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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
FILOSOFIA
1
Problematizando o sujeito: leituras entre Derrida e Nietzsche
Rio de Janeiro
Novembro de 2020.
2
Pedro Poncioni Mota
Aprovado em:
_________________________________________________________________
Carla Rodrigues, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________________________________
Adriany Ferreira de Mendonça, Doutora, Universidade Federa do Rio de Janeiro
_______________________________________________________________
Marcelo de Mello Rangel, Doutor, Universidade Federal de Ouro Preto
________________________________________________________________
_________________________________________________________________
Alexandre Fernandes, Doutor, Instituto Federal da Bahia
_________________________________________________________________
Teresa Cristina Calomeni, Doutora, Universidade Federal Fluminense
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AGRADECIMENTOS
À Professora Carla Rodrigues, pela aceitação e apoio para realização deste trabalho;
4
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo principal refletir sobre o tema do sujeito
particularmente, mas não apenas, na obra de Friedrich Nietzsche, considerando a
problematização desta temática como necessária para a investigação dos problemas da
alteridade e da diferença. Nesta perspectiva, a leitura de Derrida sobre a obra de Nietzsche
mostrou-se como fundamental para tal discussão, sublinhando em seu texto a
problemática do feminino, da autobiografia e da verdade também concernentes ao
problema do sujeito, da alteridade e da diferença. A escritura de Nietzsche é concebida
neste trabalho como precursora na problemática do sujeito, mas também como “póstuma
“ e potente para o debate contemporâneo em torno da desconstrução do sujeito. A
pesquisa consistiu no levantamento e exame da literatura especializada concernente aos
temas que constituem o quadro conceitual deste estudo – sujeito, alteridade, diferença,
verdade, entre os principais. Deste modo, procurei sustentar a hipótese que o texto de
Nietzsche é fundamental para a problematização do sujeito nas questões concernentes ao
conhecimento e a ética; deste modo, busquei pensar como esta problemática libera esses
campos para porvires inauditos. Por fim, preocupei-me em vincular as questões
desenvolvidas em relação a problematização do sujeito as questões já mencionadas, para
refletir por que por intermédio da desconstrução do sujeito é possível conceber um outro
modo de conhecer e existir.
Abstract
The main objective of this doctoral thesis is to reflect on the subject particularly, but not
only, in the work of Friedrich Nietzsche, considering the problematization of this theme
as necessary for the investigation of the problems of otherness and difference. In this way,
Derrida's reading of Nietzsche's work proved to be fundamental for such a discussion,
underlining in his text the problem of the feminine, autobiography and truth also
concerning the problem of the subject, alterity and difference. Nietzsche's writing is
conceived in this work as a precursor in the subject's problem, but also as a posthumous
and potent for the contemporary debate around the subject's deconstruction. The research
consisted of the survey and examination of the specialized literature concerning the
themes that constitute the conceptual framework of this study - subject, alterity,
difference, truth, among the main ones. In this way, I tried to maintain that Nietzsche's
text is fundamental for the problematization of the subject om the problems concerning
knowledge and ethics. Finally, I was concerned with linking the issues developed in
relation to the subject's problematization to issues related to subject knowledge and
identity, to reflect why only with deconstruction of the subject is it possible to conceive
another way of knowing and existing.
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Lista de abreviaturas - As referências aos livros de Nietzsche foram feitas da seguinte forma: o
sobrenome do autor, seguido da abreviatura da obra referenciada e o número do aforismo. Nos
casos em que o livro fosse dividido em capítulos, não dando sequencialidade ao número dos
aforismos ou não fosse constituído de aforismos, optou-se pela referência ao sobrenome do autor,
ao ano de publicação da obra utilizada e ao número da página.
Anticristo – AC
Aurora - A
A gaia Ciência – GC
Genealogia da Moral – GM
Vontade de potência- VP
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 7
3.1 O PENSAMENTO DO TRAÇO NO DISCURSO FREUDIANO E O PENSAMENTO DAS FORÇAS DE NIETZSCHE ................... 129
3.2. SONHOS, UMA FLORESTA DE ESCRITURAS................................................................................................. 138
3.3 O BLOCO MÁGICO E O SUJEITO DA ESCRITURA ............................................................................................ 141
3.4 A ESCRITURA PSÍQUICA E A MÁQUINA DE ESCREVER ............................................................................. 145
3.5 - A ESCRITURA E A METÁFORA EM NIETZSCHE ............................................................................................ 150
3.5 PERSPECTIVISMO AFETIVO ..................................................................................................................... 156
3.6 PAIXÕES E AFETOS SEGUNDA A INTERPRETAÇÃO DE NIETZSCHE..................................................................... 167
3.7 O CORPO COMO MULTIPLICIDADE ........................................................................................................... 175
INTRODUÇÃO
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O objetivo principal desse trabalho é refletir sobre a problematização do sujeito,
particularmente, mas não apenas, nos discursos de Nietzsche em torno das categorias
fundamentais que consolidam o sujeito, tais como a consciência, a razão e o eu, bem como
a noção de verdade associada ao sujeito do conhecimento. Busquei ainda ressaltar como
haveria, no texto nietzschiano, toda uma articulação com as noções de diferença e a
alteridade, presentes em certa noção de forças e do feminino, que promoveriam ” do
sujeito moderno. Nesta direção, procurei investigar como o significante do feminino na
obra de Nietzsche, assim como a lê Derrida, potencializaria tal desconstrução das
categorias essencialistas como identidade, unidade e estabilidade que constituiriam o
sujeito moderno. Outro objetivo foi pesquisar como o discurso freudiano em torno do
traço e da escritura, a partir da leitura de Derrida, somado ao pensamento das forças em
Nietzsche contribuíram poderosamente para a problematização do sujeito, conformando
um outro sujeito como sujeito da escritura. Por último, procurei sublinhar, a partir de
certa noção de escritura e corpo, um pensamento da interpretação como uma operação
originária que deslocaria radicalmente, por meio da noção de impulsos inconscientes,
aquela que seria a atividade primordial e essencial do sujeito da consciência e da razão,
relativa ao conhecimento, mas também procurando abordar o problema da identidade
subjetiva.
1
CF: Poncioni, 2016.
8
uma ruptura mas enquanto um desdobramento mascarado da metafísica tradicional.
Sujeito seria o nome moderno para a humanidade do homem ou para o modo como a
humanidade (sua essencialidade) do homem se efetiva e concretiza na modernidade.
Portanto, longe de produzir um recorte que limitasse a questão do homem para o sujeito
moderno, procurei situar a questão mais abrangente em determinada situação histórica.
Nessa direção, aos olhos de uma filosofia da suspeita, como é a de Nietzsche, o sujeito
não pode ser uma mera constatação de algo predeterminado como uma essência, mas um
problema a ser pensando e uma certeza a ser criticada.
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mais potentes de acordo com a noção de vontade de potência. É justamente este caminho
da crítica para a criação que busquei percorrer por apresentar-se como uma estratégia de
grande valia para o pensamento contemporâneo do sujeito.
Para fins de apresentação, o trabalho foi assim organizado: além desta introdução
há três capítulos e as considerações finais. No primeiro capítulo abordei a crítica de
Nietzsche ao sujeito moderno, assim como ela aparece em grande parte de sua obra,
através das categorias que lhe seriam mais próprias, como as de consciência,
racionalidade, eu, que por sua vez estão intimamente relacionadas à questão do
conhecimento assim como este é concebido na modernidade filosófica. Portanto, este
capítulo foi dedicado à crítica mais contundente de Nietzsche ao sujeito do conhecimento.
Considerei que principalmente através da problematização do valor da consciência por
intermédio da proposição de que esta não é uma essência predeterminada e o âmago do
ser humano que Nietzsche, a partir de uma hipótese de sua genealogia, pretende
demonstrar que a atividade e o valor atribuídos à consciência não passa de uma
hipervaloração e que mesmo a atividade dos pensamentos não lhe é própria, sendo a
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Nietzsche nunca chegou a escrever o livro intitulado “A vontade de poder” como o conhecemos. A
ordenação e edição dos aforismos foi feita por sua irmã Elizabeth Forster-Nietzsche e por Peter Gast e
suspeita-se de alteração do texto original e não se sabe que fim daria o filósofo alemão a estes escritos .
A partir dessa suspeita e consideração cuidei de que os aforismos utilizados desse livro sempre se apoiam-
se em outras passagens publicadas contudo levei em consideração a afirmação de Marcos Sinésio e
Francisco Morais na nota sobre a tradução de que “[...] todos os aforismos que este livro contém foram,
sem dúvida, escritos por ele. O que, de fato, não é de sua autoria é a ordenação dos aforismos sob os
respectivos títulos que dividem a obra” (Vp, 2008, sobre a tradução).
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consciência portanto destituída de sua autonomia. Para o filósofo alemão seria a partir de
toda uma gênese pulsional inconsciente que os pensamentos vêm a acontecer. É, portanto
desde uma crítica ao valor da consciência, que Nietzsche concebe uma outra atividade
dos pensamentos não subordinada a ela. Também o conhecimento é concebido a partir
de uma gênese pulsional diferentemente da tradição moderna que o pensa em sua
objetividade: Nietzsche sublinha que o conhecimento tal como é concebido
modernamente como impessoal, objetivo e autônomo frente aos impulsos e paixões seria
dominado por um impulso (particularmente o impulso para a verdade), que se mostraria
como um impulso conservador de determinado tipo de vida, que precisaria frente ao
estranho e ao novo converte-los em algo já conhecido, e frente ao múltiplo simplificá-lo,
tornando tudo que se apresente como perigoso como algo já familiar. Entretanto, assim
como a consciência é criticada como aparece em seu vir a ser moderno - mas é ainda
pensada em outros porvires possíveis - também o conhecimento é concebido a partir de
outros impulsos que não visam apenas à conservação. Conhecer, por exemplo, aparece
como possível a partir do impulso lúdico, no qual a vida não quer apenas se conservar.
Nesta direção, conhecer pode ser um impulso da vida que quer se expandir
primordialmente segundo a vontade de potência. Portanto, a crítica nietzschiana à
consciência, ao “eu” e ao conhecimento parece ser direcionada ao estado de forças
reativas que os dominou até então. Porém, tal crítica parece produzir um efeito de
“liberação” para que estas instâncias sejam forjadas e atravessadas por novas forças
afirmativas, produzindo um outro porvir no qual consciência, eu, conhecimento e verdade
também venham a ser de um outro modo, em consonância com vida entendida como
vontade de potência.
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Neste sentido, a verdade mesma seria “contaminada” pela mulher: com o “devir
mulher da ideia” de Nietzsche ressaltado por Derrida, a verdade passa a ser concebida
não por sua presença, mas pelo rastro e pela distância dos véus que nada encobrem, ou
apenas fingem que encobrem através da potência dissimuladora da vida. Ainda, em
contraposição à seriedade do filósofo dogmático para lidar com a verdade que é mulher,
o feminino apresentaria um novo conceito ou crença que visaria o riso. Riso que teria
elementos do feminino e do dionisismo capazes de desconstruir tanto o sentindo imposto
à realidade quanto à verdade estabelecida, assim como o rir de si pode depor a seriedade
da auto representação indenitária. Nesta perspectiva, o riso seria um dispositivo afetivo
que afirmaria o abismo do sem sentido da mulher e, com isto, também o júbilo da criação
de verdades como simulacros capazes de afirmar a vida. Tal é a inscrição do feminino no
texto de Nietzsche que Derrida afirma que este é habitado por múltiplas vozes grávidas;
é que Nietzsche seria o pensador da gravidez. As vozes no texto de Nietzsche seriam
sempre múltiplas e femininas não podendo ser reduzidas a um “monólogo” sem perder
sua singularidade; além dessas vozes serem múltiplas, seriam grávidas carregando em si
a alteridade do outro e a afirmação do porvir que a gravidez e o parto assinalariam. Nesta
direção, o feminino aparece como uma pluralidade no texto de Nietzsche tecendo, a cada
vez, diferentes estratégias de ataque e defesa em relação à filosofia e seu dogmatismo,
sempre se opondo a uma “mono-lógica” da identidade e da presença que fundamentam a
metafísica do sujeito.
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de outros que virão, que Derrida sublinha uma outra relação entre o nome do morto e
aquele que virá a contra-assinar o texto, sendo este pensado como o “ouvido do outro”.
Não apenas o texto autobiográfico, mas todo texto partilharia desse acontecer que só se
efetiva a partir da alteridade do outro, e não a partir do autos indenitário de seu autor.
Com isto, o texto perde seu suposto centro auto regulador, capaz de conter o sentido e a
verdade de uma obra, para apresentar-se em uma disseminação de sentidos que virão a
acontecer postumamente. Esta outra perspectiva, em torno da identidade e da alteridade,
do sentido e da verdade a partir do acontecimento do texto propõe uma outra maneira de
pensar e desconstruir a metafísica do sujeito. A noção de uma identidade fechada e
autorregulada em seu sentido e verdade é desconstruída em favor da alteridade do ouvido
do outro e seu trabalho interpretativo que vem contra assinar o texto. Com a aguçada
interpretação de Derrida, o texto sempre porvir de Nietzsche se abre como um dispositivo
estratégico para a questão do eu e do outro, da alteridade e da diferença, acentuando desse
modo a potência do discurso nietzschiano para lidar com uma problemática
contemporânea em torno do sujeito e do outro a partir da questão do escrito
autobiográfico.
Com base nessa indicação, procurei, então, desenvolver o problema das forças em
Nietzsche e sua aparição sempre plural, escapando de uma substancialização metafísica.
Além de plurais, as forças estariam sempre em uma beligerância dinâmica graças à
diferença que as constituem, e não tenderiam a harmonia ou ao repouso. Neste sentido, a
partir do problema das forças, procurei defender que já em Nietzsche o problema da
alteridade e da diferença se constitui, podendo ser articulado à questão do traço no
discurso freudiano.
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É nesta direção que Derrida irá pensar, a partir do pensamento do traço freudiano,
o sujeito da escritura que não se coadunaria com a metafísica da presença, pois longe de
ser representado pela solidão soberana do escritor, ele seria um sistema de relações entre
camadas. É em torno do problema da escritura, mas também de uma linguagem não mais
submetida ao logos ordenador, que conduzo a segunda parte deste capítulo, ao retomar o
discurso nietzschiano, principalmente a partir de A verdade e a mentira no sentido extra
moral.
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se dariam de modo crítico, pois é antiga a herança metafísica que o exclui em nome de
um desvelamento da verdade conduzido por uma alma imortal que não participaria do vir
a ser. Com o corpo, portanto, um modo radicalmente outro de conhecimento é possível,
não mais objetivo e desinteressado, mas conduzido pelos impulsos afetivos que são
sempre interessados em impor suas interpretações. Além disso, uma outra concepção de
verdade é possível, não mais absoluta, mas em afinidade com a afirmação da potência de
um corpo. Também seriam desconstruídas as noções de alma, consciência, “eu” e sujeito,
podendo ser afirmada outra concepção de subjetividade a partir da corporalidade, uma
subjetividade encarnada, corporal.
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CAPÍTULO 1 - CRÍTICA AO SUJEITO
(DO CONHECIMENTO)
1.1 O problema da consciência
3
Analisarei ainda neste capítulo a crítica de Nietzsche a certa noção de sujeito instituída pela filosofia de
Descartes.
4
De modo sucinto, pode-se colocar que, com a filosofia kantiana marcada pelo projeto iluminista, a razão
torna-se o núcleo do pensar; ressalta-se ainda que Kant indique o problema das determinações e categorias
a priori que possibilitam o sujeito conhecer o mundo
5
Nessa direção, ressaltando o acento que a teoria do conhecimento adquire na modernidade a partir de
Descartes e Kant, Gilvan Fogel realça que: “Na história da filosofia, desde a Grécia clássica, o
conhecimento sempre se configurou com um dos problemas maiores. Discutido, porém, de maneira
inseparável da pergunta pelo real, ou seja, constituindo-se num modo ou numa via de acesso para a
compreensão da realidade do real. Mas com a característica de um problema à parte, independente e,
sobretudo, com a efígie de propedêutica e de organon, isso somente se dá na modernidade, no
desdobramento de uma certa compreensão/interpretação de Descartes e, principalmente, de Kant. É nesta
rota histórica que o conhecimento, já no século XIX, será tematizado sob a sigla “teoria do conhecimento”
(ou ainda epistemologia, criteriologia, gnosiologia) e tal tematização se fará a partir dos pressupostos desta
era moderna.” (FOGEL, 2002, sem paginação)
6
Sobre a tradução dos termos Instinkt e Trieb, Roberto Machado indica que “de um modo geral, Nietzsche
não faz diferença entre os termos Instinkt, de origem latina, e Trieb, de origem propriamente germânica,
utilizando-os como equivalentes e formando a partir deles outros termos ou expressões compostos.”Cf.
Machado, 1999, p.97. Levando em consideração a observação de Machado em torno da equivalência do
uso em Nietzsche dos termos Instinkt (instinto) e Trieb (pulsão ou impulso), opto por traduzi-los
predominantemente com o termo impulso no intuito de uniformizar o vocábulo e por considerar que a
tradução de trieb ou instinkt para impulso é interessante para este trabalho, pois é um terceiro termo que
não recairia no problema de tradução posteriormente desenvolvido a partir dos escritos freudianos da
divisão dual entre instinto (animal) e pulsão(humana), isso também considerando o trabalho de Nietzsche
por apontar a animalidade do humano. Nesse sentido, mantenho em sua maior parte a tradução de Paulo
Cesar de Sousa.
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uma hipervaloração da consciência racional do sujeito. Assim que, para desenvolver uma
crítica à noção de sujeito moderno no que diz respeito à implicação fundamental desta no
problema do conhecimento, procuro levar em consideração as diferentes estratégias de
Nietzsche que visariam desestabilizar esta noção em sua constituição de fundamento
seguro para o conhecimento. Nesse sentido, ressalto que a crítica de Nietzsche ao sujeito
do conhecimento se desdobra no quadro mais amplo de sua crítica à metafísica, já que,
para o filósofo, a noção de sujeito, em sua afinidade com noções como consciência,
racionalidade e o “eu”, encontra-se implicada com uma série de implicações de cunho
metafísico.
7
Pode-se entender a “morte de Deus” no duplo sentido cristão-metafisico, pois o Deus cristão é, para o
autor, no ocidente, a mais evidente concreção religiosa da metafisica já que o filósofo considera no prólogo
de Além do bem e do mal que “o Cristianismo é um platonismo para o povo” e ainda “-Por último, minha
desconfiança, com Platão, vai até o fundo: acho-o tão extraviado de todos os instintos fundamentais dos
helenos, tão moralizado, tão preexistentemente cristão (...)”. Desse modo, pode-se colocar que com “a
morte de Deus” também os valores metafísicos são desestabilizados. Cf. NIETZSCHE. CI, sc 2.
8
Cf. MACHADO, 2001, P.62; DELEUZE, 1976, P.69.
9
Cf. NIETZSCHE, GC, §343.
10
Cf: NIETZSCHE, GC, §108 e §109.
11
Cf. NIETZSCHE, 1887-1888 apud MACHADO, 2001, p. 64.
17
crítico da ideia mesma de Deus-fundamento”12, assinalando deste modo a relação
intrínseca entre a noção de Deus e a de sujeito erigido como um novo fundamento.
Portanto, com a desvalorização dos valores absolutos identificados sob o nome de Deus,
Nietzsche entrevê uma insuspeita substituição desses por valores demasiadamente
humanos através dos quais, pode-se ressaltar, o sujeito racional e consciente adquire na
modernidade uma supervalorização. Neste sentido, lemos em Cragnolini:
[...] O sujeito moderno se apresenta como uma nova sombra de Deus, uma vez
este morto. Isto significa que o sujeito ocupa na modernidade o lugar vazio
deixado pelo Deus morto e cumpre suas funções fundamentadoras no âmbito,
ontológico, gnosiológico e ético-político. (Cragnolini, 2006, p. 38)
Pode-se entender então que o vazio deixado pela “morte de Deus” é de tal
maneira insuportável para o homem moderno que este manteria, a partir da noção de
sujeito, a função de fundamento outrora ocupada por Deus. Desse modo, o próprio
fundamento garantidor dos âmbitos ontológicos, gnosiológicos e ético-políticos
permaneceria sólido, seguro e inquestionável. Portanto o locus ocupado antes por Deus,
que fazia função de origem e fundamento assegurador e estável de todos os valores, seria
na modernidade ocupado pelo sujeito moderno e seus atributos, tais como a consciência
e a razão, já que o homem na modernidade passa a ser compreendido fundamentalmente
como consciência e razão. Nessa direção reflete Roberto Machado que:
12
Ressalto que todos os textos de Mónica Cragnolini foram por mim traduzidos do original em espanhol
para o português. Assim como os textos em espanhol de Sebastian Chun e Paula Fleisner
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“eu”) como fundamento seguro do conhecimento, assim como o concebe a modernidade.
Se Deus apresentava-se como fundamento absoluto para todos os valores, por sua vez, na
modernidade a consciência é supervalorizada como medida para atribuição dos demais
valores, assim como indica Cragnolini comentando a noção de subjetividade moderna:
Pensam que nela está o âmago do ser humano, o que nele é duradouro,
derradeiro, eterno, primordial! Tomam a consciência por uma firme grandeza
dada! Negam seu crescimento, suas intermitências! Veem-na como “unidade
do organismo”! – Essa ridícula superestimação e má-compreensão da
consciência [...] (NIETZSCHE, GC, §11, grifo meu)
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Denunciando a superestimação da consciência o filósofo sinaliza que lhe são
atribuídos valores que eram concedidos ao Deus cristão como eternidade, unidade,
“primordialidade”, mas que com a “morte de Deus” seriam deslocados na passagem da
modernidade para o que seria “o âmago do ser humano” e o “órgão” fundamental para o
conhecimento racional desde onde o homem se apropriaria do mundo e de si mesmo. A
partir dessa valoração, a consciência é tomada como uma “firme grandeza dada”, ou seja,
como algo que permaneceria em sua estabilidade externa ao vir a ser enquanto uma
“substância” pré-determinada em sua constituição e essencialidade. Além do que, a
consciência, sendo considerada como o “âmago do ser humano”, e assim supervalorizada
como o que este teria de essencial e próprio, distinguindo-o como ente superior e
privilegiado frente a todos os demais entes. A consciência apareceria no projeto de
conhecimento da modernidade, assim como o sujeito a ela relacionado, como uma das
principais “sombras de Deus” a ser desconstruída justo por sua herança metafisico-
religiosa dissimulada nos ideais modernos 13. Questionando a supervaloração da
consciência ao problematizar o valor dessa avaliação, Nietzsche, no livro V de A gaia
ciência, argumenta que:
13
Também Nietzsche avalia como um “erro monstruoso” tomar “a consciência como a suprema forma
alcançável, como espécie superior do ser, como ‘Deus”’ Cf. NIETZSCHE,VP, §529.
20
acrescentar um espelho narcísico por intermédio do qual o mundo e o si mesmo são
representados através de uma lógica da identidade e identificação do diferente ou
semelhante como igual. Nota-se ainda que, segundo Nietzsche, a vida pensante, sensível
e querente se realizaria sem a “entrada na consciência”; poderíamos, portanto, sentir,
querer, recordar e “agir” sem esse espelhamento, o que soaria ofensivo para um filósofo
mais velho, ou seja, aquele que constitui seu pensamento em certa metafísica que se
entretece em grande parte a partir da valorização da consciência como elemento
constituinte do conhecimento, do agir, do querer e do sentir. Desse modo, afirmar que
pensar, sentir, querer e inclusive “agir” são possíveis sem a participação da consciência
seria de certa maneira desconstituir o poderio do sujeito moderno com seu atributo de
autonomia e liberdade da vontade a partir da consciência e da razão.
21
A consciência, segundo a conjectura do filósofo alemão, não é associada, como o
fez a tradição ocidental, a uma propriedade ou essencialidade privilegiada do homem,
quanto menos a um aspecto divino ou transcendente, pelo contrário, seriam a indigência
e fraqueza do animal homem que tornariam necessário seu surgimento e
desenvolvimento. Desse modo, a consciência se desenvolveria, pois, a partir de um
imperativo humano, demasiadamente humano como um instrumento útil à comunicação
para a sobrevivência e conservação do homem considerado pelo filósofo como um animal
ameaçado e desprotegido. Assim, a consciência, como se desenvolvera, enquanto um
“órgão” para a comunicação teria sua formação em consequência da necessidade da
miséria humana, como um instrumento útil para a proteção e segurança frente aos perigos
da vida a partir dos quais os homens precisavam de seus iguais. A consciência
possibilitaria, portanto, a aproximação e a comunicação entre seus iguais, portanto já aqui
ela aparece como um instrumento a favor da formação de rebanhos. Desse modo, a
consciência é compreendida por Nietzsche (GC, §354) como “apenas uma rede de ligação
entre as pessoas – apenas como tal ela teve de se desenvolver”. É nessa direção que a
consciência se desenvolveria em função da conservação dos homens que precisavam de
seus iguais, pois em rebanho, homem estaria em maior segurança e proteção. Foi apenas
desse modo que os pensamentos, sentimentos e ações chegaram então à consciência em
favor da conservação a partir da comunicação entre iguais. Ao considerar que “para isto
ele necessitava antes de consciência, isto é, saber o que pensava”, pode-se compreender
que a atividade de pensamento não seria, para Nietzsche, reduzida à esfera da consciência
na qual aquela só entraria, em parte, devido à situação de perigo em que se encontrava os
homens.
22
Nietzsche (ABM, § 202) assinala que “[...]justamente aos homens das ideias modernas,
empregamos constantemente as expressões ´rebanho´,´instinto de rebanho´...” Desse
modo, o filósofo consideraria que há um acirramento e uma radicalização do instinto (ou
impulso) de rebanho na modernidade e, pode-se acrescentar, por consequência, uma
supervalorização da consciência.
Quem por exemplo não soubesse distinguir com bastante frequência o “igual”,
no tocante à alimentação ou aos animais hostis, isto é, que subsumisse muito
lentamente, fosse demasiado cauteloso na subsunção, tinha menos
probabilidades de sobrevivência do que aquele que logo descobrisse
igualdade em tudo o que é semelhante. (NIETZSCHE, GC, §111)
Nesse sentido, Nietzsche propõe que aquilo que se torna consciente é a tradução
simplificadora dos pensamentos, sentimentos e ações para o que ele nomeia como
perspectiva gregária (ou de rebanho)15, a qual necessitaria da simplificação,
superficialização e generalização do mundo para o optimum utilitário do processo
comunicativo. Com isso, o conscientizar-se dos pensamentos, ações e sentimentos seria
um processo que falsificaria o caráter múltiplo do mundo, processo no qual mundo e
homem seriam tornados mais gerais, vulgares e empobrecidos. Por intermédio da
falsificação e da simplificação da consciência necessária para a conservação do rebanho
favorecer-se-ia justamente o processo de igualação entre os homens e o empobrecimento
do mundo no que há de mediano e superficial pois:
14
No item 1.2 deste capítulo, analiso a hipótese de Nietzsche de que os pensamentos não se restringem ao
campo da consciência.
15
Cf. NIETZSCHE, GC, §354.
23
A natureza da consciência animal ocasiona que o mundo de que podemos nos
tornar conscientes seja só um mundo generalizado, vulgarizado - que tudo o
que se torna consciente torna-se raso, ralo, relativamente tolo, geral, signo,
marca de rebanho, que a todo tornar-se consciente está relacionada uma
grande, radical, corrupção, falsificação, superficialização e generalização.
(NIETZSCHE, GC, §354, grifo meu)
Nessa direção, Nietzsche (GC, §354) avalia que a consciência é parte “daquilo
que nele o homem é natureza comunitária e gregária”, natureza esta que necessitaria
obliterar e denegar tudo que se apresenta como múltiplo, diverso e singular. De modo
que, pela necessidade utilitária da consciência como perspectiva gregária, no sentido da
conservação do animal homem em rebanho, ter-se-ia supervalorizado a consciência na
história do Ocidente, particularmente valorizando-a na modernidade, porém sob outro
“manto”, como o locus originário do processo de pensamento e do conhecimento racional
do sujeito. Desse modo, se uma das características fundamentais da noção de sujeito
moderno é a valorização da consciência de si, o que lhe possibilitaria sua autonomia frente
aos outros e também frente a seus impulsos e paixões, a crítica de Nietzsche à consciência
como uma tradução do múltiplo e do singular para a perspectiva gregária problematizaria
o ideal subjetivista moderno, no qual pelo exame interno a partir da consciência seria
possível “autoconhecer-se”:
Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz parte realmente da
existência individual do ser humano, mas antes daquilo que é natureza
comunitária e gregária; que em consequência, apenas em ligação com a
utilidade comunitária e gregária ela se desenvolveu sutilmente, e que, portanto
com toda a vontade que tenha de entender a si próprio de maneira mais
individual possível, de “conhecer a si mesmo”, sempre traz à consciência
justamente o que não possui de individual, o que nele é médio [...] e traduzido
de volta para a perspectiva gregária. (NIETZSCHE, GC, §354)
Sublinho junto a essa passagem a sutil ironia nietzschiana ao suspender entre aspas
o “conhecer a si mesmo” fazendo, pode-se supor uma referência crítica a um dos
princípios fundamentais do projeto ocidental, o “conhece-te a ti mesmo”, preceito
máximo do oráculo de Delfos e exemplarmente encarnado por Sócrates. Segundo Eric
Blondel (1985, p.120), as aspas “significam tipograficamente que uma palavra ou frase não
são consideradas pelo autor como isomorfas a seu próprio discurso [...]” e
especificamente em Nietzsche “instauram a diferença e a hierarquia de valores,
homólogas à distinção forte-fraco. [...] Nietzsche, em uma constância inopinada, coloca
sistematicamente entre aspas os termos-chaves do discurso moral”. Portanto, o uso das
24
aspas em Nietzsche torna-se um elemento importante para pensar as estratégias e a
posição crítica do filósofo alemão frente aos discursos morais. Assim, o uso das aspas
destaca o campo moral a que pertence a expressão “conhece-te a ti mesmo” que, como
prática, ainda se vincula à verdade e à busca da própria “essencialidade”. A partir da
valorização da verdade, Sócrates toma como supremo ideal da vida o conhecimento
racional e o autoconhecimento como tarefa na busca daquilo “que é”, ou seja, do que há
de essencial, de mais próprio no homem. De outro modo, em Ecce Homo, Nietzsche (“Por
que sou tão inteligente”,§9. ) se opõe a tal valor ao escrever que “alguém se torne o que
é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é”.
Desse modo, Nietzsche avalia que, com o entendimento de si a partir do tornar-se
consciente, nada de individual seria conhecido, ao contrário justamente aquilo que
haveria de particular e singular no homem seria apenas traduzido e simplificado em um
reconhecimento de si no que há de médio a partir dos valores da perspectiva gregária.
Assim, a “conscientização de si” enquanto práxis do “conhece-te a ti mesmo” se daria
apenas no sentido dos valores do rebanho, ou seja, a partir da consciência o homem
identificaria o seu “próprio” com o ideal utilitário e a valorização de homem própria à
perspectiva gregária. Portanto, com a supervalorização da consciência e ainda
especificamente do conhecimento de si, se acentuaria o processo de nivelamento dos
homens no mediano, no geral e superficial, possibilitando o reconhecimento e o
nivelamento com seus iguais e intensificando a “com-formação” dos homens ao rebanho.
Não temos nenhum órgão para o conhecer, para a “verdade”: nós “sabemos”
(ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser útil ao interesse
da grege humana, da espécie: e mesmo o que aqui se chama “utilidade” é,
afinal, apenas uma crença, uma imaginação e, talvez, precisamente a fatídica
estupidez da qual um dia pereceremos [...]”. (NIETZSCHE, GC, §354, grifo
do autor.)
25
Referindo-se criticamente à concepção tradicional e moderna que concebe a
consciência como um órgão para o conhecimento, para a verdade e para o saber,
Nietzsche problematiza seus valores ao suspender entre aspas a verdade e o saber, pois o
que estaria em jogo não seria, como se pensa modernamente, o conhecimento puro e
desinteressado pela verdade e pelo saber, mas justamente o interesse naquilo que é útil
para o rebanho, interesse que, em primeira instância, seria governado pelo impulso
predominante neste, ou seja, o impulso para sua conservação, e nessa direção, também
para a conservação de certo tipo ideal de homem. Blondel ressalta que:
As aspas se impõem, para citar o discurso moral, não mais apenas para se
destacar dele, prevenir mal-entendidos ou narrar o intraduzível não isomorfo,
mas também (e sobretudo) para marcar sua não-pertinência sintáxica, léxica ou
semântica e, em particular, denunciar semanticamente, sua vacuidade ou seu
caráter ‘ postiço” (Cf. BLONDEL, 1985, p.122).
26
vontade de potência16 e essa vontade como uma dinâmica na qual predominaria a
superação, pois como é indicado em Zaratustra, “E a própria vida contou-me este segredo:
‘Vê’, falou ela, ‘eu sou isso que precisa sempre se auto superar’” (NIETZSCHE, AZF,
“Da autossuperaçao”); desse modo a vontade de potência teria o impulso de
autoconservação apenas como uma consequência indireta, pois “Querer auto conservar-
se é a expressão da calamidade, uma restrição ao verdadeiro instinto da vida que tende à
expansão da potência” (NIETZSCHE, GC, §349). Qual seria então mais especificamente
a relação entre essa “vontade de conservação”, a superação e a vontade de potência? Antes
de tudo, faz-se necessário deter-me nos possíveis sentidos de vontade de potência, para
isso é preciso aqui estabelecer um desvio imprescindível para a retomada da questão que
procuro desenvolver, pois vontade de potência apresenta-se como uma pedra de toque
para a compreensão do filosofar nietzschiano, e ainda como buscarei esclarecer ao longo
deste trabalho, para o entendimento do que possa vir a ser uma outra concepção de
subjetividade a partir da diferença e da alteridade. Em primeiro lugar, é importante afastar
certas interpretações da noção de vontade de potência para, aos poucos, empreender uma
interpretação do que pode vir a ser a vontade de potência no discurso nietzschiano. Uma
primeira aproximação a ser cuidada se faria por meio da noção de vontade em
Schopenhauer; segundo Luciano Brasil (2012, p.70), “a princípio o termo ‘vontade para
o poder’ parece repetir a metafísica da vontade, particularmente a influência de
Schopenhauer, a que Nietzsche seria devedor”. Por essa possível aproximação, o próprio
Nietzsche busca desvencilhar sua concepção de qualquer herança possível em relação à
metafísica da vontade em Schopenhauer, assim o filósofo aponta que:
16
Quanto a tradução do importante termo “Wille zur Macht” , noção central na filosofia de Nietzsche, cabe
ressaltar a opção que elejo recorrentemente em meu texto frente a outras opções. É notável que o tradutor
Paulo Cesar de Souza opte pela tradução do termo como vontade de poder, já Scarlett Marton, importante
intérprete, utiliza, como optei, como vontade de potência, e ainda outros tradutores o traduzem por vontade
de domínio. A opção pela segunda tradução me pareceu mais adequada pelo fato de que em face ao
desenvolvimento de uma crítica do sujeito no discurso de Nietzsche, a primeira e terceira tradução me
parecem soar ainda dentro de certa metafisica da vontade (que por sua vez se insere em um contexto maior
em uma metafisica do sujeito). Nesse sentido, potência me parece o termo que melhor explicita a
abrangência desta noção que não se restringe apenas ao domínio humano, mas abarca ainda o aspecto
cosmológico. Também sua referência ao humano não se restringiria ao domínio da consciência e ao
exercício do poder comumente relacionado a uma vontade. Nesse sentido, para uma melhor legibilidade do
texto modifico as citações em que o termo está traduzido como “vontade de poder ou domínio” para
“vontade de potência”.
27
nada, como algo complexo, algo que não possui outra unidade que seu nome e
nesta unicidade de nome é precisamente onde encontra seu fundamento o
preconceito que enganou a prudência sempre muito deficiente dos filósofos.
