são tão gerais quanto essenciais. Um exemplo disso é justamente a
“ontologia” ou, dito de uma forma menos “dramática”, a espacialização implicada pela
linguagem, entre o espaço dos ditos e o que lhe corresponde “lá-fora”, o das entidades
significadas. Enfim, a própria idéia de que a significação requisita pelo menos dois
termos para ser “engendrada” – é este “fato” que está cifrado na idéia de
correspondência.
103
Observemos o texto de um autor cuja a tendência é marcada pela pragmática. Searle
(1972/1996, p. 37) diz:
De que maneira as palavras se ligam à realidade? Como se faz que,
quando um locutor se encontra face a um auditor, e que ele emite uma
seqüência acústica, possam se produzir fatos tão notáveis quanto os
seguintes: o locutor tem a intensão de significar alguma coisa, os sons que
ele emite significam alguma coisa, o auditor compreende isso que se quis
lhe dizer ...
Como podemos ver, esse texto reune todas as características em relação a produzir um
efeito de esclarecimento que enumeramos. Mais do que isso, ele mantem a suposição de
que os termos constitutivos da estrutura da palavra – o locutor e o auditor – são dados e
não constituídos no ato de fala ele próprio. É notável que o foco do autor seja muito
mais a relação de “dar algo a entender através da linguagem” do que a constituição do
sujeito pela palavra. Esse curta citação deixa bem claro a distância quanto ao que se
trata na discussão psicanalítica da linguagem e do que se trata na filosofia da linguagem.
- 179 -
leitor prossegue com a leitura e não desiste no primeiro contato, o que vem
à cena, de um lado, é o próprio sujeito, já que esse buraco na significação é
o fato de o Outro, no caso o texto de Lacan, não liberar a significação e
convocar o sujeito a exercer-se em seu texto, numa série de renvios dentro
desse texto mesmo, cujo propósito é o de “capturar” a significação que
escapa. Nesse jogo, o que se realiza é um trabalho do sujeito que acaba por
produzir alguma significação, algum saber. Mas o essencial é que essa
significação-saber não é completa, nem é da inteira responsabilidade de
Lacan, não é uma doação de seu texto apenas. Ela de alguma maneira
implicou o sujeito e seu trabalho, “responsabilizou-o” – a significação que
ele alcança é, até um certo ponto, uma leitura sua, “própria”.
- 180 -
Por aí também se pode ver que a questão de uma ciência que inclua
a psicanálise, tal como Lacan a formula, é muito complexa e difícil, tanto
do ponto de vista ético quanto do ponto de vista político e também do
ponto de vista epistemológico. Este seria o caso de uma ciência que
reconheceria no estilo de Lacan uma efetividade não apenas retórica, mas
uma efetividade necessária para a própria “pesquisa” psicanalítica104.
A Exigência da Topologia
[01] X e Ø pertencem a T .
104
É importante que se diga que colocamos a questão, e não a recusamos. Apenas
queremos sublinhar de passagem, já que este não é nosso tema, que a relação entre a
psicanálise e a universidade deveria nos ocupar mais, a nós analistas, já que não é
suficiente para a psicanálise um estilo que apenas situe o conceito e ignore a forma
através da qual ele passa como lhe sendo exterior.
105
A esse respeito, remetemos o leitor ao artigo de Antônio Carlos Rocha sobre esse
tema, “Sobre o Ensino e a Transmissão”, (1999, p. 135).
- 181 -
[02] A união de um número qualquer de T pertence a T.
- 182 -
operações significantes também são concebidos como internos ao campo
do significante, então nossa teoria é uma topologia. Esse é o ponto de vista
de Lacan em oposição ao ponto de vista tradicional. Para Lacan todos os
efeitos do significante são internos a seu campo. Esses efeitos podem ser
listados: a significação, o sentido, a realidade, o sujeito, o real, o objeto, o
significante, etc., diferentemente do ponto de vista tradicional, que postula
uma fronteira intransponível entre palavras e coisas. Nessa concepção,
palavras e coisas se correspondem, mas o nexo, a correspondência,
mantém a exterioridade e a heterogeneidade dos termos entre si: uma
palavra é uma não-coisa e uma coisa é uma não-palavra. Já para Lacan, o
estatuto de coisa ou de palavra é interno ao campo do significante, tudo
depende do lugar – podemos dizer que uma topologia também pode ser
definida como uma organização dos lugares, ou melhor, das vizinhanças
que compõem um certo espaço – onde comparece o significante. O próprio
real é entendido como intrínseco ao campo do significante, se ele é exterior
à palavra, trata-se de uma exterioridade interna ao campo da palavra.
S S' 1
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S' x s
- 183 -
“significante”. No artigo “A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão
desde Freud” (1966/1998, p. 519), a possibilidade de se transpor a barra da
significação é distinta conforme seja o caso de uma articulação significante
metonímica – caso em que a barra não é “transposta” – ou de uma
articulação significante metafórica – caso em que a barra é “transposta”.
Observemos também uma questão que poderia passar desapercebida e que,
no entanto, é crucial para entendermos a topologia lacaniana. O “desejo-
da-mãe” é significado no 1º termo da fórmula e significante no 2º termo. Já
o significante Nome-do-Pai em momento algum é significado. No artigo,
“De uma questão preliminar a todo Tratamento possível da Psicose”
(1966/1998, p. 564), ele diz que:
- 184 -
æ A ö
A fórmula fica: ç ÷ com o lugar do Nome-do-Pai vazio, e não
è Falo ø
æ A ö
ç ÷ simplesmente. Ela também não tem como resultado apenas o valor
è Falo ø
æ A ö
zero, Nome - do - Paiç ÷ Û 0 , pois o Nome-do-Pai, sendo supostamente
è Falo ø
“igual” a zero, daria numa “conta” na qual teríamos
æ A ö 0
0!ç ÷Û Û 0 . A foraclusão do significante é a foraclusão do
è Falo ø Falo
Nome-do-Pai do lugar do Outro, isto é, não podemos simplesmente
associar a ausência desse significante num certo lugar com o valor zero da
operação metafórica, embora seja isso mesmo que Lacan, num certo
sentido, queira indicar. Não podemos tratar a operação metafórica como
estritamente “aritmética” ou “algébrica”, pois, se fosse esse o caso,
teríamos de assumir seu valor nulo, se associamos o valor 0 ao significante
Nome-do-Pai; ou à impossibilidade de a operação sequer poder começar,
pela ausência de pelo menos um operador ou operando. Esse seria o caso
de uma conta qualquer escrita de uma maneira que, matematicamente
diríamos ser errada, por exemplo, “2 __ 2 =”, em que o sinal da operação a
ser realizada está ausente, o que, por isso, impossibilitaria a realização
qualquer operação.
