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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MÉDICA E PSIQUIATRIA


FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS (FCM)

Luciana Melo de Sousa Reis (Savioz)  

« A Arte me Curou! »  
Analisando o processo de Individuação da Artista Niki de Saint-
Phalle por meio dos Arcanos do Tarô  

Campinas
Dezembro 2013
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MÉDICA E PSIQUIATRIA
FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS (FCM)

Luciana Melo de Sousa Reis (Savioz)  

« A Arte me Curou! »  
Analisando o processo de Individuação da Artista Niki de Saint-Phalle
por meio dos Arcanos do Tarô  

Monografia apresentada como trabalho de


conclusão de curso como requisito parcial para a
obtenção do título de Especialista em Psicologia
Analítica Junguiana, do curso de extensão:
“Psicologia Analítica Junguiana” – FCM 0600 do
Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria
da Faculdade de Ciências Médicas – FCM, sob
responsabilidade do Professor Doutor Joel Sales
Giglio.

Orientador: José Jorge de Moraes Zacharias

Campinas
Dezembro 2013
2  
 
A Louca Andarilha  

Aí está a louca andarilha caminhando,

... como sempre.

Ela vai por aí se nutrindo de seu próprio caminho.

Sim, ela é louca, não está vendo?...

Por que louca? O que você sabe dela?

Como ela aparenta? O que ela conta?

Mentira dela! Nem ela sabe nada dela mesma!

Com seus sapatos vermelhos, bastão cor de sangue na mão,

Lá vai ela, em meio à grande selva que misteriosamente esconde tantos tesouros.

A cada passo, ela avança carregando-se de um pedaço de ouro aqui e outro ali.

Todos encontrados ao acaso!

(nesse caminhar, ela aprende a confiar no acaso).

Caminho este conhecido.

Mesmo, conhecidíssimo - (queira ou não).

São traçados dos seus próprios poderes

...e ela encontra mais alguns diamantes aqui, outro ali...

Ela sabe que tem outros por ali esperando prontos para a farta colheita.

Não se preocupe, ela pode estar nesta estrada

... e até dançar sobre ela ...

pois este destino é todo dela... E de ninguém mais.

Sem pensar muito, ela se dá conta que seu mundo se enche de cores,

... de odores,

...de amores,

... de sensações fumegantes

... e também de tantos sabores.

Nem pensar em caminhar fora da floresta!!!

Caminha louca, caminha...

Até a próxima carta do tarô.

Danada! Você quer ouro, diamantes, você se sente deusa. Nada mais que isso!!

E só pode ser assim!


3  
 
 

Sonho de Laura:

“I was nine years old, a time when I


was reading about contemporary
heroines, women who flew planes and
broke world records. Here I was
standing at the edge, holding onto the
open doors of the plane, as I was
about to jump. I could admire the
colors and design of the fields below.
When I landed I had jumped back in
time. I was a baby tangled in the laces
of a giant wedding dress, which the
parachute had transformed itself
into”1.
(Laura Mathews, Filha de Niki de
Saint Phalle; Phalle, 2006, p.5)

                                                                                                                       
1
Tradução livre: “Eu tinha nove anos de idade, num período em que eu lia sobre heroínas
contemporâneas, mulheres que voavam em aviões e quebravam recordes mundiais. Aqui estava eu
parada no canto segurando a porta aberta do avião, eu estava quase pulando. Eu pude admirar as
cores e os desenhos dos campos abaixo. Quando eu aterrissei, eu tinha voltado no tempo. Eu era um
bebê enlaçado nas rendas de um vestido de casamento gigante que o paraquedas se transformou”.
4  
 
Agradecimentos,
 

Agradeço ao professor Dr Joël Giglio, ao professor Dr José Jorge Zacharias, nossa querida
professora Lunalva Fiuza Chagas, e a todos os outros professores que com tanta
generosidade, competência, entusiasmo e entrega nos ofereceram esta conexão, nutrindo
nossa paixão e nossa sede de conhecimento. Agradeço aos colegas pelo companherismo,
pelas riquíssimas trocas nos intervalos e nas mensagens solidárias na rede internet. Em
especial ao nosso colega Lucas Valadão por criar esse vínculo informático entre nós e os
professores de forma voluntária e tão generosa. Agradeço também Salete Marisa Dian
Biagioni, pelo apoio, pela proteção e por compartilhar tanta sabedoria.

   

5  
 
 

Dedico esta monografia à sua memória,


Niki. Você soube me envolver nas suas
mensagens de uma forma tão forte que
nunca tive escolha se não ir em frente
com você. Claro que entendo que algo
de mim está radicalmente em empatia
com algo seu. Assim, você faz parte do
meu próprio processo de individuação.
Eu lhe serei eternamente grata.
Você se tornou a heroína que me
inspirou tanto e, com esta monografia,
espero poder inspirar outras almas.
Desejo contribuir para que seu
movimento nunca cesse, que sua
memória seja honrada, que sua arte
esteja sempre viva.
Dedico também ao meu marido,
Bernard, meus filhos Laura e Philippe
(pura coincidência), sem os quais nunca
estaria aqui.
6  
 
SUMÁRIO

Agradecimentos ........................................................................................................... 5
SUMÁRIO .................................................................................................................... 7
INTRODUÇÃO............................................................................................................. 8
1. VIDA E OBRA DE NIKI DE SAINT-PHALLE:...................................................... 10
1.1. Nascimento: ........................................................................................................ 10
1.2. Infância : ............................................................................................................. 11
1.3. Vida Adulta ......................................................................................................... 13
1.4. Uma vista panorâmica de seu universo artístico: ............................................... 20
2. A ARTE, PSICOLOGIA ANALÍTICA E VIDA SIMBÓLICA..................................... 26
3.1. O Tarô Como Sistema Simbólico ....................................................................... 33
3.2. O Jardim dos Tarôs de Niki de Saint-Phalle ....................................................... 37
4. OS ARCANOS E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO SEGUNDO NIKI DE SAINT-
PHALLE ..................................................................................................................... 40
4.1.1. O Louco ........................................................................................................... 40
4.1.2. O Louco de Niki de Saint-Phalle ...................................................................... 46
4.2.1. A Morte, Arcano n° XIII .................................................................................... 49
4.2.2. A Morte, segunto Niki de Saint-Phalle ............................................................. 54
4.3.1. A Força, Arcano n°XI ....................................................................................... 58
4.3.2. A Força, segundo Niki de Saint-Phalle ............................................................ 64
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................... 68
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 70
ILUSTRAÇÕES ......................................................................................................... 72

7  
 
INTRODUÇÃO

Esta monografia trata da vida e obra da artista Niki de Saint-Phalle. Ela foi
uma pessoa que ao longo da sua existência passou por processos de profunda
transformação. As coisas não foram fáceis para ela. Contudo, ela soube expressar
na sua arte uma tamanha força de vida, denunciando, assim, sua entrega a um
processo de individuação muito profundo. Ela foi uma verdadeira profetiza das
cores, das mensagens arquetípicas, da resiliência, e da Vida Vivenciada com V
maiúsculo.

Ela disse um dia: “A arte me curou!” e eu sempre quis saber por que ela
falou isso. Concluí que para mim ninguém seria melhor que Jung para me
acompanhar nessa busca. Esta monografia tem a ver com este processo que
começou há muito tempo. O foco principal foi o estudo de O Jardim dos Tarôs no Sul
da Toscana (Itália), uma obra monumental que ela começou a construir em 1979,
aos 49 anos de idade, uma mulher na segunda metade da vida, e terminou por volta
de 1996. Esta foi a sua grande obra. Nela, foram representados os 22 arcanos do
tarô de Marselha numa leitura muito pessoal e podemos dizer que é também
universal por se tratar de uma obra de fundo arquetípico evidente. Vamos ver
adiante como podemos sentir seu processo de individuação através dessa
produção.

Esta monografia propõe, portanto, a seguinte jornada: uma vez que sua
vida e obra estejam apresentadas, visitaremos alguns conceitos da psicologia
analítica que poderão dar algum suporte na compreensão destes processos e
conteúdos. Vamos, então, conhecer o tarô de Marselha para finalmente buscar o
tarô de Niki de Saint-Phalle, tentando encontrar, elucidar as raízes do seu processo
de individuação nas suas impressionantes esculturas.

Diante de tamanha riqueza, tive que optar por delimitar a pesquisa


escolhendo somente três arcanos a serem analisados em profundidade.
Primeiramente, veremos o arcano do Louco, por simbolizar a carta de acesso direto
ao self, que parece simbolizar sua vida de forma mais global. Depois, o arcano da
Morte n° XIII, porque Niki de Saint-Phalle era alguém muito próxima da morte, houve

8  
 
um jogo de atração/sedução entre ambas tão potente que transformou o arcano num
tema central na sua vida. E finalmente a Força n° XI, por uma questão de
sincronicidade, pois houve algumas coincidências vinculadas a este arcano que me
conduziram à artista; essa seria uma forma para mim de honrar este encontro.

Coloquei a Força depois da Morte por uma razão talvez estética ou


conceitual, não importa. Na realidade, no tarô tradicional, ela se encontra antes.
Talvez simplesmente porque, através da intimidade que venho conquistando na arte
e a psicologia analítica, percebo que nem tudo tem que ser explicável e nem tem
que ser o esperado por razões lógicas. Aprendi a escutar melhor essas frasezinhas
interiores que a gente não sabe bem de onde vêm, dizendo: “Tem que ser assim!”.

Através da sabedoria que ambas vêm me proporcionando, aprendi que


nem sempre temos que ter todas as explicações. Em outras palavras, estou
aprendendo que, quando um mistério continua a planar no ar, quando não
encontramos palavras exatas e não conseguimos esgotar a explicação de tudo,
estamos entrando num terreno arquetípico. Bem aventurado aquele que o acolhe.

Restariam, contudo, 19 outros arcanos que teriam sua importância sem


dúvida, mas iremos deixá-los de lado por enquanto, desta vez por razões estéticas.
O material é imensamente rico, temos que nos delimitar para não nos estendermos
demais.

O objetivo principal desta monografia seria o de contemplar este material


como uma forma de exercício de leitura alicerçada na psicologia analítica. Na minha
hipótese, através dela, podemos sentir como a Grande Arte, ou seja, a arte
arquetípica, traz à luz do dia conteúdos que seriam importantes para o processo de
individuação e, em última instância, a cura. A arte torna-se assim um grande
instrumento da individuação, influenciando não só pessoal, mas coletivamente
também.

9  
 
1. VIDA E OBRA DE NIKI DE SAINT-PHALLE:

1.1. Nascimento:
Tout était de ma faute. Les ennuis étaient venus avec moi.

Ma mère, ma mère, où êtes-vous? Pourquoi m’avez-vous quittée? Allez-


vous jamais revenir? Tout est de ma faute. Chaque femme devint TOI,
Maman, Maman. Je n’ai pas besoin de vous. Je me débrouillerais sans
2
toi. (Saint-Phalle, p. 147 e p. 184, in Hulten, 1999)

Catherine Marie-Agnès Fall de Saint-Phalle nasceu em Paris no dia 20 de


outubro de 1930 com o cordão umbilical enrolado duas vezes em volta do pescoço.
Ela foi salva pelo médico que enfiou a mão entre o cordão salvando-a na última
hora. Segunda de cinco filhos da americana Anne Jacqueline Harper e do francês
André Marie Fall de Saint-Phalle. O pai, de família de origem aristocrática, era
proprietário com os outros seis irmãos de um banco. Durante a gravidez, a família
perdeu tudo no crash da bolsa de 1929. E naquele momento também a mãe
descobriu a traição descarada do marido.

Aos três meses, ela se mudou para a casa dos avós paternos em Nièvre,
França, enquanto os pais foram tentar a vida nova nos EUA. Ela somente voltou a
viver com seus pais em Greenwich, em Connecticut, no seu terceiro ano de vida. Em
1937, a família se mudou para Nova York. Agnès passa a se chamar Niki e ela
frequenta a escola religiosa Sacre-Coeur, na 91 East-Street.

                                                                                                                       
2
 Tradução  livre:  “Tudo  foi  minha  culpa.  Os  problemas  vieram  comigo.”  “Mamãe  mamãe,  cadê  você?  Você  vai  
voltar  um  dia?  É  minha  culpa.  Cada  mulher  fica  sendo  você  mamãe,  mamãe.  Eu  não  preciso  de  você.  Eu  vou  me  
virar  sem  você.”  
10  
 
1.2. Infância:

Je rejetterais votre système de valeurs et inventerais le mien. Très tôt je


décidai de devenir une héroïne. Qui serais-je? George Sand? Jeanne
3
D’Arc? Napoléon en jupons?
(Niki de Sant Phalle in Hulten, 1999, p. 184)

Foi uma infância americana com vários endereços: colégios internos, a


casa dos pais, a casa dos avós maternos e também os paternos que acabaram se
mudando para os EUA em consequência da II guerra. Menina rebelde,
questionadora da condição da mulher na sociedade ao observar a submissão que
sua mãe vivia no quotidiano. Menina arteira também, em 1941 ela foi expulsa da
escola pela 1ª vez, quando ela voltou a viver na casa dos avós maternos e foi
inscrita numa escola pública de Nova Jersey.

Em 1942, ela voltou a viver com os pais em NY. A pré-adolescente lia


Edgar Alan Poe, Shakespeare, as tragédias gregas e se interessava muito pelas
peças teatrais da escola, se arriscando a escrever algumas peças e alguns poemas.
Em 1944, ela pintou de vermelho vivo a folha de figo que cobria do sexo da escultura
do colégio de freiras. As freiras só a autorizaram ficar na escola na condição de ser
encaminhada a um tratamento psiquiátrico. Os pais a enviaram a um colégio
religioso interno em Suffren, estado de NY. Ela terminou sua escolaridade no
Maryland, em 1947.

Todo verão, a família alugava uma casa de campo na Nova Inglaterra.


Nas férias de 1942, aos 11 anos de idade (segundo ela, com o físico de uma menina
de 13 anos), ela se lembrou que a família tinha alugado uma casa com muitos
campos bem verdes. Ela amava ficar olhando as nuvens, sobretudo o por do sol. Um
dia, num passeio desses, ela se deparou com duas cobras pretas e corpulentas
entrelaçadas da raça copperheads, que eram extremamente venenosas.

Terrorizada e fascinada ao mesmo tempo, ela ficou paralisada por muito


tempo observando as cobras. Este foi, segundo ela, o primeiro contato com a morte
de tão perto. Na semana seguinte, o irmão jogou um cadáver de serpente na sua
cama de brincadeira. Aterrorizada, ela gritou e o primo de 22 anos veio acudi-la. Ela

                                                                                                                       
3
Tradução livre: “Eu vou rejeitar o seu sistema de valores e vou inventar o meu. Muito cedo eu decidi
ser uma heroína. Quem eu vou ser? George Sand? Joana D’Arc? Napoleão de saias?”
11  
 
estava com tanto medo que ele acabou cedendo e aceitou que ela dormisse com ele
naquela noite. No dia seguinte, a família ficou chocada, tamanha sua rigidez moral.

