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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
FILOSOFIA

Pedro Poncioni Mota

Orientadoras: Carla Rodrigues e Adriany Mendonça

Problematizando o sujeito: leituras entre Derrida e Nietzsche

Pedro Poncioni Mota

1
Problematizando o sujeito: leituras entre Derrida e Nietzsche

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós


Graduação em Filosofia, instituto de filosofia e ciência sociais, da
Universidade federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientadoras: Carla Rodrigues e Adriany Mendonça

Rio de Janeiro
Novembro de 2020.

2
Pedro Poncioni Mota

Problematizando o sujeito: leituras entre Derrida e Nietzsche

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Filosofia, Instituto de


Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Aprovado em:

_________________________________________________________________
Carla Rodrigues, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro

________________________________________________________________
Adriany Ferreira de Mendonça, Doutora, Universidade Federa do Rio de Janeiro

_______________________________________________________________
Marcelo de Mello Rangel, Doutor, Universidade Federal de Ouro Preto

________________________________________________________________

Rafael Haddock-Lobo, Doutor, Universidade Estadual do Rio de Janeiro

_________________________________________________________________
Alexandre Fernandes, Doutor, Instituto Federal da Bahia

_________________________________________________________________
Teresa Cristina Calomeni, Doutora, Universidade Federal Fluminense

3
AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior– Capes, pela concessão de


bolsa de estudos e pela bolsa sanduíche.

À Professora Carla Rodrigues, pela aceitação e apoio para realização deste trabalho;

À Professora Adriany Mendonça, por aceitar a posição de coorientadora e pelos


interessantes e importantes comentários.

À Professora Mónica Cragnolini pela recepção, acolhida e orientações.

À Paula Poncioni, mãe e professora, pelas muitas revisões, apoio e carinho;

À Augusto Mota, meu pai, pelo apoio;

À amiga Marina Cavalcanti, pela amizade e discussões;

À Wilca Suzano, pela carinhosa e generosa revisão;

À Georgia Pereira, pela acolhida, carinho e generosidade;

Ao André, pelo carinho e cuidado;

Ao professor e amigo Marcello Rangel, pela amizade, carinho e gentileza;

Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação de Filosofia.

4
Resumo

O presente trabalho tem como objetivo principal refletir sobre o tema do sujeito
particularmente, mas não apenas, na obra de Friedrich Nietzsche, considerando a
problematização desta temática como necessária para a investigação dos problemas da
alteridade e da diferença. Nesta perspectiva, a leitura de Derrida sobre a obra de Nietzsche
mostrou-se como fundamental para tal discussão, sublinhando em seu texto a
problemática do feminino, da autobiografia e da verdade também concernentes ao
problema do sujeito, da alteridade e da diferença. A escritura de Nietzsche é concebida
neste trabalho como precursora na problemática do sujeito, mas também como “póstuma
“ e potente para o debate contemporâneo em torno da desconstrução do sujeito. A
pesquisa consistiu no levantamento e exame da literatura especializada concernente aos
temas que constituem o quadro conceitual deste estudo – sujeito, alteridade, diferença,
verdade, entre os principais. Deste modo, procurei sustentar a hipótese que o texto de
Nietzsche é fundamental para a problematização do sujeito nas questões concernentes ao
conhecimento e a ética; deste modo, busquei pensar como esta problemática libera esses
campos para porvires inauditos. Por fim, preocupei-me em vincular as questões
desenvolvidas em relação a problematização do sujeito as questões já mencionadas, para
refletir por que por intermédio da desconstrução do sujeito é possível conceber um outro
modo de conhecer e existir.

Palavras chaves: Sujeito; Alteridade; Identidade, Diferença; Conhecimento.

Abstract

The main objective of this doctoral thesis is to reflect on the subject particularly, but not
only, in the work of Friedrich Nietzsche, considering the problematization of this theme
as necessary for the investigation of the problems of otherness and difference. In this way,
Derrida's reading of Nietzsche's work proved to be fundamental for such a discussion,
underlining in his text the problem of the feminine, autobiography and truth also
concerning the problem of the subject, alterity and difference. Nietzsche's writing is
conceived in this work as a precursor in the subject's problem, but also as a posthumous
and potent for the contemporary debate around the subject's deconstruction. The research
consisted of the survey and examination of the specialized literature concerning the
themes that constitute the conceptual framework of this study - subject, alterity,
difference, truth, among the main ones. In this way, I tried to maintain that Nietzsche's
text is fundamental for the problematization of the subject om the problems concerning
knowledge and ethics. Finally, I was concerned with linking the issues developed in
relation to the subject's problematization to issues related to subject knowledge and
identity, to reflect why only with deconstruction of the subject is it possible to conceive
another way of knowing and existing.

Key words: Subject; Identity; Otherness; Difference; Knowledge.

5
Lista de abreviaturas - As referências aos livros de Nietzsche foram feitas da seguinte forma: o
sobrenome do autor, seguido da abreviatura da obra referenciada e o número do aforismo. Nos
casos em que o livro fosse dividido em capítulos, não dando sequencialidade ao número dos
aforismos ou não fosse constituído de aforismos, optou-se pela referência ao sobrenome do autor,
ao ano de publicação da obra utilizada e ao número da página.

Anticristo – AC

Assim falava Zaratustra - ZA

Aurora - A

Além do Bem e do Mal – ABM

Crepúsculo dos ídolos - CI

A gaia Ciência – GC

Genealogia da Moral – GM

Humano, Demasiado Humano – HDH

Segunda consideração intempestiva - SCI

Sobre verdade e mentira no sentido extramoral- VM

Vontade de potência- VP

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 7

CAPÍTULO 1 - CRÍTICA AO SUJEITO (DO CONHECIMENTO)................................................................. 16

1.1 O PROBLEMA DA CONSCIÊNCIA ................................................................................................................. 16


1.2 REAVALIANDO A RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, CONHECIMENTO E IMPULSOS .................................................. 33
1.3 DESLOCAMENTOS .................................................................................................................................. 56

CAPÍTULO 2 – DO FEMININO À AUTOBIOGRAFIA EM NIETZSCHE – LEITURAS DE DERRIDA ................. 70

2.1 ESPORAS, ESTILOS .................................................................................................................................. 70


2.2 O RISO E O FEMININO OU O RISO E O ABSURDO ABISMAL DA EXISTÊNCIA ........................................................... 78
2.3 FETICHES ESSENCIALIZANTES .................................................................................................................... 90
2.4 MÚLTIPLAS VOZES GRÁVIDAS: GRAVIDEZ E ALTERIDADE/TEXTO E TEXTURAS ....................................................... 96
2.5 OTOBIOGRAFIAS – NARRAR-SE A SI MESMO DISSIMULANDO-SE .................................................................... 104
2.6 A-VIDA-A-MORTE ................................................................................................................................ 114
2.7 O OUVIDO DO OUTRO ........................................................................................................................... 119

CAPÍTULO 3 – OUTRAS ESCRITURAS (FREUD, DERRIDA E NIETZSCHE) .............................................. 128

3.1 O PENSAMENTO DO TRAÇO NO DISCURSO FREUDIANO E O PENSAMENTO DAS FORÇAS DE NIETZSCHE ................... 129
3.2. SONHOS, UMA FLORESTA DE ESCRITURAS................................................................................................. 138
3.3 O BLOCO MÁGICO E O SUJEITO DA ESCRITURA ............................................................................................ 141
3.4 A ESCRITURA PSÍQUICA E A MÁQUINA DE ESCREVER ............................................................................. 145
3.5 - A ESCRITURA E A METÁFORA EM NIETZSCHE ............................................................................................ 150
3.5 PERSPECTIVISMO AFETIVO ..................................................................................................................... 156
3.6 PAIXÕES E AFETOS SEGUNDA A INTERPRETAÇÃO DE NIETZSCHE..................................................................... 167
3.7 O CORPO COMO MULTIPLICIDADE ........................................................................................................... 175

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 186

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................................... 207

INTRODUÇÃO
7
O objetivo principal desse trabalho é refletir sobre a problematização do sujeito,
particularmente, mas não apenas, nos discursos de Nietzsche em torno das categorias
fundamentais que consolidam o sujeito, tais como a consciência, a razão e o eu, bem como
a noção de verdade associada ao sujeito do conhecimento. Busquei ainda ressaltar como
haveria, no texto nietzschiano, toda uma articulação com as noções de diferença e a
alteridade, presentes em certa noção de forças e do feminino, que promoveriam ” do
sujeito moderno. Nesta direção, procurei investigar como o significante do feminino na
obra de Nietzsche, assim como a lê Derrida, potencializaria tal desconstrução das
categorias essencialistas como identidade, unidade e estabilidade que constituiriam o
sujeito moderno. Outro objetivo foi pesquisar como o discurso freudiano em torno do
traço e da escritura, a partir da leitura de Derrida, somado ao pensamento das forças em
Nietzsche contribuíram poderosamente para a problematização do sujeito, conformando
um outro sujeito como sujeito da escritura. Por último, procurei sublinhar, a partir de
certa noção de escritura e corpo, um pensamento da interpretação como uma operação
originária que deslocaria radicalmente, por meio da noção de impulsos inconscientes,
aquela que seria a atividade primordial e essencial do sujeito da consciência e da razão,
relativa ao conhecimento, mas também procurando abordar o problema da identidade
subjetiva.

A temática de uma problematização do sujeito desenvolvida neste trabalho,


particularmente através dos discursos de Nietzsche, tem suas origens e despontamento a
partir de minha dissertação de mestrado “Zaratustra e as metamorfoses do tempo e do
homem”1 2016), na qual pretendi, juntamente a questão do tempo, problematizar o que
poderia ser o homem numa perspectiva nietzschiana. Com a problematização por mim
proposta do homem a partir de determinada temporalidade pensada pro Nietsche ganhou-
se a compreensão de que o homem não poderia ser considerado a partir de uma
essencialidade, mas como algo que, como proponho, vem a ser no tempo.

. A partir do trabalho da pesquisa realizada para a tese, propus um recorte na


abrangente questão sobre o que pode vir a ser o homem para a problematização sobre o
sujeito moderno, que pode ser compreendido como o “modelo” com o qual o homem
modernamente institui sua humanidade dentro de uma perspectiva racionalista e
iluminista. Tal perspectiva se apresenta, aos olhos de Nietzsche, como o leio, não como

1
CF: Poncioni, 2016.

8
uma ruptura mas enquanto um desdobramento mascarado da metafísica tradicional.
Sujeito seria o nome moderno para a humanidade do homem ou para o modo como a
humanidade (sua essencialidade) do homem se efetiva e concretiza na modernidade.
Portanto, longe de produzir um recorte que limitasse a questão do homem para o sujeito
moderno, procurei situar a questão mais abrangente em determinada situação histórica.
Nessa direção, aos olhos de uma filosofia da suspeita, como é a de Nietzsche, o sujeito
não pode ser uma mera constatação de algo predeterminado como uma essência, mas um
problema a ser pensando e uma certeza a ser criticada.

Entende-se que o trabalho se justifica pela importância que adquire


contemporaneamente a problematização do sujeito e dos “fetiches essencializantes” que
o acompanham que insistem em uma ideia de natureza, propriedade e essência do homem;
nesta direção, pensadores como Jacques Lacan, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e muitos
outros propõem a seus modos um questionamento do lugar e da “estrutura” do sujeito.
Neste sentido, proponho um resgate do discurso nietzschiano na problematização do
sujeito moderno como um marco precursor, apostando que este discurso tem muito a
contribuir para a questão contemporânea do sujeito. Considero o texto nietzschiano como
precursor da problematização do sujeito ao mesmo tempo em que busquei avaliá-lo como
um texto póstumo que muito endereça-se para questões contemporâneas, como as da
identidade, do gênero, do feminino e do corpo. Portanto, longe de ser um texto apenas
“datado”, ou meramente reconhecido como precursor, o texto de Nietzsche, ao questionar
o sujeito, seria potente para produzir, ou melhor, criar problemas em consonância com a
contemporaneidade.

Nesta perspectiva tornou-se imperativa a investigação da interpretação de Derrida


sobre Nietzsche. Argumento que, com essa interpretação, o texto de Nietzsche abre-se
para sentidos inauditos não apenas ao problematizar o sujeito, leitura mais recorrente,
mas também ao enfatizar esta questão desde uma perspectiva da alteridade e da diferença,
o que situaria o discurso nietzschiano como promissor dentro do debate contemporâneo.
Desse modo, a partir da interpretação derridiana sobre Nietzsche pôde-se comtemplar
além do debate da alteridade e da diferença, assim como do feminino, uma relação
insuspeita entre o discurso freudiano do traço e da escritura com a questão do trabalho da
diferença das forças em Nietzsche. Procurei demonstrar que Nietzsche ao criticar o sujeito
moderno descontrói as noções a ele associadas (como consciência, eu, razão, logica,
conhecimento e verdade) ao lhes conceber como ficções desnecessárias e propõe ficções

9
mais potentes de acordo com a noção de vontade de potência. É justamente este caminho
da crítica para a criação que busquei percorrer por apresentar-se como uma estratégia de
grande valia para o pensamento contemporâneo do sujeito.

Como metodologia procurei organizar e selecionar uma bibliografia referente a


Nietzsche que permeasse o tema do sujeito moderno, encontrando em sua maior parte
referências as categorias do sujeito como consciência, racionalidade e eu. Procurei
considerar, ainda, uma seleção das obras em que há a interpretação de Derrida sobre o
filósofo alemão por considerar que seu tratamento do texto nietzschiano me possibilitaria
uma abertura para uma abordagem contemporânea. Além disso, outros intérpretes
particularmente de Nietzsche foram abordados, como Muller-Lauter (2009) e Miguel de
Barrenechea (2009). Em relação à bibliografia de Nietzsche uma ressalva precisa ser feita:
procurei analisar fundamentalmente os textos publicados, mas ainda utilizei passagens
do póstumo A vontade de poder quando necessário, porém acompanhado das reflexões
dos textos publicados devido a longa polêmica em torno da autoria deste texto mas
reconhecendo nas passagens utilizadas do texto póstumo caminhos de seu pensamento 2.

Para fins de apresentação, o trabalho foi assim organizado: além desta introdução
há três capítulos e as considerações finais. No primeiro capítulo abordei a crítica de
Nietzsche ao sujeito moderno, assim como ela aparece em grande parte de sua obra,
através das categorias que lhe seriam mais próprias, como as de consciência,
racionalidade, eu, que por sua vez estão intimamente relacionadas à questão do
conhecimento assim como este é concebido na modernidade filosófica. Portanto, este
capítulo foi dedicado à crítica mais contundente de Nietzsche ao sujeito do conhecimento.
Considerei que principalmente através da problematização do valor da consciência por
intermédio da proposição de que esta não é uma essência predeterminada e o âmago do
ser humano que Nietzsche, a partir de uma hipótese de sua genealogia, pretende
demonstrar que a atividade e o valor atribuídos à consciência não passa de uma
hipervaloração e que mesmo a atividade dos pensamentos não lhe é própria, sendo a

2
Nietzsche nunca chegou a escrever o livro intitulado “A vontade de poder” como o conhecemos. A
ordenação e edição dos aforismos foi feita por sua irmã Elizabeth Forster-Nietzsche e por Peter Gast e
suspeita-se de alteração do texto original e não se sabe que fim daria o filósofo alemão a estes escritos .
A partir dessa suspeita e consideração cuidei de que os aforismos utilizados desse livro sempre se apoiam-
se em outras passagens publicadas contudo levei em consideração a afirmação de Marcos Sinésio e
Francisco Morais na nota sobre a tradução de que “[...] todos os aforismos que este livro contém foram,
sem dúvida, escritos por ele. O que, de fato, não é de sua autoria é a ordenação dos aforismos sob os
respectivos títulos que dividem a obra” (Vp, 2008, sobre a tradução).

10
consciência portanto destituída de sua autonomia. Para o filósofo alemão seria a partir de
toda uma gênese pulsional inconsciente que os pensamentos vêm a acontecer. É, portanto
desde uma crítica ao valor da consciência, que Nietzsche concebe uma outra atividade
dos pensamentos não subordinada a ela. Também o conhecimento é concebido a partir
de uma gênese pulsional diferentemente da tradição moderna que o pensa em sua
objetividade: Nietzsche sublinha que o conhecimento tal como é concebido
modernamente como impessoal, objetivo e autônomo frente aos impulsos e paixões seria
dominado por um impulso (particularmente o impulso para a verdade), que se mostraria
como um impulso conservador de determinado tipo de vida, que precisaria frente ao
estranho e ao novo converte-los em algo já conhecido, e frente ao múltiplo simplificá-lo,
tornando tudo que se apresente como perigoso como algo já familiar. Entretanto, assim
como a consciência é criticada como aparece em seu vir a ser moderno - mas é ainda
pensada em outros porvires possíveis - também o conhecimento é concebido a partir de
outros impulsos que não visam apenas à conservação. Conhecer, por exemplo, aparece
como possível a partir do impulso lúdico, no qual a vida não quer apenas se conservar.
Nesta direção, conhecer pode ser um impulso da vida que quer se expandir
primordialmente segundo a vontade de potência. Portanto, a crítica nietzschiana à
consciência, ao “eu” e ao conhecimento parece ser direcionada ao estado de forças
reativas que os dominou até então. Porém, tal crítica parece produzir um efeito de
“liberação” para que estas instâncias sejam forjadas e atravessadas por novas forças
afirmativas, produzindo um outro porvir no qual consciência, eu, conhecimento e verdade
também venham a ser de um outro modo, em consonância com vida entendida como
vontade de potência.

No segundo capítulo, a partir da interpretação de Derrida sobre o texto de


Nietzsche, busquei desenvolver a questão da inscrição do jogo da alteridade e da
diferença. Na primeira parte deste capítulo a partir de Esporas - os estilos de Nietzsche
(2013), procurei sublinhar como o significante feminino torna-se a partir da interpretação
derridiana do texto de Nietzsche um elemento desconstrutor de tudo aquilo que a filosofia
numa postura dogmática pretende apresentar como a essência, a natureza, a identidade
inclusive do próprio feminino. O feminino e a mulher aparecem no texto de Nietzsche
como aqueles que operam na distância e no distanciamento, escapando de serem
capturados por um “fetiche essecializante”; além disto, a mulher “seria” não identidade,
não essência, simulacro e abismo fazendo soçobrar o discurso filosófico tradicional.

11
Neste sentido, a verdade mesma seria “contaminada” pela mulher: com o “devir
mulher da ideia” de Nietzsche ressaltado por Derrida, a verdade passa a ser concebida
não por sua presença, mas pelo rastro e pela distância dos véus que nada encobrem, ou
apenas fingem que encobrem através da potência dissimuladora da vida. Ainda, em
contraposição à seriedade do filósofo dogmático para lidar com a verdade que é mulher,
o feminino apresentaria um novo conceito ou crença que visaria o riso. Riso que teria
elementos do feminino e do dionisismo capazes de desconstruir tanto o sentindo imposto
à realidade quanto à verdade estabelecida, assim como o rir de si pode depor a seriedade
da auto representação indenitária. Nesta perspectiva, o riso seria um dispositivo afetivo
que afirmaria o abismo do sem sentido da mulher e, com isto, também o júbilo da criação
de verdades como simulacros capazes de afirmar a vida. Tal é a inscrição do feminino no
texto de Nietzsche que Derrida afirma que este é habitado por múltiplas vozes grávidas;
é que Nietzsche seria o pensador da gravidez. As vozes no texto de Nietzsche seriam
sempre múltiplas e femininas não podendo ser reduzidas a um “monólogo” sem perder
sua singularidade; além dessas vozes serem múltiplas, seriam grávidas carregando em si
a alteridade do outro e a afirmação do porvir que a gravidez e o parto assinalariam. Nesta
direção, o feminino aparece como uma pluralidade no texto de Nietzsche tecendo, a cada
vez, diferentes estratégias de ataque e defesa em relação à filosofia e seu dogmatismo,
sempre se opondo a uma “mono-lógica” da identidade e da presença que fundamentam a
metafísica do sujeito.

Em um segundo momento deste capítulo, procuro por intermédio de


Otobiografias (DERRIDA, 1988) analisar no texto de Nietzsche, particularmente Ecce
Homo (NIETZSHCE, 1995), o problema da “autobiografia” que nos conduz a questões
como identidade e alteridade, produzindo novas estratégias para problematizar o sujeito.
Em sua leitura de Nietzsche Derrida indica que a questão da auto-representação no
filósofo alemão não se deixa capturar pela lógica da unidade do indivíduo. O que se
apreende é a tensão e o contraste de uma dualidade que se expressa multiplamente como
é sublinhado por Derrida em Ecce Homo. É por meio desse duplo “original” que Derrida
irá repensar na autobiografia a questão da vida e da morte colocando em jogo uma nova
conjugação da vida da morte para desconstruir a separação dualista entre os dois. A morte
apresentar-se-á desde o nome daquele que assina, que é por assim dizer o nome de um
morto, pois todo conceito mataria aquele que nomeia. E, ainda, analisando o crédito
aberto por Nietzsche em relação a sua própria vida em seu nome, mas também no nome

12
de outros que virão, que Derrida sublinha uma outra relação entre o nome do morto e
aquele que virá a contra-assinar o texto, sendo este pensado como o “ouvido do outro”.
Não apenas o texto autobiográfico, mas todo texto partilharia desse acontecer que só se
efetiva a partir da alteridade do outro, e não a partir do autos indenitário de seu autor.
Com isto, o texto perde seu suposto centro auto regulador, capaz de conter o sentido e a
verdade de uma obra, para apresentar-se em uma disseminação de sentidos que virão a
acontecer postumamente. Esta outra perspectiva, em torno da identidade e da alteridade,
do sentido e da verdade a partir do acontecimento do texto propõe uma outra maneira de
pensar e desconstruir a metafísica do sujeito. A noção de uma identidade fechada e
autorregulada em seu sentido e verdade é desconstruída em favor da alteridade do ouvido
do outro e seu trabalho interpretativo que vem contra assinar o texto. Com a aguçada
interpretação de Derrida, o texto sempre porvir de Nietzsche se abre como um dispositivo
estratégico para a questão do eu e do outro, da alteridade e da diferença, acentuando desse
modo a potência do discurso nietzschiano para lidar com uma problemática
contemporânea em torno do sujeito e do outro a partir da questão do escrito
autobiográfico.

No terceiro e último capítulo, fazendo um pequeno desvio justificável pela


temática e pelo intuito de desdobrá-la a partir de certa cena contemporânea, procurei, por
intermédio da leitura derridiana do discurso freudiano, pensar como a questão do traço se
associa a certa desconstrução do sujeito A interpretação derridiana percorre o
desenvolvimento de um pensamento do traço no discurso freudiano, que vai de uma
definição neurobiológica até a metáfora do aparelho de escritura com o bloco mágico .
Derrida observa que, desde o início, Freud propõe já a questão do traço, embora sem o
pensar sob o sentido da escritura. Contudo, o trabalho do traço é constituído na diferença
das forças que o filósofo argelino associa a questão das forças em Nietzsche.

Com base nessa indicação, procurei, então, desenvolver o problema das forças em
Nietzsche e sua aparição sempre plural, escapando de uma substancialização metafísica.
Além de plurais, as forças estariam sempre em uma beligerância dinâmica graças à
diferença que as constituem, e não tenderiam a harmonia ou ao repouso. Neste sentido, a
partir do problema das forças, procurei defender que já em Nietzsche o problema da
alteridade e da diferença se constitui, podendo ser articulado à questão do traço no
discurso freudiano.

13
É nesta direção que Derrida irá pensar, a partir do pensamento do traço freudiano,
o sujeito da escritura que não se coadunaria com a metafísica da presença, pois longe de
ser representado pela solidão soberana do escritor, ele seria um sistema de relações entre
camadas. É em torno do problema da escritura, mas também de uma linguagem não mais
submetida ao logos ordenador, que conduzo a segunda parte deste capítulo, ao retomar o
discurso nietzschiano, principalmente a partir de A verdade e a mentira no sentido extra
moral.

Em sua interpretação de Nietzsche, Derrida propõe que a linguagem e a escrita


não se submeteriam ao logos e a verdade, mas funcionariam como operações
“originárias”, não correspondentes a uma essência ou sustância. Com isto, pude conduzir
o trabalho a partir desta noção de linguagem e escritura para a noção de interpretação em
Nietzsche, a qual realiza a função de uma operação “originária”. A interpretação, para o
filósofo, não seria efetivada por um sujeito soberano, mas sim pelos impulsos que se
digladiam para impor suas interpretações. Com isto, tornou-se imprescindível pensar o
problema do perspectivismo em Nietzsche.

O perspectivismo se mostrou como um modo de conhecimento que se efetiva


junto à crítica ao sujeito de conhecimento moderno, sua objetividade e sua isenção ao vir
a ser. Em sua crítica ao modo de conhecimento moderno do sujeito, Nietzsche constata
que, longe de ser objetivo, este é movido por um impulso, o impulso de verdade, que nega
outros impulsos. Por outro lado, se no perspectivismo há a afirmação do vir a ser dos
impulsos e afetos, que nos constituem e que produzem interpretações, coube investigar
qual a relação que se estabelece entre ambos. Nesse sentido, investigou-se a relação entre
os afetos, a interpretação e o conhecimento Pode-se afirmar que, com o perspectivismo,
se estabelece uma singular relação com os afetos a partir de uma outra posição, na qual
não há a necessidade de se estabelecer um sujeito com sua consciência soberana, mas
uma multiplicidade de afetos que atuam por baixo da consciência, cada qual querendo
impor sua interpretação Por último, procurei investigar a relação entre o corpo, a
subjetividade e o conhecimento perspectivo ao reconhecer que a dinâmica dos afetos se
dá primordialmente no corpo, que será entendido não como uma unidade, mas uma
multiplicidade de forças. Enquanto uma multiplicidade de forças, o corpo não será tratado
por Nietzsche como um novo fundamento para o conhecimento, pois não é concebido
como uma estabilidade ou unidade, mas é a ele que será referido dentro de uma dinâmica
singular dos impulsos afetivos. A afirmação do corpo e sua relação com o conhecimento

14
se dariam de modo crítico, pois é antiga a herança metafísica que o exclui em nome de
um desvelamento da verdade conduzido por uma alma imortal que não participaria do vir
a ser. Com o corpo, portanto, um modo radicalmente outro de conhecimento é possível,
não mais objetivo e desinteressado, mas conduzido pelos impulsos afetivos que são
sempre interessados em impor suas interpretações. Além disso, uma outra concepção de
verdade é possível, não mais absoluta, mas em afinidade com a afirmação da potência de
um corpo. Também seriam desconstruídas as noções de alma, consciência, “eu” e sujeito,
podendo ser afirmada outra concepção de subjetividade a partir da corporalidade, uma
subjetividade encarnada, corporal.

Por fim, procurei repensar, a partir da discussão do primeiro capítulo, o valor da


consciência quando pensada a partir desse todo múltiplo que é o corpo. A consciência
aparece não como uma soberana autônoma frente à corporalidade, mas como um
instrumento subordinado a esta, com a função de estabelecer a harmonia de um sentido
provisório para a multiplicidade sempre beligerante de forças. Portanto, com o corpo
entendido como uma comunidade beligerante de múltiplas forças, pôde-se melhor
compreender a importância dos afetos na produção do conhecimento e a função limitada
e subordinada da consciência, mas apreender também uma outra concepção de
subjetividade encarnada, que só é possível após a destruição crítica de noções metafísica
como eu, alma e sujeito que sempre foram afirmadas em contraposição ao corpo e seu vir
a ser.

15
CAPÍTULO 1 - CRÍTICA AO SUJEITO
(DO CONHECIMENTO)
1.1 O problema da consciência

Pode-se dizer que a noção de sujeito, tal como é constituída na modernidade


filosófica, principalmente a partir de Descartes 3 e problematizada posteriormente por
Kant4, liga-se fundamentalmente ao problema do conhecimento, tornando-se aquele o
principal fundamento garantidor da possibilidade de conhecimento 5. Na modernidade
filosófica o conhecimento é entendido como racional objetivo e desinteressado, já que se
constituiria sob a égide da consciência, o que permitiria ao sujeito (do conhecimento) uma
autonomia e liberdade em relação ao corpo, suas paixões e impulsos6·, sustentando, deste
modo, a objetividade racional dos pensamentos. Contudo, levando em consideração a
provocação de Nietzsche (ABM, §2), de que “a crença fundamental dos metafísicos é a
crença nas oposições de valores”, pode-se sublinhar que a noção de sujeito, tal como
concebida na modernidade, só pôde ser constituída graças a uma herança metafísica e
binária que contrapõe a razão aos impulsos, desvalorizando estes últimos em nome de

3
Analisarei ainda neste capítulo a crítica de Nietzsche a certa noção de sujeito instituída pela filosofia de
Descartes.
4
De modo sucinto, pode-se colocar que, com a filosofia kantiana marcada pelo projeto iluminista, a razão
torna-se o núcleo do pensar; ressalta-se ainda que Kant indique o problema das determinações e categorias
a priori que possibilitam o sujeito conhecer o mundo
5
Nessa direção, ressaltando o acento que a teoria do conhecimento adquire na modernidade a partir de
Descartes e Kant, Gilvan Fogel realça que: “Na história da filosofia, desde a Grécia clássica, o
conhecimento sempre se configurou com um dos problemas maiores. Discutido, porém, de maneira
inseparável da pergunta pelo real, ou seja, constituindo-se num modo ou numa via de acesso para a
compreensão da realidade do real. Mas com a característica de um problema à parte, independente e,
sobretudo, com a efígie de propedêutica e de organon, isso somente se dá na modernidade, no
desdobramento de uma certa compreensão/interpretação de Descartes e, principalmente, de Kant. É nesta
rota histórica que o conhecimento, já no século XIX, será tematizado sob a sigla “teoria do conhecimento”
(ou ainda epistemologia, criteriologia, gnosiologia) e tal tematização se fará a partir dos pressupostos desta
era moderna.” (FOGEL, 2002, sem paginação)
6
Sobre a tradução dos termos Instinkt e Trieb, Roberto Machado indica que “de um modo geral, Nietzsche
não faz diferença entre os termos Instinkt, de origem latina, e Trieb, de origem propriamente germânica,
utilizando-os como equivalentes e formando a partir deles outros termos ou expressões compostos.”Cf.
Machado, 1999, p.97. Levando em consideração a observação de Machado em torno da equivalência do
uso em Nietzsche dos termos Instinkt (instinto) e Trieb (pulsão ou impulso), opto por traduzi-los
predominantemente com o termo impulso no intuito de uniformizar o vocábulo e por considerar que a
tradução de trieb ou instinkt para impulso é interessante para este trabalho, pois é um terceiro termo que
não recairia no problema de tradução posteriormente desenvolvido a partir dos escritos freudianos da
divisão dual entre instinto (animal) e pulsão(humana), isso também considerando o trabalho de Nietzsche
por apontar a animalidade do humano. Nesse sentido, mantenho em sua maior parte a tradução de Paulo
Cesar de Sousa.

16
uma hipervaloração da consciência racional do sujeito. Assim que, para desenvolver uma
crítica à noção de sujeito moderno no que diz respeito à implicação fundamental desta no
problema do conhecimento, procuro levar em consideração as diferentes estratégias de
Nietzsche que visariam desestabilizar esta noção em sua constituição de fundamento
seguro para o conhecimento. Nesse sentido, ressalto que a crítica de Nietzsche ao sujeito
do conhecimento se desdobra no quadro mais amplo de sua crítica à metafísica, já que,
para o filósofo, a noção de sujeito, em sua afinidade com noções como consciência,
racionalidade e o “eu”, encontra-se implicada com uma série de implicações de cunho
metafísico.

Pode-se considerar que a crítica ao sujeito do conhecimento se constituiria em


relação à passagem daquilo que Nietzsche chamara de “morte de Deus” 7, ou seja, a
desvalorização dos valores absolutos 8, que teria como uma de suas principais
consequências o aparecimento na modernidade das “sombras de Deus” 9. Com a
expressão “sombras de Deus” 10, Nietzsche assinalaria que, após a “morte de Deus”, o
homem moderno necessitaria erigir novos ídolos que cumpririam a função de fundamento
no lugar do próprio Deus, incluindo a noção de sujeito. Em um fragmento póstumo, o
filósofo explicita que “... o valor, o sentido, a esfera dos valores eram sólidos,
incondicionais, eternos, sendo identificados com Deus [...] Transferiu-se o advento do
‘Reino de Deus’ no futuro, sobre a terra, no humano - mas no fundo se manteve a crença
no antigo ideal... ” 11 (NIETZSCHE, 1887-1888 Apud MACHADO, 2001, p. 64). Ora,
pode-se enfatizar que, na modernidade, o mais próprio do humano se identificaria à noção
de sujeito; humano seria todo aquele que poderia aceder à condição de sujeito (racional,
consciente, moral...). Além disso, a noção de sujeito tomada como um fundamento se
estabeleceria, no vácuo deixado pela morte de Deus, como uma sombra de Deus. Nessa
direção, a filósofa Mónica Cragnolini (2006, P. 42) em sua obra Moradas nietzschianas
argumenta que “ [...] a desconstrução da categoria de ‘sujeito’ se insere no processo

7
Pode-se entender a “morte de Deus” no duplo sentido cristão-metafisico, pois o Deus cristão é, para o
autor, no ocidente, a mais evidente concreção religiosa da metafisica já que o filósofo considera no prólogo
de Além do bem e do mal que “o Cristianismo é um platonismo para o povo” e ainda “-Por último, minha
desconfiança, com Platão, vai até o fundo: acho-o tão extraviado de todos os instintos fundamentais dos
helenos, tão moralizado, tão preexistentemente cristão (...)”. Desse modo, pode-se colocar que com “a
morte de Deus” também os valores metafísicos são desestabilizados. Cf. NIETZSCHE. CI, sc 2.
8
Cf. MACHADO, 2001, P.62; DELEUZE, 1976, P.69.
9
Cf. NIETZSCHE, GC, §343.
10
Cf: NIETZSCHE, GC, §108 e §109.
11
Cf. NIETZSCHE, 1887-1888 apud MACHADO, 2001, p. 64.

17
crítico da ideia mesma de Deus-fundamento”12, assinalando deste modo a relação
intrínseca entre a noção de Deus e a de sujeito erigido como um novo fundamento.
Portanto, com a desvalorização dos valores absolutos identificados sob o nome de Deus,
Nietzsche entrevê uma insuspeita substituição desses por valores demasiadamente
humanos através dos quais, pode-se ressaltar, o sujeito racional e consciente adquire na
modernidade uma supervalorização. Neste sentido, lemos em Cragnolini:

[...] O sujeito moderno se apresenta como uma nova sombra de Deus, uma vez
este morto. Isto significa que o sujeito ocupa na modernidade o lugar vazio
deixado pelo Deus morto e cumpre suas funções fundamentadoras no âmbito,
ontológico, gnosiológico e ético-político. (Cragnolini, 2006, p. 38)

Pode-se entender então que o vazio deixado pela “morte de Deus” é de tal
maneira insuportável para o homem moderno que este manteria, a partir da noção de
sujeito, a função de fundamento outrora ocupada por Deus. Desse modo, o próprio
fundamento garantidor dos âmbitos ontológicos, gnosiológicos e ético-políticos
permaneceria sólido, seguro e inquestionável. Portanto o locus ocupado antes por Deus,
que fazia função de origem e fundamento assegurador e estável de todos os valores, seria
na modernidade ocupado pelo sujeito moderno e seus atributos, tais como a consciência
e a razão, já que o homem na modernidade passa a ser compreendido fundamentalmente
como consciência e razão. Nessa direção reflete Roberto Machado que:

A expressão “morte de Deus” é a constatação da ruptura que a modernidade


introduz na história da cultura com o desaparecimento dos valores absolutos,
das essências, do fundamento divino; significa, portanto, a substituição, da
autoridade de Deus e da igreja pela autoridade do homem considerado como
consciência e razão (...) “(MACHADO, 2001, p.. 48, grifo meu).

Desse modo entendo o direcionamento da crítica de Nietzsche que recai sobre


as noções que ocupam a função de fundamento seguro para o conhecimento como o
sujeito e seus atributos de consciência e razão. Neste sentido, sublinha-se que a crítica ao
sujeito moderno aparece de forma mais contundente nos escritos publicados do filósofo
em relação aos atributos que tradicionalmente são associados a esse sujeito, tais como a
razão, a consciência e sua implicação na perspectiva de conhecimento da modernidade.
Por esta via, a crítica nietzschiana desestabilizaria os atributos do sujeito que
conformariam sua “identidade”, colocando em questão a própria noção de sujeito (e de

12
Ressalto que todos os textos de Mónica Cragnolini foram por mim traduzidos do original em espanhol
para o português. Assim como os textos em espanhol de Sebastian Chun e Paula Fleisner

18
“eu”) como fundamento seguro do conhecimento, assim como o concebe a modernidade.
Se Deus apresentava-se como fundamento absoluto para todos os valores, por sua vez, na
modernidade a consciência é supervalorizada como medida para atribuição dos demais
valores, assim como indica Cragnolini comentando a noção de subjetividade moderna:

Se pensamos nos caracteres básicos da noção de subjetividade moderna tal


como foi delineada por Heidegger em sua ideia de “metafísica da
subjetividade”, devemos considerar o homem, transformado em subjectum,
centro de referência do ente como tal, em seu enfrentamento com o mundo,
convertido em objectum. O âmbito da objetualidade, como aquele que o
homem coloca frente a si, e do qual dispõe, é levado ao “teatro da consciência”,
no modo da representação. O sujeito representacionista converte o mundo em
imagem nesse espaço que é a sua consciência [...](CRAGNOLINI, 2016, p.38)

A partir dessa passagem, que relaciona a noção de subjetividade moderna à


valorização da consciência, ressalto que a noção de sujeito na modernidade é
fundamentalmente relacionada à consciência, pois o sujeito é compreendido como aquele
que tem a faculdade de representar o mundo a partir de uma “objetualidade”, mas também
a si próprio neste âmbito que é sua consciência, no “teatro da consciência”. Cabe apontar,
contudo, uma importante consideração de Cragnolini em relação ao valor da consciência
para a crítica de Nietzsche:

[...] na interpretação nietzschiana da história da metafísica, a consciência não


é um conceito característico da modernidade, Nietzsche a localiza no início da
filosofia com Sócrates. Poderíamos dizer que, em termos modernos, razão e
consciência são dois conceitos extremamente unidos: a razão que tenta, no
iluminismo, acabar com os restos de obscuras mitologias e crenças é a razão
que se esclarece no âmbito da consciência. (CRAGNOLINI, 2006, p.39,
tradução minha).

Sendo o conceito de consciência localizado por Nietzsche nos primórdios da


filosofia a partir de Sócrates, sublinha-se que há nos escritos do filósofo uma crítica
particular a esse conceito, no que se refere à compreensão moderna de consciência e sua
relação com o conhecimento racional. Na modernidade, consciência e racionalidade
seriam conceitos radicalmente conexos. Nessa direção, pode-se entender a contundente
crítica do pensador à compreensão moderna que supervaloriza a consciência como uma
propriedade privilegiada do sujeito:

Pensam que nela está o âmago do ser humano, o que nele é duradouro,
derradeiro, eterno, primordial! Tomam a consciência por uma firme grandeza
dada! Negam seu crescimento, suas intermitências! Veem-na como “unidade
do organismo”! – Essa ridícula superestimação e má-compreensão da
consciência [...] (NIETZSCHE, GC, §11, grifo meu)

19
Denunciando a superestimação da consciência o filósofo sinaliza que lhe são
atribuídos valores que eram concedidos ao Deus cristão como eternidade, unidade,
“primordialidade”, mas que com a “morte de Deus” seriam deslocados na passagem da
modernidade para o que seria “o âmago do ser humano” e o “órgão” fundamental para o
conhecimento racional desde onde o homem se apropriaria do mundo e de si mesmo. A
partir dessa valoração, a consciência é tomada como uma “firme grandeza dada”, ou seja,
como algo que permaneceria em sua estabilidade externa ao vir a ser enquanto uma
“substância” pré-determinada em sua constituição e essencialidade. Além do que, a
consciência, sendo considerada como o “âmago do ser humano”, e assim supervalorizada
como o que este teria de essencial e próprio, distinguindo-o como ente superior e
privilegiado frente a todos os demais entes. A consciência apareceria no projeto de
conhecimento da modernidade, assim como o sujeito a ela relacionado, como uma das
principais “sombras de Deus” a ser desconstruída justo por sua herança metafisico-
religiosa dissimulada nos ideais modernos 13. Questionando a supervaloração da
consciência ao problematizar o valor dessa avaliação, Nietzsche, no livro V de A gaia
ciência, argumenta que:

O problema da consciência (ou mais precisamente: de tornar-se consciente):


só nos aparece quando começamos a entender em que medida poderíamos
passar sem ela [...]. Pois nós poderíamos pensar, sentir, querer, recordar,
poderíamos igualmente “agir” em todo o sentido da palavra: e não obstante
nada disso precisaria nos “entrar na consciência” (como se diz figuradamente).
A vida inteira seria possível sem que, por assim dizer, ela se olhasse no
espelho: tal como ainda hoje a parte preponderante de nossa vida nos socorre,
sem esse espelhamento – também nossa vida pensante, sensível e querente, por
mais ofensivo que isso soe para um filósofo mais velho. Para que então
consciência, quando no essencial ela é supérflua? (NIETZSCHE, GC, p.221,
§354, grifo meu)

É em torno da problematização “para que então consciência [...]? ” que se


desenvolve a investigação do filósofo, ao buscar compreender a necessidade de sua
supervalorização na história do Ocidente que culmina na concepção moderna da
consciência como registro privilegiado do conhecimento racional para a representação de
si e do mundo. Nessa passagem a consciência apareceria como um espelho e, poderíamos

13
Também Nietzsche avalia como um “erro monstruoso” tomar “a consciência como a suprema forma
alcançável, como espécie superior do ser, como ‘Deus”’ Cf. NIETZSCHE,VP, §529.

20
acrescentar um espelho narcísico por intermédio do qual o mundo e o si mesmo são
representados através de uma lógica da identidade e identificação do diferente ou
semelhante como igual. Nota-se ainda que, segundo Nietzsche, a vida pensante, sensível
e querente se realizaria sem a “entrada na consciência”; poderíamos, portanto, sentir,
querer, recordar e “agir” sem esse espelhamento, o que soaria ofensivo para um filósofo
mais velho, ou seja, aquele que constitui seu pensamento em certa metafísica que se
entretece em grande parte a partir da valorização da consciência como elemento
constituinte do conhecimento, do agir, do querer e do sentir. Desse modo, afirmar que
pensar, sentir, querer e inclusive “agir” são possíveis sem a participação da consciência
seria de certa maneira desconstituir o poderio do sujeito moderno com seu atributo de
autonomia e liberdade da vontade a partir da consciência e da razão.

A questão em torno do “para que consciência [...]? ” se desdobra em seus escritos,


fundamentalmente os de A gaia ciência, por meio de uma investigação em torno das
origens da consciência. Pois, se há na história do Ocidente uma interpretação arbitrária e
“falsificadora” da origem e do estatuto da consciência, como Nietzsche reconhece, seja
como algo divino, seja como transcendental que tornaria o homem hierarquicamente
superior a outros entes, deve haver alguma necessidade para que tal valoração da
consciência se estabeleça enquanto uma verdade hegemônica, normativa e prescritiva do
ser e do pensar do homem e de sua relação com o mundo. Tomando a consciência não
como algo dado e predeterminado ao modo de uma substância, mas como algo que teve
seu desenvolvimento sob determinadas forças e circunstâncias, o filósofo explicita uma
conjectura de sua gênese:

Se querem dar ouvidos a minha resposta a essa pergunta e a sua conjectura


talvez extravagante, parece-me que a sutileza e a força da consciência estão
sempre relacionadas à capacidade de comunicação! [...]. Parece-me que é
assim no tocante a raças e correntes de gerações: onde a necessidade, a
indigência por muito tempo obrigaram os homens a se comunicarem, a
compreenderem uns aos outros de forma mais rápida e sutil [...]. Supondo que
está observação seja correta, posso apresentar a conjectura de que a
consciência desenvolveu-se apenas por necessidade de comunicação [...]. O
fato de nossas ações, pensamentos e sentimento, mesmo movimentos nos
chegarem à consciência – ao menos partes deles – é consequência de uma
terrível obrigação que por longuíssimo tempo governou os homens: ele
precisava sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, ele precisava de
seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível – e
para isto ele necessitava antes de “consciência”, isto é “saber” o que pensava.
(NIETZSCHE, GC, §354, grifo meu)

21
A consciência, segundo a conjectura do filósofo alemão, não é associada, como o
fez a tradição ocidental, a uma propriedade ou essencialidade privilegiada do homem,
quanto menos a um aspecto divino ou transcendente, pelo contrário, seriam a indigência
e fraqueza do animal homem que tornariam necessário seu surgimento e
desenvolvimento. Desse modo, a consciência se desenvolveria, pois, a partir de um
imperativo humano, demasiadamente humano como um instrumento útil à comunicação
para a sobrevivência e conservação do homem considerado pelo filósofo como um animal
ameaçado e desprotegido. Assim, a consciência, como se desenvolvera, enquanto um
“órgão” para a comunicação teria sua formação em consequência da necessidade da
miséria humana, como um instrumento útil para a proteção e segurança frente aos perigos
da vida a partir dos quais os homens precisavam de seus iguais. A consciência
possibilitaria, portanto, a aproximação e a comunicação entre seus iguais, portanto já aqui
ela aparece como um instrumento a favor da formação de rebanhos. Desse modo, a
consciência é compreendida por Nietzsche (GC, §354) como “apenas uma rede de ligação
entre as pessoas – apenas como tal ela teve de se desenvolver”. É nessa direção que a
consciência se desenvolveria em função da conservação dos homens que precisavam de
seus iguais, pois em rebanho, homem estaria em maior segurança e proteção. Foi apenas
desse modo que os pensamentos, sentimentos e ações chegaram então à consciência em
favor da conservação a partir da comunicação entre iguais. Ao considerar que “para isto
ele necessitava antes de consciência, isto é, saber o que pensava”, pode-se compreender
que a atividade de pensamento não seria, para Nietzsche, reduzida à esfera da consciência
na qual aquela só entraria, em parte, devido à situação de perigo em que se encontrava os
homens.

Segundo o filósofo, foi a necessidade de representação consciente dos perigos e


de sua comunicação para a conservação dos homens em rebanho que, posteriormente
tornada hábito, determinaria em grande parte a tomada de consciência dos pensamentos,
sentimentos e ações, isso como “consequência de uma terrível obrigação que por
longuíssimo tempo governou o ser humano”. Pela longa habitução a essa obrigação,
advinda de uma necessidade social de conservação do rebanho, a consciência passaria
posteriormente a ser compreendida como própria à “natureza” e à “essencialidade” do
homem como algo dado e predeterminado “desde sempre”. Cabe a observação que no
§354 de A gaia ciência. Nietzsche localiza historicamente a gênese da consciência e seu
caráter de “arrebanhamento” em certa “pré-história”, contudo em Além do bem e do mal,

22
Nietzsche (ABM, § 202) assinala que “[...]justamente aos homens das ideias modernas,
empregamos constantemente as expressões ´rebanho´,´instinto de rebanho´...” Desse
modo, o filósofo consideraria que há um acirramento e uma radicalização do instinto (ou
impulso) de rebanho na modernidade e, pode-se acrescentar, por consequência, uma
supervalorização da consciência.

Outra observação do filósofo a ser considerada em relação à consciência é a


de que, em função de seu caráter instrumental para a comunicação, o tomar consciência
dos pensamentos14·, sentimentos e ações se daria como uma espécie de tradução
simplificadora desses para a consciência, pois o homem em rebanho necessitaria, para a
agilidade da comunicação, tornar todas as coisas que são diferentes ou apenas
semelhantes em coisas iguais, isto ao simplificar, por meio de signos da linguagem seus
aspectos múltiplos e diferenciais. É nessa direção que Nietzsche identifica a simplificação
do aspecto múltiplo e diverso do mundo também a partir de uma necessidade de proteção
e conservação do homem:

Quem por exemplo não soubesse distinguir com bastante frequência o “igual”,
no tocante à alimentação ou aos animais hostis, isto é, que subsumisse muito
lentamente, fosse demasiado cauteloso na subsunção, tinha menos
probabilidades de sobrevivência do que aquele que logo descobrisse
igualdade em tudo o que é semelhante. (NIETZSCHE, GC, §111)

Nesse sentido, Nietzsche propõe que aquilo que se torna consciente é a tradução
simplificadora dos pensamentos, sentimentos e ações para o que ele nomeia como
perspectiva gregária (ou de rebanho)15, a qual necessitaria da simplificação,
superficialização e generalização do mundo para o optimum utilitário do processo
comunicativo. Com isso, o conscientizar-se dos pensamentos, ações e sentimentos seria
um processo que falsificaria o caráter múltiplo do mundo, processo no qual mundo e
homem seriam tornados mais gerais, vulgares e empobrecidos. Por intermédio da
falsificação e da simplificação da consciência necessária para a conservação do rebanho
favorecer-se-ia justamente o processo de igualação entre os homens e o empobrecimento
do mundo no que há de mediano e superficial pois:

14
No item 1.2 deste capítulo, analiso a hipótese de Nietzsche de que os pensamentos não se restringem ao
campo da consciência.
15
Cf. NIETZSCHE, GC, §354.

23
A natureza da consciência animal ocasiona que o mundo de que podemos nos
tornar conscientes seja só um mundo generalizado, vulgarizado - que tudo o
que se torna consciente torna-se raso, ralo, relativamente tolo, geral, signo,
marca de rebanho, que a todo tornar-se consciente está relacionada uma
grande, radical, corrupção, falsificação, superficialização e generalização.
(NIETZSCHE, GC, §354, grifo meu)

Nessa direção, Nietzsche (GC, §354) avalia que a consciência é parte “daquilo
que nele o homem é natureza comunitária e gregária”, natureza esta que necessitaria
obliterar e denegar tudo que se apresenta como múltiplo, diverso e singular. De modo
que, pela necessidade utilitária da consciência como perspectiva gregária, no sentido da
conservação do animal homem em rebanho, ter-se-ia supervalorizado a consciência na
história do Ocidente, particularmente valorizando-a na modernidade, porém sob outro
“manto”, como o locus originário do processo de pensamento e do conhecimento racional
do sujeito. Desse modo, se uma das características fundamentais da noção de sujeito
moderno é a valorização da consciência de si, o que lhe possibilitaria sua autonomia frente
aos outros e também frente a seus impulsos e paixões, a crítica de Nietzsche à consciência
como uma tradução do múltiplo e do singular para a perspectiva gregária problematizaria
o ideal subjetivista moderno, no qual pelo exame interno a partir da consciência seria
possível “autoconhecer-se”:

Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz parte realmente da
existência individual do ser humano, mas antes daquilo que é natureza
comunitária e gregária; que em consequência, apenas em ligação com a
utilidade comunitária e gregária ela se desenvolveu sutilmente, e que, portanto
com toda a vontade que tenha de entender a si próprio de maneira mais
individual possível, de “conhecer a si mesmo”, sempre traz à consciência
justamente o que não possui de individual, o que nele é médio [...] e traduzido
de volta para a perspectiva gregária. (NIETZSCHE, GC, §354)

Sublinho junto a essa passagem a sutil ironia nietzschiana ao suspender entre aspas
o “conhecer a si mesmo” fazendo, pode-se supor uma referência crítica a um dos
princípios fundamentais do projeto ocidental, o “conhece-te a ti mesmo”, preceito
máximo do oráculo de Delfos e exemplarmente encarnado por Sócrates. Segundo Eric
Blondel (1985, p.120), as aspas “significam tipograficamente que uma palavra ou frase não
são consideradas pelo autor como isomorfas a seu próprio discurso [...]” e
especificamente em Nietzsche “instauram a diferença e a hierarquia de valores,
homólogas à distinção forte-fraco. [...] Nietzsche, em uma constância inopinada, coloca
sistematicamente entre aspas os termos-chaves do discurso moral”. Portanto, o uso das

24
aspas em Nietzsche torna-se um elemento importante para pensar as estratégias e a
posição crítica do filósofo alemão frente aos discursos morais. Assim, o uso das aspas
destaca o campo moral a que pertence a expressão “conhece-te a ti mesmo” que, como
prática, ainda se vincula à verdade e à busca da própria “essencialidade”. A partir da
valorização da verdade, Sócrates toma como supremo ideal da vida o conhecimento
racional e o autoconhecimento como tarefa na busca daquilo “que é”, ou seja, do que há
de essencial, de mais próprio no homem. De outro modo, em Ecce Homo, Nietzsche (“Por
que sou tão inteligente”,§9. ) se opõe a tal valor ao escrever que “alguém se torne o que
é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é”.
Desse modo, Nietzsche avalia que, com o entendimento de si a partir do tornar-se
consciente, nada de individual seria conhecido, ao contrário justamente aquilo que
haveria de particular e singular no homem seria apenas traduzido e simplificado em um
reconhecimento de si no que há de médio a partir dos valores da perspectiva gregária.
Assim, a “conscientização de si” enquanto práxis do “conhece-te a ti mesmo” se daria
apenas no sentido dos valores do rebanho, ou seja, a partir da consciência o homem
identificaria o seu “próprio” com o ideal utilitário e a valorização de homem própria à
perspectiva gregária. Portanto, com a supervalorização da consciência e ainda
especificamente do conhecimento de si, se acentuaria o processo de nivelamento dos
homens no mediano, no geral e superficial, possibilitando o reconhecimento e o
nivelamento com seus iguais e intensificando a “com-formação” dos homens ao rebanho.

Nietzsche denuncia a gênese demasiadamente humana da consciência a partir do


impulso de autoconservação do animal homem que, posteriormente, por força de
obrigação, tornara-se um hábito, sendo valorizada como uma propriedade que lhe
possibilitaria o autoconhecimento e o conhecimento em geral. Como visto, é essa
possibilidade que o pensador questiona como sendo apenas uma representação de si a
partir dos valores do rebanho. Porém, não apenas o conhecimento de si é problematizado,
mas todo conhecimento que se vincula à consciência entendida sob o viés da perspectiva
gregária. Nesta direção, o filosofo, na conclusão do §354 afirma que:

Não temos nenhum órgão para o conhecer, para a “verdade”: nós “sabemos”
(ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser útil ao interesse
da grege humana, da espécie: e mesmo o que aqui se chama “utilidade” é,
afinal, apenas uma crença, uma imaginação e, talvez, precisamente a fatídica
estupidez da qual um dia pereceremos [...]”. (NIETZSCHE, GC, §354, grifo
do autor.)

25
Referindo-se criticamente à concepção tradicional e moderna que concebe a
consciência como um órgão para o conhecimento, para a verdade e para o saber,
Nietzsche problematiza seus valores ao suspender entre aspas a verdade e o saber, pois o
que estaria em jogo não seria, como se pensa modernamente, o conhecimento puro e
desinteressado pela verdade e pelo saber, mas justamente o interesse naquilo que é útil
para o rebanho, interesse que, em primeira instância, seria governado pelo impulso
predominante neste, ou seja, o impulso para sua conservação, e nessa direção, também
para a conservação de certo tipo ideal de homem. Blondel ressalta que:

As aspas se impõem, para citar o discurso moral, não mais apenas para se
destacar dele, prevenir mal-entendidos ou narrar o intraduzível não isomorfo,
mas também (e sobretudo) para marcar sua não-pertinência sintáxica, léxica ou
semântica e, em particular, denunciar semanticamente, sua vacuidade ou seu
caráter ‘ postiço” (Cf. BLONDEL, 1985, p.122).

O valor da verdade e do saber no conhecimento a partir da consciência é


questionado por seu caráter falso, “postiço”, pois são concebidos como atividades puras
e desinteressadas pela modernidade. Cabe, contudo, assinalar que também é
problematizado o valor da utilidade (do conhecimento, do saber e da verdade) como uma
crença, imaginação, marcada também por Nietzsche com o uso das aspas, pois a
consciência direcionada predominantemente para a conservação poderia levar, questiona
o filósofo, ao perecimento. Essa colocação em relação à consciência guarda afinidade
com uma passagem do mesmo parágrafo que diz que “afinal a consciência crescente é um
perigo; e quem vive entre os mais conscientes europeus sabe até que é uma doença” (GC,
354); portanto, tratando a supervalorização da consciência nos parâmetros da saúde e
encarando-a como uma doença, Nietzsche pode levantar a possibilidade do perecimento
do homem através dessa “doença” típica dos homens modernos. Também se pode ler no
parágrafo de A gaia ciência intitulado “a consciência” que esta:

É o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte,


também o que nele é mais inacabado e menos forte. Do estado consciente vêm
inúmeros erros que fazem um animal, um ser humano, sucumbir antes do que
necessário [...]. Antes que uma função esteja desenvolvida e madura, constitui
um perigo para o organismo [...]. (NIETZSCHE, GC, 11)

Mas qual o possível sentido que leva Nietzsche a associar a utilidade e a


conservação inerente a ela ao possível perecimento? O filósofo conceberia a vida como

26
vontade de potência16 e essa vontade como uma dinâmica na qual predominaria a
superação, pois como é indicado em Zaratustra, “E a própria vida contou-me este segredo:
‘Vê’, falou ela, ‘eu sou isso que precisa sempre se auto superar’” (NIETZSCHE, AZF,
“Da autossuperaçao”); desse modo a vontade de potência teria o impulso de
autoconservação apenas como uma consequência indireta, pois “Querer auto conservar-
se é a expressão da calamidade, uma restrição ao verdadeiro instinto da vida que tende à
expansão da potência” (NIETZSCHE, GC, §349). Qual seria então mais especificamente
a relação entre essa “vontade de conservação”, a superação e a vontade de potência? Antes
de tudo, faz-se necessário deter-me nos possíveis sentidos de vontade de potência, para
isso é preciso aqui estabelecer um desvio imprescindível para a retomada da questão que
procuro desenvolver, pois vontade de potência apresenta-se como uma pedra de toque
para a compreensão do filosofar nietzschiano, e ainda como buscarei esclarecer ao longo
deste trabalho, para o entendimento do que possa vir a ser uma outra concepção de
subjetividade a partir da diferença e da alteridade. Em primeiro lugar, é importante afastar
certas interpretações da noção de vontade de potência para, aos poucos, empreender uma
interpretação do que pode vir a ser a vontade de potência no discurso nietzschiano. Uma
primeira aproximação a ser cuidada se faria por meio da noção de vontade em
Schopenhauer; segundo Luciano Brasil (2012, p.70), “a princípio o termo ‘vontade para
o poder’ parece repetir a metafísica da vontade, particularmente a influência de
Schopenhauer, a que Nietzsche seria devedor”. Por essa possível aproximação, o próprio
Nietzsche busca desvencilhar sua concepção de qualquer herança possível em relação à
metafísica da vontade em Schopenhauer, assim o filósofo aponta que:

Os filósofos gostam de falar da vontade como se fosse a melhor coisa


conhecida do mundo. Schopenhauer deu a entender inclusive que a vontade é
algo que realmente distinguimos, algo perfeitamente reconhecido, sem
demasia e sem falta, mas parece-me que Schopenhauer, neste como em outros
casos seguiu a mesma rota que todos os filósofos: adotou e exagerou ao
máximo um preconceito popular. A vontade se me apresenta antes de mais

16
Quanto a tradução do importante termo “Wille zur Macht” , noção central na filosofia de Nietzsche, cabe
ressaltar a opção que elejo recorrentemente em meu texto frente a outras opções. É notável que o tradutor
Paulo Cesar de Souza opte pela tradução do termo como vontade de poder, já Scarlett Marton, importante
intérprete, utiliza, como optei, como vontade de potência, e ainda outros tradutores o traduzem por vontade
de domínio. A opção pela segunda tradução me pareceu mais adequada pelo fato de que em face ao
desenvolvimento de uma crítica do sujeito no discurso de Nietzsche, a primeira e terceira tradução me
parecem soar ainda dentro de certa metafisica da vontade (que por sua vez se insere em um contexto maior
em uma metafisica do sujeito). Nesse sentido, potência me parece o termo que melhor explicita a
abrangência desta noção que não se restringe apenas ao domínio humano, mas abarca ainda o aspecto
cosmológico. Também sua referência ao humano não se restringiria ao domínio da consciência e ao
exercício do poder comumente relacionado a uma vontade. Nesse sentido, para uma melhor legibilidade do
texto modifico as citações em que o termo está traduzido como “vontade de poder ou domínio” para
“vontade de potência”.

27
nada, como algo complexo, algo que não possui outra unidade que seu nome e
nesta unicidade de nome é precisamente onde encontra seu fundamento o
preconceito que enganou a prudência sempre muito deficiente dos filósofos.
Sejamos, pois, mais discretos, menos filósofos e admitamos que em cada
vontade existe, antes de mais nada uma infinidade de sentimentos. [...]à
vontade são acrescentadas vontades "subalternas", almas subalternas e dóceis,
pois nosso corpo não é mais que a habitação de muitas almas. L'effetc'est moi.
[...]acontece aqui o mesmo que em toda coletividade feliz e bem organizada; a
classe dirigente se apropria dos êxitos da coletividade. Em todo querer se trata
simplesmente de mandar e de obedecer dentro de uma estrutura coletiva
complexa, constituída, como já disse, por "muitas almas". (NIETZSCHE,
ABM, §19)

Desse modo, Nietzsche começa por distinguir e diferenciar sua noção de vontade
(de poder) da concepção schopenhaueriana de vontade que seria em sua simplificação um
exagero do preconceito popular que reconheceria nela apenas uma unidade simples. De
outra forma, para o Nietzsche vontade só seria possível como uma unidade apenas no
nome que a designa, enquanto em realidade ela se apresentaria como um fenômeno
complexo, pois na vontade existiria desde sempre “uma infinidade de sentimentos”.
Segundo Muller-Lauter (2009, p.59), “Ele [Nietzsche] se volta, com especial ênfase,
contra a tese da simplicidade da vontade. [...] Na verdade, a vontade não é algo simples,
absolutamente dado, não derivável, compreensível em si” e continua “‘Não há nenhuma
vontade’, se esta for concebida como algo simples, pertencente a um eu-substância que
está no fundo de nosso agir como causa. ” Portanto, é contra a interpretação assumida
pelo povo (e exagerada pelos filósofos) de que a vontade seria algo facilmente
reconhecível em sua simplicidade e unidade que a noção de uma vontade complexa e
múltipla vai sendo construída e afirmada. Nesse sentido, é ainda contra o preconceito
popular tornado em um filosofar de uma crença no “eu-substância” capaz de agir a partir
de sua “vontade-unidade” que se voltaria também a crítica de Nietzsche. Para Nietzsche,
tal pensamento (popular e filosófico), marcado pela crença na gramática, para usar uma
expressão do pensador alemão, seria uma simplificação dos múltiplos processos que
caracterizariam a efetividade de sua concepção de vontade. Como exposto na passagem
supracitada, nosso corpo seria uma habitação de muitas almas, caracterização esta que já
deslocaria a concepção da unidade de um eu capaz de auto afirmar a sua vontade. Nessa
direção, Nietzsche afirma que “à vontade são acrescentadas vontades ‘subalternas’,
‘almas subalternas’” havendo uma equivalência semântica entre vontade e “almas”,
sempre pensadas a partir de uma multiplicidade complexa, irredutíveis a uma simples
unidade. Desse modo, por ser o corpo uma habitação de muitas almas, à vontade seria

28
acrescida uma inúmera quantidade de outras “vontades subalternas”, caracterizando a
vontade de potência desde uma multiplicidade de vontades que se efetivaria em uma
dinâmica de hierarquização a partir do mando e da obediência. Essa outra concepção de
múltiplas vontades conformando sistemas hierárquicos abalaria a concepção de um eu
como agente causador da vontade: “L'effetc'est moi” é grifado em francês por Nietzsche.
Expressando seu pensamento de que o “eu” é meramente um efeito do jogo e da dinâmica
da multiplicidade das vontades, não sua causa motriz.

Ao longo de sua obra e reflexão, a vontade (de potência), sempre pensada


enquanto um complexo hierárquico de vontades ou forças torna-se mais fundamental,
não se restringindo apenas a uma “infinidade de sentimentos”, mas adquirindo cada vez
mais peso e valor. A vontade de potência é pensada pelo filósofo como hierarquia de
múltiplas forças que nunca se efetivam como uma unidade, ao modo de uma coisa em si,
mas sempre em um complexo de relações com outras forças. Multiplicidade de forças
se torna um dos principais nome para aquilo que Nietzsche caracteriza como vontade de
potência, seu caráter sempre plural e sua atividade beligerante. Desse modo com a
caracterização da vontade de potência como um complexo de forças pode-se melhor
entender que sob o título singular de vontade sempre se encontram na efetividade uma
pluralidade (de forças) dinamizada por uma relação de beligerância que nunca tende
definitivamente a uma unidade ou estabilidade. Nessa direção, pondera Muller-Lauter:

Não apenas a força tem de ser, por fim, entendida como vontade de potência,
também os afetos nada mais são do que “configurações” da vontade de
potência que “é a forma primitiva do afeto”, assim como se diz dos impulsos,
que a ela podem ser remetidos. (2009, p.62)

E citando Nietzsche: “a vontade de potência é o fato último a que podemos


chegar” (NIETZSHCE, KSA 11.661, 40 [61] APUD MULLER-LAUTER 2009, p.62).
Sentimentos, afetos e impulsos são, portanto, “reconduzidos” a este “fato último” que
seria a vontade de potência. Nosso corpo como um coletivo de almas de múltiplos afetos
e impulsos seria, enfim, um complexo das lutas da vontade de potência. Nesse ponto, é
preciso precaver-se contra um possível engano e uma má interpretação, a de imputar
privilegiadamente e unicamente ao homem a vontade de potência como um atributo
exclusivamente seu, pois Nietzsche não estaria fundando uma metafísica do sujeito a
partir de uma metafísica da vontade. A vontade de potência não teria definitivamente um
caráter antropológico, mas cósmico. Segundo Muller-Lauter (2009, p. 62), “A vontade de
potência enquanto ‘fundamento último e caráter de todas as mudanças é a essência do

29
mundo”. Contudo considerando-a um “fato último” Nietzsche não estaria recaindo
exatamente sob as malhas metafísicas que tanto combateu? A vontade de potência não se
estabeleceria como uma força primordial, como um princípio, uma arché metafísica, um
dado último que funcionaria como uma estabilidade unitária, qual um átomo, fundamento
microscópio no qual ainda valeria a lei do ser enquanto uma estabilidade? Não
representaria ela a unidade desde onde a multiplicidade se instauraria?