Sejamos, pois, mais discretos, menos filósofos e admitamos que em cada
vontade existe, antes de mais nada uma infinidade de sentimentos. [...]à
vontade são acrescentadas vontades "subalternas", almas subalternas e dóceis,
pois nosso corpo não é mais que a habitação de muitas almas. L'effetc'est moi.
[...]acontece aqui o mesmo que em toda coletividade feliz e bem organizada; a
classe dirigente se apropria dos êxitos da coletividade. Em todo querer se trata
simplesmente de mandar e de obedecer dentro de uma estrutura coletiva
complexa, constituída, como já disse, por "muitas almas". (NIETZSCHE,
ABM, §19)
Desse modo, Nietzsche começa por distinguir e diferenciar sua noção de vontade
(de poder) da concepção schopenhaueriana de vontade que seria em sua simplificação um
exagero do preconceito popular que reconheceria nela apenas uma unidade simples. De
outra forma, para o Nietzsche vontade só seria possível como uma unidade apenas no
nome que a designa, enquanto em realidade ela se apresentaria como um fenômeno
complexo, pois na vontade existiria desde sempre “uma infinidade de sentimentos”.
Segundo Muller-Lauter (2009, p.59), “Ele [Nietzsche] se volta, com especial ênfase,
contra a tese da simplicidade da vontade. [...] Na verdade, a vontade não é algo simples,
absolutamente dado, não derivável, compreensível em si” e continua “‘Não há nenhuma
vontade’, se esta for concebida como algo simples, pertencente a um eu-substância que
está no fundo de nosso agir como causa. ” Portanto, é contra a interpretação assumida
pelo povo (e exagerada pelos filósofos) de que a vontade seria algo facilmente
reconhecível em sua simplicidade e unidade que a noção de uma vontade complexa e
múltipla vai sendo construída e afirmada. Nesse sentido, é ainda contra o preconceito
popular tornado em um filosofar de uma crença no “eu-substância” capaz de agir a partir
de sua “vontade-unidade” que se voltaria também a crítica de Nietzsche. Para Nietzsche,
tal pensamento (popular e filosófico), marcado pela crença na gramática, para usar uma
expressão do pensador alemão, seria uma simplificação dos múltiplos processos que
caracterizariam a efetividade de sua concepção de vontade. Como exposto na passagem
supracitada, nosso corpo seria uma habitação de muitas almas, caracterização esta que já
deslocaria a concepção da unidade de um eu capaz de auto afirmar a sua vontade. Nessa
direção, Nietzsche afirma que “à vontade são acrescentadas vontades ‘subalternas’,
‘almas subalternas’” havendo uma equivalência semântica entre vontade e “almas”,
sempre pensadas a partir de uma multiplicidade complexa, irredutíveis a uma simples
unidade. Desse modo, por ser o corpo uma habitação de muitas almas, à vontade seria
28
acrescida uma inúmera quantidade de outras “vontades subalternas”, caracterizando a
vontade de potência desde uma multiplicidade de vontades que se efetivaria em uma
dinâmica de hierarquização a partir do mando e da obediência. Essa outra concepção de
múltiplas vontades conformando sistemas hierárquicos abalaria a concepção de um eu
como agente causador da vontade: “L'effetc'est moi” é grifado em francês por Nietzsche.
Expressando seu pensamento de que o “eu” é meramente um efeito do jogo e da dinâmica
da multiplicidade das vontades, não sua causa motriz.
Não apenas a força tem de ser, por fim, entendida como vontade de potência,
também os afetos nada mais são do que “configurações” da vontade de
potência que “é a forma primitiva do afeto”, assim como se diz dos impulsos,
que a ela podem ser remetidos. (2009, p.62)
29
mundo”. Contudo considerando-a um “fato último” Nietzsche não estaria recaindo
exatamente sob as malhas metafísicas que tanto combateu? A vontade de potência não se
estabeleceria como uma força primordial, como um princípio, uma arché metafísica, um
dado último que funcionaria como uma estabilidade unitária, qual um átomo, fundamento
microscópio no qual ainda valeria a lei do ser enquanto uma estabilidade? Não
representaria ela a unidade desde onde a multiplicidade se instauraria?
Por outro lado, não estaríamos nos enredando novamente pela malha da gramática
que nos induziria a crer em uma unidade a partir do nome vontade de potência? Assim,
vontade de potência seria apenas um nome no perigo de ser confundido com um conceito
que esconderia sob sua aparente simplicidade e unidade abstrata o complexo múltiplo que
efetivamente se daria. Nesta direção, Muller reflete que:
30
tudo, o antagonismo, que faz dela vontade de potência. [...] a vontade de
potência, como diz Nietzsche “não é originalmente um ser, um vir a ser, mas
um pathos”, do qual “somente resulta um vir a ser, um efeito”. (2009,p. 73)
31
Para Nietzsche, na natureza não predominaria a indigência, ainda que está possa ser um
caso excepcional ou sintomático, por exemplo, entre os homens decadentes do rebanho
moderno, mas abundância, desperdício, absurdez. A autoconservação não poderia ser
considerada o instinto primordial e fundamental presente na natureza, sendo apenas a
expressão de um estado indigente, comum como afirma o filósofo aos investigadores da
natureza e também no caso específico de Espinosa e seu filosofar a partir do qual se teriam
enredado as modernas ciências naturais. O predomínio do instinto de conservação comum
ao rebanho típico do homem moderno pode ser entendido como um enfraquecimento
quando não uma espécie de negação do instinto da vida predominante na natureza. Assim,
o instinto de superação que visaria ao aumento da potência da vontade em sua força de
abundância, desperdício e absurdez renunciaria ao instinto de autoconservação que na
perspectiva nietzschiana seria apenas uma “consequência indireta” à serviço da
dinâmica de autossuperação própria da vontade de potência. Assim, pode-se compreender
o apelo de Zaratustra em favor da superação do homem moderno representado no último
homem que apenas almeja sua própria conservação:
32
do filósofo aos fundamentos metafísicos da consciência, do pensamento e do sujeito
analisada anteriormente também produz uma criação capaz de engendrar um outro modo
de relacionamento, uma outra hierarquia entre essas dimensões.
18
A noção de inconsciente tal como Freud a elabora ao longo de sua obra é desenvolvida no século XX.
Freud, S. (1980). Artigos sobre a metapsicologia. Cf: O inconsciente. In S. Freud, Obras completas (Vol.
14). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915). Ainda que o inconsciente não seja
abordado de modo especifico como um conceito na obra de Nietzsche, posso apontar que em
seus escritos esboça-se a noção de pensamentos inconscientes, e de modo mais frequente, como
desenvolvido neste capítulo, encontra-se a noção da participação dos impulsos no processo de pensamento,
na qual os impulsos mesmos constituem aquilo que usualmente é designado como pensamento consciente.
Desse nodo, posso enfatizar que há entre ambos os autores a participação em certo modo de analisar a
relação entre os pensamentos e os impulsos que não se vincula à tradição metafísica de conceber os
pensamentos em oposição aos impulsos.
19
Nesse sentido, Scarlett Marton escreve: “Por sua origem biológica, a consciência não passa de 'um meio
de comunicabilidade”, 'um órgão de direção’ (Nachlass/FP 1887-1888, (372) 11 [145], KSA 13.68).
Surgindo da relação do organismo com o mundo exterior, relação que implica ações e reações de parte a
parte, ela não constitui, como a maioria dos filósofos supôs, o traço distintivo entre homem e animal.”
(MARTON, 2016, p. 42) Disponível em:http://www.scielo:.br/pdf/cniet/v37n2/2316-8242-cniet-37-02-
00011.pdfAcesso em: 10 jul. 2018.
33
o pensamento consciente concebido pela modernidade enquanto o único modo de
pensamento possível como o mais superficial.
Nietzsche aponta que, a partir da supervalorização da consciência na
modernidade, a esta seria creditado o locus originário do pensamento, suplantando-se um
longo processo de pensamento que não se restringiria a seu registro. Torna-se
indispensável investigar, portanto, o que pode ser o processo de pensamento quando este
é compreendido como não originado na consciência do sujeito racional. Na modernidade,
a ênfase dada à autonomia da consciência acabaria por sobrepujar um longo processo de
luta entre os impulsos que fariam parte, segundo Nietzsche, da dinâmica do pensamento.
Além disso, o pensamento simplificado e generalizado, como apareceria na consciência,
seria vinculado ao “Eu”, um sujeito causador do pensamento que manter-se-ia fixo e
imutável frente ao caráter múltiplo e transitório da vida, pois imaginar-se-ia que “o eu
como substância, não entra na multiplicidade da mudança” (NIETZSCHE, VP, §488). De
outro modo, o pensamento é concebido por Nietzsche como um longo processo que seria
denegado em favor apenas dos últimos momentos do pensar, assim como este apareceria
na consciência, onde seria sentido como contrário à multiplicidade e à luta dos impulsos,
como se pode ler no parágrafo 333 de A gaia Ciência:
[Não rir, não lamentar nem detestar, mas compreender! ] Disse Espinosa, da
maneira simples e sublime que é sua. No entanto que é intelligere, em última
instância, se não a forma na qual justamente aquelas três coisas tornam-se se
de uma vez sensíveis para nós? Um resultado dos diferentes e contraditórios
impulsos de querer zombar, lamentar e maldizer? Antes que seja possível um
conhecer, cada um desses impulsos tem de apresentar sua visão unilateral da
coisa ou evento; depois vem o combate entre essas unilateralidades, deles
surgindo aqui e ali um meio-termo, uma tranquilização, uma justificação, para
os três lados, uma espécie de justiça e contrato[...]. A nós nos chegam à
consciência apenas as últimas cenas de conciliação e ajuste de contas desse
longo processo, e por isso achamos que intelligere é algo conciliatório, justo,
bom, essencialmente contrário aos impulsos; enquanto é apenas uma certa
relação dos impulsos entre si. Por longo tempo o pensamento consciente foi
tido como o pensamento em absoluto: apenas agora começa a raiar para nós a
verdade de que a atividade de nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de
maneira inconsciente e não sentida por nós. (NIETZSCHE, GC, §333. Grifo
meu)
Nietzsche afirma que antes que fosse possível um conhecimento, haveria uma
longa gênese a partir de uma complexa relação de luta entre diferentes impulsos, e o
conhecimento “apareceria” apenas como o resultado (enquanto contrato e justiça) de um
longo combate entre diferentes impulsos. Assim, o conhecimento não adviria de uma
consciência objetivante e racional, mas seria apenas o resultado final e “superficial” de
um complexo embate entre os impulsos que tomariam parte em sua gênese compreendida
34
fisiologicamente. Portanto torna-se incabível a partir dessa perspectiva conceber o
conhecimento como puro, autônomo e objetivo haja vista sua gênese pulsional. Por outro
lado, o conhecimento só seria considerado como conciliatório, justo e bom e afastado dos
impulsos quando se tomam suas últimas cenas, a conciliação e o ajuste de contas, desse
longo processo “dos diferentes e contraditórios impulsos” 20como sua origem. A partir da
leitura de Foucault (2005, p..15) sobre Nietzsche, em “A verdade e as formas jurídicas”
(2005), pode-se avaliar que o conhecimento é uma invenção (Erfidung) no sentido de que
“é por um lado, uma ruptura, algo que possui um pequeno começo, baixo, mesquinho,
inconfessável” e não tem nenhuma origem (Ursprung) solene, transcendental, divina ou
mesmo uma propriedade exclusivamente da natureza humana capaz de distinguir-lhe dos
demais entes como lhe atribui a história da filosofia. Foucault reflete que:
O conhecimento foi, portanto, inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer
que ele não tem origem. É dizer, de maneira mais precisa, por mais paradoxal
que seja, que o conhecimento não está absolutamente inscrito na natureza
humana. O conhecimento não constitui o mais antigo instinto do homem, ou,
inversamente não há no comportamento humano, no apetite humano, algo
como um germe do conhecimento. (2005, p.16)
Desse modo, ainda que o conhecimento seja um efeito dos instintos, ele não estaria
inscrito de maneira teleológica na natureza pulsional dos homens, seria uma invenção e
não teria, portanto, uma origem, seja ela transcendental, seja natural. Aqui se deve
formular uma questão: se o conhecimento é concebido por Nietzsche como um resultado,
um efeito de uma luta entre impulsos, como não lhe atribuir então sua inscrição em uma
natureza humana?
De fato, diz Nietzsche, o conhecimento tem relação com os instintos, mas não
pode estar presente neles, nem mesmo por ser um instinto entre outros, o
conhecimento é simplesmente o resultado do jogo, do afrontamento, da junção,
da luta e do compromisso entre os instintos. É porque os instintos se
20
Cf. Nietzsche, GC, §333.
35
encontram, se batem e chegam, finalmente, ao término de suas batalhas, a um
compromisso que algo se produz, esse algo é o conhecimento. (2005, p.16)
36
Outra característica fundamental do conhecimento assinalada por Foucault (2005,
p. 18) é que haveria uma radical diferença e descontinuidade entre o conhecimento e as
coisas que ele conhece, pois não existiria entre eles “nenhuma relação de continuidade
natural” e ele também afirma que “não há nada no conhecimento que o habilite por um
direito qualquer, a conhecer este mundo. Não é natural a natureza ser conhecida”.
Haveria, portanto, um duplo golpe de Nietzsche, uma dupla ruptura em relação à tradição
filosofia ocidental: uma entre o conhecimento e as coisas e a outra entre o conhecimento
e a “natureza” dos homens. Nesse sentido o filósofo Frances enfatiza que:
37
Outro ponto importante de ruptura com relação à tradição é que Nietzsche, no parágrafo
333 de “A gaia ciência”, compreende que a maior parte da “atividade do espírito” ocorre
inconscientemente como uma dinâmica de relação entre diferentes impulsos, indicando que o
pensar não é fundamentalmente um processo consciente, deslocando-o e desalojando-o, portanto,
de seu tradicional locus de origem que estabeleceria o conhecimento como uma atividade do
sujeito consciente. O sujeito (do conhecimento) só se efetiva como agente deste a partir de sua
atividade racional da consciência que formariam uma unidade inseparável na atividade do
conhecimento, contudo, Nietzsche provocaria um abalo nessa suposta unidade fundadora do
conhecer ao apontar que a “atividade do espírito”, sua maior parte, ocorreria de modo
inconsciente. Nessa direção, o filósofo, no parágrafo 357 de A gaia ciência aponta Leibniz como
um precursor da noção de uma atividade do espírito que não estaria reduzida ao registro da
consciência:
A incomparável percepção de Leibniz, com a qual ele teve razão não só perante
Descartes, mas ante todos os que haviam filosofado até então – de que a
consciência é só um acidente da representação, não seu atributo necessário e
essencial; que portanto o que denominamos consciência constitui apenas um
estado de nosso mundo espiritual e psíquico (talvez um estado doentio) e de
modo algum ele próprio. (NIETZSCHE, GC, §357)
21
Retomaremos em seguida a crítica de Nietzsche ao pensamento de Descartes. Como referência à crítica
de Nietzsche a Descartes, indico o artigo “Crítica à modernidade e conceito de subjetividade em Nietzsche”
de ITAPARICA (ver nota bibliográfica).
38
do bem e do mal, o filósofo alemão desenvolve essa concepção de pensamento
relacionada aos impulsos:
Supondo que nenhuma outra coisa seja “dada” como real a não ser o nosso
mundo de apetites e paixões, que não possamos descer ou subir a nenhuma
outra “realidade” a não ser justamente à realidade de nossos impulsos – pois
pensar é apenas um modo de comportar-se desses impulsos uns em relação aos
outros [...]. (NIETZSCHE, ABM, §36).
22
De maneira mais radical, o processo de pensamento entendido como interpretação é ainda apresentado
por Nietzsche como uma dinâmica na qual cada impulso é já uma interpretação que deseja tornar-se
soberana sobre os outros impulsos: “Nossas necessidades são quem interpretam o mundo, nossas pulsões e
seus prós e contras. Cada pulsão é uma espécie de ambição despótica, cada uma tem a sua perspectiva que
a pulsão gostaria de impor como norma para todas as outras pulsões.” (NIETZSCHE, VP, §481).
39
na luta dos diferentes impulsos. Portanto, pode-se argumentar, a partir das passagens
analisadas, que o pensamento, ou melhor, o processo do pensar incluído neste os
“pensamentos conscientes” não se constituiriam sob a égide de um sujeito consciente, ou
seja, não haveria um fundamento que pudesse ser tomado como fixo, estável e seguro,
pelo contrário, seria toda uma atividade complexa de embate entre diferentes e dinâmicos
impulsos que constituiria o pensamento como seu efeito. Pode-se supor então que aquilo
que Nietzsche designa como “último momento do longo processo de pensamento” (GC,
333), que ocorre na consciência, corresponderia à vitória temporária de um impulso sob
os outros, resultando na provisória conciliação e ajuste de contas da luta entre os
impulsos, momento este que seria privilegiado e vinculado ao sujeito racional da
consciência e assim compreendido como o próprio do pensamento para a concepção
moderna de conhecimento. Nesse sentido, Nietzsche problematiza e crítica a concepção
filosófica do conhecimento como algo limitado apenas ao registro da consciência como
o concebe a filosofia tradicional:
Mas eu penso que tais impulsos que lutam entre si sabem muito bem fazer-se
sentidos e fazer mal uns aos outros: a violenta e súbita exaustão que atinge
todos os pensadores talvez tenha aí sua origem (é a exaustão do campo de
batalha) sim, pode haver em nosso interior em luta muito heroísmo oculto, mas
certamente nada de divino, repousando eternamente em si como queria
Espinosa! O pensar consciente, em particular o do filosofo, é a espécie menos
vigorosa de pensamento e por isso talvez o filósofo pode se enganar mais
facilmente sobre a natureza do conhecer! (NIETZSCHE, GC, §333.)
Também em Além do bem e do mal, o filósofo admite que terminou “por acreditar
que a maior parte do pensamento consciente deve incluir-se entre as atividades instintivas
sem se excetuar o pensamento filosófico” (NIETZSCHE, ABM, §3). O “pensamento
consciente” é, pois, considerado por Nietzsche como tardio e epigonal em relação à
atividade dos impulsos que o constitui, mas a tradição filosófica, e acrescento a concepção
moderna, o conceberiam como o pensamento em absoluto. Contudo “a violenta e súbita
exaustão” que se apresentaria nos pensadores seria um sinal e sintoma do longo processo
que se dá no campo de batalha dos impulsos que constituem o processo de pensamento.
Tomando, porém apenas o resultado conciliatório que se dá na consciência dessa longa
atividade dos impulsos, o filósofo, que teria a “espécie menos vigorosa de pensamento”
se enganaria facilmente sobre a natureza do conhecimento ao identificá-lo apenas com os
pensamentos conscientes.
40
Deste modo, por meio da supervalorização da consciência (e do sujeito
pressuposto a ela) como lócus de origem do pensamento, concebe-se toda uma
perspectiva de conhecimento na modernidade como algo contrário aos impulsos. É
importante sublinhar que para a concepção de Nietzsche a modernidade não se constitui
em oposição à história da metafísica ocidental, pelo contrário, a modernidade seria a
radical concreção e fruto tardio desta história, portanto o moderno é sempre pensado em
articulação com essa herança metafísica que o constitui em sua singularidade histórica.
Assim cabe analisar mais detidamente qual compreensão de conhecimento pode se
desenvolver quando o pensar, entendido apenas como pensamento consciente, significa
simplificar e generalizar o longo processo do qual tomam parte os diferentes e múltiplos
impulsos. Nietzsche, no parágrafo 355 intitulado “A origem do nosso conceito de
conhecimento”, de A gaia ciência, narra a seguinte cena:
41
singularidades ao mesmo do já familiar. Nietzsche em sua compreensão diagnóstica do
conhecimento se valeria da investigação genealógica que teria como principal tarefa
avaliar as avaliações que determinariam coisas ou fenômenos, sendo portanto um método
interpretativo que insere na filosofia as noções de sentido e valor, pois assim como
explicita Deleuze, (1976, p. 4) “o projeto mais geral de Nietzsche consiste em introduzir
na filosofia os conceitos de sentido e valor”. Neste sentido, a genealogia não pretende
descobrir a verdade ou mesmo a origem (no sentido filosófico tradicional de busca de
uma essência) e o sentido teleológico23 de uma coisa, e considerando que não há coisas
em si, mas avaliações que as determinam em seu valor, procuraria considerar sua
pluralidade de sentidos.
Neste sentido, Nietzsche (GM, § 6) afirma que “o próprio valor destes valores
deverá ser colocado em questão – para isto é necessário um conhecimento das condições
e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e modificaram”; o
genealogista então apreende, no lugar do segredo (caro à metafisica) de uma essência,
que as coisas não têm essência ou que esta foi construída a partir de figuras que lhe são
estranhas. Portanto, Nietzsche considera que uma “essência” não tem valores
predeterminados e que estes são construídos, deslocando-se profundamente a partir de
23
Em oposição ao sentido teleológico Nietzsche (GM, II, § 12) afirma que para a interpretação genealógica
“algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para
novos fins, requisitado de uma maneira nova, transformado e redirecionado para uma nova
utilidade, por um poder que lhe é superior”. Nesse sentido, a reinterpretação avaliativa genealógica seria
sempre um ato de criação que provocaria novos devires para os fenômenos, o que veremos mais adiante
acontecer justamente em relação a noção de conhecimento, consciência e verdade.
42
uma ideia de construção o que poderia ainda ser chamado de uma “essência”. Com isto
pode-se afirmar que os valores não são eternos, eles tem um nascimento que nada tem a
ver com uma suposta essencialidade predeterminada e atemporal, mas sim com suas
condições e circunstâncias, mas não apenas, pois também se desenvolvem e modificam
de acordo com as forças que deles se apropriam. Portanto, a pesquisa genealógica se
proporia a avaliar em um duplo registro as avaliações e os valores (os valores que provem
de avaliações e as avaliações que são determinadas por valores) que condicionariam o
vir a ser de determinado fenômeno. Nesta direção Giacoia (2000. p. 46) afirma que em
relação aos fenômenos a genealogia considera a “reconstituição dos momentos
constitutivos de seu vir-a-ser, de tal maneira que o sentido atual desse fenômeno
não pode ser obtido sem o conhecimento da série histórica de suas transformações
e deslocamentos”. Considerando os fenômenos genealogicamente em seu vir a ser
Nietzsche se afastaria de qualquer consideração filosófica metafisica que pressupõe
valores e sentidos eternos, pois como ele pondera “tudo veio a ser; não existem fatos
eternos: assim como não existem verdades absolutas” (NIETZSCHE, HH, § 2). É
necessário ainda perguntar qual o critério dessa avaliação dos valores. Pode-se considerar que
Nietzsche pensa uma investigação genealógica que se furta aos imperativos de um procedimento
racionalista que tomaria como parâmetros os verdadeiros valores, sejam eles os oficiais ou
“atemporais”, transcendentais para avaliar os valores , pois como considera Marton (1993, p.
64): “É a vida, enquanto vontade de potência, que toma como critério de avaliação. Em ambos os
registros, porém, o conceito de vontade de potência desempenha papel de extrema relevância.”
Como argumenta a interprete ( Idem), a vontade de potência: “é o elemento constitutivo
do mundo e, ao mesmo tempo, parâmetro no procedimento genealógico” e ainda “Trata-
se, isto sim, de adotar um critério de avaliação que não possa ser avaliado. [...] E o único
critério que se impõe por si mesmo, no entender de Nietzsche, é a vida” Desse modo
pode-se sublinhar que é a vida como vontade de potência que dinamiza o pathos da
pesquisa genealógica na avaliação dos valores e na instituição ou criação destes para
avaliar. Nesse sentido, para a investigação genealógica toda avaliação de valores supõe
um ato de criação de valor, um exercício da vontade de potência, assim como considera
que todo valor proveniente de uma avaliação de um fenômeno não advém de sua essência
mas também é instituído pelo ato de uma invenção da vontade de potência seja de modo
reativo ou ativo. De outro modo, pode-se dizer que é fundamentalmente a vida que avalia
e cria valores seja ela uma vida decadente ou ascendente. Neste sentido, a genealogia
buscaria desconstruir a essência eterna imputada pela metafisica à um fenômeno em favor
43
de uma investigação crítica dos múltiplos sentidos e valores que os determinam em seu
devir.
24
Para avaliar o sentido de um fenômeno ou de uma coisa torna-se necessário, na leitura de Deleuze
(1976,p.4), sobre Nietzsche, saber qual força ou forças que se apropriam e se expressam neles. Tratarei
mais adiante da noção de força na perspectiva nietzschiana .
25
Porém a genealogia, considerando que todos os fenômenos vem a ser e estão em constante devir, entende
que novas forças podem se apropriar destes, possibilitando novos sentidos e valores. O que será levado
em consideração mais à frente quando Nietzsche propõe que outros devires de forças (neste caso, impulsos)
não reativas podem estabelecer novas formas e sentidos de conhecimento.
44
familiar aquilo que é desconhecido, submetendo-o a uma simplificação e generalização
por meio do já conhecido, não vigora justamente a perspectiva gregária e o impulso do
rebanho que precisaria para sua conservação e segurança proteger-se no seio do familiar
e conhecido, para “nos sentirmos em casa” (NIETZSCHE, GC, §355)? Nesta direção,
Nietzsche pondera: “Não seria o instinto de medo que nos faz conhecer? E o júbilo dos
que conhecem não seria precisamente o júbilo do sentimento de segurança reconquistado?
” (NIETZSCHE, GC, §355). Desse modo, não apenas os impulsos, que para a concepção
moderna deveriam estar ausentes do processo racional de conhecimento, fariam parte
dele, mas ainda Nietzsche questiona se nessa determinada concepção de conhecimento
não seriam soberanos o impulso de medo e a necessidade de segurança, considerados
como impulsos próprios do rebanho que, por sua configuração, deseja apenas conservar-
se de tudo o que avaliam como perigoso, estranho e diferente. Muller- Lauter (2009, P.
163) ressalta acerca do homem moral que predomina no rebanho: “O homem moral é
medroso. Seu ‘sentido de verdade’ é ‘no fundo’ um sentido de segurança. [...] A suspeita
em relação ao ser diferente que Nietzsche já detectou na raiz da compaixão deve agora
fundar também a exigência de veracidade.”.
26
Disponível em: http://pessoaypessoa.blogspot.com/2016/01/gilvan-fogel-por-que-nao-teoria-
do.html
45
interior” e os “fatos da consciência” próprios ao sujeito seriam o mais próximo e o mais
familiar, portanto mais conhecidos, e consequentemente assegurariam o projeto de
conhecimento ao funcionarem como um fundamento familiar e por isto seguro e estável
para a atividade do “re-conheccimento”. Além desta essa familiaridade consigo mesmo
pressuporia ainda o autoconhecimento do próprio eu que garantisse a certeza imediata do
sujeito.
28
A ‘razão’ na linguagem: Oh, que velha e enganadora senhora! Receio que não nos livraremos de Deus,
pois ainda cremos na gramática” (NIETZSCHE, CI, “A razão‟ na filosofia”, §5).
46
avaliar a certeza e evidência imediata de Descartes acerca do sujeito como causa do
pensamento, o filósofo alemão argumenta que:
[...] No que diz respeito à superstição dos lógicos: não me cansarei de sublinhar
um pequeno e simples fato, que esses supersticiosos não gostam de assumir, –
que um pensamento vem quando “ele” quer, e não quando “eu” quero; assim,
é uma falsificação dos fatos dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado
“penso”. Isso pensa: mas que “isso” seja justamente aquele velho e célebre
“eu” é dito com delicadeza, apenas uma suposição, uma afirmação, tudo menos
uma “certeza imediata”. (NIETZSCHE, ABM, § 17)
47
como fundamento de todos os valores e da alma a sua semelhança pela crença no eu e no
sujeito como únicas realidades capazes de produzir sentido. Quanto a isso, pondera
Scarlett Marton que:
30
Assinalo que pretendo desenvolver ainda neste capítulo e no precedente o uso de certa noção de ficção
para além do dualismo verdade/mentira por compreender que esse tema é relevante na interpretação
derridiana de Nietzsche e em sua relação ao problema do sujeito.
48
ela correlato se torne no programa da modernidade uma “necessidade” indispensável, isso
não a exime da crítica de Nietzsche:
--- por meio do pensar é posto o eu; mas até agora se acreditou, como o povo,
que no “eu penso” jaz algo de imediatamente certo e que esse “eu” seria a causa
dada do pensar (...). Por mais que essa ficção agora possa ser costumeira e
indispensável – isso, somente, não prova nada contra o seu caráter fictício, uma
crença pode ser condição da vida e, apesar disso, ser falsa. (NIETZSCHE, VP,
§483)
49
crença que considera a alma como sendo algo inextinguível, eterno, indivisível, uma
mônada, um átomo [...]” (NIETZSCHE, ABM, §12). Seria preciso, portanto, ao
pensamento a tarefa de eliminar esse atomismo metafísico da alma que a institui como
uma substância unitária e estável que se tornaria a herança necessária para a origem da
concepção de eu e de sujeito. Nietzsche verifica que tanto a alma assim como o átomo
são considerados ora pela metafísica, ora pela ciência como a ínfima partícula
funcionando como uma última parcela de “terra” fixa frente o incessante vir a ser, como
o fundamental resquício do “ser” com as características de durabilidade, eternidade e
indivisibilidade. Desse modo, considerando o sujeito uma ficção e uma crença, o filósofo
não o criticaria por seu caráter ficcional, mas por ser uma ficção que não é considerada
enquanto tal e que, pelo contrário, se lhe atribui um caráter de substancialidade. E ainda
porque essa ficção estaria a serviço de um impulso que denegaria o caráter múltiplo e
transitório da existência; importaria para Nietzsche o valor que determinada ficção tem
ou não de afirmar esse caráter da existência. Mas pode-se perguntar: a ficção mesma não
requereria um autor, um sujeito por detrás? É o que é justamente indagado em uma
passagem de Além do bem e do mal: “Por que não poderia o mundo que nos concerne –
ser uma ficção E a quem faz a pergunta: “mas a ficção não requer um autor?” – Não se
poderia replicar: Por quê? Esse “requer” não pertenceria também à ficção?”
(NIETZSCHE, § 34),
A partir desse exemplo, pode-se pensar que a noção de sujeito compreendida por
Nietzsche como uma ficção útil para o projeto de conhecimento moderno não é criticada
em nome de uma categoria mais real ou mais verdadeira, pois o pensador propõe outras
50
hipóteses de sujeito que também são consideradas por ele como ficcionais e hipotéticas.
Desse modo, a hipótese de um sujeito como multiplicidade é enfatizada por Nietzsche
não por meio do paradigma da verdade, mas como uma ficção. Cabe perguntar, porém, o
que distinguiria uma hipótese ficcional da outra? Parece-me que a diferença fundamental
entre essas hipóteses (admitido que ambas sejam hipóteses ficcionais) não é a oposição
falso/verdadeiro, mas sua relação e afinidade com a concepção de Nietzsche da
dinâmica de luta entre os impulsos 31·, pois o sujeito considerado como multiplicidade
estaria implicado em uma concepção de subjetividade que não tem como fundamento o
princípio de uma identidade estável, mas estaria em conformidade com as relações de
luta entre diferentes impulsos. Em Além do bem e do mal, Nietzsche (§ 12) concebe outras
hipóteses da noção de “alma” que podem ser consideradas como um paralelo da hipótese
de um sujeito como multiplicidade para além do caráter de estabilidade, unidade e
eternidade: “Está aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da
alma: e conceitos como ‘alma mortal’, ‘alma como pluralidade do sujeito’, ‘alma como
estrutura social de impulsos e afetos’ querem ter, de agora em diante, direito de
cidadania”. De um modo geral, pode-se pensar que essas versões da hipótese de alma,
tomando-as em sua afinidade já explicitada anteriormente com a noção de sujeito
elaborada pelo autor, se caracterizam tanto pela concepção de finitude quanto de
pluralidade que predominam nas estratégias nietzschianas de tecer novas interpretações,
ainda que usando (mas torcendo-as em direção a outros sentidos) termos tradicionalmente
metafísicos como alma, que possibilitem uma afirmação e afinidade com a vida
considerada em sua complexidade múltipla e dinâmica.
51
que impediria a cristalização das forças interpretativas em convicções e doutrinas últimas
e derradeiras como verdades absolutas. As convicções e doutrinas como perspectivas são
desse modo utilizadas para forcejar a luta e o combate típico das forças da vontade de
potência enquanto o “individuo” se reserva a liberdade na distância de qualquer aderência
final e absoluta a uma convicção e doutrina. Enfatiza Muller-Lauter que a concepção
fundamental de Nietzsche nesse contexto seria “que em todo crescimento do homem é
preciso que cresça também o seu lado inverso” (NIETZSCHE, KSA 12.444, (130) Apud
MULLER, 2009, p.39), e isto para que que haja constante antagonismo entre as forças
que favoreçam a luta entre elas e a superação de si mesmo. Compreendidos no âmbito da
luta e da superação, os antagonismos de impulsos estariam em afinidade com a concepção
fundamental nietzschiana de vontade de potência e seu movimento de superação. Assim,
faz-se necessário sublinhar que a luta dos antagonismos é compreendida por Nietzsche
também ao nível da vontade de potência e seu jogo de forças, pois “por meio de cada
impulso também se estimula seu impulso oposto” (MULLER-LAUTER, 2009, p.51) e
cada impulso “quer impor sua espécie de erro: mas cada um desses erros logo se torna
pretexto para um outro impulso (por exemplo, contradição, análise etc.). ” (MULLER-
LAUTER, 2009, p.52). O antagonismo de impulsos ressoando a dinâmica da vontade de
potência teria por resultado o movimento de superação de si no homem antagônico tendo
por consequência uma noção de identidade que se caracteriza pelo multiplicidade e o
dinamismo das forças que a atravessam. Do ponto de vista do conhecimento, a constante
luta dos impulsos por impor sua perspectiva preveniria que as doutrinas e convicções se
estabeleçam como uma verdade absoluta. A partir do antagonismo próprio dos impulsos
uma outra concepção de conhecimento e se sujeito se esboça no pensamento de Nietzsche.
Ora, caberia neste ponto questionar se, com sua concepção de uma multiplicidade
de sujeitos em afinidade com a multiplicidade de impulsos, não estaria Nietzsche, após
sua crítica “destrutiva” à substancialidade cartesiana do eu pensante, multiplicando
“aparentes realidades metafísicas rejeitadas” (MULLER-LAUTER, 2009, p.53). Dito de
outro modo, pergunta-se e a multiplicação não vem a ser apenas a inversão da unidade
metafísica que viria então a recair, ainda que negando, nos mesmos princípios
metafísicos. Nesse sentido, move-se a indagação de Muller-Lauter ao perguntar-se se:
52
É preciso problematizar se Nietzsche, ao realizar uma inversão da unidade estática
em prol da multiplicidade dinâmica, não estaria ainda operando dentro dos limites da
metafísica que busca negar, ao multiplicar aquilo que havia criticado (individuo, eu, alma,
sujeito e ego). E, se por detrás da multiplicidade ainda não operaria a noção de uma
substância fundante. Uma importante ressalva do intérprete mostra-se de grande
importância para este trabalho: ele afirma que “Nietzsche emprega palavras como sujeito,
eu, individuo, pessoa como símbolos para o que escapa à denominação. E ele os rejeita
tão logo são pensados como conceitos”. (MULLER-LAUTER, 2009, p.55). Nesse
sentido, pode-se apontar que para Nietzsche não haveria uma correspondência entre o
conceito e as “coisas” que estão, por sua vez, em constante processo de devir, tornando-
se impossíveis de serem fixadas. Seria, portanto, em nível do simbólico ou ainda do
metafórico que Nietzsche empregaria em seu próprio filosofar palavras como eu,
individuo alma, palavras tão carregadas do caráter metafísico, que logo pensadas como
conceitos, no sentido da correspondência, o autor as rejeitaria. Nietzsche chega mesmo a
afirmar em relação ao uso das palavras que: “infelizmente, não temos nenhuma palavra
para designar o que é efetivamente existente” (NIETZSCHE, KSA II. 631 40 Apud
MULLER-LAUTER, 2009, pp. 53-54). Afirma Muller-Lauter que:
Quando quer manifestar-se sobre isso, apesar da sua convicção muitas vezes
expressa “da incomunicabilidade das concepções últimas”, o filósofo tem de
se servir tanto das palavras do uso linguístico cotidiano, quanto da linguagem
tradicional da metafísica que combate. Assume seus conceitos, sem julgar que,
com eles se poderia “compreender” algo por completo. “Não há nenhum
caminho que leve do conceito à essência das coisas” (MULLER-LAUTER,
2009, p.54)
O uso das aspas marcaria de forma exemplar as palavras extraídas do uso cotidiano
e da metafísica, fazendo apenas referência a um estado de coisas e nunca à apropriação
da essência de uma coisa. Contudo são muitas as estratégias que o filósofo desenvolve
para não se enredar nas teias da metafísica a partir do uso das palavras concernentes a ela:
as aspas, a crítica ao simples, unitário e estático em favor do múltiplo, complexo e
dinâmico, o uso da linguagem metafórica...