Num certo sentido, como falamos, porém, é isso mesmo que Lacan
quer dizer. O psicótico não entretém uma relação com o mundo, consigo
mesmo, com seus semelhantes mediatizada pelos termos próprios à ordem
do discurso: a palavra, o sentido e a significação. Esses termos são
conseqüência da operação metafórica, que desse modo é como se fosse
“nula” ou não pudesse se realizar por faltar um termo sem o qual ela não
pode iniciar-se. O que melhor especifica a subjetividade psicótica é a
alucinação. A alucinação psicótica é alguma coisa de absolutamente
presente para o sujeito ao ponto de ele situá-la como invasão – daí os temas
- 185 -
tão comuns a respeito da perseguição. A alucinação é a incidência de algo
experimentado pelo sujeito psicótico como real, mas ela diz respeito a algo
que um sujeito neurótico diria ser uma significação106. Vale dizer, no lugar
onde o psicótico nos dá o testemunho de uma experiência tida por ele
como real, na qual ele padece de uma invasão, o neurótico no máximo
situa uma significação penosa da qual ele pode se desvencilhar, valendo-se
das operações discursivas usuais. A “invasão” psicótica é justamente isso,
imagens que dão conta, como que testemunhos, da falência ou ineficácia,
em seu caso, das operações discursivas usuais. Nesse sentido, o psicótico é
alguém para quem a operação da metáfora deu como resultado um valor 0,
ou para quem tal operação sequer pode iniciar-se, por conta da ausência de
um operador essencial que a especificaria.
- 186 -
lugar é justamente o corpo axiomático que estabelece os números reais e
seus fundamentos topológicos. Do ponto de vista da regra que comanda a
operação, ela só deve cessar quando encontrar uma decimal finita – não
importa o tamanho - e, como vimos, a operação não tem meios de conceber
que naquele caso, tomando o 2 como operando, ela prosseguirá
infinitamente.
- 187 -
Com essas considerações, queremos apenas assinalar o seguinte
ponto: não basta apenas o aspecto combinatório, seu aspecto “escritural”
para entendermos a fórmula lacaniana da metafóra paterna. Faz-se
necessário também termos acesso à topologia a ela associada. Quando
percebemos esse aspecto topológico, podemos entender que a ausência do
Nome-do-Pai em seu lugar não acarreta simplesmente uma anulação do
efeito metafórico ou um travamento da operação. A operação prossegue de
qualquer modo, ela prossegue sem aquele termo em seu lugar.
Frase difícil de ser lida. Ela pode ser facilmente entendida como
uma apreensão da psicose inteiramente negativa e em referência à neurose.
Tal significação é sugerida pela expressão “fracasso da metáfora paterna”.
Ora, esse fracasso é um “fato”. Mas, nesse fracasso está “a falha que
confere à psicose sua condição essencial”. “Com a estrutura que a separa
da neurose”. O termo estrutura não deixa margem para dúvidas: a ausência
do Nome-do-Pai engendra uma estrutura em seu lugar. Vale dizer, a
operação metafórica ao se pôr em seu próprio movimento, sem contar com
o significante Nome-do-Pai em seu lugar, engendra a estrutura psicótica.
- 188 -
Mas como entender o termo “falha”? Articulando a seguinte frase: “a falha
que confere à neurose sua condição essencial”. Essa falha seria justamente
a castração, aquela que tem como conseqüência, precisamente, o efeito
metafórico em função do qual vivem os neuróticos. Conclui-se então que o
vocábulo falha não especifica apenas a psicose; ele especifica todas as
estruturas clínicas. Assim, uma estrutura clínica é apenas o modo através
do qual a linguagem engendrou e organizou uma falha, constituindo nesse
modo uma subjetividade que lhe é correlata. Finalmente, resta o termo
“acidente”. Nesse termo entendemos a radicalidade da contigência
introduzida pelo significante em relação a qual todo falante deve se
confrontar para se constituir. Num certo sentido, o sujeito nada mais é do
que essa contigência retomada no campo da palavra.
Mas o que tem a matemática a ver com isso tudo? É ela que dá
lastro para interpretação que fizemos da frase acima. A operação
metafórica com o Nome-do-Pai em seu lugar – lugar do significante –
engendra a “topologia usual do neurótico”, quer dizer, a “nossa” topologia.
E a operação metafórica com o Nome-do-Pai ausente de seu lugar
engendra uma “topologia psicótica” – aquela que responde no texto de
Lacan pelo termo aparentemente absurdo de “metáfora delirante” –
absurdo porque, se é metáfora não é delírio, isto é, toda metáfora se dá
num fundo de dúvida e, se é delírio, não é metáfora, porque delírio está
referido à certeza. É a topologia que recolhe e localiza aquilo que não se
especifica no plano da operação puramente sintática, “algébrica”, no caso,
daquilo que não se deixa localizar claramente na fórmula da metáfora. Esse
é um ponto importante na obra de Lacan explicitado cabalmente a partir do
seminário da identificação de 1961-1962 quando ele passa a se valer da
topologia das superfícies bidimensionais ou variedades bidimensionais
para situar seus matemas, e não apenas os esquemas e os grafos.