Por outro lado, não estaríamos nos enredando novamente pela malha da gramática
que nos induziria a crer em uma unidade a partir do nome vontade de potência? Assim,
vontade de potência seria apenas um nome no perigo de ser confundido com um conceito
que esconderia sob sua aparente simplicidade e unidade abstrata o complexo múltiplo que
efetivamente se daria. Nesta direção, Muller reflete que:

Trata-se aqui de eliminar o mal-entendido de que, por fim, a multiplicidade


remete ainda a uma ´unidade´ última da qual ela surge no sentido de uma arché.
[“...] Pois desde sempre uma “multiplicidade de ´vontades de potência´” se
deu, cada uma com sua multiplicidade de meios de expressão e formas”. O que
o filósofo diz acerca do homem nessas exposições aplica-se também ao todo
da efetividade. [...]. Com seu discurso da unidade do múltiplo, Nietzsche não
visa uma raiz metafísica, mas a uma relação recíproca: dependência dos
múltiplos entre si que se dá no conjunto de um mundo único. (2009 p.67)

Nesse sentido, vontade de potência seria um nome para uma multiplicidade de


potências que seriam uma unidade unicamente no sentido de uma relação de luta que se
daria reciprocamente desde mundo. Mundo e vida seriam entendidos por Nietzsche como
uma “unidade” de jogo e luta recíprocas das múltiplas vontades. Afastando a vontade de
possíveis interpretações metafísicas, Muller-Lauter (2009, p. 79) pondera que “Sem
dúvida, essa vontade nunca existe facticamente como algo solitário, isolado, mas somente
na multiplicidade de vontades que contrapõe umas às outras”. Não haveria, portanto, um
ser próprio, uma identidade fechada da vontade de potência, está só se efetuaria na tensão
da luta com outras vontades. A potência da vontade se realizaria na medida da
transformação que não cessa, do aumento ou diminuição da potência em relação às outras,
portanto ela não poderia ser considerada uma unidade fixa, mas algo em constante
superação a partir do combate com outras vontades. Nessa direção questiona Muller:

Entretanto, à pergunta: o que produz e mantém em si coesas, assim como deixa


desfazer-se, as organizações sem cessar cambiantes da vontade de potência? A
resposta derradeira é: são os antagonismos que possibilitam toda agregação
assim como toda desagregação. A vontade de potência necessita de
antagonismo, que, sem dúvida, só pode ser vontade de potência. É antes de

30
tudo, o antagonismo, que faz dela vontade de potência. [...] a vontade de
potência, como diz Nietzsche “não é originalmente um ser, um vir a ser, mas
um pathos”, do qual “somente resulta um vir a ser, um efeito”. (2009,p. 73)

A partir dessa perspectiva, pode-se considerar que a luta dos antagonismos é o


dínamo que move a vontade de potência nos sentidos de sua agregação e desagregação,
ou seja, no sentido da organização e desorganização das provisórias, mas necessárias,
hierarquias de forças, de potências. Contudo seria preciso acrescentar que essa luta não
se daria primordialmente no sentido da conservação das hierarquias e suas forças, mas da
constante autossuperação que teria por consequência a reorganização e desorganização
dinâmica de novas hierarquias. Nessa direção, Nietzsche constantemente tece uma crítica
ao princípio de autoconservação que imperaria no pensar moderno desde Spinoza,
passando pelos fisiologistas até Darwin, ao indicar que:

Os fisiólogos deveriam refletir, antes de afirmarem que o instinto de


autoconservação é o instinto cardinal do ser orgânico. O vivente quer a sua
força — a própria vida é vontade de potência —: a auto conservação é somente
uma das consequências indiretas e mais frequentes disso. Em suma, neste
ponto como em outros se deve ter cuidado com princípios teleológicos
supérfluos! — tais como instinto de autoconservação (que se deve à
inconsequência de Spinoza) ”. (ABM, § 13)

Pode-se depreender dessa análise que, com o predomínio do impulso de


autoconservação, a vida se conservaria apenas em seus aspectos mais fracos, o que
poderia justamente levar ao perecimento 17. Se a vida como é concebida pelo filósofo é
vontade de potência e está tenderia à expansão de sua força no sentido da autossuperação,
“estabelecer”, ou melhor, ser instituído na autoconservação é já um sinal e sintoma de
enfraquecimento da potência da vida que poderia conduzir ao fatal perecimento. De outro
modo, Nietzsche pensa uma concepção de vida como abundância ao refletir que:

Querer preservar a si mesmo é expressão de um estado indigente, de uma


limitação do verdadeiro instinto da vida, que tende à expansão do poder, e,
assim querendo, muitas vezes questiona e sacrifica a autoconservação. [...] Mas
um investigador da natureza deveria sair de seu reduto humano: e na natureza
não predomina a indigência, mas a abundancia, o desperdício, chegando
mesmo ao absurdo. A luta pela existência é apenas uma exceção, uma
temporária restrição da vontade de vida, a luta grande e pequena gira em torno
da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme a vontade
de potência, que é justamente vontade de vida. (NIETZSCHE, GC, §349)

Nietzsche associa vontade de potência à vida (natureza) como vontade de vida


enquanto expansão do poder que predominaria como o instinto fundamental na natureza.

31
Para Nietzsche, na natureza não predominaria a indigência, ainda que está possa ser um
caso excepcional ou sintomático, por exemplo, entre os homens decadentes do rebanho
moderno, mas abundância, desperdício, absurdez. A autoconservação não poderia ser
considerada o instinto primordial e fundamental presente na natureza, sendo apenas a
expressão de um estado indigente, comum como afirma o filósofo aos investigadores da
natureza e também no caso específico de Espinosa e seu filosofar a partir do qual se teriam
enredado as modernas ciências naturais. O predomínio do instinto de conservação comum
ao rebanho típico do homem moderno pode ser entendido como um enfraquecimento
quando não uma espécie de negação do instinto da vida predominante na natureza. Assim,
o instinto de superação que visaria ao aumento da potência da vontade em sua força de
abundância, desperdício e absurdez renunciaria ao instinto de autoconservação que na
perspectiva nietzschiana seria apenas uma “consequência indireta” à serviço da
dinâmica de autossuperação própria da vontade de potência. Assim, pode-se compreender
o apelo de Zaratustra em favor da superação do homem moderno representado no último
homem que apenas almeja sua própria conservação:

Os mais preocupados hoje indagam: “como se conservará o homem? ”


Zaratustra foi o primeiro e único que indagou: “como se superará o homem?
”[...] Isso pergunta e não cessa de perguntar: “como poderá o homem
conservar-se melhor, mais longamente, mais agradavelmente? “Com tal
pergunta — eles são os senhores de hoje. Superai, meus irmãos, esses senhores
de hoje [...]”. (NIETZSCHE, Za p.288)

Haveria ainda segundo Nietzsche uma relação entre a consciência, o


conhecimento e o instinto de conservação: o homem moderno teria na consciência e em
seu conhecimento um meio para sua conservação, assim pode-se argumentar que o valor
da consciência para o conhecimento, entendido na modernidade como um processo
pretensamente afastado dos impulsos e paixões, se dá para o filósofo apenas na medida
em que serve justamente ao impulso de rebanho, que institui por meio da
supervalorização da consciência uma perspectiva que simplifica, generaliza e falsifica o
múltiplo e as diferenças a partir do interesse útil para a autoconservação. Com essa
concepção crítica do valor da consciência, Nietzsche procuraria ainda reavaliar o que
seria o processo do pensamento, que é compreendido então de modo diferente de como o
avalia a perspectiva moderna. Neste sentido, procurarei analisar se de acordo com a
investigação nietzschiana haveria um outro modo, para além das perspectivas metafisica
e moderna (e suas implicações mútuas ), de conceber os valores, os sentidos e a relação
entre o pensamento, o conhecimento e o instinto. Caberá, portanto, avaliar se a .crítica

32
do filósofo aos fundamentos metafísicos da consciência, do pensamento e do sujeito
analisada anteriormente também produz uma criação capaz de engendrar um outro modo
de relacionamento, uma outra hierarquia entre essas dimensões.

1.2 Reavaliando a relação entre pensamento, conhecimento e impulsos

Assim como procuro interpretar, Nietzsche, a partir de uma perspectiva que


buscaria superar a dicotomia binária instaurada pela tradição metafísica entre pensamento
racional e impulsos, proporia outro modo de conceber a relação entre a consciência, o
processo de pensamento e os impulsos. Em uma visada radical, o filósofo afirma “que
nosso pensamento mesmo é continuamente suplantado, digamos, pelo caráter da
consciência [...]” (NIETZSCHE, GC, §354) e isto justamente porque, como desenvolvido
até aqui, o tornar-se consciente por meio da perspectiva gregária seria uma falsificação
simplificadora do processo de pensamento. Se, para a tradição moderna, o processo de
pensamento tem como fundamento e causa o sujeito da consciência racional, Nietzsche
avalia por outro lado que justamente a consciência, considerando sua determinação pela
perspectiva gregária, sobrepujaria os pensamentos. Assim como também afirma que “o
ser humano, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não o sabe; o pensar que
se torna consciente é apenas a parte menor, a mais superficial, a pior [...]” (NIETZSCHE,
GC, §354), indicando desse modo, ainda no século XIX 18·, que o processo de
pensamento não se restringiria ao registro da consciência e ao ser humano 19; e valorizando

18
A noção de inconsciente tal como Freud a elabora ao longo de sua obra é desenvolvida no século XX.
Freud, S. (1980). Artigos sobre a metapsicologia. Cf: O inconsciente. In S. Freud, Obras completas (Vol.
14). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915). Ainda que o inconsciente não seja
abordado de modo especifico como um conceito na obra de Nietzsche, posso apontar que em
seus escritos esboça-se a noção de pensamentos inconscientes, e de modo mais frequente, como
desenvolvido neste capítulo, encontra-se a noção da participação dos impulsos no processo de pensamento,
na qual os impulsos mesmos constituem aquilo que usualmente é designado como pensamento consciente.
Desse nodo, posso enfatizar que há entre ambos os autores a participação em certo modo de analisar a
relação entre os pensamentos e os impulsos que não se vincula à tradição metafísica de conceber os
pensamentos em oposição aos impulsos.
19
Nesse sentido, Scarlett Marton escreve: “Por sua origem biológica, a consciência não passa de 'um meio
de comunicabilidade”, 'um órgão de direção’ (Nachlass/FP 1887-1888, (372) 11 [145], KSA 13.68).
Surgindo da relação do organismo com o mundo exterior, relação que implica ações e reações de parte a
parte, ela não constitui, como a maioria dos filósofos supôs, o traço distintivo entre homem e animal.”
(MARTON, 2016, p. 42) Disponível em:http://www.scielo:.br/pdf/cniet/v37n2/2316-8242-cniet-37-02-
00011.pdfAcesso em: 10 jul. 2018.

33
o pensamento consciente concebido pela modernidade enquanto o único modo de
pensamento possível como o mais superficial.
Nietzsche aponta que, a partir da supervalorização da consciência na
modernidade, a esta seria creditado o locus originário do pensamento, suplantando-se um
longo processo de pensamento que não se restringiria a seu registro. Torna-se
indispensável investigar, portanto, o que pode ser o processo de pensamento quando este
é compreendido como não originado na consciência do sujeito racional. Na modernidade,
a ênfase dada à autonomia da consciência acabaria por sobrepujar um longo processo de
luta entre os impulsos que fariam parte, segundo Nietzsche, da dinâmica do pensamento.
Além disso, o pensamento simplificado e generalizado, como apareceria na consciência,
seria vinculado ao “Eu”, um sujeito causador do pensamento que manter-se-ia fixo e
imutável frente ao caráter múltiplo e transitório da vida, pois imaginar-se-ia que “o eu
como substância, não entra na multiplicidade da mudança” (NIETZSCHE, VP, §488). De
outro modo, o pensamento é concebido por Nietzsche como um longo processo que seria
denegado em favor apenas dos últimos momentos do pensar, assim como este apareceria
na consciência, onde seria sentido como contrário à multiplicidade e à luta dos impulsos,
como se pode ler no parágrafo 333 de A gaia Ciência:

[Não rir, não lamentar nem detestar, mas compreender! ] Disse Espinosa, da
maneira simples e sublime que é sua. No entanto que é intelligere, em última
instância, se não a forma na qual justamente aquelas três coisas tornam-se se
de uma vez sensíveis para nós? Um resultado dos diferentes e contraditórios
impulsos de querer zombar, lamentar e maldizer? Antes que seja possível um
conhecer, cada um desses impulsos tem de apresentar sua visão unilateral da
coisa ou evento; depois vem o combate entre essas unilateralidades, deles
surgindo aqui e ali um meio-termo, uma tranquilização, uma justificação, para
os três lados, uma espécie de justiça e contrato[...]. A nós nos chegam à
consciência apenas as últimas cenas de conciliação e ajuste de contas desse
longo processo, e por isso achamos que intelligere é algo conciliatório, justo,
bom, essencialmente contrário aos impulsos; enquanto é apenas uma certa
relação dos impulsos entre si. Por longo tempo o pensamento consciente foi
tido como o pensamento em absoluto: apenas agora começa a raiar para nós a
verdade de que a atividade de nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de
maneira inconsciente e não sentida por nós. (NIETZSCHE, GC, §333. Grifo
meu)

Nietzsche afirma que antes que fosse possível um conhecimento, haveria uma
longa gênese a partir de uma complexa relação de luta entre diferentes impulsos, e o
conhecimento “apareceria” apenas como o resultado (enquanto contrato e justiça) de um
longo combate entre diferentes impulsos. Assim, o conhecimento não adviria de uma
consciência objetivante e racional, mas seria apenas o resultado final e “superficial” de
um complexo embate entre os impulsos que tomariam parte em sua gênese compreendida

34
fisiologicamente. Portanto torna-se incabível a partir dessa perspectiva conceber o
conhecimento como puro, autônomo e objetivo haja vista sua gênese pulsional. Por outro
lado, o conhecimento só seria considerado como conciliatório, justo e bom e afastado dos
impulsos quando se tomam suas últimas cenas, a conciliação e o ajuste de contas, desse
longo processo “dos diferentes e contraditórios impulsos” 20como sua origem. A partir da
leitura de Foucault (2005, p..15) sobre Nietzsche, em “A verdade e as formas jurídicas”
(2005), pode-se avaliar que o conhecimento é uma invenção (Erfidung) no sentido de que
“é por um lado, uma ruptura, algo que possui um pequeno começo, baixo, mesquinho,
inconfessável” e não tem nenhuma origem (Ursprung) solene, transcendental, divina ou
mesmo uma propriedade exclusivamente da natureza humana capaz de distinguir-lhe dos
demais entes como lhe atribui a história da filosofia. Foucault reflete que:

O conhecimento foi, portanto, inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer
que ele não tem origem. É dizer, de maneira mais precisa, por mais paradoxal
que seja, que o conhecimento não está absolutamente inscrito na natureza
humana. O conhecimento não constitui o mais antigo instinto do homem, ou,
inversamente não há no comportamento humano, no apetite humano, algo
como um germe do conhecimento. (2005, p.16)

Desse modo, ainda que o conhecimento seja um efeito dos instintos, ele não estaria
inscrito de maneira teleológica na natureza pulsional dos homens, seria uma invenção e
não teria, portanto, uma origem, seja ela transcendental, seja natural. Aqui se deve
formular uma questão: se o conhecimento é concebido por Nietzsche como um resultado,
um efeito de uma luta entre impulsos, como não lhe atribuir então sua inscrição em uma
natureza humana?

Certamente, o conhecimento não advém segundo a perspectiva nietzschiana de um


instinto, de um mais antigo instinto do homem, mas aparece meramente como efeito de
uma luta de instintos. Ora, com isso não se poderia atribuir justamente ao conhecimento
uma origem na natureza pulsional dos homens? Buscando romper com a tradição que
concebe o conhecimento como o mais próprio da natureza humana e discriminar a relação
entre os instintos e o conhecimento, Foucault reflete que:

De fato, diz Nietzsche, o conhecimento tem relação com os instintos, mas não
pode estar presente neles, nem mesmo por ser um instinto entre outros, o
conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção,
da luta e do compromisso entre os instintos. É porque os instintos se

20
Cf. Nietzsche, GC, §333.

35
encontram, se batem e chegam, finalmente, ao término de suas batalhas, a um
compromisso que algo se produz, esse algo é o conhecimento. (2005, p.16)

Desse modo, não haveria um instinto específico no qual se inscreveria uma


suposta natureza humana do conhecimento, nenhum instinto ou mais de um pode ser
considerado “naturalmente” o germe do conhecimento. Este é constatado como apenas o
resultado do jogo e da luta entre os instintos. Desse modo, a relação do conhecimento
com os instintos não é de “parentesco” ou de familiaridade, mas sim de diferença.
Foucault avalia que “portanto para Nietzsche, o conhecimento não é da mesma natureza
que os instintos, não é como que o refinamento dos próprios instintos” (2005, p. 16) e
ainda” [...] entre instintos e conhecimento encontramos não uma continuidade, mas uma
relação de luta, de dominação, de subserviência, de compensação etc.”. (2005, p. 17)

Não sendo da mesma natureza que os instintos, o conhecimento tampouco é


uma sublimidade, um refinamento, não uma continuidade, mas um efeito arbitrário de
outra ordem, algo de “outra natureza”. O conhecimento também não surgiria como uma
nova ordem de um caos pulsional enquanto “adequação, beatitude e unidade”
(FOUCAULT, 2005, p. 22), como costuma pensar a tradição filosófica e especialmente
como o fez Espinosa. De outro modo, Nietzsche pensaria “no cerne do conhecimento,
algo como o ódio, a luta e a relação de poder” (FOUCAULT, 2005, p. 22). O
conhecimento, portanto, não é da mesma natureza que os instintos, do qual é apenas um
arbitrário efeito, tampouco deixa de ser “marcado” por esses mesmo como o propõe
Nietzsche. Nesse sentido, Foucault sublinha no discurso nietzschiano o aspecto artificial
do conhecimento que não se inscreveria como uma espécie de natureza superior do
homem como o supõem a compreensão moderna. Não sendo derivado da natureza do
homem em seu aspecto instintual ou de um caráter transcendental (de sua alma e/ou
consciência) inscrito em sua natureza, o conhecimento seria sempre um artificio, uma
invenção em oposição as interpretações que lhe imputam uma origem solene como o
caráter distintivo de superioridade do homem. Desse modo pode-se entender seu caráter
de ser um mero efeito da luta e combate entre os instintos: tendo uma relação arbitraria
com estes e não estando presente nestes, o conhecimento não teria uma origem no sujeito
(distintivo da natureza humana) mas como uma faísca surgiria enquanto uma criação da
luta daqueles.

36
Outra característica fundamental do conhecimento assinalada por Foucault (2005,
p. 18) é que haveria uma radical diferença e descontinuidade entre o conhecimento e as
coisas que ele conhece, pois não existiria entre eles “nenhuma relação de continuidade
natural” e ele também afirma que “não há nada no conhecimento que o habilite por um
direito qualquer, a conhecer este mundo. Não é natural a natureza ser conhecida”.
Haveria, portanto, um duplo golpe de Nietzsche, uma dupla ruptura em relação à tradição
filosofia ocidental: uma entre o conhecimento e as coisas e a outra entre o conhecimento
e a “natureza” dos homens. Nesse sentido o filósofo Frances enfatiza que:

Remontando à tradição filosófica a partir de Descartes, para não ir mais longe,


vemos que a unidade do sujeito humano era assegurada pela continuidade que
vai do desejo ao conhecer, do instinto ao saber, do corpo à verdade. Tudo isso
assegurava a existência do sujeito. Se é verdade que há, por um lado, os
mecanismos dos instintos, os jogos do desejo, os afrontamentos da mecânica
do corpo e da vontade e, por outro lado, há um nível de natureza totalmente
diferente, o conhecimento, então não se tem mais necessidade da unidade do
sujeito humano. Podem-se admitir sujeitos, ou podemos admitir que o sujeito
não existe. (FOUCAULT, 2005, p. 20)

Desse modo, pode-se afirmar ainda que essas séries de continuidades


apontadas por Foucault como próprias da tradição filosófica se concretizavam,
acrescenta-se, em um binarismo metafísico que supervalorizava o conhecer, o saber e a
verdade frente ao desejo, ao instinto e ao corpo garantindo desse modo a unidade
metafísica do sujeito. Essas continuidades permitiriam a fundamentação do
conhecimento, da verdade e do saber a partir de uma inscrição na natureza humana, no
desejo, no instinto e no corpo. Contudo essas continuidades “naturalizantes” seriam
rompidas por certo pensar da diferença que Nietzsche institui no lugar da continuidade,
produzindo uma ruptura e uma arbitrariedade capazes de desnaturalizar o conhecimento.
Nietzsche, ao não inscrever o conhecimento em uma suposta natureza instintual humana
e ao evidenciar a disruptura entre conhecimento e as coisas, estaria, portanto, rompendo
com uma longa tradição metafísica que estabelecera a unidade do sujeito humano como
fundadora tanto da realidade do real assim como da própria natureza humana em sua
diferença com os demais entes. Ao inscrever o conhecimento como efeito da luta travada
entre os instintos, Nietzsche procuraria, por um lado, remontá-lo ao corpo sem com isso
refundá-lo a partir de certa naturalização como um atributo próprio do homem, por outro,
buscaria ainda superar a dicotomia binária que valorizava o conhecimento frente aos
instintos, reinstaurando a participação dos instintos na gênese do conhecimento.

37
Outro ponto importante de ruptura com relação à tradição é que Nietzsche, no parágrafo
333 de “A gaia ciência”, compreende que a maior parte da “atividade do espírito” ocorre
inconscientemente como uma dinâmica de relação entre diferentes impulsos, indicando que o
pensar não é fundamentalmente um processo consciente, deslocando-o e desalojando-o, portanto,
de seu tradicional locus de origem que estabeleceria o conhecimento como uma atividade do
sujeito consciente. O sujeito (do conhecimento) só se efetiva como agente deste a partir de sua
atividade racional da consciência que formariam uma unidade inseparável na atividade do
conhecimento, contudo, Nietzsche provocaria um abalo nessa suposta unidade fundadora do
conhecer ao apontar que a “atividade do espírito”, sua maior parte, ocorreria de modo
inconsciente. Nessa direção, o filósofo, no parágrafo 357 de A gaia ciência aponta Leibniz como
um precursor da noção de uma atividade do espírito que não estaria reduzida ao registro da
consciência:

A incomparável percepção de Leibniz, com a qual ele teve razão não só perante
Descartes, mas ante todos os que haviam filosofado até então – de que a
consciência é só um acidente da representação, não seu atributo necessário e
essencial; que portanto o que denominamos consciência constitui apenas um
estado de nosso mundo espiritual e psíquico (talvez um estado doentio) e de
modo algum ele próprio. (NIETZSCHE, GC, §357)

A partir dessa passagem, pode-se considerar melhor o contexto em que


Nietzsche problematiza o valor da consciência, pois ainda que a percepção de Leibniz
tenha razão frente a toda filosofia, é o nome de Descartes que Nietzsche sublinha.
Enquanto um legado da tradição moderna, a supervalorização da consciência e do “Eu” a
partir de Descartes 21 em nome do sujeito (do conhecimento) acentuaria a dicotomia e a
separação entre impulso, razão e consciência. De outro modo, o filósofo valorizaria a
percepção de Leibniz, pois nela o “mundo espiritual e psíquico” não se restringiria à
consciência assim como se estabeleceu na tradição moderna. Para Nietzsche, por
tomarmos consciência e experimentarmos apenas as últimas cenas do longo processo de
pensamento, o conhecimento pareceria ser contrário aos impulsos ao apresentar-se como
algo “conciliatório, bom e justo”. Porém Nietzsche esclarece que também o pensamento
se realizaria desde as atividades inconscientes da luta dos diferentes impulsos. Em Além

21
Retomaremos em seguida a crítica de Nietzsche ao pensamento de Descartes. Como referência à crítica
de Nietzsche a Descartes, indico o artigo “Crítica à modernidade e conceito de subjetividade em Nietzsche”
de ITAPARICA (ver nota bibliográfica).

38
do bem e do mal, o filósofo alemão desenvolve essa concepção de pensamento
relacionada aos impulsos:

Supondo que nenhuma outra coisa seja “dada” como real a não ser o nosso
mundo de apetites e paixões, que não possamos descer ou subir a nenhuma
outra “realidade” a não ser justamente à realidade de nossos impulsos – pois
pensar é apenas um modo de comportar-se desses impulsos uns em relação aos
outros [...]. (NIETZSCHE, ABM, §36).

E ainda, de modo aproximado aos parágrafos supracitados, Nietzsche ressalta em relação


ao processo de pensamento em geral, mas enfatizando o pensamento lógico, que:
O curso dos pensamentos e inferências lógicas, em nosso cérebro atual,
corresponde a um processo e luta de impulsos que, tomados separadamente,
são todos muito ilógicos e injustos; habitualmente experimentamos apenas o
resultado da luta: tão rápido e tão oculto se desenrola em nós esse antigo
mecanismo. (NIETZSCHE, GC, §111)

Se para a compreensão moderna, a razão, a lógica e o conhecimento são


considerados a partir de sua valorização como superiores aos impulsos, o filósofo
reinscreve o processo do pensamento vinculando-o a uma relação de luta entre os
impulsos que “são todos muito ilógicos e injustos”. Desse modo, Nietzsche estabelece
uma relação entre os âmbitos do pensamento lógico-racional e os impulsos que na
modernidade são concebidos como opostos e hierarquicamente inferiores aos
“pensamentos conscientes” que seriam de natureza objetiva, racional e impessoais.
Ressalto ainda que, empregando a linguagem da luta, haveria uma concepção
nietzschiana de processo de pensamento, entendido este como o efeito da relação de
diferentes impulsos, que sublinha seu aspecto agonístico em oposição à compreensão do
conhecimento como algo “conciliatório, justo, bom”.

Também nessa perspectiva onde o pensamento não é concebido separadamente da


relação de luta entre os impulsos, não haveria uma autonomia da consciência do sujeito
como origem pura dos pensamentos frente aos impulsos, pois Nietzsche enfatiza que estes
não se opõem àqueles, assim como é usualmente representado. Ao contrário, é a partir de
suas relações que os pensamentos se dão22 e nesse sentido, o processo do pensamento no
conhecimento não pode ser considerado impessoal e objetivo, pois tem uma longa gênese

22
De maneira mais radical, o processo de pensamento entendido como interpretação é ainda apresentado
por Nietzsche como uma dinâmica na qual cada impulso é já uma interpretação que deseja tornar-se
soberana sobre os outros impulsos: “Nossas necessidades são quem interpretam o mundo, nossas pulsões e
seus prós e contras. Cada pulsão é uma espécie de ambição despótica, cada uma tem a sua perspectiva que
a pulsão gostaria de impor como norma para todas as outras pulsões.” (NIETZSCHE, VP, §481).

39
na luta dos diferentes impulsos. Portanto, pode-se argumentar, a partir das passagens
analisadas, que o pensamento, ou melhor, o processo do pensar incluído neste os
“pensamentos conscientes” não se constituiriam sob a égide de um sujeito consciente, ou
seja, não haveria um fundamento que pudesse ser tomado como fixo, estável e seguro,
pelo contrário, seria toda uma atividade complexa de embate entre diferentes e dinâmicos
impulsos que constituiria o pensamento como seu efeito. Pode-se supor então que aquilo
que Nietzsche designa como “último momento do longo processo de pensamento” (GC,
333), que ocorre na consciência, corresponderia à vitória temporária de um impulso sob
os outros, resultando na provisória conciliação e ajuste de contas da luta entre os
impulsos, momento este que seria privilegiado e vinculado ao sujeito racional da
consciência e assim compreendido como o próprio do pensamento para a concepção
moderna de conhecimento. Nesse sentido, Nietzsche problematiza e crítica a concepção
filosófica do conhecimento como algo limitado apenas ao registro da consciência como
o concebe a filosofia tradicional:

Mas eu penso que tais impulsos que lutam entre si sabem muito bem fazer-se
sentidos e fazer mal uns aos outros: a violenta e súbita exaustão que atinge
todos os pensadores talvez tenha aí sua origem (é a exaustão do campo de
batalha) sim, pode haver em nosso interior em luta muito heroísmo oculto, mas
certamente nada de divino, repousando eternamente em si como queria
Espinosa! O pensar consciente, em particular o do filosofo, é a espécie menos
vigorosa de pensamento e por isso talvez o filósofo pode se enganar mais
facilmente sobre a natureza do conhecer! (NIETZSCHE, GC, §333.)

Também em Além do bem e do mal, o filósofo admite que terminou “por acreditar
que a maior parte do pensamento consciente deve incluir-se entre as atividades instintivas
sem se excetuar o pensamento filosófico” (NIETZSCHE, ABM, §3). O “pensamento
consciente” é, pois, considerado por Nietzsche como tardio e epigonal em relação à
atividade dos impulsos que o constitui, mas a tradição filosófica, e acrescento a concepção
moderna, o conceberiam como o pensamento em absoluto. Contudo “a violenta e súbita
exaustão” que se apresentaria nos pensadores seria um sinal e sintoma do longo processo
que se dá no campo de batalha dos impulsos que constituem o processo de pensamento.
Tomando, porém apenas o resultado conciliatório que se dá na consciência dessa longa
atividade dos impulsos, o filósofo, que teria a “espécie menos vigorosa de pensamento”
se enganaria facilmente sobre a natureza do conhecimento ao identificá-lo apenas com os
pensamentos conscientes.

40
Deste modo, por meio da supervalorização da consciência (e do sujeito
pressuposto a ela) como lócus de origem do pensamento, concebe-se toda uma
perspectiva de conhecimento na modernidade como algo contrário aos impulsos. É
importante sublinhar que para a concepção de Nietzsche a modernidade não se constitui
em oposição à história da metafísica ocidental, pelo contrário, a modernidade seria a
radical concreção e fruto tardio desta história, portanto o moderno é sempre pensado em
articulação com essa herança metafísica que o constitui em sua singularidade histórica.
Assim cabe analisar mais detidamente qual compreensão de conhecimento pode se
desenvolver quando o pensar, entendido apenas como pensamento consciente, significa
simplificar e generalizar o longo processo do qual tomam parte os diferentes e múltiplos
impulsos. Nietzsche, no parágrafo 355 intitulado “A origem do nosso conceito de
conhecimento”, de A gaia ciência, narra a seguinte cena:

Esta explicação eu encontrei na rua; ouvi alguém do povo dizer: “ele me


reconheceu”-: então me perguntei que entende mesmo o povo por
“conhecimento”? O que quer ele, quando quer “conhecimento”? Não mais do
que isto: algo estranho deve ser remetido a algo conhecido! (NIIETZSCHE,
grifo meu)

Deslocando o problema da natureza do conhecimento para a pergunta “o que


quer?”, Nietzsche procuraria problematizar não “o que é” o conhecimento em si, mas
qual impulso dominante determinaria o conhecer sob a forma do “reconhecimento”. É,
portanto, em torno desse ‘re-conhecimento” que remete o estranho ao já conhecido e
familiar, que o pensador avalia o que é entendido como conhecimento. O conhecimento
é interpretado criticamente por Nietzsche como um “re-conhecimento” que opera sob o
domínio de um impulso que converte tudo aquilo que é desconhecido e estranho ao
semelhante, ao igual e ao familiar. Nesse sentido, pode-se argumentar que o
conhecimento como é concebido pela modernidade operaria dentro de uma “lógica do
mesmo”, na qual não haveria afirmação da diferença, mas apenas uma apropriação desta
para um contexto já determinado e estabelecido como “algo conhecido”, para este lugar
neutro e familiar que é “o mesmo”. Se esse modelo de conhecimento pareceria pertencer
apenas ao homem do povo, Nietzsche indaga, na continuação da passagem supracitada:
“E nós, filósofos, já entendemos mais do que isto, ao falar de conhecimento? ”(GC, §355).
É nesse sentido que o filósofo alemão diagnosticaria não apenas um modo de
conhecimento próprio ao povo, mas por seu intermédio buscaria caricaturar um modelo
de conhecimento que também seria exercido pela filosofia em geral, pois ambos seriam
regidos por um mesmo impulso de negação e conversão do estranho, das diferenças e das

41
singularidades ao mesmo do já familiar. Nietzsche em sua compreensão diagnóstica do
conhecimento se valeria da investigação genealógica que teria como principal tarefa
avaliar as avaliações que determinariam coisas ou fenômenos, sendo portanto um método
interpretativo que insere na filosofia as noções de sentido e valor, pois assim como
explicita Deleuze, (1976, p. 4) “o projeto mais geral de Nietzsche consiste em introduzir
na filosofia os conceitos de sentido e valor”. Neste sentido, a genealogia não pretende
descobrir a verdade ou mesmo a origem (no sentido filosófico tradicional de busca de
uma essência) e o sentido teleológico23 de uma coisa, e considerando que não há coisas
em si, mas avaliações que as determinam em seu valor, procuraria considerar sua
pluralidade de sentidos.

Foucault (2001, p. 1006) sublinhando a diferença entre a consideração metafisica


das coisas e o “método” genealógico afirma que

Se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de crer na


metafísica, o que ele aprende? Que por trás das coisas há “algo completamente
distinto”: não absolutamente seu segredo essencial e sem data, mas o segredo de
que elas são sem essência ou que sua essência foi construída peça por peça a
partir de figuras que lhe eram estranhas.

A genealogia de Nietzsche se opõe criticamente ao modelo metafisico de


consideração das coisas e fenômenos que procuraria desvelar na origem a essência eterna
ou “sem data” destes utilizaria a história como um recurso fundamental que levaria em
conta o vir a ser sem “essência”, procurando avaliar as avaliações como “sintomas” de
forças que deles se apropriam.

Neste sentido, Nietzsche (GM, § 6) afirma que “o próprio valor destes valores
deverá ser colocado em questão – para isto é necessário um conhecimento das condições
e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e modificaram”; o
genealogista então apreende, no lugar do segredo (caro à metafisica) de uma essência,
que as coisas não têm essência ou que esta foi construída a partir de figuras que lhe são
estranhas. Portanto, Nietzsche considera que uma “essência” não tem valores
predeterminados e que estes são construídos, deslocando-se profundamente a partir de

23
Em oposição ao sentido teleológico Nietzsche (GM, II, § 12) afirma que para a interpretação genealógica
“algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para
novos fins, requisitado de uma maneira nova, transformado e redirecionado para uma nova
utilidade, por um poder que lhe é superior”. Nesse sentido, a reinterpretação avaliativa genealógica seria
sempre um ato de criação que provocaria novos devires para os fenômenos, o que veremos mais adiante
acontecer justamente em relação a noção de conhecimento, consciência e verdade.

42
uma ideia de construção o que poderia ainda ser chamado de uma “essência”. Com isto
pode-se afirmar que os valores não são eternos, eles tem um nascimento que nada tem a
ver com uma suposta essencialidade predeterminada e atemporal, mas sim com suas
condições e circunstâncias, mas não apenas, pois também se desenvolvem e modificam
de acordo com as forças que deles se apropriam. Portanto, a pesquisa genealógica se
proporia a avaliar em um duplo registro as avaliações e os valores (os valores que provem
de avaliações e as avaliações que são determinadas por valores) que condicionariam o
vir a ser de determinado fenômeno. Nesta direção Giacoia (2000. p. 46) afirma que em
relação aos fenômenos a genealogia considera a “reconstituição dos momentos
constitutivos de seu vir-a-ser, de tal maneira que o sentido atual desse fenômeno
não pode ser obtido sem o conhecimento da série histórica de suas transformações
e deslocamentos”. Considerando os fenômenos genealogicamente em seu vir a ser
Nietzsche se afastaria de qualquer consideração filosófica metafisica que pressupõe
valores e sentidos eternos, pois como ele pondera “tudo veio a ser; não existem fatos
eternos: assim como não existem verdades absolutas” (NIETZSCHE, HH, § 2). É
necessário ainda perguntar qual o critério dessa avaliação dos valores. Pode-se considerar que
Nietzsche pensa uma investigação genealógica que se furta aos imperativos de um procedimento
racionalista que tomaria como parâmetros os verdadeiros valores, sejam eles os oficiais ou
“atemporais”, transcendentais para avaliar os valores , pois como considera Marton (1993, p.
64): “É a vida, enquanto vontade de potência, que toma como critério de avaliação. Em ambos os
registros, porém, o conceito de vontade de potência desempenha papel de extrema relevância.”
Como argumenta a interprete ( Idem), a vontade de potência: “é o elemento constitutivo
do mundo e, ao mesmo tempo, parâmetro no procedimento genealógico” e ainda “Trata-
se, isto sim, de adotar um critério de avaliação que não possa ser avaliado. [...] E o único
critério que se impõe por si mesmo, no entender de Nietzsche, é a vida” Desse modo
pode-se sublinhar que é a vida como vontade de potência que dinamiza o pathos da
pesquisa genealógica na avaliação dos valores e na instituição ou criação destes para
avaliar. Nesse sentido, para a investigação genealógica toda avaliação de valores supõe
um ato de criação de valor, um exercício da vontade de potência, assim como considera
que todo valor proveniente de uma avaliação de um fenômeno não advém de sua essência
mas também é instituído pelo ato de uma invenção da vontade de potência seja de modo
reativo ou ativo. De outro modo, pode-se dizer que é fundamentalmente a vida que avalia
e cria valores seja ela uma vida decadente ou ascendente. Neste sentido, a genealogia
buscaria desconstruir a essência eterna imputada pela metafisica à um fenômeno em favor

43
de uma investigação crítica dos múltiplos sentidos e valores que os determinam em seu
devir.

Deleuze afirma também sobre a genealogia:

Por um lado, os valores aparecem ou dão-se como princípios: uma avaliação


supõe valores a partir dos quais aprecia os fenômenos. Mas, por outro lado e
mais profundamente, são os valores que supõe avaliações, pontos de vista de
apreciação, donde deriva o seu próprio valor. O problema crítico é este: o valor
dos valores, a avaliação donde procede o seu valor, portanto o problema da sua
criação.

Como propõe Deleuze, o genealogista ao investigar o valor nos fenômenos


procuraria considerar mais profundamente as avaliações que geram os valores, e com
isto os sentidos dos fenômenos, considerando não sua origem (no sentido metafisico de
procura de uma essencialidade), mas seu vir a ser condicionado por uma “origem”
entendida como nascimento ou criação que pressuporia a atividade determinante de uma
avaliação. Por intermédio da investigação genealógica concebe-se criticamente uma
outra concepção de história, não mais articulada por uma noção teleológica e simplista
dos fenômenos que são então “percebidos” em sua constituição plural de forças 24, que
estabelecem seus valores e sentidos. Isso não a impede, para fins de caracterização
tipológica de um fenômeno, considerar qual a força ou forças que em determinado
momento estabelece maior afinidade com um fenômeno25.

Nesta direção é que o conhecimento moderno seria avaliado genealogicamente


por Nietzsche em seu vir a ser como determinado predominantemente em sua afinidade
com impulsos (entendidos como forças) conservadores. Considerando genealogicamente
o conhecimento, o filósofo alemão não estabeleceria, segundo o modelo metafisico de
saber, o que é esse em sua essência ou verdade, mas diagnosticaria certo vir a ser de
forças que dele se apropriam e nele se expressam.

Se não há, nesse modo de conhecimento, uma relação de impulsos capazes de


afirmar o estranho, as diferenças e singularidades, pergunta-se então qual impulso que aí
se torna soberano em sua “vontade” de convertê-los em familiar, seguros? Ao tornar

24
Para avaliar o sentido de um fenômeno ou de uma coisa torna-se necessário, na leitura de Deleuze
(1976,p.4), sobre Nietzsche, saber qual força ou forças que se apropriam e se expressam neles. Tratarei
mais adiante da noção de força na perspectiva nietzschiana .
25
Porém a genealogia, considerando que todos os fenômenos vem a ser e estão em constante devir, entende
que novas forças podem se apropriar destes, possibilitando novos sentidos e valores. O que será levado
em consideração mais à frente quando Nietzsche propõe que outros devires de forças (neste caso, impulsos)
não reativas podem estabelecer novas formas e sentidos de conhecimento.

44
familiar aquilo que é desconhecido, submetendo-o a uma simplificação e generalização
por meio do já conhecido, não vigora justamente a perspectiva gregária e o impulso do
rebanho que precisaria para sua conservação e segurança proteger-se no seio do familiar
e conhecido, para “nos sentirmos em casa” (NIETZSCHE, GC, §355)? Nesta direção,
Nietzsche pondera: “Não seria o instinto de medo que nos faz conhecer? E o júbilo dos
que conhecem não seria precisamente o júbilo do sentimento de segurança reconquistado?
” (NIETZSCHE, GC, §355). Desse modo, não apenas os impulsos, que para a concepção
moderna deveriam estar ausentes do processo racional de conhecimento, fariam parte
dele, mas ainda Nietzsche questiona se nessa determinada concepção de conhecimento
não seriam soberanos o impulso de medo e a necessidade de segurança, considerados
como impulsos próprios do rebanho que, por sua configuração, deseja apenas conservar-
se de tudo o que avaliam como perigoso, estranho e diferente. Muller- Lauter (2009, P.
163) ressalta acerca do homem moral que predomina no rebanho: “O homem moral é
medroso. Seu ‘sentido de verdade’ é ‘no fundo’ um sentido de segurança. [...] A suspeita
em relação ao ser diferente que Nietzsche já detectou na raiz da compaixão deve agora
fundar também a exigência de veracidade.”.

Esse comentário ajuda a esclarecer a relação entre conhecimento, sua exigência


da moral de veracidade e a necessidade de “re-conhecimento” tanto entre os homens
quanto em relação ao mundo em geral, pois aquilo que determina o “re-conhecimento”
seria o impulso de medo em relação ao “ser diferente”. Assim, Gilvan Fogel (2002, §I )
ressalta a prevalência do impulso para o asseguramento que regeria o conhecimento, tal
como é concebido na modernidade: “Teoria do conhecimento, tal como lógica, converte-
se num aspecto da metodologia, ou seja, da doutrina do método ou do caminho do prévio
asseguramento e controle do conhecimento, da verdade e do real.” 26 Pode-se propor que
essa compreensão de conhecimento como asseguramento e controle do real enquanto
algo perigoso para o instinto de conservação acentuar-se-ia na modernidade, tornando-se
método27. O exemplo empregado por Nietzsche no parágrafo 355 de A Gaia Ciência é
típico do pensamento moderno e seu subjetivismo, no qual o método exigiria para o
verdadeiro conhecimento “que se parta do ´mundo interior´, dos ´fatos da consciência´,
pois este é o mundo mais familiar para nós”. Para a concepção moderna, o “mundo

26
Disponível em: http://pessoaypessoa.blogspot.com/2016/01/gilvan-fogel-por-que-nao-teoria-
do.html

45
interior” e os “fatos da consciência” próprios ao sujeito seriam o mais próximo e o mais
familiar, portanto mais conhecidos, e consequentemente assegurariam o projeto de
conhecimento ao funcionarem como um fundamento familiar e por isto seguro e estável
para a atividade do “re-conheccimento”. Além desta essa familiaridade consigo mesmo
pressuporia ainda o autoconhecimento do próprio eu que garantisse a certeza imediata do
sujeito.

Contudo, em sua crítica à concepção moderna de subjetividade inaugurada pelo


discurso de Descartes, Nietzsche (ABM, §54) argumenta que “antes se acreditava na
‘alma’, como na gramática e no sujeito gramatical: dizia-se que ‘eu’ é condição, ‘penso’
é predicado e condicionado – pensar é uma atividade para a qual um sujeito tem de ser
pensado como causa”. Esse seria o caminho e método proposto por Descartes (1983, p.
158, grifo meu) em suas meditações, ao substancializar o sujeito a partir de uma evidência
imediata assim como se pode ler em seu escrito Meditações: “Quando alguém diz: Penso,
logo sou, ou existo, ele não conclui sua existência de seu pensamento como pela força de
algum silogismo, mas como uma coisa conhecida por si; ele a vê por simples inspeção
do espírito”“. Para Nietzsche, haveria na reflexão de Descartes em um primeiro momento,
uma crença no elemento gramatical do eu para em seguida este ser transposto para um
ordem lógica-metafisica ao modo de uma substância pensante. Tal crença na gramática,
assim como nos levaria a Deus28, após a sua morte, ou ainda, em seu crepúsculo,
conduziria o pensar de Descartes ao eu e sua posterior substancialização. Segundo
Itaparica (2011, p. 67.), Nietzsche assinalaria em sua crítica a Descartes que: [...] Há um
salto entre a primeira certeza do cogito e a segunda certeza, a de ser uma substância
pensante; isso representa a transposição do modelo gramatical para o lógico, e do lógico
para o metafísico... ”.Desse modo, o salto entre a primeira certeza, do cogito, e a segunda
certeza, de haver uma substância pensante, só seria possível graças à crença na gramática
e posteriormente fundamentada na lógica que possibilitaria a “certeza” na
substancialidade metafísica de um sujeito causador do pensamento. Nietzsche procuraria
criticar a conclusão de Descartes de que é necessário para o pensar um sujeito causador,
pois como visto anteriormente, o filósofo considera a atividade do pensamento como não
restrita ao registro da consciência que teria como fundamento o sujeito e o “Eu”. Ao

28
A ‘razão’ na linguagem: Oh, que velha e enganadora senhora! Receio que não nos livraremos de Deus,
pois ainda cremos na gramática” (NIETZSCHE, CI, “A razão‟ na filosofia”, §5).

46
avaliar a certeza e evidência imediata de Descartes acerca do sujeito como causa do
pensamento, o filósofo alemão argumenta que:

[...] No que diz respeito à superstição dos lógicos: não me cansarei de sublinhar
um pequeno e simples fato, que esses supersticiosos não gostam de assumir, –
que um pensamento vem quando “ele” quer, e não quando “eu” quero; assim,
é uma falsificação dos fatos dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado
“penso”. Isso pensa: mas que “isso” seja justamente aquele velho e célebre
“eu” é dito com delicadeza, apenas uma suposição, uma afirmação, tudo menos
uma “certeza imediata”. (NIETZSCHE, ABM, § 17)

A partir dessa passagem, assinalo que Nietzsche, ao propor que “um


pensamento vem quando “ele quer”, questiona a concepção moderna da consciência
e do sujeito como condição e fundamento do pensamento. Observo que, ao suspender
o “ele” entre aspas, o filósofo se afasta de um hábito “metafisico-gramatical” que
tende a esquematizar todo “efeito” como causado por um agente, pois “raciocina-se
segundo a rotina gramatical: ‘Pensar é uma ação, toda ação pressupõe a existência de
um sujeito [...]”(NIETZSCHE, ABM, § 1). Com isso o pensamento não se tornaria
um “agente” autônomo pois é concebido ainda como um efeito de uma multiplicidade
de impulsos. Nietzsche desestabilizaria o critério do sujeito (e do “eu”) estabelecido
na modernidade como fundamento para o conhecimento e para a atividade de
pensamento que, inquestionável, se apresentaria como imediato e seguro enquanto
“uma certeza imediata”. O filósofo problematizando o sujeito como fundamento
seguro do projeto racional de conhecimento na modernidade propõe que o “eu” não
passa de um “artigo de crença” herdado pelo conceito metafísico-religioso de alma:

Afinal toda filosofia não há de trazer à luz as pressuposições sobre as quais


repousa o movimento da razão? Nossa crença no eu como crença em uma
substância, como crença na única realidade a partir da qual atribuímos, em
geral, realidade às coisas? O mais antigo “realismo” [´realismus´] vem pôr fim
à luz: ao mesmo tempo em que toda a história religiosa se reconhece como
história da superstição no que se refere às almas. (NIETZSCHE, VP, §487,
Grifo meu)

Pode-se depreender a partir dessa passagem que o Ocidente, habituado ao


monoteísmo cristão enquanto uma “continuidade” da metafísica platônica, teria se
preparado pela crença na noção de alma em sua semelhança a Deus para valorizar o
sujeito29 (e o eu), abrindo caminho, na modernidade, para a substituição da noção de Deus

47
como fundamento de todos os valores e da alma a sua semelhança pela crença no eu e no
sujeito como únicas realidades capazes de produzir sentido. Quanto a isso, pondera
Scarlett Marton que:

A ideia de ‘eu’ teria suas origens na superstição religiosa da alma. Se, no


campo da Física, houve quem sustentasse ser a realidade constituída por
partículas ínfimas da matéria, no domínio da metafísica, considerou-se a alma
‘algo indestrutível, eterno e indivisível’. Daí procederia a ideia de um eu fixo
e estável, sujeito responsável por todos os atos, inclusive o de pensar. (Marton,
2009, p.174).

Nietzsche assinala que a concepção de “eu” se basearia na ideia de substância,


criticando-a, portanto, em seu sentido metafísico a partir de sua herança na noção de alma
como “algo indestrutível, eterno e indivisível” a partir do qual se atribuiria
metafisicamente substância às coisas. Com sua crítica, viria por fim esse mais antigo
“realismo” a partir do qual se atribuiria realidade às coisas como substâncias. Nesse
sentido, a crítica ao “eu” seria também ao realismo, mas não apenas, pois, ao criticar o
fundamento que possibilitaria o estatuto de “realidade” às coisas, critica-se a própria
concepção de “realidade” mesma. Também no prólogo de Além do bem e do mal, pode-
se ler uma reflexão paralela acerca da alma e do sujeito:

[...] E está talvez bastante próximo o tempo em que mais e mais se


compreenderá o que efetivamente já não bastou para servir de pedra
fundamental a tais sublimes e absolutos edifícios filosóficos que os dogmáticos
até então construíram, – alguma superstição popular de um tempo imemorial
(tal como a superstição da alma, que, como a superstição do sujeito e do eu,
ainda hoje não cessou de gerar absurdos) [...]. (Nietzsche, ABM, prefácio)

Nietzsche enfatiza, portanto, que o sujeito e o eu, tomados como


fundamento e pedra fundamental dos edifícios filosóficos dos dogmáticos, são uma
crença e uma ficção 30 de origem metafísico-religiosa que se tornaram necessárias para os
propósitos da compreensão moderna de conhecimento (e, portanto da relação do homem
consigo mesmo e com o mundo), na qual a consciência seria tomada como o locus
originário do processo de pensamento em oposição aos impulsos. Para o filósofo o “eu”
e o sujeito, longe de serem um atributo e propriedade natural do homem, seriam
“invenções” ficcionais necessárias dentro de certa destinação histórica, além de serem o
fruto tardio de uma herança metafísica religiosa. Ainda que a noção de sujeito e o “eu” a

30
Assinalo que pretendo desenvolver ainda neste capítulo e no precedente o uso de certa noção de ficção
para além do dualismo verdade/mentira por compreender que esse tema é relevante na interpretação
derridiana de Nietzsche e em sua relação ao problema do sujeito.

48
ela correlato se torne no programa da modernidade uma “necessidade” indispensável, isso
não a exime da crítica de Nietzsche:

--- por meio do pensar é posto o eu; mas até agora se acreditou, como o povo,
que no “eu penso” jaz algo de imediatamente certo e que esse “eu” seria a causa
dada do pensar (...). Por mais que essa ficção agora possa ser costumeira e
indispensável – isso, somente, não prova nada contra o seu caráter fictício, uma
crença pode ser condição da vida e, apesar disso, ser falsa. (NIETZSCHE, VP,
§483)

Desse modo, Nietzsche sublinharia que a noção de “eu” tornara-se “costumeira e


indispensável” para determinada condição de vida, como a dos modernos e, mais
especificamente, a do rebanho que, por meio da supervalorização da consciência, do “eu”
e do sujeito, buscaria conservar-se. No entanto, constata o filósofo , “uma crença pode
ser condição da vida e, apesar disso, ser falsa.” tornando-se necessário refletir sobre o
estatuto de falsidade e ficcionalidade no filosofar de Nietzsche que não empregaria esse
termo no sentido da metafísica que opõe o verdadeiro ao falso. Desse modo, criticando a
noção de sujeito ao sublinhar seu caráter ficcional e falso, Nietzsche não apresenta um
outro fundamento seguro e verdadeiro (não ficcional) para o pensamento e o
conhecimento. Sua crítica visaria muito mais denunciar as crenças metafísico-religiosas
subjacentes ao projeto moderno de conhecimento que determinam o “eu” como uma
ficção necessária para determinada condição de vida –a do rebanho- que precisaria, frente
ao incessante vir a ser, crer como na alma em algo que permanece o mesmo. O filósofo
ressalta o processo de simplificação e igualação da lógica que nos levaria a crer em uma
suposta “igualdade” entre diferentes estados internos, identificados como o próprio de um
sujeito, que permaneceriam idênticos a si mesmo em sua unidade para além de toda a
transformação: “´Sujeito é a ficção como se muitos estados iguais em nós tivessem o
efeito de um substrato: mas nós criamos primeiro a ‘igualdade’ desses
estados”(NIETZSCHE , kSA 12.465 (152) 10 [19] do Outono de 1887 Apud MULLER-
LAUTER. 2009. P. 49).

É a partir desta igualação de diferentes estados que teriam “o efeito de um


substrato” que Nietzsche (VP, §488) renomeia o sujeito como este é usualmente
concebido como “átomo-sujeito", a fim de apontar a crença metafísica do pensamento
moderno em sua unidade e estabilidade assim como afirmar que é preciso superar “o outro
e mais funesto atomismo que o cristianismo ensinou-nos tão bem e durante tanto tempo,
o atomismo das almas. ” (NIETZSCHE, ABM, §12) Com a expressão “atomismo da
alma”, que se relaciona com a ideia de “átomo-sujeito”, o filósofo pretende denunciar “a

49
crença que considera a alma como sendo algo inextinguível, eterno, indivisível, uma
mônada, um átomo [...]” (NIETZSCHE, ABM, §12). Seria preciso, portanto, ao
pensamento a tarefa de eliminar esse atomismo metafísico da alma que a institui como
uma substância unitária e estável que se tornaria a herança necessária para a origem da
concepção de eu e de sujeito. Nietzsche verifica que tanto a alma assim como o átomo
são considerados ora pela metafísica, ora pela ciência como a ínfima partícula
funcionando como uma última parcela de “terra” fixa frente o incessante vir a ser, como
o fundamental resquício do “ser” com as características de durabilidade, eternidade e
indivisibilidade. Desse modo, considerando o sujeito uma ficção e uma crença, o filósofo
não o criticaria por seu caráter ficcional, mas por ser uma ficção que não é considerada
enquanto tal e que, pelo contrário, se lhe atribui um caráter de substancialidade. E ainda
porque essa ficção estaria a serviço de um impulso que denegaria o caráter múltiplo e
transitório da existência; importaria para Nietzsche o valor que determinada ficção tem
ou não de afirmar esse caráter da existência. Mas pode-se perguntar: a ficção mesma não
requereria um autor, um sujeito por detrás? É o que é justamente indagado em uma
passagem de Além do bem e do mal: “Por que não poderia o mundo que nos concerne –
ser uma ficção E a quem faz a pergunta: “mas a ficção não requer um autor?” – Não se
poderia replicar: Por quê? Esse “requer” não pertenceria também à ficção?”
(NIETZSCHE, § 34),

O que seria o sujeito-autor fundamento de ficções é, portanto, colocado em xeque.


Em suma, a concepção de um sujeito por detrás dos pensamentos e do conhecimento é
problematizado, possibilitando a criação de outras possíveis ficções. É nesta direção
que se podem encontrar em seus escritos outras hipóteses de sujeito e de sua possível
relação com o pensamento e o conhecimento, que se afinariam com a multiplicidade e
com o caráter dinâmico e antagônico dos impulsos:

A suposição do sujeito não é, talvez, necessária; do mesmo modo, seria talvez


permitido supor uma multiplicidade dos sujeitos, cujo jogo de conjunto e luta
jaz como fundamento de nosso pensar e em geral de nossa consciência?
Minha hipótese: o sujeito como multiplicidade. (Nietzsche, VP, §490)

A partir desse exemplo, pode-se pensar que a noção de sujeito compreendida por
Nietzsche como uma ficção útil para o projeto de conhecimento moderno não é criticada
em nome de uma categoria mais real ou mais verdadeira, pois o pensador propõe outras

50
hipóteses de sujeito que também são consideradas por ele como ficcionais e hipotéticas.
Desse modo, a hipótese de um sujeito como multiplicidade é enfatizada por Nietzsche
não por meio do paradigma da verdade, mas como uma ficção. Cabe perguntar, porém, o
que distinguiria uma hipótese ficcional da outra? Parece-me que a diferença fundamental
entre essas hipóteses (admitido que ambas sejam hipóteses ficcionais) não é a oposição
falso/verdadeiro, mas sua relação e afinidade com a concepção de Nietzsche da
dinâmica de luta entre os impulsos 31·, pois o sujeito considerado como multiplicidade
estaria implicado em uma concepção de subjetividade que não tem como fundamento o
princípio de uma identidade estável, mas estaria em conformidade com as relações de
luta entre diferentes impulsos. Em Além do bem e do mal, Nietzsche (§ 12) concebe outras
hipóteses da noção de “alma” que podem ser consideradas como um paralelo da hipótese
de um sujeito como multiplicidade para além do caráter de estabilidade, unidade e
eternidade: “Está aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da
alma: e conceitos como ‘alma mortal’, ‘alma como pluralidade do sujeito’, ‘alma como
estrutura social de impulsos e afetos’ querem ter, de agora em diante, direito de
cidadania”. De um modo geral, pode-se pensar que essas versões da hipótese de alma,
tomando-as em sua afinidade já explicitada anteriormente com a noção de sujeito
elaborada pelo autor, se caracterizam tanto pela concepção de finitude quanto de
pluralidade que predominam nas estratégias nietzschianas de tecer novas interpretações,
ainda que usando (mas torcendo-as em direção a outros sentidos) termos tradicionalmente
metafísicos como alma, que possibilitem uma afirmação e afinidade com a vida
considerada em sua complexidade múltipla e dinâmica.

Em torno desse sujeito múltiplo, Nietzsche avalia que um “indivíduo” só seria


fecundo “ao preço de ser rico em antagonismos” (NIETZSCHE, CI,§3) ao afirmar que
“para ser ‘clássico’ seria necessário ter ‘todos os dotes e desejos fortes, aparentemente
contraditórios’” (NIETZSCHE, KSA 12.433, (116) Apud MULLER-LAUTER, 2009,
p.39). Assim, Nietzsche avalia como fortes os tipos encontrados em Handel, Leibniz,
Goethe, Bismarck, que seriam característicos da espécie de alemão fortes conforme “– o
caráter resoluto da vida entre antagonismos. [...] Plena daquela força maleável, que se
previne das convicções e doutrinas, à medida que utiliza uma contra a outra e reserva a si
mesmo a liberdade” (NIETZSCHE, KSA 12.444, (130) Apud MULLER-LAUTER,
2009, p.39). O caráter da natureza antagônica seria possibilitado por uma força plástica

51
que impediria a cristalização das forças interpretativas em convicções e doutrinas últimas
e derradeiras como verdades absolutas. As convicções e doutrinas como perspectivas são
desse modo utilizadas para forcejar a luta e o combate típico das forças da vontade de
potência enquanto o “individuo” se reserva a liberdade na distância de qualquer aderência
final e absoluta a uma convicção e doutrina. Enfatiza Muller-Lauter que a concepção
fundamental de Nietzsche nesse contexto seria “que em todo crescimento do homem é
preciso que cresça também o seu lado inverso” (NIETZSCHE, KSA 12.444, (130) Apud
MULLER, 2009, p.39), e isto para que que haja constante antagonismo entre as forças
que favoreçam a luta entre elas e a superação de si mesmo. Compreendidos no âmbito da
luta e da superação, os antagonismos de impulsos estariam em afinidade com a concepção
fundamental nietzschiana de vontade de potência e seu movimento de superação. Assim,
faz-se necessário sublinhar que a luta dos antagonismos é compreendida por Nietzsche
também ao nível da vontade de potência e seu jogo de forças, pois “por meio de cada
impulso também se estimula seu impulso oposto” (MULLER-LAUTER, 2009, p.51) e
cada impulso “quer impor sua espécie de erro: mas cada um desses erros logo se torna
pretexto para um outro impulso (por exemplo, contradição, análise etc.). ” (MULLER-
LAUTER, 2009, p.52). O antagonismo de impulsos ressoando a dinâmica da vontade de
potência teria por resultado o movimento de superação de si no homem antagônico tendo
por consequência uma noção de identidade que se caracteriza pelo multiplicidade e o
dinamismo das forças que a atravessam. Do ponto de vista do conhecimento, a constante
luta dos impulsos por impor sua perspectiva preveniria que as doutrinas e convicções se
estabeleçam como uma verdade absoluta. A partir do antagonismo próprio dos impulsos
uma outra concepção de conhecimento e se sujeito se esboça no pensamento de Nietzsche.

Ora, caberia neste ponto questionar se, com sua concepção de uma multiplicidade
de sujeitos em afinidade com a multiplicidade de impulsos, não estaria Nietzsche, após
sua crítica “destrutiva” à substancialidade cartesiana do eu pensante, multiplicando
“aparentes realidades metafísicas rejeitadas” (MULLER-LAUTER, 2009, p.53). Dito de
outro modo, pergunta-se e a multiplicação não vem a ser apenas a inversão da unidade
metafísica que viria então a recair, ainda que negando, nos mesmos princípios
metafísicos. Nesse sentido, move-se a indagação de Muller-Lauter ao perguntar-se se:

O destruído não se reproduz sempre de novo? Do “indivíduo” emerge um sem-


número de “indivíduos”, o ego da pessoa mostrou-se como uma multiplicidade
de forças de espécie pessoal, o sujeito esfacelou-se ‘numa variedade de
sujeitos’ [...] mas no seu entender [de Nietzsche], o eu não consistiria numa
diversidade de substâncias ?”(MULLER-LAUTER, 2009, p.53).

52
É preciso problematizar se Nietzsche, ao realizar uma inversão da unidade estática
em prol da multiplicidade dinâmica, não estaria ainda operando dentro dos limites da
metafísica que busca negar, ao multiplicar aquilo que havia criticado (individuo, eu, alma,
sujeito e ego). E, se por detrás da multiplicidade ainda não operaria a noção de uma
substância fundante. Uma importante ressalva do intérprete mostra-se de grande
importância para este trabalho: ele afirma que “Nietzsche emprega palavras como sujeito,
eu, individuo, pessoa como símbolos para o que escapa à denominação. E ele os rejeita
tão logo são pensados como conceitos”. (MULLER-LAUTER, 2009, p.55). Nesse
sentido, pode-se apontar que para Nietzsche não haveria uma correspondência entre o
conceito e as “coisas” que estão, por sua vez, em constante processo de devir, tornando-
se impossíveis de serem fixadas. Seria, portanto, em nível do simbólico ou ainda do
metafórico que Nietzsche empregaria em seu próprio filosofar palavras como eu,
individuo alma, palavras tão carregadas do caráter metafísico, que logo pensadas como
conceitos, no sentido da correspondência, o autor as rejeitaria. Nietzsche chega mesmo a
afirmar em relação ao uso das palavras que: “infelizmente, não temos nenhuma palavra
para designar o que é efetivamente existente” (NIETZSCHE, KSA II. 631 40 Apud
MULLER-LAUTER, 2009, pp. 53-54). Afirma Muller-Lauter que:

Quando quer manifestar-se sobre isso, apesar da sua convicção muitas vezes
expressa “da incomunicabilidade das concepções últimas”, o filósofo tem de
se servir tanto das palavras do uso linguístico cotidiano, quanto da linguagem
tradicional da metafísica que combate. Assume seus conceitos, sem julgar que,
com eles se poderia “compreender” algo por completo. “Não há nenhum
caminho que leve do conceito à essência das coisas” (MULLER-LAUTER,
2009, p.54)

O uso das aspas marcaria de forma exemplar as palavras extraídas do uso cotidiano
e da metafísica, fazendo apenas referência a um estado de coisas e nunca à apropriação
da essência de uma coisa. Contudo são muitas as estratégias que o filósofo desenvolve
para não se enredar nas teias da metafísica a partir do uso das palavras concernentes a ela:
as aspas, a crítica ao simples, unitário e estático em favor do múltiplo, complexo e
dinâmico, o uso da linguagem metafórica...

Em verdade, não há nenhum caminho que vá do conceito à essência das coisas,


porque justamente não há essência das coisas, ou dito de maneira paradoxal, a “essência”

53
das coisas seria seu vir a ser inapreensível pela operação de fixação e igualação 32 que
supõe o uso dos conceitos. Nessa direção afirma Muller-Lauter que:

Nietzsche rejeita, por isso, todas as palavras, na medida em que, com elas, se
enfatiza a pretensão do conceito, e faz uso delas apenas como “símbolo”. Elas
devem apenas referir estados de coisas. É preciso seguir esse seu caráter
referencial, não se pode fixar-se incondicionalmente a elas. É preciso deixar o
“conceitual” atrás de si, a fim de chegar ao que “efetivamente existe.
(MULLER-LAUTER, 2009, p.55)

Ora, a pretensão da conceituação é que por meio da igualação, da fixação e da


correspondência chegue-se a uma pretensa apreensão apropriadora da essência das coisas,
porém, desconstruída a suposta “essência das coisas”, restaria o processo de vir a ser que
caracteriza o verdadeiro “efetivo”. O conceito mata as coisas ao se apropriar, igualando
e fixando um processo que é “diferencial” e transitório. Por isso Nietzsche elegeria uma
linguagem predominantemente simbólica, pois, assim como interpreta Muller-Lauter,
somente uma linguagem estrategicamente simbólica ou metafórica poderia fazer
referencialidade ao estado transitório das coisas e desse modo não significar as coisas
mesmas. Sujeito, individuo, alma tornam-se palavras meramente simbólicas para fazer
referência a um estado de coisas em devir. Contudo a aparente unidade dessas palavras
não daria conta do processo de vir a ser múltiplo e efetivo do estado de coisas a que fazem
referência. Nesse sentido, pode-se entender a estratégia de Nietzsche na multiplicação
destas noções: não individuo, alma ou sujeito, mas indivíduos, almas e sujeitos que não
se configuram como uma multiplicação do mesmo, mantendo sua substancialidade, mas
operam em uma dinâmica de luta na diferença e alteridade das forças que lhes constitui.
Uma força só “existe” porque há outra força que lhe resiste. A força não se constitui como
poderia parecer em uma espécie de átomo fechado, uma unidade em si, mas no jogo de
alteridade com outras forças que lhe são diferentes e antagônicas. Do mesmo modo, a
noção de uma multiplicidade de sujeitos não se constitui por uma multiplicação de
sujeitos indenitários fechados em sua interioridade, mas num jogo e luta que se efetiva no
entre da alteridade das diferentes forças que operam nesses sujeitos. Nesse sentido,
Nietzsche não deixaria retornar o “destruído” por sua crítica em uma nova configuração
por sua vez múltipla: sua linguagem e problematização operariam não uma mera inversão
(que poderia vir a dar numa virada para o mesmo) que também faz parte de sua estratégia,

32
O conceito surgiria, antes de tudo, por meio da igualação do não-igual.

54
mas em um radical deslocamento que não se deixaria apoiar sob os fundamentos da lógica
da identidade a qual sustenta o sujeito moderno.

Do mesmo modo que a noção de sujeito, por meio da crítica nietzschiana, sofre
deslocamentos de seu sentido usual, sendo utilizada em sentidos radicalmente outros (a
partir de um pensamento da finitude, da multiplicidade e da diferença) que os pensados
pela tradição moderna em uma proposta de sujeito que não se efetivaria nos fundamentos
metafísicos, proponho que esse movimento implica uma outra perspectiva da noção de
consciência e de conhecimento pensada também para além da metafísica do sujeito
moderno. Desse modo, o sujeito descentrando e múltiplo como o pensa o filósofo
produziria outros efeitos na sua relação com as noções de consciência e conhecimento.
Portanto, a crítica ao sujeito moderno e a sua “transvalorização” no sentido de uma
multiplicidade possibilitaria uma série de deslocamentos aos elementos tradicionalmente
a ele relacionados como a consciência, o pensamento e o conhecimento. Articulando-
os à noção de impulso outrora desqualificada pelo pensamento metafisico em um par de
oposição que supervalorizaria a consciência e o conhecimento como algo do qual não
participaria a atividade instintiva qualificada como inferior, Nietzsche afirma uma outra
hierarquia de valores.