53
das coisas seria seu vir a ser inapreensível pela operação de fixação e igualação 32 que
supõe o uso dos conceitos. Nessa direção afirma Muller-Lauter que:
Nietzsche rejeita, por isso, todas as palavras, na medida em que, com elas, se
enfatiza a pretensão do conceito, e faz uso delas apenas como “símbolo”. Elas
devem apenas referir estados de coisas. É preciso seguir esse seu caráter
referencial, não se pode fixar-se incondicionalmente a elas. É preciso deixar o
“conceitual” atrás de si, a fim de chegar ao que “efetivamente existe.
(MULLER-LAUTER, 2009, p.55)
32
O conceito surgiria, antes de tudo, por meio da igualação do não-igual.
54
mas em um radical deslocamento que não se deixaria apoiar sob os fundamentos da lógica
da identidade a qual sustenta o sujeito moderno.
Do mesmo modo que a noção de sujeito, por meio da crítica nietzschiana, sofre
deslocamentos de seu sentido usual, sendo utilizada em sentidos radicalmente outros (a
partir de um pensamento da finitude, da multiplicidade e da diferença) que os pensados
pela tradição moderna em uma proposta de sujeito que não se efetivaria nos fundamentos
metafísicos, proponho que esse movimento implica uma outra perspectiva da noção de
consciência e de conhecimento pensada também para além da metafísica do sujeito
moderno. Desse modo, o sujeito descentrando e múltiplo como o pensa o filósofo
produziria outros efeitos na sua relação com as noções de consciência e conhecimento.
Portanto, a crítica ao sujeito moderno e a sua “transvalorização” no sentido de uma
multiplicidade possibilitaria uma série de deslocamentos aos elementos tradicionalmente
a ele relacionados como a consciência, o pensamento e o conhecimento. Articulando-
os à noção de impulso outrora desqualificada pelo pensamento metafisico em um par de
oposição que supervalorizaria a consciência e o conhecimento como algo do qual não
participaria a atividade instintiva qualificada como inferior, Nietzsche afirma uma outra
hierarquia de valores.
Proponho em seguida que a partir de uma noção plural dos impulsos, como os
conceberia Nietzsche, não mais avaliados dentro de um par dicotômico, consciência e
conhecimento adquirem sentidos insuspeitos ao serem relacionados a este registro outrora
desqualificado pela metafisica como algo que além de não participar da atividade
intelectual a desviaria de seu percurso “natural”. Assim, com a participação fundamental
dos impulsos no processo de conhecimento e no “funcionamento” da consciência opera-
se um deslocamento radical quando estes não mais são considerados a partir de um
pretenso sujeito, como este é concebido tradicionalmente. Caminhando junto a crítica
veemente de Nietzsche, avalio que está engendra em um outro movimento novas
criações ao que era tomado como evidente e inquestionável produzindo deslocamentos
radicais no campo do conhecimento e do pensamento.
55
1.3 Deslocamentos
33
Por exemplo: “Esse ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de tal ardente
manancial de juízos de valor supremos, estabelecedores e definidores de hierarquias: aí o sentimento
alcançou bem o oposto daquele baixo grau de calor que toda prudência calculadora, todo cálculo de
utilidade pressupõe” (Nietzsche, GM, primeira dissertação, § 2) e “O juízo de valor cavalheiresco-
aristocráticos têm como pressuposto uma constituição física poderosa, uma saúde florescente, rica, até
mesmo transbordante” (Nietzsche, GM, (Nietzsche, GM, primeira dissertação § 7).
56
comunicativa da consciência poderia ser “sublimada” por naturezas esbanjadoras.
Ao apontar para o desenvolvimento e as intermitências da consciência, Nietzsche
sublinharia que, tendo ela um passado e um presente, a consciência poderia ter um
outro futuro, considerada então em sua imanência:
57
unicamente dos impulsos, mas sim dos valores e das forças que constituem esse estado
da consciência concebido como a natureza própria e imutável do homem, em favor de
valores e forças que promovam outros arranjos da consciência, do conhecimento e de sua
relação com os impulsos. A crítica mais fundamental de Nietzsche aos fundamentos
metafísicos, qualificados como essência, substância ou natureza, não permite que a crítica
sobre a consciência e ao sujeito do conhecimento dê lugar a uma ingênua fundamentação,
naquilo que seria tradicionalmente considerado como seu polo oposto, os impulsos, mas
abre a reflexão para outros arranjos e possibilidades insuspeitas das relações entre eles.
Além de não recair em uma mera inversão de valores, a estratégia de crítica e criação
nietzschiana em torno da consciência, do conhecimento e dos instintos inviabilizaria a
manutenção das oposições de valores típicas da construção metafisica, apresentando uma
outra relação de forças e valores entre estes. Desse modo, afastando-se criticamente de
um pensamento tipicamente dualista e binário (consciência x instintos, pensamento x
instintos) o filósofo alemão concebe um insuspeitado arranjo de relações no qual os
instintos marcam a gênese do pensamento e do conhecimento.
34
Sublinho que esse trecho que trata expressamente do tema do conhecimento encontra-se logo após os
parágrafos que tratam seguidamente da “morte de Deus e das “sombras de Deus”, o que parece enfatizar a
relação levantada ao início deste capítulo entre a “morte de Deus, suas sombras e suas relações com o
conhecimento.
58
existem coisas duráveis, que existem coisas iguais. (NIETZSCHE, GC, §
110)
A verdade aparece então como a mais fraca forma de conhecimento, pois “a força do
conhecimento não está no seu grau de verdade, mas na sua antiguidade, no seu grau de
incorporação, em seu caráter de condição para a vida” (NIETZSCHE, GC, § 110). A
verdade é, portanto, caracterizada como uma fraca forma de conhecimento, pois surge
como uma forma de negação e questionamento dos erros úteis que até então conservaram
a vida, erros que já há muito tempo haviam sido “incorporados”. Em relação a essa
verdade que nega e questiona os erros úteis, Nietzsche cita os pensadores da escola pré-
socrática Eleática35 como exemplo dos pensadores de exceção e da verdade, pois eles
35
Fundamentalmente a escola Eleática fora composta por Xenófanes (570 – c. 470 a.C.), Parmênides (510
– 440 a.C.) e Zenão (490 – 430 a.C.), que problematizaram o valor do conhecimento sensível e do
conhecimento racional e sua relação com o ser.
59
estariam em oposição aos “erros naturais”. Os Eleatas, ao afirmarem que “tudo é um”,
negariam como ilusão a percepção sensível por meio da qual, em suas perspectivas, tudo
apareceria em mudança36”. Nesse sentido, Fernanda Bulhões, analisando a obra de
Nietzsche, A filosofia na época trágica dos gregos, escreve:
Desse modo pode-se entender como, mesmo afirmando que “tudo é um”, os Eleatas
negariam os “erros naturais” justamente ao considerar que, por meio do sensível, ainda
que ilusoriamente,, só se poderia acessar o vir a ser. Nietzsche afirma, contudo, que os
Eleatas, mesmo em oposição aos “erros naturais”, precisaram investir-se de
“impessoalidade e duração sem mudança, de compreender mal a natureza do
conhecimento, negar a força dos impulsos no conhecimento” (NIETZSCHE, GC, § 110)
e, desse modo, eles também foram conduzidos pelos antigos erros úteis, mesmo que
negando-os.
37
Disponível em:https://periodicos.ufrn.br/principios/article/viewFile/7524/5594Acesso em: 1 jan. 2018.
60
De outro modo, a partir da retidão e do ceticismo, a nova relação entre diferentes
impulsos, que nesse momento se mostra possível, pôde desenvolver-se outro modo de
conhecimento não mais no sentido estrito da utilidade para a conservação da vida. Como
parece indicar a passagem, tal modo de conhecimento torna-se possível graças à
participação de um lúdico impulso intelectual que produz proposições que não sendo úteis
à vida tampouco lhe são prejudiciais. Ora, tal impulso lúdico é caracterizado como feliz
e inocente em seu ir além da estrita necessidade até então largamente desenvolvida, da
utilidade que produzira as demais formas de conhecimento, e do “verdadeiro” e do “falso”
unicamente como meios para a preservação da vida. Nesse impulso lúdico já se mostram
a plasticidade e o engendramento de um outro tipo de conhecimento para além dos erros
úteis.
Não somente utilidade e prazer, mas todo gênero de impulsos tomou partido
na luta pelas “verdades”[...] O conhecimento se tornou então parte da vida
mesma, e enquanto vida, um poder em contínuo crescimento: até que os
conhecimentos e os antiquíssimos erros fundamentais acabaram por se chocar,
os dois sendo vida, os dois sendo poder, os dois no mesmo homem. O
pensador: Eis agora o ser no qual o impulso para a verdade e os erros
conservadores da vida, travam sua primeira luta, depois que o impulso à
verdade provou ser um poder conservador da vida. Ante a importância dessa
luta todo o resto é indiferente: a derradeira questão sobre as condições da vida
é colocada, e faz-se a primeira tentativa de responder a essa questão com o
experimento. Até que ponto a verdade suporta ser incorporada – eis a questão,
eis o experimento. (NIETZSCHE, GC, § 110, grifo meu)
61
verdade [...]”, “as normas segundo as quais se media o ‘verdadeiro ‘e falso’” e “todo
gênero de impulso tomou partido na luta pelas ‘verdades’”. Em um mesmo parágrafo, o
filósofo alemão modaliza de diferentes formas a noção de verdade, apontando para
diferentes valores e sentidos atribuídos a ela. Nessa direção, Nietzsche diferencia verdade
sem aspas) no sentido tradicional, “verdadeiro” (entre aspas em oposição a falso) e
finalmente “verdades”, que aparece no plural e, como assinala Derrida suspendidas pelas
aspas38. Assim como há um devir da ideia, como Nietzsche narra em “História de um
erro” 39, também pode-se depreender do parágrafo 110 um devir da verdade, na qual ela
desloca-se de seu sentido tradicional a tal ponto que algo como uma pluralidade de
verdades pode vir a ser. Também essa outra perspectiva de “verdades” aponta para um
tipo de “conhecimento” que parece não servir mais aos erros úteis que possibilitam a
conservação de um tipo de vida que necessita nega-la como pluralidade de forças em
devir. Considerando esse outro registro de conhecimento, desenvolverei em seguida
alguns dos seus aspectos que parecem estar em afinidade com a perspectiva não utilitária.
38
Cf. Derrida, 2013, p.38.
39
Cf. NIETZSCHE, CI, p.31.
40
Cf. NIETZSCHE, AFZ, primeira parte, §5.
62
são os que predominariam no conhecimento em geral. Para Nietzsche, o conhecimento e,
junto a este, o processo de pensamento reduzido à consciência seria um “erro monstruoso”
no qual “o conhecimento [é] entendido de maneira absoluta como capacidade da
consciência, no qual em geral há conhecimento” (NIETZSCHE, VP, § 529). Nesta
direção, cabe perguntar sobre a possibilidade de um conhecimento não mais determinado
ao ideal de sujeito e seus atributos tradicionais como estabilidade, unidade e autonomia
da consciência frente aos impulsos e paixões. Dessa forma, no parágrafo 296 de A gaia
ciência, o filósofo explicita uma outra perspectiva de conhecimento na qual este adquire inclusive
uma posição antagônica em relação aos valores do rebanho:
Uma reputação sólida costumava ser extremamente útil; e onde quer que a
sociedade continue a ser dominada pelo impulso de rebanho, é ainda muito
conveniente, para cada indivíduo, fazer com que seu caráter e sua ocupação
sejam tidos por imutáveis- mesmo que no fundo não o sejam. “Nele se pode
confiar, ele continua o mesmo” – em todas as situações perigosas da sociedade,
este é o louvor de maior significado. A sociedade sente que tem na virtude
desse, na ambição daquele, na reflexão e fervor daquele outro um instrumento
confiável e sempre disposto, ele presta o máximo de honras a essa natureza de
instrumento, essa fidelidade a si mesmo, essa invariabilidade nas opiniões,
aspirações e até defeitos. Uma tal avaliação que em toda parte floresce e
floresceu juntamente com a moralidade dos costumes, educa o “caráter” e
difama toda mudança, toda reaprendizagem e transformação em si! Quanto ao
conhecimento: [...] por maior que seja a vantagem deste modo de pensar, para
o conhecimento ele é a mais nociva espécie de julgamento em geral: pois aí é
condenada e difamada a disposição que tem o homem de conhecimento para,
de maneira intrépida, declarar-se a qualquer momento contra sua opinião
prévia e ser desconfiado em relação a tudo o que em nós quer se tornar sólido.
A atitude do homem do conhecimento, ao contradizer a reputação sólida, é
vista como desonrosa, ao passo que a petrificação das opiniões tem o
monopólio das honras: sob o sortilégio de tais valores temos que viver ainda
hoje! E é difícil viver, quando se sente o juízo de muitos milênios contra si e
em volta de si. (Nietzsche, GC, §296, grifo meu)
Esse fragmento permite sublinhar que, para a sociedade onde prevalece o impulso
de rebanho, a solidez da própria identidade e de sua representação é um valor fundamental
e útil para sua conservação, pois, como argumenta Nietzsche, se confia naqueles que se
apresentam, por seu caráter e ocupação, como imutáveis, já que o homem tomado como
imutável representa uma segurança em relação a “todas as situações perigosas da
sociedade”. Portanto, enquanto uma natureza de instrumento (da sociedade), o homem é
valorizado em sua fixidez e utilidade as quais servem para a proteção e conservação do
rebanho frente a tudo que o ameace. Nesse sentido, cada um adquire valor apenas na
medida em que se apresenta e é reconhecido como um instrumento útil para a conservação
do rebanho. Contudo, a partir dessa passagem, pode-se considerar que Nietzsche procura
63
sublinhar uma outra perspectiva do conhecimento não mais impulsionada pelos erros
úteis próprios do impulso de rebanho que, como já desenvolvido, operam por uma lógica
de conversão do estranho ao já conhecido e por meio da simplificação e falsificação do
múltiplo. Se, para o rebanho, só há valorização da representação da identidade de si como
algo fixo e estável, na qual “a comunidade” reconhece um “indivíduo” apenas na medida
em que este serve como “instrumento útil” a seu serviço, por outro lado, Nietzsche
sublinha que, para determinada concepção de conhecimento, tal avaliação é nociva. Desse
modo, é interessante notar que, no trecho supracitado, o conhecimento é concebido como
uma “força” que desestabilizaria aquilo que seria tomado como seguro, fixo e estável,
pois seria próprio ao “homem de conhecimento” ser “desconfiado em relação a tudo o
que em nós quer se tornar sólido”. Portanto, para o “homem de conhecimento”, tudo
aquilo que é valorizado como fundamento sólido e seguro tem de tornar-se problemático.
Assim, pode-se propor que o conhecimento é compreendido enquanto “experimentação”,
e, nesse sentido, uma potência da vida não mais a favor da mera conservação, já que tal
conhecimento estaria implicado em “mudança, reaprendizagem e transformação de si”
(NIETZSCHE, GC, §296). Este outro modo de conhecimento é, portanto, avaliado como
uma potência da vida, ou seja, “um poder em contínuo crescimento” (NIETZSCHE, GC,
§110), no qual o próprio pensador é posto em “experiência”, assim como explicita
Nietzsche em outra passagem: “[...] queremos examinar nossas vivências do modo
rigoroso como se faz uma experiência científica, hora à hora, dia a dia! Queremos ser
nosso experimento e cobaia! ” (NIETZSCHE, GC, §319)
64
Agora lhe parece um erro o que outrora você amou como sendo uma verdade
ou probabilidade: você o afasta de si e imagina que sua razão teve aí uma
vitória, mas talvez esse erro, quando você era outro – você é sempre outro,
aliás-, lhe fosse tão necessário quanto as suas verdades de agora. Semelhante
a uma pele que lhe escondia e cobria muitas coisas que você ainda não podia
ver. Foi sua nova vida que matou para você aquela sua opinião, não sua razão:
você não precisa mais dela; Quando exercemos a crítica, isso não é algo
deliberado e impessoal – é no mínimo com muita frequência, uma prova de
que em nós há energias vitais que estão crescendo e quebrando a casca. Nós
negamos e temos de negar, pois algo em nós está querendo viver e se afirmar,
algo que ainda não conheçamos, ainda não vejamos! Estou dizendo isso em
favor da crítica (Nietzsche, GC, §307, grifo meu)
A partir desse parágrafo, pode-se destacar que Nietzsche concebe, por assim dizer,
uma radicalmente outra concepção de “subjetividade” (particularmente em relação ao
registro do conhecimento) não fundamentada na lógica de um sujeito cuja identidade
permaneceria fixa e imutável. Nessa concepção de “subjetividade”, haveria a marca de
uma alteridade em “si mesmo” que impossibilitaria a estabilização da própria identidade,
pois, como acentua Nietzsche a partir do uso de travessões, “você é sempre outro”. O
homem de conhecimento seria pela dinâmica de transformação e superação da própria da
vida, sempre outro. Desse modo, haveria um jogo constante de des-apropriação de si, pois
não existiria uma identidade ao modo de uma essência ou substância, que permaneceria
fixa e imutável e que proporcionaria o reconhecimento de um próprio de si. Pode-se
pensar que essa outra concepção de “subjetividade” se relacionaria com uma afirmação
da vida entendida como transitoriedade e transformação, em afinidade com a noção de
vontade de potência enquanto movimento de superação no qual a conservação (de si) é
apenas um dos aspectos da superação. A noção de vontade de potência como movimento
de superação torna-se imprescindível para o entendimento desta outra concepção de
conhecimento, que não se fundamentaria em um sujeito concebido como imutável. Tal
concepção de “subjetividade” estaria implicada em um movimento de deslocamento,
diferenciação e superação (de si) no qual apenas indiretamente há também a conservação,
pois, os impulsos de conservação estariam subordinados ao movimento de superação. É
nesse sentido que o filósofo proporia a hipótese de um sujeito em deslocamento como a
“esfera de um sujeito crescendo constantemente ou minguando – o ponto médio do
sistema deslocando-se constantemente-; [...] nenhuma ‘substância’, antes algo que anseia
em si por fortificação; e que apenas indiretamente quer-se ‘manter’ (ele quer ultrapassar-
se -)”. (NIETZSCHE, VP, § 263)
65
Em relação ao parágrafo 307, ainda posso observar que a força da crítica,
assim como concebida pelo autor, não é atribuída ao grau de racionalidade, à qual é
tradicionalmente associada uma impessoalidade, pureza e objetividade frente aos
impulsos e paixões, o que possibilitaria ao sujeito do conhecimento uma autonomia
deliberativa, mas a própria transformação da vida, ao crescimento de “energias vitais”.
Desse modo, a força da crítica não é concebida pelo filósofo como algo deliberado e
impessoal, porém é algo que diz respeito a uma “pessoalidade” que não se restringiria ao
campo da consciência, mas sim ao que parece indicar a passagem, a dinâmica cambiante
das hierarquias dos múltiplos impulsos. Não haveria, neste sentido, deliberações de uma
consciência autônoma do sujeito, assim como são representadas a partir da noção de
sujeito do conhecimento, pois aquilo que é valorizado modernamente como deliberação
do pensamento é o resultado de um longo processo de luta e relação entre os diferentes
impulsos. E ainda, o movimento de negação próprio do pensamento crítico, assim como
concebe o autor, só pode ser entendido em relação com o movimento tensionante e mais
fundamental da afirmação que não necessariamente como é colocado pertence ao campo
do cognoscível. Afirmação não de um sujeito cuja consciência fosse autônoma e
autodeliberativa, mas da própria vida em suas metamorfoses. Isso se dá
fundamentalmente não no registro da consciência, mas mais abrangentemente a partir da
relação de impulsos que “talvez ainda não conheçamos, ainda não vejamos”, ou seja, a
partir dos impulsos que fazem parte da “atividade do espírito” (NIETZSCHE, GC, §333)
que não se reduz ao registro da consciência.
66
e pelas metamorfoses da vida. A “verdade”41 é concebida como algo transitório, sendo
expressão da potência de um “estado de vida” 42, ou, em outras palavras, do estado
provisório de uma hierarquia de impulsos para deixar de sê-la quando se torna
desnecessária para uma “nova vida” (para outra hierarquia das relações dos impulsos).
Desse modo, a “verdade” não é mais associada ao caráter, absoluto, imutável e fixo, mas
é valorizada como expressão da potência e da necessidade de um determinado estado de
vida. A “verdade”, ou melhor, as verdades são relacionadas ao jogo transitório das
hierarquias provisórias de impulsos. Verdade e erro não mais se opõem de modo absoluto,
pois aquilo que era concebido como “verdade” em determinado momento, aparece a partir
de uma “outra vida” (uma outra hierarquia de impulsos) como “erro ”e como sublinha
Nietzsche um erro que fora necessário e inclusive sob o modo como fora anteriormente
interpretado enquanto uma verdade. Há, portanto, uma grande diferença entre a verdade
concebida como universal e absoluta e de diferentes modos valorizada como
transcendental, mas que é o mascaramento de um erro útil, sendo expressão de um
impulso a serviço da conservação do rebanho, e esta outra concepção de “verdades”, em
que o movimento das hierarquias de impulsos determina a aparição de um valor em um
momento como verdade e em outro como erro. Aquilo que determinaria o valor da
“verdade” seria a incessante luta dos impulsos por domínio e a afirmação vitoriosa de um
impulso ou grupo de impulsos, que teria a conservação somente como uma das
consequências indiretas.
41
Assinala-se que, para Derrida, e estou de acordo com sua posição, o uso das aspas em Nietzsche também
indica que o caráter de determinada noção ou conceito não pode mais ser pensado como absoluto, fixo e
estabilizado. Cf. Derrida, 2013, p.38.
42
Em uma pequena sentença, Nietzsche escreve que “o critério da verdade está no incremento do
sentimento de poder” Cf. Nietzsche, VP, §534.
67
que fosse “em si” firme e determinado. Trata-se de uma palavra para “a
vontade de potência”. (Nietzsche, VP, §552)
68
e da diferença, principalmente, mas não apenas, a partir do significante do feminino que
se contraporia a figura do filósofo dogmático (negador da alteridade e da diferença) e da
problematização da autobiografia. Analisando o caminho interpretativo percorrido por
Derrida sobre os rastros nietzschianos em torno da questão do sujeito e de sua identidade
procurarei desenvolver outros aspectos que se abrem a partir desta leitura que considero
fundamentais como o problema do feminino enquanto o elemento desconstrutor de
categorias como essência e natureza, verdade em Nietzsche. Buscarei também examinar
a questão da autobiografia marcada pela perspectiva segundo a qual está só vem a
acontecer pelo ouvido do outro. Esses são aspectos que considero como radicais efeitos,
mas também constituintes, de um pensamento que propõe criticar, transvalorizar e
desconstruir o sujeito assim como este fora construído pela metafisica moderna. Também
pretendo abordar de que maneira a interpretação derridiana contribuiu para a leitura do
próprio texto de Nietzsche como um discurso que pode ser interpretado, a partir de suas
múltiplas marcas, não apenas questionando o sujeito e sua identidade, mas performando
também essa crítica a partir de diferentes elementos inscritos no próprio texto. Sob meu
ponto de vista, a perspectiva derridiana em torno dos estilos de Nietzsche produziria um
outro registro de camada em torno do problema do sujeito.
69
CAPÍTULO 2 – DO FEMININO À
AUTOBIOGRAFIA EM NIETZSCHE –
LEITURAS DE DERRIDA
2.1 Esporas, estilos
43
Os textos principais analisados foram Esporas- os estilos de Nietzsche e Otobiografias.
70
dogmatismo que é, como veremos, uma posição “masculina”, ou fálica, que crê apropriar-
se da verdade e da verdade da mulher.
71
praticados pelo filósofo alemão (poéticos, literários, filosóficos, literários-filosóficos,
dramáticos), quanto as identidades de gêneros e ainda a pertinência entre estes campos
aparentemente distintos.
Nesta direção, cabe acrescentar que Nietzsche escrevera não apenas em torno dos
gêneros sexuais, mas, para além do binarismo masculino/feminino, próprio de uma
cultura marcada pela metafísica, pensara outros gêneros (im)possíveis a partir de um
embaralhamento dos papéis de gênero. Como é o caso, por exemplo, em que Nietzsche
relata sua gravidez de Zaratustra: “contarei agora a história do Zaratustra. […] resultam
então dezoito meses de gravidez. Esse número exato poderia sugerir entre os budistas
pelo menos, que no fundo sou uma fêmea elefante. ” (NIETZSCHE, 1995, pp 82-83 Apud
DERRIDA, 2013, p. 45). Haveria, portanto, em seu estilo uma prática de gêneros
(im)possíveis (homens grávidos, mulheres-homens, homem-elefante fêmea-grávido),
incluindo aí a inscrição do animal neste devir de gêneros (im)impossíveis. Portanto a
oscilação de gêneros em suas obras incluiria também certa animalidade com que
Nietzsche transtorna o binarismo não apenas do homem/mulher, mas também
homem(racional)/animal45. Tal embaralhamento de gênero que perfomaria gêneros
(im)possíveis não seria diferente em relação aos estilos de gêneros literários que se
mesclam em sua obra, gerando, por assim dizer, centauros, pois, como afirma o autor:
“ciência, arte e filosofia crescem tão juntas em mim que um dia parirei centauros”.
(NIETZSCHE, 1969, p.63). Portanto em Nietzsche as delimitações e marcações impostas
aos gêneros (sexuais e literários) pela tradição que imporia suas distinções, limites,
lugares e posições seriam deslocadas, rasuradas quando não destruídas a favor da
invenção de gêneros (im)possíveis. Ainda, ao problematizar o tema do estilo na obra do
filósofo alemão, Derrida procura explicitar sua relação com o campo filosófico, pois em
Nietzsche:
45
Nesta direção, Paula Fleisner coloca ampliando nossa questão que “A filosofia de Nietzsche é, como os
contos de fada, um espaço de conhecimento em que conflui todo tipo de seres: animais , monstros ,
mulheres, homem e espectros nos vem ao encontro neste espaço que se abre como uma ‘gaia ciência’”
(2013, p.265). Essa multiplicidade de seres em devir nos coloca diante do problema da criação de gêneros
(im) possíveis para além do binarismo típico da metafísica que impões a delimitação a partir de uma
classificação de campos e lugares próprios a cada ser. De outro modo, para Paula a filosofia de Nietzsche
afirma “o perigo da irreparável confusão entre a palavra humana e a voz animal, a festeja em uma festa
profana e irreverente através da qual experimentamos a terrível unicidade do vivente” (Fleisner, p.265 apud
CRAGNOLINI, 2013).
72
matéria ou de matriz, para aí cavar uma marca, para aí deixar uma impressão
ou uma forma, mas também para repelir uma forma ameaçadora, para mantê-
la a distância, reprimi-la, proteger-se dela - dobrando-se então, ou redobrando-
se em fuga, por detrás dos véus e das velas (DERRIDA, 2013, p. 23)
Neste sentido, talvez justamente por estar a certa margem do campo filosófico que
o estilo possa problematizá-lo, atacá-lo e dele se defender. E ele atacaria cruelmente,
selváticamente e amoralmente. Para tanto como indica Derrida, o estilo de Nietzsche
estaria implicado de maneira não inofensiva com aquilo que a filosofia chamaria de
matéria ou de matriz, ou seja, com aquilo que faria de certa maneira função de origem,
fundamento e fonte (matriz também é o útero das fêmeas mamíferas) para a edificação
do saber filosófico. Pode-se dizer que, junto à matéria ou matriz, a espora, o estilo
“atacaria” também as noções afins de natureza, essência, presença e outras correlatas que
funcionariam como fundamentos ou noções essenciais para o discurso da filosofia.
Portanto, o estilo de Nietzsche, longe de ser uma mera extravagância pessoal, estaria em
uma relação crítica com aquilo que seria mais próprio ao saber filosófico e seus
fundamentos. É ainda neste sentido que o estilo/a espora do pensador alemão distancia-
se e protege-se do modelo, esquema e estilo tradicional da filosofia que pressupõe a
apresentação de um conteúdo, de um sentido, de uma verdade ou, ainda, de uma escrita e
saber que conteriam uma verdade própria e única. Nesta direção, Derrida afirma que:
Deste modo, o estilo pode também, com sua espora, se proteger contra a
ameaça terrificante, cega e mortal do que se apresenta, se dá a ver, com
teimosia: a presença, portanto, o conteúdo, a coisa mesma, o sentido, a
verdade. (DERRIDA, 2013, p. 24)
Neste sentido, o estilo com sua espora além de exercer-se como uma “arma de
ataque”, funcionaria ainda como um elemento de proteção, novamente, contra as noções
essenciais que constituem o saber filosófico em seu texto e textura: “a presença, portanto,
o conteúdo, a coisa mesma, o sentido, a verdade”. Noções estas que inclusive
delimitariam e instituiriam o próprio “estilo da filosofia”, sua organização e esquema. O
estilo/a espora portanto, como função de proteção, produziria uma distância, um
distanciamento destes elementos que, por sua vez, pode-se pensar, fariam o “estilo” de
toda a filosofia tradicional com sua metafísica da presença, na qual se torna
imprescindível para sua constituição o desvelamento do sentido e da verdade. Também
em torno do estilo, Derrida (2013, pp. 25-26) procura evidenciar ainda a sua relação com
mulher, o pensador coloca que “E para insistir nisto que imprime a marca da espora
estilada na questão da mulher [...] aqui se tratará de vê-la enlevar-se, a questão da figura
73
ao mesmo tempo aberta e fechada, por isto que se chama a mulher. [...] para deixar enfim
aparecer certa troca entre o estilo e a mulher”. Há, portanto, uma relação de trocas entre
o estilo e a mulher. Para apresentá-la Derrida menciona o parágrafo de Nietzsche
intitulado “as mulheres e suas operações à distância”:
Porém, meu nobre sonhador, porém! Mesmo no mais belo veleiro há muito
ruído e alarido, e, infelizmente muito alarido pequeno e lamentável! O encanto
e poderoso efeito das mulheres é, para usar a linguagem dos filósofos um efeito
à distância, uma actio in distans: o que requer, antes e acima de tudo- distância!
”(NIETZSCHE GC, § 60 Apud DERRIDA, 2013, pp. 29-30)
74
Derrida (2013, p. 33) alerta que “deve se manter a distância a distância, não apenas, como
poderia se supor, para se proteger contra essa fascinação, mas também para experimentá-
la”. Portanto seria necessário um duplo distanciamento ao manter a distância à distância,
que quer dizer também, por outro lado, não se aproximar da distância, portanto a distância
só teria seus efeito à distância. Desse modo, uma aproximação para conquistar a mulher,
para apropriar-se de sua verdade, identidade ou essência e já se distanciou da experiência
de sua "verdade". De outro modo, a distância possibilita experiência, experimentação em
relação à operação da mulher e sua “verdade”. Caberia, portanto, perguntar quem ou o
que é a mulher nos escritos de Nietzsche?
Com este modo de perguntar, nos sugere Derrida, cairíamos em outra armadilha,
e por assim dizer, uma armadilha metafísica, pois, é justamente esta pergunta, esse modo
de perguntar, que esconderia em si o desejo de aproximação-apropriação da mulher, ou
seja, que esconderia o desejo de aproximação e conquista da verdade da mulher. A
pergunta pelo “O que é” a mulher, conteria em seu modo de ser toda a vontade de
apropriação da mulher e da verdade da mulher e, com isto, todo o desejo de conquistá-la
e possuí-la a partir da pulsão de dominação própria da posição fálica (e apropriadora) de
certo masculino, do filósofo dogmático, do artista impotente e do sedutor sem experiência
(Derrida, 2013, p. 37). De outro modo, Derrida coloca em torno da mulher que:
75
capítulo intitulado “Femina Vita” procura pensar a interpretação Heideggeriana de “A
história de um erro”46 de Nietzsche, na qual há a apresentação de um devir da ideia.
Assinala Derrida (2013, p. 60), em sua leitura de Heidegger, que “todos os elementos do
texto são analisados, sem exceção, salvo o devir mulher da ideia”.
Deste modo, Derrida procura criticamente ler ali onde a leitura de Heidegger
contornou o elemento feminino do texto de Nietzsche, quando a ideia se torna mulher,
que é o segundo tempo dos seis tempos do devir da ideia. Contudo, antes de ser mulher,
a ideia, coloca Nietzsche, era platônica e a paráfrase do enunciado platônico da verdade
é assim sentenciado pelo autor, “eu, Platão, sou a verdade” (NIETZSCHE, CI, p.115). Tal
paráfrase pode ser lida em muitos sentidos, porém, cabe ressaltar a encarnação da ideia
na figura masculina de Platão e a verdade assimilada ao eu platônico. A verdade se fazia
presente, estava presentificada na figura de Platão. É neste sentido que Derrida (2013, p.
61), coloca que: “A ideia é uma forma da apresentação de si da verdade. A verdade, então,
não foi sempre mulher. A mulher não é sempre verdade”. E em seu primeiro tempo a
verdade encarnada, se identificava e se presentificava na figura de Platão ou na figura do
filósofo que teria o platonismo, o mundo verdadeiro como ideal, pois “o verdadeiro
mundo alcançável ao sábio, ao devoto, ao virtuoso – eles vivem nele, são ele”
(NIETZSCHE, 1989, p. 23). Portanto, o verdadeiro mundo, o mundo das ideias, se
presentifica e é encarnado nestes diferentes tipos de “personagens” concernentes ao
46
Para fins de ilustração incluo aqui a “história de um erro”: COMO O “MUNDO VERDADEIRO”
ACABOU POR SE TORNAR FÁBULA HISTÓRIA DE UM ERRO
1. O mundo verdadeiro passível de ser alcançado pelo sábio, pelo devoto, pelo virtuoso. - Ele vive no
interior deste mundo, ele mesmo é este mundo. (Forma mais antiga da ideia, relativamente inteligente,
simples, convincente. Transcrição da frase: "eu, Platão, sou a verdade".)
2. O mundo verdadeiro inatingível por agora, mas prometido ao sábio, ao devoto, ao virtuoso ("ao pecador
que cumpre a sua penitência"). (Progresso da ideia: ela se torna mais sutil, mais insidiosa, mais
inapreensível - ela torna-se mulher, torna-se cristã...)
3. O mundo verdadeiro inatingível, indemonstrável, impassível de ser prometido, mas já enquanto pensado
um consolo, um compromisso, um imperativo.(No fundo, o velho sol, só que obscurecido pela névoa e pelo
ceticismo; a ideia tornou-se sublime,esvaecida, nórdica, königsberguiana.)
4. O mundo verdadeiro - inatingível? De qualquer modo, não atingido. E, enquanto não atingido, também
desconhecido. Conseqüentemente tampouco consolador, redentor, obrigatório: Ao que é que algo de
desconhecido poderia nos obrigar?... (Manhã cinzenta. Primeiro bocejo da razão. O canto de galo do
positivismo.)
5. O "mundo verdadeiro" - uma idéia que já não serve mais para nada, que não obriga mesmo a mais nada
- uma idéia que se tornou inútil, supérflua; consequentemente, uma ideia refutada: suprimamo-la! (Dia
claro; café da manhã; retorno do bom senso e da serenidade; rubor de vergonha de Platão; algazarra dos
diabos de todos os espíritos livres.)