- 189 -
Situamos o seminário sobre a Identificação porque até então a
posição de Lacan em relação a seus esquemas “topológicos” tendia para a
posição que ele nos informa no texto sobre “De uma Questão...”:
E mais adiante:
- 190 -
psicanálise, precisamente a angústia107. A topologia então seria uma
iniciativa, ainda no plano do conceito, mas no limite do conceito108, de
recolher, de apresentar no formal algo que diz respeito ao objeto a. Sua
introdução cabal no seminário sobre a identificação corresponde então a
essa virada que Lacan operou nos anos 60 na direção de articular a
psicanálise em torno da questão do objeto a.
107
A esse respeito é particularmente importante a lição II de 21 de novembro de 1962.
Ver também o artigo já citado de Antonio Carlos Rocha a respeito do conceito e do
ensino em psicanálise.
108
No limite do conceito – é por isso que nos valemos do termo “intuição”.
- 191 -
apaga em relação a se duplicarem em lugares diferentes (é o caso do
Desejo-da-Mãe). É topológica porque os lugares demarcam certas relações
funcionais intrínsecas que os termos, heterogêneos entre si, podem entreter
conforme variem suas posições relativas.
109
Seria um erro afirmar que Lacan, com a topologia, supera seus grafos e esquemas
substituindo-os pela topologia da superfície. Ele não abandonou seus grafos; pelo
contrário, ele passou a afirmá-los ainda com mais veemência, designando-os por aquilo
que efetivamente eles já eram desde o primeiro momento: topologias. A partir dos anos
60, esses grafos e esquemas retornam sempre, mas como indicações topológicas, e não
como mero esquemas de compreensão. Confira-se, por exemplo, o seminário “De um
outro ao Outro” de 1969, onde ele dedica várias lições ao Grafo-do-Desejo.
110
A Topologia da Superfícies bidimensionais ou Variedades bidimensionais é um
capítulo da topologia algébrica ou combinatória que estuda esses objetos que Lacan
privilegiou: a esfera, o toro, o plano projetivo – principalmente sua conformação como
cross cap – e a garrafa de Klein
- 192 -
campo conceitual, no ato mesmo de sua formulação enquanto conceito, o
real tratado pelo conceito ele próprio.
111
Para uma discussão bastante acessível dessas questões conferir o livro A Forma do
Espaço (The Shape of Space) de Jeffrey R. Weeks de 1985, em particular o capítulo 12,
“A Fórmula de Gauss-Bonnet e o Número de Euler” (The Gauss-Bonnet Formula and
the Euler Number) (p. 165-185) que estabelece certas dependências que articulam a
geometria com a topologia das superfícies.
- 193 -
grafos, nos esquemas R e I estão a indicar não necessariamente pontos
precisos, mas “abertos” e suas relações de vizinhança. Lacan apenas
assinala a região que lhes corresponde. Essas regiões são “abertos” – na
acepção desse termo em topologia geral –, isto é, essas regiões, que podem
ser áreas, segmentos de reta ou pontos localizados no quadrado, não
contêm nelas mesmas suas próprias fronteiras, sendo delimitadas por
vizinhança umas em relação às outras. Desta forma, como ilustração, a
extremidade inferior à direita é o lugar do Pai, a região superior à esquerda
é o lugar do Falo, a região superior à direita é o lugar da Mãe e assim por
diante. Com delimitação por vizinhança queremos dizer que, por exemplo,
não temos, no esquema, nenhuma marca explícita informando-nos onde
terminam as figuras do outro imaginário, i, e o ponto M que assinala o
significante do objeto primordial. Temos apenas a indicação de que se
“caminharmos” do ponto i em direção à sua direita alcançaremos o ponto
M, ou a região a do vértice superior direito do quadrado que assinala o
objeto primordial M. Entre i e M temos a seqüência Si, Sa1, Sa2, San,...,
SM – i e M são pontos limites referenciados “geometricamente”, isto é,
ambos são vértices de polígonos dados, i do trapézio da realidade e M do
triângulo simbólico – sendo as indicações análogas válidas para os demais
termos.
O esquema R:
- 194 -
O Esquema I:
- 195 -
do plano projetivo já operava em ato nos anos 50. A partir da nota de
rodapé podemos manter intactos os dois esquemas, o R que especifica o
sujeito neurótico e o I que especifica a subjetividade psicótica com os
seguintes acréscimos.
- 196 -
superfícies introduz algum acréscimo em relação ao combinatório já
implicado no estruturalismo mesmo?
É para vos mostrar como graças a esse artifício topológico, o qual, não
duvidem disso, eu confiro um pouco mais de peso do que ser somente um
artifício, do mesmo modo, e pela mesma razão, pois é a mesma coisa que,
respondendo a uma questão que me colocaram em relação à raiz quadrada
de -1 tal que eu a introduzi na função do sujeito:
- 197 -
que me proponho a continuar a desenvolver com a forma do toro (lição
XII, de 7 de março de 1962).
Logo adiante:
... o “nada é fecundo que não seja o julgamento sintético”, pode-se ainda,
após todo o esforço de logicização da matemática, ser considerado como
sujeito à revisão. A pretensa infecundidade do julgamento analítico a
priori, a saber, isto que chamaremos simplesmente do uso puramente
combinatório de elementos extraídos da posição primeira de um certo
número de definições, que este uso combinatório tenha em si uma
fecundidade própria, é o que a critica mais recente, a mais bem dirigida
dos fundamentos da aritmética por exemplo, pode seguramente
demonstrar. Que exista em seu último termo mesmo, no campo da criação
matemática, um resíduo obrigatoriamente indemonstrável, é o que sem
dúvida a exploração logicizante, ela própria, nos ter conduzidos, o
teorema de Gödel, com um rigor até aqui irrefutável, mas disso não resta
menos que é pela via da demonstração formal que esta certeza pode ser
adquirida. E quando digo formal, eu digo os procedimentos os mais
expressamente formalistas da combinatória logicizante (Lição XI de 28 de
fevereiro de 1962).