Proponho em seguida que a partir de uma noção plural dos impulsos, como os
conceberia Nietzsche, não mais avaliados dentro de um par dicotômico, consciência e
conhecimento adquirem sentidos insuspeitos ao serem relacionados a este registro outrora
desqualificado pela metafisica como algo que além de não participar da atividade
intelectual a desviaria de seu percurso “natural”. Assim, com a participação fundamental
dos impulsos no processo de conhecimento e no “funcionamento” da consciência opera-
se um deslocamento radical quando estes não mais são considerados a partir de um
pretenso sujeito, como este é concebido tradicionalmente. Caminhando junto a crítica
veemente de Nietzsche, avalio que está engendra em um outro movimento novas
criações ao que era tomado como evidente e inquestionável produzindo deslocamentos
radicais no campo do conhecimento e do pensamento.

55
1.3 Deslocamentos

Como visto a consciência se desenvolveu a partir de um impulso de


autoconservação dos homens, mas é falsamente compreendida e valorizada como o
âmago, o mais próprio do homem e particularmente na modernidade filosófica entendida
como fundamento do pensamento e da possibilidade de conhecimento. Assim, Nietzsche
(GC, §354) aponta que, ao tomar a consciência como algo dado e pré-determinado, os
homens “negam seu crescimento, suas intermitências”, portanto a consciência não é
usualmente compreendida em seu caráter imanente, mas como algo fixo e pré-
determinado, algo próprio à natureza humana. De outro modo, a crítica genealógica de
Nietzsche, concebendo o caráter imanente da consciência como algo que teve um
desenvolvimento, parece apontar também para certa possibilidade de a consciência vir a
ser de outro modo, o que parece ser indicado quando Nietzsche afirma em relação à
consciência (como “órgão de comunicação”) que:

há enfim um excesso dessa virtude e arte da comunicação, como uma fortuna


que gradualmente foi juntada e espera um herdeiro que prodigamente a esbanje
(— os chamados artistas são esses herdeiros, assim como os oradores,
pregadores, escritores, todos eles pessoas que sempre vêm no final de uma
longa cadeia, "frutos tardios”, na melhor acepção do termo, e, como foi dito,
por natureza esbanjadores).(NIETZSCHE, GC , § 354)

Ora, essa “natureza esbanjadora”, na qual um estado de coisas chega a seu


acúmulo e a uma intensidade tal que transborde por seu excesso de força a medida
da utilidade parece se aproximar da caracterização do tipo humano que Nietzsche
avalia como nobre, que não tem sua medida de valor na utilidade 33. Portanto a
comunicação, atividade própria da consciência, encontra em tipos entendidos
como frutos tardios uma tarefa não necessariamente fundada em uma ação
utilitária a serviço do rebanho e da autoconservação; desse modo, a atividade

33
Por exemplo: “Esse ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de tal ardente
manancial de juízos de valor supremos, estabelecedores e definidores de hierarquias: aí o sentimento
alcançou bem o oposto daquele baixo grau de calor que toda prudência calculadora, todo cálculo de
utilidade pressupõe” (Nietzsche, GM, primeira dissertação, § 2) e “O juízo de valor cavalheiresco-
aristocráticos têm como pressuposto uma constituição física poderosa, uma saúde florescente, rica, até
mesmo transbordante” (Nietzsche, GM, (Nietzsche, GM, primeira dissertação § 7).

56
comunicativa da consciência poderia ser “sublimada” por naturezas esbanjadoras.
Ao apontar para o desenvolvimento e as intermitências da consciência, Nietzsche
sublinharia que, tendo ela um passado e um presente, a consciência poderia ter um
outro futuro, considerada então em sua imanência:

Por acreditarem já ter consciência, os homens não se empenharam em adquiri-


la – e ainda hoje não é diferente! A tarefa de incorporar o saber e torná-lo
instintivo é ainda inteiramente nova, apena começa a despontar para o olho
humano, dificilmente perceptivo – uma tarefa vista por aqueles que
entenderam que até hoje foram incorporados somente os nossos erros, e que
nossa consciência diz respeito a erros. (Nietzsche, GC, § 11)

Interessante passagem na qual Nietzsche, talvez a partir de sua concepção de um


processo de pensamento e conhecimento entendido como uma dinâmica de relações entre
diferentes impulsos, considera a possibilidade de “incorporar o saber” e “torná-lo
instintivo”, tal tarefa só poderia ser levada a cabo por aqueles que haveriam de ter
compreendido que a consciência até agora só fora constituída pelos erros próprios da
perspectiva e impulso de rebanho que, para conserva-se, necessitou, pela atividade de sua
consciência da identificação de coisas diferentes ou semelhantes como iguais, do
reconhecimento do estranho a partir do já conhecido, de tomar o pensamento consciente
como o pensamento em absoluto em oposição aos impulsos, etc. Pode-se sublinhar que
Nietzsche empreenderia certa atividade de destruição dos limites metafísico-binários que
estabelecem uma separação absoluta entre pensamento e impulsos, pensamento e corpo,
ao sinalizar uma nova “tarefa” em relação à consciência, ao saber e aos impulsos. Estes
últimos são compreendidos pelo filósofo também como algo plástico, mutável, pois não
haveria uma natureza essencial e predeterminada a eles relacionada, já que também os
impulsos seriam configurados a partir do saber. Desse modo, a crítica nietzschiana à
consciência e ao conhecimento nos moldes da modernidade não deve ser interpretada
como uma mera inversão para afirmação dos impulsos, como muitas vezes ocorre, pois
pode-se argumentar que sua crítica se refere fundamentalmente a certo estado de coisas
condicionados por determinadas forças: a consciência, o saber e os impulsos conformados
por uma relação de força e valores em favor apenas da conservação da perspectiva
rebanho. A crítica de Nietzsche incidiria muito mais sobre a relação de forças e valores
que constituem o estado da consciência, assim como esta é supervalorizada pela tradição
moderna. Não haveria, pois, nessa crítica uma desvalorização da consciência em favor

57
unicamente dos impulsos, mas sim dos valores e das forças que constituem esse estado
da consciência concebido como a natureza própria e imutável do homem, em favor de
valores e forças que promovam outros arranjos da consciência, do conhecimento e de sua
relação com os impulsos. A crítica mais fundamental de Nietzsche aos fundamentos
metafísicos, qualificados como essência, substância ou natureza, não permite que a crítica
sobre a consciência e ao sujeito do conhecimento dê lugar a uma ingênua fundamentação,
naquilo que seria tradicionalmente considerado como seu polo oposto, os impulsos, mas
abre a reflexão para outros arranjos e possibilidades insuspeitas das relações entre eles.
Além de não recair em uma mera inversão de valores, a estratégia de crítica e criação
nietzschiana em torno da consciência, do conhecimento e dos instintos inviabilizaria a
manutenção das oposições de valores típicas da construção metafisica, apresentando uma
outra relação de forças e valores entre estes. Desse modo, afastando-se criticamente de
um pensamento tipicamente dualista e binário (consciência x instintos, pensamento x
instintos) o filósofo alemão concebe um insuspeitado arranjo de relações no qual os
instintos marcam a gênese do pensamento e do conhecimento.

É desse modo que, a partir da perspectiva da imanência, cabe também analisar


como há nos escritos de Nietzsche outros valores e perspectivas para o conhecimento
quando este é compreendido em sua relação com os múltiplos e diferentes impulsos que
o constituem. No parágrafo 110 34 de A gaia ciência, chamado “Origem do conhecimento”,
Nietzsche desenvolve uma genealogia do conhecimento que vai de suas “origens” como
erros úteis para conservar o homem até o que parece apontar para um conhecimento que
não mais estaria a serviço do que é útil apenas para a conservação do tipo homem do
rebanho. Procurarei elencar seus principais pontos e articulá-los com outros trechos de A
gaia ciência e de comentadores, quando necessário, para interpretá-los e explicitar as
diferenças dos modos de conhecimento nos quais entram em jogo articulações de
diferentes impulsos:

Durante enormes intervalos de tempo, o intelecto nada produziu senão


erros: alguns deles se revelaram úteis e ajudaram a conservação da
espécie; quem com eles deparou ou os recebeu como herança, foi mais
feliz na luta por si e sua prole. (...) Esses equivocados artigos de fé, que
foram continuamente herdados, até se tornaram quase patrimônio
fundamental da espécie humana, são os seguintes, por exemplo: que

34
Sublinho que esse trecho que trata expressamente do tema do conhecimento encontra-se logo após os
parágrafos que tratam seguidamente da “morte de Deus e das “sombras de Deus”, o que parece enfatizar a
relação levantada ao início deste capítulo entre a “morte de Deus, suas sombras e suas relações com o
conhecimento.

58
existem coisas duráveis, que existem coisas iguais. (NIETZSCHE, GC, §
110)

Nesse primeiro momento, o intelecto, movido pelo impulso de autoconservação,


é apresentado pelo filósofo como produtor de erros que se tornaram úteis para a
sobrevivência dos homens. Esses erros úteis (que existem coisas duráveis e que existem
coisas iguais) ao longo do tempo e em função do hábito e de sua utilidade tornam-se
“patrimônio fundamental da humanidade” e são nomeados, pelo autor, como artigos de
fé que posteriormente, pode-se acrescentar, possibilitam o pensamento lógico por meio
da “tendência predominante de tratar o que é semelhante como igual – uma tendência
ilógica, pois nada é realmente igual” (NIETZSCHE, GC, § 111). Desse modo, os erros
úteis tornados artigos de fé se oporiam ao caráter transitório e mutável do devir, pois,
segundo o autor, “foi preciso que durante muito tempo o que há de mutável nas coisas
não fosse visto e sentido, os seres que não viam tinham vantagem sobre aqueles que viam
‘tudo em fluxo’”(NIETZSCHE, GC, § 111).

Somente muito tempo depois apareceram os negadores e questionadores


de tais proposições – somente muito tempo depois apareceu a verdade,
como a mais fraca forma de conhecimento. Parecia que não éramos
capazes de viver com ela, que nosso organismo estava ajustado para o
oposto dela; todas as suas funções mais elevadas, as percepções dos
sentidos e todo tipo de sensações trabalhavam com aqueles erros
fundamentais, mais ainda tais proposições tornaram-se no interior do
conhecimento as normas segundo as quais se media o que era
“verdadeiro” e o que era “falso”[...] os pensadores de exceção, tais como
os Eleatas, que apesar de tudo estabeleceram e se ativaram aos opostos
dos erros naturais, acreditavam ser possível também viver o que era
oposto” mas “também suas vidas e seus juízos revelaram-se dependentes
dos antiquíssimos impulsos e erros fundamentais de toda existência
sensível(NIETZSCHE, GC, § 110)

A verdade aparece então como a mais fraca forma de conhecimento, pois “a força do
conhecimento não está no seu grau de verdade, mas na sua antiguidade, no seu grau de
incorporação, em seu caráter de condição para a vida” (NIETZSCHE, GC, § 110). A
verdade é, portanto, caracterizada como uma fraca forma de conhecimento, pois surge
como uma forma de negação e questionamento dos erros úteis que até então conservaram
a vida, erros que já há muito tempo haviam sido “incorporados”. Em relação a essa
verdade que nega e questiona os erros úteis, Nietzsche cita os pensadores da escola pré-
socrática Eleática35 como exemplo dos pensadores de exceção e da verdade, pois eles

35
Fundamentalmente a escola Eleática fora composta por Xenófanes (570 – c. 470 a.C.), Parmênides (510
– 440 a.C.) e Zenão (490 – 430 a.C.), que problematizaram o valor do conhecimento sensível e do
conhecimento racional e sua relação com o ser.

59
estariam em oposição aos “erros naturais”. Os Eleatas, ao afirmarem que “tudo é um”,
negariam como ilusão a percepção sensível por meio da qual, em suas perspectivas, tudo
apareceria em mudança36”. Nesse sentido, Fernanda Bulhões, analisando a obra de
Nietzsche, A filosofia na época trágica dos gregos, escreve:

De acordo com a ótica do jovem Nietzsche, o ponto de partida dos primeiros


filósofos gregos é a natureza em seu constante vir a ser. Inclusive dos Eleatas
que apesar de negarem a existência real do devir não negaram o fato de os
sentidos o perceberem. O que os Eleatas com sua teoria do ser negavam não
era a visão efetiva do vir a ser, mas que essa visão fosse verídica (Bulhões,
2013, p. 40837)

Desse modo pode-se entender como, mesmo afirmando que “tudo é um”, os Eleatas
negariam os “erros naturais” justamente ao considerar que, por meio do sensível, ainda
que ilusoriamente,, só se poderia acessar o vir a ser. Nietzsche afirma, contudo, que os
Eleatas, mesmo em oposição aos “erros naturais”, precisaram investir-se de
“impessoalidade e duração sem mudança, de compreender mal a natureza do
conhecimento, negar a força dos impulsos no conhecimento” (NIETZSCHE, GC, § 110)
e, desse modo, eles também foram conduzidos pelos antigos erros úteis, mesmo que
negando-os.

O desenvolvimento mais sutil da retidão e do ceticismo acabou por


impossibilitar também estes homens. [...] está mais sutil retidão e atitude
cética surgiu sempre que duas proposições opostas pareceram aplicáveis a
vida, e igualmente quando novas proposições não se mostraram úteis, mas
tampouco como prejudicais à vida, enquanto manifestação de um lúdico
impulso intelectual, inocentes e felizes como tudo aquilo que é
lúdico.(NIETZSCHE, GC, § 110, grifo meu)

Nesse momento, a retidão e o ceticismo no conhecimento podem desenvolver-se, não


sendo mais perigosos para a conservação da vida. Pois anteriormente sob outras
condições o filósofo pondera que:

Todo elevado grau de cautela ao inferir, toda propensão cética, já constitui em


si um grande perigo para a vida. “Nenhum ser teria se conservado, caso a
tendência oposta à de afirmar antes que adiar o julgamento, de errar e inventar
antes que aguardar, de assentir antes que negar, de julgar antes que ser justo
não tivesse cultivado sua força extraordinária”. (NIETZSCHE, GC, § 111)

37
Disponível em:https://periodicos.ufrn.br/principios/article/viewFile/7524/5594Acesso em: 1 jan. 2018.

60
De outro modo, a partir da retidão e do ceticismo, a nova relação entre diferentes
impulsos, que nesse momento se mostra possível, pôde desenvolver-se outro modo de
conhecimento não mais no sentido estrito da utilidade para a conservação da vida. Como
parece indicar a passagem, tal modo de conhecimento torna-se possível graças à
participação de um lúdico impulso intelectual que produz proposições que não sendo úteis
à vida tampouco lhe são prejudiciais. Ora, tal impulso lúdico é caracterizado como feliz
e inocente em seu ir além da estrita necessidade até então largamente desenvolvida, da
utilidade que produzira as demais formas de conhecimento, e do “verdadeiro” e do “falso”
unicamente como meios para a preservação da vida. Nesse impulso lúdico já se mostram
a plasticidade e o engendramento de um outro tipo de conhecimento para além dos erros
úteis.

Não somente utilidade e prazer, mas todo gênero de impulsos tomou partido
na luta pelas “verdades”[...] O conhecimento se tornou então parte da vida
mesma, e enquanto vida, um poder em contínuo crescimento: até que os
conhecimentos e os antiquíssimos erros fundamentais acabaram por se chocar,
os dois sendo vida, os dois sendo poder, os dois no mesmo homem. O
pensador: Eis agora o ser no qual o impulso para a verdade e os erros
conservadores da vida, travam sua primeira luta, depois que o impulso à
verdade provou ser um poder conservador da vida. Ante a importância dessa
luta todo o resto é indiferente: a derradeira questão sobre as condições da vida
é colocada, e faz-se a primeira tentativa de responder a essa questão com o
experimento. Até que ponto a verdade suporta ser incorporada – eis a questão,
eis o experimento. (NIETZSCHE, GC, § 110, grifo meu)

Desse modo, Nietzsche afirma um antagonismo entre um modo de conhecimento


do qual participam diferentes impulsos e o conhecimento a partir dos “erros úteis”
determinados, como visto, predominantemente pelo impulso de conservação. A partir da
relação entre novos e diferentes impulsos, esse outro conhecimento que se tornou parte
da vida mesma não é compreendido como estando a serviço dos erros úteis. O impulso à
verdade desse conhecimento é ainda um poder conservador da vida, mas por intermédio
de impulsos que diferem do modo como os erros fundamentais conservam a vida, sendo
ambos antagônicos. Assim, estaria posta a derradeira questão sobre as condições de vida
por meio do experimento: “até que ponto a verdade suporta ser incorporada? ”. Essa
questão ressoa a tarefa acima assinalada, de “incorporar o saber”, e estabelece dessa
forma, um outro modo de relação entre o pensamento, o conhecimento e os impulsos.

Além disso, é interessante observar os diversos modos com que Nietzsche se


refere à verdade ao longo deste fragmento: “[... ] somente muito depois apareceu a

61
verdade [...]”, “as normas segundo as quais se media o ‘verdadeiro ‘e falso’” e “todo
gênero de impulso tomou partido na luta pelas ‘verdades’”. Em um mesmo parágrafo, o
filósofo alemão modaliza de diferentes formas a noção de verdade, apontando para
diferentes valores e sentidos atribuídos a ela. Nessa direção, Nietzsche diferencia verdade
sem aspas) no sentido tradicional, “verdadeiro” (entre aspas em oposição a falso) e
finalmente “verdades”, que aparece no plural e, como assinala Derrida suspendidas pelas
aspas38. Assim como há um devir da ideia, como Nietzsche narra em “História de um
erro” 39, também pode-se depreender do parágrafo 110 um devir da verdade, na qual ela
desloca-se de seu sentido tradicional a tal ponto que algo como uma pluralidade de
verdades pode vir a ser. Também essa outra perspectiva de “verdades” aponta para um
tipo de “conhecimento” que parece não servir mais aos erros úteis que possibilitam a
conservação de um tipo de vida que necessita nega-la como pluralidade de forças em
devir. Considerando esse outro registro de conhecimento, desenvolverei em seguida
alguns dos seus aspectos que parecem estar em afinidade com a perspectiva não utilitária.

Embora o conhecimento seja concebido modernamente como algo puro,


desinteressado, objetivo, para o autor, pelo contrário, o conhecimento é determinado pelo
impulso de rebanho, para aquilo que é útil para a sua autoconservação. Nesse sentido,
Nietzsche procura desmascarar o ideal moderno de conhecimento apontando para o
impulso conservador que o mobiliza em favor de determinado tipo de vida, que teria seu
triunfo no tipo designado em Assim falou Zaratustra como o último homem, que pode ser
entendido como uma caricatura do homem moderno e seus ideais de felicidade e
conhecimento40. Oswaldo Giacóia (1999), em seu artigo “O último homem e a técnica
moderna”, argumenta que:

Essa figura do homem moderno, Nietzsche o caricaturiza na imagem do


"último homem". Este é o homem do rebanho e da pacífica felicidade das
verdes pastagens. O tipo do último homem, para Nietzsche, determina a
verdadeira meta da pequena política, porque nele se torna vitoriosa a tendência
moderna à mediocrização dos feitos e ideais humanos. (GIACÓIA, 1999, sem
paginação).

Também pode-se acrescentar que os impulsos conservadores que regem o tipo


designado por Nietzsche como último homem determinando a tendência à mediocrização

38
Cf. Derrida, 2013, p.38.
39
Cf. NIETZSCHE, CI, p.31.
40
Cf. NIETZSCHE, AFZ, primeira parte, §5.

62
são os que predominariam no conhecimento em geral. Para Nietzsche, o conhecimento e,
junto a este, o processo de pensamento reduzido à consciência seria um “erro monstruoso”
no qual “o conhecimento [é] entendido de maneira absoluta como capacidade da
consciência, no qual em geral há conhecimento” (NIETZSCHE, VP, § 529). Nesta
direção, cabe perguntar sobre a possibilidade de um conhecimento não mais determinado
ao ideal de sujeito e seus atributos tradicionais como estabilidade, unidade e autonomia
da consciência frente aos impulsos e paixões. Dessa forma, no parágrafo 296 de A gaia
ciência, o filósofo explicita uma outra perspectiva de conhecimento na qual este adquire inclusive
uma posição antagônica em relação aos valores do rebanho:

Uma reputação sólida costumava ser extremamente útil; e onde quer que a
sociedade continue a ser dominada pelo impulso de rebanho, é ainda muito
conveniente, para cada indivíduo, fazer com que seu caráter e sua ocupação
sejam tidos por imutáveis- mesmo que no fundo não o sejam. “Nele se pode
confiar, ele continua o mesmo” – em todas as situações perigosas da sociedade,
este é o louvor de maior significado. A sociedade sente que tem na virtude
desse, na ambição daquele, na reflexão e fervor daquele outro um instrumento
confiável e sempre disposto, ele presta o máximo de honras a essa natureza de
instrumento, essa fidelidade a si mesmo, essa invariabilidade nas opiniões,
aspirações e até defeitos. Uma tal avaliação que em toda parte floresce e
floresceu juntamente com a moralidade dos costumes, educa o “caráter” e
difama toda mudança, toda reaprendizagem e transformação em si! Quanto ao
conhecimento: [...] por maior que seja a vantagem deste modo de pensar, para
o conhecimento ele é a mais nociva espécie de julgamento em geral: pois aí é
condenada e difamada a disposição que tem o homem de conhecimento para,
de maneira intrépida, declarar-se a qualquer momento contra sua opinião
prévia e ser desconfiado em relação a tudo o que em nós quer se tornar sólido.
A atitude do homem do conhecimento, ao contradizer a reputação sólida, é
vista como desonrosa, ao passo que a petrificação das opiniões tem o
monopólio das honras: sob o sortilégio de tais valores temos que viver ainda
hoje! E é difícil viver, quando se sente o juízo de muitos milênios contra si e
em volta de si. (Nietzsche, GC, §296, grifo meu)

Esse fragmento permite sublinhar que, para a sociedade onde prevalece o impulso
de rebanho, a solidez da própria identidade e de sua representação é um valor fundamental
e útil para sua conservação, pois, como argumenta Nietzsche, se confia naqueles que se
apresentam, por seu caráter e ocupação, como imutáveis, já que o homem tomado como
imutável representa uma segurança em relação a “todas as situações perigosas da
sociedade”. Portanto, enquanto uma natureza de instrumento (da sociedade), o homem é
valorizado em sua fixidez e utilidade as quais servem para a proteção e conservação do
rebanho frente a tudo que o ameace. Nesse sentido, cada um adquire valor apenas na
medida em que se apresenta e é reconhecido como um instrumento útil para a conservação
do rebanho. Contudo, a partir dessa passagem, pode-se considerar que Nietzsche procura

63
sublinhar uma outra perspectiva do conhecimento não mais impulsionada pelos erros
úteis próprios do impulso de rebanho que, como já desenvolvido, operam por uma lógica
de conversão do estranho ao já conhecido e por meio da simplificação e falsificação do
múltiplo. Se, para o rebanho, só há valorização da representação da identidade de si como
algo fixo e estável, na qual “a comunidade” reconhece um “indivíduo” apenas na medida
em que este serve como “instrumento útil” a seu serviço, por outro lado, Nietzsche
sublinha que, para determinada concepção de conhecimento, tal avaliação é nociva. Desse
modo, é interessante notar que, no trecho supracitado, o conhecimento é concebido como
uma “força” que desestabilizaria aquilo que seria tomado como seguro, fixo e estável,
pois seria próprio ao “homem de conhecimento” ser “desconfiado em relação a tudo o
que em nós quer se tornar sólido”. Portanto, para o “homem de conhecimento”, tudo
aquilo que é valorizado como fundamento sólido e seguro tem de tornar-se problemático.
Assim, pode-se propor que o conhecimento é compreendido enquanto “experimentação”,
e, nesse sentido, uma potência da vida não mais a favor da mera conservação, já que tal
conhecimento estaria implicado em “mudança, reaprendizagem e transformação de si”
(NIETZSCHE, GC, §296). Este outro modo de conhecimento é, portanto, avaliado como
uma potência da vida, ou seja, “um poder em contínuo crescimento” (NIETZSCHE, GC,
§110), no qual o próprio pensador é posto em “experiência”, assim como explicita
Nietzsche em outra passagem: “[...] queremos examinar nossas vivências do modo
rigoroso como se faz uma experiência científica, hora à hora, dia a dia! Queremos ser
nosso experimento e cobaia! ” (NIETZSCHE, GC, §319)

Pode-se dizer que a vontade de potência como superação e esse modo de


conhecimento não mais se opõem, o que difere radicalmente da noção de conhecimento
racional, neutro e impessoal como algo distante da vida e dos múltiplos impulsos e
paixões. Não se trataria meramente, como poderia parecer em um primeira leitura do
parágrafo 296 de A gaia ciência, de uma mudança de opinião e perspectiva de um sujeito
consciente, que permaneceria o mesmo subjacente a todas as suas mudanças ou, dito de
outro modo, não se trataria da liberdade e autonomia da consciência de um sujeito que
manteria suas propriedades frente às mudanças de suas opiniões e perspectivas. A
medida da mudança de opinião e perspectiva não seria, pois, a razão da consciência e sua
relação com a verdade, mas a vida como vontade de potência em favor da superação de
si. Esse outro modo de conhecimento e sua relação com a vida é particularmente
desenvolvido pelo filósofo no parágrafo 307de A gaia ciência:

64
Agora lhe parece um erro o que outrora você amou como sendo uma verdade
ou probabilidade: você o afasta de si e imagina que sua razão teve aí uma
vitória, mas talvez esse erro, quando você era outro – você é sempre outro,
aliás-, lhe fosse tão necessário quanto as suas verdades de agora. Semelhante
a uma pele que lhe escondia e cobria muitas coisas que você ainda não podia
ver. Foi sua nova vida que matou para você aquela sua opinião, não sua razão:
você não precisa mais dela; Quando exercemos a crítica, isso não é algo
deliberado e impessoal – é no mínimo com muita frequência, uma prova de
que em nós há energias vitais que estão crescendo e quebrando a casca. Nós
negamos e temos de negar, pois algo em nós está querendo viver e se afirmar,
algo que ainda não conheçamos, ainda não vejamos! Estou dizendo isso em
favor da crítica (Nietzsche, GC, §307, grifo meu)

A partir desse parágrafo, pode-se destacar que Nietzsche concebe, por assim dizer,
uma radicalmente outra concepção de “subjetividade” (particularmente em relação ao
registro do conhecimento) não fundamentada na lógica de um sujeito cuja identidade
permaneceria fixa e imutável. Nessa concepção de “subjetividade”, haveria a marca de
uma alteridade em “si mesmo” que impossibilitaria a estabilização da própria identidade,
pois, como acentua Nietzsche a partir do uso de travessões, “você é sempre outro”. O
homem de conhecimento seria pela dinâmica de transformação e superação da própria da
vida, sempre outro. Desse modo, haveria um jogo constante de des-apropriação de si, pois
não existiria uma identidade ao modo de uma essência ou substância, que permaneceria
fixa e imutável e que proporcionaria o reconhecimento de um próprio de si. Pode-se
pensar que essa outra concepção de “subjetividade” se relacionaria com uma afirmação
da vida entendida como transitoriedade e transformação, em afinidade com a noção de
vontade de potência enquanto movimento de superação no qual a conservação (de si) é
apenas um dos aspectos da superação. A noção de vontade de potência como movimento
de superação torna-se imprescindível para o entendimento desta outra concepção de
conhecimento, que não se fundamentaria em um sujeito concebido como imutável. Tal
concepção de “subjetividade” estaria implicada em um movimento de deslocamento,
diferenciação e superação (de si) no qual apenas indiretamente há também a conservação,
pois, os impulsos de conservação estariam subordinados ao movimento de superação. É
nesse sentido que o filósofo proporia a hipótese de um sujeito em deslocamento como a
“esfera de um sujeito crescendo constantemente ou minguando – o ponto médio do
sistema deslocando-se constantemente-; [...] nenhuma ‘substância’, antes algo que anseia
em si por fortificação; e que apenas indiretamente quer-se ‘manter’ (ele quer ultrapassar-
se -)”. (NIETZSCHE, VP, § 263)

65
Em relação ao parágrafo 307, ainda posso observar que a força da crítica,
assim como concebida pelo autor, não é atribuída ao grau de racionalidade, à qual é
tradicionalmente associada uma impessoalidade, pureza e objetividade frente aos
impulsos e paixões, o que possibilitaria ao sujeito do conhecimento uma autonomia
deliberativa, mas a própria transformação da vida, ao crescimento de “energias vitais”.
Desse modo, a força da crítica não é concebida pelo filósofo como algo deliberado e
impessoal, porém é algo que diz respeito a uma “pessoalidade” que não se restringiria ao
campo da consciência, mas sim ao que parece indicar a passagem, a dinâmica cambiante
das hierarquias dos múltiplos impulsos. Não haveria, neste sentido, deliberações de uma
consciência autônoma do sujeito, assim como são representadas a partir da noção de
sujeito do conhecimento, pois aquilo que é valorizado modernamente como deliberação
do pensamento é o resultado de um longo processo de luta e relação entre os diferentes
impulsos. E ainda, o movimento de negação próprio do pensamento crítico, assim como
concebe o autor, só pode ser entendido em relação com o movimento tensionante e mais
fundamental da afirmação que não necessariamente como é colocado pertence ao campo
do cognoscível. Afirmação não de um sujeito cuja consciência fosse autônoma e
autodeliberativa, mas da própria vida em suas metamorfoses. Isso se dá
fundamentalmente não no registro da consciência, mas mais abrangentemente a partir da
relação de impulsos que “talvez ainda não conheçamos, ainda não vejamos”, ou seja, a
partir dos impulsos que fazem parte da “atividade do espírito” (NIETZSCHE, GC, §333)
que não se reduz ao registro da consciência.

Ao criticar os valores atribuídos à consciência, ao conhecimento e ao sujeito (do


conhecimento), Nietzsche empreende um movimento de crítica aos seus fundamentos
metafísicos, mas também sua crítica produz um “deslocamento” tão ou mais radical.
Neste sentido, pode-se afirmar que também verdade e erro são revalorizados. Se a
verdade, em seu sentido tradicional, é entendida por Nietzsche como um erro útil para a
conservação de uma determinada condição de vida, o que já problematiza a separação
absoluta entre verdade e erro, no parágrafo analisado (307de A gaia ciência), verdade e
erro são pensados em outros termos, para além das medidas tradicionais. Torna-se
interessante sublinhar como se alteram de modo radical os valores de erro e verdade, que
não mais se associam, como geralmente o são, à racionalidade e ao primado da
consciência do sujeito do conhecimento. Primeiramente, o filósofo relaciona os valores
de verdade e erro com a mudança e transformação de si, impulsionadas pelo movimento

66
e pelas metamorfoses da vida. A “verdade”41 é concebida como algo transitório, sendo
expressão da potência de um “estado de vida” 42, ou, em outras palavras, do estado
provisório de uma hierarquia de impulsos para deixar de sê-la quando se torna
desnecessária para uma “nova vida” (para outra hierarquia das relações dos impulsos).
Desse modo, a “verdade” não é mais associada ao caráter, absoluto, imutável e fixo, mas
é valorizada como expressão da potência e da necessidade de um determinado estado de
vida. A “verdade”, ou melhor, as verdades são relacionadas ao jogo transitório das
hierarquias provisórias de impulsos. Verdade e erro não mais se opõem de modo absoluto,
pois aquilo que era concebido como “verdade” em determinado momento, aparece a partir
de uma “outra vida” (uma outra hierarquia de impulsos) como “erro ”e como sublinha
Nietzsche um erro que fora necessário e inclusive sob o modo como fora anteriormente
interpretado enquanto uma verdade. Há, portanto, uma grande diferença entre a verdade
concebida como universal e absoluta e de diferentes modos valorizada como
transcendental, mas que é o mascaramento de um erro útil, sendo expressão de um
impulso a serviço da conservação do rebanho, e esta outra concepção de “verdades”, em
que o movimento das hierarquias de impulsos determina a aparição de um valor em um
momento como verdade e em outro como erro. Aquilo que determinaria o valor da
“verdade” seria a incessante luta dos impulsos por domínio e a afirmação vitoriosa de um
impulso ou grupo de impulsos, que teria a conservação somente como uma das
consequências indiretas.

Nesse sentido, Nietzsche conceberia um modo de conhecimento para além da


primazia da medida de valor utilitária da autoconservação do rebanho a partir de um
lúdico impulso intelectual que se “inscreve” no processo de pensamento, onde tomam
parte outros diferentes impulsos. Por meio do impulso lúdico, o conhecimento torna-se
uma força ativa e por isso criadora, na qual experimentam-se “ludicamente” outros
impulsos para além da lógica do re-conhecimento guiada pelo impulso de medo e
segurança. Lemos em Nietzsche:

Verdade, portanto, não é algo que existisse e que se houvesse de encontrar, de


descobrir – mas algo que se há de criar [...] não um torna-se consciente de algo

41
Assinala-se que, para Derrida, e estou de acordo com sua posição, o uso das aspas em Nietzsche também
indica que o caráter de determinada noção ou conceito não pode mais ser pensado como absoluto, fixo e
estabilizado. Cf. Derrida, 2013, p.38.
42
Em uma pequena sentença, Nietzsche escreve que “o critério da verdade está no incremento do
sentimento de poder” Cf. Nietzsche, VP, §534.

67
que fosse “em si” firme e determinado. Trata-se de uma palavra para “a
vontade de potência”. (Nietzsche, VP, §552)

Assim, pode-se entender conhecimento como criação e experiência no sentido em


que a “verdade” não está assentada em nenhum fundamento estável, mas é expressão da
potência de uma hierarquia provisória de impulsos e, nesse sentido, uma interpretação e
uma perspectiva possível:

Nossas necessidades são quem interpretam o mundo, nossos impulsos e seus


prós e contras. Cada pulsão é uma espécie de ambição despótica, cada uma tem
a sua perspectiva que a pulsão gostaria de impor como norma para todas as
outras pulsões. (NIETZSCHE, VP, §481).

Portanto o conhecimento é compreendido a partir da perspectiva dos impulsos que


se inscrevem no processo de pensamento. A importância da concepção nietzschiana do
pensamento e do conhecimento como relação de diferentes impulsos é, portanto, crucial
para a interpretação que procuro realizar em torno de certo deslocamento da noção de
sujeito e seus atributos, a partir da qual o sujeito só pode ser compreendido em relação às
organizações provisórias de uma multiplicidade de impulsos. Esse sujeito não está além
ou aquém da dinâmica dessa multiplicidade de impulsos, mas vem a ser “sempre outro”
desde o jogo e na luta cambiante desses impulsos. E também porque é por intermédio
desta “escuta” avaliadora de Nietzsche em relação à atividade dos múltiplos impulsos que
movimentam a vida do conhecimento que se pode refletir sobre os diferentes modos e
interesses com que o(s) conhecimento(s) se realizam: se são constituídos pelo predomínio
do impulso de autoconservação do rebanho no qual o múltiplo, o diferente e o estranho
são convertidos no familiar, no já conhecido; ou se são afirmados na criação de diferentes
perspectivas e interpretações provisórias, nas quais a subjetividade vem a ser na mudança,
na reaprendizagem e na transformação, pois é marcada pela alteridade do “outro” como
o múltiplo e estranho.

Ainda que o “outro” seja sempre considerado a partir da marca da diferença,


haveriam dois tipos de avaliação que demarcam tipos de constituições que afirmam ou
negam a vida em sua multiplicidade e diferença, cabendo, pois, refletir como o modo com
que essas diferentes concepções da subjetividade implicam distintas interpretações no
sentido ético da lida com a identidade e com a alteridade. Por este viés, procuro no
próximo capítulo, desenvolver como a crítica do sujeito adquire a partir da interpretação
derrridiana do discurso nietzschiano um forte acento em direção a questão da alteridade

68
e da diferença, principalmente, mas não apenas, a partir do significante do feminino que
se contraporia a figura do filósofo dogmático (negador da alteridade e da diferença) e da
problematização da autobiografia. Analisando o caminho interpretativo percorrido por
Derrida sobre os rastros nietzschianos em torno da questão do sujeito e de sua identidade
procurarei desenvolver outros aspectos que se abrem a partir desta leitura que considero
fundamentais como o problema do feminino enquanto o elemento desconstrutor de
categorias como essência e natureza, verdade em Nietzsche. Buscarei também examinar
a questão da autobiografia marcada pela perspectiva segundo a qual está só vem a
acontecer pelo ouvido do outro. Esses são aspectos que considero como radicais efeitos,
mas também constituintes, de um pensamento que propõe criticar, transvalorizar e
desconstruir o sujeito assim como este fora construído pela metafisica moderna. Também
pretendo abordar de que maneira a interpretação derridiana contribuiu para a leitura do
próprio texto de Nietzsche como um discurso que pode ser interpretado, a partir de suas
múltiplas marcas, não apenas questionando o sujeito e sua identidade, mas performando
também essa crítica a partir de diferentes elementos inscritos no próprio texto. Sob meu
ponto de vista, a perspectiva derridiana em torno dos estilos de Nietzsche produziria um
outro registro de camada em torno do problema do sujeito.

69
CAPÍTULO 2 – DO FEMININO À
AUTOBIOGRAFIA EM NIETZSCHE –
LEITURAS DE DERRIDA
2.1 Esporas, estilos

A interpretação que proponho, a partir dos discursos de Nietzsche, de um sujeito


“descentrando” para além dos fundamentos metafísicos comprometidos com a concepção
de sujeito clássico adquiriu maior relevo a partir do encontro com certos escritos 43 de
Jacques Derrida, em que o pensador reflete em torno dos textos e do pensamento do
filósofo alemão ao problematizar as questões da verdade, do feminino, do outro e da
alteridade. Estes escritos de Derrida possibilitaram uma abertura de interpretação para os
textos de Nietzsche em um sentido singular, permitindo uma outra leitura daquelas
questões fundamentais a partir de um pensamento contemporâneo 44. Por exemplo, ao ser
tematizada a questão do feminino e, de certo modo, a questão da alteridade nos textos de
Nietzsche, Derrida sugere e produz outros porvires, outras leituras do escrito de Nietzsche
que envolvem noções fundamentais para certo pensamento contemporâneo como a vida,
a morte (e o limite entre estas), o feminino, a alteridade e o outro. Problematizar, como é
feito em Esporas - Os estilos de Nietzsche (2013), a questão do feminino e da mulher na
obra de Nietzsche me pareceu uma direção que abriria o texto deste pensador para
posições interessantes que me possibilitaram entrever de outro modo a questão que
procuro problematizar da identidade, do sujeito e a implicação destas com o problema da
verdade.

Nesta direção, para demarcar um começo em relação às interpretações de Derrida


proponho a problematização de Esporas - Os estilos de Nietzsche, escrito fundamental
em torno de Nietzsche e fruto de um colóquio de 1972, dedicado ao filósofo alemão em
Cerisy-la Salle, França. Neste escrito, Derrida desconstrói a imagem de um Nietzsche
“misógino” e procura desenvolver uma interpretação de certo feminino “afirmativo”
presente na filosofia nietzschiana; um feminino que se distancia criticamente da verdade
tradicional e de uma posição filosófica, mas também científica, dominada pela figura do

43
Os textos principais analisados foram Esporas- os estilos de Nietzsche e Otobiografias.

70
dogmatismo que é, como veremos, uma posição “masculina”, ou fálica, que crê apropriar-
se da verdade e da verdade da mulher.

Derrida introduz seu texto a partir do problema do estilo na obra de Nietzsche,


procurando desenvolver a relação deste com o campo da filosofia e, ainda, com o
feminino. Questões que se mostram à vista de Derrida como co-pertinentes . Em sua
introdução, o filósofo argelino escreve: "O título para esta seção seria a questão do estilo.
Mas a mulher será meu tema. Restaria perguntar-se se isso vem a ser o mesmo - ou outro"
(DERRIDA, 2013, p. 21). A mulher será seu tema, sim, ainda que tratando conjuntamente
do problema do estilo, pois, como veremos, estilo e mulher na obra de Nietzsche se
implicam mutuamente, neste sentido, “isso” viria a ser o mesmo e o outro ou o mesmo,
mas com diferenças... Para Derrida, em Nietzsche, a questão da mulher implica-se
essencialmente com a questão do estilo. Mas não seria o estilo uma questão para a
literatura e assim uma questão não filosófica? Não seria o estilo apenas um mero estilo,
uma superficialidade? Uma questão que passaria ao largo e às margens bem distantes do
campo filosófico? Ou ainda, uma mera arbitrariedade, extravagância, poesia e licença
poética de Nietzsche? Por último, restaria perguntar qual é esta essencial afinidade entre
a mulher e o estilo e a implicação destes com o campo filosófico. Para desdobrar estas
questões é preciso caminhar e meditar junto ao texto de Derrida e ver os contornos que a
questão do estilo aparentemente “marginal” à filosofia assume. Sobre os estilos de
Nietzsche, Derrida (2013, p. 24) compõe uma imagem: “Deixemos o élitro flutuar entre
masculino e feminino. A língua francesa nos assegura este gozo, contanto que não se
articule. E quanto aos véus e velas – aí nos encontramos –, Nietzsche teria praticado todos
os gêneros".

Portanto para pensar o estilo em Nietzsche é preciso permitir-se certa oscilação


entre masculino e feminino como a da asa do inseto ou então como a pluma que cai
flutuando. Oscilação esta que veremos mais adiante ser uma característica peculiar do
filosofar nietzschiano e que não permite, neste caso, a determinação estanque dos gêneros.
Nesta direção, os véus e as velas se relacionam com certa questão oscilante de gênero
em Nietzsche, e é preciso acrescentar, aqueles (os véus e as velas) são designados em
francês pela mesma palavra (voile), porém com gêneros distintos, hora masculino, hora
feminino, introduzindo certa confusão no campo do gênero profundamente delimitado
pelo saber tradicional. Desse modo, nos introduz Derrida, Nietzsche teria praticado todos
os gêneros deixando ressoar, pode-se pensar tanto os gêneros e estilos de escrita

71
praticados pelo filósofo alemão (poéticos, literários, filosóficos, literários-filosóficos,
dramáticos), quanto as identidades de gêneros e ainda a pertinência entre estes campos
aparentemente distintos.

Nesta direção, cabe acrescentar que Nietzsche escrevera não apenas em torno dos
gêneros sexuais, mas, para além do binarismo masculino/feminino, próprio de uma
cultura marcada pela metafísica, pensara outros gêneros (im)possíveis a partir de um
embaralhamento dos papéis de gênero. Como é o caso, por exemplo, em que Nietzsche
relata sua gravidez de Zaratustra: “contarei agora a história do Zaratustra. […] resultam
então dezoito meses de gravidez. Esse número exato poderia sugerir entre os budistas
pelo menos, que no fundo sou uma fêmea elefante. ” (NIETZSCHE, 1995, pp 82-83 Apud
DERRIDA, 2013, p. 45). Haveria, portanto, em seu estilo uma prática de gêneros
(im)possíveis (homens grávidos, mulheres-homens, homem-elefante fêmea-grávido),
incluindo aí a inscrição do animal neste devir de gêneros (im)impossíveis. Portanto a
oscilação de gêneros em suas obras incluiria também certa animalidade com que
Nietzsche transtorna o binarismo não apenas do homem/mulher, mas também
homem(racional)/animal45. Tal embaralhamento de gênero que perfomaria gêneros
(im)possíveis não seria diferente em relação aos estilos de gêneros literários que se
mesclam em sua obra, gerando, por assim dizer, centauros, pois, como afirma o autor:
“ciência, arte e filosofia crescem tão juntas em mim que um dia parirei centauros”.
(NIETZSCHE, 1969, p.63). Portanto em Nietzsche as delimitações e marcações impostas
aos gêneros (sexuais e literários) pela tradição que imporia suas distinções, limites,
lugares e posições seriam deslocadas, rasuradas quando não destruídas a favor da
invenção de gêneros (im)possíveis. Ainda, ao problematizar o tema do estilo na obra do
filósofo alemão, Derrida procura explicitar sua relação com o campo filosófico, pois em
Nietzsche:

A questão do estilo é sempre o exame, a pesagem de um objeto pontiagudo.


[...] Mas também de um estilete, até mesmo um punhal. Com a ajuda dos quais
se pode, certamente atacar cruelmente isto que a filosofia chama pelo nome de

45
Nesta direção, Paula Fleisner coloca ampliando nossa questão que “A filosofia de Nietzsche é, como os
contos de fada, um espaço de conhecimento em que conflui todo tipo de seres: animais , monstros ,
mulheres, homem e espectros nos vem ao encontro neste espaço que se abre como uma ‘gaia ciência’”
(2013, p.265). Essa multiplicidade de seres em devir nos coloca diante do problema da criação de gêneros
(im) possíveis para além do binarismo típico da metafísica que impões a delimitação a partir de uma
classificação de campos e lugares próprios a cada ser. De outro modo, para Paula a filosofia de Nietzsche
afirma “o perigo da irreparável confusão entre a palavra humana e a voz animal, a festeja em uma festa
profana e irreverente através da qual experimentamos a terrível unicidade do vivente” (Fleisner, p.265 apud
CRAGNOLINI, 2013).

72
matéria ou de matriz, para aí cavar uma marca, para aí deixar uma impressão
ou uma forma, mas também para repelir uma forma ameaçadora, para mantê-
la a distância, reprimi-la, proteger-se dela - dobrando-se então, ou redobrando-
se em fuga, por detrás dos véus e das velas (DERRIDA, 2013, p. 23)

Neste sentido, talvez justamente por estar a certa margem do campo filosófico que
o estilo possa problematizá-lo, atacá-lo e dele se defender. E ele atacaria cruelmente,
selváticamente e amoralmente. Para tanto como indica Derrida, o estilo de Nietzsche
estaria implicado de maneira não inofensiva com aquilo que a filosofia chamaria de
matéria ou de matriz, ou seja, com aquilo que faria de certa maneira função de origem,
fundamento e fonte (matriz também é o útero das fêmeas mamíferas) para a edificação
do saber filosófico. Pode-se dizer que, junto à matéria ou matriz, a espora, o estilo
“atacaria” também as noções afins de natureza, essência, presença e outras correlatas que
funcionariam como fundamentos ou noções essenciais para o discurso da filosofia.
Portanto, o estilo de Nietzsche, longe de ser uma mera extravagância pessoal, estaria em
uma relação crítica com aquilo que seria mais próprio ao saber filosófico e seus
fundamentos. É ainda neste sentido que o estilo/a espora do pensador alemão distancia-
se e protege-se do modelo, esquema e estilo tradicional da filosofia que pressupõe a
apresentação de um conteúdo, de um sentido, de uma verdade ou, ainda, de uma escrita e
saber que conteriam uma verdade própria e única. Nesta direção, Derrida afirma que:

Deste modo, o estilo pode também, com sua espora, se proteger contra a
ameaça terrificante, cega e mortal do que se apresenta, se dá a ver, com
teimosia: a presença, portanto, o conteúdo, a coisa mesma, o sentido, a
verdade. (DERRIDA, 2013, p. 24)

Neste sentido, o estilo com sua espora além de exercer-se como uma “arma de
ataque”, funcionaria ainda como um elemento de proteção, novamente, contra as noções
essenciais que constituem o saber filosófico em seu texto e textura: “a presença, portanto,
o conteúdo, a coisa mesma, o sentido, a verdade”. Noções estas que inclusive
delimitariam e instituiriam o próprio “estilo da filosofia”, sua organização e esquema. O
estilo/a espora portanto, como função de proteção, produziria uma distância, um
distanciamento destes elementos que, por sua vez, pode-se pensar, fariam o “estilo” de
toda a filosofia tradicional com sua metafísica da presença, na qual se torna
imprescindível para sua constituição o desvelamento do sentido e da verdade. Também
em torno do estilo, Derrida (2013, pp. 25-26) procura evidenciar ainda a sua relação com
mulher, o pensador coloca que “E para insistir nisto que imprime a marca da espora
estilada na questão da mulher [...] aqui se tratará de vê-la enlevar-se, a questão da figura

73
ao mesmo tempo aberta e fechada, por isto que se chama a mulher. [...] para deixar enfim
aparecer certa troca entre o estilo e a mulher”. Há, portanto, uma relação de trocas entre
o estilo e a mulher. Para apresentá-la Derrida menciona o parágrafo de Nietzsche
intitulado “as mulheres e suas operações à distância”:

Porém, meu nobre sonhador, porém! Mesmo no mais belo veleiro há muito
ruído e alarido, e, infelizmente muito alarido pequeno e lamentável! O encanto
e poderoso efeito das mulheres é, para usar a linguagem dos filósofos um efeito
à distância, uma actio in distans: o que requer, antes e acima de tudo- distância!
”(NIETZSCHE GC, § 60 Apud DERRIDA, 2013, pp. 29-30)

O filósofo francês sublinha como fundamental nessa passagem a noção de


distância, pois, assim como as esporas, os estilos abrem uma distância. Também as
mulheres, como interpreta Derrida a partir do texto de Nietzsche, tem seu efeito à
distância. Derrida (2013, p. 31) coloca que “a sedução da mulher opera à distância, a
distância é o elemento do seu poder”. Portanto, a operação das mulheres teria seu efeito
singular na distância, como uma espora, o que pode-se remeter à espora de um navio que
abre uma distância no mar, ou à espora que corta um tecido e, nisto, abre, produz uma
abertura e um distanciamento. É na própria escritura de Nietzsche que Derrida encontrará
a troca entre a mulher e o estilo, pois:

Sob qual passo se abre estas dis-tanz? A escritura de Nietzsche já a mimetiza,


graças a um efeito de estilo desviado entre a citação latina (actio in distans),
parodiando a linguagem dos filósofos e o ponto de exclamação, o hífen que
deixa em suspenso a palavra Distanz.: que nos convida, por uma pirueta ou um
jogo de silhueta, a nos manter longe destes múltiplos véus que nos produzem
um sonho mortal. (DERRIDA, 2013, P.31)

Nesta direção, Nietzsche inscreve em sua própria escritura a distância necessária


frente ao sonho mortal produzido pelo efeito das mulheres, e isto ao colocar tanto a
citação em latim, operando uma distância, através da paródia, entre seu discurso e o
discurso filosófico tradicional e ao usar o hífen que produz outra distancia a partir de sua
marca. Acrescente-se ainda que o efeito da operação das mulheres só se realiza enquanto
um véu na distância, uma multiplicidade de véus, que esconde e deixa ver; isto quer dizer,
que toda e qualquer tentativa de aproximação-apropriação da mulher, de sua verdade ou
seu sentido, aproximação-apropriação que requer a retirada do véu feminino "das
aparências", é uma tentativa que afasta justamente a experiência da operação feminina
que requer sempre distância, o que nos manteria longe do sonho mortal. Nesta direção,

74
Derrida (2013, p. 33) alerta que “deve se manter a distância a distância, não apenas, como
poderia se supor, para se proteger contra essa fascinação, mas também para experimentá-
la”. Portanto seria necessário um duplo distanciamento ao manter a distância à distância,
que quer dizer também, por outro lado, não se aproximar da distância, portanto a distância
só teria seus efeito à distância. Desse modo, uma aproximação para conquistar a mulher,
para apropriar-se de sua verdade, identidade ou essência e já se distanciou da experiência
de sua "verdade". De outro modo, a distância possibilita experiência, experimentação em
relação à operação da mulher e sua “verdade”. Caberia, portanto, perguntar quem ou o
que é a mulher nos escritos de Nietzsche?

Com este modo de perguntar, nos sugere Derrida, cairíamos em outra armadilha,
e por assim dizer, uma armadilha metafísica, pois, é justamente esta pergunta, esse modo
de perguntar, que esconderia em si o desejo de aproximação-apropriação da mulher, ou
seja, que esconderia o desejo de aproximação e conquista da verdade da mulher. A
pergunta pelo “O que é” a mulher, conteria em seu modo de ser toda a vontade de
apropriação da mulher e da verdade da mulher e, com isto, todo o desejo de conquistá-la
e possuí-la a partir da pulsão de dominação própria da posição fálica (e apropriadora) de
certo masculino, do filósofo dogmático, do artista impotente e do sedutor sem experiência
(Derrida, 2013, p. 37). De outro modo, Derrida coloca em torno da mulher que:

É porque a mulher não é, talvez alguma coisa (apropriável), a identidade


determinável. [...] e ainda talvez seja ela como não identidade, não figura,
simulacro, o abismo da distância, o distanciamento da distância, o corte do
espaçamento[...]. (DERRIDA, 2013, p. 32)

Estas seriam as marcas, os traços da mulher na filosofia de Nietzsche pensada,


portanto, como indeterminação de identidade e, enfim, como não identidade, não figura,
mas como simulacro, abismo da distância - que faz com que a mulher seja inapropriável,
e é nesse sentido que, dirá Derrida (2013, p. 37), que “na verdade, a mulher, a verdade não
se deixa conquistar”. Ela é inapropriável, inconquistável, porque não há uma identidade,
uma natureza ou essência da mulher que permita uma apropriação. Além disso, ela opera
sempre à distância, o que afastaria toda tentativa de apropriação; e ainda a mulher,
também, ao seu modo, operaria com esporas, protegendo-se e atacando toda pretensão
falologocentrica. Em relação à verdade que não se deixa conquistar, isto se deve ao
acontecimento da verdade que se inaugura na relação com a mulher que a desloca para
um outro registro radicalmente distinto do tradicional. Nesta perspectiva, Derrida no

75
capítulo intitulado “Femina Vita” procura pensar a interpretação Heideggeriana de “A
história de um erro”46 de Nietzsche, na qual há a apresentação de um devir da ideia.
Assinala Derrida (2013, p. 60), em sua leitura de Heidegger, que “todos os elementos do
texto são analisados, sem exceção, salvo o devir mulher da ideia”.

Deste modo, Derrida procura criticamente ler ali onde a leitura de Heidegger
contornou o elemento feminino do texto de Nietzsche, quando a ideia se torna mulher,
que é o segundo tempo dos seis tempos do devir da ideia. Contudo, antes de ser mulher,
a ideia, coloca Nietzsche, era platônica e a paráfrase do enunciado platônico da verdade
é assim sentenciado pelo autor, “eu, Platão, sou a verdade” (NIETZSCHE, CI, p.115). Tal
paráfrase pode ser lida em muitos sentidos, porém, cabe ressaltar a encarnação da ideia
na figura masculina de Platão e a verdade assimilada ao eu platônico. A verdade se fazia
presente, estava presentificada na figura de Platão. É neste sentido que Derrida (2013, p.
61), coloca que: “A ideia é uma forma da apresentação de si da verdade. A verdade, então,
não foi sempre mulher. A mulher não é sempre verdade”. E em seu primeiro tempo a
verdade encarnada, se identificava e se presentificava na figura de Platão ou na figura do
filósofo que teria o platonismo, o mundo verdadeiro como ideal, pois “o verdadeiro
mundo alcançável ao sábio, ao devoto, ao virtuoso – eles vivem nele, são ele”
(NIETZSCHE, 1989, p. 23). Portanto, o verdadeiro mundo, o mundo das ideias, se
presentifica e é encarnado nestes diferentes tipos de “personagens” concernentes ao

46
Para fins de ilustração incluo aqui a “história de um erro”: COMO O “MUNDO VERDADEIRO”
ACABOU POR SE TORNAR FÁBULA HISTÓRIA DE UM ERRO
1. O mundo verdadeiro passível de ser alcançado pelo sábio, pelo devoto, pelo virtuoso. - Ele vive no
interior deste mundo, ele mesmo é este mundo. (Forma mais antiga da ideia, relativamente inteligente,
simples, convincente. Transcrição da frase: "eu, Platão, sou a verdade".)
2. O mundo verdadeiro inatingível por agora, mas prometido ao sábio, ao devoto, ao virtuoso ("ao pecador
que cumpre a sua penitência"). (Progresso da ideia: ela se torna mais sutil, mais insidiosa, mais
inapreensível - ela torna-se mulher, torna-se cristã...)
3. O mundo verdadeiro inatingível, indemonstrável, impassível de ser prometido, mas já enquanto pensado
um consolo, um compromisso, um imperativo.(No fundo, o velho sol, só que obscurecido pela névoa e pelo
ceticismo; a ideia tornou-se sublime,esvaecida, nórdica, königsberguiana.)
4. O mundo verdadeiro - inatingível? De qualquer modo, não atingido. E, enquanto não atingido, também
desconhecido. Conseqüentemente tampouco consolador, redentor, obrigatório: Ao que é que algo de
desconhecido poderia nos obrigar?... (Manhã cinzenta. Primeiro bocejo da razão. O canto de galo do
positivismo.)
5. O "mundo verdadeiro" - uma idéia que já não serve mais para nada, que não obriga mesmo a mais nada
- uma idéia que se tornou inútil, supérflua; consequentemente, uma ideia refutada: suprimamo-la! (Dia
claro; café da manhã; retorno do bom senso e da serenidade; rubor de vergonha de Platão; algazarra dos
diabos de todos os espíritos livres.)
6. Suprimimos o mundo verdadeiro: que mundo nos resta? O mundo aparente, talvez?... Mas não! Com o
mundo verdadeiro suprimimos também o aparente! (Meio-dia; instante da sombra mais curta; fim do erro
mais longo; ponto culminante da humanidade; INCIPIT ZARATUSTRA.) in A "RAZÃO" NA
FILOSOFIA (NIETZSCHE, CI, p.115)

76
campo do saber. Contudo, o devir da ideia em mulher vem abrir outro tempo da verdade,
onde está descola-se do eu platônico e de qualquer eu e distancia-se:

O segundo tempo, o do devir mulher da ideia como presença ou encenação da


verdade é, portanto, o momento em que Platão não pode mais dizer “eu sou a
verdade”, em que o filósofo não é mais a verdade, se separa dela como de si
mesmo, não a segue mais senão como rastro, exila-se ou deixa a ideia se exilar.
(DERRIDA, 2013, p. 62)

Pode-se colocar que com o “devir mulher da ideia”, Platão (ou qualquer filósofo)
fica impedido, mesmo barrado de dizer “eu sou a verdade”, a partir do qual o eu não pode
mais identificar-se em unicidade com a verdade. Isso porque a verdade no devir mulher
da ideia, em seu distanciamento, torna-se rastro, deixando de ser presença plena
incorporada na figura masculina de Platão ou de qualquer filósofo. E, com isto, Nietzsche
coloca que há um “progresso da ideia: ela se torna mais sutil, mais insidiosa, mais
inapreensível – Ela torna-se mulher...” (NIETZSCHE, CI, p.31. APUD DERRIDA, 2013,
p. 63). Sendo mais sutil, mais insidiosa, mais inapreensível a ideia, ou a verdade tornada
mulher em seu distanciamento, torna-se pouco ou nada apropriável, ao contrário do tempo
de Platão, onde a ideia - a verdade - era tão apropriável que poderia ser encarnada e
identificada com o próprio eu, em um máximo de aproximação sem qualquer
distanciamento. É a distância sedutora da mulher, seu contínuo distanciar-se, que afasta
qualquer apropriação-aproximação de se realizar. Aí já não se pode, portanto, perguntar
sob o modelo canônico de apropriação “o que é a ideia, o que é a verdade? ”. Sabe-se
apenas de seus rastros, de suas marcas, de uma ideia que é como presença (mas já sob a
forma sutil do rastro) ou uma encenação da verdade; abre-se um outro tempo de uma ideia
ou verdade mulher que conjuga:

Todos os atributos, todos os traços, todos os atrativos que


Nietzsche reconheceu na mulher, a distância sedutora, o
inacessível que capta, a promessa infinitamente velada, a
transcendência produtora de desejo[...] (DERRIDA, 2013, p.
63)

São estas, portanto, as marcas da verdade tornada mulher e por ser já o segundo
tempo, o tempo onde a verdade desloca-se de sua presença encarnada no filósofo, que
Derrida (2013, p. 62), dirá que “...começa a história, começam as histórias” posto que há
deslocamento incessante da ideia, da verdade “que se afasta, se torna transcendente,
inacessível, sedutora, agita e mostra o caminho à distância...” (2013, p. 62). Em seu
afastamento e deslocamento a verdade mulher é suspensa como um véu que se agita e

77
apenas indica o caminho, um caminho de rastros. Esse é seu modo de transcendência que
é bastante diferente da transcendência da verdade tradicional abstrata e objetiva, pois a
transcendência da verdade mulher é sedutora em sua inacessibilidade, promovendo, desse
modo, um jogo sedutor que não visa nem a apropriação nem a identificação, mas a
“transcendência produtora do desejo”. Transcendência produtora de desejo que pode ser
entendida no sentido do jogo de sedução da mulher com sua distância, véus e enfeites,
distância esta que provoca o desejo, em contraposição aos objetivos daquele tipo que
Nietzsche reconhece como filósofo dogmático que se opõe a qualquer interferência do
jogo do desejo em sua relação com o saber, mas oculta e denega justamente o desejo de
apropriação-aproximação da verdade mulher. Desejo que se efetiva, segundo o pensador
alemão, a partir de todo um procedimento de apropriação-aproximação, desde uma
atmosfera de seriedade douta que é, uma das principais marcas do filósofo dogmático.
Seriedade que evidencia a inabilidade para lidar com uma verdade que é mulher. De outro
modo, a mulher apresentaria uma outra maneira, uma outra atmosfera relacionada ao
saber e a verdade que afirmaria o riso como uma potência capaz de desconstruir a
metafisica finalidade da existência promovida pelo filósofo dogmático, assim como a
autorepresentaçeão de uma identidade subjetiva tomada como essência e/ou natureza.

2.2 O riso e o feminino ou o riso e o absurdo abismal da existência

A verdade como mulher teria afinidade com o riso e sua leveza, pois, com ela
entra “em jogo: um novo conceito ou uma nova estrutura de crença que visa a rir”
(DERRIDA, 2013, p. 41). Esse breve apontamento de Derrida leva a um importante
desvio que considero essencial para pensar esta outra estrutura de “crença” que a
estratégia nietzschiana produz ao relacionar o feminino ao riso. Tomo a breve indicação
derridiana, portanto, como um mote para o desenvolvimento deste item. Em
contraposição ao riso sublinhado por Derrida estaria o desvelar da verdade tradicional
alicerçado em todo um procedimento sério do filósofo dogmático (que crê apropriar-se
da verdade e, nesse sentido, possuí-la), como assinala Nietzsche (ABM, prefácio) ao
evidenciar que “a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se
aproximaram da verdade foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama?”).
Nesta direção, Nietzsche, em sua “tentativa de autocrítica” ao Nascimento da tragédia
como contraposição à educação na seriedade do romântico, pensa uma nova crença e
posição filosófica que vise rir:

78
[...] Não seria necessário que o homem trágico dessa cultura, em sua
autoeducação para o sério e para o horror, devesse desejar uma nova arte, a
arte do consolo metafísico. Não, três vezes não, ó jovens românticos! Não
seria necessário [...] Mas é muito provável que isso finde assim, que vós assim
findeis, quer dizer, “consolados”, como está escrito, apesar de toda
autoeducação para o sério e o horror, “metafisicamente consolados”, em sumo,
como findam os românticos cristãmente... Não! Vós deveríeis aprender
primeiramente a arte do consolo deste lado de cá - vós deveríeis aprender a
rir, meus jovens amigos, se todavia querem continuar sendo completamente
pessimistas; talvez, em consequência disso, como ridentes mandeis ao diabo
toda a “consoladoria” metafísica- e a metafísica em primeiro lugar.
(NIETZCHE, 2007, pp. 20-21, grifo meu)

Nietzsche, contrapondo-se ao pessimismo romântico da metafísica cristã e seu


“consolo metafísico do lado de lá”, ou seja, metafisicamente para além do mundo, com
seu aprendizado do horror e do sério, propõe uma outra arte do “consolo do lado de cá”
(do lado de terra, da imanência) por meio de uma primeira aprendizagem a partir do riso,
para que então se possa continuar completamente como um pessimista. Nietzsche pensa
então um novo pessimismo capaz de rir, trágico, porém tragicômico. É o riso, portanto,
que Nietzsche preconiza, o estado de um ser ridente que poderia então abandonar o
consolo metafísico e até mesmo, e em primeiro lugar, a metafísica e o falocentrismo com
sua pesada seriedade. Rir se torna, portanto, um “consolo” contra a metafísica, um aliado
e elemento essencial de uma filosofia pessimista trágico-dionisíaca47 que não apenas
aceita a dor e o horror, como também afirma o rir, pois, sublinha-se, a comedia e o trágico
nascem de Dionísio. Ele o é deus da tragicomédia, assim o afirma Nietzsche “e que
significado tem então, fisiologicamente falando, aquela loucura de onde brotou a arte
trágica assim como a cômica, a loucura dionisíaca? (Nietzsche, 2007, p.15). Portanto
tragédia e comédia nascem da loucura dionisíaca. Sofrimento e riso são ambas forças
dionisíacas de onde nascem os deuses e o homens, pois “Do sorriso desse Dionísio
surgiram os deuses olímpicos; de suas lágrimas, os homens. ” (NIETZSCHE, NT, § 10).
O sorriso, veremos logo, tem algo de sagrado, de divino, de olímpico assim como de
feminino, como bem o sublinha Derrida. Também Zaratustra, o discípulo de Dionísio,

47
Em um parágrafo intitulado “o que é romantismo” Nietzsche afirma que: “existem dois tipos de
sofredores, os que sofrem de abundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e também uma visão e
compreensão trágica da vida – e depois os que sofrem de empobrecimento da vida, que buscam silencio,
quietude, mar liso, redenção mediante a arte e o conhecimento, ou a embriaguez, o entorpecimento, a
convulsão, a loucura” (Nietzsche, GC, § 370, grifo do autor ). Nesta direção, Nietzsche afirma existirem ao
menos dois tipos sofredores, os que sofrem por abundância e os que sofrem por empobrecimento da vida,
a cada tipo seria devido uma posição diante da vida: Os primeiros requerem uma arte dionisíaca e uma
compreensão trágica da vida na qual estaria incluída, posso dizer, o riso trágico, portanto, à abundância da
vida estaria relacionado o poderoso riso afirmativo. Enquanto aos segundos caberia a “consoladoria do
lado de lá”, a metafísica como forma de conhecimento que necessitaria afirmar uma outra existência para
além desta, pois este precisaria da “lógica, da compreensibilidade conceitual da existência – pois a lógica
tranquiliza, dá confiança: (Nietzsche, GC, § 370).