6. Suprimimos o mundo verdadeiro: que mundo nos resta? O mundo aparente, talvez?... Mas não! Com o
mundo verdadeiro suprimimos também o aparente! (Meio-dia; instante da sombra mais curta; fim do erro
mais longo; ponto culminante da humanidade; INCIPIT ZARATUSTRA.) in A "RAZÃO" NA
FILOSOFIA (NIETZSCHE, CI, p.115)
76
campo do saber. Contudo, o devir da ideia em mulher vem abrir outro tempo da verdade,
onde está descola-se do eu platônico e de qualquer eu e distancia-se:
Pode-se colocar que com o “devir mulher da ideia”, Platão (ou qualquer filósofo)
fica impedido, mesmo barrado de dizer “eu sou a verdade”, a partir do qual o eu não pode
mais identificar-se em unicidade com a verdade. Isso porque a verdade no devir mulher
da ideia, em seu distanciamento, torna-se rastro, deixando de ser presença plena
incorporada na figura masculina de Platão ou de qualquer filósofo. E, com isto, Nietzsche
coloca que há um “progresso da ideia: ela se torna mais sutil, mais insidiosa, mais
inapreensível – Ela torna-se mulher...” (NIETZSCHE, CI, p.31. APUD DERRIDA, 2013,
p. 63). Sendo mais sutil, mais insidiosa, mais inapreensível a ideia, ou a verdade tornada
mulher em seu distanciamento, torna-se pouco ou nada apropriável, ao contrário do tempo
de Platão, onde a ideia - a verdade - era tão apropriável que poderia ser encarnada e
identificada com o próprio eu, em um máximo de aproximação sem qualquer
distanciamento. É a distância sedutora da mulher, seu contínuo distanciar-se, que afasta
qualquer apropriação-aproximação de se realizar. Aí já não se pode, portanto, perguntar
sob o modelo canônico de apropriação “o que é a ideia, o que é a verdade? ”. Sabe-se
apenas de seus rastros, de suas marcas, de uma ideia que é como presença (mas já sob a
forma sutil do rastro) ou uma encenação da verdade; abre-se um outro tempo de uma ideia
ou verdade mulher que conjuga:
São estas, portanto, as marcas da verdade tornada mulher e por ser já o segundo
tempo, o tempo onde a verdade desloca-se de sua presença encarnada no filósofo, que
Derrida (2013, p. 62), dirá que “...começa a história, começam as histórias” posto que há
deslocamento incessante da ideia, da verdade “que se afasta, se torna transcendente,
inacessível, sedutora, agita e mostra o caminho à distância...” (2013, p. 62). Em seu
afastamento e deslocamento a verdade mulher é suspensa como um véu que se agita e
77
apenas indica o caminho, um caminho de rastros. Esse é seu modo de transcendência que
é bastante diferente da transcendência da verdade tradicional abstrata e objetiva, pois a
transcendência da verdade mulher é sedutora em sua inacessibilidade, promovendo, desse
modo, um jogo sedutor que não visa nem a apropriação nem a identificação, mas a
“transcendência produtora do desejo”. Transcendência produtora de desejo que pode ser
entendida no sentido do jogo de sedução da mulher com sua distância, véus e enfeites,
distância esta que provoca o desejo, em contraposição aos objetivos daquele tipo que
Nietzsche reconhece como filósofo dogmático que se opõe a qualquer interferência do
jogo do desejo em sua relação com o saber, mas oculta e denega justamente o desejo de
apropriação-aproximação da verdade mulher. Desejo que se efetiva, segundo o pensador
alemão, a partir de todo um procedimento de apropriação-aproximação, desde uma
atmosfera de seriedade douta que é, uma das principais marcas do filósofo dogmático.
Seriedade que evidencia a inabilidade para lidar com uma verdade que é mulher. De outro
modo, a mulher apresentaria uma outra maneira, uma outra atmosfera relacionada ao
saber e a verdade que afirmaria o riso como uma potência capaz de desconstruir a
metafisica finalidade da existência promovida pelo filósofo dogmático, assim como a
autorepresentaçeão de uma identidade subjetiva tomada como essência e/ou natureza.
A verdade como mulher teria afinidade com o riso e sua leveza, pois, com ela
entra “em jogo: um novo conceito ou uma nova estrutura de crença que visa a rir”
(DERRIDA, 2013, p. 41). Esse breve apontamento de Derrida leva a um importante
desvio que considero essencial para pensar esta outra estrutura de “crença” que a
estratégia nietzschiana produz ao relacionar o feminino ao riso. Tomo a breve indicação
derridiana, portanto, como um mote para o desenvolvimento deste item. Em
contraposição ao riso sublinhado por Derrida estaria o desvelar da verdade tradicional
alicerçado em todo um procedimento sério do filósofo dogmático (que crê apropriar-se
da verdade e, nesse sentido, possuí-la), como assinala Nietzsche (ABM, prefácio) ao
evidenciar que “a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se
aproximaram da verdade foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama?”).
Nesta direção, Nietzsche, em sua “tentativa de autocrítica” ao Nascimento da tragédia
como contraposição à educação na seriedade do romântico, pensa uma nova crença e
posição filosófica que vise rir:
78
[...] Não seria necessário que o homem trágico dessa cultura, em sua
autoeducação para o sério e para o horror, devesse desejar uma nova arte, a
arte do consolo metafísico. Não, três vezes não, ó jovens românticos! Não
seria necessário [...] Mas é muito provável que isso finde assim, que vós assim
findeis, quer dizer, “consolados”, como está escrito, apesar de toda
autoeducação para o sério e o horror, “metafisicamente consolados”, em sumo,
como findam os românticos cristãmente... Não! Vós deveríeis aprender
primeiramente a arte do consolo deste lado de cá - vós deveríeis aprender a
rir, meus jovens amigos, se todavia querem continuar sendo completamente
pessimistas; talvez, em consequência disso, como ridentes mandeis ao diabo
toda a “consoladoria” metafísica- e a metafísica em primeiro lugar.
(NIETZCHE, 2007, pp. 20-21, grifo meu)
47
Em um parágrafo intitulado “o que é romantismo” Nietzsche afirma que: “existem dois tipos de
sofredores, os que sofrem de abundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e também uma visão e
compreensão trágica da vida – e depois os que sofrem de empobrecimento da vida, que buscam silencio,
quietude, mar liso, redenção mediante a arte e o conhecimento, ou a embriaguez, o entorpecimento, a
convulsão, a loucura” (Nietzsche, GC, § 370, grifo do autor ). Nesta direção, Nietzsche afirma existirem ao
menos dois tipos sofredores, os que sofrem por abundância e os que sofrem por empobrecimento da vida,
a cada tipo seria devido uma posição diante da vida: Os primeiros requerem uma arte dionisíaca e uma
compreensão trágica da vida na qual estaria incluída, posso dizer, o riso trágico, portanto, à abundância da
vida estaria relacionado o poderoso riso afirmativo. Enquanto aos segundos caberia a “consoladoria do
lado de lá”, a metafísica como forma de conhecimento que necessitaria afirmar uma outra existência para
além desta, pois este precisaria da “lógica, da compreensibilidade conceitual da existência – pois a lógica
tranquiliza, dá confiança: (Nietzsche, GC, § 370).
79
tem sua palavra em torno do riso. Não são outros a aprendizagem e o ensinamento de
Zaratustra que a força do riso e o estado do ser ridente. Zaratustra não ensina a lastimar e
chorar, mas ensina a rir e canta:
E ainda:
Qual foi o maior pecado, na terra? Não foi a palavra daquele que disse: “Ai de
vós que rides agora! ” Possível que ele mesmo não encontrasse, na terra,
nenhum motivo para rir? Então, procurou mal. Até uma criança encontra aqui
motivo para rir. Esse não amava bastante; do contrário, nos teria amado
também a nós, os risonhos! Mas ele nos odiava e escarnecia, prometendo-nos
choro e ranger de dentes. [...] Afastai-vos do caminho desses homens
absolutos! Tem pés pesados e coração mormacento: não sabem dançar, como
poderia a terra ser leve para essa gente. (NIETZSCHE, Za, p. 295)
80
falogocentrico de pensamento e existência que se produz na atmosfera do pesado e da
seriedade.
81
niilismo e o sem sentido da existência que provoca a náusea e o nojo. O riso é, assim, o
sinal de uma nova leveza e transfiguração para o além do homem (e do projeto
falogocentrico que o constitui, como bem o assinala Derrida), pois o personagem não era
nem mais pastor nem mais homem, livre, portanto, do niilismo que lhe impunha sua
condição humana e moderna e capaz de afirmar a força do riso feminino liberador . A
personagem torna-se livre do peso e do negrume da cobra que o sufocava com a falta de
sentido própria do niilismo, não porque ganhara um novo sentido, mas porque pôde rir
defronte ao abismo do sem sentido que é velado pela mulher, tornando-se leve para uma
nova potência feminina e criadora. Portanto livre e leve do peso do niilismo, ele ri em
translumbramento. Tão poderoso é o efeito desse riso inaudito que Zaratustra passa por
ansiá-lo, ter uma sede inextinguível e ser por esse anseio devorado, tão forte e
impressionante é essa experiência que se dá por meio do riso que a partir dela a vida e a
morte são conjuntamente problematizadas e revalorizadas: “oh, como posso ainda viver! E
como, agora suportarei morrer!?” Nesse sentido, o riso do translumbrado provoca uma
ruptura na experiência de vida e morte de Zaratustra, este não sabe mais como viver e não
suportaria morrer. Ainda, é em Humano demasiadamente humano (1878) que o riso
assume a significação do prazer no absurdo:
Nota-se que para Nietzsche o riso e sua felicidade que advém de um prazer no
absurdo, característico da leveza do feminino que dança sobre abismos como sinaliza
Derrida, nos liberaria momentaneamente da coerção do necessário, do apropriado e do
experimentado que são geralmente vivenciados como implacáveis e fatídicos, atributos
da realidade do real constituído, proporcionando uma experiência de suspensão e do
sentido implacável do real. Desse modo, o riso nos desapropriaria do real, recolocando-
nos de frente para seu absurdo e sua falta de sentido que não provocaria mais uma náusea,
mas sim o jubiloso riso do absurdo que, nessa direção, “des-domesticaria” o homem feito
82
a ferro e fogo pelo aguilhão da lógica, da racionalidade e da necessidade. O riso nos
possibilitaria, a partir de sua força feminina e exuberante, afirmar o acaso e o inesperado,
tornando-se desnecessária a necessidade de impor sentido ao que se apresenta como
estranho, diferente e absurdo; necessidade esta que, sob a óptica do riso, se apresenta
como uma fraqueza frente ao poderoso devir não teleológico e caótico de todas as coisas.
O júbilo do riso, aponta Nietzsche, seria como a experiência que tem os escravos nas
saturnais quando então os valores eram invertidos e permitiam que os escravos
experimentassem a liberdade de sua condição, de sua “realidade”. Neste sentido,
Guilherme Agnolon em sua tese A festa de saturno explicita as festas das saturnais:
E acrescenta:
Desse modo, seria típico das saturnais, a partir de suas brincadeiras, troças e
fanfarronices, a manifestação de um princípio cômico de inversão e com isso um
rebaixamento do sério instaurado pelo pelas normas, convenções, poderes e
hierarquias48. É, portanto, como indica Nietzsche, a “inversão da experiência em seu
contrário” que transforma o necessário em arbitrário, do que tem finalidade no que não
tem, do cotidiano regrado em festa e desregramento. O riso, como nas saturnais,
provocaria a liberação do necessário, da finalidade e do cotidiano que aprisionariam o
homem em sua “realidade”. Pode-se, assim, entender melhor por que o pastor de
Zaratustra se torna não apenas não pastor, mas também um para além do homem, pois
com seu inaudito riso se liberaria de sua condição simbolizada por sua algoz, a pesada e
48
Burke também coloca sobre as saturnais que “Eram ocasiões especiais em que as pessoas paravam de
trabalhar, e comiam, bebiam e consumiam tudo que tinham [...] em oposição ao cotidiano, era uma época
de desperdício justamente porque o cotidiano era uma época de cuidadosa economia” (1995,p.65) Ora,
nesse sentido, pode-se sublinhar que as saturnais sempre se oporiam ao regramento do cotidiano, mas Burke
sublinha o aspecto econômico que, pode-se pensar, nas festas era interrompido em favor de uma abundância
e exuberância que se articulariam com a noção de natureza e vida como concebidas por Nietzsche. A
inversão de valores seria, portanto, apenas uma desapropriação de uma realidade investida em favor de
certo retorno às pulsões dionisíacas. Assim, afirma Agnolon que: “No lugar do labor extenuante da lavoura,
o homem festeja o produto desse trabalho, e a abundância que granjeou dos campos se converte em signo
peculiar da festa, em que supostamente o regramento e o delicado racionamento de alimento são deixados
de lado”(AGNOLOM, 2013, p. 77)
83
negra cobra do niilismo moderno. O riso ao inverter o cotidiano da condição humana
estabelecida pela seriedade oficial, possibilitaria a inversão das regras dos limites morais
e éticos do cotidiano que se instituem a partir da imposição das finalidades que sempre
acresceram uma razão para a existência que não seria suportada, pelos “fracos”, em sua
“nudez” por não comportar nenhuma finalidade, nenhuma origem e nenhum telos. Essa
“verdade” seria escancarada pela potência do riso do absurdo que sempre fora
oportunamente desvalorizado pela tradição metafísica logocêntrica ocidental dominada
pela seriedade do homem que sempre procurou conquistar uma verdade que é mulher
como salienta a interpretação Derridiana . É notável que no primeiro parágrafo de A gaia
ciência, a ciência feliz, intitulado “Os mestres da finalidade da existência”, Nietzsche
expresse que:
Rir de si mesmo, como se deveria rir para fazê-lo a partir da verdade inteira –
para isso os melhores não tiveram bastante senso de verdade até hoje, e os mais
talentosos tiveram pouco gênio! Talvez ainda haja um futuro também para o
riso! [...] Talvez então o riso tenha se aliado a sabedoria, talvez haja apenas
“gaia ciência”. Por enquanto ainda é bem diferente, por enquanto a comédia da
existência ainda não se tornou “consciente” de si mesma, por enquanto este
ainda é o tempo da tragédia, das morais, das religiões. [...] Para que tudo o que
ocorre necessariamente e por si sempre e sem nenhuma finalidade, apareça
doravante como tendo sido feito para uma finalidade e seja plausível para o ser
humano, enquanto razão e derradeiro mandamento – para isso entra em cena o
mestre da ética, como mestre da finalidade da existência. [...] Sim, ele não quer
absolutamente que riamos da existência, tampouco de nós – e tampouco
dele.[...] É inegável que a longo prazo cada um desses mestres da finalidade
foi até agora vencido pelo riso, a razão e a natureza: a breve tragédia sempre
passou e retrocedeu afinal à eterna comédia do existir e as “ondas de
incontáveis risos” – na palavra de esquilo – devem finalmente se abater sobre
os maiores desses trágicos também. (NIETZSCHE, GC, §1)
84
superada mesmo que provisoriamente, promovendo a inversão e o deslocamento de
posições e valores. O riso não apenas seria uma experiência prazerosa diante do absurdo
da existência, mas também se mostra como um sinal do deleite e exuberância frente ao
absurdo do sem sentido da própria existência do homem ou mulher que podem não “levar-
se tão a sério”. Portanto, para esse homem ou mulher (do “conhecimento”), Nietzsche
aconselha o uso do chapéu do bobo a fim de que possam se alegrar de sua estupidez e de
sua sabedoria; seria ainda, aconselha o pensador, preciso chorar, mas também rir;
descobrir o herói, mas também o tolo. Tal oscilação necessária para experimentar em si
a inversão de perspectiva (ao modo de uma saturnália do pensamento) parece fundar-se
nas duas máscaras, nas duas manifestações dionisíacas, a tragédia e a comedia.
85
do pensar, e todos os outros humores leves, como a alegria e o riso, seriam tomados como
não propícios ao pensar, como impróprios a ele. Pode-se, pois, colocar que com o poder
derrisório do riso desagregar-se-ia o peso que no homem de conhecimento articularia a
razão e o conhecimento no sentido de erigir uma verdade absoluta a serviço de uma
finalidade para a existência. O riso, a partir do feminino, recolocaria a experiência do
pensamento em relação com a suspensão no abismo absurdo sem fundo, sem fundamento
e sem sentido. Parece ser essa a experiência do riso, da alegria e da leveza que Nietzsche
deseja reapropriar para o pensamento a partir de A gaia ciência.
86
nos leva a perceber, antes da consciência, a falta de sentido e a tragédia
existencial em que estamos lançados. (NEPOMUCENO,2017, p.100)
E ainda:
87
sentido, o riso tragicômico tornara-se um perigo para o saber e a ética filosófica, tanto
que deveria ser contido, rebaixado quando não aniquilado, pois nele residiriam a potência
e a loucura do Dionísio. De outro modo, para Nietzsche, o riso e mesmo o escárnio
bufônico tornam-se um valor inestimável e uma estratégia adotada para seu filosofar
trágico e para a espécie de pessimismo aí incluída. Nesta direção, pensador pondera sobre
si e sobre seu filosofar sob a imagem do bufão:
Eu não quero ser um santo, seria antes um bufão... Talvez eu seja um bufão...
E apesar disso, ou não apesar disso – pois até o momento nada houve mais
mendaz do que os santos –, a verdade fala em mim. Mas a minha verdade é
terrível: pois até agora chamou-se à mentira verdade. (NIETZSCHE, EH,
p.109)
Bakhtin nos convida a pensar uma “verdade” do riso, que degradaria a “verdade”
oficial, a partir da figura do bufão que se opõe à mentira, à adulação e à hipocrisia
perpetuadas pelos poderes então estabelecidos. Assim, por meio de injurias e blasfêmias
e principalmente pelo jogo da paródia (também praticada por Nietzsche como o mostra,
por exemplo, seu inteiro Zaratustra) com os poderes estabelecidos, o bufão os ataca com
a verdade zombeteira de seu riso. Portanto, ao declarar-se em afinidade com a figurão do
bufão, Nietzsche estaria a proclamar a verdade e a leveza do riso contra toda a seriedade
e peso dos poderes oficiais que se instituem tanto na verdade filosófica metafísica, na
ciência de sua época, como na religião cristã, etc.
88
O riso torna-se parte de seu filosofar trágico e, longe de ser depreciado como o foi
por grande parte da tradição, torna-se inclusive um meio para valorar e classificar as
filosofias e seus filósofos:
Se, para Hobbes o riso é uma verdadeira enfermidade da natureza humana, para
Nietzsche, ele se torna um princípio avaliador com o qual é possível instituir uma
classificação dos filósofos. Haveria, portanto vários tipos de riso, o ressentido, o
socrático-pedagógico, o áureo, etc. É A partir de sua variedade e da potência do “grande
riso” que Nietzsche propõe uma hierarquia dos filósofos e seu filosofar. O riso é, para o
filosofo, uma medida de valor para essa classificação um tanto irônica, um tanto ridente.
Se os deuses se ocupam de filosofar, suposição que Nietzsche levanta, devem, pois, saber
rir de outro modo para além do humano. Assim, em Nietzsche o riso alcança as esferas
olímpicas dadas sua potência e força para inclusive poder-se rir das coisas mais sérias.
Nesta direção, pode-se compreender a importância do riso em Nietzsche e interpretado
por Derrida (DERRIDA, 2013, p. 41) como uma potência do feminino capaz de produzir
uma nova estrutura de crença para além do humano como este se constituiu até hoje sob
o predomínio do falogocentrismo que visa se apropriar de uma verdade que é mulher aos
mesmo tempo em que denega sua potência de afirmação do devir da vida e de seu abismo
onda não há fundamentos mas absurdo. Com o riso seriam descontruídos todos
fundamentos que marcam o discurso metafisico moderno, e particularmente o discurso
da verdade como um fetiche que sempre procurou a essência ou a natureza das coisas.
Nesta direção, procuro no subítem a seguir desdobrar o que seria esse discurso fetichista
em torno da verdade com o intuito de apontar como a mulher não se deixa ser apropriada
por este discurso. Assim, desloca a concepção e o sentido de verdade para um registro de
denúncia dos fetiches próprios da metafisica.
89
2.3 Fetiches essencializantes
90
sua essência e, nesta direção, tornar algo apropriável, prática própria de todos aqueles que
pretendem se apropriarem da verdade através da noção de essência, de identidade ou de
natureza, que funcionam no desejo de apropriação como correlatos. Muito próximo à
noção derridiana de fetiches essencializantes Nietzsche afirma que:
Como pode ser interpretado é através de uma aparência inicial tornada conceito
ou ideia que se intenta a partir de uma postura fálico-dogmática capturar e se apropriar
de algo mediante um fetiche essencializante, desde onde se crê apropriar-se da essência
de uma coisa quando, na verdade, se está a partir de uma aparência inicial “criando” uma
“essência”, mas denegando-se esse momento de “criação” na “origem”. Este seria o
procedimento de todos aqueles que ocupam ou desejam ocupar a posição por excelência
metafísica e fálica, quer seja ele filósofo dogmático, artista impotente ou sedutor sem
experiência. Todos estes seriam fetichistas da essência que “criam” conceitos ou ideias
que pretendem-se fixas e eternas mediante o nome de essência, natureza ou identidade e,
com isto, creem ter conquistado e capturado o próprio de algo (sua “verdade”) para
afirmar então “o que é” este algo, esquecendo e denegando toda a gênese de sua
constituição, que passa originalmente por um jogo de aparências inicial, da arbitrariedade,
do erro e do hábito. Neste sentido todo desvelamento, toda intelecção de uma essência é
uma espécie de fetichismo, um “culto” ao caráter supostamente essencial e transcendental
de uma coisa.
91
aparência, apontando com isto que no “início” se tem uma aparência que faz efeito
posterior de essência. Nesse sentido, não haveria uma essência predeterminada, mas
apenas jogos de aparências e aderências. Com tudo isto, a noção de verdade é também
alterada por essa lógica que parece inverter as hierarquias para em verdade deslocar
valores, assim Derrida coloca sobre as verdades (no plural) que:
A "verdade" não seria mais que uma superfície, ela não se tornaria
verdade profunda, crua, desejável, senão pelo efeito de um véu: que cai
sobre ela. Verdade não suspensa pelas aspas e que recobre a superfície
de um movimento de pudor (DERRIDA, 2013, p. 39)
Deste modo, Derrida procuraria evidenciar como é uma “verdade” com aspas ao
compará-la com a verdade tradicional (profunda): a "verdade" mulher é superfície
justamente porque não está por trás de um véu encobridor, ela seria o próprio véu que
nada esconde ou apenas seduz que esconde, de outro modo, a verdade (sem aspas) se
tornaria profunda apenas pelo efeito de um véu, uma superfície que lhe cobre, e não por
uma profundidade que seria propriamente sua. O efeito do véu faria operar um "como se"
ela fosse profunda. É justamente o efeito de um véu, de um véu das aparências,
superficial, que produziria a verdade profunda. Este seria o efeito da verdade mulher:
“Ela, a verdade mulher, engole, vela pelo fundo, sem fim, sem fundo, de toda
essencialidade, toda identidade, toda propriedade” (DERRIDA, 2013, p. 32). Neste
sentido, a “verdade” acaba por anunciar e denunciar o sem fim, o sem fundo de tudo que
no discurso filosófico (essencialidade, identidade, propriedade...) se quer bem fundando,
bem firme, e que acaba, por fim, por aparecer como sem fundamento, suspenso em um
abismo, sem verdade. Neste sentindo Sebastian Chun reflete que:
92
abismante que desconstruiria as sombras de deus, na qual se incluiria a noção de sujeito
moderno como, talvez, a principal sombra a ser desconstruída. E enquanto não-verdade
ela resistiria e, acrescento, atacaria o filósofo dogmático e o “saber verdadeiro” que crê
na verdade da mulher. Com isto, Derrida (2013, p. 32) afirma que “aqui, cego, o discurso
filosófico soçobra - deixa-se precipitar à sua perda”. O discurso filosófico soçobra porque
justamente com o efeito da verdade mulher perde o fundamento que lhe assegurava a
essência, identidade e propriedade de seus conceitos e noções. Se ela, a mulher, vela por
esse fundo, sem fim e sem fundo que denuncia as essências, identidades e propriedades,
o que pode vir a ser então sua relação justamente com a noção de verdade que se liga
tradicionalmente a essas concepções? Derrida (2013, p. 32) constata que “não há verdade
da mulher, mas é porque este afastamento abissal da verdade, esta não–verdade é a
´verdade-´. Mulher é um nome desta não verdade da verdade”.
Nesta direção, não há verdade da mulher, há uma não-verdade ou/e uma “verdade”
entre aspas, marcada já pelo jogo suspensivo do abismo que a faz pairar no ar como um
véu. Pode-se colocar que não há verdade possível da mulher porque justamente ela se
distancia de maneira abissal da verdade em seu modelo tradicional metafísico. A mulher
é a não-verdade da verdade sem nenhuma dialética na qual houvesse a superação por um
terceiro termo, ela não é uma ou outra, mas habita esse não lugar indecidível, entre
“verdade” e não-verdade, que é o velar pelo abismo. Nesta direção, Chun coloca que:
O feminino resguarda, portanto, uma essencial afinidade com a escritura, pois assim
como esta, ele é apenas um resto, um rastro inapropriável, porque sem essência e
identidade, e por isto incapiturável pelo desejo de apropriação próprio do estilo
falogocentrico e em seu esteio, pelo filósofo dogmático. É uma verdade que apresenta
que não há verdade, e por isso não crê na verdade ela mesma, mas encarna-a e a performa
a sua maneira através dos véus e da distância49. E sendo não-verdade da verdade ela
acaba por denunciar com sua não-verdade toda verdade advinda do dogmatismo que se
49
Tal verdade se vincularia ao registro da aparência (do véu como o pensa o Derrida) e não mais
fundamentada ou desveladora de uma essência. Aparência não é mais pensada como o oposto de uma
essência:. Nietzsche no § 54 de A gaia ciencia reflete “ o que é aparência? Verdadeiramente, não é o
oposto de alguma essência- que posso eu enunciar de qualquer essência, que não os predicados de sua
aparência?”
93
queria absoluta, sólida, eterna e bem fundamentada. Neste sentido, a mulher como não-
verdade da verdade "denuncia" que todo saber que pretenda se bem fundar tem seu
fundamento em um não fundamento, ou melhor dito, em um abismo. Desse modo, a
mulher de Nietzsche se relaciona criticamente com o mais "próprio" do discurso
filosófico através da desconstrutora noção de "verdade", porém, como não-verdade da
"verdade". A mulher é aos olhos de Nietzsche uma cética, não crê na essencialidade
profunda das coisas, ou como bem o diz Derrida.(2013, p38) ela é “o ceticismo e a
dissimulação velante”, dissimulação que a coloca no registro das aparências, ou melhor
ainda dizendo, das superfícies. Nietzsche (GC, §64) o afirma “elas creem na
superficialidade da existência como a própria essência...” Nesta direção , se a verdade é
mulher, ela “ não seria mais que uma superfície” 1 (DERRIDA, 2013, p.39). Mulher e
aparência como superfície que nada esconde (nenhuma essência) estão ligadas
produzindo um efeito que supera a velha dicotomia aparência x essência.
94
Ela instaura o regime epocal das aspas para todos os conceitos pertencentes ao
sistema da decibilidade filosófica, ela desqualifica o projeto hermenêutico
postulante do sentido verdadeiro do texto, ela libera a leitura do horizonte do
sentido do ser ou da verdade do ser. Dos valores de produção do produto ou da
presença do presente – isto que se desencadeia é a questão do estilo como
questão da escritura, a questão de uma operação esporeante mais poderosa que
todo conteúdo, toda tese ou sentido. (DERRIDA, 2016, p. 78)
95
2.4 Múltiplas vozes grávidas: gravidez e alteridade/texto e texturas
[…] diversas vozes podem ser ouvidas; elas retornam com uma insistência que,
eu acredito, nunca cessará, e que demanda que estas vozes nunca sejam
reduzidas a uma “monologia”. Neste sentido, tais vozes já ressoam em seu
futuro, na reserva pela qual, para usar uma figura muito nietzschiana, elas estão
“grávidas”. (DERRIDA, 2016, p. 95)
Por tal característica de se entretecer em múltiplas vozes, Derrida coloca que não
há uma coisa como o texto de Nietzsche, uma verdade ou o sentido, mas interpretações
possíveis, pois:
96
do texto. É, neste sentido, em sua relação com a alteridade, com o vir a ser e com o futuro
que se pode dizer que são vozes "grávidas".
50
Sublinha-se que o parto aqui é pensando como um elemento ritual dentro da dimensão do misterio
dionisiaco, desse modo, a gravidez tem seu valor e precisaria ser considerada junto a importante questão
dionisiaca presente de diferentes maneiras na obra de Nietzsche, o que ultrapassa as intenções do presente
trabalho.
97
gravidez e pelos partos do espírito. Pois é também o feminino em Nietzsche que
deslocaria, em sua selvagem dança, os lugares de gênero demarcados pela tradição fálica
e binarista. Em consonância com os “mistérios” da gravidez Zaratustra se afirma do
seguinte modo: Eu, Zaratustra, o defensor da vida, o intercessor da dor...”. Cf.
NIETZSCHE, Za. p. 222 Ora, pode-se ler no texto selecionado em destaque que é
justamente a dor do parto que garante o vir a ser e o futuro de todas coisas, por tal,
Zaratustra é ao mesmo tempo o intercessor da dor (do parto, da criação) e por isso mesmo
o defensor da vida.
Além disto, a imagem da gravidez torna-se interessante ao ser pensada à luz da
leitura que Derrida faz de Nietzsche, pois se configuraria como uma imagem de alteridade
a partir da marca de um outro já “dentro” de si "mesmo" e, mais especificamente, de uma
potência do feminino, é preciso sublinhar, que carrega em si o outro. A gravidez parece
deste modo ser a situação em que “si mesmo” e “outro” se confundem. Pode-se colocar
também que é a marca deste outro, da alteridade com este outro e o jogo de diferença
entre si mesmo e outro que possibilitariam ao vir a ser sua abertura a um futuro não
decidido teleologicamente. Portanto, Nietzsche sendo o pensador da gravidez é, ao
mesmo tempo, o pensador do futuro. O texto de Nietzsche como um texto habitado por
diversas vozes grávidas pode, portanto, ser pensando pela marca da articulação entre
mulher, alteridade e futuro. E seria justamente a alteridade das vozes grávidas que
permitiria ao texto de Nietzsche ser um texto aberto para o futuro, isto porque sem a
predeterminação de uma voz própria e única doadora de um sentido e garantidora da
verdade do próprio do texto.
98
seus disseminados sentidos para diferentes interpretações que nunca esgotariam os
sentidos de seu texto. Por tal, Derrida coloca que:
99
essa resistência do texto de Nietzsche, advinda de uma multiplicidade singular, que
afastaria a tentativa de uma reunião e sistematização dos seus pensamentos e escritos em
um sentido fechado e único ou em uma "voz própria", como o seria, por exemplo, a
tentativa de “captura” do filosofar de Nietzsche por Heidegger no sentido do fim da
metafísica. Mas também é uma resistência que possibilita, por outro lado, a partir das
diferentes vozes grávidas, uma abertura para múltiplas perspectivas de leitura. Haveria
por sua multiplicidade e singularidade de estilos uma maior abertura a interpretações,
permitindo que o futuro de seu texto não esteja fechado.
O texto de Nietzsche com seus estilos é singularmente uma escritura marcada pelo
feminino e um texto habitado por múltiplas vozes grávidas. É feminino por sua resistência
a uma captura e apropriação em um único sentido, verdade ou voz. E, por outro lado, por
permanecer aberto ao futuro justamente por sua multiplicidade irredutível. Nesse sentido,
não é casual que Derrida se refira ao nome próprio de Nietzsche como um nome
problemático e enigmático, dentre outras possíveis razões pelas múltiplas vozes e
máscaras que em seu texto habitam entretecendo um labirinto onde muitas vezes o nome
próprio se confunde com o outro. Vozes e máscaras que são precisamente elementos
singulares de seu estilo e, portanto, constituem parte da estratégia de resistência a uma
reunião. De seu estilo, de sua singularidade, Derrida afirma:
Isto que Derrida chama de "aspectos" podem ser entendidos como os estilos ou
esporas que funcionariam como estratégias desafiadoras impedindo uma reunião ou
sistematização demasiadamente forçosa pelos métodos e saberes que pretendem se
apropriar do pensamento e do texto de Nietzsche. Estas práticas, como coloca Derrida,
parecem irrisórias em suas tentativas de reunir “Nietzsche” a partir de “levantamentos” e
relatos. Por outro lado, sua irredutibilidade teria relação com os aspectos ou estilos citados
que só seriam possíveis justamente pela marca da não-verdade da verdade, marca do
feminino que liberaria o texto de Nietzsche para esta profusão de elementos estilísticos e
100
para o distanciamento de um sentido único, de uma verdade e voz própria. Nesta direção,
é a não-verdade da verdade e seu abismo que possibilitariam esta multiplicidade de
elementos estilísticos que se distanciam do típico modelo tradicional de fazer filosofia
que se conjuga a noção metafísica de verdade, de fundamento e de sentido único. E isto
vem a ser a partir da marca da mulher que, como visto, transita de múltiplas maneiras
através do texto de Nietzsche.
Neste sentido, mulher é um nome para a vida e para vontade de potência. Vontade
de potência que estaria afinada por sua vez com o perspectivismo 51, portanto nomes que
51
Trato do tema do perspectivismo no terceiro capítulo.
101
se articulariam em suas diferenças e nuances, fazendo a função de diferentes estratégias
do feminino no discurso nietzschiano. E vida em sua abundancia e multiplicidade como
a concebe Nietzsche se oporia a metafísica da presença que institui a crença numa única
verdade própria do estilo dogmático. Se opondo a este dogmatismo estaria o filósofo
artista/criador aliado ao feminino capaz, de mesmo na ausência de um fundamento sólido
e de uma verdade, defrontado com o abismo sem fundo e sem fim sobre o qual vela a
mulher, criar ficções úteis a favor da vida , através do incremento e fortalecimento da
vontade de potência e ao mesmo tempo em que tomaria para si tarefa de desconstruir as
sombras restantes após a morte de deus. Nesta perspectiva, Chun (p.16 apud
CRAGNOLINI, 2018) reflete sobre esta filosofia artística ao analisar “a filosofia do
‘como se’, que não crê na verdade, em ela mesma, senão que finge sua existência, é a
verdade simulada, que nos protege da verdade, impedindo-nos de cair precipitadamente
pelo abismo do sem sentido” É, portanto, o filósofo artista que mais perigo corre por
dançar nas proximidades do abismo, mais ainda assim não conceberia o nada 52 como
um novo fundamento, mas criaria simulacros, sempre no plural, capazes de possibilitar
outras e novas interpretações que afirmem, enfim, a vida, o feminino e a vontade de poder.
Nietzsche nunca cansou de alertar seus leitores para os perigos de seu filosofar, pois é um
filosofar que olha para abismos ao destruir as certezas e fundamentos que se consolidaram
ao longo da história da metafísica ocidental, mas tão pouco deixou de encorajar e esperar
por esses filósofos do futuro que amem o perigo (do abismo) mas que junto a esse tenham
a força para criar novas e potentes perspectivas.
52
Chun ressalta que reflete sobre este nada ao colocar que a mulher “ [...] convoca a proliferação de
perspectivas, simulacros e assim nos salva do niilismo extremo,da postulação do nada como verdade,
outra máscara que assumiria o deus morto com sua larga sombra”( p. 16 apud CRAGNOLINI, 2018)
102
no porvir), pois, como já visto, certas passagens do texto de Nietzsche convidam a pensar
um outro “sujeito” como ficção em sua multiplicidade em devir para além dos
fundamentos metafísicos que se associam à noção tradicional de sujeito.