Nesse mesmo verão, ela foi ajudar o pai buscar uma varinha de pescar na
cabana e ele começou a tocá-la. Ele disse: “Não se mexa!” e ela obedeceu. Desde
então, ele passou a procurá-la muitas outras vezes abusando-se dela, violência
experimentada com profundo sofrimento, decepção, medo, vergonha e angústia. Em
suas confissões, ela questionou o comportamento do seu pai como sendo uma
tentação de exercer o poder absoluto sobre o outro, pelo proibido (Saint-Phalle,
2010), algo do ser humano que quer destruir tudo. Ela experimentou, inclusive,
certa fascinação, e também vivenciou o conflito entre o amor da menina e a perda
da confiança nos seres humanos em geral.

Naquele momento, a família vivia num tempo de rigorosa moral religiosa.


Com certeza, ninguém acreditaria se ela contasse o ocorrido, e ela escolheu o
silêncio. Silêncio que contribuiu com a ruptura profunda com a leveza da infância e
com muita solidão4:

A onze ans je me suis sentie expulsée de la société. Ce père tant aimé est
devenu objet de haine, le monde m’avait montré son hypocrisie, j’avais
5
compris que tout ce qu’on m’enseignait était faux (Saint-Phalle, 2010)

   

                                                                                                                       
4
Ela conta que sentia, por muito tempo depois, o sexo do pai na sua boca. Aos 20 anos, ela começou
a morder involuntariamente os lábios superiores como que limpando algo muito sujo que ficou. Vinte
anos mais tarde, ela teve que restaurá-lo por meio de uma dolorosa cirurgia estética.
5
Tradução livre: “Aos onze anos eu me senti expulsa da sociedade. Este pai que amava tanto se
transformou em objeto de ódio, o mundo me mostrou a sua hipocrisia, eu compreendi que tudo aquilo
que me ensinaram era falso.”
12  
 
1.3. Vida Adulta  
J’étais une jeune femme en colère, mais il a beaucoup de jeunes gens et
de jeunes femmes en colère qui ne deviennent pas artiste pour autant. Je
le suis devenue parce que je n’avais pas le choix – c’est pourquoi je n’ai
pas eu à prendre une décision. C’était mon destin. A une autre époque
j’aurais été enfermée à perpétuité dans un asile d’aliénés.... J’ai adopté l’art
6
pour qu’elle soit mon salut et qu’il réponde à mon exigence personnelle.
(Saint-Phalle, in Lower, 2001, p. 46)

Niki casou-se aos 18 anos com Harry Mathews, em 1950, e já vivia com
ele desde o ano precedente. Ele, filho único de uma importante e rica família
americana. Conta-se que seis meses depois de se casar ela teve que ser operada
de uma apendicite que se transformou numa complicação dolorosa e difícil de ser
tratada (mais um tratamento doloroso).

Naquela época, ele era estudante de letras e música em Harvard, e


aspirava ser escritor. Ela fazia aulas de teatro e posava para revistas finas de moda.
Era uma mulher extremamente bela e possuía um grande carisma. Laura, a primeira
filha, nasceu nessa época despreocupada, na qual o casal gozava de poucos
recursos. Contudo, não foi fácil para Niki: ela se conectou com a infidelidade de seu
marido e o ciúme possessivo da sogra.

Esta última teria pouca vontade de ser avó por pura vaidade. Sentia que
esse papel a envelheceria chegando a propor um aborto, o que lhe parecia mais
confortável na situação. Inclusive ela nunca aceitou Niki como nora, alegando que
ela não vinha de uma família tão abastada como a sua e sentia-se incomodada com
seu caráter. Mesmo assim, o casal vivia uma grande cumplicidade e construíam com
amor e criatividade as bases da pequena família.

Ao final da graduação de Harry, eles decidiram deixar o país. As razões


foram muitas. O casal não estava se sentindo à vontade com a sociedade americana
dos anos 1950: eram tempos de grandes desigualdades raciais e sociais, tempos da
Klu Klux Klan, do pós-bomba atômica. Eles tinham empatia pelos negros que
voltavam da segunda guerra, segregados e humilhados, e teriam que retornar a uma
                                                                                                                       
6
Tradução livre: “Eu era uma jovem mulher enraivecida, portanto, muitos jovens e muitas mulheres
enraivecidos não se tornam artistas. Eu me tornei porque eu não tinha escolha – eu não tive que
tomar uma decisão. Era o meu destino. Numa outra época eu estaria fechada à perpetuidade num
manicômio... Eu adotei a arte para que ela fosse a minha salvação e para que ela respondesse à
minha exigência pessoal”.
13  
 
vida de terceira categoria. Definitivamente, eles não se sentiam seduzidos pelo
famoso American Way Life, além de a decepção ser enorme. Como aceitar viver
num país que recusa a volta de Charlie Chaplin? Na sociedade do Macarthismo e da
psicose da bomba atômica, como aceitar a nova obsessão americana pelo seu novo
brinquedo: a televisão?! Naquele período, a avó de Harry fez uma generosa
proposta de envio de pensão, isso possibilitaria levar uma vida tranquila, sem luxo,
mas livre e promissora. A jovem família se mudou para Paris.

Os anos 1950 em Paris eram mágicos e eles não ficaram indiferentes à


riqueza cultural da época. Ao chegar, Niki ficou particularmente impressionada com
Simone de Bouvoir. Harry, como aspirante a escritor, estava fascinado com Camus e
Sartre. O casal adorou constatar que o jazz foi acolhido com entusiasmo na França,
enquanto os EUA nem queriam saber dele. Eles logo encontraram o café Saint-
Germain-de-Prés, refúgio de artistas de todos os horizontes, inaugurando assim a
nova vida boêmia e rica em experiências parisienses. O Louvre era atividade
cotidiana do casal.

Harry não tardou a encontrar quem trouxesse mais inspiração na sua


vida. Ele logo se entregou a uma nova aventura amorosa, uma jovem e linda
francesa. Niki, por sua vez, decidiu se envolver com o marido dela. Segundo ela, ele
era um lorde Inglês (como ela passaria a chamá-lo, nunca mencionando o seu nome
em suas confidências) com tendências depressivas. Os dois passaram a colecionar
objetos cortantes e sinistramente alimentavam uma obsessão pela morte, num
contexto eroticamente excitante e, segundo ela, muito romântico (Saint-Phalle,
2006).

Naquela ocasião, Niki passou a entrar em contato com uma dor, a que,
para ela, nenhuma dor física podia se comparar. Algo difuso, de fundo emocional,
que ela ainda não conseguia nomear nem encontrar espaço para elaborar. Ela
dormia mal e sentia muita ansiedade. Naquele período, o casal e a pequena Laura
estavam morando numa casinha na região de Nice. Numa tarde, ela teria ido ao
ginecologista onde se sentiu muito constrangida pela maneira fria, humilhante e
invasiva que o médico a tratou. Mais tarde, chegando a casa, eles recebem a visita

14  
 
da amante de Harry. E foi “a gota” que faltava para que o dia acabasse mal... Mas
muito mal...

Ela teve uma crise nervosa extremamente violenta, quebrando tudo,


batendo em todos. Foram necessárias, ao menos, duas pessoas para contê-la. Eles
a levaram com dificuldades ao quarto e, ali, Harry descobriu o arsenal escondido de
objetos cortantes. Ela aceitou, sem resistência, ir com ele ao hospital psiquiátrico
onde foi atendida com urgência. Mas eles tiveram que voltar para casa e esperar
cinco (longos) dias para que um quarto fosse liberado para internação. Doutor
Cossa, o psiquiatra de formação analista junguiana responsável pelo setor, foi quem
atendeu a paciente e acompanhou o caso por muito tempo. Ele informou à família
que a situação era grave e ela teria que ficar internada por ao menos cinco anos.
Um tratamento de choque à insulina e dez choques elétricos foram ministrados à
paciente nas semanas que seguiram.

Harry estava em estado de choque. Ele não tinha noção do que havia
antecedido essa crise. Ele descobriu então sobre as inúmeras tentativas de suicídio
que Niki cometera, das quais, algumas “quase” tiveram sucesso. Era um grito
desesperado por mais amor e ajuda que ele não estava escutando. Ele a amava
tanto, como isso poderia ter acontecido? Enquanto isso, Niki, internada, recebia o
tratamento se perguntando se os ratos que avistava no seu quarto estariam saindo
de dentro dela, olhando o sol de Nice atrás das grades esperando a visita de Harry e
querendo, no mais profundo do seu ser, ver sua filha Laura.

Figura 1: No Hospital, (de Saint Phalle, 2006)

15  
 
Foi aí que algo muito importante aconteceu: ela sentiu uma urgência de
pintar. Algo que ela não explicava, mas simplesmente precisava fazer. Sem nenhum
material nas mãos, ela passou a colecionar folhas secas do jardim, cacos de
qualquer coisa, e conseguiu também um pouco de cola, realizando, assim, as
primeiras colagens. Um amigo, o músico Tony Bonner, foi visitá-la se deparou com
essa situação e lhe ofereceu um estojo de guache, pincel e algumas folhas. Neste
momento, iniciou-se um processo alquímico de cores e formas que o mundo ainda
não havia imaginado. Seis semanas depois, Niki estava em casa!

Obviamente, ela se comprometeu a manter visitas constantes ao


psiquiatra. Ela conseguiu abandonar o arsenal que carregava sempre consigo e que
a ajudava a se sentir protegida: um revólver sem balas, tesouras, facas de cozinha e
algumas lâminas de barbear (Saint-Phalle, 2010). Nesse período, outro evento
importante aconteceu: poucas semanas depois de voltar do hospital, ela recebeu
uma carta do pai. Era uma sexta feira à tarde. Assim, durante os dois anos
seguintes, todas as sextas feiras, na mesma hora, ela era tomada de uma
enxaqueca devastadora que a deixava na cama durante ao menos 24 horas.

Nessa carta, seu pai confessou o estupro e pediu-lhe desculpas. Ela não
se lembrava disso. Para ela, era um esquecimento que a protegia de uma verdade
insuportável. Ingenuamente, ela mostrou a carta ao doutor Cossa. E ele disse à Niki:
“Votre père est fou. Rien ne s’est passé. Il invente. La chose est impossible. Un
homme de son milieu et son éducation religieuse ne fait jamais cela.”7 (Saint-Phalle,
2010). Esse médico escreveu uma carta ao pai convidando-o a fazer um tratamento
psiquiátrico. Segundo ele, seria normal para uma filha dita histérica sofrer esse tipo
de alucinação e para um pai que se sente em culpa ser habitado por fantasmas
perigosos (Saint-Phalle, 2010).

Dessa maneira, eles voltaram à vida de todos os dias. Mudaram-se


algumas vezes na França, entre a capital e o campo, inclusive moraram algum
tempo na Espanha. Mas conservaram a vida boêmia de sempre, regada a muitas
discussões nos bares de Paris com amigos artistas, viagens insólitas, visitas

                                                                                                                       
7
Tradução livre: “Seu pai está louco. Nada aconteceu. Ele inventa. Isso é impossível. Um homem
deste meio e com esta educação religiosa nunca faria isso.”
16  
 
culturais, e baby-sitters para a Laurinha que crescia e se abria ao mundo
devagarzinho.

Ela abandonou a ambição de ser atriz de teatro e com poucos meios ela
assumiu sua nova meta: a pintura. Inicialmente ela tinha como mentor Hugh Weiss,
quem implorava que ela mantivesse seu gesto espontâneo e nunca fizesse uma
escola de pintura. Ela respeitou o pedido e assim foi. Naquele tempo, os bares de
Paris eram infestados de pessoas e discussões extremamente interessantes:
Matisse, Picasso, Dubuffet, Jackson Pollack, Jonh Ashbery, Rauchenberg, Jasper
Jhons, Jane Freilicher, Daniel Spoerri, Giacometti, Beckett, Saul Steinberg, etc. E
nesse contexto, nasceu o pequeno Philip, o segundo filho do casal.

Na primavera de 1959, a família saiu de férias em Belle Isle, na Grã-


Bretanha, com os amigos de bar parisienses, Joan Mitchell e Jean Paul Riopelle.
Estes últimos, embora artistas geniais, eram chegados num copo. Numa dessas
noites regadas a qualquer coisa alcoolizada para se beber, Joan distraidamente
soltou a frase: “So you’re one of those writer’s wives that paint.8” (Saint-Phalle, 2006,
p. 115). Ninguém se deu conta no momento, mas esse seria o elemento propulsor
que daria início a uma mudança radical na vida de todos.

Essa frase assombrou seus pensamentos durante um tempo de maneira


muito íntima. Harry até estranhou, ele sentia que ela parecia tão tranquila, delicada,
bem educada, dava a impressão que ela estava planejando algo (Saint-Phalle, 2006,
p. 115). Naquela época, eles estavam de férias nos EUA. Niki estava convalescente
de uma importante crise de hipertiroidismo que quase lhe custou a vida e a deixou
extremamente enfraquecida. Enfim, ela decidiu se abrir: pediu um ano sabático da
família, precisava se dedicar exclusivamente à sua arte e ser uma artista por ela
mesma. Voou imediatamente a Paris e o restante da família voltou de navio mais
tarde. Ela nunca mais voltou para casa. Passou a existir por ela mesma, dedicando-
se obstinadamente à sua arte. Precisava sentir que valeu a pena o sacrifício da vida
em família:

Mais quelle que fût la cause de ce trauma – émotionnelle, physique,


psychologique ou sociologique, Saint-Phalle en ressortit défiante, agressive,

                                                                                                                       
8
Tradução livre: “Então, você é uma dessas mulheres de escritor que pinta?”
17  
 
paranoïaque. Enhardie, son désir de poursuivre sa carrière d’artiste devint
une obsession. Cette crise lui donna confiance en l’intuition, la chance et le
non rationnel – elle lui permit de déceler la beauté de l’imparfait; et lui
9
inculqua un sentiment de méfiance face à l’illusoire perfection (Parente, in
Lower, 2001, p. 81).

Naquela ocasião, também, iniciou-se a relação com Tinguely, com quem


ela se casou mais tarde e com quem viveu por mais de 30 anos, constituindo assim
um dos casais mais criativos da história da arte. Ele era um escultor suíço integrante
do movimento Nouveaux Réalistes, uma pessoa com um caráter explosivo de difícil
convivência. Ele mantinha paralelamente uma relação com Micheline Gyrax, na
Suíça, com quem teve um filho: Milan. Niki acabou aceitando o menino como
membro da família e a vida paralela de Jean. Finalmente, as duas mulheres
acabaram por criar uma relação de cumplicidade. Quando Tinghely tomava a
estrada para ir à outra casa, elas se telefonavam advertindo. Ele era muito ciumento
e possessivo, assim elas se permitiam garantir um mínimo de liberdade individual.