79
tem sua palavra em torno do riso. Não são outros a aprendizagem e o ensinamento de
Zaratustra que a força do riso e o estado do ser ridente. Zaratustra não ensina a lastimar e
chorar, mas ensina a rir e canta:

Essa coroa ridente, essa coroa grinalda-de-rosas: eu mesmo coloquei essa


coroa sobre minha cabeça, eu mesmo, declarei santo o meu riso. Não encontrei
nenhum outro forte para isto, hoje. [...] Esta coroa do ridente, esta coroa
grinalda-de-rosas: a vós meus irmãos, eu vos atiro esta coroa! O riso eu declarei
santo: vós homens superiores, aprendei – a rir (NIETZCHE, Za, p.312)

E ainda:

Qual foi o maior pecado, na terra? Não foi a palavra daquele que disse: “Ai de
vós que rides agora! ” Possível que ele mesmo não encontrasse, na terra,
nenhum motivo para rir? Então, procurou mal. Até uma criança encontra aqui
motivo para rir. Esse não amava bastante; do contrário, nos teria amado
também a nós, os risonhos! Mas ele nos odiava e escarnecia, prometendo-nos
choro e ranger de dentes. [...] Afastai-vos do caminho desses homens
absolutos! Tem pés pesados e coração mormacento: não sabem dançar, como
poderia a terra ser leve para essa gente. (NIETZSCHE, Za, p. 295)

Zaratustra considera, pois, o maior pecado na terra a difamação daquele que ri a


partir da premissa lastimosa e cristã de que na terra não haveria nada para se rir, assim,
caluniando a própria terra e avaliando-a como um “vale de lágrimas”. Aquele que difama,
assinala Zaratustra, é um homem de pouco amor e muito ódio ressentido contra a terra e
contra aquele que pode rir-se. Mas Zaratustra que preconiza a metamorfose do espírito
em criança, afirma que até mesmo esta encontra na terra motivos para rir. A terra para
Zaratustra é, portanto, motivo de felicidade e riso. Nessa direção, Zaratustra considera e
proclama a si e os seus de “os risonhos” em contraposição àquele que odiando e
escarnecendo promete na terra apenas o choro e o ranger de dentes. Este, afirma
Zaratustra, tem pés pesados, não sabe dançar, portanto não tem a graça e leveza do
dançarino (ou da dançarina) e do riso feminino , assim para ele a terra não pode ser a leve.
É singular que Nietzsche sempre oponha o peso à leveza, valorizando está como uma
“virtude” em uma época dominada pelo cristianismo, por uma filosofia dogmática e pela
ciência, caracterizadas a partir da seriedade e do peso existencial . O riso feminino,
assinalado por Derrida em sua leitura de Nietzsche, estaria no registro da leveza e se
apresentaria como uma nova crença necessária para uma época em que predomina o
humor pesado e a seriedade. O que se inscreve também em um outro modo de pensar e
de fazer ciência que culminam no projeto de uma gaia ciência, por exemplo. O riso seria
feminino, como o interpreta Derrida, ao se opor com sua leveza trágica ao projeto

80
falogocentrico de pensamento e existência que se produz na atmosfera do pesado e da
seriedade.

Não é à toa que o segundo parágrafo destacado esteja em um capítulo intitulado


“Dos homens superiores” que sendo superiores, podem superar o peso e a seriedade de
seu tempo, podendo brincar, inclusive, com o que haveria de mais sério, pois “por
transbordante abundância e potência , brinca com tudo o que até agora se chamou santo,
bom, intocável, divino.”. (NIETZSCHE, GC, §382,)

Ora, pode-se depreender ainda do primeiro texto destacado que primeiramente


Zaratustra, o profeta do além do homem, aprende a rir e se autocoroa com sua coroa
ridente, santificando ou divinizando, enfim, tornando sagrado o riso em uma clara
oposição ao peso da seriedade de seus contemporâneos, os homens modernos, para em
seguida doar sua coroa e essa aprendizagem-ensinamento como um presente aos homens
superiores. Sublinha-se ainda que, a partir dessa passagem, o riso é tratado como uma
característica da força abundante, mas ainda Zaratustra não teria encontrado um homem
forte para apreender esse grande riso, não encontra seus discípulos. Contudo apreender o
poder do riso é uma tarefa e um aprendizado para homens superiores. Também em “Da
visão e do enigma” é retratada a força trans-humana do riso: é rindo que o pastor
transfigurado se vê livre da cobra que se lhe havia coleado pela garganta, a pesada e negra
cobra do niilismo que é morta com uma mordida:

Quem é o homem em cuja garganta se insinuara tudo o que há de mais negro


e pesado? O pastor, porém, mordeu, como o grito lhe aconselhava: mordeu
com rija dentada! Cuspiu bem longe a cabeça da cobra; e levantou-se de um
pulo. Não mais pastor, não mais homem – um ser transformado,
translumbrado, que ria! Nunca até aqui, na terra, riu alguém como ele ria. Oh,
meus irmãos, eu ouvia um riso que não era de homem – e, agora, devora-me
uma sede, um anseio, que nunca se extinguira. Devora-me um anseio por esse
riso: oh, como posso ainda viver! E como agora suportarei morrer? ”
(NIETZSCHE, Za, p.168)

Zaratustra, a partir da visão de um enigma, se pergunta pelo homem em cuja


garganta se insinuara o que há de mais pesado e negro que interpreto como o niilismo
mais radical, representado pelo anão, o espírito da gravidade e do peso. Ora, esse homem
que é um pastor, ao livrar-se da cobra que se lhe insinuava pela garganta sufocando-lhe o
ar e ao se ver livre desse peso, não fala, mas ri, então deslumbrado e modificado. Portanto
o riso torna-se o coroamento e a realização de uma grande libertação do peso negro do

81
niilismo e o sem sentido da existência que provoca a náusea e o nojo. O riso é, assim, o
sinal de uma nova leveza e transfiguração para o além do homem (e do projeto
falogocentrico que o constitui, como bem o assinala Derrida), pois o personagem não era
nem mais pastor nem mais homem, livre, portanto, do niilismo que lhe impunha sua
condição humana e moderna e capaz de afirmar a força do riso feminino liberador . A
personagem torna-se livre do peso e do negrume da cobra que o sufocava com a falta de
sentido própria do niilismo, não porque ganhara um novo sentido, mas porque pôde rir
defronte ao abismo do sem sentido que é velado pela mulher, tornando-se leve para uma
nova potência feminina e criadora. Portanto livre e leve do peso do niilismo, ele ri em
translumbramento. Tão poderoso é o efeito desse riso inaudito que Zaratustra passa por
ansiá-lo, ter uma sede inextinguível e ser por esse anseio devorado, tão forte e
impressionante é essa experiência que se dá por meio do riso que a partir dela a vida e a
morte são conjuntamente problematizadas e revalorizadas: “oh, como posso ainda viver! E
como, agora suportarei morrer!?” Nesse sentido, o riso do translumbrado provoca uma
ruptura na experiência de vida e morte de Zaratustra, este não sabe mais como viver e não
suportaria morrer. Ainda, é em Humano demasiadamente humano (1878) que o riso
assume a significação do prazer no absurdo:

O prazer no absurdo. — Como pode o homem ter prazer no absurdo? Onde


quer que haja risos no mundo, isto acontece; pode-se mesmo dizer que, em
quase toda parte onde existe felicidade, existe o prazer no absurdo. A inversão
da experiência em seu contrário, do que tem finalidade no que não tem, do
necessário no arbitrário, mas de modo que este processo não cause nenhum
mal e seja concebido apenas por exuberância — isso deleita, pois nos liberta
momentaneamente da coerção do necessário, do apropriado e experimentado,
que costumamos ver como nossos senhores implacáveis; brincamos e rimos
quando o inesperado (que geralmente amedronta e inquieta) se desencadeia
sem prejudicar. É o prazer dos escravos nas Saturnais . (NIETZSCHE, HH
I, § 213)

Nota-se que para Nietzsche o riso e sua felicidade que advém de um prazer no
absurdo, característico da leveza do feminino que dança sobre abismos como sinaliza
Derrida, nos liberaria momentaneamente da coerção do necessário, do apropriado e do
experimentado que são geralmente vivenciados como implacáveis e fatídicos, atributos
da realidade do real constituído, proporcionando uma experiência de suspensão e do
sentido implacável do real. Desse modo, o riso nos desapropriaria do real, recolocando-
nos de frente para seu absurdo e sua falta de sentido que não provocaria mais uma náusea,
mas sim o jubiloso riso do absurdo que, nessa direção, “des-domesticaria” o homem feito

82
a ferro e fogo pelo aguilhão da lógica, da racionalidade e da necessidade. O riso nos
possibilitaria, a partir de sua força feminina e exuberante, afirmar o acaso e o inesperado,
tornando-se desnecessária a necessidade de impor sentido ao que se apresenta como
estranho, diferente e absurdo; necessidade esta que, sob a óptica do riso, se apresenta
como uma fraqueza frente ao poderoso devir não teleológico e caótico de todas as coisas.
O júbilo do riso, aponta Nietzsche, seria como a experiência que tem os escravos nas
saturnais quando então os valores eram invertidos e permitiam que os escravos
experimentassem a liberdade de sua condição, de sua “realidade”. Neste sentido,
Guilherme Agnolon em sua tese A festa de saturno explicita as festas das saturnais:

Os festejos negavam as convenções, de um lado porque o comer e o beber


consistiam numa espécie de interstício de absoluto contraste com o cotidiano,
cujo rigoroso regramento alimentar em análogo ao das ações, determinadas,
como se sabe pelas leis, costumes, e pela hierarquia; de outro principalmente
em funções das brincadeira, das trocas e fanfarronices, instituíam um princípio
cômico de inversão e rebaixamento do sério [...] (AGNOLON, 2013, p.65)

E acrescenta:

[..] Vimos que os procedimentos de inversão, os jogos, as brincadeiras no


decorrer do festival tomavam por princípio o rebaixamento da vida oficial.
(AGNOLOM, 2013, p.65)

Desse modo, seria típico das saturnais, a partir de suas brincadeiras, troças e
fanfarronices, a manifestação de um princípio cômico de inversão e com isso um
rebaixamento do sério instaurado pelo pelas normas, convenções, poderes e
hierarquias48. É, portanto, como indica Nietzsche, a “inversão da experiência em seu
contrário” que transforma o necessário em arbitrário, do que tem finalidade no que não
tem, do cotidiano regrado em festa e desregramento. O riso, como nas saturnais,
provocaria a liberação do necessário, da finalidade e do cotidiano que aprisionariam o
homem em sua “realidade”. Pode-se, assim, entender melhor por que o pastor de
Zaratustra se torna não apenas não pastor, mas também um para além do homem, pois
com seu inaudito riso se liberaria de sua condição simbolizada por sua algoz, a pesada e

48
Burke também coloca sobre as saturnais que “Eram ocasiões especiais em que as pessoas paravam de
trabalhar, e comiam, bebiam e consumiam tudo que tinham [...] em oposição ao cotidiano, era uma época
de desperdício justamente porque o cotidiano era uma época de cuidadosa economia” (1995,p.65) Ora,
nesse sentido, pode-se sublinhar que as saturnais sempre se oporiam ao regramento do cotidiano, mas Burke
sublinha o aspecto econômico que, pode-se pensar, nas festas era interrompido em favor de uma abundância
e exuberância que se articulariam com a noção de natureza e vida como concebidas por Nietzsche. A
inversão de valores seria, portanto, apenas uma desapropriação de uma realidade investida em favor de
certo retorno às pulsões dionisíacas. Assim, afirma Agnolon que: “No lugar do labor extenuante da lavoura,
o homem festeja o produto desse trabalho, e a abundância que granjeou dos campos se converte em signo
peculiar da festa, em que supostamente o regramento e o delicado racionamento de alimento são deixados
de lado”(AGNOLOM, 2013, p. 77)

83
negra cobra do niilismo moderno. O riso ao inverter o cotidiano da condição humana
estabelecida pela seriedade oficial, possibilitaria a inversão das regras dos limites morais
e éticos do cotidiano que se instituem a partir da imposição das finalidades que sempre
acresceram uma razão para a existência que não seria suportada, pelos “fracos”, em sua
“nudez” por não comportar nenhuma finalidade, nenhuma origem e nenhum telos. Essa
“verdade” seria escancarada pela potência do riso do absurdo que sempre fora
oportunamente desvalorizado pela tradição metafísica logocêntrica ocidental dominada
pela seriedade do homem que sempre procurou conquistar uma verdade que é mulher
como salienta a interpretação Derridiana . É notável que no primeiro parágrafo de A gaia
ciência, a ciência feliz, intitulado “Os mestres da finalidade da existência”, Nietzsche
expresse que:

Rir de si mesmo, como se deveria rir para fazê-lo a partir da verdade inteira –
para isso os melhores não tiveram bastante senso de verdade até hoje, e os mais
talentosos tiveram pouco gênio! Talvez ainda haja um futuro também para o
riso! [...] Talvez então o riso tenha se aliado a sabedoria, talvez haja apenas
“gaia ciência”. Por enquanto ainda é bem diferente, por enquanto a comédia da
existência ainda não se tornou “consciente” de si mesma, por enquanto este
ainda é o tempo da tragédia, das morais, das religiões. [...] Para que tudo o que
ocorre necessariamente e por si sempre e sem nenhuma finalidade, apareça
doravante como tendo sido feito para uma finalidade e seja plausível para o ser
humano, enquanto razão e derradeiro mandamento – para isso entra em cena o
mestre da ética, como mestre da finalidade da existência. [...] Sim, ele não quer
absolutamente que riamos da existência, tampouco de nós – e tampouco
dele.[...] É inegável que a longo prazo cada um desses mestres da finalidade
foi até agora vencido pelo riso, a razão e a natureza: a breve tragédia sempre
passou e retrocedeu afinal à eterna comédia do existir e as “ondas de
incontáveis risos” – na palavra de esquilo – devem finalmente se abater sobre
os maiores desses trágicos também. (NIETZSCHE, GC, §1)

Rir de si mesmo seria uma tarefa própria do “homem de conhecimento”, para um


livre pensador de uma gaia ciência pois os “homens de conhecimento” seriam “no fundo
homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens, nada nos faz tão bem como o
chapéu do bobo: necessitamos dele diante de nós mesmos”. (NIETZSCHE, GC, §107)
Rir-se seria uma Tarefa do “homem de conhecimento” que liberando-se do peso do
falogocentrismo pode afirmar a leveza do riso feminino como uma nova estrutura de
crença e pensamento. Desse modo, rir de si mesmo pode ser entendido como a
possibilidade de se suspender desse peso (que é também necessário para o conhecimento
mas não de todo), de desagregar “tudo o que em nós quer se tornar sólido” (Nietzsche,
GC, §296). Nesse sentido, desapropriando-nos, com o riso, do que se consolida e dá
sentido ao si mesmo. Rir-se é, portanto, uma experiência que coloca a noção de identidade
em jogo, pois, como na experiência das saturnálias, a “identidade cotidiana” é suspensa e

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superada mesmo que provisoriamente, promovendo a inversão e o deslocamento de
posições e valores. O riso não apenas seria uma experiência prazerosa diante do absurdo
da existência, mas também se mostra como um sinal do deleite e exuberância frente ao
absurdo do sem sentido da própria existência do homem ou mulher que podem não “levar-
se tão a sério”. Portanto, para esse homem ou mulher (do “conhecimento”), Nietzsche
aconselha o uso do chapéu do bobo a fim de que possam se alegrar de sua estupidez e de
sua sabedoria; seria ainda, aconselha o pensador, preciso chorar, mas também rir;
descobrir o herói, mas também o tolo. Tal oscilação necessária para experimentar em si
a inversão de perspectiva (ao modo de uma saturnália do pensamento) parece fundar-se
nas duas máscaras, nas duas manifestações dionisíacas, a tragédia e a comedia.

Com o projeto de A gaia ciência Nietzsche reabilitaria a alegria e o riso frente à


retidão séria e pesada assimilada pela ciência e filosofia de sua época. Neste sentido,
considera o filósofo que o intelecto, de um modo em geral, seria fruto do peso e da
seriedade advindas do ressentimento (contra a vida que é mulher) próprio de um espírito
de gravidade que dominaria o pensamento e a ciência moderna. Desse modo, reflete
Nietzsche que:

O intelecto é, na grande maioria das pessoas, uma máquina pesada, escura e


rangente, difícil de pôr em movimento, chamam de “levar a coisa a sério”,
quando trabalham e querem pensar bem com essa máquina – oh, como lhes
deve ser incômodo o pensar bem! A graciosa besta humana perde o bom
humor, ao que parece, toda vez que pensa bem, ela fica séria! E “onde há riso
e alegria, o pensamento nada vale”: – assim diz o preconceito desta besta séria
contra toda gaia ciência. (NIETZSCHE, GC, §327)

Pode-se conjecturar que, ao comparar o intelecto a uma máquina rangente,


Nietzsche estaria também refletindo em torno de uma característica que se acentuara na
modernidade: o pensamento como algo pesado e sério, ou ainda, o intelecto como lógica
e cálculo seriam, típicos do falogocentrismo, apontado por Derrida (2013, p. 37), que em
tudo tentam se apropriar e conquistar desajeitadamente uma verdade que é mulher .
Tornar-se-ia necessário, assinala o filosofo, para o ato do pensamento a perda do humor,
o “rebaixamento” deste para o pesado humor da seriedade, por isso o pensamento lhes
deve ser, como afirma o Nietzsche, algo incômodo, pois funcionaria ao modo de uma
rangente máquina. O pensamento só valeria se concebido pelo intelecto da douta
seriedade e nenhuma alegria e bom humor, pois de nada valeria para esta um pensamento
advindo da alegria do riso próprio do feminino denegado pela tradição como salienta
Derrida. Levar a sério e com isto levar-se a sério seria para a tradição ocidental o próprio

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do pensar, e todos os outros humores leves, como a alegria e o riso, seriam tomados como
não propícios ao pensar, como impróprios a ele. Pode-se, pois, colocar que com o poder
derrisório do riso desagregar-se-ia o peso que no homem de conhecimento articularia a
razão e o conhecimento no sentido de erigir uma verdade absoluta a serviço de uma
finalidade para a existência. O riso, a partir do feminino, recolocaria a experiência do
pensamento em relação com a suspensão no abismo absurdo sem fundo, sem fundamento
e sem sentido. Parece ser essa a experiência do riso, da alegria e da leveza que Nietzsche
deseja reapropriar para o pensamento a partir de A gaia ciência.

Nesse sentido, pode-se ler a epígrafe de A gaia ciência, onde Nietzsche,


introduzindo-a e preparando o leitor para a leitura por uma “porta de entrada” de seu
texto, escreve o seguinte dístico: “Vivo em minha própria casa, jamais imitei algo de
alguém, e sempre ri de todo mestre que nunca riu de si também. INSCRIÇÃO SOBRE
MINHA PORTA” (NIETZSCHE, GC, p.5). Neste sentido, se torna para o filósofo motivo
de um riso sardônico um mestre que nunca riu de si, é justamente pelo riso ele é
desvalorizado por sua seriedade. Portanto só haveria verdadeira gaia ciência a partir do
poder absurdo do riso, o qual se torna um dos elementos primordiais para uma “ciência
alegre” que problematizaria a ênfase na seriedade com que até agora os filósofos
dogmáticos lidaram com a verdade que é mulher segundo Nietzsche e sublinhada por
Derrida . Porém, parece à Nietzsche (GC, §1) que o tempo do “grande riso” é um tempo
vindouro, no povir, pois afirma que “Talvez ainda haja um futuro também para o riso!” e
“este ainda é o tempo da tragédia, das morais, das religiões” que preconizam por
intermédio do mestre da finalidade uma razão e finalidade para a existência. De tais
mestres é dito que “ele não quer absolutamente que riamos da existência, tampouco de
nós – e tampouco dele” (NIETZSHE, GC, §1). Portanto os mestres da finalidade da
existência, mestres da ética, censuram e tornam o rir e a alegria um tabu, pois o riso
refletiria a animalidade no homem, sua irracionalidade e falta de seriedade para com as
coisas “sagradas” que dariam o sentido da existência humana quando não da existência
como um todo. Nessa direção, em sua dissertação de mestrado sobre o riso e o cômico
na filosofia de Nietzsche, Bruno Nepomuceno expõem que:

Dessa forma, riso e racionalidade foram colocados em extremos opostos por


uma visão moderna que, visando à domesticação do homem, procurava afastá-
lo de atividades que julgava menores. Nietzsche, porém, procurará reintroduzir
o riso nas atividades afirmadoras da existência, porque ele, ao contrário da
racionalidade, é mais honesto na sua interpretação da realidade, uma vez que

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nos leva a perceber, antes da consciência, a falta de sentido e a tragédia
existencial em que estamos lançados. (NEPOMUCENO,2017, p.100)

E ainda:

É a destruição da dileta lógica do sentido que sempre foi outorgada ao afeto do


conhecimento racional que o riso desmonta. É a destruição da expectativa de
encontrar sentido, destruição da própria noção de sentido – enquanto
fundamento, essência ontológica, télos. (NEPOMUCENO,2017, p.100)

Desse modo, a modernidade, opondo o riso à racionalidade, privilegiando e


favorecendo certa “domesticação” do homem acabou por desvalorizar o riso como algo
meramente instintivo, irracional, ilógico e sem sentido. Ela desvalorizaria o riso que nos
coloca defronte ao absurdo, riso que é, na perspectiva de Derrida lendo Nietzsche, uma
potência afirmativa do feminino que se articula com a experiência do abismo da falta de
sentido. Esse riso é reapropriado por Nietzsche, não sendo mais experimentado pela
lógica do “doente” com o “desespero lógico” da conservação frente ao sem sentido que
preferiria mesmo querer o nada, a nada querer, mas sim como uma experiência do
feminino e do dionisíaco que desvelaria a leveza da terra e seu não sentido. Conforme
indica Zaratustra: “quem um dia ensinar os homens a voar, terá deslocado todos os marcos
de fronteira; as próprias fronteira terão ido pelos ares para ele, que batizará de novo, a
terra – como “a leve”” (NIETZSCHE, Za, p.198). Leve porque livre do peso do sentido
da finalidade e do télos a ela imposta pelo peso do espírito de gravidade encarnado pelo
pensamento moderno. Por outro lado, é preciso explicitar que essa valorização moderna
do riso teria suas raízes em determinada metafísica; desse modo, o riso é avaliado pela
tradição filosófica grega como expressa Nepomuceno:

Tanto Platão quanto Aristóteles condenam o riso, cada um ao seu modo: o


primeiro desconfia da natureza ambígua do riso, e censura Homero por ter
declarado que os deuses riem, já que nada divino deveria se portar de forma
imperfeita; o segundo, em sua Poética, divide a tragédia e a comédia em lados
opostos, declarando que, enquanto a primeira engrandece o homem, a segunda
apenas o diminui. Ainda que Sócrates tenha ensinado um riso pedagógico, riso
que nos mostra o quanto nós não sabemos o que acreditamos saber, o
surgimento do pensamento socrático levou a uma dulcificação do humor. No
limite, poderíamos dizer que o riso grego humanizou-se, ou seja,
intelectualizou-se, perdeu sua força de escárnio e seu vínculo com o trágico e
o divino. (NEPOMUCENO, 2017, p.110)

A tradição filosófica grega se afastaria dos poderes do riso feminino (e da


comédia) porque ele seria ambíguo e imperfeito (profano e não divino) como em Platão,
ora “degradante” como em Aristóteles, e ora apropriável, perdendo sua potência de
escárnio, do trágico e do divino, para favorecer o intelecto e a pedagogia socrática. Nesse

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sentido, o riso tragicômico tornara-se um perigo para o saber e a ética filosófica, tanto
que deveria ser contido, rebaixado quando não aniquilado, pois nele residiriam a potência
e a loucura do Dionísio. De outro modo, para Nietzsche, o riso e mesmo o escárnio
bufônico tornam-se um valor inestimável e uma estratégia adotada para seu filosofar
trágico e para a espécie de pessimismo aí incluída. Nesta direção, pensador pondera sobre
si e sobre seu filosofar sob a imagem do bufão:

Eu não quero ser um santo, seria antes um bufão... Talvez eu seja um bufão...
E apesar disso, ou não apesar disso – pois até o momento nada houve mais
mendaz do que os santos –, a verdade fala em mim. Mas a minha verdade é
terrível: pois até agora chamou-se à mentira verdade. (NIETZSCHE, EH,
p.109)

Nessa direção, opondo-se ao santo e sua verdade mendaz, Nietzsche “identifica-


se”, ou melhor, aproxima-se da figura do bufão, personagem típica da Idade Média que
podia por meio de sua imagem ora grotesca, ora boba, denunciar e criticar, pelo riso e
com a sua “verdade” os poderes religiosos e da realeza. Nietzsche, como um bufão,
desvelaria a verdade oficial como uma mentira, uma farsa ao apresentar sua terrível
verdade (de que não há verdade?). Mikhail Bakhtin, em sua obra dedicada ao riso na Idade
Média, afirma que:

O riso da Idade Média, que venceu o medo do mistério, do mundo e do poder,


temerariamente desvendou a verdade sobre o mundo e o poder. Ele opõe-se à
mentira, à adulação e à hipocrisia. A verdade do riso degradou o poder, fez-se
acompanhar de injurias e blasfêmias, e o bufão foi seu porta-voz.
(BAKHTIN, 1999, p.80)

Bakhtin nos convida a pensar uma “verdade” do riso, que degradaria a “verdade”
oficial, a partir da figura do bufão que se opõe à mentira, à adulação e à hipocrisia
perpetuadas pelos poderes então estabelecidos. Assim, por meio de injurias e blasfêmias
e principalmente pelo jogo da paródia (também praticada por Nietzsche como o mostra,
por exemplo, seu inteiro Zaratustra) com os poderes estabelecidos, o bufão os ataca com
a verdade zombeteira de seu riso. Portanto, ao declarar-se em afinidade com a figurão do
bufão, Nietzsche estaria a proclamar a verdade e a leveza do riso contra toda a seriedade
e peso dos poderes oficiais que se instituem tanto na verdade filosófica metafísica, na
ciência de sua época, como na religião cristã, etc.

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O riso torna-se parte de seu filosofar trágico e, longe de ser depreciado como o foi
por grande parte da tradição, torna-se inclusive um meio para valorar e classificar as
filosofias e seus filósofos:

O vício olímpico — A despeito daquele filósofo que como verdadeiro inglês


caluniou o riso em todos os pensadores — "o riso é uma verdadeira
enfermidade da natureza humana, que todo ser pensante deverá saber vencer"
(Hobbes) — eu me permitirei instituir uma classificação dos filósofos segundo
a classe a que pertence seu riso — até chegar àqueles que são capazes do riso
áureo. E supondo que também os Deuses se ocupem com a filosofia, suposição
à qual sou levado por várias razões — não duvido que saibam rir dum modo
novo e sobrehumano — acerca das coisas mais sérias, inclusive! Os deuses
sentem-se inclinados pelo escárnio, mesmo nas cerimônias sagradas parece
que não podem conter o riso. (NIETZSCHE, ABM, §294)

Se, para Hobbes o riso é uma verdadeira enfermidade da natureza humana, para
Nietzsche, ele se torna um princípio avaliador com o qual é possível instituir uma
classificação dos filósofos. Haveria, portanto vários tipos de riso, o ressentido, o
socrático-pedagógico, o áureo, etc. É A partir de sua variedade e da potência do “grande
riso” que Nietzsche propõe uma hierarquia dos filósofos e seu filosofar. O riso é, para o
filosofo, uma medida de valor para essa classificação um tanto irônica, um tanto ridente.
Se os deuses se ocupam de filosofar, suposição que Nietzsche levanta, devem, pois, saber
rir de outro modo para além do humano. Assim, em Nietzsche o riso alcança as esferas
olímpicas dadas sua potência e força para inclusive poder-se rir das coisas mais sérias.
Nesta direção, pode-se compreender a importância do riso em Nietzsche e interpretado
por Derrida (DERRIDA, 2013, p. 41) como uma potência do feminino capaz de produzir
uma nova estrutura de crença para além do humano como este se constituiu até hoje sob
o predomínio do falogocentrismo que visa se apropriar de uma verdade que é mulher aos
mesmo tempo em que denega sua potência de afirmação do devir da vida e de seu abismo
onda não há fundamentos mas absurdo. Com o riso seriam descontruídos todos
fundamentos que marcam o discurso metafisico moderno, e particularmente o discurso
da verdade como um fetiche que sempre procurou a essência ou a natureza das coisas.
Nesta direção, procuro no subítem a seguir desdobrar o que seria esse discurso fetichista
em torno da verdade com o intuito de apontar como a mulher não se deixa ser apropriada
por este discurso. Assim, desloca a concepção e o sentido de verdade para um registro de
denúncia dos fetiches próprios da metafisica.

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2.3 Fetiches essencializantes

Em contraposição à potência do riso estaria, para Nietzsche, o típico filosofo


filósofo dogmático que procede com a pompa da seriedade que julga ser necessária para
a conquista da verdade (que é mulher). Porém como visto a verdade mulher habita o
abismo sem fundo e sem fim que só é experimentado na distância e, acrescenta-se, em
anelo com o riso frente ao absurdo do sem sentido que ela desvela. Pode-se colocar que
esse modo de atuar do filósofo dogmático tem seu fundamento no desejo de apropriação
da verdade próprio do tempo onde a ideia era encarnada pelo filósofo. Por tal Nietzsche
colocara que este, o filósofo dogmático, não possui meios hábeis para se aproximar e
conquistar uma verdade que é mulher, assim como Derrida (2013, p. 37) afirma que “a
mulher (a verdade) não se deixa conquistar” a partir da sentença de Nietzsche (ABM,
prefácio) que diz que “é certo que ela não se deixou conquistar. E hoje toda espécie de
dogmatismo está de braços cruzados triste e sem ânimo. Se é que ainda está de pé! ” É
neste sentido que com a verdade mulher todo dogmatismo se queda (como uma ereção de
um falo que por muito tempo perdurou), e cai no abismo do não fundamento que é velado
justamente por essa verdade mulher. E é este o perigo desta verdade mulher para os
dogmáticos de toda espécie: de que suas crenças e convicções na verdade não possuam
verdade alguma e qualquer fundamento sólido e firme ou, ainda, de que toda verdade seja
apenas uma interpretação ou perspectiva e de que toda firme convicção dogmática não
passe de uma interpretação ou perspectiva dos fracos justamente por querer repousar-se
e fundar-se sob uma crença absoluta onde crê-se conquistar uma verdade que é mulher.
Nesta direção, Derrida pontua que:

Isto que na verdade não se deixa conquistar é - feminino, isto


que não se deve apressar a traduzir por feminilidade, a
feminilidade da mulher, a sexualidade feminina e outros
fetiches essencializantes que são justamente o que se crê
conquistar quando se permanece na tolice do filósofo
dogmático, do artista impotente ou do sedutor sem
experiência. (DERRIDA, 2013, p. 37)

Portanto, o feminino é isto que não é “traduzível” e capturável pelos fetiches


essencializantes, pois, como já colocado, é uma marca do feminino o distanciar-se,
quando não abismar-se, daquilo que lhe quer apropriar. Mas o que são fetiches
essencializantes? Ora, algo da ordem de um desejo de conhecer uma “coisa” a partir de

90
sua essência e, nesta direção, tornar algo apropriável, prática própria de todos aqueles que
pretendem se apropriarem da verdade através da noção de essência, de identidade ou de
natureza, que funcionam no desejo de apropriação como correlatos. Muito próximo à
noção derridiana de fetiches essencializantes Nietzsche afirma que:

A reputação, o nome e a aparência, o peso e a medida habituais


de uma coisa, o modo como é vista — quase sempre uma
arbitrariedade e um erro em sua origem, jogados sobre as
coisas como uma roupagem totalmente estranha à sua natureza
e mesmo à sua pele —, mediante a crença que as pessoas neles
tiveram, incrementada de geração em geração, gradualmente
se enraizaram e encravaram na coisa, por assim dizer,
tornando-se o seu próprio corpo: a aparência inicial termina
quase sempre por tornar-se essência e atua como essência!
(NIETZSCHE, GC, §58)

Como pode ser interpretado é através de uma aparência inicial tornada conceito
ou ideia que se intenta a partir de uma postura fálico-dogmática capturar e se apropriar
de algo mediante um fetiche essencializante, desde onde se crê apropriar-se da essência
de uma coisa quando, na verdade, se está a partir de uma aparência inicial “criando” uma
“essência”, mas denegando-se esse momento de “criação” na “origem”. Este seria o
procedimento de todos aqueles que ocupam ou desejam ocupar a posição por excelência
metafísica e fálica, quer seja ele filósofo dogmático, artista impotente ou sedutor sem
experiência. Todos estes seriam fetichistas da essência que “criam” conceitos ou ideias
que pretendem-se fixas e eternas mediante o nome de essência, natureza ou identidade e,
com isto, creem ter conquistado e capturado o próprio de algo (sua “verdade”) para
afirmar então “o que é” este algo, esquecendo e denegando toda a gênese de sua
constituição, que passa originalmente por um jogo de aparências inicial, da arbitrariedade,
do erro e do hábito. Neste sentido todo desvelamento, toda intelecção de uma essência é
uma espécie de fetichismo, um “culto” ao caráter supostamente essencial e transcendental
de uma coisa.

Contudo, a verdade mulher em seu distanciamento não se deixaria capturar ou


conquistar, também porque esta é sempre superfície não se aderindo à suposta
profundidade de uma essência apropriável, e neste sentido escapando ao jogo binário de
essência /aparência. Ademais, quando Nietzsche coloca que é uma aparência inicial que
acaba por ter efeito de essência, está “desconstruindo” a herança da dicotomia platônica
que as separa em polos opostos e tem hierarquicamente a essência como superior à

91
aparência, apontando com isto que no “início” se tem uma aparência que faz efeito
posterior de essência. Nesse sentido, não haveria uma essência predeterminada, mas
apenas jogos de aparências e aderências. Com tudo isto, a noção de verdade é também
alterada por essa lógica que parece inverter as hierarquias para em verdade deslocar
valores, assim Derrida coloca sobre as verdades (no plural) que:

A "verdade" não seria mais que uma superfície, ela não se tornaria
verdade profunda, crua, desejável, senão pelo efeito de um véu: que cai
sobre ela. Verdade não suspensa pelas aspas e que recobre a superfície
de um movimento de pudor (DERRIDA, 2013, p. 39)

Deste modo, Derrida procuraria evidenciar como é uma “verdade” com aspas ao
compará-la com a verdade tradicional (profunda): a "verdade" mulher é superfície
justamente porque não está por trás de um véu encobridor, ela seria o próprio véu que
nada esconde ou apenas seduz que esconde, de outro modo, a verdade (sem aspas) se
tornaria profunda apenas pelo efeito de um véu, uma superfície que lhe cobre, e não por
uma profundidade que seria propriamente sua. O efeito do véu faria operar um "como se"
ela fosse profunda. É justamente o efeito de um véu, de um véu das aparências,
superficial, que produziria a verdade profunda. Este seria o efeito da verdade mulher:
“Ela, a verdade mulher, engole, vela pelo fundo, sem fim, sem fundo, de toda
essencialidade, toda identidade, toda propriedade” (DERRIDA, 2013, p. 32). Neste
sentido, a “verdade” acaba por anunciar e denunciar o sem fim, o sem fundo de tudo que
no discurso filosófico (essencialidade, identidade, propriedade...) se quer bem fundando,
bem firme, e que acaba, por fim, por aparecer como sem fundamento, suspenso em um
abismo, sem verdade. Neste sentindo Sebastian Chun reflete que:

A mulher é sem essência, a “verdade” que anuncia a morte de deus, é a não-


verdade, sua falta, a ausência de uma verdade. Então, não há identidade nem
propriedade que permanece incólume ante a potência descontrutiva da mulher,
o temor que sacode o monotonoteismo em qualquer de suas versões. Dito de
outro modo, o feminino resiste ao filósofo dogmático, ao saber verdadeiro, que
crê na mulher, é dizer, na verdade. (CHUN, p.13 apud CRAGNOLINI, 2018)

Desse modo, aclara-se mais amplamente a potência da mulher na filosofia de


Nietzsche a partir de certa perspectiva derridiana. A mulher como “verdade” viria fazer a
anunciação da morte de deus que pode ser entendida como a queda e desmoronamento
dos valores absolutos da metafísica e como isto da possibilidade estrutural da verdade
tradicional. Esta outra “verdade” que anuncia a morte de deus é, tem de ser, uma não-
verdade, ausência e falta e não plenitude e presença, mas também o tremor abismal,

92
abismante que desconstruiria as sombras de deus, na qual se incluiria a noção de sujeito
moderno como, talvez, a principal sombra a ser desconstruída. E enquanto não-verdade
ela resistiria e, acrescento, atacaria o filósofo dogmático e o “saber verdadeiro” que crê
na verdade da mulher. Com isto, Derrida (2013, p. 32) afirma que “aqui, cego, o discurso
filosófico soçobra - deixa-se precipitar à sua perda”. O discurso filosófico soçobra porque
justamente com o efeito da verdade mulher perde o fundamento que lhe assegurava a
essência, identidade e propriedade de seus conceitos e noções. Se ela, a mulher, vela por
esse fundo, sem fim e sem fundo que denuncia as essências, identidades e propriedades,
o que pode vir a ser então sua relação justamente com a noção de verdade que se liga
tradicionalmente a essas concepções? Derrida (2013, p. 32) constata que “não há verdade
da mulher, mas é porque este afastamento abissal da verdade, esta não–verdade é a
´verdade-´. Mulher é um nome desta não verdade da verdade”.

Nesta direção, não há verdade da mulher, há uma não-verdade ou/e uma “verdade”
entre aspas, marcada já pelo jogo suspensivo do abismo que a faz pairar no ar como um
véu. Pode-se colocar que não há verdade possível da mulher porque justamente ela se
distancia de maneira abissal da verdade em seu modelo tradicional metafísico. A mulher
é a não-verdade da verdade sem nenhuma dialética na qual houvesse a superação por um
terceiro termo, ela não é uma ou outra, mas habita esse não lugar indecidível, entre
“verdade” e não-verdade, que é o velar pelo abismo. Nesta direção, Chun coloca que:

O feminino fica assim do lado do sem lugar da escritura, resto inapropriavel


pelo estilo falogocentrico, verdade que sabe que não há verdade e que,
portanto, não crê nela ao mesmo tempo que a encarna.[...] A mulher é a verdade
que expressa a ausência de verdade, para tanto, para ser fiel a si mesma não
pode crer nela. (CHUN,p. 13 apud CRAGNOLINI, 2018 )

O feminino resguarda, portanto, uma essencial afinidade com a escritura, pois assim
como esta, ele é apenas um resto, um rastro inapropriável, porque sem essência e
identidade, e por isto incapiturável pelo desejo de apropriação próprio do estilo
falogocentrico e em seu esteio, pelo filósofo dogmático. É uma verdade que apresenta
que não há verdade, e por isso não crê na verdade ela mesma, mas encarna-a e a performa
a sua maneira através dos véus e da distância49. E sendo não-verdade da verdade ela
acaba por denunciar com sua não-verdade toda verdade advinda do dogmatismo que se

49
Tal verdade se vincularia ao registro da aparência (do véu como o pensa o Derrida) e não mais
fundamentada ou desveladora de uma essência. Aparência não é mais pensada como o oposto de uma
essência:. Nietzsche no § 54 de A gaia ciencia reflete “ o que é aparência? Verdadeiramente, não é o
oposto de alguma essência- que posso eu enunciar de qualquer essência, que não os predicados de sua
aparência?”

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queria absoluta, sólida, eterna e bem fundamentada. Neste sentido, a mulher como não-
verdade da verdade "denuncia" que todo saber que pretenda se bem fundar tem seu
fundamento em um não fundamento, ou melhor dito, em um abismo. Desse modo, a
mulher de Nietzsche se relaciona criticamente com o mais "próprio" do discurso
filosófico através da desconstrutora noção de "verdade", porém, como não-verdade da
"verdade". A mulher é aos olhos de Nietzsche uma cética, não crê na essencialidade
profunda das coisas, ou como bem o diz Derrida.(2013, p38) ela é “o ceticismo e a
dissimulação velante”, dissimulação que a coloca no registro das aparências, ou melhor
ainda dizendo, das superfícies. Nietzsche (GC, §64) o afirma “elas creem na
superficialidade da existência como a própria essência...” Nesta direção , se a verdade é
mulher, ela “ não seria mais que uma superfície” 1 (DERRIDA, 2013, p.39). Mulher e
aparência como superfície que nada esconde (nenhuma essência) estão ligadas
produzindo um efeito que supera a velha dicotomia aparência x essência.

Quando Nietzsche pensa a “verdade” como mulher está articulando de modo


radical uma série de importante questões. Uma destas é pensar a mulher, que quase
sempre esteve excluída ou desvalorizada pela tradição ocidental, a partir daquilo que está
tradição sempre valorizou, a verdade, e conferindo a ambas um outro valor, uma outra
hierarquia de valores. Ao mesmo tempo em que coloca de modo irônico que os filósofos
demasiadamente dogmáticos, e por isso entendendo pouco de mulheres, não tenham tido
"estilo" suficiente e a distância necessária para lidar com esta "verdade" que é mulher,
pois: “supondo que há verdade seja uma mulher – não seria bem fundada a suspeita de
que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de
mulheres?” (DERRIDA, 2013, p. 35). E é por ser não-verdade da verdade, e com isso não
essência, não identidade e não natureza, que a mulher se torna inapropriável,
inidentificável, ou seja, nenhum fetiche essencializante a pode dominar. Também a
verdade mulher deteria essas características, sendo, portanto, uma “verdade” que não
pode ser apropriada, nem apropriar-se de algo, mas apenas produzir interpretações e
perspectivas sem fundamento. Mulher é, portanto, um nome que afirma a força da não-
verdade da verdade em um mundo onde a vontade de verdade e o fetiche essencializante
preponderam. E, sendo não-verdade da verdade, acaba suspendendo “a oposição
decidível do verdadeiro e do não verdadeiro” (DERRIDA, 2013, p. 78) e, deste modo, a
“verdade” mulher provoca efeitos:

94
Ela instaura o regime epocal das aspas para todos os conceitos pertencentes ao
sistema da decibilidade filosófica, ela desqualifica o projeto hermenêutico
postulante do sentido verdadeiro do texto, ela libera a leitura do horizonte do
sentido do ser ou da verdade do ser. Dos valores de produção do produto ou da
presença do presente – isto que se desencadeia é a questão do estilo como
questão da escritura, a questão de uma operação esporeante mais poderosa que
todo conteúdo, toda tese ou sentido. (DERRIDA, 2016, p. 78)

Suspensa no abismo pelas aspas, a “verdade” mulher e sua não-verdade acabam


por contaminar todos os outros conceitos que contariam com a certeza da decibilidade
filosófica e com a possibilidade de sua determinação e definição, e neste sentido acaba
por suspender o sentido verdadeiro do texto e o sentido do verdadeiro no texto, que seriam
extraídos de conceitos bem fundamentados e, por isso, decidíveis. Nesta direção ela
desprende a leitura do sentido mais filosófico do ser ou de sua verdade, liberando a leitura
para uma disseminação de sentidos e, desse modo, desqualificando o projeto
hermenêutico de busca de um sentido e significados únicos e últimos. Com isto, acaba
por liberar a leitura da busca da verdade do sentido ou do sentido da verdade. Ainda é
preciso sublinhar que na passagem acima citada de “Esporas” Derrida retoma a relação
de afinidade entre a mulher e o estilo de Nietzsche, que com suas esporas teria um efeito
poderoso, mais além de todo conteúdo, toda tese ou sentido e, nesta direção, para além de
toda verdade em seu sentido tradicional. A questão do estilo como questão da escritura,
pode-se colocar, seria também a questão da mulher, pois “a escritura seria mulher”
(DERRIDA, 2013, p. 38). Então, a operação esporeante teria sua força por conjugar o
estilo, a escritura e a mulher, que se articulam para além do dogma de um único sentido.
Com a mulher entraria em questão o jogo da alteridade e da diferença, que não permitiria
um sentido ser apresentado como único e absoluto sustentado por um sujeito-autor de
seu próprio discurso. A mulher desconstruiria o fetiche de um sujeito que seria como um
pai, o portador de um sentido único, abrindo a escritura para o atravessamento de uma
multiplicidade de forças. A seguir pretendo desenvolver a problemática da mulher, não
apenas como uma questão, mas enquanto uma marca do texto de Nietzsche que constitui
uma escritura não mais sustentada por um sujeito-autor, abrindo-se para uma
multiplicidade de vozes que não se deixam reconduzir por um monólogo típico da
metafísica do sujeito.

95
2.4 Múltiplas vozes grávidas: gravidez e alteridade/texto e texturas

Não haveria um sentido e uma voz única e própria do texto, e particularmente no


texto de Nietzsche haveria uma radical multiplicidade de vozes que não se deixariam
reduzir a uma verdade ou sentido como coloca Derrida:

[…] diversas vozes podem ser ouvidas; elas retornam com uma insistência que,
eu acredito, nunca cessará, e que demanda que estas vozes nunca sejam
reduzidas a uma “monologia”. Neste sentido, tais vozes já ressoam em seu
futuro, na reserva pela qual, para usar uma figura muito nietzschiana, elas estão
“grávidas”. (DERRIDA, 2016, p. 95)

Por tal característica de se entretecer em múltiplas vozes, Derrida coloca que não
há uma coisa como o texto de Nietzsche, uma verdade ou o sentido, mas interpretações
possíveis, pois:

Quanto mais perto se está de “Nietzsche”, mais ciente se torna de que


não há tal coisa como o texto-Nietzsche. Este texto exige interpretação
da mesma maneira que argumenta que não há uma coisa tal como um
ente, apenas interpretações – ativas e reativas – deste ente. (DERRIDA,
2016, p. 97)

O texto nietzschiano, como coloca Derrida, só aconteceria a partir das diferentes


interpretações capazes de ouvir as diferentes vozes que nele habitam. Seria um texto
“atravessado" por uma multiplicidade de vozes, outras vozes além da única voz, por assim
dizer, própria. É esta multiplicidade de vozes, adverte Derrida, que não devem ser
reduzidas a uma "monologia", ou seja, à lógica do monólogo que é também a lógica
indenitária de um sentido único ou a uma verdade própria. Portanto, seria preciso
resguardar a alteridade presente no jogo destas diferentes vozes e não reconduzi-las a uma
lógica apropriativa da identidade. Nesta direção, Derrida (2013, p. 95) explicita que o
texto de Nietzsche é um texto aberto ao futuro, e isto, justamente, pela multiplicidade de
"vozes grávidas" que o habitam e que estão relacionadas com o porvir do texto desde que
não reduzidas à lógica de uma "monologia" que garantiria o sentido do próprio ou o
próprio de um sentido do texto. A singularidade dos textos de Nietzsche seria, portanto,
ser habitado por uma multiplicidade de vozes que não se reúnem sob o jugo de um sentido
ou de uma verdade, são vozes que em jogo com o vir a ser garantem a abertura do futuro

96
do texto. É, neste sentido, em sua relação com a alteridade, com o vir a ser e com o futuro
que se pode dizer que são vozes "grávidas".

Sobre a gravidez Derrida afirma em Esporas que "Nietzsche o que se pode


verificar em todos os lugares, é o pensador da gravidez" (Derrida, p. 45, 2013). Ainda que
esta passagem permaneça, por sua pontualidade, enigmática pode-se ler em Nietzsche
acerca da gravidez que:

[...] todo pormenor no ato da procriação, da gravidez, do nascimento


despertava os mais elevados e solenes sentimentos. Na doutrina dos
mistérios a dor é santificada: as “dores da mulher no parto” santificam
a dor em geral – todo vir a ser e crescer, tudo o que garante o futuro
implica a dor [...] Para que haja o eterno prazer da criação, para que a
vontade de vida afirme eternamente a si própria, tem de haver
eternamente a “a dor da mulher que pare” [...] A palavra de Dionísio
significa tudo isso: não conheço simbolismo mais elevado que esse
simbolismo grego, o das dionisíacas. O mais profundo instinto da vida,
aquele voltado para o futuro da vida, a eternidade da vida, é nele sentido
religiosamente – e o caminho mesmo para a vida, a procriação, como o
caminho sagrado [...] (NIETZSCHE, CI, “o que devo aos antigos”, §
4).

Nesta direção, pode-se refletir que no contexto dos mistérios dionisíacos,


Nietzsche explicita como a gravidez 50 e o "pensamento da gravidez" estão relacionados
com o vir a ser, a dor, a criação e a abertura do impulso de vida em relação ao futuro
através da imagem do parto. Desse modo, faz-se necessário ressaltar o vir a ser que se
relaciona ao futuro não é pensando por Nietzsche teleologicamente, não haveria nenhuma
origem, nenhum fim. A gravidez e o feminino a ela articulado tornam-se elementos
relacionados à criação, porém gravidez que em Nietzsche é possível tanto ao homem
quanto a mulher pois: “Se o criador quer ele mesmo ser a criatura, o recém-nascido,
então deve querer, também, ser a parturiente e as dores do parto” (NIETZSCHE, Za, p.
222). O criador para Nietzsche, aquele que afirma a potência criativa do feminino é
justamente aquele que é. “(...) uma ‘pessoa-mãe’, no sentido maior da palavra, alguém
que sabe e que quer saber apenas das gravidezes e dos partos de seu espírito (...)”
(NIETZSCHE, GC § 369). O criador é concebido, portanto, como uma pessoa-mãe,
homem ou mulher, desfazendo-se assim a delimitação fisiológica dos corpos marcados
pelo binarismo homem/mulher, e pode-se acrescentar, homens ou mulheres,
heterossexuais, homossexuais ou trans, etc. são enquanto criadores atravessados pela

50
Sublinha-se que o parto aqui é pensando como um elemento ritual dentro da dimensão do misterio
dionisiaco, desse modo, a gravidez tem seu valor e precisaria ser considerada junto a importante questão
dionisiaca presente de diferentes maneiras na obra de Nietzsche, o que ultrapassa as intenções do presente
trabalho.

97
gravidez e pelos partos do espírito. Pois é também o feminino em Nietzsche que
deslocaria, em sua selvagem dança, os lugares de gênero demarcados pela tradição fálica
e binarista. Em consonância com os “mistérios” da gravidez Zaratustra se afirma do
seguinte modo: Eu, Zaratustra, o defensor da vida, o intercessor da dor...”. Cf.
NIETZSCHE, Za. p. 222 Ora, pode-se ler no texto selecionado em destaque que é
justamente a dor do parto que garante o vir a ser e o futuro de todas coisas, por tal,
Zaratustra é ao mesmo tempo o intercessor da dor (do parto, da criação) e por isso mesmo
o defensor da vida.
Além disto, a imagem da gravidez torna-se interessante ao ser pensada à luz da
leitura que Derrida faz de Nietzsche, pois se configuraria como uma imagem de alteridade
a partir da marca de um outro já “dentro” de si "mesmo" e, mais especificamente, de uma
potência do feminino, é preciso sublinhar, que carrega em si o outro. A gravidez parece
deste modo ser a situação em que “si mesmo” e “outro” se confundem. Pode-se colocar
também que é a marca deste outro, da alteridade com este outro e o jogo de diferença
entre si mesmo e outro que possibilitariam ao vir a ser sua abertura a um futuro não
decidido teleologicamente. Portanto, Nietzsche sendo o pensador da gravidez é, ao
mesmo tempo, o pensador do futuro. O texto de Nietzsche como um texto habitado por
diversas vozes grávidas pode, portanto, ser pensando pela marca da articulação entre
mulher, alteridade e futuro. E seria justamente a alteridade das vozes grávidas que
permitiria ao texto de Nietzsche ser um texto aberto para o futuro, isto porque sem a
predeterminação de uma voz própria e única doadora de um sentido e garantidora da
verdade do próprio do texto.

Neste sentido, a afirmação de Nietzsche como pensador da gravidez se evidencia


não apenas como tema de seu pensamento, mas também com o modo como operaria e
performaria o jogo das vozes que se inscrevem em seu texto, isto é, como vozes grávidas
que, em si, já estão marcadas por uma dupla alteridade: entre elas e por conta de suas
gravidezes. Vozes que não se encontrariam sob o jugo de um sentido maior ou mais
próprio, mas que podem ser pensadas a partir de uma disseminação de sentidos. Por serem
grávidas, estas vozes levariam a marca do feminino e teriam relação com o abismo, pois
seriam vozes, elas mesmas, não fundadas, mas, desde sempre relacionadas à alteridade e
a diferença entre elas. Nesta direção, a escrita de Nietzsche através da marca do feminino
e dos seus estilos se diferenciaria do modelo de escrita tradicional, onde se pretende um
sentido ou a verdade própria do texto; ser aberto para o futuro quer dizer ser aberto em

98
seus disseminados sentidos para diferentes interpretações que nunca esgotariam os
sentidos de seu texto. Por tal, Derrida coloca que:

Como resultado, deve-se proibir a si mesmo - com Nietzsche, sobretudo - de


forçar o seu nome à camisa de força de uma interpretação que é enérgica
demais para ser capaz de dar conta dele, na medida em que está reivindicando
reconhecer a identidade de um sentido, de uma mensagem, da unidade de uma
palavra ou de uma obra particular. (DERRIDA, 2016, p. 96)

Nesta direção, adverte o pensador contra a reivindicação de uma interpretação que


funcionaria como uma camisa de força, paralisando toda mobilidade e alteridade em nome
de um sentido, despotencializando o que há justamente de forte na obra de Nietzsche, sua
multiplicidade de vozes e de máscaras, ou seja, tudo isto que constituindo-se como seu
estilo se relaciona com o jogo do feminino em sua obra. Ora, é porque há uma
multiplicidade de vozes e máscaras que não há, por mais que se busque, a identidade de
um sentido, de uma mensagem, da unidade de uma palavra ou de uma obra particular.
Nesta direção, toda tentativa de captura de um sentido, sendo uma tentativa de
apropriação do escrito de Nietzsche, é uma redução de seu texto à camisa de força de
uma interpretação demasiado enérgica que torna a fechar a abertura própria de seu texto
ao paralisar o que há de dinâmico, múltiplo e contraditório em sua obra. Nesta direção
afirma Derrida que:

Eu encontrei, com efeito, dificuldade em reunir ou estabilizar, dentro de uma


determinada configuração, um “pensamento” de Nietzsche. Pelo termo
configuração não quero dizer apenas uma coerência ou consistência
sistemática (ninguém tentou seriamente identificar um “sistema” filosófico ou
especulativo no que é chamado – um nome próprio mais problemático e
enigmático do que nunca – Nietzsche), mas também a organização de um
conjunto, de uma obra ou corpus, em torno de um sentido guia, um projeto
fundamental ou mesmo de uma característica formal (de escrita ou discurso).
É esta multiplicidade singular e irredutível, essa resistência a qualquer forma
de Versammlung [reunião], incluindo a do fim da metafísica (no sentido de que
a interpretação de Heidegger constitui uma tentativa de “capturar” –
comprehendere mais do que verstehen – os elementos essenciais do
pensamento ímpar de Nietzsche no interior de um tal fim): é esta
irredutibilidade que sempre me pareceu mais justo respeitar. (DERRIDA,
2016, p. 95)

O filósofo francês expressa primeiramente sua relação com o texto de Nietzsche,


na qual ele admite encontrar dificuldade em reunir dentro de determinada configuração
um pensamento que fosse próprio e único de Nietzsche, ou, dito de outra maneira ainda,
um pensamento sob o regime de uma única voz monológica. Para em seguida introduzir
sua meditação acerca da resistência a qualquer forma de Versammlung (reunião). Seria

99
essa resistência do texto de Nietzsche, advinda de uma multiplicidade singular, que
afastaria a tentativa de uma reunião e sistematização dos seus pensamentos e escritos em
um sentido fechado e único ou em uma "voz própria", como o seria, por exemplo, a
tentativa de “captura” do filosofar de Nietzsche por Heidegger no sentido do fim da
metafísica. Mas também é uma resistência que possibilita, por outro lado, a partir das
diferentes vozes grávidas, uma abertura para múltiplas perspectivas de leitura. Haveria
por sua multiplicidade e singularidade de estilos uma maior abertura a interpretações,
permitindo que o futuro de seu texto não esteja fechado.

O texto de Nietzsche com seus estilos é singularmente uma escritura marcada pelo
feminino e um texto habitado por múltiplas vozes grávidas. É feminino por sua resistência
a uma captura e apropriação em um único sentido, verdade ou voz. E, por outro lado, por
permanecer aberto ao futuro justamente por sua multiplicidade irredutível. Nesse sentido,
não é casual que Derrida se refira ao nome próprio de Nietzsche como um nome
problemático e enigmático, dentre outras possíveis razões pelas múltiplas vozes e
máscaras que em seu texto habitam entretecendo um labirinto onde muitas vezes o nome
próprio se confunde com o outro. Vozes e máscaras que são precisamente elementos
singulares de seu estilo e, portanto, constituem parte da estratégia de resistência a uma
reunião. De seu estilo, de sua singularidade, Derrida afirma:

A diversidade de gestos de pensamento e escrita, a mobilidade contraditória


(sem síntese ou “suprassunção” possíveis) das incursões analíticas, os
diagnósticos, excessos, intuições, o teatro e a música das formas poético-
filosóficas, o jogo mais-que-trágico com máscaras e nomes próprios – estes
“aspectos” da obra de Nietzsche sempre me pareceram desafiar, desde o
princípio e ao ponto de fazê-los parecer um tanto irrisórios, todos os
“levantamentos” e relatos acerca de Nietzsche (filosóficos, metafilosóficos,
psicanalíticos, ou políticos). (DERRIDA, 2016, p. 95)

Isto que Derrida chama de "aspectos" podem ser entendidos como os estilos ou
esporas que funcionariam como estratégias desafiadoras impedindo uma reunião ou
sistematização demasiadamente forçosa pelos métodos e saberes que pretendem se
apropriar do pensamento e do texto de Nietzsche. Estas práticas, como coloca Derrida,
parecem irrisórias em suas tentativas de reunir “Nietzsche” a partir de “levantamentos” e
relatos. Por outro lado, sua irredutibilidade teria relação com os aspectos ou estilos citados
que só seriam possíveis justamente pela marca da não-verdade da verdade, marca do
feminino que liberaria o texto de Nietzsche para esta profusão de elementos estilísticos e

100
para o distanciamento de um sentido único, de uma verdade e voz própria. Nesta direção,
é a não-verdade da verdade e seu abismo que possibilitariam esta multiplicidade de
elementos estilísticos que se distanciam do típico modelo tradicional de fazer filosofia
que se conjuga a noção metafísica de verdade, de fundamento e de sentido único. E isto
vem a ser a partir da marca da mulher que, como visto, transita de múltiplas maneiras
através do texto de Nietzsche.

Deste modo, através da leitura de Derrida sobre Nietzsche em “Esporas” e alguns


trechos da entrevista “Nietzsche e a máquina”, considera-se a marca da mulher e do
feminino nos textos de Nietzsche como fundamentais para a compreensão da
singularidade de seus escritos e como dispositivos que permitem uma outra abertura de
interpretações para estes textos no sentido de uma desconstrução/destruição da verdade
tradicional e das noções de identidade, propriedade, fundamento e etc. É essencialmente
a leitura de Derrida em “Esporas” que convoca a esta inaudita perspectiva do papel da
mulher na obra de Nietzsche, abrindo a leitura de seus textos para outros futuros e novas
perspectivas. Neste sentido, pode-se colocar que a noção de identidade, assim como de
verdade (entre outras), são abalados pela marca da mulher que, como visto, é
compreendida como não identidade, não essência, não verdade e estaria velando pelo
abismo que faz soçobrar e perder seus fundamentos todas as noções e conceitos
concebidos sob a força do dogmatismo. Nesta direção Chun assinala que:

[...] Para Derrida, desde que a mulher é chamada de verdade da não-verdade,


isto é, vida. E a vida para Nietzsche é vontade de poder, perspectivismo. Que
significa isto? Que a vida se opõe a metafísica da presença, a crença em uma
única verdade, a qual assume o rol de fundamento para as ordens metafísica,
gnosiológico, ético e política. Viver é a atividade do filósofo artista que
reconhece a ausência da verdade mas não por isso cai em um niilismo extremo,
rechaçando assim a possibilidade de fazer do nada um novo fundamento. O
filósofo por vir constrói ficções úteis, um mundo aonde a vida seja possível,
ou seja, aonde a vontade de potência possa se incrementar. Simulacros, no
plural, que não pretendem cerrar-se sobre si consolidando uma totalidade senão
que abram mais interpretações. A vida, o feminino habita as máscaras, os véus,
reconhecendo que não há nada por trás deles, afirmando que essa verdade, a
qual deve ser pronunciada, explicitada, dita em viva voz para assim nos
resguardar de uma caída sem fim no sem-sentido paralisante do niilismo
absoluto. (CHUN,p.15 apud CRAGNOLINI, 2018)

Neste sentido, mulher é um nome para a vida e para vontade de potência. Vontade
de potência que estaria afinada por sua vez com o perspectivismo 51, portanto nomes que

51
Trato do tema do perspectivismo no terceiro capítulo.

101
se articulariam em suas diferenças e nuances, fazendo a função de diferentes estratégias
do feminino no discurso nietzschiano. E vida em sua abundancia e multiplicidade como
a concebe Nietzsche se oporia a metafísica da presença que institui a crença numa única
verdade própria do estilo dogmático. Se opondo a este dogmatismo estaria o filósofo
artista/criador aliado ao feminino capaz, de mesmo na ausência de um fundamento sólido
e de uma verdade, defrontado com o abismo sem fundo e sem fim sobre o qual vela a
mulher, criar ficções úteis a favor da vida , através do incremento e fortalecimento da
vontade de potência e ao mesmo tempo em que tomaria para si tarefa de desconstruir as
sombras restantes após a morte de deus. Nesta perspectiva, Chun (p.16 apud
CRAGNOLINI, 2018) reflete sobre esta filosofia artística ao analisar “a filosofia do
‘como se’, que não crê na verdade, em ela mesma, senão que finge sua existência, é a
verdade simulada, que nos protege da verdade, impedindo-nos de cair precipitadamente
pelo abismo do sem sentido” É, portanto, o filósofo artista que mais perigo corre por
dançar nas proximidades do abismo, mais ainda assim não conceberia o nada 52 como
um novo fundamento, mas criaria simulacros, sempre no plural, capazes de possibilitar
outras e novas interpretações que afirmem, enfim, a vida, o feminino e a vontade de poder.
Nietzsche nunca cansou de alertar seus leitores para os perigos de seu filosofar, pois é um
filosofar que olha para abismos ao destruir as certezas e fundamentos que se consolidaram
ao longo da história da metafísica ocidental, mas tão pouco deixou de encorajar e esperar
por esses filósofos do futuro que amem o perigo (do abismo) mas que junto a esse tenham
a força para criar novas e potentes perspectivas.

Pode-se pensar como a noção de sujeito implicada com seus fundamentos


metafísicos de identidade, estabilidade e unidade é abalada por esta marca e potência
abismal do feminino nos textos de Nietzsche. Seria justamente a marca da mulher que
viria a desconstruir estes fundamentos e pressupostos metafísicos dogmáticos que não se
sustentariam frente ao abismo da não-verdade da verdade velado pela mulher. Deste
modo, a noção de sujeito seria suspensa pelo uso das aspas ao sofrer a “desconstrução”
de seus fundamentos e pressupostos metafísicos, perdendo sua estabilidade frente ao
abismo da não-verdade. A noção de sujeito, sendo abalada em seus fundamentos por esse
abismo, é ainda liberada para outros porvires (já que a mulher também afirma a criação

52
Chun ressalta que reflete sobre este nada ao colocar que a mulher “ [...] convoca a proliferação de
perspectivas, simulacros e assim nos salva do niilismo extremo,da postulação do nada como verdade,
outra máscara que assumiria o deus morto com sua larga sombra”( p. 16 apud CRAGNOLINI, 2018)

102
no porvir), pois, como já visto, certas passagens do texto de Nietzsche convidam a pensar
um outro “sujeito” como ficção em sua multiplicidade em devir para além dos
fundamentos metafísicos que se associam à noção tradicional de sujeito.

Neste sentido, pode-se pensar a marca da mulher na filosofia de Nietzsche como


um elemento essencial na “desconstrução” dos fundamentos e pressupostos que
assegurariam à noção de sujeito sua estabilidade, e ainda na liberação desta para outras
configurações além do âmbito metafísico, configurações sempre determinadas pelo
caráter de ficções que venham a afirmar a vida. A partir do abismo da não-verdade, toda
noção e conceito que se apresenta de forma dogmática e também metafísica é denunciada,
do mesmo modo ocorreria com a noção de sujeito que é problematizada por Nietzsche.
Na problematização de Nietzsche em torno do sujeito, parece fazer parte precisamente
esse elemento da mulher com seu abismo da não-verdade e sua força criadora. Seria,
então, parte fundamental de sua crítica ao sujeito, a potência desconstrutora e criadora da
mulher e sua não identidade que viria a desestabilizar a noção de identidade presente na
ideia de sujeito. Com seu distanciamento sedutor, que é também um distanciamento da
verdade tradicional, a mulher acaba por colocar todas as noções e conceitos que se
apresentariam de maneira dogmática sob o regime das aspas, que os suspendem sob o
abismo da não verdade, abrindo-os para outros porvires livres desta vez dos fundamentos
metafísicos que os caracterizavam . Com isto a própria noção de texto, seu sentido e valor
são deslocados do enquadramento interpretativo metafisico tradicional. Como proponho
desenvolver mais aprofundadamente a seguir, o texto de Nietzsche apresenta-se, para a
interpretação derridiana, como um exemplo a ser meditado onde se radicaliza o
deslocamento mencionado anteriormente. A multiplicidade de vozes e o jogo de máscaras
inscritos em seu texto apontariam para um profundo questionamento da autoridade de um
sujeito-autor capaz de sustentar a verdade e o sentido único de um texto. Narrar e narrar
a si mesmo, segundo a interpretação derridiana em torno dos escritos de Nietzsche, não
podem mais ser entendidos a partir da égide de um sujeito e de sua voz monológica,
propondo o texto como um acontecimento e não como uma coisa fechada em si mesma.