103
2.5 Otobiografias – Narrar-se a si mesmo dissimulando-se
O nome de Nietzsche é talvez hoje, para nós, no ocidente, o nome daquele que
foi o único (talvez de uma outra maneira com Kierkegaard, e talvez ainda com
Freud) a tratar da filosofia e da vida, da ciência e da filosofia da vida com seu
nome, em seu nome. O único, talvez a colocar em jogo seu nome – seus nomes
– e suas biografias. Como não levar isto em conta ao lê-lo? Não se lê senão
levando-o em conta. (DERRIDA, 1985, p. 6)
104
Nietzsche então, como indica Derrida, tratara os problemas da filosofia e da vida,
da ciência e da filosofia da vida com seu nome, em seu nome, mas o que é mais importante
ele colocara em jogo seu nome a partir de suas posições assumidas em relação àquelas.
Desse modo, pode-se afirmar que ele colocara seus nomes e suas biografias implicando-
os nas questões por ele problematizadas. Neste sentido, haveria nos escritos de Nietzsche
um nódulo que compõe aquela borda numa dynamis ainda mais forte onde as biografias,
o(s) nome(s), a filosofia, a ciência, a vida e os textos se entrelaçam. E isto justamente
porque em sua obra haveria a constante inscrição de suas vivências e experiências, assim
como dos estados de seu corpo através de múltiplas máscaras, incluso a máscara de si
próprio. Neste sentido, Derrida (1985, p. 7) pensa o colocar em jogo seu nome
relacionando-o as assinaturas e escritas que não se resumiriam a um eu: “Colocar em jogo
seu nome (com tudo que nele se compromete e que não se resume a um eu), colocar em
cena as assinaturas, fazer de tudo que se escreveu da vida ou da morte uma imensa rubrica
biográfica”. Desse modo, colocar em jogo o seu nome não se resumiria a um eu, mas a
uma multiplicidade de vivências e experiências singulares remetidas ao jogo das máscaras
que vão além da marca e da instancia do eu. Como Derrida pondera, Nietzsche faria de
tudo que escreveu uma imensa rubrica autobiográfica da vida ou da morte, o que só é
possível se o(s) nome(s) já está colocado em jogo. Torna-se exemplar desse colocar em
jogo seu nome a obra Ecce Homo, que se configuraria na leitura de Derrida como uma
espécie singular de “autobiografia” e que por sua singularidade o intérprete elege como
obra fundamental para pensar a questão do autobiográfico e, por consequência, o
problema da identidade: “Por agora, eu lerei Nietzsche desde a cena de Ecce Homo. Ele
coloca seu corpo e seu nome em destaque, mesmo quando avança sob máscaras e
pseudônimos sem nomes próprios, máscaras ou nomes plurais” (DERRIDA, 1985, p. 7).
Portanto corpo e nome relevam-se em destaque em seu texto, porém, sublinha Derrida, a
partir de máscaras e pseudônimos sem nomes próprios, já que o próprio do nome é
também problematizado por esse jogo de máscaras e nomes plurais. É a partir desse
problemática que Derrida lê em Ecce Homo que este irá questionar e desconstruir a
constituição do próprio do nome próprio assim como a estrutura do autos (“eu”) que
comporia o autobiográfico.
105
hábitos, saúde e doenças, etc... - é afirmada, em que estes elementos aparecem mais
sublinhados, texto no qual Nietzsche parece constantemente “presente” ao se apresentar,
no qual estaríamos talvez mais perto de uma autobiografia do autor. Mas, no entanto,
como indica Derrida, é justamente neste texto que a autobiografia, o nome e a assinatura,
se tornam problematizáveis e, por assim dizer, uma questão filosófica que evidenciaria
uma crítica a certas concepções da filosofia tradicional. A crítica de Nietzsche assinalaria
que a tradição filosófica por seu “amor à verdade” denegara a pessoalidade, os corpos, as
paixões, instintos e a saúde, e por isto, em seus discursos suas verdades se pretendem
advindas daquilo que seria mais próprio ao filosofar e ao filósofo, a depender de cada
contexto: sua abstração, impessoalidade, espírito, alma, consciência, objetividade, Deus...
Em resumo: suas verdades adviriam sempre de alguma transcendência para além do mero
mundano e do corpo. Nesta direção, Nietzsche ( GC, prólogo, §2), não sem alguma ironia,
tem de lembrar, “pois, desde que se é uma pessoa, tem-se necessariamente a filosofia de
sua pessoa”. E ainda:
Perguntar-me-ão por que relatei todas estas coisas pequenas e, segundo o juízo
tradicional, indiferentes: estaria com isso prejudicando a mim mesmo, tanto
mais quando se estou destinado a defender grandes tarefas. Resposta: estas
pequenas coisas– alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do
egoísmo– são inconcebivelmente mais importantes do que tudo que até agora
tomou-se como importante Nisso exatamente é preciso começar a reaprender .
O que a humanidade até agora seriamente não são sequer realidades, apenas
106
construções ; expresso com mais rigor , mentiras oriundas dos instintos ruins
de naturezas doentes, nocivas no sentido mais profundo – todos os conceitos
de ‘Deus’, ‘alma’, ‘virtude’, ‘pecado’, ‘além’, ‘verdade’, ‘vida eterna’.. [...]
por ter-se ensinado a desprezar as coisas ‘pequenas’, ou seja, os assuntos
fundamentais da vida mesma... [...].(NIETZSCHE,EH, pp.50-51)
107
se de orientar e ordenar uma hierarquia de valores das coisas mais próximas, mais seguras
e mais demonstráveis capazes de afirmarem essa vida, sempre entendida como vontade
de potência, e não haveria nada de mais doentio mais degradante para essa vida que os
valores representados pela filosofia metafísica e depois pela metafísica-cristã que se
fundamentam em um além da vida para justificar essa mesma vida concebendo valores
que doutrinam uma depreciação desta vida em nome de um além transcendental.
O filósofo afirma ter dado testemunho de si ao longo de seus escritos, mas seu
hábito, e ainda mais, o orgulho de seus instintos, se revoltam contra o ato de apresentar-
se, de dizer quem ele é, ato que segundo Nietzsche se tornara um dever sob as
circunstâncias em que se encontrara. E que hábitos são esses que vão contra o clamar ao
outro que se lhe reconheça assim como ele é? Certamente não o de um perscrutador das
próprias profundezas, um psicólogo como é imaginado no sentido tradicional, como
alguém que se conhece profundamente, que desvendou a si desde as profundezas da
natureza humana, como alguém que levou a cabo o ditame - arché do ocidente: “conheça-
te a ti mesmo”. Derrida coloca sobre este hábito de Nietzsche que:
108
Ele se obriga a dizer quem ele é, o que vai contra seu hábito natural que o incita
a se dissimular sob máscaras. Vocês sabem que o valor de dissimulação nunca
deixa de ser afirmado. A vida é dissimulação. Ao dizer “ich bin der und der”,
ele vai, ao que parece, contra o instinto de dissimulação. [...] Mas de outro
lado, essa exibição auto-apresentativa do “Ich bin der und der” poderia bem
continuar sendo uma artimanha da dissimulação (DERRIDA, 1985, p. 10)
Seu hábito, então, seria o dissimular-se, atividade própria da potência da vida, sob
as tantas máscaras “elegidas” e, contrário a isto, estaria o ato de apresenta-se “como se
verdadeiramente é”. Ato que se anuncia como uma promessa de Ecce Homo, o que lhe
aproximaria de uma aparente “autobiografia”. Mas a ressalva de Derrida deve ser levada
em conta, pois muito bem poderia Nietzsche estar uma vez mais dissimulando ao
apresentar-se como ele “verdadeiramente é” a partir de sua declaração:
Ela nos enganaria outra vez se nós a entendêssemos como uma simples
apresentação de identidade, supondo que nós já saibamos o que está envolvido
em uma apresentação de si e em uma declaração de identidade (“Eu, fulano”,
“eu, fulana”, sujeito individual ou coletivo, “Eu, a psicanálise”, “Eu, a
metafísica”). (DERRIDA, 1985, p. 10)
109
e ascensão ele afirma saber ambas as coisas, porque é ambas as coisas, e isto justamente
por sua dupla herança que ainda viveria nele e que faz dele neste assunto o “mestre par
execellence”. Nesta direção, Derrida questiona:
Sua “identidade” é “dupla e neutra” e neste sentido não conforma uma unidade
em si (assim como se concebe uma identidade) mas um jogo de oposições. É preciso,
portanto, se perguntar pela marca desses duplos que aparentemente comportam um modo
de oposição ou ainda uma perspectiva acerca do jogo de oposições. Pode-se dizer que
Nietzsche assinala em sua crítica aquilo que caracterizaria os metafísicos: a crença na
oposição de valores 53. No dualismo próprio à concepção metafísica um dos polos seria
valorizado em detrimento do outro, onde “as coisas de supremo valor tem de ter uma
outra origem, um origem própria” que residiria “no seio do ser, no imperecível, na coisa
em si” (NIETZSCHE, AMB, § 2) enquanto o outro polo representaria o negativo: falta,
decaimento, degradação, falsidade... De outro maneira, afastando-se da dualidade
metafísica pode-se colocar que Nietzsche considera que um oposto desdobra-se do outro;
seu modo de conceber o duplo de não contraporia oposições de um-em-si-mesmo
sobrevalorizado em oposição ao outro-em-si-mesmo desvalorizado, como se cada polo
desta dualidade repousa-se em sua existência sobre si mesmo. Nesta direção, Muller
Lauter (2012, p. 47) afirma que: “Como se sabe, Nietzsche faz largo uso do método de
derivação de um estado de coisas a partir de outro que é oposto”. Além disto, penso que
está derivação de um polo ao outro não apenas desconstruiria a oposição entre dois polos
absolutamente distintos quanto promoveria uma outra perspectiva que não pressupõe a
hierarquia onde, ao privilegiar um polo se precisasse desvalorizar o outro. Nesta
concepção não haveria uma separabilidade absoluta dos polos ou uma autonomia absoluta
entre eles. Nesta direção, o duplo em Nietzsche se caracterizaria muito mais pelo jogo
tensional entre opostos que não se excluem, mas mutuamente se atraem repelindo-se em
tensão a partir de suas diferenças, não se constituindo como uma dicotomia, mas um jogo
de contradições.
53
Nietzsche em Além do bem e do mal afirma que “a crença fundamental dos metafísicos é a crença nas
oposições de valores” Cf. NIETZSCHE, ABM, §2.
110
Neste sentido, é em sua apresentação de si, que Nietzsche vem a nomear e contar
a sua herança, ou melhor, a sua dupla herança: seu pai, a morte, sua mãe, a vida. Os dois
vivem nele - seu pai, sua mãe - a morte e a sobrevida produzindo uma neutralidade e
ausência de partidarismo. Desse modo, sua “neutralidade” não vem de nenhum
afastamento da vida, de alguma distância objetivada, mas desse pêndulo, desse
movimento tensional de ascensão e decadência. Seu duplo não se caracterizaria como
oposição dualista, mas como movimento, mudança de posições, deslocamento de
perspectivas, assim como é colocado pelo autor:
Como Nietzsche narra, tudo que fora apreendido em sua vida vincula-se àquela
dupla natureza de decadência e ascensão que ele afirma constituí-lo, portanto, é a
duplicidade que lhe permite ter diferentes perspectivas hora sob a óptica do doente e hora
da saúde e plenitude, e que constitui na sua vida um longo exercício para, por fim, poder
inverter perspectivas. Inverter perspectivas torna-se a dádiva de um longo exercício
propiciado pela duplicidade que lhe marca. É de suma importância esse jogo de inversão
de perspectiva na obra de Nietzsche, inversão que se mostra mais profundamente como
um deslocamento de perspectiva. Nesta direção, é a sua duplicidade, sua “natureza” dual
que lhe permite o deslocamento e plasticidade nas perspectivas. Ora, neste sentido, pode-
se colocar que Nietzsche se afirma, se apresenta, a partir de uma oscilatória duplicidade,
com tudo que isto implica para a noção tradicional de identidade pois, a afirmação do
duplo vem, justamente, abalar a concepção tradicional de identidade, onde o indivíduo é
considerado como um em si mesmo. Com isto apresenta-se uma outra dinâmica de
subjetivação, onde seria concebida uma “identidade” em trânsito, deslocando-se a partir
das diferentes perspectivas alçadas, uma “identidade’ que comportaria em si a alteridade
111
e o jogo de contradição do duplo. Duplo que Derrida irá sublinhar justamente sob o signo
da contradição:
Vocês sabem, pelas origens da “minha” vida: meu pai e minha mãe, ou seja,
mais uma vez o princípio de contradição na minha vida, entre o princípio de
morte e o princípio de vida, o fim e o começo, o baixo e o alto, o
degenerescente e o ascendente, etc. Esta contradição é minha fatalidade. Ora,
ela está de acordo com a minha genealogia mesma, com meu pai e com minha
mãe, com aquilo que, na forma de enigma, eu recuso, como a identidade de
meus pais: em uma palavra meu pai morto, minha mãe viva, meu pai o morto
ou a morte, minha mãe a vivente ou a vida. Quanto a mim, estou entre os dois;
isto me cabe, é um “acaso”, e neste lugar, minha verdade, minha dupla verdade
tem um pouco dos dois. (DERRIDA. 1985, p. 15)
É esta contradição que irá marcar as últimas palavras de Ecce Homo, quando
Nietzsche retomará sua questão inicial: “fui compreendido?”, e responderá através de
uma última “assinatura”, de uma performance de assinatura: “–Dionísio contra o
crucificado”(NIETZSCHE, EH, p.117). Aí mais uma vez estaria a marca da contradição
do duplo em jogo, Nietzsche não seria apenas o nome mais identificável com ele de
Dionísio, mas também o crucificado revelando o duplo movimento de ascensão e
declínio. Nietzsche produziria essa performance de assinatura, na qual ele assinaria a
partir de outros dois nomes, e nomes não simples: mas históricos, complexos e míticos.
Portanto, o duplo contraditório é re-apresentado a partir de outros dois nomes e,
principalmente, a partir da luta contraditória que há entre esses dois nomes:
112
os dois nomes, eis o que basta para pluralizar singularmente o nome próprio e
a máscara homonímica. (DERRIDA, 1985, p. 11)
54
Estes nomes e o combate travado entre eles se expressaria a partir de modos de existência com sentidos
completamente diferentes quanto à questão do sofrimento, do valor da vida e da morte, em seus fragmentos
póstumos Nietzsche assim desdobra a questão do Dionísio contra o crucificado:
Dionísio contra o “Crucificado”: aí tendes a oposição. Não é uma diferença quanto ao martírio – é só que
ele tem outro sentido. A vida mesma, sua eterna fecundidade e retorno, condiciona o tormento, a destruição,
a vontade de aniquilamento. No outro caso, o sofrer, “o crucificado como inocente”, vale como objeção
contra esta vida, como fórmula de sua condenação. – Adivinha-se: o problema é do sentido do sofrer: se é
um cristão, se é um sentido pagão. [...] O deus na Cruz é uma maldição sobre a vida, um dedo apontado
para redimir-se dela – ; o Dionísio cortado em pedaços é uma promessa de vida: eternamente renascerá e
voltará da destruição. (FP, 13:14 [89] 1888-1889).
113
2.6 A-vida-a-morte
Pode-se colocar, então, que a morte inscrita no nome que assina torna-se condição
do autobiográfico e do relato de uma vida, a morte seria mesmo a condição de
possibilidade da vida e da autobiografia. Nesta direção pondera Derrida (2018, p.50),
acerca de Nietzsche em Ecce Homo: “ele tem a prova de que o ‘Eu vivo’ é um preconceito
(e, portanto, a causa do efeito de um assassinato que se segue a priori, um preconceito)
ligado ao porte de um nome, a estrutura de todo nome próprio”(DERRIDA, p.38 Apud
CHUN , 2018, P. 22).Derrida se refere à seguinte passagem onde Nietzsche afirmaria ser
de alguma forma um morto: “Vivo do meu próprio crédito; seria um mero preconceito
que eu viva?... Basta-me falar com qualquer “homem culto” que venha à Alta Engadina
no verão para convencer-me de que não vivo... ( NIETZCHE, EH, prólogo, §I)
Deste modo, Nietzsche por um lado se consideraria frente aos outros, que não o
reconhecem, um morto e só viveria por conta de seu próprio crédito. Não havendo,
portanto, um eu vivo a priori a partir de um nome, seria necessário para narra-se entretecer
um eu fictício. Neste sentido, o eu não passaria de uma ficção útil para dar sentido para a
vida e “configurar a experiência de um mundo possível” (CHUN, p.22 apud
CRAGNOLINI, 2018). E o “eu vivo” seria um preconceito ligado ao porte de um nome
colocado como se existisse a priori no relato autobiográfico e como se houvesse um
sentido da vida também a priori. De outro modo, Chun explicita que “não apenas o
114
assinante é uma ficção criada pela mesma assinatura, senão também a vida”. (CHUN,
p.22 apud CRAGNOLINI, 2018). A vida seria, portanto, um efeito da morte e, no caso
do autobiográfico, da morte que perpassa toda assinatura que virá a possibilitar todo e
qualquer relato de vida. É nesta direção que Derrida irá entender a passagem de Ecce
Homo na qual Nietzsche afirma ser ele mesmo o pai, a morte, a mãe, a vida. Nietzsche é,
ele mesmo, este duplo que se conjuga sob a forma: a-vida-a-morte55 . Entende-se que os
dois, vida morte, não estão separados, mas, de outro modo, conjugados. É essa conjugação
que, perpassando o texto de Ecce Homo, vem a dar uma outra dinâmica a sua textualidade.
Nesta direção Chun argumenta que:
Não há um Nietzsche, um autos vivo ao que remitir como chave de acesso para
a verdade de sua obra. A sua vez não há uma presença última do signatário que
se esconderia por trás da assinatura Nietzsche, há vida graças a essa morte
anunciada desde sempre no nome...” (CHUN, p. 22 Apud CRAGNOLINI,
2018)
Por isso que a vida-a-morte são conjugadas desta maneira, pois são inseparáveis,
não delimitáveis entre si. E Nietzsche afirmaria ser os dois, dois no qual a-vida-a-morte
precisam ser, deste modo, conjugados, assim como coloca Derrida (1985, p.30): “E eu
conheço, eu sou os dois, seria preciso dizer o dois, o dual ou o duplo, eu conheço o que
55
Pode-se considerar que Derrida faz uso da expressão a-vida-a-morte como um modo estratégico de
deslocar o sentido e a topologia comumente associados a vida e a morte, que as separariam em uma oposição
binarista e dicotômica. Com a-vida-a-morte o filósofo argelino propõe uma outra conjugação que
desconstruiria a oposição tradicional ao expressar a inseparabilidade entre as duas na existência dual de
Nietzsche. Também quanto a questão do nome e da assinatura (que se entrelaçam a interpretação derridiana
do texto de Nietzsche) seria a marca da morte nestes, pois o nome, assim como o conceito, mata a coisa a
que ele se refere, o que possibilitaria o relato autobiográfico de uma vida, vinculando outra estrutura de
temporalidade e relação entre a vida e a morte não marcada por sua tradicional oposição metafisica.
115
sou o dois, a vida a morte. Dois, é a vida a morte. Quando eu digo: não confundam, eu
sou der und der, isto é, o morto a vivente.”.
Além disto, Nietzsche é seu pai, o morto e sua mãe, a vida e sendo os dois
Nietzsche se pluraliza e é também o filho (Derrida1985, p. 32). Isto porque sem a presença
plena de um signatário, graças à morte no nome, os sentidos se disseminam. Ecce Homo
é, portanto, um texto que ilustraria de maneira paradigmática o que estaria presente em
toda escritura: a ausência de uma presença plena do autor que garantiria o sentido do
texto. É nessa direção que o autos do autobiográfico é desestabilizado pela marca da
morte no nome e, com isso, toda a ideia de um sentido e verdade do texto sustentados por
um autor é problematizada. O nome ou assinatura sendo sempre o nome de um morto
possibilita, portanto, a abertura do texto para além do sentido ou da verdade que
supostamente lhe seriam próprios.
116
Nesta direção, a morte de si pelo nome ou assinatura não é pensada negativamente,
mas sim como possibilitadora da vida, do relato autobiográfico, e, também, das
dissimulações de Nietzsche através dos vários nomes e máscaras que não esconderiam
alguém (um si próprio) por detrás, mas seriam manifestações de um sujeito em devir
marcado por esta morte de si. Ainda que a dissimulação seja pensada por Derrida como
uma característica do feminino e da vida, é a morte ligada ao pai, que possibilitaria, pela
morte de si no nome, o devir do sujeito e seus jogos de dissimulação e pluralização. É a
morte de si no nome ou assinatura que possibilitaria então o devir de um sujeito não mais
autocentrado, mas aberto, incluso para a dissimulação de si pelas mascaras, justo porque
não há mais um sujeito no sentido tradicional por detrás delas para se remeter ao próprio,
ao essencial e ao verdadeiro.
117
objetivo e racional em sua relação com a verdade e o sentido. É neste ponto, como uma
forma de critica a esta pretensão filosófica, que Nietzsche toma outra posição ao colocar-
se em jogo no próprio escrito, enquanto grande parte dos textos filosóficos
permaneceriam sob o “inconsciente disfarce” de suas necessidades fisiológicas. Se
grande parte dos textos filosóficos permanecem sob o “inconsciente disfarce” das
necessidades fisiológicas, isto não quer dizer que neles estas não se inscrevam como
sintomas, ainda que apareçam sob uma outra roupagem de modo “dissimulado”. Todo
texto participaria de uma relação com a vida, assim como “toda vida” participaria de uma
relação com o texto. Por isso, a Derrida lhe interessaria a borda da dynamis como um
espaço tensional entre vida e obra, porque é o espaço onde vida e obra se influenciariam
reciprocamente, pois, como visto, não haveria de um lado o sujeito já fechado em sua
unidade e a obra por fazer do outro, mas ambos estariam por fazerem-se, por tornarem-se
no entre de uma relação de alteridade. É esta relação que apareceria de maneira exemplar
em Nietzsche, através dos seus textos como “espaços” marcados pela vida e pela morte
(os nomes, hábitos, o corpo, as experiências, saúdes...) mas também, pode-se acrescentar,
uma vida marcada por seus textos. E em especial através de Ecce Homo como uma
“autobiografia” onde Nietzsche narra para si sua vida a partir de diferentes interpretações
de seus textos, onde a-vida-a-morte e os escritos estariam amalgamados. Neste sentido, os
escritos são interpretados e narrados por Nietzsche como algo pertencente a sua vida,
rasurando a barra que separaria obra e vida. Contudo, Nietzsche (1985, p. 12), em Ecce
Homo, constata que “Uma coisa sou eu, outra são meus escritos. ”, sugerindo uma
afirmação da diferença e distância que permite a alteridade entre vida e obra, pois aquilo
que parece imperar em Ecce Homo é a relação tensional de confluência entre vida e obra.
Desse modo, a afirmação de Nietzsche parece ser muito mais uma crítica à identificação
unitária entre vida e obra, que faria do sujeito e da obra uma coisa só em uma suposta
fusão, do que uma negação da relação entre vida e obra como esta parece estar presente
no próprio texto e em outros escritos seus. Por isto, pode-se entender porque Derrida elege
Ecce Homo para pensar o problema da autobiografia e, nisto, a questão do autos,
justamente porque é uma obra que trata de uma maneira diferencial a noção de “eu” e
sujeito, onde estes se encontram em devir através de uma duplicidade contraditória.
Escrita onde a figura da morte/ pai é demarcada, fazendo “espelho” à questão da morte
do “eu” na assinatura e no nome, e se configura como uma morte possibilitadora da vida.
Neste sentido, toda autobiografia e, ainda, pode-se colocar, todo texto, é marcado por esta
morte do eu na assinatura e no nome e, com isto, o lugar do sujeito-autor que escreve
118
como o autos que sustenta o sentido e a verdade do texto é desconstruído. Os sentidos
dos textos restam como disseminados ao deixar cair do sujeito sustentador que funcionava
como uma figura paterna e protetora do sentido e da verdade do texto. Nesta direção,
ficariam desestruturadas as leituras que pretendem capturar o sentido e a verdade do texto,
já que não há mais um centro regulador (que corresponderia ao autor) que sustente a
verdade e doe sentido ao texto. Com a desconstrução do sujeito-autor, enquanto origem
e centro regulador do sentido e verdade do texto, este se abre para o endereçamento ao
outro, ao leitor que se torna então fundamental para o acontecimento do texto, pois esse
torna-se então um acontecimento em porvir. É interpretando Nietzsche, principalmente a
partir do Ecce homo, que Derrida sublinha como será discutido o deslocamento radical
de posições, anteriormente atribuídas ao autor e ao leitor, questionando toda uma lógica
autocentrada no sujeito a partir da marca da alteridade.
O filósofo afirma que é o “ouvido do outro que assina” e assina justo porque a ele
cabe o trabalho de interpretação da mensagem na qual se pode honrar ou não uma
assinatura. E pode-se acrescentar, um ouvido pode ser afiado, ou não para a interpretação
de uma escritura. Nisto, a atuação do autos de perfomar sua assinatura e erigir o sentido
do texto é completamente deslocada, ao ser colocado ao lado do endereçado, do ouvido
do outro. É o ouvido do outro que então constituirá o autos de uma autobiografia. O
ouvido ouve e interpreta a mensagem, o nome e a assinatura para a partir desse trabalho
119
contra-assinar como se fora o autos de uma autobiografia. Sobre esse tema Derrida
constrói uma interpretação da seguinte passagem de Nietzsche:
Prevendo que dentro em pouco devo dirigir-me à humanidade com a mais séria
exigência que jamais lhe foi colocada, parece-me indispensável dizer quem
sou. Na verdade, já se deveria sabê-lo, pois não deixei de “dar testemunho” de
mim. Mas a desproporção entre a grandeza de minha tarefa e a pequenez de
meus contemporâneos manifestou-se no fato de que não me ouviram, sequer
me viram. Vivo de meu próprio crédito, [eu estou vivendo sobre meu próprio
crédito, sobre o crédito que abro e concedo a mim mesmo]: seria um mero
preconceito que eu viva?... (NIETZSCHE, EH, p.17)
Logo se prevê a consequência: se a vida que ele vive e conta para si mesmo
(“autobiografia”, dizem eles) não é em primeiro lugar sua vida senão por efeito
de um contrato secreto, de um crédito aberto e codificado, de um
endividamento, de uma aliança ou um anel, logo, enquanto o contrato não for
honrado, e ele não pode sê-lo senão pelo outro, por exemplo, você, Nietzsche
pode escrever que sua vida talvez não passe de um preconceito,” (DERRIDA,
1985, p. 9)
120
De acordo com a lógica que eu tentei reconstituir ontem, a assinatura de
Nietzsche não acontece quando ele escreve. Ele diz claramente que ela
acontecerá postumamente, conforme a linha de crédito infinita que ele abriu
para ele mesmo, quando o outro vem assinar com ele, se juntar com ele em
aliança, para então, ouvi-lo e entendê-lo. (1985a, p. 50-51)
121
Conforme colocado, é por não estar reduzida a uma verdade ou significado
absoluto/dado e, acrescento, porque não garantida e sustentada pela figura do sujeito-
autor, que uma escritura “necessita” do trabalho interpretativo do ouvido do outro para o
estabelecimento de uma contra assinatura e para a assunção de um sentido a partir deste
trabalho interpretativo. Com isto, pode-se colocar que toda escritura, ainda que não
autobiográfica, traria rastros do otobiográfico, já que é assinada por um morto e esperaria
por isto uma contra-assinatura de um leitor. Assim, o ouvido não faz apenas receber e
entender, mas tem um caráter “ativo” no seu trabalho de interpretação a partir da
disseminação da escritura. Desse modo, a escritura só acontece na alteridade com este
outro que é o ouvido em seu trabalho de interpretação. Além disto, toda escritura performa
um “eu” (um autos) que não se auto diz, não possui uma identidade presente a si mesmo,
mas só existirá, virá a acontecer em uma relação de alteridade com o outro, com o ouvido
do outro que lhe diz “sim” e vem contra-assinar conjuntamente. Nesta direção, o “eu” do
autor se inscreveria no texto como o espectro de um morto que vem a ser recebido pelo
ouvido do outro em uma relação de alteridade, não se constituindo, portanto, como um eu
presentificado e pré-estabelecido. Nesta direção, o ouvido do outro performaria a função
de alteridade necessária para que a escritura venha acontecer, se constituindo como aquele
que vem contra-assinar conjuntamente o texto Portanto uma escritura não existe em si
mesma, não tem uma identidade fechada, mas vem a acontecer em função da alteridade
do ouvido outro.
Um outro aspecto do ouvido do outro seria sua constituição labiríntica (um outro
paralelo com a escritura Nietzschiana que por sua multiplicidade de vozes e mascaras se
entreteceria como um labirinto), e por ser labiríntico o ouvido do outro não constituiria
em seu trabalho interpretativo uma síntese ou uma racionalização do texto, unificando o
que estaria desunificado e em disseminação, mas escutaria interpretando justamente essa
disseminação dos sentidos. De acordo com Silas B. Monteiro em seu artigo em torno do
texto Otobiografia:
122
Deste modo, a escuta do ouvido do outro estaria sempre atrelada ao labirinto das
significações de forças disseminadas de uma escrita, seja ela autobiográfica ou não. E é
essa escuta labiríntica que produz uma interpretação e desse modo possibilita a
singularidade de toda contra-assinatura. Porém, o labirinto não estaria apenas nos ouvidos
ou no texto, mas no entre desta relação de alteridade do texto ao ouvido. Por ter seu
sentido disseminado toda escritura se aproximaria da metáfora do labirinto que dobra
aonde se queria ter a retidão da racionalidade do sentido e escurece no lugar da luz da
verdade. Desse modo, por não conter uma verdade e um sentido único, toda escritura seria
um pouco labiríntica. Nesta perspectiva, é que se pode pensar o labirinto como um entre,
entre o ouvido do outro e a escritura, participante dos dois sem ser necessariamente
propriedade de nenhum dos dois. Neste cenário labiríntico o sujeito clássico, seja ele autor
ou leitor, concebido como uma unidade fica, por assim dizer, perdido, pois assim como
o texto é disseminado em seus sentidos, a escuta do outro, no trabalho de interpretação
da escritura, requer um para além da unidade, requer uma multiplicidade de posições na
escuta das significações das forças presentes .
123
Nesta direção, é o trabalho de interpretação do ouvido do outro que é ressaltado
como criador dos sentidos de uma escritura a partir do jogo da alteridade instituído e é,
por isso, que é dele a contra-assinatura que vem a posteriori e que libera o acontecer do
texto em seu porvir. É o outro que produz a alteridade necessária para o acontecer do
texto em sua singularidade e só se realiza um texto neste acontecer da interpretação do
ouvido do outro. Desse modo, cada trabalho de interpretação do ouvido do outro é uma
produção de singularidade do texto em seu porvir. Derrida comentando a importância do
ouvido do outro na autobiografia afirma que:
124
Pensando em como de autobiografia chega-se à otobiografia, na qual o oto (de
ouvido/orelha) vem a ocupar a função do autos do eu, pode-se colocar que o ouvido do
outro assume um papel preponderante no acontecer desta escrita, que é a escrita
autobiográfica na qual o autos (eu) que, tradicionalmente, ocuparia o lugar primeiro e
central como sujeito e autor da escrita, da assinatura e do sentido desta escrita, perde seu
antigo lugar e é incorporado, de certa maneira, pelo oto que fará enquanto ouvido a função
de um autos. Mesmo uma autobiografia só aconteceria face ao ouvido do outro e a partir
do jogo de alteridade do texto com o ouvido. A narrativa autobiográfica é então pensada
a partir de um narrador que conta primeiramente sua vida para si, para seu ouvido e,
nisto, precisa tornar-se outro para si. É que mesmo a narrativa de si para si só se
constituiria através da alteridade da própria escuta. Desta maneira Siscar expõe o
problema da narrativa autobiográfica:
Nesta direção, pode-se colocar que o jogo da alteridade está inscrito em todos os
momentos do acontecer da autobiografia e que, mesmo na narrativa do autor para si
mesmo, é preciso que se constitua de certa maneira o ouvido do outro nele mesmo, para
que ele possa se escutar “outramente” e assim produzir sua narrativa. Portanto, neste
esquema que tradicionalmente predominaria o elemento do autos, Derrida infere a marca
do outro e o jogo da alteridade como constituinte do acontecer autobiográfico. Sem a
alteridade do ouvido do outro não haveria o acontecimento do texto autobiográfico e,
pode-se acrescentar, de qualquer texto. Assim, a alteridade pensada essencialmente
através do ouvido do outro se torna fundamental para pensar o acontecimento do texto.
Deste modo, o autos que tradicionalmente se constitui como elemento estruturante do
texto autobiográfico é deslocado de sua posição central e pensa-se então o oto e sua
relação de alteridade com o texto. Portanto, pode-se afirmar que não há um texto em si
mesmo, já fechado e estruturado em seu sentido e sua verdade, e também já constituído
por um autos de um sujeito/autor, mas sim textos que vêm acontecer em sua abertura para
o trabalho de interpretação do ouvido do outro.. É, portanto, a alteridade que libera o
acontecer do texto e não o autos de um sujeito-autor que realizaria o sentido e a verdade
de um texto selado com sua assinatura.
125
Neste sentido, o autos parece, em um primeiro momento, sofrer uma inversão de
lugar: se antes ele era valorizado por uma leitura tradicional a partir do autor como central
e primordial, ele apareceria como desvalorizado em detrimento do oto. Entretanto,
Derrida elabora um deslocamento do autos que passa então a ser articulado ao ouvido
(oto) e seu trabalho de interpretação e na forma da contra assinatura. Com isso, pode-se
colocar que o autos, antes enclausurado em uma suposta identidade, se abre para a
alteridade, haja visto sua articulação com o ouvido (oto) do outro. Portanto, o autos é por
esta via contaminado pelo oto e sua função de alteridade, abrindo-se de seu
enclausuramento em si mesmo; nesta direção o eu passa a ser concebido em função da
alteridade e não pré-existindo em relação ao outro. O ouvido do outro sendo o autos de
uma autobiografia, e não o autor que tradicionalmente o seria, se constitui como elemento
primordial desta cena que é o acontecimento de um texto. Por ser esse órgão labiríntico e
aberto por excelência o ouvido do outro aparece como elemento central na alteridade com
o texto e, ao mesmo tempo, como o autos que constitui o texto autobiográfico, logo, a
alteridade e o autos se relacionariam e se contaminariam a partir do ouvido do outro. A
alteridade e o autos se relacionariam e se contaminariam porque o eu passa então a se
constituir mediante a alteridade do ouvido.. Nesse sentido, autos e alteridade tornam-se
inseparáveis a partir do ouvido do outro e deixam de ser um par dicotomicamente dividido
em opostos assim como se é entendido tradicionalmente. O ouvido do outro é concebido
como lugar de entrecruzamento destes elementos aparentemente opostos e dicotômicos.
56
Faço maior destaque a Ecce Homo pois as passagens que trabalhei de otobiografia neste capítulo fazem
referência a este texto.
126
um sentido singular. Então, pode-se dizer que o texto de Ecce Homo vem a acontecer de
modo singular a partir do encontro com a alteridade que traz o ouvido deste outro que se
chama Jaques Derrida. A leitura deste texto torna-se, portanto, outra através do encontro
com o texto de Otobiografia.
127
CAPÍTULO 3 – OUTRAS
ESCRITURAS (FREUD, DERRIDA E
NIETZSCHE)
128
3.1 O pensamento do traço no discurso Freudiano e o pensamento das forças
de Nietzsche
É certo que Freud não maneja metáforas, se manejar metáforas é fazer alusão
ao desconhecido partindo do conhecido. Pela insistência do seu investimento
metafórico, torna pelo contrário enigmático o que se julga conhecer pelo nome
de escritura. (DERRIDA,2002, p. 182)
57
Embora comumente a palavra trace (em francês), no contexto da obra de Derrida, seja traduzido por
rastro, com fins de uma aproximação com o discurso de Freud optei por utilizar o termo traço como é
traduzido do texto alemão de Freud e assim como é mantido pela tradução de Maria da silva no artigo
intitulado “Freud e a cena da escritura”.