Ele apresentou-lhe Pontus Hulten, Marcel Duchamp e Pierre Restany. E


ela, por sua vez, apresentou-lhe Jean Raushemberg e Jasper Johns, os poetas
Kennet Koch e John Asbery. Ela teria como mestres Gaudí, Facteur Cheval,
Matisse, Miró, Le Douanier Rousseau, Picasso, Paul Klee e Léger. E Jean se
inspirava em Malevitch, Calder, Duchamp, Tatlin, e no movimento Les Futuristes.

A produção de ambos foi extremamente contaminada pela cumplicidade e


colaboração do casal. O poder criativo era vitalizado pela imensa troca fecunda que
estimulava cada vez mais ir mais longe e mais loucamente. Um exemplo dessa
alquimia seria a obra Le Cyclop (ou La Tête - em português, A Cabeça)10.

Outro grave problema de saúde ocorreu com nossa artista durante os


anos 1974 e 1975. Seus pulmões se queimaram em consequência da emanação de
poliéster durante a realização das suas esculturas. Niki comentou que foi uma
                                                                                                                       
9
Tradução livre:”Qualquer que seja a causa deste trauma – emocional, físico, psicológico ou
sociológico, Saint Phalle ressurge desafiadora, agressiva, paranoica. Entusiasmada, seu desejo de
perseguir sua carreira artística se transforma em obsessão. Esta crise deu-lhe confiança na intuição,
na sorte e no não racional – permitiu-lhe revelar a beleza do imperfeito; e incutiu nela um sentimento
de desconfiança na perfeição ilusória”.
10
Le Cyclop é uma engenhoca de 22,5 metros de altura e 350 toneladas de aço na floresta de Milly,
França. Nele está representada uma cabeça sem corpo com um olho, uma boca onde deságua um
tobogã aquático, uma orelha de uma tonelada onde o visitante é convidado a descobrir uma estrutura
labiríntica com diversas atrações. Assinada por Jean Tinguely, ela foi criada com a cumplicidade de
Niki de Saint Phalle e outros – para mais informações: www.lecyclop.com.
18  
 
verdadeira descida aos infernos (Saint-Phalle, 2006). Muitas hospitalizações se
sucederam até que ela resolveu passar um ano num chalé em Saint Moritz (Suíça)
para se restabelecer. O isolamento era duro, mas necessário no momento. Jean
quase não foi visitá-la. A solidão foi imensa, a dor também. Naquele momento, Niki
escapou da morte mais uma vez: ela estava planejando o que era para ela: o
suicídio perfeito, quando foi tomada por uma grave pneumonia. Ao ser internada,
acabou mudando de ideia e abandonou o projeto fatal.

Entretanto, aquele ano foi crucial na sua carreira. Sozinha e com poucas
visitas, mas que finalmente tiveram muita influência no seu processo interno, lendo
Bachelard, caminhando nas montanhas, ela aprofundou seu processo criativo.
Nesse momento, foi concebido, gestado, criado, imaginado e digerido o maior
projeto da sua vida: O Jardim dos Tarôs. Ela sonhava em realizá-lo desde que
visitara, nos anos 1960, o Parque Güel de Gaudí, em Barcelona:

En 1955 je suis allée à Barcelone, avec mon mari Henry Mathews. C’est la
que j’ai vu le magnifique Parc Güell de Gaudi. J’ai rencontré à la fois mon
maître et ma destinée. J’ai tremblé. Je savais qu’un jour, moi aussi, je
construirais un jardin de joie. Un petit coin de paradis, une rencontre entre
11
l’homme et la nature . (Saint-Phalle, 2004, p.2).

A ideia era de realizar um monumento único e simbólico. A obra da sua


vida. E onde ela passou os quase 20 anos seguintes trabalhando e habitando. Jean
morreu em agosto de 1991 e ela em maio de 2002, em San Diego, EUA.

                                                                                                                       
11
Tradução livre: “Em 1955 eu foi a Barcelona com meu marido Henri Mathews. Foi lá que eu vi o
magnífico parque Güel de Gaudí. Eu encontrei ao mesmo tempo meu mestre e meu destino. Eu
tremi. Eu sabia que um dia, eu também, eu construiria um jardim de alegria. Um cantinho do paraíso.
Um encontro entre o homem e a natureza.”
19  
 
1.4. Uma vista panorâmica de seu universo artístico:
 

Quem fala através das imagens primordiais, fala como se tivesse mil vozes;
comove e subjuga, elevando simultaneamente aquilo que qualifica de único
e efêmero na esfera do contínuo devir, eleva o destino pessoal ao destino
da humanidade e com isto também solta em nós todas aquelas forças
benéficas que desde sempre possibilitam a humanidade salvar-se de todos
os perigos e também sobreviver à mais longa noite.
(Jung, 1930, p. 129)

1ª fase: Nigredo - Urobórica12

Niki de Saint-Phalle nunca estudou belas artes e nunca fez uma formação
artística. Jamais perdeu sua independência em relação às convenções e ideias
socialmente estabelecidas. Nos anos 1950, começou a pintar seus primeiros
guaches e óleos. Ela usava diferentes suportes e muitas cores sem economia, traço
naïf, já delineando uma grande expressividade num ambiente onírico, urobórico,
mítico, surreal, personagens femininos expressivos e carregados de emoção, de
paisagens estranhas, fundos escuros, animais voando, dragões, estrelas, luas e
céus vermelhos.

Nesse período, ela começou também a criar em torno de símbolos que


até o fim vão estar presentes na sua obra: serpentes, grandes árvores com imensos
e desnudos galhos estendidos, monstros marinhos e dragões. Também pintava
mulheres brincando, seminuas, com seios aparentes bem diferenciadas dos
personagens masculinos, num ambiente carregado de erotismo e de alegria de
viver. Ela já começava a colar alguns objetos em relevos de uma maneira pessoal,
metamorfoseando-os em uma nova significação.

Em seguida, ela começou a abandonar aos poucos a pintura e seus


personagens para investir nas suas primeiras assemblages, colando objetos
encontrados nos depósitos de lixo, em qualquer lugar, criando paisagens estranhas
e imaginárias. Começou também a criar ambientes vazios contrastando com
ambientes densamente repletos de objetos. Ela explodia-os, lançava flechas e tiros
na sua obra, num novo tom irônico, buscando novas relações com os materiais após

                                                                                                                       
12
Os títulos das fases foram escolhidos por mim. Fazem referência a processos alquímicos que serão
mais bem explicados adiante no capítulo da Força.
20  
 
a destruição definitiva. Descobriu o prazer de colar objetos associados à violência e
à ameaça: revólveres, facas, alvos com flechas, machados, etc.

Então, no começo dos anos 1960, ela iniciou sua “descida aos infernos”
(Hunten, apud Lower, 2001, p. 51) artística. Ela passou a cobrir objetos com gesso
branco e convidava o público a atirar as flechas na obra. Esses trabalhos refletiam
certa revolta, um abismo existencial, horror e desespero. Para Hulten (1999), era
uma forma de exorcizar e metamorfosear a vida burguesa originária, num gesto de
desafio. Evocando um sentimento ambíguo de fascínio e repulsa, ela enfrentou os
opostos: o feminino e o masculino – o submisso e a força. Sobretudo, ela introduziu
o tema da morte e da ressurreição.

2ª fase: Nigredo - calcinacio13:

“I Became  a  Terrorist  in  Art”                                              


(Niki  de  Saint-Phalle)

No começo dos anos 1960, ela já tinha abandonado a família e começado


a relação com Tinguely. Era um período muito conturbado politicamente na Europa.
Foi marcado pelas guerras, pelo fim das colônias africanas (na França, foi muito
sentida a guerra contra a Argélia), a Ásia estava em fogo. A bomba atômica era o
grande pesadelo e as revelações de Auschwitz doíam muito nas entranhas da
sociedade.

Trata-se de um período em que a arte ignorou esse contexto e tornou-se


mais interiorizada, intimista, cuidadosa, cultuando a beleza leve e
descompromissada. Mas nossa artista não se contentava com o movimento de seus
colegas. Criou, então, os famosos Tiros, que eram bolsas de tinta colorida
escondidas no interior de objetos cobertos de gesso branco puro e virginal,
ritualizando uma morte simbólica e sacrificial, e celebrando sua própria destruição
(Krempel, in Lower, 2001). Ela realizou performances onde ela (ou o público) atirava
(com uma espingarda ou um revólver) nessas bolsas, que, ao explodirem,
manchavam com todas as cores e o público podia então admirar a tinta escorrendo
como sangue:

                                                                                                                       
13
Idem citação n° 11
21  
 
En 1961 j’ai tiré sur: Papa, tous les hommes, les petits, les grands, les
importants, les gros, les hommes, mon frère, la société, l’Eglise, le couvent,
ma famille, ma mère, tous les hommes, Papa, moi-même, les hommes. Je
tirais parce que cela me faisait plaisir et que cela me procurait une sensation
extraordinaire. Je tirais parce que j’étais fascinée de voir le tableau saigner
et mourir. Je tirais pour vivre ce moment magique. C’était un moment de
vérité scorpionique. Pureté blanche. Victime. Prêt! A vos marques! Feu!
Rouge, jaune, bleu, la peinture pleure, la peinture est morte. J’ai tué la
14
peinture. Elle est ressuscitée. Guerre sans victimes. (Saint-Phalle, in
Lower, 2001, p. 53)

Hulten (1999) fala que foi uma forma de liberação das forças criadoras.
Era uma forma imediata de transmutação da realidade numa experiência de
destruição-criação, um revivificar e um ressignificar a realidade: “Après la série des
Tirs, tout était possible”15 (Hulten, 1999, p.15). Foi a partir dos Tiros que ela entrou
no grupo dos Novos Realistas, em que era a única mulher. Foi também nessa fase
que ela passou a ser conhecida pelo grande público que se sentiu seduzido tanto
pela sua beleza, como por sua postura segura e firme e por sua provocação. Sua
imagem passou inclusive a ser referência no movimento feminista. Com seu novo
grupo, eles passaram a atuar também nos palcos incluindo outros universos
artísticos: a música, o teatro e a dança.

3ª fase: Albedo³

Inicialmente nas colagens dos Tiros ela não buscava uma forma definida,
eram apenas objetos quaisquer unidos ao acaso num espaço delimitado esperando
o tiro fatal. Aos poucos começaram a surgir formas definidas no seu trabalho e os
tiros foram cessando. Ela entrou num período chamado Branco. Sempre na
perspectiva da assemblage, em seus relevos, ela passou a buscar reproduzir
imagens de noivas, mulheres grávidas, mulheres parindo, prostitutas, catedrais,
monstros, cabeças, caveiras e corações. Suas representações de mulheres muitas
vezes eram crucificadas e vitimizadas. As noivas seguravam buquês de aranhas e
bonecas desmembradas.

                                                                                                                       
14
Tradução livre: “Em 1961 eu atirei: no meu pai, nos homens, nos pequenos, nos grandes, nos
importantes, nos gordos, no meu irmão, na sociedade, na igreja, em todos os homens, no meu pai,
em mim mesma, nos homens. Eu atirava porque me dava prazer e que isto me fazia sentir uma
sensação extraordinária. Eu atirava porque me fascinava ver o quadro sangrar até morrer. Eu atirava
para viver este momento mágico. Era um momento de verdade escorpiônica. Pureza branca. Vítima.
Pronto! Apontar! Fogo! Vermelho, amarelo, azul, a pintura chora, a pintura está morta. Eu matei a
pintura. Ela ressuscitou. Guerra sem vítimas.”
15
Tradução livre: “Depois da série dos Tiros, tudo era possível”.
22  
 
Algumas dessas imagens, como as noivas e os monstros, adotavam um
aspecto infantilizado e passavam até a ser comercializados em bonecos de plástico
banais. Ela produziu, também neste período, assemblages de altares sinistros
crivados de balas, morcegos, revólveres, etc. Mergulhava, assim, nas marcas
deixadas por sua rígida educação religiosa. Ela certamente transmutava e purificava
sua energia, mas não deixaria de lado seus monstros, sua sombra, ela os
considerava como parte integrante dela mesma. Representando por exemplo, nos
buquês das noivas de aranhas e pedaços de bonecas desmembradas.

4ª fase: Rubedo - Cauda Pavonis16:

Nesse momento, as primeiras Nanas começavam a ver o dia. Elas


chegaram de mansinho, mas passaram a estar definitivamente presentes durante o
resto de sua carreira artística. Nana (se pronuncia Naná) é uma palavra francesa
que quer dizer “garota, menina”. Elas foram substituindo aos poucos as mulheres
feridas e enraivadas para dar luz às bonecas alegres, bem definidas, emancipadas,
de formas generosas e seguras de si. A Nana dança, grita, se afirma, ela sabe o que
faz, é misteriosa, é deusa-negra, é livre e criativa. Ela se veste de roupas
exuberantes, sensuais, coloridas, exóticas e brilhantes. Tem gestos ampliados
dançantes e sem preconceito.
Da pequena escultura de mesa à Hon, Niki explorou essa imagem em
todos os tamanhos, materiais, cores, maneiras e situações. Hon em sueco significa
ela. Foi construída com a ajuda de Tynguely e Peter Olof Utveldt para o Moderna
Museet, em Estocolmo, exposto em 9 de junho de 1966, e foi demolida para a
exposição seguinte a partir de 4 setembro do mesmo ano. Era uma Nana longa de
28m, 6m de altura e 9m largura. Ela estava deitada e o público entrava pela sua
vagina. Dentro, encontravam-se vários ambientes: um cinema de 12 lugares, onde
se projetava o filme de Luffalparpetter com Gretta Garbo. No cérebro, uma escultura
móvel de madeira, um planetário no seio esquerdo e um Milk-bar no seio direito. Nas
coxas, uma escultura radiofônica, no joelho, o banco dos amantes sonorizado todo
em veludo vermelho. Encontrava-se ainda um distribuidor de sanduíches, um
telefone, uma galeria de arte e um aquário. A música de Bach soava por todo lado
para a ambientação.  
                                                                                                                       