103
2.5 Otobiografias – Narrar-se a si mesmo dissimulando-se

Procurarei abordar a seguir as questões em torno da alteridade, do autos (“eu”) e


do texto levantadas a partir da leitura de Otobiografias, livro no qual Derrida se dedica,
quase que integralmente, a uma interpretação de textos de Nietzsche, particularmente de
Ecce homo, Assim falou Zaratustra e Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de
ensino. No segundo capítulo deste livro, intitulado a “Lógica da vivente”, Derrida trata
especificamente de Ecce Homo a partir do problema da autobiografia para então
problematizar temas como identidade e alteridade. O filósofo argelino (1985, p. 5) afirma
na introdução do capítulo que “Sabe-se que tudo isso se encontra hoje submetido à
reavaliação, tudo isso, quer dizer, o biográfico e o autos do autobiográfico.” Nesta
direção, seu texto irá sopesar esta reavaliação em torno do biográfico, da vida, do autos e
do autobiográfico que se constituíram em nossa tradição metafísica ocidental a partir de
certa lógica da identidade. Para tal empreitada questiona primeiramente os modelos
tradicionais e instituídos de leituras biográficas:

Nem as leituras “imanentistas” dos sistemas filosóficos, quer sejam estruturais


ou não, nem as leituras empírico-genéticas externas jamais interrogarão
enquanto tal a dynamis desta borda entre a “obra” e a “vida”, o sistema e o
“sujeito” do sistema. Esta borda – eu a chamo dynamis por causa de sua força,
de seu poder, de sua potência virtual e também móvel – não é ativa nem
passiva, nem fora nem dentro. (DERRIDA, 1985, p. 5, grifo meu)

Desse modo, Derrida problematiza justamente as leituras que permanecem na


dicotomia binária de obra/vida, sistema/ “sujeito” do sistema, e o faz em nome daquilo
que chama de dynamis da borda que já não participaria deste sistema dicotômico, mas se
constituiria no entre desses pares conceituais aparentemente opostos. O que interessa,
portanto, à Derrida é justamente ir além da dicotomia binária para perscrutar a dynamis
desta borda com sua força, potência e mobilidade, para além ou aquém da atividade e
passividade, do fora e do dentro. A dynamis da borda situada no entre lugares
aparentemente separados colocaria em questão, portanto, uma série de pares dicotômicos
produtos da operação lógica da metafísica. Nesta direção, sublinha-se que a dynamis da
borda parece se fazer mais forte, mais potente, em casos como o de Nietzsche, pois:

O nome de Nietzsche é talvez hoje, para nós, no ocidente, o nome daquele que
foi o único (talvez de uma outra maneira com Kierkegaard, e talvez ainda com
Freud) a tratar da filosofia e da vida, da ciência e da filosofia da vida com seu
nome, em seu nome. O único, talvez a colocar em jogo seu nome – seus nomes
– e suas biografias. Como não levar isto em conta ao lê-lo? Não se lê senão
levando-o em conta. (DERRIDA, 1985, p. 6)

104
Nietzsche então, como indica Derrida, tratara os problemas da filosofia e da vida,
da ciência e da filosofia da vida com seu nome, em seu nome, mas o que é mais importante
ele colocara em jogo seu nome a partir de suas posições assumidas em relação àquelas.
Desse modo, pode-se afirmar que ele colocara seus nomes e suas biografias implicando-
os nas questões por ele problematizadas. Neste sentido, haveria nos escritos de Nietzsche
um nódulo que compõe aquela borda numa dynamis ainda mais forte onde as biografias,
o(s) nome(s), a filosofia, a ciência, a vida e os textos se entrelaçam. E isto justamente
porque em sua obra haveria a constante inscrição de suas vivências e experiências, assim
como dos estados de seu corpo através de múltiplas máscaras, incluso a máscara de si
próprio. Neste sentido, Derrida (1985, p. 7) pensa o colocar em jogo seu nome
relacionando-o as assinaturas e escritas que não se resumiriam a um eu: “Colocar em jogo
seu nome (com tudo que nele se compromete e que não se resume a um eu), colocar em
cena as assinaturas, fazer de tudo que se escreveu da vida ou da morte uma imensa rubrica
biográfica”. Desse modo, colocar em jogo o seu nome não se resumiria a um eu, mas a
uma multiplicidade de vivências e experiências singulares remetidas ao jogo das máscaras
que vão além da marca e da instancia do eu. Como Derrida pondera, Nietzsche faria de
tudo que escreveu uma imensa rubrica autobiográfica da vida ou da morte, o que só é
possível se o(s) nome(s) já está colocado em jogo. Torna-se exemplar desse colocar em
jogo seu nome a obra Ecce Homo, que se configuraria na leitura de Derrida como uma
espécie singular de “autobiografia” e que por sua singularidade o intérprete elege como
obra fundamental para pensar a questão do autobiográfico e, por consequência, o
problema da identidade: “Por agora, eu lerei Nietzsche desde a cena de Ecce Homo. Ele
coloca seu corpo e seu nome em destaque, mesmo quando avança sob máscaras e
pseudônimos sem nomes próprios, máscaras ou nomes plurais” (DERRIDA, 1985, p. 7).
Portanto corpo e nome relevam-se em destaque em seu texto, porém, sublinha Derrida, a
partir de máscaras e pseudônimos sem nomes próprios, já que o próprio do nome é
também problematizado por esse jogo de máscaras e nomes plurais. É a partir desse
problemática que Derrida lê em Ecce Homo que este irá questionar e desconstruir a
constituição do próprio do nome próprio assim como a estrutura do autos (“eu”) que
comporia o autobiográfico.

Em afinidade com a interpretação de Derrida pode-se colocar que é em Ecce Homo


que a “pessoalidade” ou ainda a singularidade de Nietzsche - seu corpo, seu nome, gostos,

105
hábitos, saúde e doenças, etc... - é afirmada, em que estes elementos aparecem mais
sublinhados, texto no qual Nietzsche parece constantemente “presente” ao se apresentar,
no qual estaríamos talvez mais perto de uma autobiografia do autor. Mas, no entanto,
como indica Derrida, é justamente neste texto que a autobiografia, o nome e a assinatura,
se tornam problematizáveis e, por assim dizer, uma questão filosófica que evidenciaria
uma crítica a certas concepções da filosofia tradicional. A crítica de Nietzsche assinalaria
que a tradição filosófica por seu “amor à verdade” denegara a pessoalidade, os corpos, as
paixões, instintos e a saúde, e por isto, em seus discursos suas verdades se pretendem
advindas daquilo que seria mais próprio ao filosofar e ao filósofo, a depender de cada
contexto: sua abstração, impessoalidade, espírito, alma, consciência, objetividade, Deus...
Em resumo: suas verdades adviriam sempre de alguma transcendência para além do mero
mundano e do corpo. Nesta direção, Nietzsche ( GC, prólogo, §2), não sem alguma ironia,
tem de lembrar, “pois, desde que se é uma pessoa, tem-se necessariamente a filosofia de
sua pessoa”. E ainda:

O inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da


objetividade, da ideia, da pura espiritualidade, vai tão longe que assusta – e
frequentemente me perguntei se até hoje a filosofia, de um modo geral, não
teria sido uma interpretação do corpo e uma má compreensão do corpo.
(NIETZSCHE, GC, prólogo 2)

Nietzsche conjectura que a filosofia, o ato de filosofar estaria vinculado a


necessidades fisiológicas, porém, disfarçadas inconscientemente sob o nome da
“objetividade, da ideia, da pura espiritualidade” e nesta direção, questiona se a filosofia
não teria sido uma má interpretação dos corpos. Em toda filosofia haveria, portanto, essa
imensa participação das necessidades fisiológicas de cada filósofo ainda que seja
afirmado, em geral, o contrário. De outro modo em Nietzsche sua pessoalidade, seu corpo
e saúde e doenças entram em jogo em seus escritos, assinalando um peculiar filosofar que
parece inverter (e esta é uma de suas estratégias) o paradigma do que é filosofar. Nesse
sentido, o filósofo ensina em Ecce Homo um novo aprendizado em relação às coisas mais
próximas:

Perguntar-me-ão por que relatei todas estas coisas pequenas e, segundo o juízo
tradicional, indiferentes: estaria com isso prejudicando a mim mesmo, tanto
mais quando se estou destinado a defender grandes tarefas. Resposta: estas
pequenas coisas– alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do
egoísmo– são inconcebivelmente mais importantes do que tudo que até agora
tomou-se como importante Nisso exatamente é preciso começar a reaprender .
O que a humanidade até agora seriamente não são sequer realidades, apenas

106
construções ; expresso com mais rigor , mentiras oriundas dos instintos ruins
de naturezas doentes, nocivas no sentido mais profundo – todos os conceitos
de ‘Deus’, ‘alma’, ‘virtude’, ‘pecado’, ‘além’, ‘verdade’, ‘vida eterna’.. [...]
por ter-se ensinado a desprezar as coisas ‘pequenas’, ou seja, os assuntos
fundamentais da vida mesma... [...].(NIETZSCHE,EH, pp.50-51)

Nietzsche explicita claramente sua necessidade, inclusive filosófica, de não


ocultar sua “pessoalidade” mas sublinha-la partir das coisas mais próximas, das
pequenas coisas que a acercam e a constituem. Coisas pequenas e mais próximas que
adquirem um novo peso e importância a partir de seu filosofar, enquanto tudo aquilo em
torno do que se filosofara e que a humanidade tomara como séria (“Deus”, “alma”,
“virtude”, “pecado”, “além”, “verdade”, “vida eterna”) aparecem como simples
imaginações de naturezas doentias que se afastaram e denegaram as verdadeiras
preocupações fundamentais da vida, negligenciando-as como coisas mundanas e reles.
Neste sentido, aquilo que era desvalorizado pela tradição é reapropriado como “muito
mais importante” que as metafísicas elucubrações fantasiosas de “horizonte mais
nublado” em torno de um suposto além-mundo. As coisas pequenas e mais próximas,
longe de serem tratadas na indiferença, como fora tradicionalmente, são, para Nietzsche,
as coisas que fazem a diferença, são o necessário que não se deve ocultar mas amar: frente
a fantasia do idealismo, a doutrina do que é necessário. Em Humano demasiadamente
humano Nietzsche já pensa esta relação, esta hierarquia de valores entre o mais próximo
e aquilo que é mais indefinido, distante:

Os dois princípios da nova vida. — Primeiro princípio: deve-se organizar a


vida tendo em vista o que é mais seguro, mais demonstrável: não, como até
agora, pelo que é mais distante, mais indefinido, de horizonte mais nublado.
Segundo princípio: deve-se estabelecer a sequência do muito próximo e do
próximo, do seguro e do menos seguro, antes de organizar e dar uma orientação
definitiva à própria vida (NIETZSHE, HDHII, §310).

Nesta direção, o seu filosofar se ocuparia “eticamente” primeiramente com o que


é mais seguro e demonstrável em franca contraposição àquilo que a partir da metafísica
fora valorizado como “transcendental” que na perspectiva do pensador é considerado
como mais distante, indefinido, nublado e indemonstrável. Ora, no mais próximo, a
partir da perspectiva nietzschiana, pode-se colocar, estariam o corpo, as pulsões, as saúdes
e doenças, as experiências e vivencias de seu “espírito” ao mesmo tempo em que é
interpretado e valorizado aquilo que é mais distante, de horizonte mais nublado e mais
indemonstrável como desnecessário para organização e orientação da vida. Enfim trata-

107
se de orientar e ordenar uma hierarquia de valores das coisas mais próximas, mais seguras
e mais demonstráveis capazes de afirmarem essa vida, sempre entendida como vontade
de potência, e não haveria nada de mais doentio mais degradante para essa vida que os
valores representados pela filosofia metafísica e depois pela metafísica-cristã que se
fundamentam em um além da vida para justificar essa mesma vida concebendo valores
que doutrinam uma depreciação desta vida em nome de um além transcendental.

Desse modo, a “pessoalidade” de Nietzsche entraria em cena em seu filosofar


como um corpo estranho ao corpus filosófico. Um corpo estranho capaz de desestabilizar
este corpus tradicional dos escritos filosóficos. Nesse sentido, a pessoalidade que leva a
marca do(s) nome(s) de Nietzsche é ela mesma estranha à pessoalidade - e seus atributos,
corpo, saúde, instintos, etc. - assim como esta é valorizada e concebida pela tradição
filosófica. Nietzsche, ao trazer à cena estes “denegados” pela tradição filosófica, desloca
seus valores, compondo uma outra hierarquia de valores. Desse modo, o filósofo pode
conjecturar que os impulsos interpretam, o corpo pensa, que há uma grande saúde para
além do binarismo de doença x saúde.... E é em Ecce Homo que está “pessoalidade” se
faria mais presente. É justamente neste escrito, em torno de seus outros escritos, que
Nietzsche afirma que se faz necessário se apresentar para que não o confundam,
contrariando aquilo que ele diz ser seu hábito:
Prevendo que dentro em pouco devo dirigir-me à humanidade com a mais
séria exigência que jamais lhe foi colocada, parece-me indispensável dizer
quem sou. Na verdade já se deveria sabe-lo, pois não deixei de “dar
testemunho” de mim [...] Nessas circunstâncias existe um dever, contra o qual
no fundo rebelam-se os meus hábitos, e mais ainda o orgulho dos meus
instintos, que é dizer : Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo não me
confundam! (NIETZSCHE, EH, prólogo, § I, p. 17)

O filósofo afirma ter dado testemunho de si ao longo de seus escritos, mas seu
hábito, e ainda mais, o orgulho de seus instintos, se revoltam contra o ato de apresentar-
se, de dizer quem ele é, ato que segundo Nietzsche se tornara um dever sob as
circunstâncias em que se encontrara. E que hábitos são esses que vão contra o clamar ao
outro que se lhe reconheça assim como ele é? Certamente não o de um perscrutador das
próprias profundezas, um psicólogo como é imaginado no sentido tradicional, como
alguém que se conhece profundamente, que desvendou a si desde as profundezas da
natureza humana, como alguém que levou a cabo o ditame - arché do ocidente: “conheça-
te a ti mesmo”. Derrida coloca sobre este hábito de Nietzsche que:

108
Ele se obriga a dizer quem ele é, o que vai contra seu hábito natural que o incita
a se dissimular sob máscaras. Vocês sabem que o valor de dissimulação nunca
deixa de ser afirmado. A vida é dissimulação. Ao dizer “ich bin der und der”,
ele vai, ao que parece, contra o instinto de dissimulação. [...] Mas de outro
lado, essa exibição auto-apresentativa do “Ich bin der und der” poderia bem
continuar sendo uma artimanha da dissimulação (DERRIDA, 1985, p. 10)

Seu hábito, então, seria o dissimular-se, atividade própria da potência da vida, sob
as tantas máscaras “elegidas” e, contrário a isto, estaria o ato de apresenta-se “como se
verdadeiramente é”. Ato que se anuncia como uma promessa de Ecce Homo, o que lhe
aproximaria de uma aparente “autobiografia”. Mas a ressalva de Derrida deve ser levada
em conta, pois muito bem poderia Nietzsche estar uma vez mais dissimulando ao
apresentar-se como ele “verdadeiramente é” a partir de sua declaração:

Ela nos enganaria outra vez se nós a entendêssemos como uma simples
apresentação de identidade, supondo que nós já saibamos o que está envolvido
em uma apresentação de si e em uma declaração de identidade (“Eu, fulano”,
“eu, fulana”, sujeito individual ou coletivo, “Eu, a psicanálise”, “Eu, a
metafísica”). (DERRIDA, 1985, p. 10)

Trata-se, portanto, não de uma simples apresentação de sua identidade pessoal,


pois veremos como esta apresentação de si por parte de Nietzsche comporta um outro
registro de identidade que não se fundamentaria no modelo tradicional de sujeito. Desse
modo, para apresentar-se Nietzsche (1995, prólogo, p.21) se compromete a narrar-se a si
mesmo e sua vida: “Eis porque me conto a minha própria vida”. Porém, para isso, o
filósofo lança mão não de um argumento racional, factual, mas de um enigma:

A fortuna de minha existência, sua singularidade talvez, está em sua fatalidade:


diria, em forma de enigma, que como meu pai já morri, e como minha mãe
ainda vivo e envelheço. Essa dupla ascendência, como que do mais elevado e
do mais rasteiro degrau da vida, a um tempo décadent e começo – isso explica,
se é que algo explica, tal neutralidade, tal ausência de partidarismos em relação
ao problema global da vida, que acaso me distingue. Para os sinais de Ascenção
e declínio , tenho um sentido mais fino do que homem algum jamais teve, nisto
sou o mestre par excellence - conheço ambos, sou ambos. (Nietzsche, EH,“Por
que sou tão sábio”, I, p. 23)

Se o indivíduo, segundo a tradição, se afirma e é concebido como um, uma unidade


em si, como aquele que não se divide, um in-dividum, Nietzsche se apresenta a partir de
um duplo, a partir de duplicidades: mãe e pai, alto e baixo, ascensão e decadência, morte
e vida. É esta duplicidade evocada em sua origem que iria lhe marcar sua trajetória e a
aptidão para uma “neutralidade, ausência de partidarismos”. Em questões de decadência

109
e ascensão ele afirma saber ambas as coisas, porque é ambas as coisas, e isto justamente
por sua dupla herança que ainda viveria nele e que faz dele neste assunto o “mestre par
execellence”. Nesta direção, Derrida questiona:

Quais são assim as consequências da dupla origem? O nascimento de


Nietzsche, no duplo sentido da palavra “nascimento” (ato de nascer e
linhagem), é ele mesmo duplo. Dá à luz a partir de um casal singular, a morte
e a vida, o morto e a vivente, o pai e a mãe. O duplo nascimento explica quem
eu sou e como eu determino minha identidade: dupla e neutra. (DERRIDA,
1985, p. 16)

Sua “identidade” é “dupla e neutra” e neste sentido não conforma uma unidade
em si (assim como se concebe uma identidade) mas um jogo de oposições. É preciso,
portanto, se perguntar pela marca desses duplos que aparentemente comportam um modo
de oposição ou ainda uma perspectiva acerca do jogo de oposições. Pode-se dizer que
Nietzsche assinala em sua crítica aquilo que caracterizaria os metafísicos: a crença na
oposição de valores 53. No dualismo próprio à concepção metafísica um dos polos seria
valorizado em detrimento do outro, onde “as coisas de supremo valor tem de ter uma
outra origem, um origem própria” que residiria “no seio do ser, no imperecível, na coisa
em si” (NIETZSCHE, AMB, § 2) enquanto o outro polo representaria o negativo: falta,
decaimento, degradação, falsidade... De outro maneira, afastando-se da dualidade
metafísica pode-se colocar que Nietzsche considera que um oposto desdobra-se do outro;
seu modo de conceber o duplo de não contraporia oposições de um-em-si-mesmo
sobrevalorizado em oposição ao outro-em-si-mesmo desvalorizado, como se cada polo
desta dualidade repousa-se em sua existência sobre si mesmo. Nesta direção, Muller
Lauter (2012, p. 47) afirma que: “Como se sabe, Nietzsche faz largo uso do método de
derivação de um estado de coisas a partir de outro que é oposto”. Além disto, penso que
está derivação de um polo ao outro não apenas desconstruiria a oposição entre dois polos
absolutamente distintos quanto promoveria uma outra perspectiva que não pressupõe a
hierarquia onde, ao privilegiar um polo se precisasse desvalorizar o outro. Nesta
concepção não haveria uma separabilidade absoluta dos polos ou uma autonomia absoluta
entre eles. Nesta direção, o duplo em Nietzsche se caracterizaria muito mais pelo jogo
tensional entre opostos que não se excluem, mas mutuamente se atraem repelindo-se em
tensão a partir de suas diferenças, não se constituindo como uma dicotomia, mas um jogo
de contradições.

53
Nietzsche em Além do bem e do mal afirma que “a crença fundamental dos metafísicos é a crença nas
oposições de valores” Cf. NIETZSCHE, ABM, §2.

110
Neste sentido, é em sua apresentação de si, que Nietzsche vem a nomear e contar
a sua herança, ou melhor, a sua dupla herança: seu pai, a morte, sua mãe, a vida. Os dois
vivem nele - seu pai, sua mãe - a morte e a sobrevida produzindo uma neutralidade e
ausência de partidarismo. Desse modo, sua “neutralidade” não vem de nenhum
afastamento da vida, de alguma distância objetivada, mas desse pêndulo, desse
movimento tensional de ascensão e decadência. Seu duplo não se caracterizaria como
oposição dualista, mas como movimento, mudança de posições, deslocamento de
perspectivas, assim como é colocado pelo autor:

Inclusive aquela arte de filigrama de prender e aprender, aqueles dedos para


nuances, aquela psicologia do “ver além do ângulo”, e o que mais me seja
próprio, tudo foi então aprendido, é a verdadeira dádiva daquele tempo em
que tudo em mim se refinava, tanto a observação mesma quanto os órgãos de
observação. Da ótica do doente ver conceitos e valores mais sãos, e,
inversamente, da plenitude e certeza da vida rica descer os olhos ao secreto
lavor do instinto de décadence – este foi o meu mais longo exercício, minha
verdadeira experiência, se em algo vim a ser mestre, foi nisso. Agora tenho-o
na mão, tenho mão bastante para deslocar perspectivas [...] (NIETZSCHE,
EH, p. 24, grifo meu)

Como Nietzsche narra, tudo que fora apreendido em sua vida vincula-se àquela
dupla natureza de decadência e ascensão que ele afirma constituí-lo, portanto, é a
duplicidade que lhe permite ter diferentes perspectivas hora sob a óptica do doente e hora
da saúde e plenitude, e que constitui na sua vida um longo exercício para, por fim, poder
inverter perspectivas. Inverter perspectivas torna-se a dádiva de um longo exercício
propiciado pela duplicidade que lhe marca. É de suma importância esse jogo de inversão
de perspectiva na obra de Nietzsche, inversão que se mostra mais profundamente como
um deslocamento de perspectiva. Nesta direção, é a sua duplicidade, sua “natureza” dual
que lhe permite o deslocamento e plasticidade nas perspectivas. Ora, neste sentido, pode-
se colocar que Nietzsche se afirma, se apresenta, a partir de uma oscilatória duplicidade,
com tudo que isto implica para a noção tradicional de identidade pois, a afirmação do
duplo vem, justamente, abalar a concepção tradicional de identidade, onde o indivíduo é
considerado como um em si mesmo. Com isto apresenta-se uma outra dinâmica de
subjetivação, onde seria concebida uma “identidade” em trânsito, deslocando-se a partir
das diferentes perspectivas alçadas, uma “identidade’ que comportaria em si a alteridade

111
e o jogo de contradição do duplo. Duplo que Derrida irá sublinhar justamente sob o signo
da contradição:

Vocês sabem, pelas origens da “minha” vida: meu pai e minha mãe, ou seja,
mais uma vez o princípio de contradição na minha vida, entre o princípio de
morte e o princípio de vida, o fim e o começo, o baixo e o alto, o
degenerescente e o ascendente, etc. Esta contradição é minha fatalidade. Ora,
ela está de acordo com a minha genealogia mesma, com meu pai e com minha
mãe, com aquilo que, na forma de enigma, eu recuso, como a identidade de
meus pais: em uma palavra meu pai morto, minha mãe viva, meu pai o morto
ou a morte, minha mãe a vivente ou a vida. Quanto a mim, estou entre os dois;
isto me cabe, é um “acaso”, e neste lugar, minha verdade, minha dupla verdade
tem um pouco dos dois. (DERRIDA. 1985, p. 15)

Portanto, Derrida pensa o duplo de Nietzsche sob o signo da contradição que


constituindo-se como uma herança seria ao mesmo tempo uma fatalidade e um “acaso”
que se efetivariam como marcas na vida de Nietzsche. Pode-se caracterizar essa
contradição como dinâmica, que possibilitaria, segundo Nietzsche, os principais aspectos
de seu filosofar. Desse modo, estaria em jogo uma contradição criadora, afirmada pelo
filósofo alemão como o aspecto principal de seu filosofar que possibilitaria inverter e
deslocar perspectivas. É esta contradição, marcada sob o dois, que fará Derrida
parafrasear Nietzsche como um “estou entre os dois”. O filósofo de Zaratustra seria ele
mesmo marcado pela contradição do dois, estaria entre o dois desde sua genealogia e
afirmaria essa contradição como essencial para sua vida e sua atividade de pensamento.

É esta contradição que irá marcar as últimas palavras de Ecce Homo, quando
Nietzsche retomará sua questão inicial: “fui compreendido?”, e responderá através de
uma última “assinatura”, de uma performance de assinatura: “–Dionísio contra o
crucificado”(NIETZSCHE, EH, p.117). Aí mais uma vez estaria a marca da contradição
do duplo em jogo, Nietzsche não seria apenas o nome mais identificável com ele de
Dionísio, mas também o crucificado revelando o duplo movimento de ascensão e
declínio. Nietzsche produziria essa performance de assinatura, na qual ele assinaria a
partir de outros dois nomes, e nomes não simples: mas históricos, complexos e míticos.
Portanto, o duplo contraditório é re-apresentado a partir de outros dois nomes e,
principalmente, a partir da luta contraditória que há entre esses dois nomes:

No prefácio assinado “Friedrich Nietzsche” de um livro intitulado Ecce Homo


e cujas últimas palavras são “Fui compreendido? – Dionísio contra o
crucificado”, Nietzsche, Ecce Homo, o Cristo, mas não Cristo, nem sequer
Dionísio, mas antes o nome do contra, o contra-nome, o combate travado entre

112
os dois nomes, eis o que basta para pluralizar singularmente o nome próprio e
a máscara homonímica. (DERRIDA, 1985, p. 11)

Nessa direção, o nome do contra, o contra nome vem radicalizar o princípio de


contradição já existente desde a dupla origem do autor. Nietzsche assinaria mais o nome
do contra, acentuando a contradição dos duplos e o combate existente entre Dionísio e o
crucificado54, entre dois modos de configuração de existência. O que teria por
consequência a desestabilização do nome próprio e da máscara de si mesmo em favor de
uma pluralização singular. Neste sentido, Dionísio contra o crucificado seria mais uma
desidentificação com o nome próprio que uma identificação propriamente dita, mais uma
abertura a pluralização dos nomes. Portanto, em sua “autobiografia”, Nietzsche colocaria
em questão o autos a partir de uma narrativa de si que se compõe pelo jogo do duplo
contraditório, não apenas de um duplo, mas uma multiplicidade de duplos que pluralizaria
a identidade própria, não multiplicando o eu, mas desapropriando a noção de eu a partir
do jogo dos nomes e das máscaras. Ao narrar-se para apresentar-se Nietzsche, como é de
seu hábito, acaba por utilizar outros nomes, outras máscaras produzindo mais enigmas do
que se apresentando a partir de uma identidade própria, ou melhor, este seria seu modo
de apresentar-se, com isto, o princípio de identidade que seria próprio de uma
autobiografia ficaria desestabilizado a partir das duplas contradições. Dentre essas duplas
contradições presentes em Ecce homo, Derrida desdobra com maior atenção o par da vida
e da morte, onde morte e vida, não mais estruturadas como um par dicotômico de
oposições, marcariam a escritura de toda autobiografia. A morte não apareceria como o
desfecho de uma vida mas como uma potência singular que precede qualquer narrativa
de si mesmo, possibilitando inclusive a vida a ser narrada.

54
Estes nomes e o combate travado entre eles se expressaria a partir de modos de existência com sentidos
completamente diferentes quanto à questão do sofrimento, do valor da vida e da morte, em seus fragmentos
póstumos Nietzsche assim desdobra a questão do Dionísio contra o crucificado:
Dionísio contra o “Crucificado”: aí tendes a oposição. Não é uma diferença quanto ao martírio – é só que
ele tem outro sentido. A vida mesma, sua eterna fecundidade e retorno, condiciona o tormento, a destruição,
a vontade de aniquilamento. No outro caso, o sofrer, “o crucificado como inocente”, vale como objeção
contra esta vida, como fórmula de sua condenação. – Adivinha-se: o problema é do sentido do sofrer: se é
um cristão, se é um sentido pagão. [...] O deus na Cruz é uma maldição sobre a vida, um dedo apontado
para redimir-se dela – ; o Dionísio cortado em pedaços é uma promessa de vida: eternamente renascerá e
voltará da destruição. (FP, 13:14 [89] 1888-1889).

113
2.6 A-vida-a-morte

O filósofo argelino em Otobiografias elege o par conceitual vida/morte advindos


do duplo pai-mãe para desdobrar suas reflexões em relação ao autobiográfico. Busca,
então, pensar o problema da vida e da morte em relação ao autobiográfico, justo porque
Nietzsche teria sido o único a ocupar-se da filosofia, da vida e da morte colocando em
jogo seu nome. Nome que é segundo o autor, “sempre e a priori o nome de um morto”
(DERRIDA, 1985, p. 59). Nesta direção, Sebastian Chun (p. 21 apud CRAGNOLINI,
2018) investigando as relações entre Nietzsche e Derrida a partir de Otobiografias se
pergunta em torno deste nome de um morto: “Porque? Porque o nome como todo conceito
mata aquele que nomeia”. E mais a adiante retoma a questão: “E aqui retoma a pergunta:
Quem assina? Um morto, sempre, e essa morte será a garantia tanto da vida que ali se
anuncia como da ordem que o signatário pretende legitimar.” (CHUN , p. 21 Apud
CRAGNOLINI, 2018)

Pode-se colocar, então, que a morte inscrita no nome que assina torna-se condição
do autobiográfico e do relato de uma vida, a morte seria mesmo a condição de
possibilidade da vida e da autobiografia. Nesta direção pondera Derrida (2018, p.50),
acerca de Nietzsche em Ecce Homo: “ele tem a prova de que o ‘Eu vivo’ é um preconceito
(e, portanto, a causa do efeito de um assassinato que se segue a priori, um preconceito)
ligado ao porte de um nome, a estrutura de todo nome próprio”(DERRIDA, p.38 Apud
CHUN , 2018, P. 22).Derrida se refere à seguinte passagem onde Nietzsche afirmaria ser
de alguma forma um morto: “Vivo do meu próprio crédito; seria um mero preconceito
que eu viva?... Basta-me falar com qualquer “homem culto” que venha à Alta Engadina
no verão para convencer-me de que não vivo... ( NIETZCHE, EH, prólogo, §I)

Deste modo, Nietzsche por um lado se consideraria frente aos outros, que não o
reconhecem, um morto e só viveria por conta de seu próprio crédito. Não havendo,
portanto, um eu vivo a priori a partir de um nome, seria necessário para narra-se entretecer
um eu fictício. Neste sentido, o eu não passaria de uma ficção útil para dar sentido para a
vida e “configurar a experiência de um mundo possível” (CHUN, p.22 apud
CRAGNOLINI, 2018). E o “eu vivo” seria um preconceito ligado ao porte de um nome
colocado como se existisse a priori no relato autobiográfico e como se houvesse um
sentido da vida também a priori. De outro modo, Chun explicita que “não apenas o

114
assinante é uma ficção criada pela mesma assinatura, senão também a vida”. (CHUN,
p.22 apud CRAGNOLINI, 2018). A vida seria, portanto, um efeito da morte e, no caso
do autobiográfico, da morte que perpassa toda assinatura que virá a possibilitar todo e
qualquer relato de vida. É nesta direção que Derrida irá entender a passagem de Ecce
Homo na qual Nietzsche afirma ser ele mesmo o pai, a morte, a mãe, a vida. Nietzsche é,
ele mesmo, este duplo que se conjuga sob a forma: a-vida-a-morte55 . Entende-se que os
dois, vida morte, não estão separados, mas, de outro modo, conjugados. É essa conjugação
que, perpassando o texto de Ecce Homo, vem a dar uma outra dinâmica a sua textualidade.
Nesta direção Chun argumenta que:

Não há um Nietzsche, um autos vivo ao que remitir como chave de acesso para
a verdade de sua obra. A sua vez não há uma presença última do signatário que
se esconderia por trás da assinatura Nietzsche, há vida graças a essa morte
anunciada desde sempre no nome...” (CHUN, p. 22 Apud CRAGNOLINI,
2018)

A marca da morte no nome impede, portanto, que Nietzsche se constitua como


uma presença enquanto o autor ou sujeito da obra que detivesse em seu texto a “chave
de acesso para a verdade de sua obra”. Do mesmo modo, a morte no nome desestabilizaria
a pretensão da presença última de um signatário sustentador de sua obra. É, enfim, a noção
de um nome do autor portador de sua presença que se mostra impedida de subsistir frente
a essa marca da morte no nome ou da assinatura, o que fica patente no caso de Nietzsche,
quando este anuncia ser o morto a vida. Nesta direção, Derrida (1985, p. 32) procura
explicitar essa outra relação entre morte e vida, ao parafrasear Nietzsche: "Enquanto sou
meu pai, estou morto, sou o morto e sou a morte. Enquanto sou minha mãe, sou a vida
que persevera, o vivente, a vivente. Eu sou meu pai, minha mãe e eu, e eu que sou meu
pai minha mãe e eu, meu filho e eu, a morte e a vida, o morto e a vivente”.

Por isso que a vida-a-morte são conjugadas desta maneira, pois são inseparáveis,
não delimitáveis entre si. E Nietzsche afirmaria ser os dois, dois no qual a-vida-a-morte
precisam ser, deste modo, conjugados, assim como coloca Derrida (1985, p.30): “E eu
conheço, eu sou os dois, seria preciso dizer o dois, o dual ou o duplo, eu conheço o que

55
Pode-se considerar que Derrida faz uso da expressão a-vida-a-morte como um modo estratégico de
deslocar o sentido e a topologia comumente associados a vida e a morte, que as separariam em uma oposição
binarista e dicotômica. Com a-vida-a-morte o filósofo argelino propõe uma outra conjugação que
desconstruiria a oposição tradicional ao expressar a inseparabilidade entre as duas na existência dual de
Nietzsche. Também quanto a questão do nome e da assinatura (que se entrelaçam a interpretação derridiana
do texto de Nietzsche) seria a marca da morte nestes, pois o nome, assim como o conceito, mata a coisa a
que ele se refere, o que possibilitaria o relato autobiográfico de uma vida, vinculando outra estrutura de
temporalidade e relação entre a vida e a morte não marcada por sua tradicional oposição metafisica.

115
sou o dois, a vida a morte. Dois, é a vida a morte. Quando eu digo: não confundam, eu
sou der und der, isto é, o morto a vivente.”.

Além disto, Nietzsche é seu pai, o morto e sua mãe, a vida e sendo os dois
Nietzsche se pluraliza e é também o filho (Derrida1985, p. 32). Isto porque sem a presença
plena de um signatário, graças à morte no nome, os sentidos se disseminam. Ecce Homo
é, portanto, um texto que ilustraria de maneira paradigmática o que estaria presente em
toda escritura: a ausência de uma presença plena do autor que garantiria o sentido do
texto. É nessa direção que o autos do autobiográfico é desestabilizado pela marca da
morte no nome e, com isso, toda a ideia de um sentido e verdade do texto sustentados por
um autor é problematizada. O nome ou assinatura sendo sempre o nome de um morto
possibilita, portanto, a abertura do texto para além do sentido ou da verdade que
supostamente lhe seriam próprios.

Em última instância estamos lidando com uma crítica à ideia de um sujeito-autor


que em sua presença sustentaria o sentido de seu texto, sustentação que só seria possível
graças ao preconceito do “eu vivo” que assinaria seu texto produzindo seu sentido e sua
verdade. De outro modo como o nome ou assinatura é sempre de um morto (já que todo
nome, assinatura ou conceito mata a coisa que nomeia), a ideia de uma sustentação pelo
sujeito-autor de um sentido ou verdade do texto fica abalado. Neste contexto, o sujeito
seria considerado uma ficção para a formalização de um relato autobiográfico, mas
tampouco uma ficção necessária, pois, como visto, Nietzsche procura apresentar-se em
sua narrativa através da duplicidade contraditória, quando não em uma pluralidade, que
escapa ao modelo identitário e unitário da ideia de um sujeito. Nessa direção, em Ecce
homo apresenta-se uma concepção de “sujeito” em devir, disseminado que se deslocaria
dos pressupostos metafísicos de unidade e identidade. Com isto a própria concepção de
um sujeito a priori do texto é desestabilizada. Deste modo, o texto apresenta-se de outra
forma para além das leituras tradicionais que buscam através do autos de uma autoria o
sentido ou a verdade dele. Este seria o caso de Ecce Homo, onde a marca da morte no
nome se faz presente na própria estrutura do texto, aparecendo em sua composição
personificada pela mãe e o pai como a-vida-a-morte , onde a própria noção de um centro
regulador capaz de produzir o sentido e a verdade está abalada por uma apresentação de
si que performa a artimanha da dissimulação de si...

116
Nesta direção, a morte de si pelo nome ou assinatura não é pensada negativamente,
mas sim como possibilitadora da vida, do relato autobiográfico, e, também, das
dissimulações de Nietzsche através dos vários nomes e máscaras que não esconderiam
alguém (um si próprio) por detrás, mas seriam manifestações de um sujeito em devir
marcado por esta morte de si. Ainda que a dissimulação seja pensada por Derrida como
uma característica do feminino e da vida, é a morte ligada ao pai, que possibilitaria, pela
morte de si no nome, o devir do sujeito e seus jogos de dissimulação e pluralização. É a
morte de si no nome ou assinatura que possibilitaria então o devir de um sujeito não mais
autocentrado, mas aberto, incluso para a dissimulação de si pelas mascaras, justo porque
não há mais um sujeito no sentido tradicional por detrás delas para se remeter ao próprio,
ao essencial e ao verdadeiro.

Neste sentido, Ecce Homo é um escrito onde a-vida-a-morte aparecem de maneira


demarcada pela própria composição textual como o pai, o morto, a mãe, a vida. Onde a
marca da morte no nome (e com isto do próprio sujeito-autor) possibilita o devir do
“sujeito” na contradição dupla e no uso de máscaras como formas de narrativas
dissimuladas de “si-mesmo”. Dissimulação que aparece de maneira mais nítida, mas
também mais labiríntica no caso de Nietzsche que escreveu suas filosofias através de
enigmas e teatros com seus nomes, assinaturas e máscaras impedindo como esporas as
tentativas de captura do sentido ou da verdade do texto. Nesta direção, a própria ideia de
um sujeito-autor é colocada em jogo quando um escrito autobiográfico não é mais
avaliado a partir do princípio de identidade que fundamenta a ideia de sujeito. O autos
não é mais o elemento definidor e regulador da escritura, já que o “sujeito” da escrita
encontra-se em devir e se “compõe” a partir das narrativas que são tecidas. Desse modo,
não apenas Ecce Homo, mas toda escritura de Nietzsche pode ser lida como um relato
narrativo de si e, de fato, em suas escrituras sua pessoalidade, corpo, saúde e doenças,
nomes e máscaras, estão colocadas em jogo. Nesta direção, Duque Estrada (2014, p. 94)
coloca que: “[...] a compreensão que se constrói de um texto, autobiográfico ou não, só
pode, acredita Derrida, situar-se no espaço de um entre; um entre que, pelo menos a
princípio, não se pode pensar senão como um entre a ‘vida’ e a ‘obra’ [...]”

É este espaço do entre que conformaria a “dynamis” da fronteira entre ‘obra’ e


‘vida’” e que entretece o texto autobiográfico e não apenas este, mas também o texto
filosófico e qualquer escrito. Texto filosófico que a princípio deveria ser, segundo a
tradição, um texto onde a pessoalidade não entraria em jogo, posto que deveria ser claro,

117
objetivo e racional em sua relação com a verdade e o sentido. É neste ponto, como uma
forma de critica a esta pretensão filosófica, que Nietzsche toma outra posição ao colocar-
se em jogo no próprio escrito, enquanto grande parte dos textos filosóficos
permaneceriam sob o “inconsciente disfarce” de suas necessidades fisiológicas. Se
grande parte dos textos filosóficos permanecem sob o “inconsciente disfarce” das
necessidades fisiológicas, isto não quer dizer que neles estas não se inscrevam como
sintomas, ainda que apareçam sob uma outra roupagem de modo “dissimulado”. Todo
texto participaria de uma relação com a vida, assim como “toda vida” participaria de uma
relação com o texto. Por isso, a Derrida lhe interessaria a borda da dynamis como um
espaço tensional entre vida e obra, porque é o espaço onde vida e obra se influenciariam
reciprocamente, pois, como visto, não haveria de um lado o sujeito já fechado em sua
unidade e a obra por fazer do outro, mas ambos estariam por fazerem-se, por tornarem-se
no entre de uma relação de alteridade. É esta relação que apareceria de maneira exemplar
em Nietzsche, através dos seus textos como “espaços” marcados pela vida e pela morte
(os nomes, hábitos, o corpo, as experiências, saúdes...) mas também, pode-se acrescentar,
uma vida marcada por seus textos. E em especial através de Ecce Homo como uma
“autobiografia” onde Nietzsche narra para si sua vida a partir de diferentes interpretações
de seus textos, onde a-vida-a-morte e os escritos estariam amalgamados. Neste sentido, os
escritos são interpretados e narrados por Nietzsche como algo pertencente a sua vida,
rasurando a barra que separaria obra e vida. Contudo, Nietzsche (1985, p. 12), em Ecce
Homo, constata que “Uma coisa sou eu, outra são meus escritos. ”, sugerindo uma
afirmação da diferença e distância que permite a alteridade entre vida e obra, pois aquilo
que parece imperar em Ecce Homo é a relação tensional de confluência entre vida e obra.
Desse modo, a afirmação de Nietzsche parece ser muito mais uma crítica à identificação
unitária entre vida e obra, que faria do sujeito e da obra uma coisa só em uma suposta
fusão, do que uma negação da relação entre vida e obra como esta parece estar presente
no próprio texto e em outros escritos seus. Por isto, pode-se entender porque Derrida elege
Ecce Homo para pensar o problema da autobiografia e, nisto, a questão do autos,
justamente porque é uma obra que trata de uma maneira diferencial a noção de “eu” e
sujeito, onde estes se encontram em devir através de uma duplicidade contraditória.
Escrita onde a figura da morte/ pai é demarcada, fazendo “espelho” à questão da morte
do “eu” na assinatura e no nome, e se configura como uma morte possibilitadora da vida.
Neste sentido, toda autobiografia e, ainda, pode-se colocar, todo texto, é marcado por esta
morte do eu na assinatura e no nome e, com isto, o lugar do sujeito-autor que escreve

118
como o autos que sustenta o sentido e a verdade do texto é desconstruído. Os sentidos
dos textos restam como disseminados ao deixar cair do sujeito sustentador que funcionava
como uma figura paterna e protetora do sentido e da verdade do texto. Nesta direção,
ficariam desestruturadas as leituras que pretendem capturar o sentido e a verdade do texto,
já que não há mais um centro regulador (que corresponderia ao autor) que sustente a
verdade e doe sentido ao texto. Com a desconstrução do sujeito-autor, enquanto origem
e centro regulador do sentido e verdade do texto, este se abre para o endereçamento ao
outro, ao leitor que se torna então fundamental para o acontecimento do texto, pois esse
torna-se então um acontecimento em porvir. É interpretando Nietzsche, principalmente a
partir do Ecce homo, que Derrida sublinha como será discutido o deslocamento radical
de posições, anteriormente atribuídas ao autor e ao leitor, questionando toda uma lógica
autocentrada no sujeito a partir da marca da alteridade.

2.7 O ouvido do outro

Na leitura de Derrida a interpretação do outro (do leitor) passa a ser fundamental


no acontecimento do texto performando uma contra-assinatura que assinaria junto ao
autor-assinante a escritura. O outro é concebido nesta dinâmica como o ouvido que irá
contra-assinar em sua escuta ativa do texto a escritura. Assim, é o ouvido do outro que
assina e por isso é no lado do endereçado que acontecerá a assinatura. Desse modo,
pondera Derrida que:

De alguma forma a assinatura acontecerá do lado do endereçado e é do lado


dele ou dela, cujo ouvido estará afiado suficiente para ouvir meu nome, por
exemplo, ou para entender minha assinatura, com a qual eu assino. (...) Em
outras palavras, para abreviar minhas observações num estilo lapidar, é o
ouvido do outro que assina. O ouvido do outro me diz para mim e constitui o
autos da minha autobiografia. [...]. Quanto a Nietzsche, por exemplo, somos
nós quem temos que honrar a sua assinatura interpretando a sua mensagem e o
seu legado politicamente (DERRIDA, 1985, pp. 50-51, grifo meu).

O filósofo afirma que é o “ouvido do outro que assina” e assina justo porque a ele
cabe o trabalho de interpretação da mensagem na qual se pode honrar ou não uma
assinatura. E pode-se acrescentar, um ouvido pode ser afiado, ou não para a interpretação
de uma escritura. Nisto, a atuação do autos de perfomar sua assinatura e erigir o sentido
do texto é completamente deslocada, ao ser colocado ao lado do endereçado, do ouvido
do outro. É o ouvido do outro que então constituirá o autos de uma autobiografia. O
ouvido ouve e interpreta a mensagem, o nome e a assinatura para a partir desse trabalho

119
contra-assinar como se fora o autos de uma autobiografia. Sobre esse tema Derrida
constrói uma interpretação da seguinte passagem de Nietzsche:

Prevendo que dentro em pouco devo dirigir-me à humanidade com a mais séria
exigência que jamais lhe foi colocada, parece-me indispensável dizer quem
sou. Na verdade, já se deveria sabê-lo, pois não deixei de “dar testemunho” de
mim. Mas a desproporção entre a grandeza de minha tarefa e a pequenez de
meus contemporâneos manifestou-se no fato de que não me ouviram, sequer
me viram. Vivo de meu próprio crédito, [eu estou vivendo sobre meu próprio
crédito, sobre o crédito que abro e concedo a mim mesmo]: seria um mero
preconceito que eu viva?... (NIETZSCHE, EH, p.17)

É em torno dos créditos abertos por Nietzsche em relação à existência de “sua”


própria vida que Derrida irá pensar a participação do ouvido do outro, pois este crédito é
aberto em seu nome, mas, também, segundo o filósofo argelino, em nome de outro que
poderá honrar o contrato deste crédito: outro que fará com que a vida de Nietzsche possa
ser ou não apenas um preconceito. A sua vida será “sua” (a vida que ele conta para si
mesmo) por efeito deste contrato secreto, e este contrato deve ser honrado justamente
pelo outro, pelo ouvido do outro que viria a contra-assinar a assinatura do texto de
Nietzsche. E se algo retorna do outro, este retorno não será ao vivente Nietzsche, mas ao
nome do vivente como nome de um morto. Portanto, o contrato secreto dos créditos que
é feito em seu nome é também feito em nome de um outro que virá a ouvir a vida que
Nietzsche conta a si mesmo. Nesta direção, afirma Derrida:

Logo se prevê a consequência: se a vida que ele vive e conta para si mesmo
(“autobiografia”, dizem eles) não é em primeiro lugar sua vida senão por efeito
de um contrato secreto, de um crédito aberto e codificado, de um
endividamento, de uma aliança ou um anel, logo, enquanto o contrato não for
honrado, e ele não pode sê-lo senão pelo outro, por exemplo, você, Nietzsche
pode escrever que sua vida talvez não passe de um preconceito,” (DERRIDA,
1985, p. 9)

Derrida entrevê em sua leitura do “crédito aberto e codificado” por Nietzsche a


disposição de ser honrado pela interpretação do outro que venha como um ouvido ouvir
a mensagem de sua assinatura para que sua vida não seja um mero “preconceito”. É esse
crédito aberto que funciona como um endividamento, uma aliança ou um anel que visa o
ouvido do outro para que a vida, “sua” vida, deixe de ser um mero preconceito e retorne
como vida sobre seu nome como o nome de um morto. O outro virá sempre no futuro,
ainda mais no caso de Nietzsche que afirma ele mesmo ter nascido póstumo. No mesmo
sentido Nietzsche tantas vezes se dirige aos póstumos, aos filósofos do futuro, aos que
virão honrar esse contrato e crédito aberto. Nesta direção Derrida coloca que:

120
De acordo com a lógica que eu tentei reconstituir ontem, a assinatura de
Nietzsche não acontece quando ele escreve. Ele diz claramente que ela
acontecerá postumamente, conforme a linha de crédito infinita que ele abriu
para ele mesmo, quando o outro vem assinar com ele, se juntar com ele em
aliança, para então, ouvi-lo e entendê-lo. (1985a, p. 50-51)

Desse modo, pode-se entender que é a própria assinatura que acontecerá


postumamente e não quando é escrita por Nietzsche, mas quando virá, então, o ouvido
afiado do outro em aliança e anelo para ouvi-lo e entendê-lo perfomando uma contra-
assinatura que será, então, como uma assinatura conjunta deste contrato da linha de
crédito infinita que Nietzsche abrira para si no aguardo deste outro. Essa leitura de Derrida
da assinatura de Nietzsche pode ser abrangida para toda assinatura de qualquer escritura,
se toda assinatura é entendida como a de um morto que necessita do trabalho do ouvido
do outro para a firma da futura contra-assinatura. Lógica dos créditos abertos pela
assinatura de um morto que tornar-se, para Derrida, exemplar através do apelo do filósofo
alemão.

É, neste sentido que, problematizando a autobiografia, Derrida cria em paródia o


termo otobiografia com a ideia de oto, como ouvido/orelha, para pensar como o ouvido
do outro é fundamental na assinatura/interpretação de uma escritura e de como o autos (o
eu da autobiografia) se desloca a partir de certa lógica do ouvido, estando muito mais do
lado do ouvido do outro do que na do sujeito-autor clássico que assinaria sua própria
autobiografia. E isto também por causa da lógica da assinatura, que no lugar de ser a firma
que é estabelecida pelos autos da autoria do autor e da autoridade deste é compreendida
como a assinatura de um morto, desestruturando, com isto, o poder que concedia ao autor,
o porte e o sustento da verdade e do sentido de sua obra. Com isto, caberia ao ouvido do
outro o trabalho da escuta das mensagens de um sentido disseminado, e é nesta direção
que caberá a ele a contra-assinatura de uma escritura. Nesta perspectiva, Silva e Ferreira
colocam:

O ouvido do outro, ao assinar, dizer “sim” e constituir o autos da otobiografia,


contra-assina. Todo texto - autobiográfico ou não - assinado por um autor,
espera, necessariamente, ser contra-assinado por um leitor. Dito de outro
modo, é a partir do gesto de contra-assinatura que o texto acontece, uma vez
que ele não está reduzido a uma única verdade, ou a um significado
absoluto/dado (SILVA e FERREIRA, 2013, p. 71)

121
Conforme colocado, é por não estar reduzida a uma verdade ou significado
absoluto/dado e, acrescento, porque não garantida e sustentada pela figura do sujeito-
autor, que uma escritura “necessita” do trabalho interpretativo do ouvido do outro para o
estabelecimento de uma contra assinatura e para a assunção de um sentido a partir deste
trabalho interpretativo. Com isto, pode-se colocar que toda escritura, ainda que não
autobiográfica, traria rastros do otobiográfico, já que é assinada por um morto e esperaria
por isto uma contra-assinatura de um leitor. Assim, o ouvido não faz apenas receber e
entender, mas tem um caráter “ativo” no seu trabalho de interpretação a partir da
disseminação da escritura. Desse modo, a escritura só acontece na alteridade com este
outro que é o ouvido em seu trabalho de interpretação. Além disto, toda escritura performa
um “eu” (um autos) que não se auto diz, não possui uma identidade presente a si mesmo,
mas só existirá, virá a acontecer em uma relação de alteridade com o outro, com o ouvido
do outro que lhe diz “sim” e vem contra-assinar conjuntamente. Nesta direção, o “eu” do
autor se inscreveria no texto como o espectro de um morto que vem a ser recebido pelo
ouvido do outro em uma relação de alteridade, não se constituindo, portanto, como um eu
presentificado e pré-estabelecido. Nesta direção, o ouvido do outro performaria a função
de alteridade necessária para que a escritura venha acontecer, se constituindo como aquele
que vem contra-assinar conjuntamente o texto Portanto uma escritura não existe em si
mesma, não tem uma identidade fechada, mas vem a acontecer em função da alteridade
do ouvido outro.

Um outro aspecto do ouvido do outro seria sua constituição labiríntica (um outro
paralelo com a escritura Nietzschiana que por sua multiplicidade de vozes e mascaras se
entreteceria como um labirinto), e por ser labiríntico o ouvido do outro não constituiria
em seu trabalho interpretativo uma síntese ou uma racionalização do texto, unificando o
que estaria desunificado e em disseminação, mas escutaria interpretando justamente essa
disseminação dos sentidos. De acordo com Silas B. Monteiro em seu artigo em torno do
texto Otobiografia:

A metáfora despertada pela escuta conciliasse com a de labirinto: o ouvido, em


sua anatomia, aproxima-se da forma labiríntica. O elemento de composição
ot(o), no dicionário Aurélio, tem, entre outros, o sentido de “labirinto
membranoso” parte da fisiologia do ouvido interno. Escutar, portanto, é
percorrer o labirinto das significações das forças presentes na produção
humana, nos escritos, na autobiografia. (MONTEIRO, 2007, p. 481)

122
Deste modo, a escuta do ouvido do outro estaria sempre atrelada ao labirinto das
significações de forças disseminadas de uma escrita, seja ela autobiográfica ou não. E é
essa escuta labiríntica que produz uma interpretação e desse modo possibilita a
singularidade de toda contra-assinatura. Porém, o labirinto não estaria apenas nos ouvidos
ou no texto, mas no entre desta relação de alteridade do texto ao ouvido. Por ter seu
sentido disseminado toda escritura se aproximaria da metáfora do labirinto que dobra
aonde se queria ter a retidão da racionalidade do sentido e escurece no lugar da luz da
verdade. Desse modo, por não conter uma verdade e um sentido único, toda escritura seria
um pouco labiríntica. Nesta perspectiva, é que se pode pensar o labirinto como um entre,
entre o ouvido do outro e a escritura, participante dos dois sem ser necessariamente
propriedade de nenhum dos dois. Neste cenário labiríntico o sujeito clássico, seja ele autor
ou leitor, concebido como uma unidade fica, por assim dizer, perdido, pois assim como
o texto é disseminado em seus sentidos, a escuta do outro, no trabalho de interpretação
da escritura, requer um para além da unidade, requer uma multiplicidade de posições na
escuta das significações das forças presentes .

Portanto o trabalho de interpretação do ouvido do outro percorre um labirinto,


por assim dizer, movente, para em sua escuta, contra-assinar a escritura de um outro.
Somente com este percurso labiríntico que requer um trabalho de interpretação ativo no
qual se constitui a alteridade é que o ouvido vem a assinar de modo honrado a escritura
do outro. E é nesta relação de alteridade labiríntica que a escritura vem a acontecer
juntamente com a contra-assinatura que não estabelece o sentido e a verdade do texto,
mas apenas uma interpretação. E uma interpretação, dentre outras possíveis, haja visto
que o sentido da escritura é um sentido disseminado, podendo, por isso, ser interpretado
de múltiplas maneiras, a partir de diferentes singularidades e diferentes alteridades. Nesta
perspectiva, todo texto, como o texto de Nietzsche, é em algum grau aberto para o futuro,
isto porque seu sentido não está predeterminado e nem é único e não há uma verdade que
lhe institua o que faz com que toda interpretação seja apenas uma interpretação dentre
outras possíveis. Se não há a verdade do texto, podem-se criar “verdades” (interpretações)
a partir de múltiplas perspectivas. É a partir de sua disseminação que o texto permanece
aberto para o futuro porque seus sentidos vêm acontecer a partir da alteridade entre o
ouvido do outro e a escritura. Assim, cada contra-assinatura selaria a singularidade do
trabalho de escuta de uma relação de alteridade entre o ouvido do outro e a escritura,
produzindo a abertura do texto que se dá sempre no tempo do porvir.

123
Nesta direção, é o trabalho de interpretação do ouvido do outro que é ressaltado
como criador dos sentidos de uma escritura a partir do jogo da alteridade instituído e é,
por isso, que é dele a contra-assinatura que vem a posteriori e que libera o acontecer do
texto em seu porvir. É o outro que produz a alteridade necessária para o acontecer do
texto em sua singularidade e só se realiza um texto neste acontecer da interpretação do
ouvido do outro. Desse modo, cada trabalho de interpretação do ouvido do outro é uma
produção de singularidade do texto em seu porvir. Derrida comentando a importância do
ouvido do outro na autobiografia afirma que:

O ouvido do outro fala de mim para mim e constitui o autos de minha


otobiografia. Quando, muito mais tarde, o outro terá percebido com um ouvido
suficientemente aguçado o que eu terei dirigido ou destinado a ele ou a ela, aí
minha assinatura terá ocorrido. (DERRIDA, 1985, pp. 50 -51)

Em uma autobiografia em que o autos engendrador do sentido e da verdade (sobre


si, sobre uma vida, sobre o texto) deveria estar tradicionalmente centrado sobre o autor,
Derrida pondera que é o ouvido do outro que engendra o autos e isto em consonância ao
trabalho de interpretação naquilo que lhe fora dirigido ou destinado aonde, então, a
assinatura do autor vem acontecer já como uma contra-assinatura. Portanto, a lógica do
ouvido do outro vem deslocar aquilo que estava comumente estabelecido como o óbvio
acerca do papel do autor como emissário de uma verdade, de um sentido, e o do leitor
como destinatário e receptor. Incluso neste movimento de deslocamento está o pensar a
leitura através do ouvido e um ouvido que é produtor de interpretações singulares e de
contra-assinaturas, e não apenas receptor de um sentido e de uma verdade já
predeterminados. Portanto, a mensagem não está predeterminada, pois escapa do autor
que, por sua vez, só virá a assinar, um tempo depois, junto à contra-assinatura do ouvido
do outro, possibilitando, então, o acontecimento do texto; texto que não estaria ele mesmo
pré-determinado por uma origem (o ato de criação do autor) e um fim dado (o leitor). O
acontecimento do texto é, assim, posterior a sua elaboração pelo autor. Por isso, pode ser
pensando algo como um acontecimento do texto e não um texto-em-sí. Pode-se colocar
que outros sentidos, para além de um sentido originário, circulam no entre desta relação
de alteridade do texto com o ouvido do outro: sem origem, nem fim predeterminados, os
sentidos do texto acontecem em disseminação, abertos para a interpretação singular do
ouvido do outro.

124
Pensando em como de autobiografia chega-se à otobiografia, na qual o oto (de
ouvido/orelha) vem a ocupar a função do autos do eu, pode-se colocar que o ouvido do
outro assume um papel preponderante no acontecer desta escrita, que é a escrita
autobiográfica na qual o autos (eu) que, tradicionalmente, ocuparia o lugar primeiro e
central como sujeito e autor da escrita, da assinatura e do sentido desta escrita, perde seu
antigo lugar e é incorporado, de certa maneira, pelo oto que fará enquanto ouvido a função
de um autos. Mesmo uma autobiografia só aconteceria face ao ouvido do outro e a partir
do jogo de alteridade do texto com o ouvido. A narrativa autobiográfica é então pensada
a partir de um narrador que conta primeiramente sua vida para si, para seu ouvido e,
nisto, precisa tornar-se outro para si. É que mesmo a narrativa de si para si só se
constituiria através da alteridade da própria escuta. Desta maneira Siscar expõe o
problema da narrativa autobiográfica:

A autobiografia é contada primeiramente a si mesmo. Sou alguém que só pode


conhecer a si mesmo como outro; para que me conheça, é preciso que eu me
diga quem sou eu, pois não há escuta silenciosa do eu, não há ‘viva voz’ de
uma consciência presente para si mesma. (SISCAR, 2000, p. 168-169)

Nesta direção, pode-se colocar que o jogo da alteridade está inscrito em todos os
momentos do acontecer da autobiografia e que, mesmo na narrativa do autor para si
mesmo, é preciso que se constitua de certa maneira o ouvido do outro nele mesmo, para
que ele possa se escutar “outramente” e assim produzir sua narrativa. Portanto, neste
esquema que tradicionalmente predominaria o elemento do autos, Derrida infere a marca
do outro e o jogo da alteridade como constituinte do acontecer autobiográfico. Sem a
alteridade do ouvido do outro não haveria o acontecimento do texto autobiográfico e,
pode-se acrescentar, de qualquer texto. Assim, a alteridade pensada essencialmente
através do ouvido do outro se torna fundamental para pensar o acontecimento do texto.
Deste modo, o autos que tradicionalmente se constitui como elemento estruturante do
texto autobiográfico é deslocado de sua posição central e pensa-se então o oto e sua
relação de alteridade com o texto. Portanto, pode-se afirmar que não há um texto em si
mesmo, já fechado e estruturado em seu sentido e sua verdade, e também já constituído
por um autos de um sujeito/autor, mas sim textos que vêm acontecer em sua abertura para
o trabalho de interpretação do ouvido do outro.. É, portanto, a alteridade que libera o
acontecer do texto e não o autos de um sujeito-autor que realizaria o sentido e a verdade
de um texto selado com sua assinatura.

125
Neste sentido, o autos parece, em um primeiro momento, sofrer uma inversão de
lugar: se antes ele era valorizado por uma leitura tradicional a partir do autor como central
e primordial, ele apareceria como desvalorizado em detrimento do oto. Entretanto,
Derrida elabora um deslocamento do autos que passa então a ser articulado ao ouvido
(oto) e seu trabalho de interpretação e na forma da contra assinatura. Com isso, pode-se
colocar que o autos, antes enclausurado em uma suposta identidade, se abre para a
alteridade, haja visto sua articulação com o ouvido (oto) do outro. Portanto, o autos é por
esta via contaminado pelo oto e sua função de alteridade, abrindo-se de seu
enclausuramento em si mesmo; nesta direção o eu passa a ser concebido em função da
alteridade e não pré-existindo em relação ao outro. O ouvido do outro sendo o autos de
uma autobiografia, e não o autor que tradicionalmente o seria, se constitui como elemento
primordial desta cena que é o acontecimento de um texto. Por ser esse órgão labiríntico e
aberto por excelência o ouvido do outro aparece como elemento central na alteridade com
o texto e, ao mesmo tempo, como o autos que constitui o texto autobiográfico, logo, a
alteridade e o autos se relacionariam e se contaminariam a partir do ouvido do outro. A
alteridade e o autos se relacionariam e se contaminariam porque o eu passa então a se
constituir mediante a alteridade do ouvido.. Nesse sentido, autos e alteridade tornam-se
inseparáveis a partir do ouvido do outro e deixam de ser um par dicotomicamente dividido
em opostos assim como se é entendido tradicionalmente. O ouvido do outro é concebido
como lugar de entrecruzamento destes elementos aparentemente opostos e dicotômicos.

Desse modo, pode-se afirmar que o texto de Nietzsche é um texto a ser


interpretado/escutado: tarefa que Derrida performa em Otobiografia, a partir de Ecce
Homo, mas também de outros textos 56, expondo a singularidade de sua interpretação para
pensar os problemas da autobiografia, do autos, da vida da morte, do nome próprio e da
assinatura, o que faz com que o texto de Nietzsche renove suas forças a partir de uma
alteridade singular. Neste sentido, Derrida nos oferece uma escuta aguçada que abre os
sentidos do texto de Nietzsche para outros porvires inauditos. Com sua
interpretação/escuta de Ecce Homo Derrida nos faz pensar em questões que
problematizam lugares comuns na leitura do que é uma autobiografia, o eu, o outro e a
assinatura. Nesta perspectiva, sua leitura engendra questões que não estavam
predeterminadas pelo texto ou pelo autor do texto, mas que em sua interpretação ganham

56
Faço maior destaque a Ecce Homo pois as passagens que trabalhei de otobiografia neste capítulo fazem
referência a este texto.

126
um sentido singular. Então, pode-se dizer que o texto de Ecce Homo vem a acontecer de
modo singular a partir do encontro com a alteridade que traz o ouvido deste outro que se
chama Jaques Derrida. A leitura deste texto torna-se, portanto, outra através do encontro
com o texto de Otobiografia.

A partir de Ecce Homo, um texto considerado tradicionalmente como


“autobiográfico’, são levantados em Otobiografias inúmeros problemas para a questão da
identidade do texto e do sujeito-autor, mas também é a partir daquele que são pensadas
diferentes perspectivas para o que vem a ser uma autobiografia e um texto em geral.
Perspectivas derridianas que acabam por deslocar de suas estruturas os elementos
tradicionais do que seria uma autobiografia, começando pelo tema da vida e da morte
onde a-vida-a-morte seriam repensadas desta forma como inseparáveis, passando pelo
problema da assinatura e do nome próprio, tratando ainda do tema da autoria, do autor e
do leitor e por consequência da identidade, do sujeito, da alteridade e do outro. Com a
interpretação derridiana sobre Nietzsche e as questões do sujeito pensadas a partir do
problema da alteridade, pode-se confirmar o caráter póstumo do texto do filósofo alemão
que não apenas criou precedentes para o questionamento em torno do sujeito quanto se
mostra pertinente para produzir problemas no âmbito do pensamento contemporâneo. No
capítulo seguinte pretendo em um primeiro momento analisar a interpretação derridiana
em torno do sujeito, a partir de sua leitura de Freud, que evidencio como uma radical
problematização do sujeito. Busco ainda analisar como o pensador argelino relaciona o
texto de Freud sobre os traços ao discurso nietzschiano da força que procuro analisar
como fundamental na desconstrução do sujeito. Entendendo o texto como uma escritura
e está como uma “operação originária”, Derrida concebe a partir do pensamento de Freud
a noção de um sujeito da escritura e é em torno desta que retomarei por último o discurso
nietzschiano do perspectivismo como um dispositivo para problematizar o sujeito
moderno.

127
CAPÍTULO 3 – OUTRAS
ESCRITURAS (FREUD, DERRIDA E
NIETZSCHE)

Como proposto no capítulo anterior, a interpretação derridiana sobre o texto de


Nietzsche faria o desdobramento, por meio de uma problemática da alteridade e da
diferença, da potência do discurso nietzschiano em torno da crítica do sujeito. O problema
da desconstrução e do questionamento do sujeito moderno ganha maiores contornos na
contemporaneidade a partir de um conjunto de discursos (Foucault, Deleuze, Derrida,
Lacan, entre outros). Apostando na potência da interpretação derridiana, gostaria de
destacar o discurso psicanalítico de Freud como um importante elemento no andamento
dessa desconstrução que, de certa forma, teria, como venho propondo, seu marco inicial
com os textos nietzschianos e a atmosfera legada por eles. Para tanto, me ocuparei com a
interpretação derridiana do discurso freudiano enquanto uma estratégia de trabalho de
desconstrução do sujeito moderno na contemporaneidade. Portanto, não interpretarei
diretamente o texto freudiano, por só interessar, aos limites deste trabalho, a leitura que
Derrida faz desse discurso.

Neste sentido, proponho, em um primeiro momento, uma interpretação


intertextual da leitura que Derrida faz de Freud, articulando-o ao pensamento das forças
em Nietzsche. Também procuro como um dos objetivos da análise de “Freud e a cena da
escritura” (DERRIDA, 2002), investigar a noção de sujeito da escritura proposta por
Derrida a partir de sua leitura de Freud,, que problematizada a partir de um pensamento
do traço, se oporia a noção de sujeito clássico em sua vontade autônoma e plena
consciência de si. Por fim, retomo o discurso nietzschiano a partir do problema da
escritura e da linguagem, levando em consideração o perspectivismo como uma espécie
de leitura “escritural” que se efetivaria como uma operação “originária” interpretativa,
desconstruindo o sujeito moderno no que tange tanto a sua construção subjetiva quanto
ao problema do conhecimento.

128
3.1 O pensamento do traço no discurso Freudiano e o pensamento das forças
de Nietzsche

Derrida, em “Freud e a cena da escritura”, problematiza, entre outras questões, a


escritura, o traço, a diferença, as forças e o “sujeito da escritura” que se contraporia a
certa noção de sujeito clássico. Assim como busco tratar o problema do sujeito, creio ser
fundamental acompanhar a problemática suscitada por Derrida em relação ao discurso
freudiano, pensando que o trabalho teórico da psicanálise é um marco para o
questionamento do sujeito clássico que se fundamentaria em uma metafísica da presença.
O trato com a teoria psicanalítica dar-se-á apenas dentro dos limites postos em horizonte
pela leitura de “Freud e a cena da escritura”, texto norteado pela reflexão de que a
“psicanálise se deixa dificilmente conter no fechamento logocêntrico [...]” (DERRIDA,
2002, p. 182), justificando-se ainda pela articulação que Derrida elabora entre certo
discurso psicanalítico do traço e o problema do trabalho das forças em Nietzsche. É,
portanto, em relação ao logocentrismo e sua metafísica da presença que Derrida busca
situar criticamente o discurso de Freud e a cena da escritura. A partir do contexto da
leitura de Derrida em torno de Freud, pretendo desdobrar e explorar a importante e crucial
noção derridiana de traço57 já que esta possibilita melhor compreender aquilo que o
filosofo argelino vem a nomear e problematizar, a partir do discurso freudiano, como
“sujeito da escritura”.

Ao longo de seu ensaio, Derrida procura se ater ao trabalho e ao desenvolvimento


metafórico do discurso freudiano, pois “se esta metafórica é indispensável, é porque
ilumina talvez de ricochete o sentido do traço em geral e depois, articulando-se com ele,
o sentido da escritura no sentido corrente” (DERRIDA, 2002, p. 182).O filósofo, porém,
ressalva que:

É certo que Freud não maneja metáforas, se manejar metáforas é fazer alusão
ao desconhecido partindo do conhecido. Pela insistência do seu investimento
metafórico, torna pelo contrário enigmático o que se julga conhecer pelo nome
de escritura. (DERRIDA,2002, p. 182)

57
Embora comumente a palavra trace (em francês), no contexto da obra de Derrida, seja traduzido por
rastro, com fins de uma aproximação com o discurso de Freud optei por utilizar o termo traço como é
traduzido do texto alemão de Freud e assim como é mantido pela tradução de Maria da silva no artigo
intitulado “Freud e a cena da escritura”.