- 198 -
continuidade dada no espaço/tempo não intuição sintética a priori, mas
uma combinatória estritamente analítica, propriamente algébrica. Quer
dizer, o que escapa do conceito e de qualquer estratégia de apresentação
não se diz de uma forma muito especial e específica quando consideramos
as coisas topologicamente. Não se dizer não é o mesmo que não dizer
nada; é, pelo contrário, dizer algo não dizendo:
- 199 -
Vamos situar esse interesse preliminarmente em torno dos seguintes
pontos sublinhados por Lacan: 1- as superfícies pelas quais ele se interessa
são “fechadas”; 2- essas superfícies exigem um trabalho combinatório que
é cerrado para articulá-las e que envolve um questionamento radical da
intuição espacial; 3- é o corte que engendra a superfície.
Superfícies fechadas112
112
Essas características são um resumo da apresentação “informal” realizada por C. E.
Zeeman (?/1975, p. 6-10) do Teorema da Classificação.
- 200 -
momento estancaremos porque esbarraremos em seu bordo. A tão
comentada banda de Möebius é uma superfície aberta no sentido de que, ao
andarmos numa certa direção, em algum momento toparemos com seu
bordo único.
- 201 -
Euler113 descobriu que, através de uma “conta” que computa o
número de polígonos, o número de arestas e o número de vértices, esse
número é o mesmo para um certo tipo de superfície. Isso se refere a um
dado tipo de superfície, não importando se ela está deformada ou não (por
exemplo, se nosso toro/câmara-de-ar está cheio e tem aquela aparência
típica de toro ou se está vazio e tem a aparência de uma coisa informe e
amarrotada), não importando também o número de polígonos ou triângulos
com que a cubramos, não importando ainda se os polígonos/triângulos são
regulares ou não.
113
Euler descobriu essa invariância apenas para a esfera em 1752. Zeeman comenta que
essa propriedade talvez já fosse conhecida por Arquimedes. O resultado para as demais
superfícies foi estabelecido por Poincaré na década de 1890. E a primeira prova rigorosa
da invariança da característica de Euler é da década de 1930 (Zeeman, 1975, p. 30 & p.
53-55).
- 202 -
necessário que os polígonos sejam triângulos. Façamos uma “triangulação”
com um quadrilátero apenas, um quadrado. A conta seria 4 vértices – 4
arestas + 2, que é igual a 2. Com dois quadriláteros a conta seria 6 vértices
– 7 arestas + 3 faces, cujo resultado também é 2. A “triangulação” não
precisa ser feita sempre com os mesmos polígonos, apenas triângulos,
apenas quadriláteros, ou quaisquer outros. Façamos uma triangulação com
um quadrado e um triângulo juntos, isto é, com uma aresta em comum. A
conta seria, 5 vértices – 6 arestas + 3 faces, cujo resultado também seria 2.
Os mesmos procedimentos aplicados a um toro dá sempre como resultado
0, aplicados a um plano projetivo dá como resultado 1, aplicados à garrafa
de Klein o resultado é 0 – o mesmo resultado do toro.
- 203 -
Ao lado temos um bi-toro
“triangulado”. Ele tem 8
vértices, 12 arestas e 6
faces. Seu número de Euler
é: 8 – 16 + 6 = -2
- 204 -
topologia quebra com nossa intuição usual, kantiana, da espacialidade e da
temporalidade. Ela demarca seus “elementos” constitutivos numa espécie
de intuição da espacialidade/totalidade que não joga mais com a totalização
e a identificação da entidade com sua figura/imagem-totalizada. A intuição
então passa a ser uma certa apreensão do real-estrutural114, revelado pela
topologia115. Para Lacan o único afeto que interessa à psicanálise, a
angústia, identifica-se a essa intuição do real-estrutural, ela é como seu
pathos116, signo da relação direta do sujeito a esse real, real que o constitui.
Trabalho combinatório
114
A seguinte colocação de Lacan em seu texto “L’Etourdit” (1973/1972): “O matema
se profere do único real primeiramente reconhecido na linguagem, a saber, o número.
Contudo, a história da matemática demonstra (é o caso de dizer) que ele pode se
estender à intuição, com a condição que esse termo seja tão castrado quanto possível de
seu uso metafórico” (p. 37).
115
Podemos ler também no “L’Etourdit”: “Minha topologia não diz respeito a uma
substância a colocar para além do real do que uma prática se motiva. Ela não é teoria.
Mas ela deve dar conta disto que, cortes do discurso, existem tais que modificam a
estrutura que ele acolhe na origem” (p. 34). Mais adiante podemos ler: “O que a
topologia ensina, é a ligação necessária que se estabelece do corte ao número de voltas
que ela comporte para que do corte seja obtido uma modificação de estrutura ou da a-
esfera, único acesso concebível ao real, e concebível do impossível nisto que ele [o
corte] o demonstra” (p. 42).
116
Essa questão pode ser rastreada no seminário da identificação e no seminário
seguinte, sobre a angústia. No seminário sobre a identificação as lições XVI e XVII de 4
e 11 de abril respectivamente, tocam diretamente nessa relação entre a topologia e as
categorias maiores da teoria psicanalítica (desejo, pulsão, Outro, etc.). Na lição XVII ele
chega a dizer, tendo identificado o desejo ao caminho longitudinal que corta o toro, “...a
introdução do desejo do Outro como tal para dizer que é a angústia, mais exatamente,
que a angústia é a sensação deste desejo”. No seminário sobre a angústia as lições, III,
IV e V, de 28 de novembro, 5 e 12 de dezembro respectivamente onde ele situa a
questão do Desejo do Outro a partir de Hamlet, da espacialidade ser articulada a partir
do vazio e não do pleno e cheio da figura dada no espaço – o exemplo do pote – e do
cross-cap.
- 205 -
matemática, pois envolve uma “inversão” em relação à perspectiva
clássica, kantiana e euclidiana.
117
Os historiadores da matemática contam que Gauss chegou a formular uma geometria
não-euclidiana cabalmente, que não publicou, porém, por temer os julgamentos de seus
contemporâneos, em especial de Kant de quem era amigo, todos presos a uma
concepção euclidiana da espacialidade.