16
 Idem  citação  n°  11  
23  
 
Com as Nanas, Niki buscava a mulher arquetípica: elas relembram as
Vênus pré-históricas representantes da terra-mãe, inspiradoras da espiritualidade da
época. Com suas Nanas, ela realizou uma arte essencialmente feminina e
multifacetada da mulher.
Alguns símbolos do passado se transformaram junto com suas Nanas.
Parente (in Lower, 2001) comenta que os monstros ameaçadores se transformavam
em pássaros proféticos e desuses animais. Suas pinturas passaram a se
movimentar num jogo de construção-desconstrução-reconstrução (na série Tableaux
Ecartés). As serpentes viraram fontes coloridas nos jardins públicos e os dragões,
tobogãs para crianças. As cores passaram a ser suas grandes parceiras. Tudo era
colorido, exuberante, brilhante, presente. Uma verdadeira festa de alegria, leveza e
vitalidade.
Niki tinha um prazer em realizar esculturas monumentais como Hon, o
parque Le Golem, em Jerusalém, ou Le Cyclope, em Milly-la-Forêt, na França. Sua
obra mais extraordinária foi o Jardim dos Tarôs na Toscana. Eram esculturas
sempre cheias de cores, de brilho, de vitalidade, exuberância e densidade
significativa.
Na criação do Jardim dos Tarôs ela vivia numa dedicação e imersão total,
ela passou a viver no local no interior da mais extraordinária escultura, a Imperatriz.
A Imperatriz foi construída em poliéster pintado, inteiramente coberto de mosaicos,
na maior parte brilhante, com a dimensão de 15x15x15m. Perfeitamente construída
de forma habitável, lembrava uma gigantesca esfinge, com a cara de uma deusa
negra. No interior, os cômodos eram esculpidos como uma caverna inteiramente
cobertos de mosaico de espelhos. Era onde ela morava e se encontrava com a
equipe dos trabalhadores do jardim todas as tardes para um café. Niki falava dessa
arcano-escultura como sendo a “Grande Deusa Mãe, a Rainha do Céu. A Mãe, a
Emoção, a Prostituta e a Civilização” (Saint-Phalle, 2004). Ela realizava essas
esculturas sem projetos arquitetônicos, sem técnicas muito elaboradas. Fazia
simplesmente num solitário chamado visceral de realização e generosa celebração à
alegria e à vida.
Ainda, ela atuou no teatro, colaborando com diversas companhias na
realização de cenários, roteiros e performances, contribuindo com uma nova
vitalidade no teatro do pós-guerra. Também no cinema, realizou, escreveu e atuou

24  
 
em filmes de arte, como o cenário do filme The Travelling Companion, de 1966, com
a colaboração de Constantin Mougrave, ou o filme Le Rêve plus Long que la Nuit, de
1975, escrito por ela.
Gostaria de chamar a atenção ao filme Daddy, de 1972, com a
colaboração de Peter Whitehead, como exemplo de sua maneira catártica, poética e
exposta de se expressar. Nele, uma menina pré-adolescente simbolicamente
domina, humilha, se afirma sobre a figura de um tirano masculino matando-o 17
vezes. Em forma de poesia, ela exprimiu toda a sua cólera contra a situação
traumatizante, violenta e humilhante da menina violada. Ela mergulha nas águas da
sexualidade sem preconceitos, explorando a relação mãe-filha, pai tirano/menina
indefesa de uma forma exposta e profundamente simbólica.
Nesse filme, ela falou tudo, dançou nos símbolos, se desnudou na poesia,
na ousadia de quem se abria à sua sombra, enfrentava seus complexos com poucas
barreiras buscando a integridade do ser. Ela renasceu inteira, forte e cheia de vida,
lavando sua alma definitivamente pela violência sofrida no passado. Acredito que
esse filme mereceria uma atenção especial nas referências de situações de
violência contra crianças, na questão da coragem daquele que se relaciona com sua
sombra, na vida-morte-renascimento de um ser integral e com mais frescor criativo.
Ela fez uma série de esculturas em bronze polido sobre deuses egípcios.
Acrescentava pinturas a óleo coloridíssimas dando efeitos de extrema beleza e
originalidade. Criou, ainda, para produção em grande escala, objetos de decoração,
joias, bijuterias e objetos infláveis, inclusive um perfume que financiou parte do
jardim. E finalmente, ela contribuiu com vários movimentos de conscientização: o
mais famoso foi nos anos 1990, com seu filho Philip Mattews, em que ela produziu
um desenho animado intitulado “AIDS: You can’t Catch It Holding Hands”. Além
disso, recebeu prêmios pelo seu engajamento social.
Também publicou livros como Mon Secret (Saint-Phalle, 2010). Trata-se
da publicação de uma carta escrita à sua filha Laura, explicando a violência do
estupro e a solidão que se seguiu na sua história. Mas é, do mesmo modo, um
grande instrumento de conscientização da questão da violência contra a mulher e a
criança. Através de sua obra complexa, nessas ações ela mantinha uma postura de
um grande engajamento, sensibilidade, franqueza e empatia com os problemas da
sua época.

25  
 
2. A ARTE, PSICOLOGIA ANALÍTICA E VIDA SIMBÓLICA.
 

Não é Goethe quem faz Fausto, mas sim... Fausto quem faz Goethe.
(Jung, 1930, p. 159)

[...] J’ai imposé ma vision parce que je ne pouvais pas faire d’une autre
17
manière .
(Saint-Phalle, 2004, p.6)

Jung acreditava que a raiz do processo criativo habita o inconsciente.


Para ele, o processo criativo é um impulso natural que vem de baixo para cima (Van
Den Berk, 2012). O artista seria então alguém que teria a capacidade de ativar os
arquétipos*, transformando-os numa linguagem atualizada e formalizada.

Jung (1985) fazia uma diferenciação entre a expressão que tem por
origem o fundo psicológico e a de fundo arquetípico. Este primeiro teria como “pano
de fundo” processos e conteúdos oriundos do que estão no limite do que é
compreendido (inconsciente pessoal) e que não nos é estranho. São elementos que
nos são familiares e podemos, através de certa análise, esgotar no nosso
conhecimento e apreciação todos os sentidos e significados da mensagem proposta.
Essa arte se preocupa em falar de fenômenos sociais, questões de relacionamento,
questões didáticas, a “paixão e de suas vicissitudes, dos destinos e de seus
sofrimentos, da natureza eterna, seus horrores e belezas” (Jung , 1985, p. 140).

Por outro lado, temos a arte de fundo arquetípico. Essa arte possui uma
característica desconcertante por trazer em si temas desconhecidos, estranhos, que
não se compreende facilmente. Ela é portadora de uma carga afetiva e emocional
importante. É reveladora e não se intimida diante da possibilidade de provocar
angústia, destruição, e incompreensão de “natureza profunda, parece surgir de
abismos de uma época arcaica, ou de mundos de sombra e de luz sobre-humanos”
(Jung, 1985, par. 141). Pode ser demoníaca ou sublime, grotesca ou extremamente
frágil. O seu confronto é uma experiência que nos convida ao olhar intuitivo e aceitar
seu mistério. Ela é significação pura, emergente do fundo da vivência originária, na
qual as imagens não estão preocupadas com a beleza, mas com o vibrar de uma
energia conhecida, visionária, eterna, muito intuitiva e de difícil acesso. Jung

                                                                                                                       
17
Tradução livre: “Eu impus minha visão porque eu não podia fazer de outra forma”
26  
 
chamou essa arte de “Grande Arte” e tal é a arte com que estamos lidando nesta
pesquisa.

A maneira de acesso a esse material é através de insights profundos, que


podem ser induzidos através da experiência artística, da experiência religiosa e dos
sonhos, ou seja, na vida simbólica em geral. Na verdade, é uma experiência de
acesso aos arquétipos, cuja comunicação acontece através dos símbolos. Estes têm
a função de transmissão do que acontece no espírito original à consciência desde os
tempos mais remotos. Eles dão forma aos arquétipos e são capazes de nos
comunicar aquilo que sempre existiu na vida mais profunda e interior da humanidade
desde o começo dos tempos, que de outro modo não seríamos capazes de formular.
Eles sintetizam os contrários da nossa psique tornando possível a reconciliação.

Aniéla Jaffé (in Jung, 1964) explica que existe uma tendência natural
humana de formular símbolos. Tudo pode se tornar um símbolo a partir do momento
em que depositamos uma expressão religiosa ou artística, conferindo-lhes uma
importância psicológica e afetiva. Um símbolo se vivencia, não se interpreta. Neles
são representados conteúdos instintuais que não podem ser explicados com as
palavras ou na experiência racional. Eles são verdadeiras entidades vivas
provocadores de vivência numinosa.

Jung faz uma diferenciação entre pensamento originário (ou como


gostava de chamar, participation mystique) do pensamento moderno. O primeiro,
uma forma de identificação profunda e indiferenciada, seria a maneira de pensar
simbólica e intuitivamente. É o pensar do homem primitivo que se sentia interligado
entre o objeto e o sujeito num estado de inconsciência primordial. Tudo tem uma
significação essencial e tudo está ligado a tudo. E o segundo, por sua vez, valoriza o
pensamento lógico, reflexivo, explicativo, dissociativo e mental. Os afetos são
separados e a ciência, a religião e a arte se encontram cada um no seu domínio
especificado, onde tudo pode ser compreendido à luz da razão. Dessa forma, o ser
humano se vê distanciado da natureza com suas formas originárias (Jung, 1964).

Jung (1964) acreditava que a consciência moderna carrega um grande


perigo por trazer em si um fundo de precariedade. Segundo ele, ela não garante que
a mente não será preservada dos afetos e, ainda, nós vivemos numa ilusão de

27  
 
podermos ter controle sobre eles. A qualquer momento nós estamos expostos a ser
invadidos e dominados pelas emoções. Em outras palavras, ninguém está liberado
da força da manifestação dos nossos complexos.

Para entender os complexos, é necessário saber que Jung considerava


que existe uma camada mais ou menos superficial do inconsciente que se chama
inconsciente pessoal (Tommasi, 2005). Nesse inconsciente, habita a história de vida
de cada um com seus afetos e desafetos, frustrações e alegrias, condicionamentos,
acontecimentos, traumas, dificuldades, repressões etc. É nesse substrato que os
complexos se formam. Whitmont define o complexo como “um conjunto autônomo
de impulsos agrupados em torno de certos tipos de ideias e emoções carregadas de
energia, é expresso em identidade, compulsão, e primitividade, inflação e projeção,
enquanto ele se mantiver inconsciente” (1969, p. 53). Os complexos são verdadeiras
entidades vivas que invadem a consciência e provocam reações emocionais
dependendo da rede de associações que se constela no momento.

O inconsciente em sua constituição, possue uma parte mais superficial,


uma casca como diz Whitmont (1969), que respondem a um padrão pessoal onde os
complexos existem (junto com outras partes como a sombra o animus|ânima,
persona) e são facetas de um núcleo mais profundo. Esse núcleo é proveniente do
inconsciente coletivo, impessoal e universal. Seriam aptidões básicas ou tendências
pré-formadas que a humanidade compartilha de um modo generalizado. Estamos
falando dos arquétipos, que são estruturas psíquicas coletivas portadoras de
conteúdos universais, inatos e herdados.

Para Jung (1964), os instintos são uma pulsão fisiológica percebida pelos
sentidos, enquanto os arquétipos são a manifestação das pulsões que se apropria
dos símbolos (imagens ou mitos) para se comunicar. O arquétipo é um centro
energético que necessita que sejam construídos símbolos para dar forma e
significação adotando formas diversas seja por imagens ou por motivos mitológicos.
Ele depende das sensibilidades e das possibilidades podendo ter quantas formas
forem possíveis. Sua base é, portanto, sempre a mesma, ainda que a sua expressão
esteja vinculada ao seu tempo. Estar exposto à experiência arquetípica é ser
possuído por uma força fascinante e terrivelmente misteriosa que é a experiência
numinosa.
28  
 
Van Den Berk (2012) comenta que, para Jung, o momento em que os
conteúdos arquetipais se manifestam, trazendo à consciência os impulsos
inconscientes, é um momento de grande intensidade e por vezes chega a ser
violento. Podem aflorar conteúdos estranhos, desconcertantes, misteriosos e
incompreensíveis racionalmente. A vida consciente pode perceber expressão dos
complexos como ambígua, ilógica, ou indigesta, todavia eles são indispensáveis à
vida. A mente tem um papel importante na gestão dessa força. O Ego, o centro
consciente do nosso ser, precisa ter suficiente habilidade para canalizar, ordenar e
estruturar essa energia.

Jung (1964) acreditava que, para que se tenha uma existência saudável,
é necessário que exista uma relação equilibrada entre a parte instintiva
(inconsciente, arquetípica) e a parte racional (consciente, ego) do espírito humano. A
consciência necessita do inconsciente para enriquecer seu repertório comunicando
sua essência originária. Em compensação, o inconsciente precisa da consciência
para elaborar, organizar e racionalizar esse conteúdo. Os símbolos, portanto, são os
mensageiros que vão permitir a comunicação e a união desses opostos. Jung falava
que a experiência numinosa é a verdadeira terapia.

Retomando a questão dos complexos, eles são unidades expressivas que


dirigem nossa vida consciente por terem vida autônoma. Os complexos são também
faces das múltiplas manifestações arquetipais que enriquecem a consciência
desacelerando ou estimulando-a. Como entidades expressivas da psique, eles
podem ter uma característica tanto de natureza mórbida, reativa e negativa, como
também ter a característica criativa e renovadora da realidade (Van Den Berk, 2012).
Nesse contexto, eles são também portadores de fantasias, de mensagens dos
desejos mais profundos, trazendo o mundo interno à luz do dia, facilitando o
equilíbrio da vida psíquica.

Jung chegou à conclusão que a criatividade artística é um complexo, e


assim ele introduz o conceito de complexo artístico. Em outras palavras, para Jung a
arte é a formulação estética do complexo artístico (Van Den Berk 2012). Para Jung
(1985), o artista é alguém cujo complexo artístico inconscientemente o dirige, é uma
ação vivenciada com intensidade e ele não consegue escapar desse movimento
involuntário. O artista é uma pessoa que tem uma tendência a estar insatisfeito com
29  
 
o presente. Ele não consegue viver unicamente com a visão unilateral (egóica) como
a maioria das pessoas. Vive numa conexão que lhe transmite informações de
imagens e símbolos, buscando uma forma de expressão destes para ser
compreendida por seus contemporâneos. Suas imagens oferecem possibilidades
compensatórias na carência e na unilateralidade do seu tempo. Jung (1964)
comenta que os movimentos artísticos expressam o que o artista consegue captar o
que a sociedade em determinado momento não consegue perceber. Assim vão se
criando as escolas artísticas, como o realismo, o romantismo, naturalismo etc. que
são referentes às tendências do inconsciente de uma época.

O que acontece com o artista é que ele se apodera desses conteúdos que
ressurgem do fundo da sua experiência originária e vivencial, que influenciam a sua
intuição como um pressentimento ou uma visão criando um símbolo formalizado
numa obra de arte. O artista, para Jung (1985), teria então uma função educativa,
revelando, renovando e trabalhando continuamente no processo de autorregulação
espiritual na vida das épocas e das nações:

O segredo da criação artística e de sua atuação consiste nessa


possibilidade de reimergir na condição originária da participation mystique,
pois nesse plano não é o individuo, mas a vida de toda a humanidade. Por
isso, a obra prima é ao mesmo tempo objetiva e impessoal, tocando nosso
ser mais profundo (Jung, 1985, p. 160).