129
É justamente esse tornar “enigmático” pelo uso das metáforas o que se conhece
correntemente pelo nome de escritura e de traço que torna interessante o discurso
freudiano para a problematicidade da desconstrução do sujeito. Nessa direção, Freud faz
do uso das metáforas uma problematização do traço e da escritura em sua relação com o
sujeito e seu psiquismo, trama a partir da qual Derrida irá pensar o problema da metafísica
da presença e do logocentrismo em relação com o discurso da psicanálise. Mas como a
questão do traço se insere no discurso psicanalítico? Derrida (2002, p.183), analisando o
desenvolvimento do discurso freudiano, afirma que “Do projeto (1895) à nota sobre o
bloco mágico (1925), estranha progressão: uma problemática da exploração é elaborada
para se conformar cada vez mais a uma metafórica do traço escrito.” 58. É em seu Projeto
que Freud propõe explicar a memória a partir de um discurso relacionado às ciências
naturais envolvendo toda uma discussão em torno da diferenciação entre os neurônios.
Nota Derrida (2002, p.184), porém, que essa “hipótese é notável desde que a
consideremos um modelo metafórico e não como uma descrição neurológica” A
importância de explicar a memória por esse modelo metafórico dos neurônios, proposto
por Derrida está em, como o ressalta Freud, que “toda a teoria psicológica digna de
atenção deve propor uma explicação da memória” (FREUD Apud DERRIDA, 2002,
p.184). Além disso, a problemática da memória se relaciona e se complica com o
problema da percepção. A dificuldade que encontra Freud, segundo Derrida é:

dar conta ao mesmo tempo, como o fará a nota, trinta anos mais tarde, da
permanência do traço e da virgindade da substância e recepção, da incisão dos
sulcos e da nudez sempre intacta da superfície receptiva ou perceptiva.
(DERRIDA,2002, p.184)

É, portanto, em torno deste problema que se apresenta como uma contradição que
se movimenta o discurso freudiano: o de um aparelho psíquico capaz de reter traços, como
o faz a memória, ao mesmo tempo em que permanece sempre aberto para novas inscrições
na percepção. Para isso Freud propõe no Projeto duas espécies diferentes de neurônios,
os permeáveis, que não ofereceriam nenhuma resistência e não reteriam nenhum traço
das impressões, e outros que opondo grades de contato a certa quantidade de excitação,
conservariam o traço impresso e, portanto, se relacionariam a certa representação da
memória. É tal a importância da memória que, de acordo com Derrida (2002, p. 185),

58
Assinalo que optei para uma melhor leitura por traduzir todos os títulos das obras de Freud do francês,
como o utiliza Derrida, para o português.

130
“Freud só concede a qualidade psíquica a estes últimos neurônios”. É nesta direção que o
filósofo pondera sobre a importância da memória no discurso freudiano ao afirmar que
“a memória não é, portanto, uma propriedade do psiquismo entre outras, é a própria
essência do psiquismo”. (DERRIDA, 2002, p. 185) Segundo Freud haveriam inúmeras
explorações59(das forças que dinamizam os traços que se inscrevem na vida psíquica) e,
por estas, vias abertas por meio dos neurônios que opõem grades de contato possibilitando
o surgimento da memória. Nessa direção, como problematiza Derrida (2002, p. 185), seria
necessário que houvesse uma diferença entre as explorações dos traços para existir
memória, pois “a diferença entre as explorações, tal é a verdadeira origem da memória e
portanto do psiquismo. Unicamente esta diferença libera a ‘preferência da via’”. A
diferença nos traços que marcam os neurônios de resistência pela abertura das vias nas
explorações são o que vem a constituir a memória. Porém, Derrida pondera que:

O traço como memória não é uma exploração pura que sempre se poderia
recuperar como presença simples, é a diferença indiscernível e invisível entre
as explorações. Sabemos, portanto já que a vida psíquica não é nem
transparência do sentido nem a opacidade da força, mas a diferença no trabalho
das forças. Nietzsche dizia-o bem. (DERRIDA, 2002, p. 185)

Desse modo, a leitura de Derrida do discurso freudiano faz ressaltar o caráter de


um traço constituído nas explorações das forças que se desvia da possibilidade de sua
recuperação, portanto o traço, assim como o pensa Freud, não estaria implicado com a
metafísica da presença que o instituiria como uma presença simples, mas com o jogo da
diferença entre as suas explorações, por isso não haveria, segundo Derrida (2002, p.185),
“exploração pura sem diferença”. Portanto a vida psíquica não é, como afirma Derrida,
constituída pela transparência do sentido e tampouco pela opacidade da força, pois ambos
modelos interpretativos do psiquismo estariam ainda a seu modo regidos pela
univocidade de um sentido dentro da lógica da metafísica da presença. A vida psíquica
ou a memória desde o traço seriam de outro modo efeitos da diferença no trabalho das
forças, ou seja, seriam “constituídas” pela diferença do trabalho da pluralidade das forças.
Nesse sentido, se não houvesse a diferença no trabalho das forças, “a igualdade das

59 Pode-se explicitar que através da noção de traços constituindo a vida psíquica, Freud elabora toda uma
problemática das explorações. Ora, sendo o traço dinamizado por forças estas constituiriam diante a trama
de neurônios e de suas grandes de contato inúmeras explorações abrindo vias e rotas que inscreveriam os
traços . As forças que imprimem os traços portanto explorariam a rede de neurônios determinando a
memória conformada pelos traços impressos.

131
resistências à exploração ou a equivalência das forças de exploração reduziria toda a
preferência na escolha dos itinerários. A memória seria paralisada. ” (DERRIDA, 2002,
p. 185). Pode-se, portanto, a partir do modelo freudiano de memória, como o interpreta
Derrida, assinalar o caráter dinâmico das diferenças no trabalho da pluralidade das forças
que produzem os traços e suas explorações nos tecidos dos neurônios, o que permite por
sua vez caracterizar a memória como algo dinâmico e não paralisado.

E ainda, no trecho supracitado em destaque, Derrida de modo sucinto, mas


contundente afirma que, em relação à diferença no trabalho das forças Nietzsche dizia-o
bem. Será, portanto, necessário desdobrar esse comentário para bem articular a relação
entre o discurso freudiano e o pensamento de Nietzsche em torno das forças e da diferença
em seus trabalhos. Miguel Barrenechea, em sua obra Nietzsche e o corpo, no capítulo
intitulado “O permanente jogo de forças na totalidade corporal”, afirma que:

Nietzsche, no início de sua obra, emprega os termos trieb (instinto), Instinkt


(pulsão) e Kraft (força) como sinônimos. Todos eles aludem a impulsos
corporais que lutam por mais potência. Mais adiante, veremos que na última
etapa de seu pensamento, o termo força adquire um uso diferenciado, uma
guinada significativa. (BARRANECHEA, 2009, p.76)

Desta maneira, em relação ao início da obra de Nietzsche, a noção de força estaria


restrita aos corpos que seriam constituídos por “forças espontâneas, agressivas,
usurpadoras, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções”
(NIETZSCHE, GM, II, 12 Apud BARRANECHEA, 2009, p.76) . Além disso, “as forças
aparecem numa pluralidade beligerante, num conjunto em que cada uma delas tenta
submeter todas as que se lhe opõem” (BARRANECHEA, 2009, p. 76). Cabe ressaltar
desse fragmento o aparecimento sempre plural das forças, pois, como veremos, para
Nietzsche não existe uma força isolada ao modo de uma entidade ou substância, mas
apenas uma relação beligerante de dominação. E é a característica de permanente
beligerância que forneceria toda dinâmica e movimentação das próprias forças que
querem “garantir” suas expansões e expressões. Desse modo, “a beligerância é a
tendência fundamental das forças, já que, na sua dinâmica, não procuram harmonia ou
estabilidade, mas tendem continuamente ao combate para ampliar seu poder”
(BARRANECHEA, 2009, p, 76). Portanto, assim como não existiria uma força isolada,
também não existiria na dinâmica das forças uma tendência à estabilidade, mas constantes

132
relações beligerantes de domínio e expansão nas quais há o confrontamento entre elas.
Portanto as forças para Nietzsche sempre são caracterizadas no plural e em uma relação
dinâmica de beligerância que nunca tende à estabilidade e à harmonia. Nesta direção,
assinala Barrenechea (2009, p.77que “As outras características marcantes das forças são
sua aparição plural e a configuração de hierarquias, pois não há força isolada, mas sempre
está em relação com outras, com as quais se defronta. Todo corpo é perpassado pela
presença de forças diferenciadas[...].

Para o pensamento de Nietzsche, não há a possibilidade de conceber força como


algo isolado, pois toda força requer outra força de resistência para se defrontar,
dominando ou sendo dominada e assim estabelecendo uma hierarquia temporária de
forças. Nesse contexto, deve-se explicitar que a hierarquia de uma pluralidade de forças
é apenas temporária, pois o que caracteriza as forças são suas dinâmicas beligerantes e
não alguma tendência para a estabilidade, com isso toda força dominante pode em
determinado momento ser a força dominada. Observa o intérprete que “é possível que
cada força, em diferentes momentos, possa mandar ou obedecer, colocar-se como
superior ou inferior, tornar-se mais forte ou mais fraca, agir ou reagir”
(BARRENECHEA, 2009, p. 77). Portanto, o que impera nas forças é o dinamismo
beligerante, nunca um telos em direção a uma estabilidade e ainda que se possa pensar
uma determinada hierarquia como uma estabilidade esta é sempre provisória e constituída
da tensão entre as forças que querem mais potência por intermédio do combate. Além
disso, como observa Barrenechea na passagem supracitada, as forças de um corpo são
sempre diferenciadas e a diferença entre as forças e a tensão que se estabelece com isso é
o que constituiria sua dinâmica relacional de beligerância e seu “trabalho”. Não há uma
força em si ao modo de uma substância ou mônada, mas diferenças entre as múltiplas
forças que instituem suas dinâmicas de beligerância e conflito. Nessa direção, pondera
Barrenechea:

Não há força-em-si, não há mônadas dinâmicas, isto é, as forças aparecem


conjuntamente, num jogo total, numa tensão entre diversos impulsos que a
cada momento configuram uma constelação de forças. Assim o efetivar-se, o
aparecer dessas forças sempre é múltiplo, não deve ser entendido como
manifestação ou efetivação de um substrato escondido ou subjacente, não há
um princípio oculto que seria o responsável por esse jogo de forças: não existe
nada por “baixo” ou por “trás” da dinâmica plural de forças.
(BARRENECHEA, 2009, p. 81)

133
Haveria, portanto, um jogo de forças no qual não há nada por “trás’ ou por “baixo”
que funcionasse como causa, princípio ou qualquer espécie de fundamento metafísico,
mas um jogo de múltiplas e diferentes forças que, em sua tensão beligerante, estabelecem
diferentes e provisórias hierarquias ou constelações de forças. Conforme é observado o
aparecimento dessas forças é sempre múltiplo, dito de outra maneira, só há força dentro
de um jogo de multiplicidade de forças, ou dito de um outro modo, só há força porque há
alteridade de outra (s) forças diferentes, sendo a diferença entre elas o motor da
beligerância. Tal dinâmica da multiplicidade de diferentes forças em constante
beligerância pode ser compreendida como a diferença no trabalho a que se refere Derrida
em relação a Freud. Conforme aponta Barrechenea (2009, p. 82) é a partir da obra de
Nietzsche Para além do bem e do mal que se “apresentará uma importante guinada na
sua concepção de forças. Nessa etapa, ele introduzira os termos de quantum de força,
pontos de forças e centros de forças. ” em que cada força “estaria constituída por diversos
processos infinitesimais [...] a força longe de constituir uma unidade, é, ainda, o produto
de inúmeros movimentos corporais” (BARRENECHEA, 2009, p. 82). Segundo
Barrechenea, a partir desta obra se evidenciaria a influência do físico Boscovich na
mudança de interpretação em torno das forças, quando Nietzsche se inspira na rejeição
do átomo como unidade primordial e mínima da constituição da matéria. Desse modo,
pondera Nietzsche (ABM, §12): “Boscovich nos ensinou a abjurar a crença na última
parte da terra que permanecia firme, a crença na ‘substância’, na ‘matéria’ nesse resíduo
e partícula da terra, o átomo”. Para o pensamento de Nietzsche, no mundo não haveria
nenhuma estabilidade sólida, apenas devir: pontos, centros ou quanta de forças “agindo
uns sob os outros” (BARRENECHEA, 2009, p.83). Não podendo ser concebida
isoladamente, uma força só ganharia sentido em relação à outra que lhe é diferente com
a qual se estabeleceria uma relação de dominação. Sobre a dificuldade de caracterizar as
forças, observa Barrenechea (2009, p.188) que “parece que as características das forças
não podem ser decodificadas pelos conceitos tradicionais, que geralmente aludem a
entidades ou sujeitos”. Portanto as forças não podem ser traduzidas como entidades ou
sujeitos, mas ainda de um modo mais radical ser entendidas a partir de qualquer conceito
tradicional, haja vista que estas noções pertencem ao que Derrida chama de metafísica da
presença no qual há uma tendência a substancialização seja na forma de entidades, seja
na forma moderna de sujeitos.

134
A diferença no trabalho das forças, sugerida por Derrida, pode então ser
compreendida como a tensão beligerante de uma força só existe em relação à diferença
de outra(s) dentro de uma pluralidade. E é a atuação desse princípio de diferença entre as
forças que faz com que uma força nunca possa se constituir como uma força-em-si, mas
sempre em um trabalho beligerante em relação à outra(s) forças. Nesse sentido, a força
jamais poderia ser concebida como uma presença simples e não teria seu sentido e telos
pré-estabelecidos, já que só poderiam organizar-se de modo provisório, a partir da
dinâmica de relações com outra(s) forças. É nesta direção que se torna possível entender
a diferença nas explorações, a que se refere Derrida, que formam os traços que constituem
a memória. A vida psíquica, assim como é concebida por Freud no Projeto seria
percorrida pelo princípio dinâmico da diferença no trabalho das forças. Os traços que
instituem a memória não se dariam por uma exploração pura, mas a partir da diferença
no trabalho das forças que tesionam as diversas explorações, e é neste sentido que o traço
não poderia ser recuperado como presença simples, pois é concebido pela diferença no
trabalho das forças. Por isso, o traço é, segundo a interpretação de Derrida (2002, p.185),
“a diferença indiscernível e invisível entre as explorações”, e, portanto, é ele mesmo uma
diferença em relação a outro traço. Compreendendo o sentido da noção de força em
Nietzsche, sua pluralidade e o princípio de diferença que a constitui, afastando qualquer
possibilidade de uma substancialização ou presença em si mesma da força, pode-se
deduzir que a noção de diferença marcaria como um todo aquilo que Derrida assinala em
Freud sobre a vida psíquica como articulação de diferentes traços. Desde sua leitura do
Projeto de Freud, Derrida estaria atento para aquilo que, no discurso freudiano, não se
deixaria fechar pela metafísica da presença e que se radicalizaria a partir da noção de
traço que caminharia no discurso freudiano para a direção de uma noção de escritura.
Neste sentido, dirá Derrida que

Do Projeto (1895) à Nota sobre o bloco mágico (1925), estranha progressão:


uma problemática da exploração é elaborada para se conformar cada vez mais
a uma metafórica do traço escrito. De um sistema de traços funcionando
segundo um modelo que Freud teria querido natural cuja escritura é
perfeitamente ausente, orientamo-nos para uma configuração de traços que já
não podemos representar senão pela estrutura e funcionamento de uma
escritura”. (DERRIDA, 2002, p. 183)

É portanto, essa “estranha progressão” que Derrida irá refletir, progressão que se
esboça em torno de diferentes nuances do desenvolvimento da noção de traço, que no
Projeto é elaborada a partir de um esquema que Freud teria querido natural (no qual a

135
escritura é ausente, mas o traço já aparece) mas que Derrida já lê em seu caráter
metafórico até um esquema de traços que se inscreve desde a concepção de uma escritura.
É uma progressão com a qual a própria vida psíquica, animada pela dinâmica dos traços
que a constitui em sua totalidade, irá cada vez mais se assemelhar metaforicamente com
a noção de escritura, o que leva a Derrida a refletir em torno da questão do texto, pois:

O que é um texto e que deve ser o psíquico, para ser representado por um texto?
Pois se não há maquina nem texto sem origem psíquica, não há psíquico sem
texto. Qual deve ser enfim a relação entre o psíquico, a escritura e o
espaçamento para que uma tal passagem metafórica seja possível, não apenas
nem em primeiro lugar no interior de um discurso teórico, mas na história do
psiquismo, do texto e da técnica? (DERRIDA, 2002, p.183)

Nessa direção, pode-se compreender que não apenas o psíquico é problematizado,


mas também o que é um texto (e nisto o que é um traço) e a relação que vai se
estabelecendo entre eles no discurso freudiano. A progressão do traço na linguagem das
ciências naturais para o traço como algo pertencente à escritura e ao texto tem como pano
de fundo uma questão que, desde o Projeto, é colocada por Freud: o problema de certa
permanência do traço ao mesmo tempo em que há uma virgindade em sua recepção. É
em torno dessa problemática, que versa sobre os modos da inscrição do traço no
psiquismo, que vão se constituindo as diversas metáforas e imagens do discurso freudiano
sobre o aparelho psíquico, discurso metafórico da vida psíquica que, em seu
desenvolvimento, vai aos poucos se tornando mais próximo de um texto. Já no Esquisse60,
encontramos segundo Derrida (2002, p.191) “o projeto obstinado de dar conta do
psiquismo pelo espaçamento, por uma topografia dos traços, um mapa das explorações.”.
E ainda que não haja no Projeto uma menção à escritura vão-se preparando os elementos
que aos poucos e mais tarde se aproximarão desta pois como coloca Derrida (2002,p.189):
“ embora em nenhum momento no Projeto, a exploração seja denominada escritura as
exigências contraditórias às quais responderá o bloco mágico estão já formuladas em
termos literalmente idênticos: ‘reter permanecendo capaz de receber.’” É, portanto, essa
exigência contraditória que somente será, como veremos, ser respondida paulatinamente
a partir da metáfora da escritura. É um ano depois do Projeto que a metáfora da escritura
ganha corpo no discurso freudiano, segundo a leitura de Derrida:

60
Texto traduzido para o português como Projeto.

136
Aproximadamente um ano mais tarde o traço começa a tornar-se escritura. Na
carta 52 (6-12-96), todo o sistema do Projeto é reconstituído numa
conceptualidade gráfica ainda inédita em Freud, não é de se surpreender que
isto coincida com a passagem do neurológico para o psíquico. No centro dessa
carta as palavras ‘signo’ (zeichen), inscrição (Niederschrift), transcrição
(Umschrift). (DERRIDA, 2002, p.192)

É somente na passagem da interpretação neurológica (assim como é descrito o


aparelho psíquico no Projeto) para o psíquica que o traço começa a aparecer como
escritura e que a noção de memória se apura a partir do princípio da diferença que anima
a atividade dos traços que a constitui. Signo, inscrição e transcrição são noções que fazem
parte do contexto da escritura e ganham uma centralidade no discurso freudiano. Segundo
Derrida com o uso destas noções Freud passa a refletir sobre o modo como operaria a
memória trazendo à tona uma concepção desta que não se deixa capturar por um fetiche
essencialista e se aproxima da noção de escritura :

Sabes que trabalho na hipótese de que o nosso mecanismo psíquico se


constituiu por uma sobreposição de estratos (aufeinandershichtung), quer dizer
que de tempos a tempos o material presente sob a forma de traços mnésicos
(erinnerungspuren), é submetido a uma reestruturação, de acordo com novas
relações, a uma transcrição (Umschrift). A novidade essencial da minha teoria
é portanto a afirmação que a memória não está presente uma única e simples
vez, mas se repete, que ela é consignada (Niederlegt) em diferentes espécies
de signos. (FREUD Apud DERRIDA, 2002, págns192-193)

Nessa direção, é importante assinalar que Derrida está mobilizando, em Freud, a


maneira como o material psíquico sob a forma de traços mnésicos é de tempos em tempos
submetido a uma reestruturação, não permanecendo o mesmo ao diferenciar-se a partir
de novas relações desde onde ocorreria uma transcrição do material. Será na concepção
de memória que Derrida considera a novidade essencial da teoria de Freud: a memória
não estaria presente uma única e simples vez, pelo contrário ela se repetiria e assim seria
consignada em diferentes espécies de signos. Desse modo, pode-se afirmar que, a partir
das novas relações, os traços mnésicos seriam reestruturados, fazendo da memória algo
que não se resgataria uma única vez como uma simples presença. Portanto a concepção
de memória para Freud permite que Derrida proponha que o traço não se deixaria fechar
em uma metafísica da presença. Não apenas o traço, em sua relação com a memória, é
composto, como visto, pela diferença do trabalho das forças nas explorações como

137
também, de tempos em tempos, ela sofreria uma reestruturação. Os traços como visto
nunca podem ser pensados como um elemento fixo e simples enquanto uma presença e,
por conseguinte a memória constituída por eles não é concebida como uma presença
simples.

3.2. Sonhos, uma floresta de escrituras

Derrida percebe que, desde A Interpretação dos sonhos (1900), a metáfora da


escritura vai se consolidando, pois está “vai apoderar-se ao mesmo tempo do problema
do aparelho psíquico na sua estrutura e do problema do texto psíquico na sua textura”
(DERRIDA, 2002, p.193). O texto psíquico vai ganhando sua textualidade já que
“deslocando-se o sonho numa floresta de escritura, a traumdeutung, a interpretação dos
sonhos será sem dúvida, uma primeira aproximação, uma leitura e uma decifração”
(DERRIDA, 2002, p.193). Enquanto uma floresta de escritura, a tessitura dos sonhos irá
se aproximar de uma linguagem hieroglífica e da escrita chinesa ganhando outra relação
com as palavras. Desse modo, constata Derrida que:

É certo que Freud pensa que o sonho se desloca como uma escritura original,
pondo as palavras em cena sem se submeter a elas; é certo que pensa aqui um
modelo de escritura irredutível à palavra e comportando, como os hieróglifos,
elementos pictográficos, ideogramáticos e fonéticos. Mas faz da escritura
psíquica uma produção tão originária que a escritura tal como julgamos poder
ouvi-la em seu sentido próprio, escrita codada e visível “no mundo”, não
passaria de uma metáfora (DERRIDA, 2001, p. 196)

A escritura psíquica se torna uma produção originária particularmente porque pelo


sonho são problematizados o sentido e o lugar da escritura, pois, segundo Derrida(2002,
p.196) a interpretação dos sonhos “não se deixa ler a partir de nenhum código” , à
diferença da interpretação popular dos sonhos que os decifra a partir de um código fixado
de elementos. Nessa direção, pondera Derrida (2002, pp. 196-197) que “não há material
significante ou texto prévio que ele [o sonhador] se contentasse em usar”, portanto o texto
do sonho não tem nenhum sentido original fora dele, assim como o concebe a sabedoria
popular. É nesse ponto que Derrida observa se instaurar a ruptura de Freud em relação à
tradição de leitura dos sonhos e também onde sua perspectiva de escritura psíquica se
aproxima de uma noção na qual não há um código prévio e fixado, Derrida (2002, p.197)
argumenta que “o sonhador inventa sua própria gramática”. Em relação ao processo de
interpretação dos sonhos, Freud o diferencia do saber popular da seguinte maneira:

138
O meu processo não é tão cômodo quanto o do método popular de decifração
que traduz o conteúdo dado de um sonho segundo um código estabelecido; sou
mais levado a pensar que o mesmo conteúdo do sonho pode abrigar também
um sentido diferente em pessoas diferente e num contexto diferente. (FREUD,
p. 109 Apud DERRIDA, 2002, p.197)

Em jogo, está um trabalho de interpretação no qual um conteúdo ou inscrição pode


ter um diferente sentido a partir de diferentes pessoas e contextos. Na interpretação
freudiana dos sonhos entendidos como uma escritura, torna-se mais importante a
radicalidade do elemento diferencial e situacional do que uma leitura que faria de um
conteúdo ou inscrição de sonho o mesmo em diferentes situações a partir de uma
metafísica da presença que insistiria em uma leitura essencialista do conteúdo. A
ausência de um código externo que estabelecesse, como um logos ordenador, um mesmo
sentido para um conteúdo ou inscrição onírica faz com que Derrida encontre na leitura
freudiana dos sonhos uma aproximação de certa concepção de escritura. É o que aponta
o filósofo ao declarar que: “A ausência de qualquer código exaustivo e absolutamente
infalível significa que na escritura psíquica, que anuncia assim o sentido de toda a
escritura em geral, a diferença entre significante e significado nunca é radical”
(DERRIDA, 2002, p. 197). Por não ter um sentido ou significado exterior ao significante,
a escrita psíquica, assim como pensa Freud, pode anunciar o sentido geral de toda
escritura a partir da relação entre significante e significado que seria própria de toda
escritura. Também a escritura na linguagem dos sonhos é concebida como não submetida
à linguagem fonética. É uma outra concepção de linguagem não fonética que, acredita
Derrida, termina por obrigar Freud, ao tentar explicar a relação da memória e da
percepção no traço mnésico, a perseguir então uma metáfora e uma imagem a partir de
instrumentos ópticos que dêem conta da singularidade do aparelho psíquico descrito então
já como uma escritura:

Permanecemos num terreno psicológico e propomo-nos apenas a continuar a


requerer uma representação do instrumento que serve para as operações
psíquicas sob a forma de uma espécie de microscópio complexo, de um
aparelho fotográfico e de outros aparelhos da mesma natureza. A localidade
psíquica corresponde em seguida a um lugar (ort) no interior de tal aparelho,
lugar no qual se forma um dos primeiros estádios da imagem. No microscópio
e no telescópio, bem entendido, só são, em certa medida, localidades e regiões
ideias nas quais não está situada nenhum parte perceptível do aparelho. Julgo
ser supérfluo desculpar-me pela pelas imperfeições destas imagens e outras
imagens semelhantes. (FREUD, p.541 Apud DERRIDA, 2002, p. 206)

139
Freud estaria, segundo Derrida (2002, p. 206), querendo explicar “o negativo ou
a escritura da luz” enquanto uma escritura psíquica, porém essas comparações e
particularmente aquela com um aparelho fotográfico não poderiam resolver o problema
proposto por Freud, em relação à escritura psíquica, de um mesmo sistema que retivesse
as modificações dos seus elementos ao mesmo tempo em que oferecesse uma nova
receptividade a modificações sem perder sua capacidade de recepção. É nesse sentido que
Freud ainda apresenta desculpas pelas imperfeições das imagens pois, como assinala
Derrida (2002, p. 207), serão “necessários dois sistemas numa só máquina. Este duplo
sistema, concedendo a nudez da superfície e a profundidade da retenção, só de longe e
com e com muitas ‘imperfeições’ podia ser representado por uma máquina óptica”. É essa
dupla exigência, aparentemente contraditória, com a qual Freud se preocupa desde o
Projeto, que de algum modo o impulsiona a procurar novas metáforas e imagens para dar
conta da vida psíquica pensada a partir dos traços e já como uma escritura. É, portanto,
com certa parcialidade que Freud aceita a própria imagem formulada a partir de uma
máquina óptica. Joel Birman assinala que:

Em A interpretação dos sonhos, Freud retomou aqui não apenas a descrição da


Carta 52 de forma bem mais elaborada, mas principalmente a retórica
escriturária que caracterizava essa descrição. Nessa perspectiva, o sonho seria
não apenas uma escritura, mas uma escritura de caráter não-fonético de
maneira ostensiva. Foi nesse contexto que o discurso freudiano se valeu dos
modelos da escrita chinesa e egípcia para poder descrever a cena psíquica do
sonho como uma cena da escritura (Derrida 1967b). Mesmo quando apareciam
palavras nos sonhos, o discurso freudiano as considerava uma escrita não-
fonética, em que não aparecia a lógica da escritura fonética (idem). Não
obstante isso, a cena escriturária do psiquismo ainda se conjugaria com um
modelo do aparelho psíquico descrito como uma máquina, na qual o modelo
da escritura não se conjugaria. Em A interpretação dos sonhos, são os modelos
ópticos “o microscópio e o telescópio ” que serviam de metáforas para Freud
descrever o aparelho psíquico, da mesma forma que no “Projeto de uma
psicologia científica” foram as metáforas neurobiológicas (BIRMAN, 2007,
sem paginação)

É nesse sentido que, com A interpretação dos sonhos, a concepção da vida


psíquica como uma escritura se desdobra no discurso freudiano, pois a partir do trabalho
de interpretação do sonho este adquire cada vez mais o sentido original, não apenas de
uma escritura em geral, mas de uma escritura não fonética se aproximando da escritura
chinesa e egípcia com seus hieróglifos em que o que mais importa é o elemento diferencial
de cada traço em relação aos outros. Desse modo, segundo Derrida (2002, p.207), “A
escritura geral do sonho supera a escrita fonética e volta a pôr a palavra em seu lugar.
Como nos hieróglifos ou nas charadas, a voz é cercada”. Com isso o discurso freudiano

140
se afastaria cada vez mais de um logocentrismo, pois no modelo de escritura não fonético
adotado por Freud para pensar o psiquismo cada vez mais a noção de traço ganha força,
não se submetendo a metafisica da presença inerente a linguagem fonética 61assim como
sublinha ainda Birman (2007, sem paginação): “Derrida evidenciou no discurso freudiano
as marcas teóricas que enunciariam a formulação sobre a existência de um pensamento
do traço.” É justamente a radicalidade desse pensamento do traço articulado a uma
escritura não fonética que coloca para além da metafísica da presença o discurso
Freudiano em torno da vida psíquica. Porém, como o nota Joel Birman na passagem acima
em destaque, são o microscópio e o telescópio, máquinas ópticas, que servem de imagens
para a descrição do aparelho psíquico e não ainda como o será a partir do bloco mágico
um aparelho de escrita. Já no artigo sobre “o inconsciente” de Freud esboça-se o caminho
para a metáfora da escritura, como o assinala Derrida:

Por outro lado, no mesmo ano [1913], no artigo sobre O Inconsciente, é a


problemática sobre o próprio aparelho que começa a ser retomada nos
conceitos escriturais: nem, como no projeto, numa topologia dos traços sem
escritura, nem como na Interpretação dos sonhos , no funcionamento de
mecanismos ópticos” (DERRIDA, 2002, p.213)

A noção de traço, conformando uma escritura não fonética, e a dupla exigência


contraditória de Freud (reter e receber os traços) fariam deslocar e avançar a metáfora da
vida psíquica como uma escritura. Porém, essa exigência só será satisfeita tempos depois
com a descoberta por Freud de um brinquedo chamado bloco mágico. Com este
dispositivo finalmente a metáfora do psiquismo, como uma escritura, se consolida
possibilitando a concepção de um outro sujeito não mais determinado pela metafísica da
presença. O sujeito não mais será como na modernidade, um sujeito da consciência
soberana e plena de si, mas sim designado por sua relação “estrutural” com a escritura.

3.3 O bloco mágico e o sujeito da escritura

O pensamento de Freud ao longo de seu percurso faria avançar as metáforas cada


vez mais em direção a um aparelho psíquico como uma “máquina de escrever”, porém é

61
Afirma Derrida (2002, p. 21o), acerca da relação entre a escrita fonética e a metafísica da presença, que
“em especial na escrita chamada fonética. é profunda a conivência entre esta e o logos (ou o tempo da
lógica) dominado pelo princípio da não contradição, fundamento de toda a metafísica da presença”.

141
somente 12 anos mais tarde do Projeto, com a “Nota sobre o bloco mágico”, que serão
descritos conjuntamente o funcionamento do aparelho de percepção (com sua abertura a
novos traços) e a origem da memória (como marcas de traços), a partir da qual as duas
séries de metáforas até então separadas se reunirão nessa máquina, “pequeno
instrumento” que é o bloco mágico e que conciliará a dupla exigência freudiana relativa
ao funcionamento da percepção e da memória, oferecendo “as duas vantagens: uma
superfície de recepção sempre disponível e marcas duradouras das inscrições recebidas.”
(DERRIDA, 2002, p. 216). A descrição de Freud em torno do aparelho é a seguinte:

O bloco mágico é uma tabuinha de cera ou de resina de cor marrom


escuro, rodeada de papel. Por cima, uma folha fina e transparente, solidamente
presa à tabuinha no seu bordo superior, enquanto o seu bordo inferior está nela
livremente sobreposto. Esta folha é a parte mais interessante do pequeno
dispositivo. Ela própria se compõe de duas camadas que podem ser separadas
uma da outra exceto nos dois bordos transversais. A camada superior é uma
folha de celuloide transparente; a camada inferior é uma folha de cera fina,
portanto transparente (...) servimo-nos deste bloco mágico praticando a
inscrição sobre a pequena placa de celulóide da folha que cobre a tabuinha de
cera. (...) Uma ponta aguçada risca a superfície cujas depressões produzem o
‘escrito’. (...) a ponta pressiona, nos lugares que toca, a superfície inferior do
papel de cera sobre a tabuinha de cera e estes sulcos tornam-se visíveis como
uma escrita escura na superfície do celulóide que é liso e cinza esbranquiçado
se quisermos destruir a inscrição basta destacar a tabuinha de cera com um
gesto leve pelo seu bordo inferior livre, a folha de cobertura composta, (...) o
bloco mágico fica então virgem de escrita e pronto para receber inscrições”
(FREUD, PÁGS.5-7 Apud DERRIDA, 2002, p. 217)

Com o bloco mágico, as exigências contraditórias finalmente são satisfeitas indo


além do modelo das outras superfícies de escrita como o papel ou a ardósia, que
rapidamente se saturam com os traços. O bloco magico representaram de certo modo
uma materialização do sistema mnésico do aparelho psíquico, ele “representa-o por
inteiro e não apenas a camada perceptiva. A tabuinha de cera representa efetivamente o
inconsciente” (DERRIDA, 2002, p.219). Na tabuinha de cera como no inconsciente
ficarão marcados os diversos traços das diferentes escritas que, por sua vez, formarão
novos traços, novas escritas. É nesta direção que se pode caracterizar uma memória
dinâmica (não paralisada) em seus diferentes traços, em que este não se grava de uma vez
só, mas é inscrito e atravessado por outros traços. Podem-se tecer duas considerações
sobre o traço a partir da imagem do bloco mágico: primeiro este não se constitui como
uma presença a si próprio, mas apenas na relação de diferença com os outros traços e
segundo, como na tabuinha de cera, um traço será em algum momento perpassado por
outro, e isso modificaria sua constituição. A escritura inconsciente será, portanto, o
trabalho das diferenças dos traços que nunca se constituirão como uma presença em si

142
mesmo. Nesse sentido, Derrida indica que o discurso freudiano em torno dos traços e da
escrita não se deixaria enclausurar dentro do logocentrismo, já que o inconsciente seria
uma escritura sem um código pleno que a instituísse. O texto inconsciente é tecido por
diferentes traços (mas um texto em nenhuma parte presente) e constituído por “arquivos”
que são desde sempre transcrições.

É em 1920, com a Nota sobre o Bloco Mágico, que Freud finamente descreverá
o psiquismo, a vida psíquica como uma verdadeira máquina de escrita. Será então quando
Freud parecerá conciliar, enfim, a virgindade da superfície de recepção e a reserva infinita
das marcas ou traços. É, portanto, como bem o destaca Derrida, um:

Duplo sistema compreendido num único aparelho diferenciado, inocência


sempre oferecida e reserva infinita de marcas, é o que finalmente pôde
conciliar esse ´pequeno instrumento que ´foi lançado há algum tempo no
mercado com o nome de bloco mágico, e que ‘promete ser mais eficaz do que
a folha de papel e a ardósia. (DERRIDA, 2002, p.216)

Desse modo, junto ao bloco mágico, Freud, segundo Derrida, finalmente constrói uma
imagem completa do aparelho psíquico enquanto uma máquina de escrever e segundo
uma série de características que se remetem a suas antigas ponderações como, por
exemplo, o caráter protetor da folha de celuloide do bloco que se assemelharia a uma das
duas camadas do aparelho psíquico o qual funcionaria como um protetor contra as
excitações. Mas o mais singular do bloco mágico parece ser, para Freud, a tabuinha de
cera (e sua relação com as folhas mais superficiais) que representaria o inconsciente,
diferindo substancialmente dos outros suportes tentados (neurológico, telescópio,
microscópio, máquina fotográfica, papel, ardósia). É tal singularidade da interpretação
do aparelho psíquico como uma escritura, a partir do bloco mágico, que irá constituir um
“sujeito” que difere dos fundamentos que determinam o sujeito clássico com a plenitude
de sua consciência e assim inscrito na metafísica da presença e no logocentrismo. De
outro modo, Derrida pensa a partir do discurso freudiano em torno do bloco mágico e da
cena da escritura proposta por Freud outra concepção de sujeito:

Se só houvesse percepção, permeabilidade pura às explorações, não haveria


exploração, seriamos escritos, mas nada ficaria consignado, nenhuma escritura
se produziria se reteria, se repetiria como legibilidade. Mas a percepção pura
não existe: só somos escritos escrevendo, pela instância em nós que sempre já
vigia a percepção, quer ela seja interna quer externa, o “sujeito” da escritura
não existe se o entendemos por isso alguma solidão soberana do escritor. O
sujeito da escritura é um sistema de relações entre camadas: o bloco mágico,

143
do psíquico, da sociedade, do mundo. No interior desta cena, é impossível
encontrar a simplicidade pontual do sujeito clássico. (DERRIDA, 2002, p.222)

Desse modo, devemos nos perguntar o que vem a ser o sujeito da escritura em sua
diferença com o sujeito clássico. Derrida coloca que o sujeito da escritura não existiria se
entendermos por isso a solidão soberana do escritor, pois está se fundamentaria segundo
minha hipótese em toda uma noção de vontade autônoma e consciência plena de si
mesmo. Ao contrário, o sujeito da escritura no discurso freudiano, como é lido por
Derrida, seria atravessado por diferentes relações de forças (o bloco mágico, o psíquico,
a sociedade, enfim, o mundo) entre as camadas que o compõem. Nesse sentido, ele é
escrito escrevendo-se a partir dessas diferentes relações que o tornam um complexo de
diferenças de forças e o afastam da simplicidade pontual que configuraria o sujeito
clássico em toda a metafísica da presença que o comanda. O sujeito da escritura é também
o sujeito do inconsciente, que vem a deslocar a pretensão de um sujeito da consciência
plena e soberana, porque constituindo-se por um sistema de diferentes traços que se
inscreve em sua vida psíquica. O chamado sujeito da escritura seria articulado em sua
vida psíquica por diferentes traços advindos das demais relações que compõem suas
camadas e é por isso um sujeito da diferença e da relação, não um sujeito ensimesmado
em sua solidão ontológica. A vida psíquica, a partir do modo como Derrida a
compreende no discurso freudiano, principalmente a partir da Nota sobre o bloco
mágico, é como uma máquina de escritura de traços que não perfazem uma presença em
si mesmos, mas se constituem nas diferenças e nas relações com os outros traços. Por
isso, o sujeito no discurso freudiano, é denominado por Derrida como um sujeito da
escritura, em oposição à simplicidade do sujeito clássico. Teríamos um sujeito não
definido por uma solidão existencial, ao modo de uma mônada, mas pelas diferentes
forças- no sentido que Nietzsche entende força, como já apresentamos aqui - que o
atravessam e o marcam. A lógica do vir a ser dos diferentes e múltiplos traços que nunca
se apresentam como uma plenitude de substância mas a partir do trabalho da diferença é
o que definiria o sujeito da escritura.

Ele pode ser entendido ainda como aquele que é atravessado em suas camadas
pelas multiplicidades de forças que se inscrevem como marcas e traços em sua vida
psíquica. É, portanto, um sujeito marcado e aberto às diferentes relações de forças que o
compõem, e essa abertura também o diferencia do modo como é concebido o sujeito

144
clássico fechado na clausura de sua própria autonomia e soberania da consciência. Para
o sujeito clássico, o fora se define como uma objetualidade à sua disposição para então
se tornar uma representação para sua consciência, já para o sujeito da escritura, o
“externo” assim como o “interno” se constituem como forças que o atravessam e vão
inscrevendo suas marcas e traços na vida psíquica Justamente esse atravessamento de
forças e sua inscrição no aparelho psíquico que constituem a escritura do sujeito, forças
que não estão, como no sujeito clássico, em contraposição à sua subjetividade, mas que
a compõem.

O sujeito da escritura não estaria apenas numa relação de mera contraposição ao


sujeito clássico, pois fundamentalmente se deslocaria da lógica da metafísica da presença
que o comanda. Daí importância da compreensão dessa outra “lógica”, que é a da escritura
e sua noção de traço, que estariam ainda relacionados à noção de uma multiplicidade de
forças. Neste contexto, o inconsciente mobilizado por essa inscrição dos diferentes traços
não pode ser definido como uma substância mas como algo que vem a ser inscrito e
traçado por uma multiplicidade de forças. A partir do discurso freudiano, assim como é
lido por Derrida, a vida psíquica como um todo pode ser caracterizada pelo efeito da
exploração (e inscrição) da multiplicidade de forças e é nesse sentido que o sujeito da
escritura “é um sistema de relações entre camadas”, sendo fundamental nessa concepção
as diferentes relações de forças que estabelecem a escritura que vem a ser a vida psíquica.
Assim, pode-se entender a afirmação de Derrida (2002, p. 183) de que “não há psíquico
sem texto”, pois a vida psíquica se apresenta com um texto que vem a ser a partir da
relação com uma multiplicidade de forças que produzem explorações e traços. Nesta
direção, procurei refletir sobre a persistência da noção de traço no discurso freudiano em
direção a uma metáfora da escritura para tentar compreender o lugar do sujeito da
escritura dentro da leitura de Derrida em torno de Freud.

3.4 - A escritura psíquica e a máquina de escrever

Pode-se assinalar que na leitura de Derrida sobre Freud não haveria uma superação
do sujeito, no sentido de um ultrapassamento ou liquidação, mas sim um radical
deslocamento em sua concepção, principalmente em relação aos fundamentos do sujeito
clássico estruturado segundo as diretrizes metafisicas. Desse modo, há nas entrelinhas do
texto uma crítica à noção de sujeito clássico em sua relação fundamental com a metafísica
da presença, para então recuperar dentro do discurso freudiano uma outra concepção de

145
sujeito não comprometida com o logocentrismo. Para tal, Derrida procura ler certo
itinerário freudiano que vai de uma metafórica do traço por meio de uma linguagem
neurocientífica até uma metafórica da vida psíquica como uma escritura que se
consolida principalmente na Nota sobre o bloco mágico a partir de onde o filósofo irá
pensar o assim chamado por ele, sujeito da escritura. É, portanto, a partir da metafórica
da escritura, não da linguagem da falada, que será pensado o sujeito e seu aparelho
psíquico. Segundo Birman:

Aparelho psíquico, tal como foi forjado progressivamente por Freud, do


começo ao fim do seu percurso teórico, seria uma máquina de escritura.
Assim, dos balbucios iniciais do “Projeto de uma psicologia científica” (Freud
1895), de 1895, até o ensaio intitulado “Notas sobre o bloco mágico” (Freud
1925), de 1925, o discurso freudiano perseguiu uma mesma problemática, qual
seja, a de articular o imperativo do dito aparelho ser uma máquina com o
imperativo de que seria efetivamente uma máquina voltada para a escritura. A
dificuldade em harmonizar esses dois imperativos, máquina e escritura,
regulava os desajustes e os ajustes do projeto teórico de Freud ao longo do seu
percurso teórico. (BIRMANM, 2007, sem paginação)

Freud e a cena da escritura percorre, pois, a questão da formulação da vida


psíquica como uma máquina de escritura que é apenas esboçada por Freud ainda no
projeto a partir da noção de traço sem a noção de escritura para então avançar pela
metáfora de uma série de máquinas (telescópio, microscópio, máquina fotográfica) até a
imagem que lhe parecera ideal, qual seja, a do bloco mágico. Nessa direção, é todo um
pensamento do traço que é problematizado por Freud e sublinhado pela leitura de Derrida.
É a partir desse pensamento do traço (e da diferença que o constitui) que Derrida encontra
um discurso freudiano para além da metafisica da presença. Com o pensamento do traço
articulado pela metafórica do bloco mágico, a vida psíquica e o inconsciente passam a ser
entendidos como uma cena da escritura com todas as consequências que ela acarreta e
com todo o potencial crítico em relação à metafísica da presença existente na noção de
sujeito clássico. Não por acaso Derrida irá nomear o sujeito que do pensamento do traço
pode advir como um sujeito da escritura, pois é a escritura que viria a desconstruir a
metafisica da presença em sua articulação com a linguagem fonética. Será o traço das
diferentes relações de forças que engendrará como uma escritura a vida psíquica do
sujeito não reduzido ao suposto de uma consciência autônoma e soberana assim como é

146
concebida no sujeito clássico 62. Desse modo, não é a imperativa voz da consciência que
estaria mais próxima da alma ou da vontade como o elemento fundante da vida psíquica
que caracterizaria o sujeito, mas a articulação da diferença nos traços que compõem a
escritura psíquica e o inconsciente segundo uma máquina de escrever. A importância da
máquina de escrever como metáfora do aparelho psíquico é assim descrita por Birman:

Dessa maneira, o aparelho psíquico seria como uma máquina de escrever que
conseguiria incorporar em si próprio, na sua própria estrutura, as duas
condições enunciadas desde o “Projeto de uma psicologia científica”, quais
sejam, a de possuir um pólo de recepção que pudesse receber de modo contínuo
as excitações exteriores e uma superfície de inscrição ilimitada para as ditas
excitações. Se a desarmonia entre o modelo da máquina e da escritura aqui se
silenciou, isso se deve ao fato de que o aparelho psíquico seria uma máquina
de escrever que produziria permanentemente a cena da escritura.(BIRMAN,
2007, sem paginação)

Se o aparelho psíquico é uma máquina de escrever que produz permanentemente


a cena da escritura o é também devido às diferentes relações de forças que o atravessam:
a “máquina de escrever” não funciona sozinha, sinaliza Derrida (2002, p.222), mas, pode-
se colocar, a partir das diferentes relações de forças que a articulam. Além disto, a
importância de a máquina não funcionar sozinha estaria em que segundo Derrida “a
máquina está morta. Ela é a morte” (2002, p. 222). Qual pode ser então a relação do
aparelho psíquico concebido por Freud como uma máquina e a morte? Não estamos longe
aqui da articulação que Derrida estabelece entre a vida e a morte como a-vida-a-morte,
pois como expõe Birman:

Ao lado disso, a insistência, no discurso freudiano, de que o psiquismo teria de


ser um aparelho que funcionasse como uma máquina, marcando o discurso de
Freud de fio a pavio, mesmo na melhor solução que seria a da máquina de
escrever, revelaria, ao mesmo tempo, o que estaria em questão naquela
insistência de Freud, a saber, a problemática da morte como fundadora do
psiquismo e da vida. Sendo assim, a insistência na metáfora da máquina como
arcabouço do aparelho psíquico fundado na escritura evidenciaria como seria
a possibilidade da morte aquilo o que levaria ao imperativo da escritura como
forma de afirmação da vida.(BIRMAM 2007, sem paginação)

É, portanto a “possibilidade da morte” inscrita pela máquina em geral, mas


especificamente do aparelho psíquico como uma máquina de escrever que “levaria ao

62
Em torno do sujeito e da consciência como pertencentes à metafórica da presença explica Derrida que:
“Poder-se-ia mostrar que todos os nomes do fundamento, do princípio, ou do centro, sempre designaram o
invariante de uma presença (eidos, arquê, telos, energeia, ousia; essência, existência, substância, sujeito,
aletheia, transcedentalidade, consciência, Deus, homem, etc.). (DERRIDA, 2001, p. 231)

147
imperativo da escritura como forma de afirmação de vida”. Nisso reside “tudo o que Freud
pensou da unidade da vida e da morte” (DERRIDA, 2002, p. 223), que estaria em
afinidade com aquilo que Derrida elabora em torno de a-vida-a-morte e, nesse caso,
estaria representado pelo aparelho psíquico como uma máquina de escrever. Ainda
segundo Derrida, “a máquina– e, portanto, a representação – é a morte e a finitude no
psíquico” (DERRIDA, 2002, p. 223). Assim, é um pensamento da finitude que se
estabelece a partir da metafórica da máquina, e é justamente essa finitude com o que há
de morte nela que inscreve a possibilidade da escritura como uma forma de afirmação de
vida. Nesse sentido, a-vida-a-morte estão reunidas em uma conjuntura no qual a morte
presente na máquina funda a possibilidade da escritura como afirmação de vida. A
afirmação da vida psíquica estaria intimamente relacionada com o caráter dos traços que
conformam a escritura a partir do trabalho das diferentes forças. Portanto haveria a
afirmação de uma vida fundada na morte e na finitude que constituem o aparelho psíquico
concebido como uma máquina. O que vem a tornar singular o “sujeito” que daí pode
advir: o sujeito da escritura como o nomeia Derrida é fundamentalmente inscrito na
finitude e em relação essencial com a morte, e é somente a partir dessa inscrição e relação
que pode haver então afirmação de vida constituída pelo trabalho da escritura, do traço e
das diferentes forças que os articulam. Assim como Freud o descreve e Derrida o
interpreta, o fundamento da vida psíquica na morte e na finitude do aparelho psíquico
como uma máquina de escrever molda uma outra noção singular de sujeito em que a
escritura e o traço vêm a ser elementos fundamentais da afirmação da vida. De outro
modo, no sujeito clássico, a plenitude e a presença substancial de sua consciência e
vontade se oporiam supostamente à finitude e à morte. É, portanto, a relação singular
entre a-vida-a- morte que marca de forma radical o sujeito da escritura pensado pelo
filósofo francês a partir do discurso freudiano. Assim como a-vida-a-morte (e a finitude),
são também a escritura e o traço que delimitam esse sujeito em contraposição a tudo que
no sujeito clássico se caracteriza a partir de uma metafísica da presença. É a articulação
singular que Derrida lê no discurso freudiano entre escritura, traço e diferença das forças
que posicionariam esse sujeito para além da metafísica da presença e na diferença em
relação ao sujeito clássico. Nisso residiria uma diferença radical, pois, enquanto o sujeito
clássico é concebido como uma substância e, qual uma mônada, a partir de sua
consciência, o sujeito da escritura vem a ser a partir das relações das diferentes forças que
nele se inscrevem. Portanto, com o aparelho psíquico interpretado por Freud como uma
máquina de escrever, Derrida concebe outra perspectiva do que pode vir a ser o sujeito e

148
é essa metáfora da escritura como vida psíquica do sujeito que o desloca para além da
metafísica da presença e do sujeito clássico. Preponderante aí será o papel do inconsciente
entendido como uma escritura composta por traços resultantes das explorações do
trabalho das diferentes forças e que desestabilizará o locus central que ocupa o consciente
na figura do sujeito clássico. O inconsciente será equiparado a uma tabuinha de cera (do
bloco mágico) onde se inscreverão definitivamente os diferentes traços do vir a ser da
escritura. É fundamentalmente o pensamento do traço que mobiliza a interpretação
derridiana do discurso freudiano e a partir de onde Derrida localizará um para além da
metafísica da presença. O traço, como o pensa Derrida e como o localiza no discurso
freudiano, é o elemento que não se deixa conceber dentro de uma lógica logocêntrica.
Porém ele não se constitui apenas como um elemento no discurso freudiano, sua inserção
é mais ampla, é todo um pensamento do traço que vai paulatinamente sendo tecido desde
uma metafórica neurobiológica e suas explorações até uma metáfora da escritura com a
máquina de escrever (bloco mágico). A partir da escritura do aparelho psíquico enquanto
uma máquina de escrever, o pensamento do traço se constitui com maior força e amplitude
e funciona como um elemento desconstrutor do que ainda haveria de logocêntrico no
discurso freudiano. A partir da leitura que Derrida faz do discurso freudiano, um outro
sujeito não fundando nos pressupostos metafísicos clássicos pode ser concebido e
pensado em sua vida psíquica, a qual não mais se resume como no sujeito clássico ao
consciente como uma presença, mas também é concebida como uma escritura
inconsciente desde onde se inscreve o trabalho das diferentes forças. Dada a importância
do discurso derridiana em sua leitura de Freud em torno desse outro sujeito que vem a
ser a partir do traço e da escritura, pergunta-se: o que pode ser o sujeito para além dos
pressupostos da metafísica?

É a partir das relações das diferentes forças que no sujeito se inscrevem que se
pode refletir sobre um sujeito não apenas pensando a partir da diferença, mas também da
alteridade. Em diferença com o sujeito clássico, que é concebido qual uma mônada desde
onde o mundo é representado em sua consciência como uma objetualidade, o sujeito da
escritura pode ser entendido em sua alteridade com as diferentes forças que se inscrevem
em sua vida psíquica. Neste sentido, a dicotomia clássica do sujeito entre dentro e fora é
superada por um pensamento do traço e da escritura que privilegia a diferença e a
alteridade que nunca podem ser pensadas, como bem assinala Derrida, a partir da imagem
da “solidão soberana do escritor” que refletiria a “essência do sujeito clássico”. Uma

149
outra definição do sujeito da escritura como este é pensado por Derrida a partir do
discurso freudiano seria, em contraposição à clausura do sujeito clássico, sua abertura à
diferença e à alteridade do outro, por isso afirma Derrida (2002, p.222) que “o sujeito da
escritura é um sistema de relações entre camadas [...]” É neste sentido que as relações de
alteridade do sujeito da escritura nele se inscrevem como forças que compõe traços e, por
conseguinte, escrituras, que se organizam na relação de alteridade do sujeito com o
trabalho das forças. Pode-se afirmar que, a partir da noção de traço e de escritura, Derrida
propõe uma concepção de sujeito que vem a ser junto a uma relação de alteridade com as
diferentes forças, o que difere da noção de sujeito clássico que pressupõe uma
estabilidade, essencialidade e uma interioridade fechada de sua subjetividade. Desse
modo, o sujeito da escritura viria a ser a partir do jogo da alteridade das diferentes
inscrições das forças que vão sendo compostas ao longo de sua vida psíquica. O sujeito é
concebido desde um vir a ser das forças e seus traços que não se encontrava na metafísica
do sujeito clássico. É, portanto, por meio da noção de escritura que Derrida propõe, a
partir de sua leitura de Freud, o deslocamento do sujeito clássico, concebendo assim um
outro sujeito, não mais determinado ou enclausurado pela metafisica da presença.

Nesta perspectiva proponho a seguir, retornar a partir desse quadro a problemática


do sujeito nos discursos nietzschianos. Levando em consideração a questão da escritura
posso assinalar que Derrida já a entrevê junto as diferentes estratégias de Nietzsche de
pensar a linguagem que, sublinhadas pelo filósofo argelino, sugerem um outra posição
do “sujeito” frente o conhecimento, a “verdade”, o logos e a suposta apropriação do real.
Com esta problematização, Nietzsche colocaria em questão toda a estruturação
tradicional da metafísica que, desde certa concepção de linguagem subordinada ao logos
e a verdade, “prepara” neste esteio a concepção de um sujeito consciente e racional capaz
de produzir conhecimento objetivo e impessoal.

3.5 - A escritura e a metáfora em Nietzsche

Pode-se assinalar que a temática e a questão da escritura têm um papel


determinante ao longo do percurso da obra derridiana em sua relação crítica com a
metafísica da presença e com o pensamento logocêntrico. Dessa vasta abrangência,
procurarei me deter em certo recorte que privilegiará a leitura que Derrida propõe em
relação à escritura (e a linguagem) a partir da obra de Nietzsche, buscando desse modo
articulá-la com o problema do sujeito. Portanto torna-se central para o questionamento

150
do sujeito uma reflexão mais demorada em torno da noção de escritura. Sobre a escritura
em Nietzsche Derrida (2008, p.20), em sua Gramatologia, afirma que “é impossível
desconhecer mais a virulência do pensamento nietzschiano. (...) Nietzsche escreveu o que
escreveu. Escreveu que a escritura – e em primeiro lugar a sua – não está originariamente
sujeita ao logos e à verdade”.

Derrida está sublinhado que Nietzsche não apenas escreveu o que escreveu, mas
mais radicalmente escrevera que a escritura, em especial, a sua não estaria sujeita ou
submetida originalmente ao registro metafísico do logos e da verdade. Nesse sentido, a
escritura nietzschiana é interpretada como um marco de ruptura em relação ao modo como
se propunha na filosofia a relação do sentido do texto com a verdade e o logos. Não apenas
o estilo, como já debatido no segundo capítulo, com que escreve Nietzsche o posiciona
de um outro modo em relação à verdade e ao logos, mas em sua escritura também se
encontram uma reflexão e uma problematização dessa relação crítica. Derrida chama
atenção para o fato de que Nietzsche não pensa a linguagem (e a escrita) enquanto meio
de significação ou de desvelamento da verdade, mas sim a partir de seu caráter
metafórico. Pode-se afirmar que a determinação da linguagem, de toda linguagem, em
seu sentido metafórico, articula o pensar nietzschiano. Em Sobre a verdade e mentira no
sentido extramoral, Nietzsche pondera sobre o caráter metafórico de toda e qualquer
linguagem e sua gênese metafórica:

Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira


metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora.
E a cada vez completa mudança de esfera, passagem para uma esfera
inteiramente outra e nova. [...] Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se
falamos de árvores, cores, neves e flores, e, no entanto, não possuímos nada
mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às
entidades de origem. (NIETZSCHE, VM, p.533)

Para Nietzsche a linguagem não desvelaria a essência originária das coisas, pois
toda a linguagem é meramente metafórica, um artifício “inadequado” se pensarmos
adequação, em seu sentido filosófico, como o dizer a essência das coisas. Se nada
antecede a operação metafórica, então não há uma origem essencial a ser correspondida,
mas haveria segundo Nietzsche, um esquecimento da experiência primordial de
metaforização, o que possibilitaria a criação do conceito e com ele a produção da
“verdade”. Com isto os conceitos e a “verdade” são tomados como criações, produtos de
uma gênese metafórica esquecida e não advindos de um processo racional e consciente
transcendental a operação metafórica própria da linguagem. E ainda, o princípio lógico

151
de não contradição fundador da produção dos conceitos, seria secundário e posterior à
multiplicidade e à diferença existentes no mundo. A conceituação adviria de um desejo
de uniformização e igualação que acabam por obliterar a multiplicidade e diferença:

Todo conceito nasce por igualação do não igual. Assim como é certo que nunca
uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é
formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um
esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na
natureza houvesse algo, que fosse ‘folha’, uma espécie de folha primordial,
segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas (...), mas por mãos
inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno
como cópia fiel da forma primordial. (NIETZSCHE,VM,P.48)

Haveria segundo o filosofo alemão, certa efetividade, anterior em relação à


conceituação igualadora das diferenças individuais, das singularidades e das
multiplicidades que seriam olvidadas e abandonadas em nome do princípio de identidade
que articula o processo de representação do conceito. O esquecimento permite, portanto,
um para além da multiplicidade, o que possibilita a generalização dos conceitos. Segundo
Nietzsche, o homem em seu impulso à verdade é inconscientemente um dissimulador,
mente segundo seu hábito ao esquecer o processo de metaforização:

Ora, o homem esquece sem dúvida que é assim que se passa com ele: mente,
pois, da maneira designada, inconscientemente e segundo hábitos seculares –
e justamente por essa inconsciência, justamente por esse esquecimento, chega
ao sentimento da verdade. (NIETZSCHE, VM,p.534)

Nietzsche sublinha que a verdade que é afirmada de diferentes formas pela


tradição como pura e objetiva não estaria em oposição ao considerado impróprio e impuro
de uma metáfora ou mais ainda de uma ilusão, mas seria algo que ao longo de seu uso,
hábito e principalmente pela força do esquecimento inconsciente torna-se para uma
cultura, um povo ou pessoa algo sólido e obrigatório, algo como um sentimento da
verdade. Os homens se esquecem mentido, através do hábito e do uso, das forças
metafóricas e das ilusões que estão na gênese da constituição de uma verdade. Nessa
direção, o filósofo alemão indaga e problematiza o valor da verdade:

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias,


antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram
enfatizadas poética e retoricamente, transpostas e enfeitadas, e que, após longo
uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são
ilusões, das quais se esqueceu de que o são, metáforas que se tornaram gastas
e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em
consideração como metal, não mais como moedas. (NIETZSCHE, VM,
p.535)

152
Portanto toda gênese da verdade (pois o que está em jogo é também a afirmação
de que toda verdade tem uma gênese, um vir a ser “ordinário” em comparação com o
status sublime e transcendental da verdade como é concebida tradicionalmente) pressupõe
oculta e esquecida em sua unidade, objetividade e pureza uma multiplicidade de
“metáforas, metonímias, antropomorfismos”. Nesse sentido, a verdade não se opõe à
metáfora, a ilusão (e ao erro), ela é sim considerada uma ilusão, porém esquecida como
tal e ainda afirmada pela metafísica tradicional como oposta ao ilusório. Em jogo, no
discurso de Nietzsche, pode-se afirmar, está toda uma lógica da contaminação, pois a
verdade que é habitualmente afirmada como pura e objetiva é, em verdade, constituída e
contaminada por aquilo que se lhe parecia opor e excluir, ou seja, as metáforas e ilusões.
Nietzsche ainda ressalta que justamente pelo longo tempo de seu uso as verdades
aparecem apenas como “puras” se opondo em aparência ao seu caráter originalmente
ilusório, mas continuam a ser metáforas, porém gastas e sem a força sensível que
caracterizaria uma metáfora e por isso aparentando estar em oposição ao mundo sensível.
Derrida, em sua Gramatologia, propõe toda uma concepção de linguagem como
chave para a compreensão do pensamento nietzschiano, já que sua noção de linguagem
abalaria os alicerces fundamentais da metafísica. Nesse sentido, o filósofo propõe que
Nietzsche não se mantivera:

Simplesmente (junto com Hegel e como desejaria Heidegger) na metafísica,


teria contribuído poderosamente para libertar o significante de sua dependência
ou de sua derivação com referência ao logos e ao conceito conexo de verdade
ou de significado primeiro, em qualquer sentido em que seja entendido. A
leitura e portanto a escritura, o texto, seriam para Nietzsche como operações
‘originárias’ (...) com respeito a um sentido que elas não teriam de transcrever
ou de descobrir inicialmente, que, portanto, não seria uma verdade significada
no elemento original e na presença do logos, como topos, noetós, entendimento
divino ou estrutura de necessidade apriorística..(DERRIDA,2008 , págs.22-23)

O filósofo argelino sublinha que para o pensamento nietzschiano, na origem de


uma leitura e escritura, não haveria uma coisa ao modo de uma essência ou algo como
uma “realidade”, mas a interpretação mesma. Assim, a leitura e escritura seriam como
operações “originarias”. Sendo “originarias” nada as antecederia como uma outra origem
primordial. Nossa relação com o mundo, mediada pela linguagem, seria já metafórica,
sendo assim “imprópria”, sem a suposta propriedade de uma correspondência com ele.
Portanto não teríamos nenhum acesso, seja ele divino, transcendental, intelectual ou
intuitivo às “coisas mesmas” e seu suposto sentido “original”. Em consequência,
nenhuma linguagem seria própria para desvelar originalmente e verdadeiramente o

153
sentido do ser ou dos entes que em verdade não há. Derrida aponta ainda que o
significante (em sua condição metafórica) para Nietzsche (e no texto de Nietzsche) estaria
livre de sua dependência e derivação em relação ao logos e à verdade. Nesse sentido, o
significante não é mais pensado como subordinado ao sentido do logos e da verdade. Sob
esses aspectos, o filósofo argelino, em contraposição à interpretação heideggeriana,
afirma que o pensamento nietzschiano não teria permanecido na clausura da tradição
metafísica, mas que, ao contrário, em sua força, especialmente a partir do pensamento
crítico em relação à linguagem, produziria críticas e estratégias capazes de desconstruir o
pensamento metafísico. Com o deslocamento da linguagem de sua referencialidade ao
sentido, ao logos e à verdade a partir de sua condição meramente metafórica, o
pensamento de Nietzsche se afasta de modo crítico da tradição metafísica que entende de
um modo geral, a linguagem a partir de sua subordinação ao sentido, ao logos e à verdade.
É, portanto, a partir da crítica e da concepção de Nietzsche da linguagem e de sua relação
com o conceito e a verdade que Derrida sublinha a ruptura do filósofo alemão com o
pensamento metafísico. O filósofo argelino reconhece que, com a concepção crítica da
linguagem como metafórica e operação “originária”, Nietzsche abalaria o estatuto
tradicional do conceito e da verdade. Desse modo, Derrida sinalizaria que pela via de uma
concepção crítica da linguagem, como colocada por Nietzsche em “Sobre verdade e da
mentira no sentido extramoral”, se poderia propor uma “desconstrução” dos alicerces da
tradição metafísica e, proponho, da concepção de sujeito clássico nesta incluída. Pode-se
afirmar que a partir de sua crítica à linguagem no sentido da tradição metafísica Nietzsche
conceberia uma outra posição do sujeito em relação ao conhecimento, já que o que haveria
“originalmente” seria a interpretação como um texto que por sua vez operaria sempre
desde o registro metafórico 63. Com sua concepção da linguagem, Nietzsche, por
consequência, acabaria por afirmar uma crítica à posição clássica do sujeito do
conhecimento com sua objetividade e sua relação, através da linguagem, com o conceito
e a verdade. Para o autor, não haveria mundo como objetualidade de um lado e sujeito do
outro, mas desde sempre a assunção de uma interpretação (e perspectiva) metafórica e
“originaria”. Com isto barra-se a ideia um sujeito capaz de aceder à verdade a partir de
sua consciência, mas concebe-se um “sujeito” capaz de produzir, criar interpretações,
perspectivas a partir de seus afetos. Portanto, a “verdade” (que se quereria absoluta)
pode ser entendida como uma interpretação entre outras, uma perspectiva (o que a desloca

63
O texto como interpretação não se vincularia ao desvelamento de uma verdade, mas sim a constituição
de uma perspectiva como pretendo desenvolver a seguir.

154
de seu caráter absoluto, puro e objetivo) no sentido de que temos a partir de toda e
qualquer linguagem apenas o jogo de metáforas interpretativas.