118
De acordo com Dieudonné (1987, p.213) a formulação desse postulado hoje em dia
seria a de que “por um ponto A não situado numa reta Δ, é fácil produzir uma paralela
Δ’ a Δ. (...)Δ’ é a única paralela a Δ passando por A”.
- 206 -
O advento dessas geometrias não teve conseqüências apenas para a
geometria clássica. Ele marcou profundamente a história da matemática
desde então, o que resultou no que se denominou crise dos fundamentos da
matemática, circunstância histórica que, apesar do nome, foi muito fértil
em inovações e trouxe muitos desdobramentos para a ciência e o
pensamento de nosso século – dentre os quais, apenas a título de ilustração,
poderíamos listar o advento mesmo de toda essa tecnologia da qual essa
entidade denominada “computador” é a grande estrela.
- 207 -
mesma enquanto um conjunto de operações e especificações que
constituem uma certa espacialidade/temporalidade “estrutural” apta de
alguma forma a indicar o “lugar do desejo” (ver citação acima da lição XX
de 16 de maio de 1962), além de absorver todas as operações indicadas nos
grafos. Aliás, estes se deixam montar perfeitamente sobre as superfícies
(ver, por exemplo,.a lição XXII, de 30 de maio de 1962).
- 208 -
buraco no início, preservadas as vizinhanças ao longo de uma deformação,
o buraco continuará a existir119.
Uma acepção mais radical em que o toro nada tem a ver com uma
imagem pode ser ilustrada na figura abaixo, em que ilustramos a idéia de
variedade. A figura deixa patente que podemos representar cada um dos
ângulos Φ e Ψ como a latitude Φ e a longitude Ψ no toro.
119
A noção de vizinhança é uma dessas noções que implicam na perda da intuição
enquanto uma totalidade. Para entendermos essa noção temos de permanecer num plano
de apreensão da coisa o mais rente possível do elementar, do parcial. A noção de
vizinhança implica numa certa apreensão do espaço/tempo, mas uma apreensão que
ainda não se fixou na letra de uma medida ou de uma escala qualquer. A noção de
vizinhança é uma apreensão do espaço/tempo anterior à possibilidade de medir, de
quantificar. Em matemática dizer que algo é vizinho de alguma coisa é anterior à
possibilidade de fixarmos de quanto essa relação de vizinhança é definida. Por exemplo,
temos um ponto, a vizinhança desse ponto são os pontos situados em torno dele. Na
noção de vizinhança não se especifica o tamanho desse “em torno”. Esse “em torno” é
“arbitrário”. Então, dada uma superfície, uma deformação contínua sobre ela que
preserve as relações de vizinhança é denominada um homeomorfismo ou uma
transformação topológica. Suponhamos uma superfície muito flexível, na qual dois
pontos parecem tão próximos que quase não se distinguem. Aplicamos sobre essa
superfície uma transformação continua, por exemplo, a esticamos ao máximo. Ao fazer
isso observamos que os pontos que pareciam quase mesclados agora estão muito
distantes, isto é muito separados. Do ponto de vista topológico, essa nova situação não
se distingue da primeira, é falso que antes eles estivessem juntos e agora, após a
transformação, eles estejam separados. Topologicamente falando eles continuam tão
“próximos” quanto antes. Se, após a transformação vemos que entre os dois pontos
existem muitos outros pontos – por isso dizemos que agora, após a transformação, eles
estão separados – é porque, topologicamente falando, todos aqueles pontos já estavam lá
antes da transformação. A transformação simplesmente explicitou que se temos dois
pontos, entre eles sempre existe uma infinidade de outros pontos. É por isso que
dizemos “dois pontos”, pois se entre dois pontos não existe uma infinidade de pontos,
então não teríamos dois pontos, mas apenas um ponto.
120
Lacan observa essa definição na lição XII de 7 de março de 1962.
- 209 -
Então, apesar de Lacan trabalhar com as figuras, é evidente que
esse ou aquele aspecto por ele indicado no desenho de uma variedade que
ele esteja a considerar num dado momento não diz respeito à figura ela
mesma, mas diz respeito à variedade enquanto estrutura. Observemos que
a “totalidade” não deve ser considerada a figura como um todo – por
exemplo, a câmara de ar cheia seria a totalidade. A “totalidade” é a
estrutura; o que se trata de considerar é o toro como o conjunto de todas as
suas deformações possíveis (homeomorfismo). É como se fosse possível,
num mundo ideal, ao olharmos um toro, vermos simultaneamente todas as
deformações que, apesar delas, fazem dele o mesmo toro. Poderíamos
também pensar num tipo de criatura que, quando olhasse para as coisas,
não as agruparia segundo um critério de forma, mas segundo sua
pertinência topológica: essa coisa tem um buraco central, então é um toro;
esta outra tem dois buracos, então é um bitoro; essa aqui tem uma banda de
- 210 -
Möebius, então é um plano projetivo; aquela lá tem duas bandas de
Möebius, então é uma garrafa de Klein, etc.
- 211 -
volumes, a arquitetura é feita para mobilizar, para arranjar as superfícies
em torno de um vazio (lição XX, de 16 de maio de 1962).
- 212 -
combinatório da topologia das superfícies, esse entendimento “analítico”,
em oposição ao “sintético”, da espacialidade/temporalidade. Tomemos a
superfície mais simples, a esfera. Podemos ter uma intuição imediata,
global, da esfera, basta vê-la. Não é, no entanto, óbvio que, quando vemos
uma esfera, temos a “intuição” de que cada ponto de sua superfície tem a
mesma distância de um ponto central, sendo essa distância designada como
o raio. Mas, de alguma maneira, nossa intuição da esfera é reenviada para a
operação métrica e esta reenviada, por sua vez, para a intuição. Nessa
circulação, de uma apreensão intuitiva e global (a esfera como um todo)
para uma apreensão analítica (cada ponto guarda a mesma distância do
centro), “por partes” e vice-versa, uma certa identidade se articula entre a
intuição e os aspectos métricos. A tradução “analítica” da intuição é dada
pela operação métrica e a tradução “sintética” da operação métrica é a
intuição.