129
É justamente esse tornar “enigmático” pelo uso das metáforas o que se conhece
correntemente pelo nome de escritura e de traço que torna interessante o discurso
freudiano para a problematicidade da desconstrução do sujeito. Nessa direção, Freud faz
do uso das metáforas uma problematização do traço e da escritura em sua relação com o
sujeito e seu psiquismo, trama a partir da qual Derrida irá pensar o problema da metafísica
da presença e do logocentrismo em relação com o discurso da psicanálise. Mas como a
questão do traço se insere no discurso psicanalítico? Derrida (2002, p.183), analisando o
desenvolvimento do discurso freudiano, afirma que “Do projeto (1895) à nota sobre o
bloco mágico (1925), estranha progressão: uma problemática da exploração é elaborada
para se conformar cada vez mais a uma metafórica do traço escrito.” 58. É em seu Projeto
que Freud propõe explicar a memória a partir de um discurso relacionado às ciências
naturais envolvendo toda uma discussão em torno da diferenciação entre os neurônios.
Nota Derrida (2002, p.184), porém, que essa “hipótese é notável desde que a
consideremos um modelo metafórico e não como uma descrição neurológica” A
importância de explicar a memória por esse modelo metafórico dos neurônios, proposto
por Derrida está em, como o ressalta Freud, que “toda a teoria psicológica digna de
atenção deve propor uma explicação da memória” (FREUD Apud DERRIDA, 2002,
p.184). Além disso, a problemática da memória se relaciona e se complica com o
problema da percepção. A dificuldade que encontra Freud, segundo Derrida é:
dar conta ao mesmo tempo, como o fará a nota, trinta anos mais tarde, da
permanência do traço e da virgindade da substância e recepção, da incisão dos
sulcos e da nudez sempre intacta da superfície receptiva ou perceptiva.
(DERRIDA,2002, p.184)
É, portanto, em torno deste problema que se apresenta como uma contradição que
se movimenta o discurso freudiano: o de um aparelho psíquico capaz de reter traços, como
o faz a memória, ao mesmo tempo em que permanece sempre aberto para novas inscrições
na percepção. Para isso Freud propõe no Projeto duas espécies diferentes de neurônios,
os permeáveis, que não ofereceriam nenhuma resistência e não reteriam nenhum traço
das impressões, e outros que opondo grades de contato a certa quantidade de excitação,
conservariam o traço impresso e, portanto, se relacionariam a certa representação da
memória. É tal a importância da memória que, de acordo com Derrida (2002, p. 185),
58
Assinalo que optei para uma melhor leitura por traduzir todos os títulos das obras de Freud do francês,
como o utiliza Derrida, para o português.
130
“Freud só concede a qualidade psíquica a estes últimos neurônios”. É nesta direção que o
filósofo pondera sobre a importância da memória no discurso freudiano ao afirmar que
“a memória não é, portanto, uma propriedade do psiquismo entre outras, é a própria
essência do psiquismo”. (DERRIDA, 2002, p. 185) Segundo Freud haveriam inúmeras
explorações59(das forças que dinamizam os traços que se inscrevem na vida psíquica) e,
por estas, vias abertas por meio dos neurônios que opõem grades de contato possibilitando
o surgimento da memória. Nessa direção, como problematiza Derrida (2002, p. 185), seria
necessário que houvesse uma diferença entre as explorações dos traços para existir
memória, pois “a diferença entre as explorações, tal é a verdadeira origem da memória e
portanto do psiquismo. Unicamente esta diferença libera a ‘preferência da via’”. A
diferença nos traços que marcam os neurônios de resistência pela abertura das vias nas
explorações são o que vem a constituir a memória. Porém, Derrida pondera que:
O traço como memória não é uma exploração pura que sempre se poderia
recuperar como presença simples, é a diferença indiscernível e invisível entre
as explorações. Sabemos, portanto já que a vida psíquica não é nem
transparência do sentido nem a opacidade da força, mas a diferença no trabalho
das forças. Nietzsche dizia-o bem. (DERRIDA, 2002, p. 185)
59 Pode-se explicitar que através da noção de traços constituindo a vida psíquica, Freud elabora toda uma
problemática das explorações. Ora, sendo o traço dinamizado por forças estas constituiriam diante a trama
de neurônios e de suas grandes de contato inúmeras explorações abrindo vias e rotas que inscreveriam os
traços . As forças que imprimem os traços portanto explorariam a rede de neurônios determinando a
memória conformada pelos traços impressos.
131
resistências à exploração ou a equivalência das forças de exploração reduziria toda a
preferência na escolha dos itinerários. A memória seria paralisada. ” (DERRIDA, 2002,
p. 185). Pode-se, portanto, a partir do modelo freudiano de memória, como o interpreta
Derrida, assinalar o caráter dinâmico das diferenças no trabalho da pluralidade das forças
que produzem os traços e suas explorações nos tecidos dos neurônios, o que permite por
sua vez caracterizar a memória como algo dinâmico e não paralisado.
132
relações beligerantes de domínio e expansão nas quais há o confrontamento entre elas.
Portanto as forças para Nietzsche sempre são caracterizadas no plural e em uma relação
dinâmica de beligerância que nunca tende à estabilidade e à harmonia. Nesta direção,
assinala Barrenechea (2009, p.77que “As outras características marcantes das forças são
sua aparição plural e a configuração de hierarquias, pois não há força isolada, mas sempre
está em relação com outras, com as quais se defronta. Todo corpo é perpassado pela
presença de forças diferenciadas[...].
133
Haveria, portanto, um jogo de forças no qual não há nada por “trás’ ou por “baixo”
que funcionasse como causa, princípio ou qualquer espécie de fundamento metafísico,
mas um jogo de múltiplas e diferentes forças que, em sua tensão beligerante, estabelecem
diferentes e provisórias hierarquias ou constelações de forças. Conforme é observado o
aparecimento dessas forças é sempre múltiplo, dito de outra maneira, só há força dentro
de um jogo de multiplicidade de forças, ou dito de um outro modo, só há força porque há
alteridade de outra (s) forças diferentes, sendo a diferença entre elas o motor da
beligerância. Tal dinâmica da multiplicidade de diferentes forças em constante
beligerância pode ser compreendida como a diferença no trabalho a que se refere Derrida
em relação a Freud. Conforme aponta Barrechenea (2009, p. 82) é a partir da obra de
Nietzsche Para além do bem e do mal que se “apresentará uma importante guinada na
sua concepção de forças. Nessa etapa, ele introduzira os termos de quantum de força,
pontos de forças e centros de forças. ” em que cada força “estaria constituída por diversos
processos infinitesimais [...] a força longe de constituir uma unidade, é, ainda, o produto
de inúmeros movimentos corporais” (BARRENECHEA, 2009, p. 82). Segundo
Barrechenea, a partir desta obra se evidenciaria a influência do físico Boscovich na
mudança de interpretação em torno das forças, quando Nietzsche se inspira na rejeição
do átomo como unidade primordial e mínima da constituição da matéria. Desse modo,
pondera Nietzsche (ABM, §12): “Boscovich nos ensinou a abjurar a crença na última
parte da terra que permanecia firme, a crença na ‘substância’, na ‘matéria’ nesse resíduo
e partícula da terra, o átomo”. Para o pensamento de Nietzsche, no mundo não haveria
nenhuma estabilidade sólida, apenas devir: pontos, centros ou quanta de forças “agindo
uns sob os outros” (BARRENECHEA, 2009, p.83). Não podendo ser concebida
isoladamente, uma força só ganharia sentido em relação à outra que lhe é diferente com
a qual se estabeleceria uma relação de dominação. Sobre a dificuldade de caracterizar as
forças, observa Barrenechea (2009, p.188) que “parece que as características das forças
não podem ser decodificadas pelos conceitos tradicionais, que geralmente aludem a
entidades ou sujeitos”. Portanto as forças não podem ser traduzidas como entidades ou
sujeitos, mas ainda de um modo mais radical ser entendidas a partir de qualquer conceito
tradicional, haja vista que estas noções pertencem ao que Derrida chama de metafísica da
presença no qual há uma tendência a substancialização seja na forma de entidades, seja
na forma moderna de sujeitos.
134
A diferença no trabalho das forças, sugerida por Derrida, pode então ser
compreendida como a tensão beligerante de uma força só existe em relação à diferença
de outra(s) dentro de uma pluralidade. E é a atuação desse princípio de diferença entre as
forças que faz com que uma força nunca possa se constituir como uma força-em-si, mas
sempre em um trabalho beligerante em relação à outra(s) forças. Nesse sentido, a força
jamais poderia ser concebida como uma presença simples e não teria seu sentido e telos
pré-estabelecidos, já que só poderiam organizar-se de modo provisório, a partir da
dinâmica de relações com outra(s) forças. É nesta direção que se torna possível entender
a diferença nas explorações, a que se refere Derrida, que formam os traços que constituem
a memória. A vida psíquica, assim como é concebida por Freud no Projeto seria
percorrida pelo princípio dinâmico da diferença no trabalho das forças. Os traços que
instituem a memória não se dariam por uma exploração pura, mas a partir da diferença
no trabalho das forças que tesionam as diversas explorações, e é neste sentido que o traço
não poderia ser recuperado como presença simples, pois é concebido pela diferença no
trabalho das forças. Por isso, o traço é, segundo a interpretação de Derrida (2002, p.185),
“a diferença indiscernível e invisível entre as explorações”, e, portanto, é ele mesmo uma
diferença em relação a outro traço. Compreendendo o sentido da noção de força em
Nietzsche, sua pluralidade e o princípio de diferença que a constitui, afastando qualquer
possibilidade de uma substancialização ou presença em si mesma da força, pode-se
deduzir que a noção de diferença marcaria como um todo aquilo que Derrida assinala em
Freud sobre a vida psíquica como articulação de diferentes traços. Desde sua leitura do
Projeto de Freud, Derrida estaria atento para aquilo que, no discurso freudiano, não se
deixaria fechar pela metafísica da presença e que se radicalizaria a partir da noção de
traço que caminharia no discurso freudiano para a direção de uma noção de escritura.
Neste sentido, dirá Derrida que
É portanto, essa “estranha progressão” que Derrida irá refletir, progressão que se
esboça em torno de diferentes nuances do desenvolvimento da noção de traço, que no
Projeto é elaborada a partir de um esquema que Freud teria querido natural (no qual a
135
escritura é ausente, mas o traço já aparece) mas que Derrida já lê em seu caráter
metafórico até um esquema de traços que se inscreve desde a concepção de uma escritura.
É uma progressão com a qual a própria vida psíquica, animada pela dinâmica dos traços
que a constitui em sua totalidade, irá cada vez mais se assemelhar metaforicamente com
a noção de escritura, o que leva a Derrida a refletir em torno da questão do texto, pois:
O que é um texto e que deve ser o psíquico, para ser representado por um texto?
Pois se não há maquina nem texto sem origem psíquica, não há psíquico sem
texto. Qual deve ser enfim a relação entre o psíquico, a escritura e o
espaçamento para que uma tal passagem metafórica seja possível, não apenas
nem em primeiro lugar no interior de um discurso teórico, mas na história do
psiquismo, do texto e da técnica? (DERRIDA, 2002, p.183)
60
Texto traduzido para o português como Projeto.
136
Aproximadamente um ano mais tarde o traço começa a tornar-se escritura. Na
carta 52 (6-12-96), todo o sistema do Projeto é reconstituído numa
conceptualidade gráfica ainda inédita em Freud, não é de se surpreender que
isto coincida com a passagem do neurológico para o psíquico. No centro dessa
carta as palavras ‘signo’ (zeichen), inscrição (Niederschrift), transcrição
(Umschrift). (DERRIDA, 2002, p.192)
137
também, de tempos em tempos, ela sofreria uma reestruturação. Os traços como visto
nunca podem ser pensados como um elemento fixo e simples enquanto uma presença e,
por conseguinte a memória constituída por eles não é concebida como uma presença
simples.
É certo que Freud pensa que o sonho se desloca como uma escritura original,
pondo as palavras em cena sem se submeter a elas; é certo que pensa aqui um
modelo de escritura irredutível à palavra e comportando, como os hieróglifos,
elementos pictográficos, ideogramáticos e fonéticos. Mas faz da escritura
psíquica uma produção tão originária que a escritura tal como julgamos poder
ouvi-la em seu sentido próprio, escrita codada e visível “no mundo”, não
passaria de uma metáfora (DERRIDA, 2001, p. 196)
138
O meu processo não é tão cômodo quanto o do método popular de decifração
que traduz o conteúdo dado de um sonho segundo um código estabelecido; sou
mais levado a pensar que o mesmo conteúdo do sonho pode abrigar também
um sentido diferente em pessoas diferente e num contexto diferente. (FREUD,
p. 109 Apud DERRIDA, 2002, p.197)
139
Freud estaria, segundo Derrida (2002, p. 206), querendo explicar “o negativo ou
a escritura da luz” enquanto uma escritura psíquica, porém essas comparações e
particularmente aquela com um aparelho fotográfico não poderiam resolver o problema
proposto por Freud, em relação à escritura psíquica, de um mesmo sistema que retivesse
as modificações dos seus elementos ao mesmo tempo em que oferecesse uma nova
receptividade a modificações sem perder sua capacidade de recepção. É nesse sentido que
Freud ainda apresenta desculpas pelas imperfeições das imagens pois, como assinala
Derrida (2002, p. 207), serão “necessários dois sistemas numa só máquina. Este duplo
sistema, concedendo a nudez da superfície e a profundidade da retenção, só de longe e
com e com muitas ‘imperfeições’ podia ser representado por uma máquina óptica”. É essa
dupla exigência, aparentemente contraditória, com a qual Freud se preocupa desde o
Projeto, que de algum modo o impulsiona a procurar novas metáforas e imagens para dar
conta da vida psíquica pensada a partir dos traços e já como uma escritura. É, portanto,
com certa parcialidade que Freud aceita a própria imagem formulada a partir de uma
máquina óptica. Joel Birman assinala que:
140
se afastaria cada vez mais de um logocentrismo, pois no modelo de escritura não fonético
adotado por Freud para pensar o psiquismo cada vez mais a noção de traço ganha força,
não se submetendo a metafisica da presença inerente a linguagem fonética 61assim como
sublinha ainda Birman (2007, sem paginação): “Derrida evidenciou no discurso freudiano
as marcas teóricas que enunciariam a formulação sobre a existência de um pensamento
do traço.” É justamente a radicalidade desse pensamento do traço articulado a uma
escritura não fonética que coloca para além da metafísica da presença o discurso
Freudiano em torno da vida psíquica. Porém, como o nota Joel Birman na passagem acima
em destaque, são o microscópio e o telescópio, máquinas ópticas, que servem de imagens
para a descrição do aparelho psíquico e não ainda como o será a partir do bloco mágico
um aparelho de escrita. Já no artigo sobre “o inconsciente” de Freud esboça-se o caminho
para a metáfora da escritura, como o assinala Derrida:
61
Afirma Derrida (2002, p. 21o), acerca da relação entre a escrita fonética e a metafísica da presença, que
“em especial na escrita chamada fonética. é profunda a conivência entre esta e o logos (ou o tempo da
lógica) dominado pelo princípio da não contradição, fundamento de toda a metafísica da presença”.
141
somente 12 anos mais tarde do Projeto, com a “Nota sobre o bloco mágico”, que serão
descritos conjuntamente o funcionamento do aparelho de percepção (com sua abertura a
novos traços) e a origem da memória (como marcas de traços), a partir da qual as duas
séries de metáforas até então separadas se reunirão nessa máquina, “pequeno
instrumento” que é o bloco mágico e que conciliará a dupla exigência freudiana relativa
ao funcionamento da percepção e da memória, oferecendo “as duas vantagens: uma
superfície de recepção sempre disponível e marcas duradouras das inscrições recebidas.”
(DERRIDA, 2002, p. 216). A descrição de Freud em torno do aparelho é a seguinte:
142
mesmo. Nesse sentido, Derrida indica que o discurso freudiano em torno dos traços e da
escrita não se deixaria enclausurar dentro do logocentrismo, já que o inconsciente seria
uma escritura sem um código pleno que a instituísse. O texto inconsciente é tecido por
diferentes traços (mas um texto em nenhuma parte presente) e constituído por “arquivos”
que são desde sempre transcrições.
É em 1920, com a Nota sobre o Bloco Mágico, que Freud finamente descreverá
o psiquismo, a vida psíquica como uma verdadeira máquina de escrita. Será então quando
Freud parecerá conciliar, enfim, a virgindade da superfície de recepção e a reserva infinita
das marcas ou traços. É, portanto, como bem o destaca Derrida, um:
Desse modo, junto ao bloco mágico, Freud, segundo Derrida, finalmente constrói uma
imagem completa do aparelho psíquico enquanto uma máquina de escrever e segundo
uma série de características que se remetem a suas antigas ponderações como, por
exemplo, o caráter protetor da folha de celuloide do bloco que se assemelharia a uma das
duas camadas do aparelho psíquico o qual funcionaria como um protetor contra as
excitações. Mas o mais singular do bloco mágico parece ser, para Freud, a tabuinha de
cera (e sua relação com as folhas mais superficiais) que representaria o inconsciente,
diferindo substancialmente dos outros suportes tentados (neurológico, telescópio,
microscópio, máquina fotográfica, papel, ardósia). É tal singularidade da interpretação
do aparelho psíquico como uma escritura, a partir do bloco mágico, que irá constituir um
“sujeito” que difere dos fundamentos que determinam o sujeito clássico com a plenitude
de sua consciência e assim inscrito na metafísica da presença e no logocentrismo. De
outro modo, Derrida pensa a partir do discurso freudiano em torno do bloco mágico e da
cena da escritura proposta por Freud outra concepção de sujeito:
143
do psíquico, da sociedade, do mundo. No interior desta cena, é impossível
encontrar a simplicidade pontual do sujeito clássico. (DERRIDA, 2002, p.222)
Desse modo, devemos nos perguntar o que vem a ser o sujeito da escritura em sua
diferença com o sujeito clássico. Derrida coloca que o sujeito da escritura não existiria se
entendermos por isso a solidão soberana do escritor, pois está se fundamentaria segundo
minha hipótese em toda uma noção de vontade autônoma e consciência plena de si
mesmo. Ao contrário, o sujeito da escritura no discurso freudiano, como é lido por
Derrida, seria atravessado por diferentes relações de forças (o bloco mágico, o psíquico,
a sociedade, enfim, o mundo) entre as camadas que o compõem. Nesse sentido, ele é
escrito escrevendo-se a partir dessas diferentes relações que o tornam um complexo de
diferenças de forças e o afastam da simplicidade pontual que configuraria o sujeito
clássico em toda a metafísica da presença que o comanda. O sujeito da escritura é também
o sujeito do inconsciente, que vem a deslocar a pretensão de um sujeito da consciência
plena e soberana, porque constituindo-se por um sistema de diferentes traços que se
inscreve em sua vida psíquica. O chamado sujeito da escritura seria articulado em sua
vida psíquica por diferentes traços advindos das demais relações que compõem suas
camadas e é por isso um sujeito da diferença e da relação, não um sujeito ensimesmado
em sua solidão ontológica. A vida psíquica, a partir do modo como Derrida a
compreende no discurso freudiano, principalmente a partir da Nota sobre o bloco
mágico, é como uma máquina de escritura de traços que não perfazem uma presença em
si mesmos, mas se constituem nas diferenças e nas relações com os outros traços. Por
isso, o sujeito no discurso freudiano, é denominado por Derrida como um sujeito da
escritura, em oposição à simplicidade do sujeito clássico. Teríamos um sujeito não
definido por uma solidão existencial, ao modo de uma mônada, mas pelas diferentes
forças- no sentido que Nietzsche entende força, como já apresentamos aqui - que o
atravessam e o marcam. A lógica do vir a ser dos diferentes e múltiplos traços que nunca
se apresentam como uma plenitude de substância mas a partir do trabalho da diferença é
o que definiria o sujeito da escritura.
Ele pode ser entendido ainda como aquele que é atravessado em suas camadas
pelas multiplicidades de forças que se inscrevem como marcas e traços em sua vida
psíquica. É, portanto, um sujeito marcado e aberto às diferentes relações de forças que o
compõem, e essa abertura também o diferencia do modo como é concebido o sujeito
144
clássico fechado na clausura de sua própria autonomia e soberania da consciência. Para
o sujeito clássico, o fora se define como uma objetualidade à sua disposição para então
se tornar uma representação para sua consciência, já para o sujeito da escritura, o
“externo” assim como o “interno” se constituem como forças que o atravessam e vão
inscrevendo suas marcas e traços na vida psíquica Justamente esse atravessamento de
forças e sua inscrição no aparelho psíquico que constituem a escritura do sujeito, forças
que não estão, como no sujeito clássico, em contraposição à sua subjetividade, mas que
a compõem.
Pode-se assinalar que na leitura de Derrida sobre Freud não haveria uma superação
do sujeito, no sentido de um ultrapassamento ou liquidação, mas sim um radical
deslocamento em sua concepção, principalmente em relação aos fundamentos do sujeito
clássico estruturado segundo as diretrizes metafisicas. Desse modo, há nas entrelinhas do
texto uma crítica à noção de sujeito clássico em sua relação fundamental com a metafísica
da presença, para então recuperar dentro do discurso freudiano uma outra concepção de
145
sujeito não comprometida com o logocentrismo. Para tal, Derrida procura ler certo
itinerário freudiano que vai de uma metafórica do traço por meio de uma linguagem
neurocientífica até uma metafórica da vida psíquica como uma escritura que se
consolida principalmente na Nota sobre o bloco mágico a partir de onde o filósofo irá
pensar o assim chamado por ele, sujeito da escritura. É, portanto, a partir da metafórica
da escritura, não da linguagem da falada, que será pensado o sujeito e seu aparelho
psíquico. Segundo Birman:
146
concebida no sujeito clássico 62. Desse modo, não é a imperativa voz da consciência que
estaria mais próxima da alma ou da vontade como o elemento fundante da vida psíquica
que caracterizaria o sujeito, mas a articulação da diferença nos traços que compõem a
escritura psíquica e o inconsciente segundo uma máquina de escrever. A importância da
máquina de escrever como metáfora do aparelho psíquico é assim descrita por Birman:
Dessa maneira, o aparelho psíquico seria como uma máquina de escrever que
conseguiria incorporar em si próprio, na sua própria estrutura, as duas
condições enunciadas desde o “Projeto de uma psicologia científica”, quais
sejam, a de possuir um pólo de recepção que pudesse receber de modo contínuo
as excitações exteriores e uma superfície de inscrição ilimitada para as ditas
excitações. Se a desarmonia entre o modelo da máquina e da escritura aqui se
silenciou, isso se deve ao fato de que o aparelho psíquico seria uma máquina
de escrever que produziria permanentemente a cena da escritura.(BIRMAN,
2007, sem paginação)
62
Em torno do sujeito e da consciência como pertencentes à metafórica da presença explica Derrida que:
“Poder-se-ia mostrar que todos os nomes do fundamento, do princípio, ou do centro, sempre designaram o
invariante de uma presença (eidos, arquê, telos, energeia, ousia; essência, existência, substância, sujeito,
aletheia, transcedentalidade, consciência, Deus, homem, etc.). (DERRIDA, 2001, p. 231)
147
imperativo da escritura como forma de afirmação de vida”. Nisso reside “tudo o que Freud
pensou da unidade da vida e da morte” (DERRIDA, 2002, p. 223), que estaria em
afinidade com aquilo que Derrida elabora em torno de a-vida-a-morte e, nesse caso,
estaria representado pelo aparelho psíquico como uma máquina de escrever. Ainda
segundo Derrida, “a máquina– e, portanto, a representação – é a morte e a finitude no
psíquico” (DERRIDA, 2002, p. 223). Assim, é um pensamento da finitude que se
estabelece a partir da metafórica da máquina, e é justamente essa finitude com o que há
de morte nela que inscreve a possibilidade da escritura como uma forma de afirmação de
vida. Nesse sentido, a-vida-a-morte estão reunidas em uma conjuntura no qual a morte
presente na máquina funda a possibilidade da escritura como afirmação de vida. A
afirmação da vida psíquica estaria intimamente relacionada com o caráter dos traços que
conformam a escritura a partir do trabalho das diferentes forças. Portanto haveria a
afirmação de uma vida fundada na morte e na finitude que constituem o aparelho psíquico
concebido como uma máquina. O que vem a tornar singular o “sujeito” que daí pode
advir: o sujeito da escritura como o nomeia Derrida é fundamentalmente inscrito na
finitude e em relação essencial com a morte, e é somente a partir dessa inscrição e relação
que pode haver então afirmação de vida constituída pelo trabalho da escritura, do traço e
das diferentes forças que os articulam. Assim como Freud o descreve e Derrida o
interpreta, o fundamento da vida psíquica na morte e na finitude do aparelho psíquico
como uma máquina de escrever molda uma outra noção singular de sujeito em que a
escritura e o traço vêm a ser elementos fundamentais da afirmação da vida. De outro
modo, no sujeito clássico, a plenitude e a presença substancial de sua consciência e
vontade se oporiam supostamente à finitude e à morte. É, portanto, a relação singular
entre a-vida-a- morte que marca de forma radical o sujeito da escritura pensado pelo
filósofo francês a partir do discurso freudiano. Assim como a-vida-a-morte (e a finitude),
são também a escritura e o traço que delimitam esse sujeito em contraposição a tudo que
no sujeito clássico se caracteriza a partir de uma metafísica da presença. É a articulação
singular que Derrida lê no discurso freudiano entre escritura, traço e diferença das forças
que posicionariam esse sujeito para além da metafísica da presença e na diferença em
relação ao sujeito clássico. Nisso residiria uma diferença radical, pois, enquanto o sujeito
clássico é concebido como uma substância e, qual uma mônada, a partir de sua
consciência, o sujeito da escritura vem a ser a partir das relações das diferentes forças que
nele se inscrevem. Portanto, com o aparelho psíquico interpretado por Freud como uma
máquina de escrever, Derrida concebe outra perspectiva do que pode vir a ser o sujeito e
148
é essa metáfora da escritura como vida psíquica do sujeito que o desloca para além da
metafísica da presença e do sujeito clássico. Preponderante aí será o papel do inconsciente
entendido como uma escritura composta por traços resultantes das explorações do
trabalho das diferentes forças e que desestabilizará o locus central que ocupa o consciente
na figura do sujeito clássico. O inconsciente será equiparado a uma tabuinha de cera (do
bloco mágico) onde se inscreverão definitivamente os diferentes traços do vir a ser da
escritura. É fundamentalmente o pensamento do traço que mobiliza a interpretação
derridiana do discurso freudiano e a partir de onde Derrida localizará um para além da
metafísica da presença. O traço, como o pensa Derrida e como o localiza no discurso
freudiano, é o elemento que não se deixa conceber dentro de uma lógica logocêntrica.
Porém ele não se constitui apenas como um elemento no discurso freudiano, sua inserção
é mais ampla, é todo um pensamento do traço que vai paulatinamente sendo tecido desde
uma metafórica neurobiológica e suas explorações até uma metáfora da escritura com a
máquina de escrever (bloco mágico). A partir da escritura do aparelho psíquico enquanto
uma máquina de escrever, o pensamento do traço se constitui com maior força e amplitude
e funciona como um elemento desconstrutor do que ainda haveria de logocêntrico no
discurso freudiano. A partir da leitura que Derrida faz do discurso freudiano, um outro
sujeito não fundando nos pressupostos metafísicos clássicos pode ser concebido e
pensado em sua vida psíquica, a qual não mais se resume como no sujeito clássico ao
consciente como uma presença, mas também é concebida como uma escritura
inconsciente desde onde se inscreve o trabalho das diferentes forças. Dada a importância
do discurso derridiana em sua leitura de Freud em torno desse outro sujeito que vem a
ser a partir do traço e da escritura, pergunta-se: o que pode ser o sujeito para além dos
pressupostos da metafísica?
É a partir das relações das diferentes forças que no sujeito se inscrevem que se
pode refletir sobre um sujeito não apenas pensando a partir da diferença, mas também da
alteridade. Em diferença com o sujeito clássico, que é concebido qual uma mônada desde
onde o mundo é representado em sua consciência como uma objetualidade, o sujeito da
escritura pode ser entendido em sua alteridade com as diferentes forças que se inscrevem
em sua vida psíquica. Neste sentido, a dicotomia clássica do sujeito entre dentro e fora é
superada por um pensamento do traço e da escritura que privilegia a diferença e a
alteridade que nunca podem ser pensadas, como bem assinala Derrida, a partir da imagem
da “solidão soberana do escritor” que refletiria a “essência do sujeito clássico”. Uma
149
outra definição do sujeito da escritura como este é pensado por Derrida a partir do
discurso freudiano seria, em contraposição à clausura do sujeito clássico, sua abertura à
diferença e à alteridade do outro, por isso afirma Derrida (2002, p.222) que “o sujeito da
escritura é um sistema de relações entre camadas [...]” É neste sentido que as relações de
alteridade do sujeito da escritura nele se inscrevem como forças que compõe traços e, por
conseguinte, escrituras, que se organizam na relação de alteridade do sujeito com o
trabalho das forças. Pode-se afirmar que, a partir da noção de traço e de escritura, Derrida
propõe uma concepção de sujeito que vem a ser junto a uma relação de alteridade com as
diferentes forças, o que difere da noção de sujeito clássico que pressupõe uma
estabilidade, essencialidade e uma interioridade fechada de sua subjetividade. Desse
modo, o sujeito da escritura viria a ser a partir do jogo da alteridade das diferentes
inscrições das forças que vão sendo compostas ao longo de sua vida psíquica. O sujeito é
concebido desde um vir a ser das forças e seus traços que não se encontrava na metafísica
do sujeito clássico. É, portanto, por meio da noção de escritura que Derrida propõe, a
partir de sua leitura de Freud, o deslocamento do sujeito clássico, concebendo assim um
outro sujeito, não mais determinado ou enclausurado pela metafisica da presença.
150
do sujeito uma reflexão mais demorada em torno da noção de escritura. Sobre a escritura
em Nietzsche Derrida (2008, p.20), em sua Gramatologia, afirma que “é impossível
desconhecer mais a virulência do pensamento nietzschiano. (...) Nietzsche escreveu o que
escreveu. Escreveu que a escritura – e em primeiro lugar a sua – não está originariamente
sujeita ao logos e à verdade”.
Derrida está sublinhado que Nietzsche não apenas escreveu o que escreveu, mas
mais radicalmente escrevera que a escritura, em especial, a sua não estaria sujeita ou
submetida originalmente ao registro metafísico do logos e da verdade. Nesse sentido, a
escritura nietzschiana é interpretada como um marco de ruptura em relação ao modo como
se propunha na filosofia a relação do sentido do texto com a verdade e o logos. Não apenas
o estilo, como já debatido no segundo capítulo, com que escreve Nietzsche o posiciona
de um outro modo em relação à verdade e ao logos, mas em sua escritura também se
encontram uma reflexão e uma problematização dessa relação crítica. Derrida chama
atenção para o fato de que Nietzsche não pensa a linguagem (e a escrita) enquanto meio
de significação ou de desvelamento da verdade, mas sim a partir de seu caráter
metafórico. Pode-se afirmar que a determinação da linguagem, de toda linguagem, em
seu sentido metafórico, articula o pensar nietzschiano. Em Sobre a verdade e mentira no
sentido extramoral, Nietzsche pondera sobre o caráter metafórico de toda e qualquer
linguagem e sua gênese metafórica:
Para Nietzsche a linguagem não desvelaria a essência originária das coisas, pois
toda a linguagem é meramente metafórica, um artifício “inadequado” se pensarmos
adequação, em seu sentido filosófico, como o dizer a essência das coisas. Se nada
antecede a operação metafórica, então não há uma origem essencial a ser correspondida,
mas haveria segundo Nietzsche, um esquecimento da experiência primordial de
metaforização, o que possibilitaria a criação do conceito e com ele a produção da
“verdade”. Com isto os conceitos e a “verdade” são tomados como criações, produtos de
uma gênese metafórica esquecida e não advindos de um processo racional e consciente
transcendental a operação metafórica própria da linguagem. E ainda, o princípio lógico
151
de não contradição fundador da produção dos conceitos, seria secundário e posterior à
multiplicidade e à diferença existentes no mundo. A conceituação adviria de um desejo
de uniformização e igualação que acabam por obliterar a multiplicidade e diferença:
Todo conceito nasce por igualação do não igual. Assim como é certo que nunca
uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é
formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um
esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na
natureza houvesse algo, que fosse ‘folha’, uma espécie de folha primordial,
segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas (...), mas por mãos
inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno
como cópia fiel da forma primordial. (NIETZSCHE,VM,P.48)
Ora, o homem esquece sem dúvida que é assim que se passa com ele: mente,
pois, da maneira designada, inconscientemente e segundo hábitos seculares –
e justamente por essa inconsciência, justamente por esse esquecimento, chega
ao sentimento da verdade. (NIETZSCHE, VM,p.534)
152
Portanto toda gênese da verdade (pois o que está em jogo é também a afirmação
de que toda verdade tem uma gênese, um vir a ser “ordinário” em comparação com o
status sublime e transcendental da verdade como é concebida tradicionalmente) pressupõe
oculta e esquecida em sua unidade, objetividade e pureza uma multiplicidade de
“metáforas, metonímias, antropomorfismos”. Nesse sentido, a verdade não se opõe à
metáfora, a ilusão (e ao erro), ela é sim considerada uma ilusão, porém esquecida como
tal e ainda afirmada pela metafísica tradicional como oposta ao ilusório. Em jogo, no
discurso de Nietzsche, pode-se afirmar, está toda uma lógica da contaminação, pois a
verdade que é habitualmente afirmada como pura e objetiva é, em verdade, constituída e
contaminada por aquilo que se lhe parecia opor e excluir, ou seja, as metáforas e ilusões.
Nietzsche ainda ressalta que justamente pelo longo tempo de seu uso as verdades
aparecem apenas como “puras” se opondo em aparência ao seu caráter originalmente
ilusório, mas continuam a ser metáforas, porém gastas e sem a força sensível que
caracterizaria uma metáfora e por isso aparentando estar em oposição ao mundo sensível.
Derrida, em sua Gramatologia, propõe toda uma concepção de linguagem como
chave para a compreensão do pensamento nietzschiano, já que sua noção de linguagem
abalaria os alicerces fundamentais da metafísica. Nesse sentido, o filósofo propõe que
Nietzsche não se mantivera:
153
sentido do ser ou dos entes que em verdade não há. Derrida aponta ainda que o
significante (em sua condição metafórica) para Nietzsche (e no texto de Nietzsche) estaria
livre de sua dependência e derivação em relação ao logos e à verdade. Nesse sentido, o
significante não é mais pensado como subordinado ao sentido do logos e da verdade. Sob
esses aspectos, o filósofo argelino, em contraposição à interpretação heideggeriana,
afirma que o pensamento nietzschiano não teria permanecido na clausura da tradição
metafísica, mas que, ao contrário, em sua força, especialmente a partir do pensamento
crítico em relação à linguagem, produziria críticas e estratégias capazes de desconstruir o
pensamento metafísico. Com o deslocamento da linguagem de sua referencialidade ao
sentido, ao logos e à verdade a partir de sua condição meramente metafórica, o
pensamento de Nietzsche se afasta de modo crítico da tradição metafísica que entende de
um modo geral, a linguagem a partir de sua subordinação ao sentido, ao logos e à verdade.