É em um sentido extramoral que Nietzsche afirmara que toda verdade é uma


ilusão que não se assume e não é reconhecida em sua “origem” inventada e apenas um
jogo de metáforas gastas que não correspondem adequadamente ao “real”. De fato, a
própria noção de real e de correspondência com o real pode ser problematizada através
do discurso de Nietzsche, pois o que temos, dentro de nossa possibilidade de conhecer,
é apenas o jogo de metáforas e nunca uma correspondência com o real. É nesse sentido
que a “leitura e a escrita” tornam-se operações “originárias”. Não haveria um real ou uma
verdade para serem correspondidos a partir de uma linguagem desveladora, mas uma
linguagem compreendida como um jogo de metáforas que produzem interpretações,
textos e escritas . É, portanto, a partir de Nietzsche, conforme o lê Derrida, que a
linguagem passa a estar dissociada do sentido do logos e da verdade e assume seu valor
metafórico, o que por sua vez tem como consequência o deslocamento do sentido e valor
para o logos, o conceito e a verdade. A verdade não é mais entendida a partir de uma
dicotomia metafísica como oposta à ilusão e à sensível da metáfora. Pelo contrário,
do modo como a interpreta Nietzsche, a verdade é, como tudo que se refere à linguagem,
um jogo de metáforas e ainda uma ilusão esquecida enquanto tal. E se a interpretação é
originaria, essa “origem” é metafórica, e uma metáfora sempre remete para dentro do
próprio jogo da linguagem ou para uma outra imagem ou expressão análoga que possa
substituir. Assim, não haveria um fora ou um sentido primeiro a que a linguagem em seu
caráter metafórico se remetesse, desde ai seu caráter “originário”. É preciso assinalar que
Derrida toma o cuidado de colocar originarias entre aspas, haja vista todo o trabalho de
desconstrução da noção de origem. Com estas aspas o filósofo apontaria para um mero
efeito de origem, não algo que reocupasse o lugar do real ou da verdade; portanto leitura
e escritura (interpretação) fazem função de origem, mas não ocupam o lugar mesmo de
origem. Com sua noção de interpretação sempre mediada por uma linguagem de caráter
metafórico, Nietzsche produziria uma operação estratégica de afastamento do modelo
metafisico de linguagem que sempre a subordinara ao logos e a verdade, fazendo dela a
porta voz destes. Nesta direção, o pensamento do filósofo alemão em torno da linguagem
(e de sua relação com a noção de interpretação, como proponho) é considerado por
Derrida como um marco que produz certa ruptura em relação a concepção metafisica que
domina a questão da linguagem. Penso que com a noção de interpretação que avançaria

155
em direção ao perspectivismo, Nietzsche consolidaria uma virada para além da metafisica
não apenas em relação a linguagem mas também ao sujeito concebido metafisicamente.

3.5 Perspectivismo afetivo

Proponho que quanto ao seu caráter funcional aquilo que Derrida chama de leitura
e também escritura como “operação originária” em Nietzsche equivaleria à sua noção de
interpretação. Portanto a interpretação seria no discurso de Nietzsche uma escrita e uma
leitura de primeira ordem e por sua vez toda escrita e leitura pressuporiam um trabalho
interpretativo. A interpretação, segundo Nietzsche, se opõe fundamentalmente à noção
positivista dos fatos: “Contra o positivismo, que permanece no fenômeno: ‘só há fatos’,
diria eu: não, justamente não há fatos, apenas interpretações” (NIETZCHE, KSA XII, 7
[60]). Justamente a não existência de fatos equivale a colocar de certo modo o real, a
realidade dos fatos e os fatos da realidade como problemas e não como algo dado e
estabelecido. Afirmar que não há fatos equivaleria a destituí-los como origem do
conhecimento, havendo apenas interpretações que atuariam “como se” fossem
originárias. Um outro ponto fundamental para pensar a questão da interpretação em
Nietzsche é que o filósofo não situa a origem das interpretações na consciência, que é
tradicionalmente associada à sede do conhecimento, mas na luta dos impulsos que são
relacionados aos atos interpretativo, não havendo portanto nenhum sujeito que
originalmente e seguramente produzisse interpretações. Nessa direção, Nietzsche afirma
que “São nossas necessidades que interpretam o mundo (...) (NIETZCHE, KSA XII, 7
[60]) e ainda “Quem interpreta? – nossos impulsos” (NIETZSCHE. KSA XII, 2 [190]).
Haveria, portanto, uma multiplicidade de impulsos que se digladiam por impor sua
interpretação e é nesse sentido que, diferentemente de como pensa a tradição enraizada
em uma metafisica do sujeito, para Nietzsche os impulsos são os elementos fundamentais
na produção das interpretações. “Originariamente” não teríamos nenhuma realidade
(nenhum fato) anterior a interpretação, mas sim os impulsos e suas interpretações ou
perspectivas que atuariam como uma operação “originaria”. Desse modo, proponho que,
a partir da noção de interpretação dos impulsos, a noção de “leitura”, e também de escrita,
como propõe Derrida, é acentuada em sua radicalidade crítica em relação à tradição
metafísica e sua concepção de um sujeito estruturado como consciência autônoma. Com

156
isso nos aproximamos da noção Nietzschiana de perspectivismo como forma de
“conhecimento” 64:

De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga,


perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento,
isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de
conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”,
“conhecimento em si”; – tudo isso pede que se imagine um olho que não pode
absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual
as forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo,
devem estar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e
sem sentido. Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer
perspectivo”; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto
mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais
completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”.Mas eliminar a
vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o
conseguíssemos: como? – não seria castrar o intelecto?(NIETZCHE,GM, III,
§ 12,)

É preciso, primeiramente, ler a famosa passagem de Nietzsche com atenção para


o uso das aspas em relação às noções clássicas do conhecimento como “conceito” e
“objetividade”: o uso das aspas pelo filósofo geralmente produz um afastamento da
utilização tradicional e moral dos termos marcados por esse sinal. Nesse sentido,
Nietzsche não estaria propondo meramente uma nova utilização da noção de conceito e
objetividade que não deslocasse fundamentalmente seus valores e sentidos. A própria
multiplicidade de afetos requeridas, segundo minha hipótese, para a atividade
perspectivista se oporia ao ideal filosófico metafísico e também científico moderno de
uma posição do sujeito objetiva e afastada das atividades pulsionais para a produção de
conceitos e o desvelamento da verdade. É, assinala-se, em relação à perigosa “fábula
conceitual” de um “puro sujeito do conhecimento”, de um sujeito do conhecimento alheio
a tudo que implica o vir a ser que busca se resguardar o discurso de Nietzsche; contra esse
sujeito transcendental, a-histórico e sua atividade desinteressada, o filósofo alemão
proporia uma concepção de conhecimento a partir de uma outra noção de sujeito e
subjetividade. Segundo Thiago Mota (2010, sem paginação), em seu artigo “Nietzsche e
as perspectivas do perspectivismo”, “uma das bases do perspectivismo está precisamente

64
Como aponta Thiago Mota (2010, p.15), “Apesar disso, o uso de “Perspektivismus” em Nietzsche se
revela surpreendentemente raro. Em geral, apontam-se apenas três momentos de emprego efetivo do termo
na vastidão de seus escritos publicados e póstumos. Bem mais frequente é, por outro lado, a utilização de
“perspectiva” (“Perspektive”) e seus derivados, como perspectivístico, empregado tanto como adjetivo,
“perspektivistische” (GM/GM III, 12, KSA 5.365), quanto como substantivo, “das Perspektivistische”
(JGB/BM, Prólogo, KSA 5.12), que ocorrem de modo cada vez mais frequente a partir de 1885.” A partir
dessa breve análise do uso do termo perspectivismo e suas derivações, considero que o legado profícuo em
relação ao termo nos possibilita problematizá-lo dentro do contexto que proponho.

157
na crítica da noção moderna de subjetividade, que Nietzsche entende como obra do
processo de substancialização resultante de nossa crença na linguagem”. Sem dúvida, a
crítica de Nietzsche ao sujeito (do conhecimento) moderno, assim como é concebido por
Descartes, resultante de uma crença na gramática e na unidade da palavra como conceito
para enfim ser substancializado e logicizável, constitui-se como base do perspectivismo
e é fundamentalmente contra essa “perigosa fábula” que se posiciona seu discurso. Ao
meu ver a concepção de participação dos afetos na atividade interpretativa parece ser a
chave para compreender aquilo que pode ser o conhecimento perspectivo. Já foi
abordado, no primeiro capítulo, que mesmo a atividade de conhecimento do intelecto na
consciência é o resultado “superficial” de uma longa luta e embate entre múltiplos
impulsos ou afetos; resta, portanto, investigar essa outra relação entre o perspectivismo
e os afetos. Nietzsche conceberia como característica do conhecimento perspectivo a
afirmação da multiplicidade e da diferença entre os afetos que se estabelecem a partir
do vir a ser. Cabe indagar contudo se essa multiplicidade de afetos e
perspectivas(diferentes olhos, diferentes afetos)se dá, conforme a interpretação que
proponho do texto de Nietzsche, em diferentes “sujeitos” (diferentes perspectivas porque
diferentes “sujeitos”) ou se ocorre em um mesmo “sujeito” . Penso que as duas
suposições estão corretas, ainda que a segunda hipótese, que busco enfatizar, seja menos
desenvolvida pelos intérpretes que se debruçaram sobre o perspectivismo em Nietzsche
.Pode-se supor a partir da passagem de A genealogia da moral que só seria possível um
“sujeito do conhecimento perspectivo” a partir da inscrição da multiplicidade e combate
dos diferentes afetos ou impulsos que participariam, desde a atividade inconsciente, da
criação e construção do conhecimento. Nietzsche (GC, §354) afirma “que nosso
pensamento é continuamente suplantado, digamos, pelo caráter da consciência”, nesse
sentido, o que filósofo alemão entende por pensamento se distingue radicalmente de sua
fundamentação na consciência como a tradição a concebe. Se o sujeito do conhecimento
ao menos a partir de Descartes e Kant é concebido como o sujeito racional da
consciência, Nietzsche, com sua noção de participação dos impulsos e afetos na produção
do conhecimento e do pensamento em geral, proporia a inscrição da atividade do
inconsciente assim como do próprio corpo na produção do conhecimento, desse modo
Marton (2006, p.118) afirma que “no limite, é todo o corpo que conhece e, ao fazê-lo,
simplesmente desempenha uma atividade fisiológica”65 .

65
Retomo mais adiante o problema central do corpo em relação ao conhecimento.

158
Por tudo o que implica a noção de perspectivismo, cabe perguntar se é possível
ainda conceber um “sujeito do conhecimento”. Talvez, apenasse se o sujeito for pensado
como radicalmente deslocado de seus alicerces e fundamentos clássicos. Para tanto
Nietzsche, no lugar de pensar um “sujeito” (do conhecimento) que pressuporia uma
unidade e identidade fixa, propõe, como já visto no primeiro capítulo, a hipótese de uma
“multiplicidade de sujeitos”, de um “coletivo de almas" no mesmo corpo que
possibilitariam uma multiplicidade de perspectivas no mesmo “indivíduo”. Assim como
a relação com o passado a partir do homem “forte” possibilita diferentes vivências,
“abrindo-o” para desejos e valores de outrora e permitindo-lhe a experiência de outras
perspectivas, pois o homem “cuja alma almeja viver o inteiro compasso dos valores e
desejos até então havidos, e haver velejado as praias todas desse “mediterrâneo” ideal
[...] para isso necessita mais e antes de tudo uma coisa, a grande saúde” (NIETZSCHE,
EH, p, 84), pelo perspectivismo o “sujeito múltiplo do conhecimento” experimentaria o
jogo e a luta de interpretações própria dos diferentes impulsos66. Nesse sentido, se há um
“sujeito múltiplo do conhecimento perspectivo”, este se constituiria junto ao vir a ser da
pluralidade de forças e afetos que lhe atravessam compondo e decompondo sua(s)
identidade(s) sempre provisórias, possibilitando ao longo do tempo a constituição de
diferentes perspectivas sempre parciais.

Ainda pode-se conjecturar que a relação estabelecida entre “sujeito” e o “objeto”


a partir do perspectivismo não seria a reintrodução de uma nova centralidade do homem,
de sua consciência e razão ou a partir mesmo de seus afetos face o mundo, pois o que se
daria seria uma relação entre “sujeito” e "objeto”, ou melhor, para usar uma outra
expressão, um entrecruzamento entre diferentes jogos de forças que se estabeleceria desde
uma atividade de inscrição de afetos na ordem pulsional (inconsciente). Com sua crítica
a uma noção de sujeito isento de vontade, dor e tempo (outros nomes para o vir a ser)
capaz de aceder a uma verdade absoluta advinda de um “conhecimento em si”, abre-se
para o “conhecimento” a possibilidade da inscrição e afirmação do jogo de diferentes
perspectivas que se constituem desde o vir a ser da luta dos múltiplos impulsos ou afetos:

“tudo é subjetivo” dizeis: mas já isso é interpretação [Auslegung]. O sujeito


não é nada de dado, mas sim algo inventado, posto por trás. – É afinal
necessário pôr o intérprete por trás da interpretação? Isso já é poesia, hipótese.
Tanto quanto a palavra “conhecimento” tem sentido, o mundo é conhecível:
mas ele é interpretável de outra maneira, ele não tem nenhum sentido atrás de
si, mas sim inúmeros sentidos. “perspectivismo”. Nossas necessidades são

159
quem interpreta [Ausglen] o mundo; nossa pulsões e seus prós e contra. Cada
pulsão é uma espécie de ambição despótica [Herrschucht], cada uma tem a sua
perspectiva, perspectiva que a pulsão gostaria de impor como norma para todas
as outras pulsões (NIETZSCHE, VP, §260)

Pode-se considerar que pelo hábito advindo de nossa herança metafísica, temos a
tendência a supor sempre por trás de uma ação um sujeito, o mesmo aconteceria em
relação à interpretação, onde suporíamos metafisicamente um sujeito-intérprete, e não
apenas um sujeito qualquer, mas um “puro sujeito do conhecimento” consciente e
racional. Categoricamente Nietzsche afirma que o sujeito não é algo dado ao modo de
uma substância, como já problematizado no primeiro capítulo, mas, inventado, poesia e
hipótese necessárias para determinada conservação de um modo de existência.
Problematizado o sujeito como hipótese e poesia “desnecessária”, abre-se a questão de
onde então advêm os pensamentos e as interpretações se não há em realidade um sujeito
que os fundamente. Mais radicalmente é preciso perguntar como é possível uma
interpretação sem o interesse de um intérprete.

Ora, Nietzsche afirma que são nossas necessidades, nossas pulsões que
interpretam, não um “eu” a partir de sua consciência, portanto as interpretações se dão a
partir do registro inconsciente, já aparecendo aqui como um tipo de escritura de diferentes
forças. Se há um conhecimento perspectivo, deve-se levar em consideração que, se a
maior parte da atividade das pulsões ocorre de modo inconsciente, então a atividade do
conhecimento não pode ser reduzida à esfera da consciência e o que chega à consciência
não pode ser atribuído a um “puro sujeito do conhecimento” e tampouco a mera atividade
da razão posto que sua gênese é outra e se dá no campo de luta das pulsões, desejos e
afetos. Estaria Nietzsche pensando um conhecimento vinculado a certa escritura
inconsciente das forças diferenciais? Mas conhecimento não se define tradicionalmente
como um exercício estritamente intelectual da consciência de um sujeito racional 67?

67
Retomemos a afirmação que Nietzsche faz acerca dos filósofos e seus pensamentos, “O pensar
consciente, em particular o do filósofo, é a espécie menos vigorosa de pensamento e por isso talvez o
filósofo pode se enganar mais facilmente sobre a natureza do conhecer!” Podemos questionar se haveria
espécies mais vigorosas de pensamento, se Nietzsche com o perspectivismo não estaria propondo
justamente um pensamento mais vigoroso por ser mais vinculado aos afetos, se a escuta dos afetos, portanto
de suas interpretações, não possibilitaria uma expressão mais vigorosa dos pensamentos.

160
A “pureza do sujeito do conhecimento” criticada por Nietzsche estaria relacionada
entre outras coisas a sua posição afastada e salvaguardada perante o vir a ser dos afetos e
do mundo sensível, somente desse modo, sob esse registro, poder-se-ia conceber um
“conhecimento em si” que garantisse o acesso ao desvelamento da verdade. Porém, a
partir da noção de corpo atravessado por uma multiplicidade de forças e afetos, Nietzsche
concebe um outro modo de posicionamento do “sujeito” frente a um conhecimento
deslocado de seus fundamentos clássicos. Com sua crítica feita a marteladas do edifício
moral do conhecimento que sustenta a noção tradicional de verdade, pautada em uma
concepção metafísica da linguagem, o discurso nietzschiano permitiria a abertura para
uma outra concepção de “sujeito” não mais alheio a dor, vontade e tempo. Tudo aquilo
que vem a ser, e para Nietzsche tudo (a efetividade) vem a ser, se articula a partir da
vontade, da dor e do tempo. Desse modo pode-se conceber também um “sujeito” que vem
a ser a partir dos diferentes impulsos e afetos que o atravessam e lutam para a imposição
transitória de sua perspectiva, pois em questão está uma concepção de vida cujo sentido
não reside em um telos final, mas na dinâmica e na articulação de um jogo e luta de forças
próprios da vontade de potência que só pode transitoriamente alcançar uma hierarquia de
forças para em outro momento constituído no jogo e na luta transfigurar-se em outra
hierarquia de forças e consequentemente impor ou expressar uma perspectiva. Contudo
deve-se levar em conta que, em uma determinada hierarquia, na qual um impulso alcança
soberania e por isso impõe sua perspectiva sobre outros, está em jogo uma multiplicidade
de outras perspectivas subordinadas que, em certo momento da luta, poderão se impor.
Portanto só há sentido em conceber a perspectiva a partir de um jogo múltiplo de
diferentes perspectivas e sublinhando a provisoriedade de sua constituição que nunca
pode expressar-se como a “fixidez” de uma verdade absoluta. Dito de outro modo, só se
institui uma perspectiva a partir do jogo de forças e impulsos com outras perspectivas,
portanto dentro de um caráter pluralista. Nietzsche parece demarcar esse caráter pluralista
do conhecimento perspectivo por intermédio da expressão “quanto mais afetos, quanto
mais olhos [...]” 68, nesse sentido justo por ser uma perspectiva entre outras possíveis, ela
nunca têm o valor de uma verdade absoluta que negaria outras proposições de “verdade”
como falsas ou erro; só há uma perspectiva porque existem perspectivas. Silvia Pimenta,
em seu artigo “Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo”, afirma que:

68
Neste sentido, pode-se pensar que é a partir da dinâmica dos diferentes afetos ou impulsos que adviria
todo o múltiplo jogo de máscaras e estilos adotados por Nietzsche.

161
a noção de um conhecimento perspectivo acarreta a ideia de pluralidade ou de
multiplicidade de pontos de vista. O perspectivismo é aquilo “em virtude de
que todo centro de força — e não apenas o homem — constrói todo o resto do
mundo de seu próprio ponto de vista. ” Este conjunto não pode constituir uma
unidade porque envolve perspectivas contraditórias, cuja soma é incongruente.
Dito de outra forma, se o caráter determinado de toda perspectiva exclui a
possibilidade de um conhecimento ilimitado, sua multiplicidade exclui toda
hipótese de síntese. (PIMENTA, 2014, p.214)

Para a intérprete haveriam diferentes pontos de vista (perspectivas) a cada


diferente centro de forças, para além da esfera humana, e cada perspectiva por seu caráter
parcial e determinado excluiria o conhecimento absoluto ou ilimitado, inserindo assim o
pensamento perspectivo em uma espécie de lógica da finitude. O que permanece indeciso
é se a multiplicidade de pontos de vista se refere a diferentes centros de força ou a um
mesmo centro de força. Ao meu ver, o que a passagem da A genealogia da moral referente
ao perspectivismo parece indicar é que particularmente para o “sujeito do conhecimento
perspectivo” entendido como uma multiplicidade de sujeitos seria possível uma abertura
para diferentes afetos que produziriam diferentes perspectivas em seu jogo e luta por
impor distintas interpretações. Seria justamente o fechamento em relação às múltiplas
perspectivas em um único ponto de vista o que aproximaria a interpretação perspectiva
à um caráter da verdade no sentido tradicional . Por outro lado, o não fechamento em
único ponto de vista pela afirmação do vir a ser dos impulsos garantiria a abertura para a
expressão dos diferente afetos e olhares em um mesmo centro de força. Tal caráter do
conhecimento perspectivista concorda com a noção de Nietzsche de um “sujeito”
constituído por uma pluralidade de “almas” ou uma multiplicidade de sujeitos. O
“sujeito” seria marcado pela alteridade das diferenças forças ou afetos que se inscrevem
em sua vida psíquica tanto inconscientemente como conscientemente(deveríamos ainda
perguntar pela separação dualista que ainda persiste entre os dois: se o consciente é um
efeito superficial, o ato final de concordância e pacificação de uma longa batalha de
impulsos inconscientes, a diferença entre os dois residiria numa qualidade ou numa
quantidade de vigor, de tensão?).No conhecimento perspectivista, não haveria, assim
como pensa a tradição, um sujeito já dado anterior à relação com o objeto ou vice-versa,
o sujeito seria sempre pensando em seu vir a ser junto aos afetos que se inscrevem em sua
relação com o mundo69. Conhecer torna-se, portanto, um modo de relação singular entre
os afetos e aquilo que afeta (“o objeto”), entretanto o afetado não é o sujeito consciente,

Nesse sentido, afirma Nietzsche que: e já rimos quando encontramos “homem e mundo” colocados lado
69

a lado, separados pela sublime pretensão da palavrinha “e”!(NIETZCHE, GC, §3) Ambos, mundo e
homem, seriam pensados como realizações de um mesmo jogo de forças da vontade de poder.

162
mas o jogo de impulsos. Sendo assim é preciso considerar que só se pode pensar para o
conhecimento perspectivista um “sujeito” descentrado como algo que vem a ser enquanto
uma multiplicidade de sujeitos. Em seu artigo sobre o perspectivismo, Pietro Gori e
Paolo Stellino (2014, p.115) afirmam que “A ideia de um ‘sujeito singular’ é, portanto,
considerada por Nietzsche como ‘não necessária’ a partir do momento em que se assume
o ponto de vista mais detalhado de uma multiplicidade de ‘sujeitos’ que agem abaixo do
plano consciente”.

Ora, para Nietzsche, por baixo do plano consciente, o que existe, ou melhor,
acontece é a luta entre os diferentes impulsos e afetos. Desse modo, cabe perguntar se
é a multiplicidade de afetos ou impulsos e o combate que estes estabelecem para impor
sua interpretação que permitem Nietzsche a pensar a hipótese de abaixo do plano
consciente agir uma multiplicidade de “sujeitos”. Segundo minha hipótese, é justamente
essa multiplicidade de afetos e o combate por eles estabelecido que sugerem ao filósofo
considerar não mais a ideia de um sujeito no singular fundamentado metafisicamente
como uma unidade, mas uma multiplicidade de sujeitos que se efetivariam não como
pensa a tradição, no plano da consciência, mas a partir de um registro inconsciente.
Sujeitos sempre pensados no plural que não se reduziriam a uma nova atomização, pois
também são concebidos a partir do vir a ser e da alteridade que se dá na relação tensional
de combate estabelecida por eles .

A partir da crítica à metafísica e sua relação com a linguagem é que a ideia de


sujeito no singular torna-se desnecessária para pensar a atividade do conhecimento, o que
possibilita Nietzsche a pensar a hipótese de uma multiplicidade de sujeitos em lutas cada
qual com sua perspectiva constituindo o “individuo”. Hipótese nietzschiana de uma
multiplicidade de sujeitos com diferentes perspectivas e afetos que deslocaria
radicalmente a concepção do que é o conhecimento. Nietzsche (VP, §18) irá pensar “(...)
No lugar da “teoria do conhecimento”, um doutrina das perspectivas dos afetos (à qual
70.”
pertence uma hierarquia dos afetos) Se são os afetos que articulam as diferentes
perspectivas, o conhecimento teórico passa a ser compreendido como apenas um modo
de expressão de um tipo determinado de um ou mais afetos dentre outros diferentes tipos
de afetação que também produziriam diferentes tipologias de interpretação ou
perspectiva. Com o perspectivismo afirmando a participação dos afetos e

70
Fragmento póstumo 9[8]. Outono de 1998, opcit, VXIII, p.22

163
consequentemente a atividade inconsciente, abre-se a possibilidade para outras formas de
conhecimento para além do meramente teórico, consciente e racional.

Um outro ponto a levar-se em conta é a relação desses afetos com o mundo e seus
“objetos”. Na origem do conhecimento perspectivo temos a inscrição dos afetos, já que,
parafraseando Nietzsche, não poderíamos descer ou subir a nada além da realidade de
nossos afetos. Sendo assim, a impossibilidade de acessarmos uma “realidade” por trás de
nossos afetos não seria exatamente uma falta, mas uma constatação. Por só termos nossas
perspectivas e afetos, não teríamos acesso a um sentindo “oculto” do mundo, mas pela
afirmação dos caráter perspectivo do conhecimento, abrir-se-iam “infinitas”
possibilidades de sentido para o mundo, Nietzsche afirma no parágrafo 374 de A gaia
ciência intitulado Nosso novo ‘infinito’” que versa sobre o caráter perspectivista da
existência que: “o mundo tornou-se novamente infinito para nós: na medida em que não
podemos rejeitar a possibilidade que ele encerre infinitas interpretações. Porém pela
visada perspectiva nunca poderíamos alçar um ponto de vista exterior ao mundo e ao
corpo capaz de abarcar uma verdade absoluta. De outro modo, podemos dizer que não há
um texto com um sentido original a ser interpretado e apreendido, mas apenas
perspectivas, pois, como afirma Nietzsche (BM §22) em relação ao discurso da física, mas
que podemos abranger para toda a esfera do conhecimento e cultura: “isso é interpretação
e não texto” (Por outro lado, poderíamos dizer que, se existem textos com o qual lidamos
cotidianamente, estes não se confundem com o mundo, não são originais, mas meras
interpretações). Portanto o conhecimento não é uma “des-coberta” (no sentido de uma
retirada dos véus) ou mesmo um desvelamento da verdade ou do mundo, mas uma criação
perspectiva, não de um sujeito consciente e racional mas do jogo perspectivo das pulsões.
Pode-se refletir então que o caráter perspectivo do conhecimento performa uma
posição crítica ao correspondencialismo filosófico metafísico. Clark, intérprete do
perspectivismo, aponta que:

Tal como eu o interpreto Nietzsche concorda com Kant no fato de que não
conhecemos coisas em si e no fato de, contrariamente a Descartes, a verdade
que somos capazes de descobrir não satisfazer à teoria metafísica da
correspondência. No entanto, Nietzsche é anti-kantiano no fato de negar a
possibilidade de pensar a coisa em si. Todavia, parece apropriado designar essa
posição como “neokantiana” porque chegou a ela pela aceitação e longa
reflexão acerca da recusa de Kant em aceitar o conhecimento da coisa em si.
(CLARK, 1990, p. 61 Apud MOTTA, 2010 p.225)

164
De fato, Nietzsche, com seu perspectivismo se contrapõe a Descartes e à longa
tradição filosófica que sempre procurou a forma mais adequada e fundamentada de
garantir a correspondência entre a verdade e o “mundo” pelo conhecimento, porém
aproximar o filósofo alemão de um neo-kantismo parece, ao meu ver, uma certa distorção
do discurso nietzschiano; Nietzsche afirma que não conhecemos a coisa em si não por
uma dificuldade ou falta de nosso aparelho intelectual, mas justamente porque não há
algo como uma “coisa em si”, a coisa está para sempre perdida... A busca pela coisa em
si é sempre uma busca para um além da perspectiva, da nossa condição de finitude, mas
através do caráter perspectivo do conhecimento que Nietzsche propõe alçaríamos a uma
nova forma de conhecimento enquanto criação e não descoberta, como ainda aponta
Clark. Nessa direção Pimenta (2004, .215) afirma que: “Uma perspectiva é não apenas o
que limita nosso campo de visão, mas sobretudo aquilo que o torna possível : pretender
suprimi-la para alcançar as coisas “em si mesmas” seria um absurdo comparável a querer
suprimir os olhos para ver melhor. ” Nesta direção, a perspectiva que nos limita é ao
mesmo tempo o que possibilita nosso campo de visão em relação a algo. Na “origem” o
que temos são afetos e perspectivas relacionadas a alguém que os experimenta frente a
um “objeto”; querer suprimi-los para obter o conhecimento das coisas “em si mesmas” é
querer ir além da experiência fundamental do perspectivismo que é o nosso lidar apenas
com “aparências” (como aquilo que vem a aparecer de determinado modo) e “verdades”
(no sentido já discorrido no segundo capítulo) que não escondem nenhuma verdade ou
essência por detrás. Pelo perspectivismo, nega-se a pretensão de termos um acesso
transcendental através da alma, do espírito ou da consciência que nos permita um
conhecimento absoluto para além de nossa perspectiva, de nossa condição e do jogo de
“aparências” das perspectivas. Nesta direção , sublinha Scarlett Marton que:

Da ótica nietzschiana, ao homem nunca será dado transcender a própria


condição; ele está fadado a captar o mundo tal como lhe aparece. Jamais
logrará chegar a um conhecimento objetivo; acha-se condenado a um certo
ângulo de visão. Limitado pela perspectiva humana, é só a partir dela que pode
falar do mundo. (MARTON, 2006, p.117 p grifo meu)

Por tal condição é que Nietzsche, na passagem supracitada de A genealogia da


moral, problematiza a suposta pretensão da eliminação da vontade e suspensão dos afetos
como uma castração do intelecto, como se pudéssemos ainda pensar e conhecer sem toda
gênese pulsional (e erótica?) que justamente ao seu ver caracteriza o conhecer. O

165
perspectivismo se mostra radicalmente crítico à noção de puro sujeito do conhecimento
estabelecida por Descartes e mantida, ainda que problematizada, por Kant, pois, de certa
maneira, não é o sujeito autocentrado com sua consciência que estabelece ou cria
perspectivas, mas justamente a luta e jogo inconscientes das diferentes pulsões e afetos
para impor suas interpretações. Levando em consideração que com o perspectivismo o
conhecimento, entendido a partir da gênese da atividade pulsional, tornar-se algo mais
amplo do que o racionalizar consciente, abre-se o caminho para diferentes expressões das
atividades pulsionais. Desse modo, outras atividades como, por exemplo, a artística, que
não necessita estritamente da tradução de suas atividades para a esfera racional
consciente, podem então tomar parte e serem consideradas como formas perspectivas do
conhecimento. Nietzsche (1969, p.63), com sua “escuta ativa” à inscrição dos diferentes
impulsos na gênese do conhecimento, aproximaria este da imagem do centauro parido na
qual ciência, arte e filosofia se entrecruzam a partir da relação de diferentes afetos.

Uma outra questão de suma importância permeia a problematização do


perspectivismo como um modo de conhecimento: Se não se sustenta mais a concepção
da verdade, no sentido tradicional, mas há a produção de “verdades” ou simplesmente
perspectivas, então toda interpretação deve se equivaler, toda tem o mesmo peso e valor?
Seria o perspectivismo afirmado por Nietzsche uma espécie de relativismo de todos os
valores? Mas se justamente com Nietzsche, como já visto, se insere na filosofia, de
forma determinante e radical, a questão do valor e das avaliações que o determinam, como
poderia então ser o perspectivismo um modo de conhecimento relativista pelo qual os
valores das intepretações se equivalem? Relativizar os valores das perspectivas em uma
mesma equivalência de pesos me parece soar ao pathos da filosofia Nietzschiana uma
estratégia niilista que indiferencia as perspectivas. Por um lado, o perspectivismo se
distanciaria criticamente e desconstruiria a hierarquia tradicional de valores que teria a
verdade como valor absoluto dos valores, que oporia qualquer outra interpretação como
falsa; por outro, ele constituiria a possibilidade de afirmação de múltiplas perspectivas
como diferentes avaliações. Se as perspectivas não se equivalem, como penso, é
justamente porque o que dinamiza suas “origens” é o princípio da diferença que mobiliza
a luta dos impulsos afetivos por imporem suas interpretações. Neste sentido, a pergunta
genealógica pelo tipo de impulso, se ele nega ou afirma a vida, se serve a uma vida reativa
ou ativa, nobre ou escrava, determinaria uma outra hierarquia das interpretações
perspectivas. Pode-se supor que toda e qualquer perspectiva é válida ou tem valor, mas a

166
avaliação que as determina sendo produto, não de um sujeito, mas de impulsos - e estes
podendo ser compreendidos em dois tipos, aqueles que negam e aqueles que afirmam a
vida -, teríamos então esta última como critério para a avaliação das perspectivas. Deste
modo, do ponto de vista vital, que é o da vida como vontade de potência, certas
perspectivas podem ter valores afirmativos, outras negadoras dependendo do impulso ou
grupo de impulsos afetivos que a regem. Que toda perspectiva tenha seu valor, isto é um
ponto, mas nem por isso seus valores são equivalentes (pelo contrário, todo valor difere
de outro valor), e o que pode diferenciar mais radicalmente o valor de uma perspectiva
de outra é a avaliação, do ponto de vista da vida, de que impulso as engendra. Nesse
sentido, o perspectivismo não deve ser entendido como um simples relativismo dos
valores, mas em articulação com a noção de vida, enquanto vontade de potência, podendo
ser considerado como um modo de conhecer que não mais articulado pela verdade, como
valor dos valores, toma da vida o valor de suas interpretações. Isso quer dizer, que toda
interpretação e perspectiva pode ser ativa ou reativa, nobre ou baixa, dependendo do
impulso ou dos impulsos afetivos que a articulem, já que estes podem negar ou afirmar
a vida. Assim, o valor de toda e qualquer perspectiva não é medido pelo verdadeiro ou
pelo falso, mas pela potência de seus impulsos afetivos de afirmarem ou não a vida.

Considerando que a “linguagem” dos afetos (e das paixões) assume uma


importância fundamental no discurso nietzschiano em torno do conhecimento e do
perspectivismo, proponho em seguida desenvolver e analisar o que pode vir a ser o afeto
e as paixões para a ótica de Nietzsche , bem como o efeito que estes produzem na
concepção de sujeito. Levanto a hipótese de que somente a partir dos diferentes modos
de relação com os afetos é possível diferenciar radicalmente o sujeito moderno e sua
produção de conhecimento do modo com que o conhecimento pode ser compreendido a
partir do perspectivismo.

3.6 Paixões e afetos segunda a interpretação de Nietzsche

Se o conhecimento teórico produzido pelo suposto “puro sujeito do


conhecimento” em sua veneração à verdade tem, segundo Nietzsche, ainda que negada,
sua gênese na atividade pulsional, qual a diferença dele para o conhecimento perspectivo
e sua relação com os impulsos e os afetos? Bastaria no lugar desta dupla negação, a de
sua origem pulsional e a dos afetos, a afirmação dos impulsos? O que seria afirmar os

167
impulsos e como afirmar os afetos e impulsos? Seria o caso de uma mera adesão aos
impulsos? Patrick Wotling, analisando um trecho de Crepúsculo dos ídolos, afasta a ideia
de uma simples adesão aos impulsos e paixões:

“Todas as paixões têm um tempo, durante o qual são meramente funestas, em


que oprimem a sua vítima com todo o peso da estupidez – e um tempo ulterior,
bastante mais posterior, em que se casam com o espírito, se ‘espiritualizam’”
(GD/CI, “A moral como contranatureza”, § 1). Nietzsche, como vemos, não
considera que devemos ceder imediatamente às paixões. Essa verdadeira
“embriaguez do sentimento”, na expressão de “Para além de bem e mal” (§
245), ele vê como uma espécie de fanatismo, de fraqueza. (WOTLING, 2003,
p.80029

Nesse sentido, Nietzsche não afirmaria e valorizaria as paixões a partir de uma


mera inversão do esquema dicotômico metafísico entre razão e paixão. Em outra direção,
Nietzsche aponta e acena para, após uma “opressão” das paixões, sua posterior
espiritualização. De outro modo, em um mero ceder às paixões e aos impulsos, haveria
apenas uma inversão do velho esquema metafísico que permaneceria ainda em um
idealismo da paixão e dos afetos. Wotling (2003, p.7) ressalta que “Nietzsche, contudo,
considera que não basta reconhecer o lugar que a afetividade ocupa, mas é preciso livrá-
la de uma compreensão que, até mesmo em seus defensores, permanece idealista e, por
extensão, inaceitável. ” Ceder à paixão assim como hipervalorizar o intelecto pareceriam
aos olhos de Nietzsche tendências de um fanatismo e fraqueza idealista. Seria necessário,
antes de tudo, espiritualizar as paixões no lugar de meramente reconhecer o lugar que a
afetividade efetivamente ocuparia. Torna-se necessário deslocar justamente o lugar que
ocupa a paixão em sua suposta contraposição à razão:

Antes de Nietzsche vir na cena filosófica, as instâncias afetivas opostas à


racionalidade eram quase sempre pensadas como paixões, de sorte a manter
intacta a canônica oposição entre a razão e a sensibilidade. Embora Nietzsche
utilize por vezes os termos clássicos paixões (Leidenschaften) ou sentimentos
(Gefühle, Empfindungen), ele prefere o termo afeto (Affekt) ou, mais ainda, a
fórmula consagrada pathos. (WOTLING, 2003, p.13)

Com a utilização do termo afeto (e também pathos) no lugar de paixão e


sentimento, significantes tão carregados pela valorização metafísica, Nietzsche procuraria
se desvencilhar dos fios de teias de aranha desta última que estabeleceram o lugar que os
sentimentos e as paixões deveriam ocupar dentro de um esquema binarista e em uma
hierarquia que definitivamente desvalorizá-los-ia em detrimento da hipervalorização da

168
razão como polo oposto. Portanto com a terminologia dos afetos Nietzsche performaria
uma estratégia para escapar do dualismo típico do pensamento metafísico:

Essa evolução terminológica, extremamente significativa, se renova por


completo no quadro da teoria dos sentimentos e das paixões, destacando o
papel primeiro da afetividade – o genealógico. A impossibilidade de operar
uma estrita divisão dos processos de pensamento em termos de sensível e
inteligível nos é conhecida, conforme o póstumo que já citamos: “sob cada
pensamento habita um afeto”. Aqui, como alhures do pensamento
nietzschiano, toda forma de dualismo é rechaçada com vigor. Do que segue
que as representações intelectuais, os juízos e os conceitos são relacionados às
procedências pulsionais e afetivas. (WOTLING, 2003, p.13)

Nessa direção, Nietzsche não apenas critica o dualismo metafísico entre paixão e
razão, sensível e inteligível, como também aponta para uma intrínseca relação não
dicotômica entre ambos, quando então a afetividade passa a ser concebida como o
fenômeno primeiro desde onde os pensamentos, as representações intelectuais, os juízos
e os conceitos tem sua gênese. Como não mais pensadas em um esquema dicotômico, a
razão e os afetos são deslocados radicalmente de seus topos e de suas funções assim como
os organiza e delimita a metafísica tradicional. No mesmo passo em que ocorrem esse
deslocamento topológico e qualitativo são criticadas filosofias, como a de Hume, que
buscam restabelecer o lugar da paixão frente à razão mantendo ainda em relação à paixão
a ideia de fundamento, unidade e sua ligação com a verdade:

Face a esta situação complexa, em que há, de um lado, o aspecto paradoxal da


posição metafísica e, de outro, a defesa da afetividade, que permanece
prisioneira de preconceitos idealistas (quais sejam, problemática do
fundamento, pesquisa da verdade, privilégio da unidade), faz-se urgente
repensar o estatuto da paixão. (WOTLING, 2003, p.14)

Ao pensar a paixão sob o termo mais primordial dos afetos, Nietzsche não os
conceberia como um fundamento do pensamento, mas como uma dinâmica que se efetiva
a partir de uma multiplicidade que não produziria uma verdade absoluta, mas somente
perspectivas. Há de se notar que em diferença à noção clássica de paixão demarcada por

169
uma passividade, os afetos performariam uma atividade própria71, a interpretação.
Segundo Wotling (2003, p.15) Nietzsche pensaria: “a positividade do afeto – seu caráter
ativo, engendrador e, digamos, interpretativo”. Se Nietzsche diz algo da paixão por meio
de sua teoria dos afetos o faz repensando o status daquela. Portanto a paixão sobrescrita
à teoria dos afetos é radicalmente reavaliada para além da topologia que lhe circunscreve
seu lugar dentro de uma hierarquia que a desvaloriza. Cabe, portanto, desdobrar o que
seria uma teoria dos afetos no discurso Nietzschiano para avaliarmos a radicalidade e a
amplidão que alcançam em relação ao esquema metafísico. Em torno dos afetos, Wotling
pondera que:

Convém, então, pensarmos a afetividade como atividade, processualidade


espontânea, e não como passividade, reação ou condicionamento. A
afetividade julga espontaneamente, e não simplesmente reage; a sua natureza
essencial é interpretativa, isto é, seu trabalho é uma atividade que dá forma ao
mundo a partir de preferências fundamentais. Aliás, para Nietzsche, o mundo
só existe como resultado desta hierarquização afetiva. (WOTLING, 2003,
p.15)

Nesse sentido, a atividade dos afetos é sempre interpretativa, criativa, afirmativa,


primordial, não secundária e reativa. Por ser uma atividade interpretativa a partir de
“preferências fundamentais” ela é interessada, e visto que todo conhecimento tem sua
“origem” em uma atividade pulsional e afetiva, nunca pode então ser considerado objetivo
e desinteressado, muito menos absoluto, haja vista que os afetos produzem apenas
perspectivas sempre parciais desde um ponto de vista singular. Considero ainda que a
atividade afetiva que engendra perspectivas é para desgosto da tradição metafísica uma
atividade inconsciente que se aproxima das noções de instinto e impulso. São o jogo e as
lutas hierarquizantes dos afetos que criam interpretações e perspectivas, não a consciência
do “puro sujeito” do conhecimento: “A noção de afeto se revela muito próxima das de
instinto e impulso. Distingue-se delas, no entanto, por ressaltar a dimensão
intrinsecamente passional desses processos infraconscientes, além de insistir na dimensão
inconsciente da afetividade.” (WOTLING, 2003, p.17). Sublinha-se, portanto, a importância

71
Os afetos não seriam apenas ativos, pois teriam a capacidade de ser afetados, nem passivos nem ativos,
eles sintetizariam os dois processos: “Por oposição à noção clássica de paixão, o afeto é um conceito que
permite sintetizar dois processos que, sem razão para tanto, consideramos comumente como distintos: ele
é tanto sensibilidade, isto é, capacidade de ser afetado, como capacidade de afetar ou ‘agir sobre’’.
(WOTLING, 2003, p.18)

170
que adquire a dimensão inconsciente dos afetos e sua atividade interpretativa no discurso
nietzschiano do conhecimento perspectivo, sendo o pensamento que chega à consciência
no conhecimento teórico e filosófico considerado como apenas um mero efeito superficial
que traduziria de forma simplista a longa gênese inconsciente da luta dos afetos para
imporem suas perspectivas. É através da afirmação dessa esfera afetiva inconsciente na
produção do conhecimento que encontraremos um outro sujeito não mais soberano de si,
“sujeito” que irá se relacionar de outra maneira com a gênese do conhecimento a partir
de uma inconsciência que o desaloja de seu lugar clássico. Desse modo, a partir de um
perspectivismo afetivo, transformam-se os valores do que pode ser o conhecimento.
Nessa direção, afirma Wotling que:

Compreendemos as razões que levam Nietzsche a insistir num perspectivismo


afetivo: mudar a iluminação das coisas, isto é, fazer variar o ângulo afetivo
segundo o qual nos apreendemos, voltar a suscitar coisas novas, a modificar o
peso e a medida das coisas. (WOTLING, 2003, p.14)

Desse modo, posso colocar não existem “coisas em si” a serem descobertas por
detrás das interpretações, mas afetos investidos sobre as coisas, fazendo-as serem vistas
sob novos ângulos, novos brilhos e medidas. Torna-se exemplar para a atividade
perspectiva certa prática artística de produzir perspectivas e novas iluminações acerca das
coisas. Em “o que devemos aprender com os artistas”, Nietzsche nos ensina a aprender
com essa prática:

De que meios dispomos para tornar as coisas belas, atraentes, desejáveis,


quando elas não o são? [...] Aí temos que aprender dos médicos [...] ainda mais
dos artistas, porém, que permanentemente se dedicam a tais invenções e
artifícios. Afastamo-nos das coisas para que não mais vejamos muita coisa
delas e nosso olhar tenha de lhes juntar muita coisa para vê-las ainda – ou ver
as coisas de soslaio e como que em recorte- ou dispô-las de forma tal que elas
encubram parcialmente umas às outras e permitam somente vislumbres em
perspectivas – ou contemplá-las por um vidro colorido ou à luz do poente – ou
dotá-las de pele e superfície que não seja transparente: tudo isso devemos
aprender com os artistas, e no restante ser mais sábios que eles. (NIETZSCHE,
GC, § 299)

É, portanto, com os artistas que deveríamos como “poetas-autores” 72 aprender a


prática de ver uma coisa não como uma “coisa em si” (pois em si exatamente as coisas
não têm valor algum, posto que sem o investimento de um afeto), mas a partir de ângulos
diferentes, prismas coloridos, pores dos sois e peles, em suma, a partir de diferentes afetos
perspectivos investidos. O caráter perspectivo do conhecimento, portanto, não performa
o “des-velamento”, o “des-cobrir” de uma coisa, mas cria algo no registro da invenção e

72
Cf. NIETZSCHE, GC, § 299

171
do artifício capazes de produzir sentidos, diferentes modos de aparecimentos das coisas.
Multiplicam-se os ângulos e os pontos de vista a partir dos afetos com que podem brilhar
(aparecer) de forma diferente as “coisas”. Por exemplo, o que para nós é a verdade, em
tempos de outrora era outra coisa, haviam outros afetos investidos, desse modo:

A iluminação e o colorido de todas as coisas mudaram! Já não compreendemos


totalmente como os antigos experimentavam o que eram mais frequente e
imediato – o dia e a vigília (...) A ‘verdade’ era experimentada de outra forma,
já que o louco podia ser considerado o seu porta-voz – algo que hoje faz rir ou
faz tremer a nós. Cada injustiça tinha outro efeito sobre o sentimento: pois se
temia uma represália divina, não um castigo e uma desonra civis. O que era a
alegria num tempo em que se cria nos diabos e tentadores? O que era a paixão,
se tida como o pecado da espécie mais perigosa, sacrilégio contra o amor
eterno, desconfiança de tudo o que era bom, puro, elevado e misericordioso? –
Devemos novas cores às coisas, não deixamos de pintá-las continuadamente”.
(NIETZSCHE, GC, §152)

É nesse sentido que o perspectivismo, a partir de uma experimentação com os


afetos interpretivos, torna o mundo novamente “infinito” de sentidos e nega a busca por
“uma coisa em si”, pois as “coisas” se modificam historicamente por meio dos diferentes
jogos de forças (afetos) pelos quais são atravessadas e que possibilitam diferentes valores
afetivos a cada vez. O mundo e sua história é um jogo de aparecimentos de aparências
diferenciais, de diferentes iluminações e cores que por sua vez não fazem função de
fachada ou meras aparências, pois aparência aqui designa um possível modo de aparecer
de um sentido, mas permitem o entrever sempre descontínuo das coisas. Pintá-las, como
é designado pelo autor, é permitir que as coisas apareçam sob outras ópticas, de outras
maneiras.

Se é em torno dos afetos e das paixões que se articula o conhecimento retomo a


problematização, já proposta, de qual é então a diferença em relação ao conhecimento
teórico moderno do modo de relação estabelecida pelo perspectivismo com os afetos, pois
ambas têm a seus diferentes modos uma gênese pulsional. Tratando das paixões Nietzsche
afirma que é necessário:

Em suma, dominar as paixões, mas não as enfraquecer, nem as extirpar! Maior


será a soberania do querer, mais ela saberá conceder liberdade às paixões. A
grandeza do “grande homem” reside na margem de liberdade de suas cobiças
e na potência ainda maior com a qual põe a seu serviço esses monstros
esplêndidos” (NIETZSCHE, VIII 2, 9 [139]) Apud WOTLING, 2003, p.19)

A partir de um belo paradoxo Nietzsche sugere que quanto maior o domínio sobre
as paixões, sem enfraquecê-las ou extirpá-las, pela soberania do querer (enquanto um

172
modo de afeto e não meramente como é usualmente entendido o querer enquanto uma
atividade sob o comando de um sujeito consciente) maior a liberdade que se pode
conceder às paixões sem ser por elas “escravizado”, tiranizado. Em suma, é preciso certa
potência de autoridade (afetiva) capaz de providenciar uma hierarquia que coloque a seu
serviço os “monstros esplendidos” que são as paixões. Sublinha-se que, no sentido do
conhecimento perspectivo, conhecer significa, segundo Wotling, poder interpretar um
afeto (um sentido) que, no entanto, é aquele que produz interpretações:

Colocar as paixões a seu serviço ou bem espiritualizá-las: um trabalho de


interpretação consiste em casar esses dois aspectos [...] Novamente, assistimos
aqui ao recurvar da análise: as interpretações provêm dos afetos, e estes, por
sua vez, devem ser interpretados. Interpretar, para Nietzsche, nesse sentido, só
pode ser controlar um afeto ou um impulso por intermédio de afetos ou
impulsos (e não pela autoridade de um pretendido sujeito sintético ou de uma
razão pretensamente soberana), donde resulta um reequilíbrio das relações de
potência. Como afirma o parágrafo 117 de Para além de bem e mal, “a vontade
de superar um afeto é, em última instância, tão-somente a vontade de um outro
ou vários outros afetos”. (WOTLING, 2003,p.20)

“Controlar” as paixões e afetos em prol do conhecimento perspectivo não seria a


tarefa de um sujeito soberano e sua razão, mas uma espécie de jogo dinamizado a partir
das relações entre os afetos. Interpretar seria, portanto, espiritualizar um afeto por
intermédio de outros afetos. Pode-se colocar em evidência que apenas o afeto interpreta
e só se interpreta um afeto por intermédio de outro afeto, enquanto a razão e a consciência,
por sua simplificação do múltiplo característico do jogo dos afetos, só fariam diminuir ou
castrar a potência interpretativa destes últimos. Em um parágrafo de “Aurora”, Nietzsche
apresenta uma belíssima imagem e paisagem: é preciso jardinar os impulsos, longe de
extirpá-los como se extirparia “o mal pela raiz”, e as paixões sempre foram essas flores,
raízes e sementes do mal; seria necessário jardiná-las e haveria ainda muitos modos de
jardiná-las:

O QUE NOS É PERMITIDO - Podemos usar os instintos como um jardineiro


e, o que poucas pessoas sabem, cultivar as sementes da cólera, da piedade, da
sutileza, da vaidade, de maneira a torná-las tão fecundas e produtivas como os
belos frutos de uma latada; podemos fazê-lo com o bom ou mau gosto de um
jardineiro e, por assim dizer, no estilo francês, inglês, holandês, ou chinês;
podemos também deixar a natureza trabalhar e cuidar somente de pôr aqui e
acolá um pouco de limpeza e de asseio; podemos, enfim, sem qualquer saber
nem razão diretriz, deixar crescer as plantas com suas vantagens e seus
obstáculos naturais e abandoná-las à luta que travam entre elas — podemos
mesmo encontrar prazer num tal caos e procurar precisamente esse prazer,
apesar do aborrecimento que se possa ter. Tudo isso nos é permitido: mas
quantos somos aqueles que o sabem? Quase todos os homens não acreditam
neles mesmos, como em fatos realizados, chegados à sua maturidade! Grandes

173
filósofos não puseram sua marca nesse preconceito com sua doutrina da
imutabilidade do caráter? (NIETZSCHE, A, §560)

Ao modo de um jardineiro, ensina Nietzsche, nos é permitido uma outra lida com
as paixões, na qual há um tanto de artifício, engenho e um tanto de caos, de selvagem
natureza. Necessário (no perspectivismo) torna-se o cuidar e o cultivar afetivo das
paixões, de suas sementes e crescimento. De outro modo, extirpá-las pelas raízes é
impedir o crescimento e o viço do ponto a partir do qual vem a ser os pensamentos, as
perspectivas e o caráter pessoal considerado em sua mutabilidade. Não à toa Nietzsche
nos fala dos pensamentos dos filósofos como a espécie menos vigorosa de pensamento·,
pois mais desértico e menos diverso é o terreno onde viçam seus pensamentos,
exatamente pelo desejo de aniquilamento das paixões em nome da razão e do
“monocultivo” da vontade de verdade. Por outro lado, o jardim onde vigora o caráter
perspectivo do conhecimento é mais amplo em diferentes afetos que lutam por impor as
suas diferentes perspectivas como plantas um tanto selvagens que buscam e lutam por seu
espaço aberto para aparecer ao brilho da luz solar. Por meio do perspectivismo, há sempre
uma “policultura” de diferentes afetos e por isso uma pluralidade de perspectivas como
frutos seus. A partir de uma relação afetiva com os afetos (é preciso manter a redundância)
cultivados, o pensador não apenas deixa virem á luz diferentes perspectivas, como
também e necessariamente se abre para uma contínua transformação de seu caráter e
identidade, pois, o pensador “é sempre outro” (NIETZCHE, GC. §307) desde a dinâmica
de alteridade dos diferentes afetos, e, portanto, não é partícipe da “doutrina da
imutabilidade do caráter” peculiar ao filósofo dogmático que sufocaria, em nome da
vontade de verdade, a dinâmica mutável das paixões e afetos . De outro modo, ser “sempre
outro”, “mudar de pele” porque atravessado por diferentes afetos perspectivos seria
característica do pensador/pensadora que não se permite a petrificação das ideias, dos
ideais e de seu caráter como algo fixo e imutável. O conhecimento perspectivo, nessa
direção, está remetido não à lógica da razão e sua relação desvalorizadora dos afetos, mas
à vida73 em seu vir a ser como uma multiplicidade de forças em luta que se concretizam
no homem sob a forma dos afetos. Nesse sentido, o perspectivismo, além de estabelecer
um outro modo de conhecimento, concebe ao mesmo tempo um diferente modo de
relação com as forças afetivas, instintos e paixões que nos atravessam e continuamente

73
Ver Nietzsche, GC, § 307.

174
transformam a partir de suas alteridades a identidade subjetiva enquanto algo que vem a
ser. Conhecer não mais se subordinaria, assim como é entendido por Nietzsche, ao
princípio da identidade e igualação assimiladora da razão e da consciência, mas a um jogo
com diferentes perspectivas, e, nesse sentido, alteridades de “olhares” de “múltiplos
sujeitos” em um mesmo “indivíduo” se instituiriam a partir da dinâmica inconsciente dos
diferentes afetos perspectivos. O conhecimento passa a ser engendrado não mais a partir
do princípio racional enquanto assimilação do desconhecido pelo já conhecido próprio do
processo consciente como diagnostica Nietzsche, mas como um modo de “incorporação”
de diferentes alteridades (diferentes olhares) inscritas a partir de uma multiplicidade
dinâmica dos afetos perspectivos que buscam impor suas diferentes interpretações. Trata-
se, enfim, de algo que se engendra a partir daquele registro que Nietzsche (Za, p.51)
identificou em diferença com a pequena razão, o espírito, como a grande razão enquanto
corpo, “uma multiplicidade com um sentido”.

Nesta direção, posso considerar que em oposição a superestimação tradicional da


alma, do eu e do sujeito na produção de conhecimento, o perspectivismo com a
valorização dos afetos se enraizaria em certa compreensão de corpo concebido como uma
multiplicidade. Portanto, para desenvolver o alcance do tema da subjetividade e do
perspectivismo e sua relação com a consciência e o conhecimento, entendo como
fundamental aprofundar em seguida a questão do corpo na ótica nietzschiana.

3.7 O corpo como multiplicidade

Zaratustra ensina em “os desprezadores do corpo” que :

Eu sou todo corpo e nada além disso; a alma é somente uma palavra para
alguma coisa do corpo; o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com
um sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento do
teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas ‘espírito’,
pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão (NIETZSCHE, Za, p.
51).

O corpo é entendido na perspectiva nietzschiana não como uma oposição material


ao espírito, muito menos como uma unidade fixa ao modo de um novo e privilegiado
fundamento, mas como uma grande luta de múltiplas forças (“uma multiplicidade”) que
tendem à expansão e ao crescimento (“um sentido”). Corpo é muito mais um processo de

175
incorporação, de fazer-se corpo da luta de diferentes forças, uma organização de
hierarquias sempre dinâmicas que têm a pequena razão a seu serviço, como um
“instrumento” e “brinquedo”. Novamente aqui, a atividade do espírito, nomeada como a
“pequena razão” é considerada como não autônoma e é subordinada a um maior complexo
de forças que é denominado de “grande razão”, o corpo. É a partir do corpo como um
jogo de forças afetivas, essa grande razão, que se engendrariam as diferentes perspectivas
assim como os pensamentos e os sentimentos, pois “por detrás dos teus pensamentos e
sentimentos, meu irmão, encontra-se um poderoso amo, um sábio desconhecido, que se
chamam Si Mesmo. É no teu corpo que ele reside, ele é o teu corpo (...)” (NIETZSCHE,
ZA, p.52). O conhecimento perspectivo seria, portanto, um modo de afinidade, enquanto
escuta e cuidado, com essa multiplicidade de forças afetivas em luta que é o corpo, pois
“há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E por que o teu corpo, então,
precisaria logo da tua melhor sabedoria?”(NIETZSCHE, Za p. 51). A medida da sabedoria
torna-se a potência de um corpo como um si mesmo que não se deixa abarcar pela
consciência. Pode-se colocar que a “razão” presente no corpo, diferente da “pequena
razão” da consciência que tende à simplificação, é múltipla e dinâmica, pois seria a
expressão das lutas das diferentes forças afetivas por impor sua interpretação. Nietzsche,
ao afirmar o corpo como uma grande razão múltipla e dinâmica ao qual se subordina uma
pequena razão “espiritual”, está a deslocar e problematizar uma questão e “de-cisão”
primordial ao pensamento da metafísica. Segundo Barranechea desde os primórdios da
metafísica, já em Parmênides, o privilégio do pensamento racional vinculado ao Ser
desprezou, desvalorizou e por consequência esqueceu o corpo:

O corpo, então, nada tem a ver com a filosofia. O pensar, a partir da metafísica
parmenídea, inaugura-se como uma tarefa realizada sem a participação do
corpo, sem a presença da carne. O corpo, na concepção metafísica parmenídea,
está presente apenas como aquilo que deve ser banido do campo da razão, e
ato seguido deve ser esquecido. Conforme estas ponderações, quero apresentar
a hipótese de que a metafísica surge com o questionamento da carne, com o
imediato esquecimento de tudo o que é corporal. Trata-se de um procedimento
de desqualificação e esquecimento. (BARRENECHEA, 2011, sem paginação)

Argumenta o intérprete que já em Parmênides, pensador pré-socrático, tal “de-


cisão” de um esquecimento proposital sobre o corpo edifica o lugar do pensamento na
metafísica, mas ainda deve-se assinalar que tal reflexão sobre o pensamento e o corpo
torna-se a herança sob a qual se constroem as valorizações metafísicas. Platão, com a
instauração do mundo verdadeiro em oposição ao mundo sensível, irá radicalizar a

176
dicotomia já acenada por Parmênides. O corpo torna-se um empecilho para o
desvelamento da verdade do Ser por parte da razão atributo da alma imortal:

Nesta vida não aproximaremos da verdade a não ser afastando-nos do corpo


[...] e conservando-nos puros de todas as suas imundícies até que o deus venha
nos libertar. [...] livres da loucura do corpo, conversaremos [...] com homens
que usufruirão a mesma liberdade e conhecermos por nós mesmos a essência
das coisas. (Platão, 1966, 66a-67d )

Portanto, com Platão, o afastamento do corpo, de suas “imundices e loucuras”


concretiza-se em sua radicalidade e torna-se o caminho necessário para aproximação, pela
alma imortal, da verdade e consequentemente da possibilidade do conhecimento da
essência das coisas que não se encontram no mundo sensível, mas em um mundo
verdadeiro a que só se teria acesso pela alma a partir do banimento do corpo. A dicotomia
que, ao mesmo tempo, valoriza uma alma imortal desvalorizando um corpo mortal
acentua-se no discurso platônico e torna-se o paradigma fundamental a partir de onde se
constroem os edifícios metafísicos do pensamento ocidental. Só há metafísica a partir de
certa compreensão (dirá Nietzsche, má compreensão) e (des)valorização do corpo. É a
partir da crítica nietzschiana aos valores da metafísica tanto antiga quanto moderna que o
corpo torna-se o fio condutor para a compreensão do homem e dos demais problemas
considerados como superiores e essenciais pela tradição metafísica: alma, eu, ser, razão,
verdade serão interpretados então a partir dessa multiplicidade que é o corpo:

Nesse aspecto, o filósofo alemão produz uma importante subversão na


concepção tradicional do homem. O corpo deve ser na sua ótica, o fio condutor
para a compreensão do humano, para interpretar todas as questões, desde as
premências vitais, do dia a dia, até as ideias consideradas como as mais
elevadas, mais complexas da reflexão filosófica. (BARRENECHEA, 2011,
sem paginação).

É a partir do corpo, como o concebe Nietzsche, que tais questões, como o ser, a
alma, o eu, consideradas mais elevadas pela metafísica, serão desmistificadas e
denunciadas como meras ilusões, fantasias de uma fisiologia doente que tentaria
reativamente escapar do incessante vir a ser de todas coisas, incluindo do próprio corpo.
Mas também é a partir do corpo que as questões mais fundamentais serão reavaliadas:
aquelas que estão mais próximas da singularidade como a alimentação e o lazer
(NIETZSCHE,EH, pp.50-51). Desse modo, também o pensamento consciente, da pequena
razão é revalorizado a partir do corpo que se torna um “todo” múltiplo pensante:

177
Esse pensar consciente é apenas uma ínfima parte da miríade de pensamentos
corporais, é apenas um pensar que se traduz em palavras. Consciência e
linguagem se articulam na visão de Nietzsche. Os processos orgânicos para os
quais carecemos de palavras que os traduzam permanecem ignorados.
Contudo, esse pensar não consciente predomina no organismo. Em resumo, o
jogo dos instintos, a luta dos impulsos perfaz a dinâmica fundamental em nossa
condição corporal e a denominada “consciência” ou “razão” nada mais é do
que forças corporais que se transformam em signos comunicáveis.
(BARRENECHEA, 2011, sem paginação).

O corpo enquanto uma grande razão é concebido como uma multiplicidade de


afetos, instintos e pulsões interpretantes que de modo inconsciente performam
pensamentos e, por consequência, a consciência, a razão e o “eu” não são a partir dessa
radical subversão considerados agentes soberanos causadores do pensamento. É nesse
sentido que Nietzsche afirmara que a maior parte de nossa atividade espiritual não se dá
de maneira consciente, há toda uma atividade do pensamento não consciente articulada à
vida pulsional dos afetos da qual apenas certa parcela, a menor, e de forma mais impessoal
é transformável em signos comunicáveis próprios da consciência. Por outro lado, se toda
noção de subjetividade a que nos fiamos é considerada a partir das noções de alma, eu,
espirito que são por sua vez reavaliadas e repensadas sob uma outra hierarquia por
Nietzsche, como podemos ainda pensar em subjetividade? Tal subversão nietzschiana
leva Barrenechea a considerar a seguinte questão:

Uma vez que foram questionadas as noções do dualismo metafísico e religioso


que cindiam o homem em corpo e alma; uma vez objetada a crença moderna
em um sujeito do pensamento puro e desencarnado, seria possível afirmar que
Nietzsche nega toda e qualquer noção de sujeito ou de subjetividade? [...]
vemos surgir uma concepção não do sujeito, mas da subjetividade, de uma
subjetividade processual, dinâmica, em permanente construção, uma
subjetividade carnal, corporal. Que significa neste caso a noção de
subjetividade? Não aludimos a uma entidade, a um substrato, a uma essência,
a um aspecto permanente e essencial do ser humano. No homem, na carne
humana, encontramos um incessante dinamismo, um perpétuo jogo de forças;
contudo, a cada momento dessa configuração do dinamismo corporal, a
totalidade orgânica estabelece hierarquias. Entre as forças há algumas que
pontualmente vencem, dominam e impõem sua vontade à totalidade corporal.
Existem então pontos de sujeito, pontos de subjetividade. Os processos, ditos
internos, se desenrolam em um dinamismo de pulsões, em um cenário de lutas
corporais. Nesta ótica, a subjetividade, longe de ser pensada como um novo
substrato, interpretada como uma outra essência, agora é considerada no seu
caráter corporal, como um processo, como uma luta que estabelece, momento
após momento, harmonias provisórias, conforme as necessidades da ação de
um determinado organismo. Nesse sentido, o homem é múltiplo, diverso, como
múltiplas e diversas são suas pulsões, emoções, desejos. (BARRENECHEA,
2011, sem paginação).

178
Barrenechea (2011) propõe, a partir de sua leitura de Nietzsche, uma subjetividade
encarnada, carnal, corporal, em contraposição a uma noção de uma subjetividade
enraizada em um eu desencarnado como desenvolvimento da crença em uma alma
imortal, pura e heterogênea ao corpo e sua multiplicidade de afetos, impulsos e paixões.
Tal subjetividade corporal não se configuraria como uma nova substancialidade ou
essencialidade do homem, ao contrário, aludiria a um processo ininterrupto da atividade
de luta de diferentes forças que compõe o corpo considerado como uma multiplicidade.
Como resultado a subjetividade corporal não configuraria uma identidade fixa, mas uma
“identidade” em constante construção e desconstrução a qual a partir das diferentes
hierarquias transitórias submetidas a uma força prevalente em determinado momento da
luta, engendra “pontos de sujeito”, “pontos de subjetividades” estabelecendo “harmonias
provisórias”, máscaras sem um rosto verdadeiro ao fundo. Segundo Barrechenea:

[...] Nietzsche questiona toda e qualquer identidade, consistência ou


substancialidade; ele coloca em xeque a suposta consistência e unidade da
consciência ou do eu, já que o ponto sujeito muda a cada instante, já que o
domínio do orgânico é exercido não por um sujeito, mas por uma pluralidade
de sujeitos, por uma aristocracia de forças que se alternam na regência do corpo
(BARRENECHEA, 2009, p.125)

O homem não é considerado pelo intérprete, em sua leitura de Nietzsche, a partir


de noções metafísicas como eu, sujeito, consciência e alma enquanto uma unidade fixa
predeterminada por uma essência, mas como corpo enquanto uma multiplicidade diversa
composta pela carnadura de suas paixões, afetos e desejos. Ainda em torno dessa
subjetividade carnal, corporal, pode-se afirmar que tal concepção do homem propõe um
giro, um deslocamento radical no pensamento filosófico e na proposição de suas questões
e problematizações: não mais atrelado por uma metafísica de um sujeito desencarnado
que teria por resultado uma concepção de substancia, Ser e além mundo74· restariam ao
saber filosófico questões relativas a sujeitos singulares, em suas concreções com seus
corpos e paixões. Restaria um pensamento do singular ou melhor das singularidades em
contraposição a especulações abstratas, impessoais, a-históricas e universais. Pode-se
especular que é das heranças desse pensamento do singular em Nietzsche que as questões
em torno do feminino, da raça, dos gêneros e dos corpos começaram por fim a emergir
de uma longuíssima denegação (mais que esquecimento) enquanto questões encarnadas,

74
Nunca refleti sobre problemas que não o são – não me desperdicei. [...] ‘Deus’, ‘imortalidade da alma’,
‘salvação’, ‘além’, puras noções, às quais não dediquei atenção nenhuma, tempo algum, mesmo quando
criança – talvez não fosse infantil bastante nisso. (NIETZSCHE. apud BARRENECHEA, 2011, sem
paginação)

179
singulares, concretas, de uma experiência do “próprio”, ou melhor, de certa pessoalidade
singular. O pensamento do singular liberaria a emergência de perspectivas singulares com
toda a sua pessoalidade, interesse, corporalidade, histórias, paixões e desejos, já que
possibilitaria o aparecimento de perspectivas não mais submetidas à lógica de uma
racionalidade excludente do que seria mais “próprio”, mais pessoal, mais singular. Nessa
direção, Barranechea afirma que:

O conceito de subjetividade carnal, de subjetividade corporal, longe da


tradição idealista e substancialista, partindo da concepção nietzschiana de
corpo, destaca a condição do homem concreto, da experiência vivida,
valorizando um saber do singular, do absolutamente pessoal. [...]
(BARRENECHEA, 2011, sem paginação).