- 213 -
corte ou o traçar de um caminho fechado sobre a superfície que
necessariamente a dividirá em duas partes ou delimitará, na superfície em
questão, duas regiões distintas. Sendo o corte uma operação local, é ele, e
não a forma, que permite a classificação da superfície. E essa classificação
independe da forma, do aspecto como se a esfera fosse vista de fora como
um todo. Essa classificação se dá por meios intrínsecos à superfície.
- 214 -
Sublinhamos que todas as noções topológicas apresentadas até aqui
respeitam o critério “analítico”, “construtivo”, exposto acima. Por
exemplo, ao situarmos o conceito de superfície fechada (nível global),
apontamos para as operações em termos de caminhos ou cortes (nível
local) que sustentam esse conceito: uma superfície é fechada quando
qualquer caminho que se faça nela não encontra um bordo. É como se no
nível local dispuséssemos de “pedaços” de espaço (vizinhanças) e nossa
operação de caminhar fosse como uma colagem desses “pedaços”. O que é
surpreendente é, após alguns “passeios”, podermos fazer distinções e até
classificações bastante rigorosas sobre os espaços onde esses passeios se
deram, sem que tenhamos tido qualquer visão global, ou intuitiva, dos
- 215 -
mesmos. É surpreendente que, através de manobras tão simples e pouco
promissoras, tal como “andar para frente”, “fazer um círculo”, ou uma
“linha fechada”, possamos realizar um estudo da
espacialidade/temporalidade e de noções que lhe são conexas. É o que
podemos fazer com a repetição deles e com o exame das relações entre
esses diversos “passeios” possíveis – seus cruzamentos, as convergências,
as divergências, etc. Aqui, poderíamos invocar a idéia mais ampla de
continuidade, tão fina quanto rigorosa e que abriu horizontes conceituais
para a humanidade completamente novos e inesperados121, possibilitando
inclusive um avanço evidente no campo da ciência após Newton.
O corte e a superfície
121
Fala-se muito pouco desse aspecto “criativo” da matemática. Em geral se privilegia
seu aspecto dedutivo, sua disciplina. Lacan, sem dúvida, apreciava esse aspecto, mas na
apropriação que ele faz da matemática esse aspecto “criativo” é o de maior importância.
- 216 -
incidência significante: a incidência do significante faz-se então superfície.
“Um significante não tem sempre um lugar de superfície?” (lição XX, de
16 de maio de 1962):
- 217 -
Essa questão é pensada pelo grupo de matemáticos franceses que se
reuniam e produziam matemática sob o codinome de Nicolas Bourbaki122.
Esse grupo marcou Lacan, já que eles seriam representantes de um ponto
de vista estrutural em matemática. Bourbaki estabelece distinções entre o
aspecto formal, mecânico da matemática, e seu aspecto “criativo” ou
“criador”. De um lado, “uma rigorosa sistematização da atividade
lingüística”123, sistematização que estabelece a sintaxe, as regras, o
mecanismo transformacional que regula as passagens de uma proposição a
outra no raciocínio matemático:
122
Sabemos que Bourbaki influênciou Lacan sob vários aspectos. Nicolas Bourbaki não
é o nome próprio de nenhum matemático em particular. Sob esse nome organiza-se toda
uma proposta de produção em matemática que vai desde certas concepções
epistemológicas até a organização institucional da produção, bem como do estilo de
publicação, “anônimo”, ou melhor, no qual os autores abdicam, nas publicações do
grupo, de seus respectivos nomes próprios. Esse grupo de matemáticos, enfim, tinha um
posição bem clara a respeito da transmissão e do ensino da matemática (JURIJ, 1998, p.
97-110; DIEUDONNÉ, 1978, p. 1-17, 1982, p.15-38; BOURBAKI 1969/1976). A
revista ligada a Lacan, Scilicet, foi inspirada, quanto à sua forma, no estilo de Bourbaki
(ROUDINESCO, 1986/1988, p. 499).
123
Nessa etapa resumimos Jurij (1998, p. 97-110), Bourbaki (1990, p. E I.7-E I.11 & E
IV.33-E IV.76).
124
O que fundamenta a verdade de uma proposição matemática, senão um jogo
lingüístico bem estabelecido? Esse “jogo lingüistico bem estabelecido” é justamente, ou
deveria ser, o sistema dedutivo. Acontece na matemática sabermos que uma
determinada proposição ser verdadeira, mas não podermos demonstrar essa “verdade” a
partir do sistema formal com o qual estamos a trabalhar. Por que meios então, sabemos
que essa proposição é verdadeira? (GIRARD, 1989, p. 147-171).
- 218 -
matemáticos, grosso modo, entre aqueles que abandonam a “abstração
matemática fundamental: a idéia de infinito atual em que se apóia o
conceito de verdade” (JURIJ, 1998, p. 100) e aqueles que insistiam em tal
idéia como constituindo o núcleo fundamental da matemática. Aqueles que
abandonam a idéia de infinito atual, em razão desse abandono, vão na
direção de ressaltar o caráter “assemântico” da matemática, sua natureza
dedutiva e seu caráter algorítmico e escritural. Na direção oposta vai
Bourbaki para quem
- 219 -
torno da continuidade, do infinito atual, enquanto
espacialidade/temporalidade. A esse respeito, nossa orientação estaria mais
próxima daquela de Poincaré quando este diz:
Não é a matéria de que tratam que lhes impõe um ou outro método. Se dos
primeiros dizemos amiúde que são analistas, e se chamamos os outros de
geômetras... (POINCARÉ, 1905/1998, p. 13).
Nós não reteremos aqui senão uma coisa: se pela primeira vez nós
podemos designar à topologia um lugar no campo de Freud, é porque nós
a ligamos à uma intuição “...à condição que este termo seja tão castrado
quanto possível de seu uso metafórico” (ver nota nº 15). Quer dizer a
reconduzi-la a um matema. (...)