A força energética dos conteúdos arquetipais é chamada por Jung de


libido, bem diferente do conceito de Freud que se apoia unicamente na sexualidade.
Jung acredita que existe uma força irracional, misteriosa, operando e mantendo o
funcionamento e o equilíbrio do universo. A humanidade compartilha esse substrato
comum sobre a forma de inconsciente coletivo.

Jung afirma que as mesmas camadas inconscientes que geram o trabalho


de arte geram as alucinações psicóticas. No entanto, a pessoa mentalmente
transtornada não é capaz de tomar os fragmentos das informações para a
construção de uma nova estrutura significativa; o artista pode. Há um artigo de Jung
publicado em 1905 (Van Den Berk, 2009, pp.10-5) em que ele comenta como os
fenômenos psíquicos ditos normais e anormais estão próximos. Para ele, tanto o
artista como a pessoa que sofre de transtornos mentais estão sob a influência de
conteúdos arquetipais profundos. Assim, há uma relação diferente entre a doença
mental e o fervor artístico.
30  
 
O artista tem uma predisposição de relaxamento do controle egóico e está
vulnerável a mudanças de humor. Para Jung, o artista é uma pessoa paradoxal: tem
um lado de sua personalidade portadora de uma psicologia pessoal com seus
conflitos, sua história de vida que pode ser saudável ou não, tendo seu contexto
histórico e geográfico, etc. De outro lado, ele possui um instinto criador que o torna
“portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade” (Jung, 1985, P.
157). É uma pessoa conduzida, sobretudo, pelo seu inconsciente, que age por
necessidade de expressar visões que brotam sem nem saber às vezes como e de
onde vêm. É possível que ele tenha uma vida muito precária e insuficiente nas
necessidades cotidianas da humanidade comum por causa do seu relaxamento
egóico. Pode ser que no seu dia-a-dia ele tenha reações infantilizadas, negligentes,
seja egoísta, e possua o que Jung chama de autoerotismo: seja arrogante ou tenha
muita vaidade. Lembrando que o ego é necessário para fortalecer a vida consciente
de todo dia.

Também isso explica porque muitas vezes o artista esquece a fome, o


frio, trabalha em condições por vezes inumanas, sofre de doenças mal curadas,
alcoolismo, etc. Ele acaba pagando caro por seu impulso criador com uma vida
conflituosa, sofrida, sombria e precária. Jung (1964) diz que o artista é aquela
pessoa que caminha nos atalhos, nos desvios, diferente das pessoas ditas normais
que caminham na estrada principal.

O artista que despende muita energia para suas inspirações instintivas


pode sofrer dessa fraqueza, dessa luta de poderes interna, mas de forma alguma
isso quer dizer que seja doença mental. A doença mental implica sofrimento.
Quando a pessoa está doente, se sentindo mal tanto fisicamente como
mentalmente, ela não cria.

A criação necessita de uma abertura para que ocorra o estado de


plenitude, de numinosidade e de sustentação do ego para a realização de algo. A
obra artística é a vivência originária da humanidade, que o artista formaliza através
da sua técnica na condição de participation mystique. A criação, então, “não é um
produto psiquiátrico, mas um trabalho artístico.”  (Van Den Berk, 2009, p. 7/2):

31  
 
Au tout début du jardin j’étais accablée par l’arthrite rhumatoïde et je pouvais
à peine marcher et utiliser mes mais, mais j’ai continué, RIEN ne pouvait
m’arrêter. J’étais ensorcelée. Je sentais aussi que c’était ma destinée de
18
faire ce jardin n’importe la grandeur des difficultés (Saint-Phalle, 2004,
p. 4).

                                                                                                                       
18
  Tradução livre: “No começo do jardim eu estava destruída pela artrite reumatoide e eu mal podia
caminhar e utilizar minhas mãos, mas eu continuei, NADA poderia me fazer parar. Eu estava
enfeitiçada. Eu sentia que era o meu destino realizar esse jardim não importando do grau das
   
dificuldades”.
32  
 
3.  A OBRA DO TARÔ DE NIKI DE SAINT-PHALLE

Comme dans tous les contes de fées avant de trouver le trésor j’ai rencontré
sur mon chemin les dragons, les sorciers, les magiciens, et l’ange de la
19
tempérance .
(Niki de Saint-Phalle, 2004, p. 6)

3.1. O Tarô Como Sistema Simbólico:

O Tarô é um conjunto de cartas cuja origem é misteriosa e muito antiga.


Fala-se que é o ancestral do nosso baralho atual. Muitas tradições assim como
muitas lendas reivindicam a sua autoria como os egípcios, os caldeus, os árabes, os
hindus, os gregos, os chineses, os maias, etc. Fala-se que Adão criou as primeiras
cartas ditadas por anjos e que Deus em pessoa cuidou de inspirar os seus
significados.

A palavra Tarô poderia ter a origem egípcia (tar = caminho, ro, rog = real);
ou no hindu-tártaro (tan-tara = zodíaco); ou no hebreu (tora = lei); no latim (rota =
roda, orat = falar); no sânscrito (tat = o todo, tar-o = estrela fixa); no chinês (tao =
princípio indefinível), etc.
(Jodorowski, 2004). Ainda,
nas grandes tradições
religiosas como os
muçulmanos, cristãos, os
judeus, ou mesmo entre
sociedades secretas como os
alquimistas, os maçons, os
ciganos e a rosa-cruz.

Muito se fala, mas


pouco se sabe sobre sua
origem e como as 22 imagens

Figura 2: Os 22 Arcanos do Tarô de Marselha foram se formando ao longo


da história. Sabemos que o
 
tarô exerce uma atração universal arcaica e ele possui um poder de ativar a
                                                                                                                       
19
Tradução livre: “Como em todos os contos de fadas antes de encontrar o tesouro eu encontrei no
caminho de dragões, bruxos, mágicos, e o anjo da temperança”.
33  
 
imaginação humana. As suas imagens foram sendo criadas ao longo da experiência
humana num nível muito profundo (Nichols, 2007). Elas evocam grupos de
sentimentos, intuições, pensamentos, sensações, ou seja, são imagens que
representam diferentes arquétipos. Estas imagens representadas em cartas são
chamadas arcanos.

Existem atualmente uma grande diversidade de tarôs com seus motivos e


universos particulares. Falaremos aqui do Tarô de Marselha, muito antigo, não foi
assinado por nenhum autor e não possui um texto explicativo como na maior parte
dos demais. Um tarô sem texto permite que possamos nos abrir ao que as palavras
não contam. Nichols (2007) acredita que a partir do momento que uma carta traz um
texto explicativo, ela passa a ser alegórica e não simbólica, as figuras passam a ter
uma função de tentativas de explicação de conceitos clarificados verbalmente e sem
grandes dificuldades.

As cartas/arcanos do tarô de Marselha são portadoras de um material


simbólico complexo. Trazem imagens com uma grande riqueza de detalhes que
podem ser inseridos numa leitura. Todavia, essa leitura pede se faça de maneira
instintiva e intuitiva. Os arcanos, numa leitura analítica junguiana, servem
simplesmente para uma ampliação que permitirá uma abertura a novas perspectivas
de percepção. Promovem um diálogo interno, a pessoa pode se conectar
intimamente percebendo que forças estão operando no momento. Pode-se, assim,
ter uma ideia de quais mensagens o inconsciente quer transmitir e ativar sua vida
criativa. A sua leitura ou percepção pode permitir ao intelecto acalmar o caos dessa
transmissão criando uma lógica, promovendo a ocasião de se sistematizar
minimamente de maneira que o consciente possa se integrar. No entanto, nunca
haverá um esgotamento dos significados. O universo arquetípico nunca esvaziará
seus mistérios.

No tarô de Marselha as cartas são numeradas e seguem uma sequência


muito precisa. Tudo pode significar algo: as cores, os fundos, os objetos ilustrados,
os olhares (à direita ou esquerda, que tipo de olhar...), a posição de cada elemento
do contexto, as posturas, as vestimentas,... Tal conjunto de elementos é resumido
num personagem como o Mago, o Enforcado, a Imperatriz, etc. E cada qual tem sua

34  
 
representação arquetípica, por exemplo, a Imperatriz e o Imperador representando
os arquétipos de mãe e pai, o Papa e o Eremita seriam facetas do velho sábio, etc.

Jodorowski (2004) define o tarô como a união de arcanos. Ele imaginou


os arcanos como partes de um todo unificado e complexo formando um mandala. O
mandala (ou seja, círculo, em sânscrito) é um símbolo hindu de representação da
totalidade. Ele tem um espaço central considerado sagrado que está representado
igualmente no altar ou templo sagrado. Desdobra-se numa complexidade que são
unidades interrelacionadas, formando um círculo e sendo, ao mesmo tempo, a
“imagem do mundo e representação do poder divino” (Jodorowski, 2004, p. 31). Mais
uma vez estamos tratando aqui de um símbolo arcaico e enraizado no inconsciente
coletivo da humanidade.

Aniéla Jaffé (in Jung, 1964) traz alguns exemplos de representações de


mandalas: os círculos Zen significando a iluminação e a perfeição divina ou
mandalas nas catedrais europeias representando “o self transposto na unidade
cósmica” (p. 241). Ou, ainda, os muros das primeiras igrejas romanas, a auréola do
Cristo e dos santos, as rodas solares neolíticas, etc. O ser humano representou o
círculo desde sempre em muitos domínios como a arquitetura, na urbanização, na
arte e na religiosidade.

Jung se interessou pelo símbolo do mandala lhe conferindo grande


importância. Ele percebeu que ela é o símbolo por excelência do self, ou seja, da
totalidade do individuo: consciente e inconsciente integrados, sendo a representação
dos paradoxos por excelência. O desdobrar das partes num círculo complexo
representa a integridade natural (Von Franz, in Jung 1964). Nela estão
representados os aspectos dinâmicos do processo que são: nascimento - morte –
renascimento da unidade. O mandala nos remete à criação do universo que, da sua
unidade divina, se fragmenta criando as partes. Essas partes vão sendo reveladas
por meio do trabalho iniciático que, ao se juntarem os fragmentos, se reencontra o
todo. Assim concluímos que ela é o símbolo da individuação por excelência.

No Tarô, o trabalho iniciático consiste em se expor a sabedoria ancestral


de cada arcano buscando a conexão interna e o autoconhecimento. O Tarô seria
então um sistema de representação de múltiplas potencialidades humanas

35  
 
chamadas arquétipos, tendo a função de comunicar a sabedoria arcaica de cada
arcano. A partir das figuras estampadas nas cartas, existe uma conexão instintiva
que permite ao indivíduo ser chamado a refletir sobre sua própria existência. O tarô
teria uma função de oráculo, que exerce uma influência sobre nossa psique,
facilitando a adoção de uma ação criativa e inspirando novas ideias e descobertas
de si.

Nichols (2007) fala que Jung viu no Tarô uma rica expressão do
inconsciente coletivo, conceito que criou para designar uma espécie de conteúdo
residual de todas as experiências da humanidade. Lá estão representados, por
exemplo, o amor materno, a autoridade paterna, o impulso para a guerra, ímpeto
criativo, conecção com o self, e o fascínio pelo divino. Na sua complexidade
simbólica por seu profundo aspecto arquetípica, o tarô responde pela expressão
desses conteúdos e por uma necessidade de troca entre o inconsciente e consciente
e é um suporte interessante para a individuação.

36  
 
3.2. O Jardim dos Tarôs de Niki de Saint-Phalle
 

Le tarot m’a donné une plus grande compréhension du monde spirituel et des
problèmes de la vie et aussi un éveil aux difficultés qui doivent être surmontés
pour qu’on puisse aller à la prochaine épreuve et à la fin du jeu trouver la paix
20
intérieure et le jardin de paradis.
(Saint-Phalle, 2004, p. 70)

Tudo começou com a experiência de Niki de Saint-Phalle ao visitar, em


1955, o parque Güel realizado por Gaudí em Barcelona, fato que marcou sua alma
durante muitos anos. Diz ela que neste momento tremeu e teve a impressão que
encontrou enfim seu destino (Saint-Phalle, 2004). Acredito que neste momento
preciso houve uma verdadeira experiência numinosa. Como Jung (1988) a define, tal
experiência acontece quando um arquétipo é ativado. É uma experiência de caráter
compulsivo e vem carregada de emoção.
Tem o poder de alinhar o consciente com
o inconsciente. É uma experiência forte,
indescritível. A pessoa tem a sensação
de iluminação. Apodera-se do indivíduo e
acontece independentemente da sua
vontade. O indivíduo, na verdade, é
“mais sua vítima que seu criador” (Jung,
1988, p. 30). Essa experiência tem o
poder de modificar a consciência da
pessoa passando a fazê-la sofrer uma Figura 3: Vista do Jardim do Tarô de Niki de
espécie de encantamento que em seguida Saint Phalle, fonte: http://www.nikidesaintphalle.com,
consultado no dia 04/01/2014
vai influenciar a sua vida.

O jardim foi construído após uma longa hibernação no inconsciente da


artista. Ela se consagrou à sua construção principalmente entre anos de 1979 a
1996. O terreno foi emprestado pelos amigos Carlo e Nicola Caracciolo, na cidade
de Garavicchio, no sul da Toscana, Itália. São esculturas gigantescas para cada um
dos 22 arcanos do tarô de Marselha.

                                                                                                                       
20
Tradução livre: “O tarô me trouxe uma maior compreensão do mundo espiritual e dos problemas da
vida e também um despertar das dificuldades que devem ser ultrapassadas para que possamos ir
adiante até a próxima batalha e no final encontrar a paz interior e o jardim do paraíso.”
37  
 
Foram usadas armaduras de ferro com concreto coberto de cerâmica
fabricada no local. Inclusive, foi reativada uma técnica egípcia na qual se moldava a
cerâmica diretamente no local para depois receber o cozimento ao menos três
vezes. Para evitar a diminuição da cerâmica no cozimento, acrescentava-se vidro
cortado à mão.

Algumas peças de poliéster foram fabricadas no seu atelier de Paris. O


vidro, que vinha diretamente de Murano, foi utilizado em muitas esculturas além da
cerâmica. Os efeitos finais tornaram as esculturas repletas de cores brilhantes e
expressivas. Uma das coisas que mais impressiona são as paredes interiores da
Imperatriz completamente cobertas de espelhos cortados e aplicados em mosaico.
Seu marido Tinguely colaborou com algumas esculturas mecânicas. Muitas pessoas
amigas, artistas de horizontes diversos e alguns moradores locais contratados
trabalharam na construção. O ambiente era de extrema dedicação e imersão, eles
viviam como uma família. Nunca houve um projeto arquitetônico. Tudo foi feito à
mão e a olho nu de uma maneira absolutamente intuitiva.