É, portanto, a partir da crítica e da concepção de Nietzsche da linguagem e de sua relação
com o conceito e a verdade que Derrida sublinha a ruptura do filósofo alemão com o
pensamento metafísico. O filósofo argelino reconhece que, com a concepção crítica da
linguagem como metafórica e operação “originária”, Nietzsche abalaria o estatuto
tradicional do conceito e da verdade. Desse modo, Derrida sinalizaria que pela via de uma
concepção crítica da linguagem, como colocada por Nietzsche em “Sobre verdade e da
mentira no sentido extramoral”, se poderia propor uma “desconstrução” dos alicerces da
tradição metafísica e, proponho, da concepção de sujeito clássico nesta incluída. Pode-se
afirmar que a partir de sua crítica à linguagem no sentido da tradição metafísica Nietzsche
conceberia uma outra posição do sujeito em relação ao conhecimento, já que o que haveria
“originalmente” seria a interpretação como um texto que por sua vez operaria sempre
desde o registro metafórico 63. Com sua concepção da linguagem, Nietzsche, por
consequência, acabaria por afirmar uma crítica à posição clássica do sujeito do
conhecimento com sua objetividade e sua relação, através da linguagem, com o conceito
e a verdade. Para o autor, não haveria mundo como objetualidade de um lado e sujeito do
outro, mas desde sempre a assunção de uma interpretação (e perspectiva) metafórica e
“originaria”. Com isto barra-se a ideia um sujeito capaz de aceder à verdade a partir de
sua consciência, mas concebe-se um “sujeito” capaz de produzir, criar interpretações,
perspectivas a partir de seus afetos. Portanto, a “verdade” (que se quereria absoluta)
pode ser entendida como uma interpretação entre outras, uma perspectiva (o que a desloca
63
O texto como interpretação não se vincularia ao desvelamento de uma verdade, mas sim a constituição
de uma perspectiva como pretendo desenvolver a seguir.
154
de seu caráter absoluto, puro e objetivo) no sentido de que temos a partir de toda e
qualquer linguagem apenas o jogo de metáforas interpretativas.
155
em direção ao perspectivismo, Nietzsche consolidaria uma virada para além da metafisica
não apenas em relação a linguagem mas também ao sujeito concebido metafisicamente.
Proponho que quanto ao seu caráter funcional aquilo que Derrida chama de leitura
e também escritura como “operação originária” em Nietzsche equivaleria à sua noção de
interpretação. Portanto a interpretação seria no discurso de Nietzsche uma escrita e uma
leitura de primeira ordem e por sua vez toda escrita e leitura pressuporiam um trabalho
interpretativo. A interpretação, segundo Nietzsche, se opõe fundamentalmente à noção
positivista dos fatos: “Contra o positivismo, que permanece no fenômeno: ‘só há fatos’,
diria eu: não, justamente não há fatos, apenas interpretações” (NIETZCHE, KSA XII, 7
[60]). Justamente a não existência de fatos equivale a colocar de certo modo o real, a
realidade dos fatos e os fatos da realidade como problemas e não como algo dado e
estabelecido. Afirmar que não há fatos equivaleria a destituí-los como origem do
conhecimento, havendo apenas interpretações que atuariam “como se” fossem
originárias. Um outro ponto fundamental para pensar a questão da interpretação em
Nietzsche é que o filósofo não situa a origem das interpretações na consciência, que é
tradicionalmente associada à sede do conhecimento, mas na luta dos impulsos que são
relacionados aos atos interpretativo, não havendo portanto nenhum sujeito que
originalmente e seguramente produzisse interpretações. Nessa direção, Nietzsche afirma
que “São nossas necessidades que interpretam o mundo (...) (NIETZCHE, KSA XII, 7
[60]) e ainda “Quem interpreta? – nossos impulsos” (NIETZSCHE. KSA XII, 2 [190]).
Haveria, portanto, uma multiplicidade de impulsos que se digladiam por impor sua
interpretação e é nesse sentido que, diferentemente de como pensa a tradição enraizada
em uma metafisica do sujeito, para Nietzsche os impulsos são os elementos fundamentais
na produção das interpretações. “Originariamente” não teríamos nenhuma realidade
(nenhum fato) anterior a interpretação, mas sim os impulsos e suas interpretações ou
perspectivas que atuariam como uma operação “originaria”. Desse modo, proponho que,
a partir da noção de interpretação dos impulsos, a noção de “leitura”, e também de escrita,
como propõe Derrida, é acentuada em sua radicalidade crítica em relação à tradição
metafísica e sua concepção de um sujeito estruturado como consciência autônoma. Com
156
isso nos aproximamos da noção Nietzschiana de perspectivismo como forma de
“conhecimento” 64:
64
Como aponta Thiago Mota (2010, p.15), “Apesar disso, o uso de “Perspektivismus” em Nietzsche se
revela surpreendentemente raro. Em geral, apontam-se apenas três momentos de emprego efetivo do termo
na vastidão de seus escritos publicados e póstumos. Bem mais frequente é, por outro lado, a utilização de
“perspectiva” (“Perspektive”) e seus derivados, como perspectivístico, empregado tanto como adjetivo,
“perspektivistische” (GM/GM III, 12, KSA 5.365), quanto como substantivo, “das Perspektivistische”
(JGB/BM, Prólogo, KSA 5.12), que ocorrem de modo cada vez mais frequente a partir de 1885.” A partir
dessa breve análise do uso do termo perspectivismo e suas derivações, considero que o legado profícuo em
relação ao termo nos possibilita problematizá-lo dentro do contexto que proponho.
157
na crítica da noção moderna de subjetividade, que Nietzsche entende como obra do
processo de substancialização resultante de nossa crença na linguagem”. Sem dúvida, a
crítica de Nietzsche ao sujeito (do conhecimento) moderno, assim como é concebido por
Descartes, resultante de uma crença na gramática e na unidade da palavra como conceito
para enfim ser substancializado e logicizável, constitui-se como base do perspectivismo
e é fundamentalmente contra essa “perigosa fábula” que se posiciona seu discurso. Ao
meu ver a concepção de participação dos afetos na atividade interpretativa parece ser a
chave para compreender aquilo que pode ser o conhecimento perspectivo. Já foi
abordado, no primeiro capítulo, que mesmo a atividade de conhecimento do intelecto na
consciência é o resultado “superficial” de uma longa luta e embate entre múltiplos
impulsos ou afetos; resta, portanto, investigar essa outra relação entre o perspectivismo
e os afetos. Nietzsche conceberia como característica do conhecimento perspectivo a
afirmação da multiplicidade e da diferença entre os afetos que se estabelecem a partir
do vir a ser. Cabe indagar contudo se essa multiplicidade de afetos e
perspectivas(diferentes olhos, diferentes afetos)se dá, conforme a interpretação que
proponho do texto de Nietzsche, em diferentes “sujeitos” (diferentes perspectivas porque
diferentes “sujeitos”) ou se ocorre em um mesmo “sujeito” . Penso que as duas
suposições estão corretas, ainda que a segunda hipótese, que busco enfatizar, seja menos
desenvolvida pelos intérpretes que se debruçaram sobre o perspectivismo em Nietzsche
.Pode-se supor a partir da passagem de A genealogia da moral que só seria possível um
“sujeito do conhecimento perspectivo” a partir da inscrição da multiplicidade e combate
dos diferentes afetos ou impulsos que participariam, desde a atividade inconsciente, da
criação e construção do conhecimento. Nietzsche (GC, §354) afirma “que nosso
pensamento é continuamente suplantado, digamos, pelo caráter da consciência”, nesse
sentido, o que filósofo alemão entende por pensamento se distingue radicalmente de sua
fundamentação na consciência como a tradição a concebe. Se o sujeito do conhecimento
ao menos a partir de Descartes e Kant é concebido como o sujeito racional da
consciência, Nietzsche, com sua noção de participação dos impulsos e afetos na produção
do conhecimento e do pensamento em geral, proporia a inscrição da atividade do
inconsciente assim como do próprio corpo na produção do conhecimento, desse modo
Marton (2006, p.118) afirma que “no limite, é todo o corpo que conhece e, ao fazê-lo,
simplesmente desempenha uma atividade fisiológica”65 .
65
Retomo mais adiante o problema central do corpo em relação ao conhecimento.
158
Por tudo o que implica a noção de perspectivismo, cabe perguntar se é possível
ainda conceber um “sujeito do conhecimento”. Talvez, apenasse se o sujeito for pensado
como radicalmente deslocado de seus alicerces e fundamentos clássicos. Para tanto
Nietzsche, no lugar de pensar um “sujeito” (do conhecimento) que pressuporia uma
unidade e identidade fixa, propõe, como já visto no primeiro capítulo, a hipótese de uma
“multiplicidade de sujeitos”, de um “coletivo de almas" no mesmo corpo que
possibilitariam uma multiplicidade de perspectivas no mesmo “indivíduo”. Assim como
a relação com o passado a partir do homem “forte” possibilita diferentes vivências,
“abrindo-o” para desejos e valores de outrora e permitindo-lhe a experiência de outras
perspectivas, pois o homem “cuja alma almeja viver o inteiro compasso dos valores e
desejos até então havidos, e haver velejado as praias todas desse “mediterrâneo” ideal
[...] para isso necessita mais e antes de tudo uma coisa, a grande saúde” (NIETZSCHE,
EH, p, 84), pelo perspectivismo o “sujeito múltiplo do conhecimento” experimentaria o
jogo e a luta de interpretações própria dos diferentes impulsos66. Nesse sentido, se há um
“sujeito múltiplo do conhecimento perspectivo”, este se constituiria junto ao vir a ser da
pluralidade de forças e afetos que lhe atravessam compondo e decompondo sua(s)
identidade(s) sempre provisórias, possibilitando ao longo do tempo a constituição de
diferentes perspectivas sempre parciais.
159
quem interpreta [Ausglen] o mundo; nossa pulsões e seus prós e contra. Cada
pulsão é uma espécie de ambição despótica [Herrschucht], cada uma tem a sua
perspectiva, perspectiva que a pulsão gostaria de impor como norma para todas
as outras pulsões (NIETZSCHE, VP, §260)
Pode-se considerar que pelo hábito advindo de nossa herança metafísica, temos a
tendência a supor sempre por trás de uma ação um sujeito, o mesmo aconteceria em
relação à interpretação, onde suporíamos metafisicamente um sujeito-intérprete, e não
apenas um sujeito qualquer, mas um “puro sujeito do conhecimento” consciente e
racional. Categoricamente Nietzsche afirma que o sujeito não é algo dado ao modo de
uma substância, como já problematizado no primeiro capítulo, mas, inventado, poesia e
hipótese necessárias para determinada conservação de um modo de existência.
Problematizado o sujeito como hipótese e poesia “desnecessária”, abre-se a questão de
onde então advêm os pensamentos e as interpretações se não há em realidade um sujeito
que os fundamente. Mais radicalmente é preciso perguntar como é possível uma
interpretação sem o interesse de um intérprete.
Ora, Nietzsche afirma que são nossas necessidades, nossas pulsões que
interpretam, não um “eu” a partir de sua consciência, portanto as interpretações se dão a
partir do registro inconsciente, já aparecendo aqui como um tipo de escritura de diferentes
forças. Se há um conhecimento perspectivo, deve-se levar em consideração que, se a
maior parte da atividade das pulsões ocorre de modo inconsciente, então a atividade do
conhecimento não pode ser reduzida à esfera da consciência e o que chega à consciência
não pode ser atribuído a um “puro sujeito do conhecimento” e tampouco a mera atividade
da razão posto que sua gênese é outra e se dá no campo de luta das pulsões, desejos e
afetos. Estaria Nietzsche pensando um conhecimento vinculado a certa escritura
inconsciente das forças diferenciais? Mas conhecimento não se define tradicionalmente
como um exercício estritamente intelectual da consciência de um sujeito racional 67?
67
Retomemos a afirmação que Nietzsche faz acerca dos filósofos e seus pensamentos, “O pensar
consciente, em particular o do filósofo, é a espécie menos vigorosa de pensamento e por isso talvez o
filósofo pode se enganar mais facilmente sobre a natureza do conhecer!” Podemos questionar se haveria
espécies mais vigorosas de pensamento, se Nietzsche com o perspectivismo não estaria propondo
justamente um pensamento mais vigoroso por ser mais vinculado aos afetos, se a escuta dos afetos, portanto
de suas interpretações, não possibilitaria uma expressão mais vigorosa dos pensamentos.
160
A “pureza do sujeito do conhecimento” criticada por Nietzsche estaria relacionada
entre outras coisas a sua posição afastada e salvaguardada perante o vir a ser dos afetos e
do mundo sensível, somente desse modo, sob esse registro, poder-se-ia conceber um
“conhecimento em si” que garantisse o acesso ao desvelamento da verdade. Porém, a
partir da noção de corpo atravessado por uma multiplicidade de forças e afetos, Nietzsche
concebe um outro modo de posicionamento do “sujeito” frente a um conhecimento
deslocado de seus fundamentos clássicos. Com sua crítica feita a marteladas do edifício
moral do conhecimento que sustenta a noção tradicional de verdade, pautada em uma
concepção metafísica da linguagem, o discurso nietzschiano permitiria a abertura para
uma outra concepção de “sujeito” não mais alheio a dor, vontade e tempo. Tudo aquilo
que vem a ser, e para Nietzsche tudo (a efetividade) vem a ser, se articula a partir da
vontade, da dor e do tempo. Desse modo pode-se conceber também um “sujeito” que vem
a ser a partir dos diferentes impulsos e afetos que o atravessam e lutam para a imposição
transitória de sua perspectiva, pois em questão está uma concepção de vida cujo sentido
não reside em um telos final, mas na dinâmica e na articulação de um jogo e luta de forças
próprios da vontade de potência que só pode transitoriamente alcançar uma hierarquia de
forças para em outro momento constituído no jogo e na luta transfigurar-se em outra
hierarquia de forças e consequentemente impor ou expressar uma perspectiva. Contudo
deve-se levar em conta que, em uma determinada hierarquia, na qual um impulso alcança
soberania e por isso impõe sua perspectiva sobre outros, está em jogo uma multiplicidade
de outras perspectivas subordinadas que, em certo momento da luta, poderão se impor.
Portanto só há sentido em conceber a perspectiva a partir de um jogo múltiplo de
diferentes perspectivas e sublinhando a provisoriedade de sua constituição que nunca
pode expressar-se como a “fixidez” de uma verdade absoluta. Dito de outro modo, só se
institui uma perspectiva a partir do jogo de forças e impulsos com outras perspectivas,
portanto dentro de um caráter pluralista. Nietzsche parece demarcar esse caráter pluralista
do conhecimento perspectivo por intermédio da expressão “quanto mais afetos, quanto
mais olhos [...]” 68, nesse sentido justo por ser uma perspectiva entre outras possíveis, ela
nunca têm o valor de uma verdade absoluta que negaria outras proposições de “verdade”
como falsas ou erro; só há uma perspectiva porque existem perspectivas. Silvia Pimenta,
em seu artigo “Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo”, afirma que:
68
Neste sentido, pode-se pensar que é a partir da dinâmica dos diferentes afetos ou impulsos que adviria
todo o múltiplo jogo de máscaras e estilos adotados por Nietzsche.
161
a noção de um conhecimento perspectivo acarreta a ideia de pluralidade ou de
multiplicidade de pontos de vista. O perspectivismo é aquilo “em virtude de
que todo centro de força — e não apenas o homem — constrói todo o resto do
mundo de seu próprio ponto de vista. ” Este conjunto não pode constituir uma
unidade porque envolve perspectivas contraditórias, cuja soma é incongruente.
Dito de outra forma, se o caráter determinado de toda perspectiva exclui a
possibilidade de um conhecimento ilimitado, sua multiplicidade exclui toda
hipótese de síntese. (PIMENTA, 2014, p.214)
Nesse sentido, afirma Nietzsche que: e já rimos quando encontramos “homem e mundo” colocados lado
69
a lado, separados pela sublime pretensão da palavrinha “e”!(NIETZCHE, GC, §3) Ambos, mundo e
homem, seriam pensados como realizações de um mesmo jogo de forças da vontade de poder.
162
mas o jogo de impulsos. Sendo assim é preciso considerar que só se pode pensar para o
conhecimento perspectivista um “sujeito” descentrado como algo que vem a ser enquanto
uma multiplicidade de sujeitos. Em seu artigo sobre o perspectivismo, Pietro Gori e
Paolo Stellino (2014, p.115) afirmam que “A ideia de um ‘sujeito singular’ é, portanto,
considerada por Nietzsche como ‘não necessária’ a partir do momento em que se assume
o ponto de vista mais detalhado de uma multiplicidade de ‘sujeitos’ que agem abaixo do
plano consciente”.
Ora, para Nietzsche, por baixo do plano consciente, o que existe, ou melhor,
acontece é a luta entre os diferentes impulsos e afetos. Desse modo, cabe perguntar se
é a multiplicidade de afetos ou impulsos e o combate que estes estabelecem para impor
sua interpretação que permitem Nietzsche a pensar a hipótese de abaixo do plano
consciente agir uma multiplicidade de “sujeitos”. Segundo minha hipótese, é justamente
essa multiplicidade de afetos e o combate por eles estabelecido que sugerem ao filósofo
considerar não mais a ideia de um sujeito no singular fundamentado metafisicamente
como uma unidade, mas uma multiplicidade de sujeitos que se efetivariam não como
pensa a tradição, no plano da consciência, mas a partir de um registro inconsciente.
Sujeitos sempre pensados no plural que não se reduziriam a uma nova atomização, pois
também são concebidos a partir do vir a ser e da alteridade que se dá na relação tensional
de combate estabelecida por eles .
70
Fragmento póstumo 9[8]. Outono de 1998, opcit, VXIII, p.22
163
consequentemente a atividade inconsciente, abre-se a possibilidade para outras formas de
conhecimento para além do meramente teórico, consciente e racional.
Um outro ponto a levar-se em conta é a relação desses afetos com o mundo e seus
“objetos”. Na origem do conhecimento perspectivo temos a inscrição dos afetos, já que,
parafraseando Nietzsche, não poderíamos descer ou subir a nada além da realidade de
nossos afetos. Sendo assim, a impossibilidade de acessarmos uma “realidade” por trás de
nossos afetos não seria exatamente uma falta, mas uma constatação. Por só termos nossas
perspectivas e afetos, não teríamos acesso a um sentindo “oculto” do mundo, mas pela
afirmação dos caráter perspectivo do conhecimento, abrir-se-iam “infinitas”
possibilidades de sentido para o mundo, Nietzsche afirma no parágrafo 374 de A gaia
ciência intitulado Nosso novo ‘infinito’” que versa sobre o caráter perspectivista da
existência que: “o mundo tornou-se novamente infinito para nós: na medida em que não
podemos rejeitar a possibilidade que ele encerre infinitas interpretações. Porém pela
visada perspectiva nunca poderíamos alçar um ponto de vista exterior ao mundo e ao
corpo capaz de abarcar uma verdade absoluta. De outro modo, podemos dizer que não há
um texto com um sentido original a ser interpretado e apreendido, mas apenas
perspectivas, pois, como afirma Nietzsche (BM §22) em relação ao discurso da física, mas
que podemos abranger para toda a esfera do conhecimento e cultura: “isso é interpretação
e não texto” (Por outro lado, poderíamos dizer que, se existem textos com o qual lidamos
cotidianamente, estes não se confundem com o mundo, não são originais, mas meras
interpretações). Portanto o conhecimento não é uma “des-coberta” (no sentido de uma
retirada dos véus) ou mesmo um desvelamento da verdade ou do mundo, mas uma criação
perspectiva, não de um sujeito consciente e racional mas do jogo perspectivo das pulsões.
Pode-se refletir então que o caráter perspectivo do conhecimento performa uma
posição crítica ao correspondencialismo filosófico metafísico. Clark, intérprete do
perspectivismo, aponta que:
Tal como eu o interpreto Nietzsche concorda com Kant no fato de que não
conhecemos coisas em si e no fato de, contrariamente a Descartes, a verdade
que somos capazes de descobrir não satisfazer à teoria metafísica da
correspondência. No entanto, Nietzsche é anti-kantiano no fato de negar a
possibilidade de pensar a coisa em si. Todavia, parece apropriado designar essa
posição como “neokantiana” porque chegou a ela pela aceitação e longa
reflexão acerca da recusa de Kant em aceitar o conhecimento da coisa em si.
(CLARK, 1990, p. 61 Apud MOTTA, 2010 p.225)
164
De fato, Nietzsche, com seu perspectivismo se contrapõe a Descartes e à longa
tradição filosófica que sempre procurou a forma mais adequada e fundamentada de
garantir a correspondência entre a verdade e o “mundo” pelo conhecimento, porém
aproximar o filósofo alemão de um neo-kantismo parece, ao meu ver, uma certa distorção
do discurso nietzschiano; Nietzsche afirma que não conhecemos a coisa em si não por
uma dificuldade ou falta de nosso aparelho intelectual, mas justamente porque não há
algo como uma “coisa em si”, a coisa está para sempre perdida... A busca pela coisa em
si é sempre uma busca para um além da perspectiva, da nossa condição de finitude, mas
através do caráter perspectivo do conhecimento que Nietzsche propõe alçaríamos a uma
nova forma de conhecimento enquanto criação e não descoberta, como ainda aponta
Clark. Nessa direção Pimenta (2004, .215) afirma que: “Uma perspectiva é não apenas o
que limita nosso campo de visão, mas sobretudo aquilo que o torna possível : pretender
suprimi-la para alcançar as coisas “em si mesmas” seria um absurdo comparável a querer
suprimir os olhos para ver melhor. ” Nesta direção, a perspectiva que nos limita é ao
mesmo tempo o que possibilita nosso campo de visão em relação a algo. Na “origem” o
que temos são afetos e perspectivas relacionadas a alguém que os experimenta frente a
um “objeto”; querer suprimi-los para obter o conhecimento das coisas “em si mesmas” é
querer ir além da experiência fundamental do perspectivismo que é o nosso lidar apenas
com “aparências” (como aquilo que vem a aparecer de determinado modo) e “verdades”
(no sentido já discorrido no segundo capítulo) que não escondem nenhuma verdade ou
essência por detrás. Pelo perspectivismo, nega-se a pretensão de termos um acesso
transcendental através da alma, do espírito ou da consciência que nos permita um
conhecimento absoluto para além de nossa perspectiva, de nossa condição e do jogo de
“aparências” das perspectivas. Nesta direção , sublinha Scarlett Marton que:
165
perspectivismo se mostra radicalmente crítico à noção de puro sujeito do conhecimento
estabelecida por Descartes e mantida, ainda que problematizada, por Kant, pois, de certa
maneira, não é o sujeito autocentrado com sua consciência que estabelece ou cria
perspectivas, mas justamente a luta e jogo inconscientes das diferentes pulsões e afetos
para impor suas interpretações. Levando em consideração que com o perspectivismo o
conhecimento, entendido a partir da gênese da atividade pulsional, tornar-se algo mais
amplo do que o racionalizar consciente, abre-se o caminho para diferentes expressões das
atividades pulsionais. Desse modo, outras atividades como, por exemplo, a artística, que
não necessita estritamente da tradução de suas atividades para a esfera racional
consciente, podem então tomar parte e serem consideradas como formas perspectivas do
conhecimento. Nietzsche (1969, p.63), com sua “escuta ativa” à inscrição dos diferentes
impulsos na gênese do conhecimento, aproximaria este da imagem do centauro parido na
qual ciência, arte e filosofia se entrecruzam a partir da relação de diferentes afetos.
166
avaliação que as determina sendo produto, não de um sujeito, mas de impulsos - e estes
podendo ser compreendidos em dois tipos, aqueles que negam e aqueles que afirmam a
vida -, teríamos então esta última como critério para a avaliação das perspectivas. Deste
modo, do ponto de vista vital, que é o da vida como vontade de potência, certas
perspectivas podem ter valores afirmativos, outras negadoras dependendo do impulso ou
grupo de impulsos afetivos que a regem. Que toda perspectiva tenha seu valor, isto é um
ponto, mas nem por isso seus valores são equivalentes (pelo contrário, todo valor difere
de outro valor), e o que pode diferenciar mais radicalmente o valor de uma perspectiva
de outra é a avaliação, do ponto de vista da vida, de que impulso as engendra. Nesse
sentido, o perspectivismo não deve ser entendido como um simples relativismo dos
valores, mas em articulação com a noção de vida, enquanto vontade de potência, podendo
ser considerado como um modo de conhecer que não mais articulado pela verdade, como
valor dos valores, toma da vida o valor de suas interpretações. Isso quer dizer, que toda
interpretação e perspectiva pode ser ativa ou reativa, nobre ou baixa, dependendo do
impulso ou dos impulsos afetivos que a articulem, já que estes podem negar ou afirmar
a vida. Assim, o valor de toda e qualquer perspectiva não é medido pelo verdadeiro ou
pelo falso, mas pela potência de seus impulsos afetivos de afirmarem ou não a vida.
167
impulsos e como afirmar os afetos e impulsos? Seria o caso de uma mera adesão aos
impulsos? Patrick Wotling, analisando um trecho de Crepúsculo dos ídolos, afasta a ideia
de uma simples adesão aos impulsos e paixões:
168
razão como polo oposto. Portanto com a terminologia dos afetos Nietzsche performaria
uma estratégia para escapar do dualismo típico do pensamento metafísico:
Nessa direção, Nietzsche não apenas critica o dualismo metafísico entre paixão e
razão, sensível e inteligível, como também aponta para uma intrínseca relação não
dicotômica entre ambos, quando então a afetividade passa a ser concebida como o
fenômeno primeiro desde onde os pensamentos, as representações intelectuais, os juízos
e os conceitos tem sua gênese. Como não mais pensadas em um esquema dicotômico, a
razão e os afetos são deslocados radicalmente de seus topos e de suas funções assim como
os organiza e delimita a metafísica tradicional. No mesmo passo em que ocorrem esse
deslocamento topológico e qualitativo são criticadas filosofias, como a de Hume, que
buscam restabelecer o lugar da paixão frente à razão mantendo ainda em relação à paixão
a ideia de fundamento, unidade e sua ligação com a verdade:
Ao pensar a paixão sob o termo mais primordial dos afetos, Nietzsche não os
conceberia como um fundamento do pensamento, mas como uma dinâmica que se efetiva
a partir de uma multiplicidade que não produziria uma verdade absoluta, mas somente
perspectivas. Há de se notar que em diferença à noção clássica de paixão demarcada por
169
uma passividade, os afetos performariam uma atividade própria71, a interpretação.
Segundo Wotling (2003, p.15) Nietzsche pensaria: “a positividade do afeto – seu caráter
ativo, engendrador e, digamos, interpretativo”. Se Nietzsche diz algo da paixão por meio
de sua teoria dos afetos o faz repensando o status daquela. Portanto a paixão sobrescrita
à teoria dos afetos é radicalmente reavaliada para além da topologia que lhe circunscreve
seu lugar dentro de uma hierarquia que a desvaloriza. Cabe, portanto, desdobrar o que
seria uma teoria dos afetos no discurso Nietzschiano para avaliarmos a radicalidade e a
amplidão que alcançam em relação ao esquema metafísico. Em torno dos afetos, Wotling
pondera que:
71
Os afetos não seriam apenas ativos, pois teriam a capacidade de ser afetados, nem passivos nem ativos,
eles sintetizariam os dois processos: “Por oposição à noção clássica de paixão, o afeto é um conceito que
permite sintetizar dois processos que, sem razão para tanto, consideramos comumente como distintos: ele
é tanto sensibilidade, isto é, capacidade de ser afetado, como capacidade de afetar ou ‘agir sobre’’.
(WOTLING, 2003, p.18)
170
que adquire a dimensão inconsciente dos afetos e sua atividade interpretativa no discurso
nietzschiano do conhecimento perspectivo, sendo o pensamento que chega à consciência
no conhecimento teórico e filosófico considerado como apenas um mero efeito superficial
que traduziria de forma simplista a longa gênese inconsciente da luta dos afetos para
imporem suas perspectivas. É através da afirmação dessa esfera afetiva inconsciente na
produção do conhecimento que encontraremos um outro sujeito não mais soberano de si,
“sujeito” que irá se relacionar de outra maneira com a gênese do conhecimento a partir
de uma inconsciência que o desaloja de seu lugar clássico. Desse modo, a partir de um
perspectivismo afetivo, transformam-se os valores do que pode ser o conhecimento.
Nessa direção, afirma Wotling que:
Desse modo, posso colocar não existem “coisas em si” a serem descobertas por
detrás das interpretações, mas afetos investidos sobre as coisas, fazendo-as serem vistas
sob novos ângulos, novos brilhos e medidas. Torna-se exemplar para a atividade
perspectiva certa prática artística de produzir perspectivas e novas iluminações acerca das
coisas. Em “o que devemos aprender com os artistas”, Nietzsche nos ensina a aprender
com essa prática:
72
Cf. NIETZSCHE, GC, § 299
171
do artifício capazes de produzir sentidos, diferentes modos de aparecimentos das coisas.
Multiplicam-se os ângulos e os pontos de vista a partir dos afetos com que podem brilhar
(aparecer) de forma diferente as “coisas”. Por exemplo, o que para nós é a verdade, em
tempos de outrora era outra coisa, haviam outros afetos investidos, desse modo:
A partir de um belo paradoxo Nietzsche sugere que quanto maior o domínio sobre
as paixões, sem enfraquecê-las ou extirpá-las, pela soberania do querer (enquanto um
172
modo de afeto e não meramente como é usualmente entendido o querer enquanto uma
atividade sob o comando de um sujeito consciente) maior a liberdade que se pode
conceder às paixões sem ser por elas “escravizado”, tiranizado. Em suma, é preciso certa
potência de autoridade (afetiva) capaz de providenciar uma hierarquia que coloque a seu
serviço os “monstros esplendidos” que são as paixões. Sublinha-se que, no sentido do
conhecimento perspectivo, conhecer significa, segundo Wotling, poder interpretar um
afeto (um sentido) que, no entanto, é aquele que produz interpretações:
173
filósofos não puseram sua marca nesse preconceito com sua doutrina da
imutabilidade do caráter? (NIETZSCHE, A, §560)
Ao modo de um jardineiro, ensina Nietzsche, nos é permitido uma outra lida com
as paixões, na qual há um tanto de artifício, engenho e um tanto de caos, de selvagem
natureza. Necessário (no perspectivismo) torna-se o cuidar e o cultivar afetivo das
paixões, de suas sementes e crescimento. De outro modo, extirpá-las pelas raízes é
impedir o crescimento e o viço do ponto a partir do qual vem a ser os pensamentos, as
perspectivas e o caráter pessoal considerado em sua mutabilidade. Não à toa Nietzsche
nos fala dos pensamentos dos filósofos como a espécie menos vigorosa de pensamento·,
pois mais desértico e menos diverso é o terreno onde viçam seus pensamentos,
exatamente pelo desejo de aniquilamento das paixões em nome da razão e do
“monocultivo” da vontade de verdade. Por outro lado, o jardim onde vigora o caráter
perspectivo do conhecimento é mais amplo em diferentes afetos que lutam por impor as
suas diferentes perspectivas como plantas um tanto selvagens que buscam e lutam por seu
espaço aberto para aparecer ao brilho da luz solar. Por meio do perspectivismo, há sempre
uma “policultura” de diferentes afetos e por isso uma pluralidade de perspectivas como
frutos seus. A partir de uma relação afetiva com os afetos (é preciso manter a redundância)
cultivados, o pensador não apenas deixa virem á luz diferentes perspectivas, como
também e necessariamente se abre para uma contínua transformação de seu caráter e
identidade, pois, o pensador “é sempre outro” (NIETZCHE, GC. §307) desde a dinâmica
de alteridade dos diferentes afetos, e, portanto, não é partícipe da “doutrina da
imutabilidade do caráter” peculiar ao filósofo dogmático que sufocaria, em nome da
vontade de verdade, a dinâmica mutável das paixões e afetos . De outro modo, ser “sempre
outro”, “mudar de pele” porque atravessado por diferentes afetos perspectivos seria
característica do pensador/pensadora que não se permite a petrificação das ideias, dos
ideais e de seu caráter como algo fixo e imutável. O conhecimento perspectivo, nessa
direção, está remetido não à lógica da razão e sua relação desvalorizadora dos afetos, mas
à vida73 em seu vir a ser como uma multiplicidade de forças em luta que se concretizam
no homem sob a forma dos afetos. Nesse sentido, o perspectivismo, além de estabelecer
um outro modo de conhecimento, concebe ao mesmo tempo um diferente modo de
relação com as forças afetivas, instintos e paixões que nos atravessam e continuamente
73
Ver Nietzsche, GC, § 307.
174
transformam a partir de suas alteridades a identidade subjetiva enquanto algo que vem a
ser. Conhecer não mais se subordinaria, assim como é entendido por Nietzsche, ao
princípio da identidade e igualação assimiladora da razão e da consciência, mas a um jogo
com diferentes perspectivas, e, nesse sentido, alteridades de “olhares” de “múltiplos
sujeitos” em um mesmo “indivíduo” se instituiriam a partir da dinâmica inconsciente dos
diferentes afetos perspectivos. O conhecimento passa a ser engendrado não mais a partir
do princípio racional enquanto assimilação do desconhecido pelo já conhecido próprio do
processo consciente como diagnostica Nietzsche, mas como um modo de “incorporação”
de diferentes alteridades (diferentes olhares) inscritas a partir de uma multiplicidade
dinâmica dos afetos perspectivos que buscam impor suas diferentes interpretações. Trata-
se, enfim, de algo que se engendra a partir daquele registro que Nietzsche (Za, p.51)
identificou em diferença com a pequena razão, o espírito, como a grande razão enquanto
corpo, “uma multiplicidade com um sentido”.
Eu sou todo corpo e nada além disso; a alma é somente uma palavra para
alguma coisa do corpo; o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com
um sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento do
teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas ‘espírito’,
pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão (NIETZSCHE, Za, p.
51).
175
incorporação, de fazer-se corpo da luta de diferentes forças, uma organização de
hierarquias sempre dinâmicas que têm a pequena razão a seu serviço, como um
“instrumento” e “brinquedo”. Novamente aqui, a atividade do espírito, nomeada como a
“pequena razão” é considerada como não autônoma e é subordinada a um maior complexo
de forças que é denominado de “grande razão”, o corpo. É a partir do corpo como um
jogo de forças afetivas, essa grande razão, que se engendrariam as diferentes perspectivas
assim como os pensamentos e os sentimentos, pois “por detrás dos teus pensamentos e
sentimentos, meu irmão, encontra-se um poderoso amo, um sábio desconhecido, que se
chamam Si Mesmo. É no teu corpo que ele reside, ele é o teu corpo (...)” (NIETZSCHE,
ZA, p.52). O conhecimento perspectivo seria, portanto, um modo de afinidade, enquanto
escuta e cuidado, com essa multiplicidade de forças afetivas em luta que é o corpo, pois
“há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E por que o teu corpo, então,
precisaria logo da tua melhor sabedoria?”(NIETZSCHE, Za p. 51). A medida da sabedoria
torna-se a potência de um corpo como um si mesmo que não se deixa abarcar pela
consciência. Pode-se colocar que a “razão” presente no corpo, diferente da “pequena
razão” da consciência que tende à simplificação, é múltipla e dinâmica, pois seria a
expressão das lutas das diferentes forças afetivas por impor sua interpretação. Nietzsche,
ao afirmar o corpo como uma grande razão múltipla e dinâmica ao qual se subordina uma
pequena razão “espiritual”, está a deslocar e problematizar uma questão e “de-cisão”
primordial ao pensamento da metafísica. Segundo Barranechea desde os primórdios da
metafísica, já em Parmênides, o privilégio do pensamento racional vinculado ao Ser
desprezou, desvalorizou e por consequência esqueceu o corpo:
O corpo, então, nada tem a ver com a filosofia. O pensar, a partir da metafísica
parmenídea, inaugura-se como uma tarefa realizada sem a participação do
corpo, sem a presença da carne. O corpo, na concepção metafísica parmenídea,
está presente apenas como aquilo que deve ser banido do campo da razão, e
ato seguido deve ser esquecido. Conforme estas ponderações, quero apresentar
a hipótese de que a metafísica surge com o questionamento da carne, com o
imediato esquecimento de tudo o que é corporal. Trata-se de um procedimento
de desqualificação e esquecimento. (BARRENECHEA, 2011, sem paginação)
176
dicotomia já acenada por Parmênides. O corpo torna-se um empecilho para o
desvelamento da verdade do Ser por parte da razão atributo da alma imortal:
É a partir do corpo, como o concebe Nietzsche, que tais questões, como o ser, a
alma, o eu, consideradas mais elevadas pela metafísica, serão desmistificadas e
denunciadas como meras ilusões, fantasias de uma fisiologia doente que tentaria
reativamente escapar do incessante vir a ser de todas coisas, incluindo do próprio corpo.