125
Modelo nesse contexto indica claramente algo que produz uma intuição.
- 220 -
Resumindo, então topologia, intuição, espacialidade/temporalidade,
pathos, angústia, objeto a e real são termos que entretêm uma certa
solidariedade. Na citação que Vappereau faz de F. Klein é notável a
coincidência de ele situar a intuição, a espacialidade e a coisa ela-própria
(real) no mesmo registro, na mesma série. Observemos, finalmente, essa
indicação de Lacan a respeito da intuição no seminário da Identificação:
A topologia não é “feita para nos guiar” na estrutura. Esta estrutura, ela o
é – como retroação da ordem da cadeia na qual consiste a linguagem
(1972, p. 40).
- 221 -
presente trabalho – já que Lacan se valeu dessas referências em toda
extensão de sua obra. Vamos nos deter em dois aspectos apenas: 1- a
proeminência da não-orientabilidade (o corte em “oito interior”) e 2- é o
corte que engendra a estrutura.
- 222 -
Möebius, por ser a estrutura que suporta a distinção entre caminhos
orientados e não-orientados, é um elemento classificador fundamental.
Linha sem pontos, tenho eu dito do corte, enquanto que ele é, ele é, a
banda de Möebius nisto que um de seus bordos, após a volta na qual ela se
fecha, se prossegue noutro bordo.
127
Comunicação pessoal de Ricardo Kubrusly.
- 223 -
receptado [colhido] na articulação “linguageira” enquanto um efeito de
sujeito nela se apreende” (ibid. p.40).
- 224 -
O que autoriza Lacan a fazer essa “violência” conceitual? A nosso
ver é a clínica. Seu movimento a esse respeito é aquele que ele explicita no
seminário XI: “O conceito é determinado pela função que ele tem numa
praxis. Esse conceito dirige a maneira de tratar os pacientes. Inversamente,
a maneira de os tratar comanda o conceito” (1964, p. 114). Ilustremos esse
ponto, finalizando desse modo esta etapa de nosso trabalho.
- 225 -
furada. E nesse furo, como já dissemos, costuramos apenas um disco para
estabelecermos a esfera exigida pelo teorema como ponto de chegada e de
partida no processo de desconstrução e reconstrução da superfície,
necessário para sua classificação.
- 226 -
enquanto uma consistência, ela está como que “diluída” na superfície. Por
outro lado, a banda de Möebius pode ser identificada a uma consistência, a
uma “coisa”, a um “pedaço” de superfície que de fato extraímos do plano
projetivo ou de qualquer outra superfície não-orientável. Basta que
anexemos à linha do corte anterior o corte simples, uma certa vizinhança e,
a seguir, cortemos nos bordos dessa vizinhança que estabelecemos – nesse
caso, teríamos realizado no plano projetivo o corte em dupla volta ou o oito
interior. Ao cortarmos o plano projetivo dessa nova maneira, liberamos
duas “coisas”, duas superfícies abertas: um disco enquanto superfície
orientável e uma banda de Möebius enquanto superfície não-orientável.
- 227 -
se “lembrasse”, ou atualizasse a estrutura möebiana do plano projetivo,
marcando dessa forma o toro com uma espécie de “sombra” do plano
projetivo – embora, pelo teorema da classificação um e outro sejam
superfícies alocadas em grupos diferentes. Um raciocínio análogo aplica-se
à garrafa de Klein que, entretanto, como o cross-cap, também é não-
orientável.
- 228 -
não se trata de apreendê-lo, como na ciência, trata-se de, através das
poucas marcas que ele deixa em sua rede, articular num certo saber que
não deixa de fazer a devida reverência à demonstração, algo de acordo com
os desígnios da transmissão da psicanálise e de sua ética.
- 229 -
Conclusão
- 230 -
Ela nos permitiu então um ataque mais preciso a um aspecto importante de
nosso tema, a saber, o papel que os formalismos jogam na apresentação da
psicanálise lacaniana.
Ele tinha claro que a psicanálise é um campo que se perde. Ela, para
acontecer, depende de um endereçamento do sujeito – aquele que se dá a
partir de seu sintoma. Ela depende então da tranferência e por isso mesmo,
paradoxalmente, da resistência. Ele chega mesmo a dizer, na lição de 15 de
abril de 1964 do seminário sobre Os Quatro Conceitos que:
Portanto, não se tratava para ele nunca de uma batalha ganha. É por
essa via que pensamos poder situar e refletir a demarcação que Lacan
sustenta em relação a ciência. Não é o caso tanto de recusar a ciência –
mesmo porque, cá entre nós, chega a ser patético o tom de alguns analistas
- 231 -
lacanianos que recusam a ciência130; ora, não somos nós, analistas, que
recusamos a ciência, é a ciência que nos recusa, é a ciência que não tolera a
psicanálise. Esse ponto, a nosso ver, tem de estar claro.
130
Ver o recenceamento de alguns autores nessa posição em Beividas (1999).
131
Criticar Freud tornou-se uma espécie de pequena indústria nos EUA. Por exemplo, o
livro de Webster (1995/1999) é um calhamaço de umas 500 páginas! E ao que parece,
não foi e nem será seu último livro visando a desmitificar Freud.
- 232 -
“roupagem” científica, com fins, pelo menos é o que eles sugerem, de
aceitação. Ao contrário, sua utilização dos formalismos pretende dizer de
uma maneira ostensiva que a psicanálise é tributária da ciência, mas não é,
ela própria, uma ciência. Os formalismos em Lacan são coerentes então
com seus desígnios na transmissão. Em primeiro lugar, são coerentes com
seu estilo, em segundo lugar, são coerentes com seu ensino e, em terceiro
lugar, são adequados aos conceitos da psicanálise que ele visa transmitir.
132
Esse é um ponto que nunca é demais sublinhar. A teoria do après coup, do “só-
depois”, não afirma que o sentido emerge imediatamente à incidência do segundo termo
sobre um primeiro termo já dado, cujo sentido e significação se colocam como faltantes.