Niki morava no interior da imensa escultura da Imperatriz onde a equipe


se encontrava todas as tardes para um café. Inicialmente não havia conforto algum:
sem fogão, sem geladeira, fazia frio no inverno e calor no verão, era cheio de
mosquitos, etc. Aos poucos eles foram tornando a escultura mais habitável e
acolhedora. Durante a construção, Niki sofreu de uma grande crise de artrite
reumatoide. Ela tentou esconder a dor durante muito tempo para não ter que parar
de trabalhar, mas não teve jeito, e mais uma vez, foi hospitalizada de urgência.

Quanto ao financiamento, foi outra guerra contra os obstáculos. O custo


total ficou entre 4 a 5 milhões de dólares. Um terço do jardim foi financiado pelo
perfume criado por ela e o resto veio de ajudas diversas. Quanto às questões
burocráticas, tudo foi feito com bastante dificuldade e improvisação: eles não davam
conta de fazer a papelada que a prefeitura pedia, sofriam pesadelos de não poder se
adaptar às exigências, mas enfim, conseguiram passar pelos trâmites legais com
sucesso final.

Niki fala da sua casa, a escultura da Imperatriz, como a mãe


reencontrada. Como se essa mãe exercesse um poder àqueles que a penetravam.

38  
 
Ela passou muito tempo no interior morando e compartilhando momentos com sua
equipe. Conta que passava horas olhando a vida ao exterior pela janela. Ela se
sentia em segurança e transportada num espaço de magia onde tudo era possível.
Para ela, eram momentos em que a sombra convivia com a luz:

Dans ce espace magique, je perdis toute notion du temps. Les limitations


imposées par la vie normale se trouvaient abolies. Je me sentais rassurée e
transportée. Ici tout était possible. Mais il y avait aussi le versant d’ombre.

J’ai souffrait d’insomnies et sentais dans la nuit chaque seconde pousser


l’autre. Bien sûr, j’imaginais que Dieu devait réellement m’aimer et m’avoir
choisie pour édifier le Jardin. Mais j’avais aussi des visions d’enfer: des
milliers de petits démons noirs, luisants, avec des ailes horribles, sortaient
de tous mes orifices, dégoutants, repoussants. Pourrais-je me débarrasser
d’eux? Au milieu de la nuit, j’ouvrais grandes portes du Sphinx et ils
21
s’envolaient (Niki de Saint-Phalle in Hulten, 1999, p. 181).

                                                                                                                       
21
Tradução livre: “Neste espaço mágico, eu perdia a noção do tempo. As limitações impostas pela
vida normal eram abolidas. Eu me sentia segura e transportada. Aqui tudo era possível. Mas tinha
também seu lado sombra. Eu sofria de insônia e na noite eu sentia cada segundo empurrar o outro.
Claro, eu imaginava que Deus devia realmente me amar e ter me escolhido para a construção deste
Jardim. Mas eu tinha também visões do inferno: milhares de pequenos demônios pretos, lisos, com
asas horríveis, saiam de todos os orifícios, nojentos, asquerosos. Eu podia me livrar deles? No meio
da noite eu abria a janela da esfinge e eles voavam.”

 
39  
 
4. OS ARCANOS E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO SEGUNDO NIKI DE
SAINT-PHALLE:
 

4.1.1. O Louco
Le numéro du Fou est zéro, (pas de nombre) mais
pour moi le zéro est un chiffre. Le fou dans le jeu du tarot est aussi fort que
les autres cartes mises ensemble. Pourquoi ? Parce qu’il représente
l’homme sur sa quête spirituelle, ne sachant pas où il va. Le fou est prêt à
découvrir. Il est le héros des contes de fées qui apparait comme débile mais
22
au fait est capable de trouver le trésor.
(Saint-Phalle, 2004, p. 26)

Esta carta é um arcano diferente dos outros porque ela não tem um
número, é o zero. Ela pode ser tanto a carta número zero como 22. É como se fosse
um arcano que estivesse por toda parte e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Ele
traz a ideia de vazio. Está do lado de fora do tarô, vai aonde ele quer quando ele
quer, está fora do espaço-tempo servindo de vínculo do principio ao fim.
Normalmente, é representado como um andarilho que caminha acompanhado de um
cachorro carregando um bastão, um instrumento musical e uma trouxa.

Segundo Nichols (2007), esse arcano inspira fascínio por ser uma carta
que carrega um simbolismo de ampliação, de mudança de caminho, de ímpeto à
ação (energia), de liberdade, o andar sem muito pensar – mas assertivo, ele
empurra para a vida. O andar do louco é um andar com o olhar no futuro sem deixar
de se servir do olhar da inocência da infância passada. Nichols comenta que o
Louco anda como um louco, mas sabe a dose ideal para não sair da estrada. O
louco não erra no seu caminhar, ele avança sem se importar com as regras do bom
senso, ele age inspirado pelos seus instintos (Chevalier, 2011). O cão o está
acompanhando, relembrando sua íntima relação com o mundo animal e instintivo de
quem dita as coordenadas da viagem.

Nichols (2007) considera-o como o herói que sempre vence com sua
maneira despreocupada, debochada e inocente de ver mundo. Ele perturba a
ordem, desconcerta, e se diverte com isso. É o bufão, o bobo da corte, o arlequim, o
                                                                                                                       
22
Tradução livre: “O louco é o número zero, (sem número) mas para mim o zero é um número. O
louco no jogo do tarô é tão forte como todas as outras cartas colocadas juntas. Por quê? Porque ele
representa o homem na sua busca espiritual, não sabendo aonde ele vai. O louco está pronto a
descobrir. Ele é o herói dos contos de fada que aparece como débil, mas na verdade é capaz de
encontrar o tesouro”.
40  
 
palhaço, o coringa. Como coringa ele representa o vazio, aquele que não tem função
nenhuma, mas que pode mudar o curso do jogo a qualquer momento. Ele aparece
quando quer, mesmo se não for chamado. Seu sorriso dissipa a agressividade. Se
ele decide, e se ele quer, ele traz a destruição e
anarquia. Como um bom bobo da corte, ele se
senta ao lado do rei repleto de privilégios.
Desconfia-se até de que ele é o espião do rei: “ele,
sem dúvida, observa e relata o que fazemos a
“Alguém lá em cima”” (Nichols, 2007, p. 39). É
aquele que recebe a inspiração divina. É a própria
representação do que unifica os dois mundos: porta
em si o olhar numa terra não verbal, uma terra
ancestral, que lhe é familiar, e o olhar dos eventos
contemporâneos de todos os dias. Com a sua
sabedoria instintiva, ele consegue encontrar a
dosagem certa para dar uma nova direção sem
estar muito ridículo. Apesar da sua loucura, ele
inspira segurança pela sua sabedoria.

Figura  5:  Arcano  O  Louco,  Tarô  de  Marseille, Falando sobre cães e estudando o
Jodorowski  (2004)      
instinto da vida social dos lobos em estado
selvagem, encontrei uma semelhança com o papel hierárquico do lobo Ômega.
Segundo Ellis (2007), numa alcatéia de lobos, a questão da hierarquia fortemente
estabelecida é a condição básica para a sobrevivência do
grupo. Existe o status do lobo Ômega, um lobo mais fraco
desde o nascimento, menor que os outros. Tem uma
expressão meio inocente, seu uivo é mais melodioso que
os outros, quase um canto. Ele fica um pouco de fora: é o
último a comer e não participa dos ataques à presa como
os Alpha, Beta, e Gama. Desde seu nascimento os outros
o provocam sempre exercendo um papel de bode Figura  4:  Lobo  Ômega  (de  baixo),  
fonte:  
expiatório. Ele passa o dia brincando com os demais em http://www.gayanature.com/le-­‐
loup-­‐omega-­‐a104100864  
posição de submissão. Ellis (2006) fala que ele é (consultado  no  dia  4/01/2014)  

41  
 
tradicionalmente chamado de o palhaço do bando, ele tem inclusive outro apelido
sugestivo de lobo-Cinderela. As pesquisas mostraram que este lobo não é tanto o
infeliz da alcatéia quanto parece. Ele é o único do grupo que come os restos da caça
diretamente da loba Alpha (a loba comandante da alcatéia), ou seja, os melhores
pedaços, enquanto os outros (Beta e Gama) têm o direito de comer os pedaços de
segunda categoria que a Alpha decide. Os estudiosos perceberam que esse lobo
tem uma função de equilíbrio no bando: com suas brincadeiras, ele relaxa as
tensões, é receptor de toda agressividade do grupo e faz com que se mantenha a
coesão social. Nas refeições, ele protege o espaço dos lobos de alto escalão, se
fazendo de bobo e brincando, evitando assim maiores conflitos   no momento em que
todos estão famintos.

O instrumento musical representa esse espaço inocente e profético do


artista e o bastão representa o poder. Em alguns conjuntos de carta, o bastão é de
cor ouro dando uma conotação alquímica. Nichols fala do “símbolo do fogo
prometeico, o poder transformador que cria a civilização” (Nichols, 2007, p. 46). A
trouxa em geral é representada na cor branca, simboliza a espiritualidade e a
pureza. Louco em inglês é fool, em francês fou, vem do latim follis, par de foles ou
cornamusa, a gaita de foles. O louco (como o coringa) é representado, às vezes,
tocando cornamusa. Os foles ativam o fogo fornecendo o oxigênio, assim como o
louco, segundo Nichols (2007), fornece o espírito, o ar quente, como o bufão (buffo
em italiano – do verbo buffare, em português, bufar). Fornece o sopro divino e
espiritual, é quente por sua ligação com a energia.

Jodorowski (2004) vê o louco como aquele que é portador da grande


energia original, libertadora e sem limites. Ele inspira a perda da razão, o ímpeto
criativo fundamental. O louco para ele é aquele que não tem nacionalidade nem
pertencimento a qualquer organização. Ele não julga, não tem complexo, não tem
necessidade, não tem eira nem beira, sem destino e sem finalidade. Aquele que
“toca a música das esferas e conhece a harmonia cósmica”   (Jodorowski, 2004, p.
134). Ele possui a sabedoria da trindade criativa: criação, conservação e dissolução.

Jodorowski (2004) acrescenta que essa energia é aquela de que


precisamos no momento em que queremos tomar um novo caminho e iniciar um
novo projeto. É o convite para passar à ação, numa atitude de, segundo ele,
42  
 
inconsequência sábia – deixando-se impregnar pelo instinto primitivo ou pela loucura
sagrada existente em cada um de nós. Podemos falar também da energia impessoal
que buscamos na outra dimensão das palavras e atitudes certas que vão alargar os
limites.    

O louco é um símbolo   de natureza fálica, portanto, de fertilização da vida


e de impulso criativo. Nichols (2007) faz uma interessante vinculação do número
zero do louco com o símbolo do círculo. Como já comentamos acima, o círculo é o
símbolo de totalidade. Ela vincula o fato de o louco estar no começo e no fim das
cartas com o símbolo do uroborus, a serpente que morde sua cauda criando um
círculo. Para ela é uma representação do estado original da natureza. O símbolo do
uroborus (Chevalier, 2011) contém a ideia de movimento, continuidade e
autofecundação, em consequência de eterno retorno - sendo uma força propulsora
da individuação  (Nichols 2007).

O Louco, portanto, é aquele que está conectado diretamente com o Self e


é portador, ou podemos dizer, o tranmissor de seus conteúdos representados pela
sua trouxa sagrada. É seu mensageiro e seu representante oficial. Aquele que serve
o Grande Princípio Orientador (Self), trazendo à consciência suas verdades e sua
essência. Ele é uma energia, um princípio, regido por um grande senso de liberdade.
A partir desta conexão, o ser consciente descobre seu lado selvagem, transcendente
e divino.

O self, para Jung, é um conceito incerto e abrangente, difícil de ser


definido. Jung tenta explicar o conceito de self sendo um “resumo hipotético e de
uma totalidade indescritível” (Jung, in Whitmont, 1969, p. 194). Samuels (1989) fala
que o self é “(...) o potencial para a integração da personalidade inteira”. Nele
estariam incluídos “(...) todos os processos psicológicos e mentais, a fisiologia e a
biologia, todas as potencialidades positivas ou negativas, realizadas ou irrealizadas,
e a dimensão espiritual.” Ele é a essência e a totalidade do ser, pois ele contém as
“(...) sementes do destino do indivíduo e remete, também, à filogenia”. É chamado
também de “arquétipo central”, “centro de um campo energético” (Samuels, 1989, p.
115).

43  
 
Para ilustrar, podemos imaginar um mandada com seu centro sagrado,
representando a essência do ser, que conteria a essência da vida numa ideia de
pertencimento cósmico. Esse centro seria perfeitamente inconsciente e seria
compartilhado com a humanidade inteira pelo que Jung chama de inconsciente
coletivo. Podemos acessá-lo por meio de intuições, revelações, vivências religiosas,
simbólicas, e ainda, para compreender algo dele, temos que usar da nossa intuição
sem nunca poder ter acesso à totalidade dos conteúdos.

Em seguida, temos o desdobramento numa circunferência complexa, e


vamos observando desfilar a totalidade dos conteúdos da vida psíquica interior nas
suas respectivas interações. O ego seria um núcleo que representaria da vida
consciente e estaria em alguma parte na periferia exterior dessa circunferência.
Esse conjunto inteiro que envolve vida consciente e o inconsciente seria o que Jung
chamou de self. Whitmont comenta que o ego é apenas um executor dos planos do
self. Ele coloca o self como sendo um “campo de energia que tem como objetivo
realizar um padrão de personalidade e de vida que, como potencialidade, é dado “a
priori“. Jung fala de “instinto de vida” (Whitmont, 1969, p. 195).

O self tem uma função de equilibrar e padronizar. Ele está sempre


influenciando o consciente, mesmo que às vezes não se perceba claramente.
Samuels enumera as principais funções do self: “a) sintetizador e mediador dos
opostos dentro da psique; e b) agente principal na produção de símbolos profundos,
fascinantes e numinosos, de natureza reguladora e autocurativa”  (1998, p. 116).

Num processo unilateral (por exemplo, num caso de extrema


racionalização), em que os conteúdos paradoxais não encontram um meio de
expressão, é produzido o desequilíbrio. Por consequência, isso pode ser levado à
psicopatologia. O self, então, iria facilitar o acordo entre ambos numa forma de
síntese, enviando mensagens por meio de símbolos. Essa síntese se faz por um
processo compensatório que envolve o equilíbrio e a autorregulação, ocorrendo
assim retificação do desequilíbrio, o que Jung chama de função transcendente.