A subjetividade encarnada, longe de oferecer um novo fundamento para o


pensamento do ser do homem, propõe uma perspectiva singular do homem não como
aquele que “É” alma, “corpo” (no sentido de uma unidade fixa), eu, mas como algo que
vem a ser a partir do processo das lutas das diferentes forças que o atravessam,
constituindo-se ele mesmo, o homem, como um processo que não pressupõe um sujeito,
no sentido moderno, mas pontos de subjetividade, pontos de sujeito transitórios marcados
por um jogo de forças. O “absolutamente pessoal” pensado por Barrenechea não se
referiria, portanto, a uma interioridade fechada e substancializada, mas a um processo,
um devir no qual o homem vem a ser a partir das inúmeras e múltiplas forças que o
atravessam, o marcam e novamente apagam outras marcas, o constroem e desconstroem.
As perspectivas que vêm a ser nesse processo, dizem respeito a uma singularidade e aos
traços marcados pelas forças e afetos que as percorrem, à uma experiência concreta com
certa corporalidade e sua história, seu devir em meio a uma multiplicidade de forças. Com
a ênfase na subjetividade pensada carnalmente, cabe ainda desenvolver o papel que
assumiria a consciência neste jogo de forças. Importa avaliar qual o seu sentido e valor
quando a consciência não é mais superestimada, mas subordinada ao processo corporal.
Se a consciência era tomada como a sede do conhecimento racional e também como
“espaço” de construção da subjetividade, cabe investigar qual o seu valor nesta outra
hierarquia de forças comandada pela grande razão que é o corpo.

A partir de uma noção de subjetividade encarnada, deve-se ainda reavaliar o papel


atribuído à consciência como sede do conhecimento e fundamento da identidade do
homem na perspectiva moderna, pois ainda que subordinada a partir do todo corporal, a
grande razão, ela teria uma função especifica em relação à multiplicidade de afetos e

180
impulsos. Dois movimentos tornam-se então intrínsecos; a crítica ao valor da consciência
como foi concebida metafisicamente e a afirmação de seu papel subordinado à totalidade
corporal. Segundo Barrenechea:

A consciência não é um substrato subjetivo, a essência do homem, como a


tradição idealista sinalizou. Ao contrário, os fenômenos conscientes são
intermitentes e variáveis, oscilando sem cessar, conforme a força que
ocasionalmente se impõe no confronto entre os impulsos corporais. Assim, não
há consciência, entendida como estrutura estável, mas inúmeras consciências
corporais; cada uma delas é instantânea, configurando apenas um ponto no
devir orgânico, uma onda efêmera os processos do corpo. Além disso,
Nietzsche sustenta que todo o corpo pensa que todas as atividades orgânicas
formam parte do pensar, do sentir, do querer. Aquilo que chamamos
consciência é apenas uma pequena parte de todos esses pensamentos corporais,
havendo inúmeros pensamentos inconscientes: “pressupõem-se aqui que o
organismo inteiro pensa que todas as formas orgânicas tomam parte no pensar,
no sentir, no querer [...]” (BARRANECHEA, 2009, p. 123)

Submetida ao corpo e ao jogo e luta de sua multiplicidade de forças, a consciência


não é mais considerada como um “estrutura” estável, exterior e soberana ao orgânico,
mas um efeito deste que se apresenta não como uma unidade, mas como “inúmeras
consciências corporais” intermitentes e variáveis de acordo com a força que prevalece
dominando determinada hierarquia de forças e impondo sua perspectiva às demais. Não
podendo mais ser identificada como o faz a tradição idealista e moderna como o
fundamento seguro do conhecimento e da subjetividade humana, a consciência, ou
melhor, as inúmeras consciências corporais (também concebidas como uma
multiplicidade) são revalorizadas a partir da subordinação ao corpo. Nesse sentido, é dito
pelo intérprete que “o corpo emprega a consciência para a realização de seus fins,
conseguindo estabelecer a harmonia entre os diversos interesses conflitantes desse
conjunto instintivo” (BARRANECHEA, 2009, p.120). Não haveria, assim, uma negação
das atividades conscientes, mas, a partir do trabalho de investigação nietzschiana, elas
seriam delimitadas e re-valorizadas a partir do contexto corporal e determinadas por ele,
carecendo de uma suposta autonomia. O próprio eu e suas pretensas atividades são
realocados de seu lugar soberano e tornam-se não agentes, mas mero meio para um fim
determinado pela grande razão que é o corpo: “o teu ser próprio ri-se do teu eu e de seus
ativos pulos. ‘Que são para mim estes pulos e voos do pensamento? ´diz de si para si. ´um
simples rodeio para chegar aos meus fins. Eu sou as andadeiras do eu e o insuflador de
seus conceitos´” (NIETZSCHE, Za, p.51). Tornam-se então a consciência e o eu
instrumentos intrínsecos do corpo para a organização de uma tensa harmonia temporária

181
dos conflitos divergentes de suas forças, “pois o corpo se utiliza, a cada momento, de uma
consciência – ou pequena razão – para agir com determinação e precisão”
(BARRENECHEA, 2009, p.122)

Ressalta-se que em sua consideração da consciência como um instrumento do


corpo, um aparelho simplificador” (BARRENECHEA, 2009, p.123) da complexa e
múltipla luta de forças divergentes para estabelecer uma harmonia temporária subjaz uma
concepção não dualista das noções de consciência e corpo, pois:

Com isso encontramos outros argumentos para evidenciar que o


questionamento nietzschiano ao dualismo é categórico: não há duas instâncias
separadas, que configuram domínios diversos: o consciente e o corporal. A
função das atividades conscientes é re-colocada na totalidade corporal: trata-
se de processos corporais com a função especifica da criação de símbolos, de
produzir interpretações ao serviço do conjunto fisiológico.
(BARRENECHEA,2009, p.125)

A consciência repensada pela perspectiva nietzschiana, longe de se estabelecer


como uma autonomia supostamente superior e heterogênea ao corpo faria parte mesmo
dos processos corporais, subordinando-se como um mero instrumento em prol de
temporárias organizações do todo múltiplo que é o corpo. À consciência caberia a
atribuição específica de “produzir" ou melhor co-estabelecer junto a um impulso vitorioso
tornado consciente interpretações-sínteses possibilitando certo comando do sentido da
multiplicidade, no qual, apesar de comandar temporariamente o conjunto das forças
orgânicas, obedece e subordina-se em função dessa totalidade como parte integrante de
uma hierarquia maior que é o corpo . Nesta direção explica Barrechenea que:

A cada momento há uma força vitoriosa que se transforma em impulso


consciente, afirmando sua própria interpretação e dirigindo a totalidade
orgânica. Mas após esse momento efêmero, em que esse impulso tornou-se
vitorioso e hegemônico, a luta recomeça, as diferentes forças continuam se
defrontando em prol do poder e outros chefes- outras forças-chefe- se sucedem
no comando do corpo. [...] A consciência surge, portanto, como um
instrumento a serviço de uma força – ou grupo de forças – vitoriosas, que
provisoriamente domina a comunidade orgânica: “[...] a consciência é apenas
um instrumento e nada mais, no mesmo sentido em que o estômago é um
instrumento.” (BARRENECHEA, 2009, p.118)

Como mero instrumento a serviço de uma força ou forças vitoriosas, a consciência


pode ser concebida como o resultado e efeito de um longo combate de luta entre as forças
beligerantes que compõem o movimento incessante da multiplicidade que é o corpo.
Nesse sentido, à consciência identificada com a força vitoriosa pode-se atribuir
eventualmente a direção e o domínio da totalidade orgânica para tão logo continuar o jogo
de luta das múltiplas forças com a destituição da força-chefe. O provisório comando da

182
consciência seria então uma obediência a totalidade corporal. A consciência seria, pois,
fundamental na articulação do sentido-síntese temporário para o direcionamento da
comunidade orgânica, mas ainda assim não como soberana, mas enquanto instrumento.
Pode-se ponderar que a função que lhe é atribuída de produção de pensamentos é uma má
compreensão de sua atividade instrumental, pois pensar não seria uma atividade própria
da consciência ou de um órgão especifico (o cérebro), mas de toda a comunidade corporal
assim como o sentir e o querer, à consciência nos chegaria apenas uma ínfima parcela, a
mais superficial e impessoal, atrelada à linguagem e sua função comunicativa. Neste
sentido sua atividade seria mais próxima a de um “órgão” de tradução que, em função da
comunicação, simplifica uma complexa e múltipla gênese do pensamento. Destituída de
sua hipervalorização e inflação como sede do conhecimento e fundamento da
subjetividade do homem, resta à consciência seu caráter meramente instrumental, ainda
que fundamental, na organização e “doação” de um sentido, de uma perspectiva
temporária ao todo múltiplo que é o corpo. Do ponto de vista do problema da
subjetividade, ainda que a consciência se assimile a uma perspectiva vitoriosa produzindo
uma identificação com certos valores, tal identificação não passaria, em termos de
produção de uma “identidade” de uma máscara provisória que logo deveria, desde sua
função específica, ceder lugar a uma nova conjuntura das forças. Nesse sentido, a
concepção de jogo de máscaras sem um rosto por detrás (ecoando os mistérios dionisíacos
do deus da metamorfose) torna-se a melhor expressão para o contínuo jogo de provisórias
identificações da consciência com certa hierarquia de forças, mas sempre subordinada ao
movimento incessante do devir que é o constante embate das forças, pois “mesmo que no
organismo reinem a ordem e a hierarquia, é característica fundamental dessa comunidade
de seres vivos a permanente instabilidade, a continua mudança.” (BARRENECHEA,
2009, p.118).

Além disso, a consciência, o espírito são equiparados por Nietzsche a um


estômago, outra vez uma metáfora corporal, pois teriam em comum funções semelhantes
como a assimilação e a incorporação pois “o homem incorpora permanentemente: nutre-
se de ideias, digere as que são úteis e, por fim, elimine as que não servem para sua vida”
(BARRENECHEA, 2009, p,128), nesta direção, afirma Nietzsche que:

A força que tem o espírito, de apropriar-se do que lhe é estranho, manifesta-se


num forte pendor a assimilar o novo ao antigo, a simplificar o complexo [...]
tudo isso necessário, conforme o grau da força apropriadora, de sua “força
digestiva”, usando uma imagem – e realmente, o espírito se assemelha mais
que tudo a um estômago. (NIETZCHE, ABM,§230)

183
Longe de ter propriedades sublimes e “qualidades metafísicas” heterogêneas à
corporeidade como pensadas pelo idealismo, a força da consciência, sua capacidade de
apropriação e simplificação em tudo se assemelham às funções gástricas de um estômago,
assim como é afirmado por Zaratustra: “porque na verdade, meus irmãos, o espirito é um
estômago.” (NIETZSCHE, Za, “Das velhas e novas tabuas”, §16) Desse modo, a
consciência como espirito seria caracterizada literalmente por Nietzsche, através de
Zaratustra, como um estômago, nessa direção ela não seria algo para além e superior ao
orgânico e ao corpo mas parte integrante desse, funcionando como um estômago. Pode-
se afirmar, através de Nietzsche, que não existem em absolutos fenômenos psíquicos
autônomos da consciência, sendo estes apenas “uma forma especifica dos processos
corporais, vinculados à criação de signos, às atividades de interpretação”
(BARRENECHEA, 2009, p.131). Ao assimilar e interpretar, a consciência traduziria,
incorporaria e simplificaria a multiplicidade de forças inconscientes, que, por sua vez, já
seriam uma multiplicidade de interpretações. A consciência efetivaria uma interpretação
já de segunda ordem, com a função de simplificar e ordenar momentaneamente a
multiplicidade de impulsos interpretativos. Como um estômago, caberia à consciência
selecionar, assimilar o que é mais potente para a vida, para a comunidade orgânica e
eliminar aquilo que lhe seria enfraquecedor possibilitando sempre espaço para a
assimilação de novas interpretações advindas da constante dinâmica de luta dos impulsos
para impor suas interpretações.

Ao comparar a consciência a um estômago, Nietzsche procuraria fundamentalmente


criticar sua imagem espiritual, autônoma e idealizada que se construiria sobre os alicerces
metafísicos ao subordiná-la aos demais processos orgânicos que constituem a
multiplicidade que é o corpo. Desse modo, ela não é mais considerada fundamento seguro
e autônomo para a constituição dos pensamentos e da identidade por ser apenas um
instrumento de uma comunidade orgânica que no todo pensa, sente e quer. Assim como
o pensamento e a interpretação são “re-articulados” e repensados a partir do todo múltiplo
que é o corpo também a subjetividade passa a ser referida a esse todo múltiplo
apresentando-se a partir de novas hipóteses que levam em consideração a multiplicidade
e o devir que o constitui: corpo como comunidade de almas, como multiplicidade de
sujeitos, subjetividade encarnada e corporal são modos de expressões para dar conta de
um processo chamado homem que deriva de uma multiplicidade de forças que lutam para
impor sua interpretação movidas pelo pathos da vontade de poder. Na ausência de um

184
fundamento ou essência que lhe seria próprio, fenômeno condizente com a passagem na
“morte de deus” e com a desconstrução de suas sombras como alma, eu, espírito e
“sujeito” em seus aspectos metafísicos, resta ao homem ter de haver-se com a
multiplicidade e o devir que caracterizam sua corporalidade. Resta o jogo da diferença e
da alteridade inscritos na multiplicidade de forças que o atravessam, compondo o que se
chama de outros modos, a partir de Nietzsche, de subjetividade e corpo.

185
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurei ao longo deste trabalho apresentar o desenvolvimento de certa crítica de


Nietzsche ao sujeito moderno, à subjetividade moderna e suas implicações no campo
gnosiológico, ético e ontológico. Busquei, ainda, fazer uma problematização, que se
relacionaria com a crítica de certa metafísica da presença, do sujeito e de sua implicação
frente a uma lógica da identidade. Além disso, procurei refletir se a crítica nietzschiana
poderia ser articulada ao pensamento da diferença e da alteridade como elementos
desconstrutivos dessa lógica. Se o sujeito, como é concebido pela modernidade,
apresenta-se como o fundamento orientador e, em certo grau, possibilitador daqueles
campos, o que pode acontecer com esses após a crítica nietzschiana de seu fundamento,
o sujeito?

No primeiro capítulo, a partir das análises críticas do filósofo alemão, pôde-se


averiguar que, na concepção do sujeito moderno, predominaria uma fundamentação de
cunho metafísico-religioso, que se manifestaria mais concretamente na concepção de
consciência, assim como esta é valorizada principalmente na época moderna,
particularmente a partir de Descartes, mas também Kant. A consciência apareceria na
modernidade, sob a óptica crítica do filósofo , não a partir de uma descontinuidade com
a tradição metafísico-religiosa anterior, mas como sua herdeira, constituindo-se em uma
suposta autonomia e soberania e apreendida como uma unidade e essencialidade própria
do homem com a característica de, junto ao eu, não participar do fluxo do vir a ser. O
homem compreendido essencialmente como sujeito da consciência e a partir de sua
racionalidade intrínseca adquiriria o status de ente privilegiado capaz de aceder a razão
e a verdade distinguindo-se dos demais entes, além de poder por intermédio de sua
racionalidade afastar-se de sua condição corporal, instintiva e passional. Nesse sentido,
o homem tornar-se-ia sujeito na medida em que é capaz de fazer-se consciente pela
racionalidade como o mais próprio e essencial de si.

Ora, a crítica de Nietzsche, assim como intentei evidenciar, procura denunciar que
a consciência não se caracteriza como uma essência e propriedade atemporal do homem,
mas como algo que tem um gênese e desenvolvimento. A hipótese desenvolvida por
Nietzsche é que a consciência teve seu desenvolvimento em função de um impulso de

186
conservação do homem em sua condição de animal desprotegido e frágil que precisava
frente aos perigos e à multiplicidade do mundo simplificar e abreviar sua experiência em
prol de uma comunicação consciente, por signos, que assegurasse o “rebanho”. Tal
hipótese de gênese, procuraria como busquei expor, destruir e destituir a caracterização
idealista da consciência como uma essência. Portanto não haveria nada de atemporal e
essencial, transcendental ou divino em sua constituição, ao contrário ela teria se
desenvolvido por um imperativo humano, demasiadamente humano e mundano. Nessa
direção, os atributos fundamentais do sujeito moderno e de sua possibilidade de
conhecimento, como a consciência e a racionalidade, são destituídos de sua áurea sagrada,
de sua suposta origem ora divina ora transcendental: a consciência nada mais faz que,
aliada à racionalidade e à lógica, servir a um impulso de conservação. Nesta perspectiva,
especificamente no campo gnosiológico, Nietzsche buscara apresentar e afirmar sua
hipótese de que a consciência comumente entendida como a sede do conhecimento não
se constitui como uma origem autônoma dos pensamentos; mesmo o eu e o sujeito (do
conhecimento), supostos agentes dessa atividade “espiritual”, apresentam-se como
ficções. Nietzsche afirma que os pensamentos, inclusive a lógica teriam uma longa
gênese inconsciente no jogo e luta dos impulsos, não sendo assim atribuídos a um suposto
sujeito consciente. À consciência só chegaria o acordo final dessa luta, portanto apenas
um efeito de determinada gênese pulsional caracterizada por meio de uma relação de luta
e combate. O sujeito considerado em sua autonomia frente ao corpo, aos instintos e
pulsões não seria o fundamento seguro do conhecimento e da atividade do pensamento
como é concebido pela modernidade filosófica. A partir dessas considerações, pôde-se
concluir que o conhecimento não poderia ser representado como uma atividade
puramente espiritual, desinteressada, objetiva e afastada do corpo e sua atividade
pulsional. Apresentando o sujeito e o "eu” como ficções, Nietzsche não estaria utilizando
tal caracterização como uma mera desvalorização de seus caracteres ficcionais frente a
uma suposta realidade; não estaria em jogo a velha dicotomia ficção/realidade, mas a
avaliação de suas potências como ficções para afirmar a vida entendida como
multiplicidade de forças em devir, na qual se incluem os impulsos. De certo modo, pode-
se averiguar que Nietzsche avalia a ficção metafísica do sujeito e do eu como “efeitos”
da necessidade de um impulso que se realiza exclusivamente em favor da conservação de
determinado tipo de vida que necessita se proteger da própria vida. Como considerei tal
avaliação leva Nietzsche a considerar a ficção do sujeito (do conhecimento) e do eu como
são constituídos na modernidade apenas como uma necessidade de determinado tipo de

187
vida, com determinado modelo de conhecimento, que tem no re-conhecimento e no
asseguramento suas atividades específicas dinamizadas por um impulso negador da vida.
Nesse sentido, averiguou-se que para o filósofo elas se apresentariam como ficções
desnecessárias quando avaliados a partir do critério da vida como vontade de potência. A
partir desse critério seria possível estabelecer um outro “modelo” de conhecimento que
afirmaria a vida no vir a ser de sua multiplicidade. O que levaria Nietzsche a conjecturar
novas hipóteses em relação ao “sujeito”: como coletivo de almas, multiplicidade de
sujeitos, sujeito em devir, etc. Tais hipóteses, também ficcionais, é preciso sublinhar,
apontariam para um processo dinâmico e múltiplo das forças que constituem o devir do
“sujeito” e que implicariam uma forma de conhecimento não mais fundamentada no mero
“re-conhecimento” do novo pelo já conhecido e na simplificação redutora do múltiplo.
Inclusive, trata-se não apenas de considerar um conhecimento para além do “re-
conhecimento” como uma assimilação do novo pelo já conhecido e do múltiplo pela
simplificação, mas de avaliar sua possibilidade de afirmação da multiplicidade e do vir
a ser que nos constituem como “sujeitos” em devir, tornando desnecessária a hipótese de
um sujeito como uma unidade estável e como fundamento seguro e estável do
conhecimento.

A partir da constatação de que a atividade da consciência e a gênese dos


pensamentos se dão por meio de uma longa disputa entre diferentes impulsos, pôde-se
contatar que Nietzsche procuraria não mais problematizar o conhecimento sob o modelo
de indagação metafísica (“o que é o conhecimento?”) que se propõe a buscar uma essência
verdadeira do conhecimento, mas a partir da investigação genealógica de que impulso ou
impulsos engendram tal atividade e sua gênese. Com esta orientação considerei que o
filósofo reconhece que seria o impulso de conservação traduzido como um impulso de
medo ao estranho e diferente e o júbilo do conhecimento, o sentimento de segurança
reconquistado, que orientariam o projeto de conhecimento, não apenas, mas
particularmente na modernidade. Contudo, como busquei evidenciar, a reflexão de
Nietzsche não se limitaria apenas a estabelecer tal consideração negativa do
conhecimento, pois assim como ele veio a ser desse modo sob o imperativo de um
impulso de conservação, outros impulsos que não se limitam apenas à conservação de
determinado tipo de vida podem-se articular na produção do conhecimento, como, por
exemplo, o impulso lúdico. A partir de sua concepção da participação dos impulsos na
constituição dos diferentes modos de conhecimento Nietzsche apresentaria uma

188
perspectiva de diferentes produções de verdade Pode-se constatar que ao conhecimento
como criação estaria ainda relacionada uma outra posição do “sujeito”, não mais
considerado metafisicamente como uma unidade e estabilidade. Aqui ele aparece como
um sujeito em devir no qual a mudança, transformação e aprendizagem em si são forças
constituintes da subjetividade, articulando um processo de conhecimento no qual o
pensador é “sempre outro”, pois não se submeteria e inclusive combateria a
“petrificação” das ideias e de si mesmo, “desconfiado em relação a tudo o que em nós
quer se tornar sólido”75. Se se pode conceber algo como um sujeito (do conhecimento)
radicalmente outro, a partir das problematizações nietzschianas do sujeito moderno, só se
pode fazê-lo considerando seu aspecto hipotético e ficcional e enquanto submetido ao
jogo do devir da multiplicidade de impulsos, que o constituiria para além da unidade e
estabilidade e destituído da suposta autonomia em relação aos impulsos, apresentando-se
muito mais como um efeito destes. A produção de pensamento e conhecimento não é
mais remetida a um eu e sua consciência autônoma e soberana frente ao corpo, mas ao
jogo de impulsos que articulam tanto o pensar como o devir próprio desse outro sujeito,
que não seria concebido como uma identidade fixa e estável. A partir destas considerações
críticas e criadoras no sentido de engendrarem novas hipóteses sobre o sujeito, a
consciência e o conhecimento busquei para o desenvolvimento da problematização do
sujeito considerar a leitura de Derrida em tono dos discursos de Nietzsche que o
desdobrariam no sentido de um pensamento marcado pelas noções de alteridade e da
diferença.

No segundo capítulo, a partir de certas leituras de Derrida sobre Nietzsche, como


as empreendidas em Esporas e Otobiografias, pude sublinhar como o texto do filósofo
alemão ganha contornos e acentos no sentido da problematização de questões como
identidade, alteridade e diferença possibilitando novos porvires ao seu pensamento. Pode-
se considerar que a partir do pensamento da diferença e da alteridade sublinhado por
Derrida na escritura nietzschiana, problemas como o eu, o sujeito, a verdade são
desdobrados e tematizados ao serem articulados fundamentalmente como a questão do
“feminino” em Esporas e da autobiografia em Otobiografias. Através da leitura de
Derrida, os textos de Nietzsche ganhariam sentidos insuspeitos implicando-os em
temáticas particularmente contemporâneas, como a questão do sujeito, do feminino e do
outro. Neste sentido, a leitura e interpretação de Derrida tornaram-se imprescindíveis para

75
Nietzsche, GC, §296

189
a problematização da questão proposta do sujeito moderno e suas subjetividades a partir
da crítica Nietzschiana e o envolvimento dessa questão no campo ético, gnosiológico e,
em certa parcela, estético.

A partir de Esporas, considerei que a questão enfatizada por Derrida sobre o


feminino no discurso nietzschiano, é articulada, por uma necessidade e afinidade, a uma
pluralidade de outras problematizações como o estilo, o riso, a verdade e as verdades, o
dogmatismo e a criação, ao jogo de aparências etc. Nesse sentido, o feminino me pareceu
ser um outro nome, um nome potente para tudo aquilo que, submetido ao dogmatismo
filosófico (e científico), permanecera como o outro denegado pela tradição ocidental.
Derrida procura sublinhar certo discurso de uma potência do feminino e da mulher nos
textos de Nietzsche, que a partir de uma série de estratégias estabeleceria uma função
crítica de defesa e de ataque à posição fálica e dogmática prevalente na história da
filosofia e na tradição ocidental. Levantando o problema do estilo que se articula como
um todo com a questão do feminino na obra de Nietzsche, Derrida, como busquei
considerar, procura mostrar como o estilo se apresenta como um recurso de ataque àquilo
que a tradição filosófica nomeara, entre outros nomes (essência, substância, presença...),
como a matéria, enquanto um fundamento para o estabelecimento do sentido e da verdade
em (e do) seus discursos, mas também como uma arma de defesa para proteger-se da
tentativa de captura de seus textos (de Nietzsche) por uma lógica que procuraria reduzir
sua pluralidade em nome, novamente, de um sentido e da verdade. O(s) estilo(s), assim
como o feminino, teria(m) suas esporas para proteger-se e atacar todo o discurso,
filosófico ou cientifico, que numa posição falogocêntrica intentasse dominar suas
pluralidades e seu caráter disseminado em uma “monologia”, capturando suas forças no
sentido de uma natureza ou essencialidade que possibilita a afirmação metafísica do “que
é” determinada “coisa” (o texto, o feminino...), imobilizando toda mobilidade plural em
uma caracterização essencialista, o que se pôde denominar, a partir de Derrida, como um
fetiche essencializante próprio da posição dogmático-falogocêntrica. O feminino e a
mulher, a partir da leitura de Derrida do discurso Nietzschiano, insurgem como a não
identidade, não-presença, aquilo que não é capturável e, ainda, como simulacros,
abismos, enfeites, véus que fariam por essas características soçobrar todo discurso
filosófico e suas pretensões dogmáticas. Ao contrário de uma presença, ou melhor,
operando por outra lógica, a mulher teria seu efeito na distância e a tentativa de
apropriação (de uma suposta natureza e essência suas) própria da postura falogocêntrica

190
deixaria escapar o seu efeito que se dá sempre na distância na qual a mulher acenaria
como um véu que nada esconde por detrás ou apenas finge que esconde. Nesse sentido,
constatou-se que o efeito das mulheres como um véu na distância desmobilizaria a
pretensão do “des-velamento” que ao levantar o véu, que sempre fora o véu das
aparências, pretenderia liberar o sentido ou a essência oculta. Sublinhou-se que a mulher
e sua operação à distância fariam soçobrar a pretensão filosófica dogmática ao dar a ver
no lugar de um fundamento, um abismo sem fundo e sem fim. É nessa perspectiva que a
operação feminina poderia com sua potência abismal vir a desconstruir os elementos
identitários e essencialistas que fundamentam a lógica do sujeito moderno, mas mais
ainda colocariam entre aspas, suspendendo no abismo, todos os elementos decidíveis do
discurso filosófico. Em suma, pôde-se concluir que, onde há um suposto fundamento
seguro e assegurado por uma posição dogmática, o feminino denunciaria o fundo sem
fundo de um abismo.

Partindo dessa outra lógica do feminino, Derrida apresenta uma crítica à leitura de
Heidegger de “A história de um erro” de Nietzsche, em que o filósofo de Ser e tempo, a
partir de sua interpretação dos diferentes momentos do devir da ideia, ignora e salta em
sua análise o devir-mulher da ideia. Derrida encontra nesse específico momento do devir
da ideia uma radical diferença do valor da verdade em relação ao tempo anterior, quando
a ideia era assimilável e identificada com o eu platônico e com os filósofos norteados pelo
mundo verdadeiro. Com o devir mulher da ideia, a “verdade” se afastaria, não podendo
mais ser identificada e apropriada por qualquer eu, se afastando na distância, própria do
feminino e da mulher; a “verdade” torna-se “inapropriavel” acenando e indicando com
um véu apenas seu rastro. Essa passagem de Derrida apresentou-se como essencial para
o trabalho, pois articula de maneira radical a questão do feminino à problemática do eu e
da verdade, ou melhor, das verdades. A “verdade” do devir da ideia-mulher não aparece
mais como presença, mas articula-se desde uma outra lógica do rastro. Além disso, sendo
a mulher abismo, não identidade e não presença faz com que na verdade ela apareça como
a não verdade da verdade. Enquanto não verdade da verdade a mulher desconstruiria toda
a pretensão dogmática de um discurso bem fundado capaz de desvelar o verdadeiro
sentido ou o sentido do verdadeiro de uma coisa, inclusive da verdade da mulher que não
há. A partir da mulher, só seria possível uma “verdade” entre aspas, que não se apresenta
como absoluta e com um fundamento estável e sólido, mas como uma verdade plural
enquanto verdades justamente porque não absolutas e dogmáticas. Como não verdade da

191
verdade, a mulher faz com que a “verdade” (ou as verdades) venha a ser suspensa em um
abismo não podendo mais ser reconduzida a seu status anterior e tradicional edificado
pela tradição metafísica e seu caráter predominantemente falogocêntrico.

Verificou-se ainda que com a noção de feminino entraria em jogo também um


outro conceito ou estrutura de crença que visa ao riso em oposição à sisudez e a seriedade
das atitudes e da atividade pensante dos dogmáticos sempre na busca de “encontrar”, ou
impor um sentido e uma finalidade às coisas, a si e ao mundo. Viu-se que contrariamente
a leveza do riso performaria uma outra relação com o não sentido e o absurdo da
existência, inclusive através da capacidade de rir-se de si mesmo ao não se levar tão a
sério promovendo o deslocamento e a derrisão do sentido do si mesmo e da lógica da
identidade que nos condiciona e regulamenta na vida cotidiana. Portanto o riso como uma
potência do feminino em Nietzsche seria como um pathos que, qual a saturnália dos
escravos, seria capaz de nos liberar do peso do cotidiano, das leis e normas que nos
regulamentam, ao inverter e deslocar perspectivas e nos liberando do peso do sentido
unívoco do já constituído. O riso mostra, por meio de sua potência, o caráter de
desconstrução de uma lógica do sentido, da identidade e da verdade constituída como um
absoluto. Considerou-se notável que Nietzsche identifica no pensamento em geral,
especificamente na modernidade, uma seriedade e um peso semelhante a uma maquinaria
ruidosa, que se proíbe o riso e a leveza. Pôde-se verificar que tal proibição e difamação
do riso é constituinte de nossa tradição ocidental, encontrando-se em todo lugar em que
se pensou lidar com a verdade. É a partir dessa seriedade que Nietzsche avalia o modo
truculento com que todos os filósofos, particularmente os dogmáticos, tentaram lidar com
uma verdade que é, em sua perspectiva, uma mulher. O riso então apareceria como uma
potência feminina e também dionisíaca capaz de performar uma “verdade” terrível crítica
à verdade oficial e aos poderes instituídos e instituintes do sentido e da finalidade da
existência, pois aquela “verdade :se vincularia à afirmação do abismo do absurdo e do
sem sentido da existência, o que possibilitaria ainda a criação de inúmeros sentidos, mas
nunca a imposição de um sentido supostamente pré-estabelecido e único como o fazem
aqueles que Nietzsche nomeia como os mestres da finalidade, os quais proíbem o riso
frente à existência, a nós mesmos e a eles pois temem seu poder derrisório.

Considerou-se esse “jogo” do abismo que a mulher velaria, pois é ela mesma não
identidade, não propriedade, não essencialidade, portanto inapropriável por qualquer
tentativa em que se pretende capturar sua natureza ou essência, o que na perspectiva de

192
Derrida apareceria no texto de Nietzsche como uma série de estratégias que se compõe
por meio de seus estilos, do jogo de máscaras, das múltiplas vozes que entretecem sua
textualidade. O feminino não seria apenas uma temática abordada por Nietzsche e
sublinhada por Derrida, mas uma potência, uma força que se faz presente na própria
contextura do texto e das estratégias nietzschianas em uma articulação crítica, de defesa
e ataque, à posição metafísica dogmática e falogocêntrica. A partir da interrogação
derridiana em torno das múltiplas vozes, das diferentes estratégias e estilos que percorrem
o labirinto textual de Nietzsche, procurei evidenciar a marca da alteridade e da diferença
que constituiria o texto do filósofo alemão. Segundo Derrida, o texto nietzschiano seria
habitado por uma multiplicidade de diferentes vozes que seriam irredutíveis a uma
“monologia” ou a uma voz própria e única, um sentido sintetizador, sendo assim um texto
aberto para o futuro e nisto para a possibilidade de diferentes interpretações que não
permitem o enclausuramento do discurso a partir de uma verdade ou um sentido
originário. Pela contextura das múltiplas vozes, pretender um único sentido de seus
discursos, textos ou obras seria como aprisionar Nietzsche em uma camisa de força
demasiadamente enérgica que buscasse conter tal mobilidade de posições e
multiplicidade de forças que compõem seus textos, reduzindo toda a diferença e alteridade
em nome de uma identidade própria. A noção de identidade atribuída a um autor, texto
ou obra supostamente capazes de desvelar seu sentido ou sua verdade torna-se uma força
redutora do que haveria de mais singular em seus discursos: a multiplicidade e a diferença
que engendram as diferentes vozes. Além de serem múltiplas e se caracterizarem pela
diferença entre elas, Derrida as nomeia como múltiplas vozes grávidas, considerando-as
como forças do feminino que manteriam o texto de Nietzsche aberto para o futuro. Desse
modo, considerei que Nietzsche na leitura de Derrida é um pensador da gravidez e que se
apresenta a partir de uma perspectiva, por assim dizer, dionisíaca, como uma imagem da
afirmação das dores próprias do vir a ser em sua relação com a abertura ao futuro.
Considerei também a hipótese de que a gravidez constituir-se-ia como uma imagem da
alteridade e do outro em si mesmo; entendo as múltiplas vozes grávidas como vozes que
não se formariam a partir de uma identidade fechada em si, mas de uma alteridade e
diferença entre elas.

Pode-se afirmar que o feminino se articula compondo-se de diferentes formas na


textualidade nietzschiana, além de se apresentar a partir da abordagem derridiana como
um elemento desconstrutor de toda a pretensão de uma identidade, essência, natureza,

193
unidade, enfim, de qualquer fundamento supostamente seguro e estável. Procurei
apresentar a força do feminino entrelaçada à afirmação da vida entendida no vir a ser de
sua multiplicidade, como capaz de “desconstruir” os alicerces e fundamentos que
garantiriam ao sujeito moderno sua pretensa unidade e estabilidade e como a força de
criação para instituir novas hipóteses de sujeito a partir da multiplicidade e seu vir a ser.
O feminino apareceria como uma força da alteridade e da diferença que não compactuaria
com a metafísica da presença e do sujeito, ao se afirmar como não presença, não
identidade e performando uma função crítica por meio de suas esporas capazes de atacar
e de se defender de tudo que se apresenta a partir de uma posição dogmática e
falogocêntrica.

Por intermédio da análise de Otobiografias procurei explorar certa problemática


do eu, do outro, da assinatura, da identidade e da alteridade (que contornam a questão do
sujeito) pela interrogação em torno da noção de autobiografia proposta por Derrida ao
interpretar os discursos nietzschianos. Partindo da constatação de que é preciso
ler/interpretar a autobiografia para além das interpretações que partem ora de um polo,
ora de um outro de uma dicotomia entre obra e vida, sistema e sujeito do sistema, Derrida
sublinha a importância da dynamis dessa borda entre os pares aparentemente opostos. O
filósofo argelino explícita que o texto de Nietzsche expressa de forma potente e singular
a força dessa dynamis, pois particularmente o filósofo alemão teria tratado a filosofia, a
vida e a ciência com seu nome, ou ainda, pluralmente, em seus nomes.

Desse modo, os textos de Nietzsche seriam atravessados por toda uma vivência e
experiências do corpo, das saúdes e doenças que não se resumiriam a um eu, ao contrário
se expressariam por um jogo de nomes no plural e máscaras múltiplas que colocariam em
cena diferentes assinaturas, fazendo da vida e da morte uma imensa rubrica biográfica. É
a partir desse jogo de máscaras, de nomes próprios e assinaturas que Derrida procura
desconstruir o próprio do nome próprio e o autos (eu) que constituiria e assinaria
propriamente a autobiografia. O filosofo argelino toma como texto exemplar o Ecce
Homo no qual as experiências e “pessoalidades” de Nietzsche estariam mais em jogo
aproximando-o de uma autobiografia. No entanto, a partir da análise de Derrida, tornou-
se evidente que, mais do que afirmar um tom autobiográfico de um “eu”, esse texto mostra
um potente discurso para a desconstrução de noções fundamentais como o eu, a
assinatura, o sentido e a presença do autor, os quais constituiriam os fundamentos de uma
leitura tradicional do que é uma autobiografia. Em sua narrativa “autobiográfica”,

194
Nietzsche propõe uma auto apresentação, o que iria contra sua natureza dissimulada, mas
que leva Derrida a indagar se não se trata outra vez mais de uma estratégia para
dissimular-se, o que já apontaria para um além da constituição de uma identidade própria
capaz de conduzir a narrativa autobiográfica de um eu. Pois bem, Nietzsche busca
apresentar-se por meio de um enigma, no qual ele se mostra a partir de uma dupla herança,
seu pai, a morte e sua mãe, a vida. Tal forma de apresentação pressupõe um passo além
da autonarrativa de um indivíduo como uma unidade, colocando em questão o problema
da identidade e de sua representação. É a partir de uma série de duplicidades que
Nietzsche busca se apresentar rompendo com o princípio de identidade unitário que marca
a tradição do texto autobiográfico e da representação do eu e do sujeito. Ademais, o texto
culmina com uma performance de assinatura que inscreve um duplo nome Dionísio contra
o “crucificado” no qual haveria uma maior identificação com o nome do contra,
desconstruindo desse modo a performance tradicional de assinatura. Junto a marca
dessas duplicidades haveria não apenas a identificação com a vida (elemento “próprio”
de uma autobiografia), mas também com a morte, que marcaria toda assinatura, pois quem
assinaria seria sempre um morto. Portanto não seria um vivo com uma vida presente a si
que assinaria uma autobiografia, mas um morto, já que toda assinatura ou nome como
todo conceito mata aquilo/aquele que nomeia. A morte apareceria não como o desfecho
de uma vida, mas como a possibilitadora mesmo do relato autobiográfico de uma vida
marcada desde sempre pela morte no nome. Desse modo, vida e morte se apresentariam
em outra lógica de conjugação como a-vida-a-morte desconstruindo a narrativa de uma
vida presente a si mesma.

Exemplarmente o texto de Nietzsche, Ecce Homo, mas também todo texto


autobiográfico, não seria estabelecido, devido à marca da morte do nome, por um autos
vivo como a presença de um autor à qual se poderia remeter para desvelar o sentido e a
verdade de uma obra, colocando todo texto em uma situação de disseminação e
desestabilizando toda a pretensão do autos centralizador de um texto. Assim as leituras
que intentam capturar ou interpretar o sentido e a verdade de um texto se desestruturariam,
já que seu pretenso elemento regulador, o eu de um autor, não subsistiria frente à marca
da morte do nome. É por meio da interpretação desses elementos inusitados de Ecce
Homo que Derrida vai construindo sua análise desconstrutora dos elementos
aparentemente óbvios, estruturais e naturais de uma autobiografia, como o topos do autor,
enquanto um eu que se narra a partir de uma unidade e da presença de sua vida, assim

195
como a presença de uma assinatura capaz de fantasmaticamente regular o sentido e a
verdade do texto. Com base na leitura de Derrida sobre Nietzsche, a partir da questão do
autos, pude pontuar e acentuar de uma outra maneira a problemática do eu naquilo que
tange às noções do sentido e da verdade, da vida e da morte.

É, contudo, a partir da leitura em Ecce Homo dos créditos abertos por Nietzsche
em seu nome e a espera da leitura do outro, que se observa que Derrida sublinha a
importância da alteridade do outro na constituição do acontecimento do texto, que é
entendido não a partir da presença do autos (e do eu) que o assina, mas do “ouvido do
outro”. Como visto o suposto sentido e verdade do texto não são mais compreendidos
como articulados e sustentados pela presença ainda que fantasmática do autos; não
haveria um sentido e verdade intrínsecos e preestabelecidos junto ao texto capazes de
serem desvelados a partir de um centro regulador e estruturador qualquer. Porém, os
textos viriam a acontecer de um modo singular pelo ouvido do outro, que afinadamente
ou não interpretam e criam múltiplos sentidos de um texto sempre aberto ao futuro de
outras interpretações.

A partir da leitura de Derrida sobre os créditos abertos por Nietzsche que a


alteridade do ouvido do outro frente ao texto torna-se o elemento principal no acontecer
de um texto sempre entendido em seu caráter disseminado, ou seja, sem um centro ou
instância reguladora de sua verdade e sentido. Justamente pela ausência de um centro ou
instância reguladora pré-existentes o texto só pode vir a acontecer pelo trabalho ativo do
ouvido do outro expondo uma outra “estrutura” na qual a tradicional interpretação da
identidade e propriedade de algo (no caso, de um texto e da autoria) cede lugar ao
acontecimento do texto que se efetiva na alteridade pelo ouvido do outro 76·. Tal mudança
poderia passar como uma mera inversão na ênfase dos polos dicotômicos de
enunciador/receptor, porém, pela reflexão de Derrida, opera-se, como procurei
evidenciar, além de uma inversão, um movimento no qual o autos, tradicionalmente
centrado no autor, é deslocado em sua função para o ouvido do outro como aquele que,
para além de uma passividade, produz o trabalho de uma interpretação ativa. É nessa
direção que Derrida lera em Nietzsche a questão de sua assinatura póstuma, que só virá a

76
É nesse sentido que se poderia entender em parte o apelo de Nietzsche aos filósofos que virão e o escutarão
afinadamente seus textos abertos ao futuro honrando seu nome póstumo.

196
acontecer a partir da contra-assinatura do outro junto, em anelo a ele, escutando-o e
entendendo-o.

Derrida constata que toda assinatura só vem a acontecer a posteriori pelo trabalho
do ouvido do outro e da contra-assinatura que ele firma junto a sua leitura. Portanto, todo
texto de Nietzsche, especialmente Ecce Homo, que apela para leitores, espíritos livres ou
filósofos futuros anunciaria uma “estrutura” na qual a “função” da alteridade do outro e
a atividade interpretativa do ouvido do outro tornam-se determinantes para o
acontecimento do texto que nunca se apresentaria como um texto fechado, mas aberto
para o futuro, para o vir a ser de seu acontecimento. Nenhum texto poderia, portanto, ser
considerado como um texto fechado, pré-estabelecido em seu sentido e verdade por um
autos (um eu-autor), mas aberto na disseminação de seus sentidos que só se realizam a
partir do trabalho ativo do ouvido do outro que vem contra-assinar junto a uma assinatura.
Assim, o jogo da alteridade, que procurei investigar no discurso nietzschiano de Ecce
Homo a partir da leitura de Derrida, estaria inscrito em todos os momentos do
acontecimento de um texto, ainda que autobiográfico. Desse modo o texto,
particularmente o texto “autobiográfico” de Nietzsche, aparece como elemento potente
para se pensar a radicalidade do pensamento da alteridade e da diferença.

Procurei neste segundo capítulo analisar e explicitar como a leitura e interpretação


de Derrida em torno dos discursos de Nietzsche não apenas sublinha, mas abre a potência
do texto de Nietzsche para uma meditação em torno da alteridade e da diferença que se
inscrevem como significantes fundamentais na desconstrução da identidade e do sujeito
moderno. O feminino, como lido no texto de Nietzsche por Derrida, mostrou-se como um
poderoso elemento desconstrutor de noções como propriedade, fundamento, verdade,
presença e unidade constituintes e essenciais para a fundamentação do sujeito moderno.
A problematização da noção de autobiografia e do texto em geral, a partir da escritura
nietzschiana, pareceu-me exemplar para pensar como a desconstrução da noção de
identidade, sentido e verdade pensadas em sua íntima ligação com metafísica da presença
e do sujeito é articulada com base em um pensamento que afirma a diferença e alteridade.
A leitura de Derrida, em sua interpretação dos textos nietzschianos, evidenciou-se então
como imprescindível não apenas para pensar diferentes aspectos e consequências da
crítica nietzschiana ao sujeito e seus atributos como a identidade, a unidade e suas
relações com o sentido e a verdade, mas principalmente para desconstruir certa leitura e
interpretação que insiste em colocar Nietzsche no ponto culminante de uma metafísica do

197
sujeito. Em outra direção, Derrida assinalaria em sua leitura de Nietzsche rastros e traços
de um pensamento da alteridade, de uma marca do outro articulados tanto pelo feminino
quanto pelo ouvido outro. Não haveria, portanto, no discurso nietzschiano apenas uma
crítica ao sujeito, mas junto a esta também a inscrição de um potente pensamento da
diferença e da alteridade, tanto consequência daquela crítica como elemento de crítica.
Pode-se concluir que se o pensamento de Nietzsche é póstumo, como ele afirmava,
alcança problemas “próprios” da contemporaneidade como o feminino, o texto, a
diferença e a alteridade.

A fim de explorar a questão contemporânea do sujeito procurei, no terceiro e


último capítulo, inicialmente abordar certa temática freudiana, interpretada por Derrida,
que problematiza o sujeito . Derrida, em sua leitura, apresenta um pensamento do traço
interpretado com base no texto psicanalítico de Freud que se constituiria a partir de uma
lógica da diferença, não se deixando enclausurar na metafísica da presença. Justifica-se
tal abordagem primeiro pela contribuição psicanalítica, assim como a interpreta o filósofo
argelino, à crítica do sujeito, foco de minha indagação, e ainda pelo paralelo estabelecido
por Derrida entre o pensamento do traço estabelecido pela diferença no trabalho das
forças e a reflexão nietzschiana em torno das forças, suas multiplicidades e diferenças.
Freud, ao pensar um sujeito do inconsciente, e este último como uma escritura de
diferentes traços marcados por múltiplas forças, proporia uma lógica do traço como não
presença. Derrida em seu texto “ Freud e a cena da escritura” propõe um trabalho de
interpretação da trajetória do discurso freudiano acerca do aparelho psíquico que vai do
traço pensado pela metáfora neurológica até a máquina de escrever. Seria, portanto, o
traço que nortearia os discursos freudianos em torno do aparelho psíquico, desde uma
metáfora neurológica até sua inscrição em uma escritura que radicalizaria o projeto
freudiano de pensar o sujeito e seu aparelho psíquico. Para pensar a dinâmica do traço
articulado pela diferença no trabalho das forças, Derrida recorre ao pensamento
nietzschiano das forças, no qual estas se apresentariam sempre a partir da diferença em
suas multiplicidade evocando um pensamento que não deriva da lógica da unidade e da
estabilidade como categorias próprias da metafísica da presença.

Se o aparelho psíquico é constituído por traços, que por sua vez advêm da
diferença no trabalho das forças, e paulatinamente no discurso freudiano o traço se
aproxima da metáfora da máquina de escrever, tal lógica não se deixaria reduzir por uma
metafísica da presença, mas seria articulada pelo jogo das diferentes forças, o que fará

198
com que o inconsciente, por intermédio da análise da memória, se apresente não como
uma substância, mas como um jogo de traços. O inconsciente como um jogo de traços
deslocaria e desalojaria o eu como dono de sua casa, ou seja, enquanto um soberano
regulador de toda a estrutura psíquica. Desse modo, Derrida formulará, a partir do
discurso freudiano do traço, a noção de um sujeito da escritura que não se deixaria pensar
pela lógica da presença, sendo ele atravessado pelas diferentes relações de forças (o
psíquico, a sociedade, o mundo...), nas quais é inscrito e a partir do qual “escreve” sua
subjetividade, em oposição à imagem do escritor soberano em sua solidão que
comungaria com o ideal de um sujeito substancializado e fechado em sua interioridade.
A reflexão nietzschiana das forças como uma multiplicidade dinamizada por suas
diferenças torna-se singular para a compreensão do que vem a ser o sujeito da escritura e
do inconsciente, pois expõe um pensamento que não se deixa enclausurar pela lógica da
metafísica da presença. Na esteira desse pensamento, seria possível a problematização
de um sujeito para além de seus atributos clássicos, como sua identificação absoluta com
a consciência e a noção de um eu soberano. Tal virada se daria a partir da reflexão
perseguida por Freud do traço, e sublinhada por Derrida, que alcançaria sua melhor
expressão a partir da imagem do bloco mágico como uma máquina de escrever, no qual
o traço vem a inscrever-se num sistema de escritura. Pôde-se verificar que o traço não se
apresentaria enquanto uma presença, mas se articularia e viria a ser a partir da diferença
em relação a outros traços. Aquilo que dinamizaria o funcionamento do aparelho
psíquico, o traço, como o formula Freud, não se constituiria a partir da ideia de uma
substancialidade e essencialidade. E desse modo o sujeito se apresentaria como um sujeito
da escritura “estruturado” por uma lógica do traço, por sua vez dinamizado por uma
multiplicidade de diferentes forças. Portanto, a partir da interpretação derridiana do
discurso freudiano em torno de um pensamento do traço, penso que a crítica ao sujeito
moderno, como analisada com base na reflexão nietzschiana e os potentes deslocamentos
que ela produz, ganham maior relevo possibilitando uma reflexão da relação entre o
sujeito, a cena de escritura e as múltiplas forças que delineiam o traço.

Por último, ainda em torno do sujeito articulado pela escritura, é a partir da


problematização de Nietzsche, ressaltada por Derrida, da linguagem (e da escritura) e seu
caráter metafórico, com a verdade e o logos, que procurei então desenvolver minhas
reflexões em torno do problema levantado do sujeito, procurando articular e retomar o
problema do conhecimento, tratado no primeiro capítulo, e a questão da verdade

199
aprofundada no segundo capítulo. Pareceu-me que a problematização do sujeito e sua
relação com a linguagem (e a escritura), articulados com o pensamento das forças a partir
da noção de afeto, sobre o qual reflete Nietzsche, poderiam contribuir de forma decisiva
para a investigação da crítica do sujeito que, como ficou evidente, produz não sua
eliminação, mas um radical deslocamento de sua constituição erigida a partir de um
fundamento metafísico. Tais deslocamentos operados por múltiplas estratégias no
discurso nietzschiano e mais especificamente a partir de uma problematização da
linguagem, apresentariam implicações nas posições do “sujeito” em relação às questões
do conhecimento, da verdade e de sua relação com o “real”. O deslocamento do sujeito e
sua diferenciação em relação ao modelo moderno e tradicional em Nietzsche foram
sempre pensados, sob o meu ponto de vista, em correlação com uma problematização do
filósofo do que podem ser o conhecimento, a verdade e o “real”. Como acentua Derrida,
é interpretando a linguagem como um processo metafórico e não correspondencial no
sentido metafísico, que Nietzsche procura repensar criticamente o que vem a ser o
conhecimento e sua relação com a verdade. O exame de seus escritos sobre o assunto
evidenciou que por sua condição meramente metafórica, a linguagem não corresponderia
às coisas em sua origem, não podendo, pois, desvelar originalmente o sentido e a verdade
dos entes e das coisas por meio da linguagem, seja ela coloquial ou seja racional, só
teríamos produções metafóricas “impróprias”. A partir dessa consideração nietzschiana
acerca da linguagem e da análise da função do esquecimento do caráter metafórico pode-
se refletir sobre a “origem” do conceito e do impulso à verdade. Na perspectiva de
Nietzsche, o conceito e a verdade são pensados desde uma “origem” e desenvolvimento,
a partir da metáfora, e se são considerados tradicionalmente como opostos a ela, surgiriam
como um jogo de metáforas gastas pelo uso e pelo tempo. Como assinala Derrida, é a
partir de tal consideração nietzschiana sobre a escritura e a leitura como operações
metafóricas - elas mesmas “originarias”, não sendo correlatas a nenhuma outra origem,
seja como essência, seja como substância que se potencializa a ruptura da subordinação
do texto com o discurso metafísico da verdade e do logos. Desse modo, procurei
evidenciar por intermédio noção Nietzschiana de “interpretação” a leitura e escrita como
operações “originárias”, tendo em vista que essa noção teria consequências mais amplas
e bem desenvolvidas no texto nietzschiano, além de poder ser pensada na categoria de
operação “originária” como a leitura e o texto.

200
Ainda, busquei assinalar que para o Nietzsche a interpretação não pressuporia
nenhum sujeito agente e produtor por detrás, pois seriam os impulsos afetivos que
interpretariam. Desse modo, a noção de afetos tornou-se fundamental para pensar a crítica
do sujeito a partir do texto nietzschiano. Considerei ainda como inevitável, mas também
oportuno, refletir a possível implicação do pensamento sobre a linguagem do jovem
Nietzsche com seu discurso posterior do perspectivismo, que me pareceu de certo modo
desdobrar as meditações sobre a linguagem e sua implicação com o conceito e a verdade,
como da mesma forma colocar em questão de um modo radical certas considerações em
torno do sujeito do conhecimento, aprofundando as questões trabalhadas, principalmente
no primeiro capítulo, e a questão da verdade, presente no segundo. Pareceu-me
fundamental para o desdobramento da questão do perspectivismo, pensar sua implicação
com a noção de afeto, considerado como uma força nos termos da terminologia
nietzschiana, que luta com outros afetos pela imposição de sua interpretação. Tomei a
problematização dos afetos como o elemento chave para a compreensão do
perspectivismo e sua posição crítica frente à questão do conhecimento e do sujeito. A
partir da consideração dos afetos inscritos no processo do conhecimento, procurei
defender a hipótese de que a atividade do conhecimento perspectivo se singularizava pela
abertura ao vir a ser dessa multiplicidade de afetos que inscreveriam diferentes
perspectivas. Através da noção de perspectivismo e sua relação com os afetos
interpretativos, a hipótese metafísico-moderna de um “puro sujeito” do conhecimento
tornar-se-ia desnecessária, pois não haveria nenhum sujeito agente e causador dos
pensamentos/interpretações, que por sua vez são atribuídos aos afetos, abrindo caminho
para novas hipóteses de sujeito afinadas com a diferença e a multiplicidade dos afetos,
considerados, como propus, por Nietsche, como os elementos fundamentais na atividade
do conhecimento. Ainda que no modelo tipicamente moderno com sua pretensão de
objetividade e validade universal se negue à participação dos afetos, Nietzsche é
categórico ao afirmar de que há uma inevitável e intrínseca participação deste, ainda que
inconsciente, pois, na perspectiva do autor, a vontade de verdade inerente a esse modelo
se constituiria a partir de uma paixão. Desse modo, se todo modelo de conhecimento, e
mais originariamente, todo processo de pensamento, se estabeleceria a partir de uma
relação beligerante de múltiplos afetos, tornou-se inevitável uma investigação em torno
dos afetos, além de uma problematização de qual seria a singularidade do perspectivismo
em relação a eles, já que em geral todo modelo de conhecimento necessariamente teria
uma origem pulsional afetiva. Essa investigação se mostrou fundamental para o

201
desenvolvimento da problemática do sujeito, pois pareceu-me que seu deslocamento e
sua outra posição frente ao conhecimento (perspectivo) e a verdade sugerido pelo texto
nietzschiano se vincularia em seu discurso à “teoria dos afetos”, que é pensada ainda em
articulação com a “teoria das forças”. De certo modo, foi a partir de certa recondução
aproximativa de termos como paixão, impulsos e instintos à terminologia dos afetos que
norteei a investigação destes últimos como os elementos fundamentais que articulariam
o conhecimento perspectivo. Segundo a dinâmica de luta dos afetos pela imposição de
suas interpretações, haveria o êxito de um ou mais afetos como afetos de comando que
fariam prevalecer temporariamente sua interpretação sobre os outros para em um outro
momento ceder lugar a um ou mais afetos vitoriosos, produzindo a alternância de
diferentes perspectivas; constituir-se-ia um modo de conhecimento (perspectivo) que se
afirmaria na diferença das perspectivas em contraposição ao conhecimento tradicional
que se estabeleceria pela simplificação da multiplicidade em nome de uma verdade
absoluta.

Nesse sentido, a noção de perspectivismo teria por condição a abertura a uma


multiplicidade de pontos de vista perpetrados pela dinâmica da pluralidade de afetos, o
que caracterizaria uma ruptura radical com a noção de verdade habitual sustentada por
um “puro sujeito do conhecimento” e pensada como absoluta e universal, a partir da qual
toda outra interpretação apareceria como falsa ou erro. Por intermédio da reflexão do que
pode vir a ser o conhecimento a partir do perspectivismo e da noção de interpretação,
procurei investigar como se poderia posicionar esse outro sujeito em afinidade com o
devir que caracterizaria a multiplicidade de forças afetivas que o constituiria. Tendo em
consideração essa multiplicidade de forças Nietzsche o conceberia mais como uma
multiplicidade de sujeitos ou um sujeito em devir do que como um sujeito concebido
como uma unidade pré-estabelecida ao modo de uma essência ou substância.

Por último, a pesquisa e o aprofundamento em torno da noção de afetos acabaram


por se desdobrar na questão do corpo como o elemento norteador fundamental para o
problema, tanto do conhecimento quanto de uma outra configuração de subjetivação. Se,
por um lado, como busquei evidenciar, para o pensamento metafísico em geral, o corpo
apresentar-se-ia como o elemento- junto aos afetos, paixões e impulsos-, que deveria ser
afastado para alçar o caminho do conhecimento e o desvelamento da verdade, por outro
lado, a noção de subjetividade, como é pensada na modernidade, se institui a partir de
uma noção de eu e consciência desencarnadas, Nietzsche afirmaria, em uma aparente

202
inversão, que é o corpo que pensa, sente e quer e que uma outra subjetividade poderia ser
pensada a partir da carnação do corpo.

Na pesquisa realizada, evidenciou-se que há uma aparente inversão, ou um


primeiro movimento de inversão, que dá lugar a um radical deslocamento da concepção
do que pode ser o corpo: por um lado, ele não estaria em um polo oposto à consciência,
ao eu, à alma ou ao sujeito , ao contrário, os abarcaria como funções subordinadas suas;
por outro, ele não se constituiria como um fundamento, pois não se estabeleceria como
uma unidade e estabilidade, mas como uma “grande razão”, um complexo múltiplo de
forças em devir que pensam, sentem e querem. Ao conceber o corpo como uma grande
razão que teria a pequena razão como seu instrumento, Nietzsche apresenta uma
concepção na qual a consciência, o “espírito” e o “eu” se subordinariam a um complexo
de forças maior chamado corpo, “desconstruindo” a noção dualista metafísica que oporia
esses dois campos como naturezas opostas e excludentes em que se valorizariam a
consciência e o eu em detrimento do corpo e seus atributos. Revelou-se, ainda, que para
Nietzsche o corpo, como um complexo de força afetivas, pensaria e que a consciência
como seu instrumento teria uma função específica e subordinada de síntese interpretativa
da multiplicidade de afetos beligerantes. O corpo, outrora excluído do processo de
pensamento e conhecimento por serem atividades atribuídas unicamente a uma
consciência e a um eu desencarnados, torna-se o elemento fundamental para a
compreensão dessas atividades.

Apresentou-se que a consciência, compreendida como autônoma no processo


racional de pensamento, é em verdade subordinada a uma grande razão. Constatou-se que
a partir da afirmação do corpo como uma multiplicidade de forças afetivas que pensam,
sentem e querem ele é reintroduzido com sua singularidade, pessoalidade, história e
paixões na atividade do filosofar, assim como todo o filosofar é problematizado como
uma sintomatologia do corpo.

Assim, o corpo torna-se segundo Nietzsche, como sublinhado por Barrenechea


(2009), o fio condutor para a compreensão do humano e das diferentes questões desde as
dos dia a dia até as consideradas como as mais elevadas pela metafísica. Inclusive, as de
maior interesse para este trabalho, como a problematização da subjetividade, que pôde
então ser pensada em articulação com outra compreensão de corpo, como uma
subjetividade encarnada ou corporal. A partir da reflexão em torno dos impulsos e afetos

203
considerados como elementos pertencentes ao campo da corporalidade, tornou-se
inevitável trabalhar a compreensão nietzschiana do corpo e da corporalidade como fio
condutor para pensar a subjetividade. E foi por meio dessa reflexão que se preparou a
compreensão do corpo como uma multiplicidade de forças em devir, que produziria uma
outra compreensão das subjetividades não mais pensada a partir de um modelo metafísico
de identidade compreendida como unidade, estabilidade e interioridade, mas uma
subjetividade encarnada que se constituiria como um processo aberto à alteridade e à
diferença articulada pela multiplicidade de forças que é o corpo.

O corpo compreendido como uma multiplicidade de afetos (impulsos, paixões,


desejos, mas também pensamentos) mostrou-se a partir do discurso nietzschiano, como o
campo privilegiado para pensar o processo de subjetivação, a qual se estabelece com base
em um devir de multiplicidades de forças como um processo ininterrupto no qual em
certos momentos há uma síntese das forças, não como uma identidade fixa, mas como
máscaras provisórias sem nenhum rosto essencial por detrás; não haveria sujeito como é
pensado tradicionalmente, mas pontos de subjetividade, de sujeitos pensados em um
constante vir a ser. Outro ponto importante dessa concepção é que a subjetividade não se
apresentaria como uma interioridade atribuída a qualquer essencialidade já dada, mas
como um jogo do entrecruzamento de forças por intermédio do corpo. Disso pode-se
inferir como consequência que não é do “eu”, considerado como uma crença por
Nietzsche herdada da noção de alma, que se estabeleceria a noção que se pode abstrair
de seu texto de subjetividade, mas principalmente do entrecruzamento de forças com o(s)
outro(s),. A concepção de forças nietzschiana colocaria em xeque a pressuposição de
uma interioridade e uma suposta subjetividade fechada em contraposição a forças
externas, constituindo uma pura exterioridade, pois o mundo como ele apresenta é um
jogo de forças do qual fazemos parte, excluindo qualquer noção de dualidade em
polaridades opostas.

Pôde-se argumentar então que subjetividade não diz respeito apenas ao eu e à


consciência, mas à singularidade de uma corporalidade que é pensada como uma
multiplicidade de afetos em grande parte inconscientes. Desse modo, a hipótese de um
“indivíduo” como uma multiplicidade de sujeitos ou o corpo como multiplicidade de
almas fariam jus, ao meu ver, a uma corporalidade entendida como uma pluralidade de
afetos e impulsos que pensam, querem e sentem, ou seja, interpretam, e que em seu jogo

204
beligerante deslocariam a cada vez aquilo que se denominaria como o “sujeito” e sua
identidade.

Para finalizar, procurei investigar o papel que caberia à consciência já pensada a


partir deste campo complexo que se denomina corpo a que ela se subordinaria. No papel
de subordinada, observou-se que à consciência caberiam a simplificação e o ordenamento
provisório dessa multiplicidade de forças que é a corporalidade, proporcionando uma
hierarquia a partir de uma identificação com a força afetiva vitoriosa e gerando um sentido
para o todo. Tal identificação com um sentido produziria a cristalização temporária de
uma “identidade” pensada a partir de uma provisoriedade e transitoriedade. Pôde-se,
então, melhor apropriar, no texto de Nietzsche, da imagem da máscara que, fazendo
referência ao mistérios de Dionísio como o deus das metamorfoses, se apresentaria como
a melhor metáfora para a constituição de uma subjetividade sempre em devir. Porém a
máscara não é pensada como uma falsa aparência, escondendo por detrás um rosto-
identidade-essência verdadeiros, mas com o aparecer de determinado sentido sempre
transitório posto que vinculado à beligerância incessante das múltiplas forças. Para além
da dicotomia aparência/essência, a máscara seria uma forma de deixar aparecer aquilo
que vem a ser (e não algo que esconda), um aparecimento de determinada organização
das múltiplas forças.

Considerou-se que noções como alteridade e diferença seriam constituintes da


dinâmica das forças, assim como da reflexão em torno da subjetividade proposta a partir
do texto nietzschiano que se mostrou impossível de problematizar sem a referência à
corporalidade como um complexo de forças. Se, em um primeiro momento, estabeleci a
reflexão do processo de pensamento, conhecimento e da consciência vinculando-os ao
impulsos inconscientes, e posteriormente à terminologia das forças e principalmente dos
afetos, o fiz tendo como implícita a referência ao corpo e à corporalidade; dirigiu-se o
último capítulo para esse tema a fim de encaminhar a partir daí os problemas, levantados
no primeiro capítulo, e no segundo, do conhecimento, da verdade e da consciência.
Buscou-se, ainda, aprofundar a questão do que pode ser a subjetivação, quando esta não
mais se fundamenta nas categorias metafísicas tradicionais, mas se articula pela instância
corporal pensada como uma multiplicidade em constante devir e considerada não em
oposição à consciência, “alma”, espírito, eu, mas integrando-os como subordinados. O
corpo como é problematizado por Nietzsche, para além da dicotomia tradicional que
supervalorizava em nome da verdade a consciência, o espírito, a alma e o eu, ao

205
desvalorizá-lo junto aos afetos, impulsos e paixões, não se deixaria capturar pelo modelo
de discurso metafísico.

Nietzsche, ao afirmar o corpo como uma multiplicidade, afasta-se de sua


valorização unitária como um novo fundamento. O mesmo ocorre ao compreendê-lo
como uma totalidade em devir a partir de um jogo beligerante de forças recusando-se a
pensá-lo a partir de uma pretensa estabilidade. É a partir dessa noção do discurso
nietzschiano sobre o corpo que busquei por fim tentar compreender o que podem vir a ser
o conhecimento, a verdade, a consciência e a subjetividade quando pensados em sua
articulação com a multiplicidade de forças. Se são poucos os enunciados publicados por
Nietzsche que tratam diretamente do sujeito, pôde-se averiguar que, em contrapartida,
questões que o envolvem diretamente, como o eu, a consciência, o conhecimento e a
verdade, são abundantes. Com seus discursos críticos à metafísica e sua compreensão das
categorias que articulariam o sujeito moderno, Nietzsche, ao pensar o corpo como uma
multiplicidade de forças, se aproximaria de um pensamento da diferença e da alteridade
desde onde se podem construir interpretações para pensar uma outra subjetividade, não
metafísica, assim como explicitar uma outra forma de conhecimento, por meio do
perspectivismo.

Alteridade e diferença podem ser pensadas como inscritas no pensamento das


forças de Nietzsche, as quais só viriam a ser em relação à diferença de outras forças, como
tratei particularmente no terceiro capítulo, pelo corpo e a partir da terminologia dos afetos
e impulsos. Partindo desse pensamento das forças, que se expressaria singularmente
através das noções de impulsos e afetos, procurei abordar os diferentes aspectos com que
as noções de alteridade e diferença poderiam atravessar o texto e o pensamento de
Nietzsche: derrubando ídolos e categorias referentes ao conhecimento, à consciência e à
verdade, afirmando certa potência do feminino, sendo articulado ao discurso freudiano
do traço tal como lido por Derrida, afirmando o conhecimento perspectivo como uma
outra relação com os afetos e, por fim, a partir da multiplicidade corporal como elemento
instaurador do pensamento, do conhecimento e da subjetividade.

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