O “só-depois” implica uma decalagem temporal, quanto ao sentido e a significação, em
todos os níveis. No primeiro termo temos falta de sentido e significação (ignorância do
sujeito que toda significação remete ao sexual, trata-se aí da indiferença infantil ao
sexual). No segundo tempo também temos falta de sentido e significação, mais do que
isso, temos esse efeito que é o da segunda falta incidir sobre a primeira falta, que se
chama trauma – e o trauma, essa falta “angustiada”, também é ausência de sentido e
significação. O sentido e a significação são conseqüência de uma montagem posterior ao
trauma, por isso podemos dizer que são efeito da fantasia – que cobre o impossível dado
no trauma – e que são sempre “sintomáticos”.
- 233 -
antecipava, na primeira parte em relação à segunda parte, é como decepção
que ela se realiza nessa segunda parte.
- 234 -
essa experiência de retomar o que tem a dizer a partir mesmo das coisas
que já disse. Isto é possível e decisivo não apenas em relação aos
significantes de sua história particular, mas também em relação aos
significantes que especificam a psicanálise enquanto um saber.
133
Ao longo do texto nos reenviamos as discussões sobre estilo e, principalmente,
ensino, à recente argüição entre Luciano Elia e Waldir Beividas (1999, p. 777-796). Ver
também o texto de Antônio Carlos Rocha sobre Ensino e a Transmissão (1999).
- 235 -
Chegamos a explicitar uma certa vocação propedêutica em nossa
iniciativa. Chegamos mesmo a mencionar não só um conjunto de reações
negativas em relação ao emprego por Lacan da matemática, mas também a
“fama” de difícil, relativa a essa disciplina.
- 236 -
desse tema. Outros temas nós desdobramo-os através de considerações
históricas. As discussões sobre questão da intuição, a extensão como
presença e positividade, o problema dos irracionais, as tensões entre
geometria e álgebra, etc. foram abordados por essa via de uma
historicização. Já a topologia, tema do capítulo sobre Lacan, foi
apresentada não numa “dramatização” histórica, mas numa apresentação
“informal” de algumas características e desenvolvimentos próprios. A
respeito dela seguimos a indicação de Zeeman (1975) em sua apresentação
informal do teorema da classificação.
- 237 -
geometria euclidiana. Esse sistema de saber nasce se demarcando das
práticas algorítmicas em funcionamento na antigüidade. É nessa negação
do aspecto algorítmico, nessa época associado ao prático e ao empírico, ao
fazer as contas de todos os dias, que surge no contexto do mundo
filosófico, a geometria. E é nesse contexto que constituiu, que se decantou,
os elementos fundamentais da matemática, em especial seu caráter
sistemático, teórico e dedutivo. Salientamos a importância de Platão e de
sua escola nesse desenvolvimento.
- 238 -
se expressarem na escritura que conhecemos hoje como aritmética, e as
operações ganham a possibilidade de serem abordadas em si mesmas.
- 239 -
Já com Freud podemos ver que a psicanálise se demarca da ciência,
estando contudo, como dissemos, numa relação de dependência para com
ela. Com ele podemos ver que o que interessa à psicanálise é o avesso da
operação que coloca os objetos para a ciência. Esse avesso é justamente os
restos que não entram na composição do objeto da ciência. Qual é esse
objeto da ciência? Mais do que qualquer empiricidade definida esse objeto
é a “objetividade”, isto é, a estabilidade, a reprodutibilidade, a regulação
discursiva através de uma lógica estrita – e não do apuramento de uma
língua natural tal como na filosofia – de campos de experiência bem
definidos e demarcados. E o avesso disso? Freud encontra na histeria, nas
manifestações idiosincráticas, sintomáticas, da histérica. Trata-se de algo
não localizável no espaço/tempo ordinário, não referível a qualquer
contorno definido que lhe assegure identidade e estabilidade, ou que
qualquer índice se relacione univocamente no campo da representação.
Algo que só é passível de apreensão, e de uma certa possibilidade de saber,
nessa situação incerta que é a psicanálise, isto é, a transferência conduzida
da maneira indicada por Freud. Lacan, no seminário sobre a Angústia,
concebe o objeto da psicanálise, o objeto causa do desejo como
objetalidade:
- 240 -
Lacan aposta que a topologia propõe uma espaço/temporalidade,
uma “estética”, mais apta para caracterizar esse inabordável que organiza a
subjetividade. Essa espaço/temporalidade não é comandada pelo visual. Ao
contrário, ela se constrói a partir de pedaços conectados, e não de uma
visão que sempre nos seduz com a totalidade da coisa contida em seu
contorno. Se pudéssemos associá-la a um campo de experiência, para
torná-la mais sensível, diríamos que esse espaço/temporalidade seria mais
próxima da experiência de um cego do que da nossa experiência de
videntes, onde as coisas são vistas de longe, “lá-fora”. Sobre essa topologia
Lacan nos diz:
Tudo isso que, no ano passado, procurei articular para vocês entorno do
cross-cap é, para acrescentar a esta dialética uma cavilha, alguma coisa
que sobre o plano deste domínio ambíguo da topologia, nisto em que ela
“emagrece” [amincit] ao extremo os dados do imaginário, que ela se
movimenta [joue sur] sobre uma espécie de trans-espaço o qual no final
das contas tudo deixa a pensar que ele é feito na pior articulação
significante, embora deixando ainda à nossa alcance alguns elementos
intuitivos ... (LACAN, seminário sobre a Angústia, lição III de 28 de
novembro de 1962).
- 241 -
metáfora de nossa posição na vida, já que de fato, do ponto de vista do
desejo e da pulsão, somos cegos, isto é, nunca sabemos bem de onde
falamos, só nos resta tatear, correr os riscos de uma exigência de ato posta
pela vida e pela palavra, e nos renvios desse percurso tentar configurar o
campo onde nos exercemos como sujeito.
- 242 -
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