Como vimos acima, a linguagem do self é simbólica. Quanto mais


profunda a origem do símbolo, maior o sentimento de integração e de estar no bom
lugar no bom momento. A experiência do confronto com símbolos sélficos é sempre

44  
 
numinosa porque nos conecta com algo muito profundo da nossa essência, podendo
até haver uma mudança radical de estilo de vida. Muitas vezes tomamos decisões
inspiradas em uma reflexão racional, baseada em questões morais, sociais,
exigências profissionais, etc. De repente, somos surpreendidos pelo nosso self nos
enviando mensagens completamente opostas desequilibrando nosso plano – sem
querer. Esse é o efeito de louco nas nossas vidas, debochando das exigências,
tentando reorientar os projetos e trazendo novas necessidades que parecia não
termos levado em consideração anteriormente, mas que nos transformam, fazendo
com que estejamos mais próximos de nós mesmos:

Nossa modalidade coletiva é desafiada por aquilo que se apresenta como


consciência individual e como o significado de uma vida estabelecida de
modo único. Nesta fase, os elementos antes mantidos sob rígido controle,
nossos apetites, desejos e anseios morais ou imorais, podem ter
necessidade de encontrar expressão ativa no padrão de inteireza recém-
desenvolvido. O antigo “mal” é levado a ser um novo “bem” (Whitmont,
1969, p. 196).

45  
 
4.1.2. O Louco de Niki de Saint-Phalle

O louco representado por Niki é uma escultura toda vazada, as roupas e a


trouxa são bem coloridas (verde claro e escuro, laranja claro e escuro, amarelo,
branco e preto). Relembram a brincadeira, a alegria das cores, a transparência, o
desprendimento, e o jogo de luz e sombra das partes pretas e brancas. Todo o resto
é azul (cabeça e membros), representando sua busca espiritual que, por sinal, ela
evidencia no seu texto citado acima. Jodorowski (2004)
fala que aquele que caminha com a cor azul é guiado
pelo principio divino, é o que sacraliza seu caminho. Os
cabelos do louco de Niki mostram que ele está em
movimento. Ele se dirige ao lado direito do caminhar
assim como seu olhar. Essa direção evidencia que ele
caminha voltado para a vida real com os pés bem
fincados na terra, mas com seu universo de louco.

O cachorro de cor marrom-terracota se


encontra logo atrás do pé esquerdo como se estivesse Figura 7: Escultura do Louco de
Niki de Saint Phalle, Jardim dos
empurrando sua caminhada. Evidencia, assim, que o Tarôs, Toscana

instinto selvagem tem uma parte importante no ímpeto dessa caminhada. O bastão é
de cor preta, cor muito rica de significados. No Egito antigo e na África do Norte
(Chevalier,1982), por exemplo, o preto é símbolo de fertilidade, diferente da cultura
ocidental em que é ligado ao luto. Preto pode significar também águas profundas, a
vida latente, o vazio, a não manifestação e o nada que prepara um novo
renascimento. Afinal de contas a luz precisa das trevas para acontecer. Tem a ver
com as profundezas da terra, o breu do mundo subterrâneo. Preto é a cor das
virgens negras Isis, Deméter e Cibele. No Brasil, temos Nossa Senhora de
Aparecida que apareceu do fundo das águas turvas do Rio Paraíba trazendo
redenção ao povo faminto da região, ao mesmo tempo em que nutre, ela
espiritualiza. Chevalier fala de cor absoluta da substância universal, a prima matéria,
da diferenciação primordial, do caos original das águas inferiores, do norte, da
morte, é o negro hermético: retorno ao caos indiferenciado (Chevalier, 1982).

46  
 
No texto de apresentação do arcano, Niki fala ainda daquele tipo de herói
de conto de fadas que aparentemente é débil e fraco, mas capaz de encontrar o
tesouro. Ela fala do herói movido pela força do instinto e não pela força egóica,
daquele que pode parecer ridículo ou fora de moda porque simplesmente está
escutando sua voz interior, e com essa escuta ele consegue agir com sabedoria e
mudar o mundo, e especialmente o seu mundo interior. Relembrando o que falamos
no começo desta pesquisa, o artista tem um ego menos ativo que a pessoa comum.
Ele age muito mais em conformidade com o seu self, acabando por negligenciar
alguns aspectos de todo dia.

Se olharmos com atenção a biografia da nossa artista, ela foi alguém que
teve um caminhar pela vida como uma louca no sentido do arcano. Sempre agiu de
uma forma rebelde ou, podemos dizer, revolucionária, mas prefiro a palavra criativa.
Já começou quando ela pintou de vermelho o sexo da escultura das freiras e, mais
tarde, quando ela deixou o país natal porque não suportava as incoerências do
American Way Life. Depois, ainda, a vida boêmia na França, o surto, quando deixou
a família para trás para partir sozinha no mundo para seguir a necessidade de ser
artista, o casamento turbulento com Tinguely, a superação das inúmeras doenças, e
o que acho que a fez uma louca digna deste arcano: nunca ter aceitado estudar arte.
Ela fez aquilo que seu self lhe impôs, escutando sempre alguma voz interna e
instintiva e nunca ter pertencido a uma escola. Além de ela não ter parado de viajar,
ter morado nos EUA, em vários lugares da França, na Espanha, na Suíça e na Itália.
Agiu como uma andarilha, muitas vezes morando em lugares sem conforto e pouco
acolhedores. Isso tudo relembra Jodorowski quando ele fala do louco como alguém
sem nacionalidade.

Por outro lado, Niki de Saint-Phalle deixou um patrimônio artístico


impressionante e original, foi alguém que passou por muitas dificuldades, que na
maior parte das vezes foram superadas, mostrando que ela olhava sempre para a
direita, para frente, que é a direção em que as coisas se realizam, se tornam
concretas e faz avançar a humanidade. Todavia, ela nunca deixou de agir e sempre
escutou o que seu self anunciava como certo. Inclusive, não escondeu que não teve
escolha, pois seu complexo artístico era muito poderoso e não lhe deu muita opção
de saída. Ao longo de sua trajetória, foi encontrando a dosagem certa de avançar no

47  
 
mundo exterior. Estava conectada a algo muito profundo e ainda serviu de profeta,
anunciando as boas novas à humanidade por meio da sua arte de aparência naïf
que evocava inúmeros símbolos que a auxiliaram, sem dúvida, no seu processo de
individuação. Atuou também ativamente em movimentos sociais como o feminismo,
a sensibilização à questão da AIDS, etc. Em suma, mudou profundamente o rumo
da forma de sentir no seu tempo.

Assim, o arcano do louco é muito significativo na vida de Niki de Saint-


Phalle, tendo influenciado sua existência como um todo.

48  
 
4.2.1. A Morte, Arcano n° XIII
La Mort est le grand mystère de la vie. Sans mort,
la vie n’aurait aucun sens ; La Mort, avec sa faux permet à des nouvelles
fleurs de pousser. La carte de la mort est la carte du renouvellement. Rester
conscient de la mort est une manière de ne pas être pris par les vanités de
la vie.23
(Saint-Phalle, 2004, p. 20)

No tarô de Marselha, este arcano não tem nome. Ele é chamado


simplesmente de arcano n° XIII, como se o número falasse por si mesmo, pois se
refere à ameaça do arcano: para não tirar sua atenção é melhor nem falar seu
nome. Todos os outros têm um nome e um número, à parte o Louco que tem nome,
mas não tem número.

Existem muitas semelhanças entre estas duas cartas por ambas tratarem
de aspectos da mesma energia fundamental. A diferença é que a carta do Louco é
sobre um movimento liberatório e a carta da Morte, de um trabalho, de um cultivar
uma nova etapa da vida (Jodorowski, 2004). Esse trabalho tem a ver com o
processo de eliminação do Ego. Nesse momento da jornada, nada mais é tolerado:
sistemas de valores e conceitos redutores, nenhum
elemento inútil. Esse processo, por vezes difícil e
cruel, é que vai nos permitir reencontrar a liberdade
perdida no Louco, na individuação.

O número 13 é portador de vasta


simbologia. Está inclusive presente nas crenças
populares – quem não tem certa aversão pela sexta-
feira 13 ou um receio de ser o 13° na mesa? Se
consultarmos um dicionário de símbolos (Chevalier,
1982), descobrimos que o 13 é o que está a mais no
relógio de 12 horas ou nos 12 meses do ano. Na
mesa, a situação é bem delicada, ele representa
Judas em meio aos 12 apóstolos - aquele que
estragou tudo.
Figura 8: Arcano A Morte do
Tarô de Marselha, (Jodorowski,
2004)
                                                                                                                       
23
Tradução livre: “A Morte é o grande mistério da vida. Sem morte a vida não teria nenhum sentido; a
Morte, com a sua foice, é o que permite o crescimento de novas flores. A carta da morte é a carta da
renovação. Estar consciente da morte é uma maneira de não se deixar levar pelas vaidades da vida”.
49  
 
Pode significar ação maléfica, azar. Na Idade Média, era sinal de mau
agouro. Na antiguidade, simbolizava o curso cíclico da vida – passagem a outro
estado. Filipe da Macedônia morreu depois de acrescentar sua estátua ao lado dos
12 Deuses superiores. Existiam 13 espíritos do mal na Cabala. É o número da
Besta do Apocalipse e do Anticristo. Na Antiguidade, representava o mais poderoso.
É o caso de Zeus no meio de 12 deuses. E Ulisses, o 13º, o único que escapou de
ser comido pelo Ciclope. E para os Astecas, é o número do tempo, término da série
temporal (Chevalier, 1982).

A Morte se situa mais adiante do meio da sequência e logo após o arcano


do Enforcado n° XII. Este último está pendurado de cabeça para baixo - de onde ele
passa a se orientar no mundo dando uma ideia de mudança de ponto de vista, de
morte espiritual, de abismo. Ele está passivo e imobilizado com os pés e mãos
atados. Mas chega a hora de fazer alguma coisa, não é possível viver como antes.
Aí vem a Morte com sua foice voraz decepando tudo. No tarô de Marselha, ela é
representada por um esqueleto de cor de pele (dando uma sensação de vida
orgânica, de essência viva), segurando uma foice vermelha de sangue. No chão de
cor preta, dando uma ideia de inconsciência, de profundidade, nos encontramos no
mesmo substrato energético do
Louco e da nigredo dos
Alquimistas. Sobre a terra,
encontramos duas cabeças
coroadas (um rei e uma rainha)
e seus pés e mãos
desmembrados e espalhados.

Nichols (2007) vincula


a cabeça às ideias, os pés aos
pontos de vista e as mãos às
atividades. As coroas, segundo
ela, representariam a ruptura
com o princípio orientador. Figura 9: Antes da ressurreição do rei e da rainha, museu
Hermético (Roob, 2011)
Assim, estes aspectos da vida
foram selvagemente cortados e sem pena. Jodorowski (2004) fala do pai e da mãe

50  
 
destronados. E como se não bastasse, o esqueleto caminha se apoiando nas
próprias cabeças para avançar - indicando que este arcano tem a ver com a
purificação dos arquétipos mais profundos.

Entretanto, se observarmos bem a carta do tarô de Marselha, podemos


constatar que nesse solo escuro começam a brotar folhinhas azuis (cor relativa ao
espírito) e amarelas (relativa à intuição). Nichols (2007) fala que a carta indica que
vida nova está brotando, mostrando que tudo não foi completamente arrasado e um
princípio orientador continua. A Morte, então, é uma carta de revitalização e
renovação. Interessante é que Chevalier (2011) fala da morte como fim absoluto de
qualquer coisa - mas coisas positivas, não se fala da morte como algo negativo.
Citando um seu exemplo, não se fala da morte de uma tempestade voraz, mas se
fala na morte de uma bela estação do ano como a primavera. A morte é para o que
está integrado e tendo um funcionamento razoavelmente equilibrado.

A Morte é finalmente uma carta ligada ao trabalho, à lavoura, à terra com


seus ritmos orgânicos e seus mistérios, lembrando que tudo o que vive é perecível e
está sujeito a ser destruído. A Morte vem para desmaterializar as forças
desnecessárias e negativas e libera para a ascensão do espírito. É a força
liberadora necessária para fazer a natureza se regenerar e criar nova vida, assim
como o sono que a cada dia nos permite retomar novas forças para avançar no dia
seguinte. Em algumas sociedades primitivas, simbolicamente se matava o velho rei,
que era ritualmente comido e desmembrado para assegurar a renovação e a
fertilidade do reino assim como sua revitalização. Equivalente à Sagrada Comunhão
da igreja cristã, que seria uma dramatização da incorporação do Espírito Santo
através do compartilhamento do pão e o vinho, que seria o corpo e o sangue de
Cristo para a renovação da fé (Nichols 2007).

“A morte retrata o momento em que a pessoa se vê ‘feita em pedaços’ –


espalhada – com a velha personalidade e os modos quase irreconhecíveis de tão
mutilados” (Nichols 2007, p. 228). A Morte é uma passagem necessária e tem uma
função iniciática. Muitas sociedades primitivas incluem nas suas iniciações uma
passagem pela morte simbólica. E em seguida, ela oferece a revelação do que vai
conduzir a vida nova - e neste momento entra a questão do tempo. Isto inclui
aceitação dos ritmos da terra. Quer dizer, aceitar que o desmembramento voraz e
51  
 
destruidor de um conteúdo original vão acarretar um sentimento de vazio. Para que
esse processo, que necessariamente acontece no inconsciente, se torne consciente,
é necessário respeitar o seu tempo orgânico. As antigas projeções, os velhos
hábitos e as partes desgastadas da psique serão radicalmente banidos e
despedaçados. Depois é uma questão de tempo para se dar a permissão de sair da
situação transformado, de se relembrar e de se rejuntar.

Um período de luto negro se impõe. O os alquimistas chamam de


mortificatio, um estágio do autoconhecimento: “bem aventurados os que choram”
(Nichols, 2007, p. 228). Abençoados aqueles que ambicionam se desvincular de
uma rígida proteção ou uma reação inconsciente que faz parte da sua vida desde a
infância e que muito tempo serviu ao ego: “Será, finalmente, reconfortado com
introvisões mais válidas e com um apoio mais duradouro” (Nichols, 2007, p. 229).
Seu passado será purificado.

O símbolo do esqueleto tem a ver com o que nos resta ao final de tudo.
Ele representa a nossa parte mais resistente, o que sobrevive ao tempo, o mais
profundo e tudo o que resta dos nossos antepassados, onde deixamos nossas
marcas definitivamente para nossos futuros descendentes. Como diz Nichols (2007),
“é o homo sapiens arquetípico”, o que representa a verdade básica eterna revelada.
É o nosso segredo mais pessoal, tesouro enterrado, escondido – como o
inconsciente, o mais profundo e verdadeiro Eu. Tem um sentido revelador, pois, ao
mesmo tempo em que é um conjunto de ossos sem vida e monstruoso, é a
revelação da vida como ela é. A aceitação da morte tem a ver com a aceitação da
vida. No tarô de Marselha, o rosto do esqueleto é assexuado e mascarado,
lembrando que a morte é para todo mundo independentemente do sexo e pode ter
muitas facetas.