Mas também é a partir do corpo que as questões mais fundamentais serão reavaliadas:
aquelas que estão mais próximas da singularidade como a alimentação e o lazer
(NIETZSCHE,EH, pp.50-51). Desse modo, também o pensamento consciente, da pequena
razão é revalorizado a partir do corpo que se torna um “todo” múltiplo pensante:
177
Esse pensar consciente é apenas uma ínfima parte da miríade de pensamentos
corporais, é apenas um pensar que se traduz em palavras. Consciência e
linguagem se articulam na visão de Nietzsche. Os processos orgânicos para os
quais carecemos de palavras que os traduzam permanecem ignorados.
Contudo, esse pensar não consciente predomina no organismo. Em resumo, o
jogo dos instintos, a luta dos impulsos perfaz a dinâmica fundamental em nossa
condição corporal e a denominada “consciência” ou “razão” nada mais é do
que forças corporais que se transformam em signos comunicáveis.
(BARRENECHEA, 2011, sem paginação).
178
Barrenechea (2011) propõe, a partir de sua leitura de Nietzsche, uma subjetividade
encarnada, carnal, corporal, em contraposição a uma noção de uma subjetividade
enraizada em um eu desencarnado como desenvolvimento da crença em uma alma
imortal, pura e heterogênea ao corpo e sua multiplicidade de afetos, impulsos e paixões.
Tal subjetividade corporal não se configuraria como uma nova substancialidade ou
essencialidade do homem, ao contrário, aludiria a um processo ininterrupto da atividade
de luta de diferentes forças que compõe o corpo considerado como uma multiplicidade.
Como resultado a subjetividade corporal não configuraria uma identidade fixa, mas uma
“identidade” em constante construção e desconstrução a qual a partir das diferentes
hierarquias transitórias submetidas a uma força prevalente em determinado momento da
luta, engendra “pontos de sujeito”, “pontos de subjetividades” estabelecendo “harmonias
provisórias”, máscaras sem um rosto verdadeiro ao fundo. Segundo Barrechenea:
74
Nunca refleti sobre problemas que não o são – não me desperdicei. [...] ‘Deus’, ‘imortalidade da alma’,
‘salvação’, ‘além’, puras noções, às quais não dediquei atenção nenhuma, tempo algum, mesmo quando
criança – talvez não fosse infantil bastante nisso. (NIETZSCHE. apud BARRENECHEA, 2011, sem
paginação)
179
singulares, concretas, de uma experiência do “próprio”, ou melhor, de certa pessoalidade
singular. O pensamento do singular liberaria a emergência de perspectivas singulares com
toda a sua pessoalidade, interesse, corporalidade, histórias, paixões e desejos, já que
possibilitaria o aparecimento de perspectivas não mais submetidas à lógica de uma
racionalidade excludente do que seria mais “próprio”, mais pessoal, mais singular. Nessa
direção, Barranechea afirma que:
180
impulsos. Dois movimentos tornam-se então intrínsecos; a crítica ao valor da consciência
como foi concebida metafisicamente e a afirmação de seu papel subordinado à totalidade
corporal. Segundo Barrenechea:
181
dos conflitos divergentes de suas forças, “pois o corpo se utiliza, a cada momento, de uma
consciência – ou pequena razão – para agir com determinação e precisão”
(BARRENECHEA, 2009, p.122)
182
consciência seria então uma obediência a totalidade corporal. A consciência seria, pois,
fundamental na articulação do sentido-síntese temporário para o direcionamento da
comunidade orgânica, mas ainda assim não como soberana, mas enquanto instrumento.
Pode-se ponderar que a função que lhe é atribuída de produção de pensamentos é uma má
compreensão de sua atividade instrumental, pois pensar não seria uma atividade própria
da consciência ou de um órgão especifico (o cérebro), mas de toda a comunidade corporal
assim como o sentir e o querer, à consciência nos chegaria apenas uma ínfima parcela, a
mais superficial e impessoal, atrelada à linguagem e sua função comunicativa. Neste
sentido sua atividade seria mais próxima a de um “órgão” de tradução que, em função da
comunicação, simplifica uma complexa e múltipla gênese do pensamento. Destituída de
sua hipervalorização e inflação como sede do conhecimento e fundamento da
subjetividade do homem, resta à consciência seu caráter meramente instrumental, ainda
que fundamental, na organização e “doação” de um sentido, de uma perspectiva
temporária ao todo múltiplo que é o corpo. Do ponto de vista do problema da
subjetividade, ainda que a consciência se assimile a uma perspectiva vitoriosa produzindo
uma identificação com certos valores, tal identificação não passaria, em termos de
produção de uma “identidade” de uma máscara provisória que logo deveria, desde sua
função específica, ceder lugar a uma nova conjuntura das forças. Nesse sentido, a
concepção de jogo de máscaras sem um rosto por detrás (ecoando os mistérios dionisíacos
do deus da metamorfose) torna-se a melhor expressão para o contínuo jogo de provisórias
identificações da consciência com certa hierarquia de forças, mas sempre subordinada ao
movimento incessante do devir que é o constante embate das forças, pois “mesmo que no
organismo reinem a ordem e a hierarquia, é característica fundamental dessa comunidade
de seres vivos a permanente instabilidade, a continua mudança.” (BARRENECHEA,
2009, p.118).
183
Longe de ter propriedades sublimes e “qualidades metafísicas” heterogêneas à
corporeidade como pensadas pelo idealismo, a força da consciência, sua capacidade de
apropriação e simplificação em tudo se assemelham às funções gástricas de um estômago,
assim como é afirmado por Zaratustra: “porque na verdade, meus irmãos, o espirito é um
estômago.” (NIETZSCHE, Za, “Das velhas e novas tabuas”, §16) Desse modo, a
consciência como espirito seria caracterizada literalmente por Nietzsche, através de
Zaratustra, como um estômago, nessa direção ela não seria algo para além e superior ao
orgânico e ao corpo mas parte integrante desse, funcionando como um estômago. Pode-
se afirmar, através de Nietzsche, que não existem em absolutos fenômenos psíquicos
autônomos da consciência, sendo estes apenas “uma forma especifica dos processos
corporais, vinculados à criação de signos, às atividades de interpretação”
(BARRENECHEA, 2009, p.131). Ao assimilar e interpretar, a consciência traduziria,
incorporaria e simplificaria a multiplicidade de forças inconscientes, que, por sua vez, já
seriam uma multiplicidade de interpretações. A consciência efetivaria uma interpretação
já de segunda ordem, com a função de simplificar e ordenar momentaneamente a
multiplicidade de impulsos interpretativos. Como um estômago, caberia à consciência
selecionar, assimilar o que é mais potente para a vida, para a comunidade orgânica e
eliminar aquilo que lhe seria enfraquecedor possibilitando sempre espaço para a
assimilação de novas interpretações advindas da constante dinâmica de luta dos impulsos
para impor suas interpretações.
184
fundamento ou essência que lhe seria próprio, fenômeno condizente com a passagem na
“morte de deus” e com a desconstrução de suas sombras como alma, eu, espírito e
“sujeito” em seus aspectos metafísicos, resta ao homem ter de haver-se com a
multiplicidade e o devir que caracterizam sua corporalidade. Resta o jogo da diferença e
da alteridade inscritos na multiplicidade de forças que o atravessam, compondo o que se
chama de outros modos, a partir de Nietzsche, de subjetividade e corpo.
185
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ora, a crítica de Nietzsche, assim como intentei evidenciar, procura denunciar que
a consciência não se caracteriza como uma essência e propriedade atemporal do homem,
mas como algo que tem um gênese e desenvolvimento. A hipótese desenvolvida por
Nietzsche é que a consciência teve seu desenvolvimento em função de um impulso de
186
conservação do homem em sua condição de animal desprotegido e frágil que precisava
frente aos perigos e à multiplicidade do mundo simplificar e abreviar sua experiência em
prol de uma comunicação consciente, por signos, que assegurasse o “rebanho”. Tal
hipótese de gênese, procuraria como busquei expor, destruir e destituir a caracterização
idealista da consciência como uma essência. Portanto não haveria nada de atemporal e
essencial, transcendental ou divino em sua constituição, ao contrário ela teria se
desenvolvido por um imperativo humano, demasiadamente humano e mundano. Nessa
direção, os atributos fundamentais do sujeito moderno e de sua possibilidade de
conhecimento, como a consciência e a racionalidade, são destituídos de sua áurea sagrada,
de sua suposta origem ora divina ora transcendental: a consciência nada mais faz que,
aliada à racionalidade e à lógica, servir a um impulso de conservação. Nesta perspectiva,
especificamente no campo gnosiológico, Nietzsche buscara apresentar e afirmar sua
hipótese de que a consciência comumente entendida como a sede do conhecimento não
se constitui como uma origem autônoma dos pensamentos; mesmo o eu e o sujeito (do
conhecimento), supostos agentes dessa atividade “espiritual”, apresentam-se como
ficções. Nietzsche afirma que os pensamentos, inclusive a lógica teriam uma longa
gênese inconsciente no jogo e luta dos impulsos, não sendo assim atribuídos a um suposto
sujeito consciente. À consciência só chegaria o acordo final dessa luta, portanto apenas
um efeito de determinada gênese pulsional caracterizada por meio de uma relação de luta
e combate. O sujeito considerado em sua autonomia frente ao corpo, aos instintos e
pulsões não seria o fundamento seguro do conhecimento e da atividade do pensamento
como é concebido pela modernidade filosófica. A partir dessas considerações, pôde-se
concluir que o conhecimento não poderia ser representado como uma atividade
puramente espiritual, desinteressada, objetiva e afastada do corpo e sua atividade
pulsional. Apresentando o sujeito e o "eu” como ficções, Nietzsche não estaria utilizando
tal caracterização como uma mera desvalorização de seus caracteres ficcionais frente a
uma suposta realidade; não estaria em jogo a velha dicotomia ficção/realidade, mas a
avaliação de suas potências como ficções para afirmar a vida entendida como
multiplicidade de forças em devir, na qual se incluem os impulsos. De certo modo, pode-
se averiguar que Nietzsche avalia a ficção metafísica do sujeito e do eu como “efeitos”
da necessidade de um impulso que se realiza exclusivamente em favor da conservação de
determinado tipo de vida que necessita se proteger da própria vida. Como considerei tal
avaliação leva Nietzsche a considerar a ficção do sujeito (do conhecimento) e do eu como
são constituídos na modernidade apenas como uma necessidade de determinado tipo de
187
vida, com determinado modelo de conhecimento, que tem no re-conhecimento e no
asseguramento suas atividades específicas dinamizadas por um impulso negador da vida.
Nesse sentido, averiguou-se que para o filósofo elas se apresentariam como ficções
desnecessárias quando avaliados a partir do critério da vida como vontade de potência. A
partir desse critério seria possível estabelecer um outro “modelo” de conhecimento que
afirmaria a vida no vir a ser de sua multiplicidade. O que levaria Nietzsche a conjecturar
novas hipóteses em relação ao “sujeito”: como coletivo de almas, multiplicidade de
sujeitos, sujeito em devir, etc. Tais hipóteses, também ficcionais, é preciso sublinhar,
apontariam para um processo dinâmico e múltiplo das forças que constituem o devir do
“sujeito” e que implicariam uma forma de conhecimento não mais fundamentada no mero
“re-conhecimento” do novo pelo já conhecido e na simplificação redutora do múltiplo.
Inclusive, trata-se não apenas de considerar um conhecimento para além do “re-
conhecimento” como uma assimilação do novo pelo já conhecido e do múltiplo pela
simplificação, mas de avaliar sua possibilidade de afirmação da multiplicidade e do vir
a ser que nos constituem como “sujeitos” em devir, tornando desnecessária a hipótese de
um sujeito como uma unidade estável e como fundamento seguro e estável do
conhecimento.
188
perspectiva de diferentes produções de verdade Pode-se constatar que ao conhecimento
como criação estaria ainda relacionada uma outra posição do “sujeito”, não mais
considerado metafisicamente como uma unidade e estabilidade. Aqui ele aparece como
um sujeito em devir no qual a mudança, transformação e aprendizagem em si são forças
constituintes da subjetividade, articulando um processo de conhecimento no qual o
pensador é “sempre outro”, pois não se submeteria e inclusive combateria a
“petrificação” das ideias e de si mesmo, “desconfiado em relação a tudo o que em nós
quer se tornar sólido”75. Se se pode conceber algo como um sujeito (do conhecimento)
radicalmente outro, a partir das problematizações nietzschianas do sujeito moderno, só se
pode fazê-lo considerando seu aspecto hipotético e ficcional e enquanto submetido ao
jogo do devir da multiplicidade de impulsos, que o constituiria para além da unidade e
estabilidade e destituído da suposta autonomia em relação aos impulsos, apresentando-se
muito mais como um efeito destes. A produção de pensamento e conhecimento não é
mais remetida a um eu e sua consciência autônoma e soberana frente ao corpo, mas ao
jogo de impulsos que articulam tanto o pensar como o devir próprio desse outro sujeito,
que não seria concebido como uma identidade fixa e estável. A partir destas considerações
críticas e criadoras no sentido de engendrarem novas hipóteses sobre o sujeito, a
consciência e o conhecimento busquei para o desenvolvimento da problematização do
sujeito considerar a leitura de Derrida em tono dos discursos de Nietzsche que o
desdobrariam no sentido de um pensamento marcado pelas noções de alteridade e da
diferença.
75
Nietzsche, GC, §296
189
a problematização da questão proposta do sujeito moderno e suas subjetividades a partir
da crítica Nietzschiana e o envolvimento dessa questão no campo ético, gnosiológico e,
em certa parcela, estético.
190
deixaria escapar o seu efeito que se dá sempre na distância na qual a mulher acenaria
como um véu que nada esconde por detrás ou apenas finge que esconde. Nesse sentido,
constatou-se que o efeito das mulheres como um véu na distância desmobilizaria a
pretensão do “des-velamento” que ao levantar o véu, que sempre fora o véu das
aparências, pretenderia liberar o sentido ou a essência oculta. Sublinhou-se que a mulher
e sua operação à distância fariam soçobrar a pretensão filosófica dogmática ao dar a ver
no lugar de um fundamento, um abismo sem fundo e sem fim. É nessa perspectiva que a
operação feminina poderia com sua potência abismal vir a desconstruir os elementos
identitários e essencialistas que fundamentam a lógica do sujeito moderno, mas mais
ainda colocariam entre aspas, suspendendo no abismo, todos os elementos decidíveis do
discurso filosófico. Em suma, pôde-se concluir que, onde há um suposto fundamento
seguro e assegurado por uma posição dogmática, o feminino denunciaria o fundo sem
fundo de um abismo.
Partindo dessa outra lógica do feminino, Derrida apresenta uma crítica à leitura de
Heidegger de “A história de um erro” de Nietzsche, em que o filósofo de Ser e tempo, a
partir de sua interpretação dos diferentes momentos do devir da ideia, ignora e salta em
sua análise o devir-mulher da ideia. Derrida encontra nesse específico momento do devir
da ideia uma radical diferença do valor da verdade em relação ao tempo anterior, quando
a ideia era assimilável e identificada com o eu platônico e com os filósofos norteados pelo
mundo verdadeiro. Com o devir mulher da ideia, a “verdade” se afastaria, não podendo
mais ser identificada e apropriada por qualquer eu, se afastando na distância, própria do
feminino e da mulher; a “verdade” torna-se “inapropriavel” acenando e indicando com
um véu apenas seu rastro. Essa passagem de Derrida apresentou-se como essencial para
o trabalho, pois articula de maneira radical a questão do feminino à problemática do eu e
da verdade, ou melhor, das verdades. A “verdade” do devir da ideia-mulher não aparece
mais como presença, mas articula-se desde uma outra lógica do rastro. Além disso, sendo
a mulher abismo, não identidade e não presença faz com que na verdade ela apareça como
a não verdade da verdade. Enquanto não verdade da verdade a mulher desconstruiria toda
a pretensão dogmática de um discurso bem fundado capaz de desvelar o verdadeiro
sentido ou o sentido do verdadeiro de uma coisa, inclusive da verdade da mulher que não
há. A partir da mulher, só seria possível uma “verdade” entre aspas, que não se apresenta
como absoluta e com um fundamento estável e sólido, mas como uma verdade plural
enquanto verdades justamente porque não absolutas e dogmáticas. Como não verdade da
191
verdade, a mulher faz com que a “verdade” (ou as verdades) venha a ser suspensa em um
abismo não podendo mais ser reconduzida a seu status anterior e tradicional edificado
pela tradição metafísica e seu caráter predominantemente falogocêntrico.
Considerou-se esse “jogo” do abismo que a mulher velaria, pois é ela mesma não
identidade, não propriedade, não essencialidade, portanto inapropriável por qualquer
tentativa em que se pretende capturar sua natureza ou essência, o que na perspectiva de
192
Derrida apareceria no texto de Nietzsche como uma série de estratégias que se compõe
por meio de seus estilos, do jogo de máscaras, das múltiplas vozes que entretecem sua
textualidade. O feminino não seria apenas uma temática abordada por Nietzsche e
sublinhada por Derrida, mas uma potência, uma força que se faz presente na própria
contextura do texto e das estratégias nietzschianas em uma articulação crítica, de defesa
e ataque, à posição metafísica dogmática e falogocêntrica. A partir da interrogação
derridiana em torno das múltiplas vozes, das diferentes estratégias e estilos que percorrem
o labirinto textual de Nietzsche, procurei evidenciar a marca da alteridade e da diferença
que constituiria o texto do filósofo alemão. Segundo Derrida, o texto nietzschiano seria
habitado por uma multiplicidade de diferentes vozes que seriam irredutíveis a uma
“monologia” ou a uma voz própria e única, um sentido sintetizador, sendo assim um texto
aberto para o futuro e nisto para a possibilidade de diferentes interpretações que não
permitem o enclausuramento do discurso a partir de uma verdade ou um sentido
originário. Pela contextura das múltiplas vozes, pretender um único sentido de seus
discursos, textos ou obras seria como aprisionar Nietzsche em uma camisa de força
demasiadamente enérgica que buscasse conter tal mobilidade de posições e
multiplicidade de forças que compõem seus textos, reduzindo toda a diferença e alteridade
em nome de uma identidade própria. A noção de identidade atribuída a um autor, texto
ou obra supostamente capazes de desvelar seu sentido ou sua verdade torna-se uma força
redutora do que haveria de mais singular em seus discursos: a multiplicidade e a diferença
que engendram as diferentes vozes. Além de serem múltiplas e se caracterizarem pela
diferença entre elas, Derrida as nomeia como múltiplas vozes grávidas, considerando-as
como forças do feminino que manteriam o texto de Nietzsche aberto para o futuro. Desse
modo, considerei que Nietzsche na leitura de Derrida é um pensador da gravidez e que se
apresenta a partir de uma perspectiva, por assim dizer, dionisíaca, como uma imagem da
afirmação das dores próprias do vir a ser em sua relação com a abertura ao futuro.
Considerei também a hipótese de que a gravidez constituir-se-ia como uma imagem da
alteridade e do outro em si mesmo; entendo as múltiplas vozes grávidas como vozes que
não se formariam a partir de uma identidade fechada em si, mas de uma alteridade e
diferença entre elas.
193
unidade, enfim, de qualquer fundamento supostamente seguro e estável. Procurei
apresentar a força do feminino entrelaçada à afirmação da vida entendida no vir a ser de
sua multiplicidade, como capaz de “desconstruir” os alicerces e fundamentos que
garantiriam ao sujeito moderno sua pretensa unidade e estabilidade e como a força de
criação para instituir novas hipóteses de sujeito a partir da multiplicidade e seu vir a ser.
O feminino apareceria como uma força da alteridade e da diferença que não compactuaria
com a metafísica da presença e do sujeito, ao se afirmar como não presença, não
identidade e performando uma função crítica por meio de suas esporas capazes de atacar
e de se defender de tudo que se apresenta a partir de uma posição dogmática e
falogocêntrica.
Desse modo, os textos de Nietzsche seriam atravessados por toda uma vivência e
experiências do corpo, das saúdes e doenças que não se resumiriam a um eu, ao contrário
se expressariam por um jogo de nomes no plural e máscaras múltiplas que colocariam em
cena diferentes assinaturas, fazendo da vida e da morte uma imensa rubrica biográfica. É
a partir desse jogo de máscaras, de nomes próprios e assinaturas que Derrida procura
desconstruir o próprio do nome próprio e o autos (eu) que constituiria e assinaria
propriamente a autobiografia. O filosofo argelino toma como texto exemplar o Ecce
Homo no qual as experiências e “pessoalidades” de Nietzsche estariam mais em jogo
aproximando-o de uma autobiografia. No entanto, a partir da análise de Derrida, tornou-
se evidente que, mais do que afirmar um tom autobiográfico de um “eu”, esse texto mostra
um potente discurso para a desconstrução de noções fundamentais como o eu, a
assinatura, o sentido e a presença do autor, os quais constituiriam os fundamentos de uma
leitura tradicional do que é uma autobiografia. Em sua narrativa “autobiográfica”,
194
Nietzsche propõe uma auto apresentação, o que iria contra sua natureza dissimulada, mas
que leva Derrida a indagar se não se trata outra vez mais de uma estratégia para
dissimular-se, o que já apontaria para um além da constituição de uma identidade própria
capaz de conduzir a narrativa autobiográfica de um eu. Pois bem, Nietzsche busca
apresentar-se por meio de um enigma, no qual ele se mostra a partir de uma dupla herança,
seu pai, a morte e sua mãe, a vida. Tal forma de apresentação pressupõe um passo além
da autonarrativa de um indivíduo como uma unidade, colocando em questão o problema
da identidade e de sua representação. É a partir de uma série de duplicidades que
Nietzsche busca se apresentar rompendo com o princípio de identidade unitário que marca
a tradição do texto autobiográfico e da representação do eu e do sujeito. Ademais, o texto
culmina com uma performance de assinatura que inscreve um duplo nome Dionísio contra
o “crucificado” no qual haveria uma maior identificação com o nome do contra,
desconstruindo desse modo a performance tradicional de assinatura. Junto a marca
dessas duplicidades haveria não apenas a identificação com a vida (elemento “próprio”
de uma autobiografia), mas também com a morte, que marcaria toda assinatura, pois quem
assinaria seria sempre um morto. Portanto não seria um vivo com uma vida presente a si
que assinaria uma autobiografia, mas um morto, já que toda assinatura ou nome como
todo conceito mata aquilo/aquele que nomeia. A morte apareceria não como o desfecho
de uma vida, mas como a possibilitadora mesmo do relato autobiográfico de uma vida
marcada desde sempre pela morte no nome. Desse modo, vida e morte se apresentariam
em outra lógica de conjugação como a-vida-a-morte desconstruindo a narrativa de uma
vida presente a si mesma.
195
como a presença de uma assinatura capaz de fantasmaticamente regular o sentido e a
verdade do texto. Com base na leitura de Derrida sobre Nietzsche, a partir da questão do
autos, pude pontuar e acentuar de uma outra maneira a problemática do eu naquilo que
tange às noções do sentido e da verdade, da vida e da morte.
É, contudo, a partir da leitura em Ecce Homo dos créditos abertos por Nietzsche
em seu nome e a espera da leitura do outro, que se observa que Derrida sublinha a
importância da alteridade do outro na constituição do acontecimento do texto, que é
entendido não a partir da presença do autos (e do eu) que o assina, mas do “ouvido do
outro”. Como visto o suposto sentido e verdade do texto não são mais compreendidos
como articulados e sustentados pela presença ainda que fantasmática do autos; não
haveria um sentido e verdade intrínsecos e preestabelecidos junto ao texto capazes de
serem desvelados a partir de um centro regulador e estruturador qualquer. Porém, os
textos viriam a acontecer de um modo singular pelo ouvido do outro, que afinadamente
ou não interpretam e criam múltiplos sentidos de um texto sempre aberto ao futuro de
outras interpretações.
76
É nesse sentido que se poderia entender em parte o apelo de Nietzsche aos filósofos que virão e o escutarão
afinadamente seus textos abertos ao futuro honrando seu nome póstumo.
196
acontecer a partir da contra-assinatura do outro junto, em anelo a ele, escutando-o e
entendendo-o.
Derrida constata que toda assinatura só vem a acontecer a posteriori pelo trabalho
do ouvido do outro e da contra-assinatura que ele firma junto a sua leitura. Portanto, todo
texto de Nietzsche, especialmente Ecce Homo, que apela para leitores, espíritos livres ou
filósofos futuros anunciaria uma “estrutura” na qual a “função” da alteridade do outro e
a atividade interpretativa do ouvido do outro tornam-se determinantes para o
acontecimento do texto que nunca se apresentaria como um texto fechado, mas aberto
para o futuro, para o vir a ser de seu acontecimento. Nenhum texto poderia, portanto, ser
considerado como um texto fechado, pré-estabelecido em seu sentido e verdade por um
autos (um eu-autor), mas aberto na disseminação de seus sentidos que só se realizam a
partir do trabalho ativo do ouvido do outro que vem contra-assinar junto a uma assinatura.
Assim, o jogo da alteridade, que procurei investigar no discurso nietzschiano de Ecce
Homo a partir da leitura de Derrida, estaria inscrito em todos os momentos do
acontecimento de um texto, ainda que autobiográfico. Desse modo o texto,
particularmente o texto “autobiográfico” de Nietzsche, aparece como elemento potente
para se pensar a radicalidade do pensamento da alteridade e da diferença.
197
sujeito. Em outra direção, Derrida assinalaria em sua leitura de Nietzsche rastros e traços
de um pensamento da alteridade, de uma marca do outro articulados tanto pelo feminino
quanto pelo ouvido outro. Não haveria, portanto, no discurso nietzschiano apenas uma
crítica ao sujeito, mas junto a esta também a inscrição de um potente pensamento da
diferença e da alteridade, tanto consequência daquela crítica como elemento de crítica.
Pode-se concluir que se o pensamento de Nietzsche é póstumo, como ele afirmava,
alcança problemas “próprios” da contemporaneidade como o feminino, o texto, a
diferença e a alteridade.
Se o aparelho psíquico é constituído por traços, que por sua vez advêm da
diferença no trabalho das forças, e paulatinamente no discurso freudiano o traço se
aproxima da metáfora da máquina de escrever, tal lógica não se deixaria reduzir por uma
metafísica da presença, mas seria articulada pelo jogo das diferentes forças, o que fará
198
com que o inconsciente, por intermédio da análise da memória, se apresente não como
uma substância, mas como um jogo de traços. O inconsciente como um jogo de traços
deslocaria e desalojaria o eu como dono de sua casa, ou seja, enquanto um soberano
regulador de toda a estrutura psíquica. Desse modo, Derrida formulará, a partir do
discurso freudiano do traço, a noção de um sujeito da escritura que não se deixaria pensar
pela lógica da presença, sendo ele atravessado pelas diferentes relações de forças (o
psíquico, a sociedade, o mundo...), nas quais é inscrito e a partir do qual “escreve” sua
subjetividade, em oposição à imagem do escritor soberano em sua solidão que
comungaria com o ideal de um sujeito substancializado e fechado em sua interioridade.
A reflexão nietzschiana das forças como uma multiplicidade dinamizada por suas
diferenças torna-se singular para a compreensão do que vem a ser o sujeito da escritura e
do inconsciente, pois expõe um pensamento que não se deixa enclausurar pela lógica da
metafísica da presença. Na esteira desse pensamento, seria possível a problematização
de um sujeito para além de seus atributos clássicos, como sua identificação absoluta com
a consciência e a noção de um eu soberano. Tal virada se daria a partir da reflexão
perseguida por Freud do traço, e sublinhada por Derrida, que alcançaria sua melhor
expressão a partir da imagem do bloco mágico como uma máquina de escrever, no qual
o traço vem a inscrever-se num sistema de escritura. Pôde-se verificar que o traço não se
apresentaria enquanto uma presença, mas se articularia e viria a ser a partir da diferença
em relação a outros traços. Aquilo que dinamizaria o funcionamento do aparelho
psíquico, o traço, como o formula Freud, não se constituiria a partir da ideia de uma
substancialidade e essencialidade. E desse modo o sujeito se apresentaria como um sujeito
da escritura “estruturado” por uma lógica do traço, por sua vez dinamizado por uma
multiplicidade de diferentes forças. Portanto, a partir da interpretação derridiana do
discurso freudiano em torno de um pensamento do traço, penso que a crítica ao sujeito
moderno, como analisada com base na reflexão nietzschiana e os potentes deslocamentos
que ela produz, ganham maior relevo possibilitando uma reflexão da relação entre o
sujeito, a cena de escritura e as múltiplas forças que delineiam o traço.
199
aprofundada no segundo capítulo. Pareceu-me que a problematização do sujeito e sua
relação com a linguagem (e a escritura), articulados com o pensamento das forças a partir
da noção de afeto, sobre o qual reflete Nietzsche, poderiam contribuir de forma decisiva
para a investigação da crítica do sujeito que, como ficou evidente, produz não sua
eliminação, mas um radical deslocamento de sua constituição erigida a partir de um
fundamento metafísico. Tais deslocamentos operados por múltiplas estratégias no
discurso nietzschiano e mais especificamente a partir de uma problematização da
linguagem, apresentariam implicações nas posições do “sujeito” em relação às questões
do conhecimento, da verdade e de sua relação com o “real”. O deslocamento do sujeito e
sua diferenciação em relação ao modelo moderno e tradicional em Nietzsche foram
sempre pensados, sob o meu ponto de vista, em correlação com uma problematização do
filósofo do que podem ser o conhecimento, a verdade e o “real”. Como acentua Derrida,
é interpretando a linguagem como um processo metafórico e não correspondencial no
sentido metafísico, que Nietzsche procura repensar criticamente o que vem a ser o
conhecimento e sua relação com a verdade. O exame de seus escritos sobre o assunto
evidenciou que por sua condição meramente metafórica, a linguagem não corresponderia
às coisas em sua origem, não podendo, pois, desvelar originalmente o sentido e a verdade
dos entes e das coisas por meio da linguagem, seja ela coloquial ou seja racional, só
teríamos produções metafóricas “impróprias”. A partir dessa consideração nietzschiana
acerca da linguagem e da análise da função do esquecimento do caráter metafórico pode-
se refletir sobre a “origem” do conceito e do impulso à verdade. Na perspectiva de
Nietzsche, o conceito e a verdade são pensados desde uma “origem” e desenvolvimento,
a partir da metáfora, e se são considerados tradicionalmente como opostos a ela, surgiriam
como um jogo de metáforas gastas pelo uso e pelo tempo. Como assinala Derrida, é a
partir de tal consideração nietzschiana sobre a escritura e a leitura como operações
metafóricas - elas mesmas “originarias”, não sendo correlatas a nenhuma outra origem,
seja como essência, seja como substância que se potencializa a ruptura da subordinação
do texto com o discurso metafísico da verdade e do logos. Desse modo, procurei
evidenciar por intermédio noção Nietzschiana de “interpretação” a leitura e escrita como
operações “originárias”, tendo em vista que essa noção teria consequências mais amplas
e bem desenvolvidas no texto nietzschiano, além de poder ser pensada na categoria de
operação “originária” como a leitura e o texto.
200
Ainda, busquei assinalar que para o Nietzsche a interpretação não pressuporia
nenhum sujeito agente e produtor por detrás, pois seriam os impulsos afetivos que
interpretariam. Desse modo, a noção de afetos tornou-se fundamental para pensar a crítica
do sujeito a partir do texto nietzschiano. Considerei ainda como inevitável, mas também
oportuno, refletir a possível implicação do pensamento sobre a linguagem do jovem
Nietzsche com seu discurso posterior do perspectivismo, que me pareceu de certo modo
desdobrar as meditações sobre a linguagem e sua implicação com o conceito e a verdade,
como da mesma forma colocar em questão de um modo radical certas considerações em
torno do sujeito do conhecimento, aprofundando as questões trabalhadas, principalmente
no primeiro capítulo, e a questão da verdade, presente no segundo. Pareceu-me
fundamental para o desdobramento da questão do perspectivismo, pensar sua implicação
com a noção de afeto, considerado como uma força nos termos da terminologia
nietzschiana, que luta com outros afetos pela imposição de sua interpretação. Tomei a
problematização dos afetos como o elemento chave para a compreensão do
perspectivismo e sua posição crítica frente à questão do conhecimento e do sujeito. A
partir da consideração dos afetos inscritos no processo do conhecimento, procurei
defender a hipótese de que a atividade do conhecimento perspectivo se singularizava pela
abertura ao vir a ser dessa multiplicidade de afetos que inscreveriam diferentes
perspectivas. Através da noção de perspectivismo e sua relação com os afetos
interpretativos, a hipótese metafísico-moderna de um “puro sujeito” do conhecimento
tornar-se-ia desnecessária, pois não haveria nenhum sujeito agente e causador dos
pensamentos/interpretações, que por sua vez são atribuídos aos afetos, abrindo caminho
para novas hipóteses de sujeito afinadas com a diferença e a multiplicidade dos afetos,
considerados, como propus, por Nietsche, como os elementos fundamentais na atividade
do conhecimento. Ainda que no modelo tipicamente moderno com sua pretensão de
objetividade e validade universal se negue à participação dos afetos, Nietzsche é
categórico ao afirmar de que há uma inevitável e intrínseca participação deste, ainda que
inconsciente, pois, na perspectiva do autor, a vontade de verdade inerente a esse modelo
se constituiria a partir de uma paixão. Desse modo, se todo modelo de conhecimento, e
mais originariamente, todo processo de pensamento, se estabeleceria a partir de uma
relação beligerante de múltiplos afetos, tornou-se inevitável uma investigação em torno
dos afetos, além de uma problematização de qual seria a singularidade do perspectivismo
em relação a eles, já que em geral todo modelo de conhecimento necessariamente teria
uma origem pulsional afetiva. Essa investigação se mostrou fundamental para o
201
desenvolvimento da problemática do sujeito, pois pareceu-me que seu deslocamento e
sua outra posição frente ao conhecimento (perspectivo) e a verdade sugerido pelo texto
nietzschiano se vincularia em seu discurso à “teoria dos afetos”, que é pensada ainda em
articulação com a “teoria das forças”. De certo modo, foi a partir de certa recondução
aproximativa de termos como paixão, impulsos e instintos à terminologia dos afetos que
norteei a investigação destes últimos como os elementos fundamentais que articulariam
o conhecimento perspectivo. Segundo a dinâmica de luta dos afetos pela imposição de
suas interpretações, haveria o êxito de um ou mais afetos como afetos de comando que
fariam prevalecer temporariamente sua interpretação sobre os outros para em um outro
momento ceder lugar a um ou mais afetos vitoriosos, produzindo a alternância de
diferentes perspectivas; constituir-se-ia um modo de conhecimento (perspectivo) que se
afirmaria na diferença das perspectivas em contraposição ao conhecimento tradicional
que se estabeleceria pela simplificação da multiplicidade em nome de uma verdade
absoluta.
202
inversão, que é o corpo que pensa, sente e quer e que uma outra subjetividade poderia ser
pensada a partir da carnação do corpo.
203
considerados como elementos pertencentes ao campo da corporalidade, tornou-se
inevitável trabalhar a compreensão nietzschiana do corpo e da corporalidade como fio
condutor para pensar a subjetividade. E foi por meio dessa reflexão que se preparou a
compreensão do corpo como uma multiplicidade de forças em devir, que produziria uma
outra compreensão das subjetividades não mais pensada a partir de um modelo metafísico
de identidade compreendida como unidade, estabilidade e interioridade, mas uma
subjetividade encarnada que se constituiria como um processo aberto à alteridade e à
diferença articulada pela multiplicidade de forças que é o corpo.
204
beligerante deslocariam a cada vez aquilo que se denominaria como o “sujeito” e sua
identidade.
205
desvalorizá-lo junto aos afetos, impulsos e paixões, não se deixaria capturar pelo modelo
de discurso metafísico.
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