A foice, segundo Chevalier (1982), é o instrumento do herói civilizador da


Roma Antiga para o cultivo da terra. Ele fala que todo o trabalho da agricultura está
ligado a Saturno que é um planeta considerado maléfico, meio apagado, frio, que
evoca tristeza e separação. Ele reina nos momentos em que a vida nos pede que
nos separemos dos cordões umbilicais diversos da nossa existência do nascimento
à velhice. Chevalier fala do “complexo saturnino”, quem sofre dele é aquela pessoa
que se cristaliza na infância, não quer desmamar e não consegue se separar das
52  
 
situações afetivas necessárias ao crescimento. Esta pessoa terá a tendência a uma
exasperação da avidez, podendo ser expressa de várias formas como a bulimia,
ciúmes, avareza, extrema erudição. Tem a ver também com a desistência do ego,
resultando na melancolia e recusa de viver.

Jung, citado por Nichols (2007, p. 239), chama a atenção à ameaça da


recusa do chamado do destino do autoconhecimento, ao chamado aos processos
necessários à individuação. Alerta que a possibilidade de acabar em morte
verdadeira é real, explicando, assim, o fato de que o medo de encontrar e de
nomear a Morte é válido.

Por outro lado, a foice tem uma forma de lua crescente sugerindo os
ciclos que virão que são promessas de regeneração. Sua ação nos leva da
mortalidade à imortalidade da consciência individual, pois estamos inseridos num
processo orgânico, natural e vital. Aceitamos a morte porque aceitamos a vida.

53  
 
4.2.2. A Morte segundo Niki de Saint-Phalle:
 

Dés lé début, le danger fut présent. J’apprendrais à aimer le danger, le risque,


l’action. Toute ma vie je serais torturée par l’asthme et les problèmes
24
respiratoires.
(Saint-Phalle, in Hulten, 1999, p. 184)

Numa imensa base espelhada nesta gigantersca escultura estão


espalhados pedaços de diversos elementos: pés, pernas, braços e mãos, e ela
ainda acrescenta um caranguejo (que mora no mangue, um solo escuro que lembra
o mesmo solo negro do tarô de Marselha), uma serpente (sabedoria, magia), uma
carta de baralho (o jogo da vida) e um relógio25. Esses pedaços estão fatalmente
colocados sobre um mosaico de tons de verdes bem vivos. Contrastam com o solo
preto do tarô de Marselha, que remete a um solo fértil de um jardim ou um lindo
gramado e que traz a ideia de agricultura e cultivo como falamos acima. Sobre tudo
isso, temos um imenso cavalo preto (a
cor preta trazendo a ideia de
profundeza e instinto selvagem do
cavalo) vestido de uma capa azul com
elementos celestes (sol, luas,
estrelas...), apresentando a noção de
espiritualidade e ascensão. A caveira
que o monta é toda dourada e bem
gordinha, uma faceta das famosas
Nanas. Ela está vestida com um maiô
Figura 10: A Morte da Escultura de Niki de Saint
colorido bem alegre, afirmando e
Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana
assumindo sem pudor assim sua
feminilidade. Sua foice é preta como o bastão do Louco. O fato de a escultura ser de
um personagem feminino, ela nos faz pensar na Grande-Mãe. A Morte é uma das
suas faces, pois ela reina no mistério nascimento-vida-e-morte da vida como um
todo.

                                                                                                                       
24
Tradução livre: “Desde o começo o perigo estava presente. Eu aprendi a amar o perigo, o risco, a
ação. Toda a minha vida eu fui torturada pela asma e os problemas respiratórios”
25
Acredito que ela estava querendo trazer o debate entre Chronos e Kairos, ou seja, a questão do
tempo físico/linear e o tempo das profundezas do instante. O tempo do racional (Chronos) e o tempo
da vivência, o tempo do numinoso, o tempo cósmico e conectado com as forças divinas (Kairos) (Von
Franz, 1980).
54  
 
Um grande contraste de cores e a cor preta com um material espelhado
(seja vidro ou cerâmica), brilha com o espelhado prateado e o dourado. Traz, além
do contraste luz e sombra, elementos alquímicos do ouro e da prata, bem como uma
alegria leve e festiva dessa efusão alegórica de cores, de bom humor e de senso de
afirmação de si. A escultura chama a atenção também pela exuberância do seu
imenso tamanho. Nota-se com isso a falta de medo de se expor, de contemplar este
arcano e sua grande sabedoria simbólica exposta assim sem muitos rodeios. Um
verdadeiro triunfo, o Triunfo da Morte!

Nichols (2007) fala que não é raro que alguns tarôs representem a Morte
num cavalo espinoteando tudo o que encontra na frente. Dá uma ideia, assim, da
morte como uma força impessoal, destruindo tudo o que bem entende, queira ou
não ninguém escapa. A vivência da morte é um passo irrevogável – nada será como
antes, um caminho sem retorno. Uma vez que o processo começou, a pessoa se
transforma, ela se torna irreconhecível. Conforme a situação, a pessoa estará
condenada ao exílio, muitas vezes dentro da própria família, ou o próprio país. É um
processo profundo, onde forças do inconsciente tomam a dianteira ignorando
completamente o que o Ego quer conservar por medo, vaidade ou preguiça. Assim
como aconteceu na vida de Niki de Saint-Phalle. Ela teve que se mudar de escola,
de país, de matrimônio. Teve que se distanciar da família, da vida acadêmica, da
futilidade da vida de modelo fotográfico, e o mais doloroso, de seus próprios filhos.
Sua vida foi um constante avanço após rupturas importantes e dolorosas. Muitas
vezes este processo se tornava inevitável, era maior que ela porque vinha de águas
profundas e viscerais, onde o Grande Self Orientador falava mais forte. Com toda
sabedoria, ela se submetia, aceitando o sofrimento e renascendo mais uma vez para
cada nova morte.

Se olharmos com cuidado na sua biografia, constatamos que a morte


sempre esteve muito próxima de Niki de Saint-Phalle. Ela esteve muito perto da sua
morte física inúmeras vezes desde o primeiro instante de vida quando o cordão
umbilical quase a sufocou e o médico a salvou por muito pouco. Depois ocorreram
muitas doenças crônicas, quase incuráveis, muito dolorosas. Houve internamentos
complicados, tratamentos intermináveis, e sem contar as inúmeras tentativas de
suicídio, os quais alguns por muito pouco não vingaram. Em seguida, vieram várias

55  
 
mortes na sua vida afetiva desde o abandono
Receita da Calcinatio: “Toma um
dos pais, de todos os embates que a família feroz lobo cinzento, que... é
encontrado nos vales e montanhas
enfrentou, o estupro do pai, a doença mental, a
do mundo, nos quais uiva, quase
violência do caráter tempestuoso do seu selvagem, de fome. Dá-lhe o corpo
do rei e, quando ele o tiver
segundo marido Tinguely, a neurótica reação
devorado, queima-o totalmente, até
das sextas-feiras após a carta do pai, a torná-lo cinzas, numa grande
fogueira. Por este processo, o rei
convivência e aceitação da família paralela de será libertado; e quando isso tiver
Tinguely, a solidão de seu exílio na montanha, a sido realizado por três vezes, o leão
terá suplantado o lobo e nada
separação dos filhos, etc. encontrará para devorar. E assim,
nosso corpo terá se tornado
A cada vez ela ressurge triunfante, apropriado para o primeiro estágio
do nosso trabalho”.
oferecendo ao mundo uma obra que inicialmente (Waite, The Hermetic Museum
exibe descaradamente e com toda sua força 1:325, in Edinger, 2006, p. 38)

toda a violência interna nos Tiros, nos Altares


repletos de armas e objetos cortantes que vão “O rei está morto, viva o rei!”
(Nichols, 2007, p. 227)
passando progressivamente por um período
branco. Edinger (2006) fala da operação
alquímica da calcinatio, que deriva do
procedimento químico da calcinação que é a um
intenso aquecimento de um sólido que vai retirar
da água e as impurezas. O exemplo da pedra
calcária (CaCO³), uma vez aquecida, ela se
transforma num pó branco muito fino e seco. A
 
substância resultante é chamada calx viva
(CaO), que, ao ser molhada, passa a gerar calor:
 
“como se o fogo fosse a alma invisível que dá a
vida à substância visível ou corpo” (Waite, in Figura 11: Morte do Rei, Museu
Hermético (Roob, 2011)
Edinger, 2006, p. 37).

Essa fase relacionou intimamente à morte, assumindo assim a sua vida.


Foi um processo de individuação extremamente intenso de muitas iniciações. Perera
(1985) fala que o processo iniciático é essencialmente uma disposição ativa de
receber. Estar conectado com a morte nunca é uma ação passiva, mas aqueles
(somente os eleitos, ou seja, os que estão preparados) podem estar receptivos a

56  
 
ela, podendo desfrutar dos seus tesouros escondidos. Não é um processo objetivo,
mas um abandonar-se a uma conexão com diferentes níveis da consciência muito
mais profundos que os habituais. É a possibilidade de navegar em níveis de
natureza arcaica, pré-verbal, carregadas de emoção, que exercem uma força
mágica e que antecedem inclusive a própria imagem. É um retorno às origens, às
raízes, às forças formadoras da vida é o verdadeiro encontro com o Divino. Um
estado regressivo onde nos descobrimos inseridos num universo obscuro, urobórico,
vivo, em equilíbrio, somente se pode encontrar num estado de consciência alterada.
Sentimos que somos parte de uma força cósmica.

Nessa conexão vai haver uma mudança importante, uma revelação


acontecerá. Ninguém volta ileso deste confronto. Fella (2004) fala de uma mudança
no status ontológico, numa mudança de vibração onde a percepção ressurgirá mais
aprofundada e ressoante com o universo. Grandes modificações necessariamente
vão ocorrer. O que vai facilitar o retorno diferenciado será uma forma de sacrifício
dos aspectos do ego para recriar um novo equilíbrio. Esta é a experiência ritualizada
da morte – que são os processos iniciáticos.

Terminamos o capítulo com a ideia de que a familiaridade com a morte


que Niki acabou desenvolvendo por força do seu destino, foi facilitadora de uma
aproximação com forças criativas essenciais da vida de maneira dolorosamente
aprofundada, e com uma frase de Perera:

A esse nível recebemos o senso da força cósmica e una; aí somos tocados


e, através da intensidade de nossos afetos, aprendemos que existe um
processo vivo de equilíbrio. A esse nível o ego consciente é esmagado pela
paixão e por imagens numinosas. E, embora abalados, destruídos mesmo
enquanto nos conhecemos, somos reaglutinados numa nova concepção e
devolvidos à vida comum (Perera, 1985, p. 24).

57  
 
4.3.1. A Força, Arcano n° XI
 

Une jeune fille mène par la main un féroce dragon par un fil invisible. Le
monstre que la jeune fille doit mâter se trouve à l’intérieur d’elle-même. Elle
doit conquérir ses propres démons. A travers cette épreuve difficile elle
26
découvrira sa propre force.
(Saint-Phalle, 2004, p. 14)

Para começar, examinemos o número 11. Para Chevalier, é o número


que interrompe a harmonia da dezena, estragando e desequilibrando a plenitude de
seu ciclo. Dá também a ideia de exagero, de excesso, de “algo a mais”, de conflito
anunciado, pois é sempre o causador de desordem e ruptura. De outro lado, é o
número da rebelião, do que vai reiniciar um novo ciclo
vital, de renovação. Ele teria um caráter
profundamente feminino. Algumas tradições africanas
vinculam os onze orifícios da mulher com os mistérios
da fecundidade. É visto como o símbolo do ocultismo
negro. Já comentamos aqui da cor negra como
representadora dos mistérios femininos, como as
virgens negras, ex. Isis, Cibele, Deméter.
O arcano que abre o ciclo da primeira dezena é
o Mago. Se observarmos bem esta figura, arcano n° I,
a ação acontece em cima da mesa, na parte superior
do desenho dizendo que o processo que se inicia
acontecerá à luz do dia, tudo está ali à mostra, nada a
esconder. É um arcano de inteligência, consciência e
estratégia. Na figura da Força n° XI, a ação acontece
Figura 12: Arcano A Força XI,
Tarô de Marselha, embaixo, indicando um trabalho em direção às forças
(Jodorowski, 2004)
inferiores e nem sempre aparentes (instintualidade,
sexualidade, espiritualidade). Não se sabe bem qual é o centro do drama, se é o
leão ou a menina. Acreditamos, então, que o centro é a relação. Essa magia
acontece dentro de uma conexão muito íntima, sutil, entre a dama e o leão. É a

                                                                                                                       
26
Tradução livre: “Uma menina carrega um feroz dragão segurando um fio invisível. O monstro que a
menina deve controlar se encontra no interior dela mesma. Ela deve conquistar seus próprios
demônios. Através deste difícil desafio ela descobrirá a sua própria força”.
58  
 
história de um encontro. As coisas acontecem num lado oculto. A aproximação se
faz delicadamente, calmamente, sutilmente, de maneira muito feminina.
Esse vaso alquímico contém a audácia (Nichols, 2007) do envolvimento a
dois e o contato físico direto: ela manipula, explora, sente o animal com suas
próprias mãos nuas. Nessa relação, ela comunica seus afetos, sua atmosfera, sua fé
e suas expectativas. Tudo é direcionado na relação com o animal. Essa força
trabalhada com as próprias mãos é uma força de criatividade encarnada, de
iluminação, de potência eficaz onde tudo está sob controle. Não parece que a
menina precisa fazer grandes esforços. É uma força equilibrada.
A relação entre os dois arcanos (o Mago, n° I, e a Força, n° XI) mostra
que o trabalho da consciência passa antes da relação com as forças instintivas. O
ego precisa de uma estrutura antes de enfrentar seus demônios. Inclusive, ambos
possuem um chapéu em forma de leminiscata, de infinito, anunciando que os
processos são sempre um ir e vir eternos. No chapéu da menina da Força,
encontramos motivos lembrando plumas de águia como se a Força estivesse pronta
para voar. Jodorowsky (2004) vincula a águia aqui discretamente mencionada com a
abertura versus o que está acima, permitindo que esses ensinamentos (que vêm de
baixo) se comuniquem com as instâncias espirituais. Podemos, entretanto, observar
que a menina está muito bem ancorada num solo amarelado. Jodorowsky interpreta
esse amarelo dizendo que a menina está ancorada no prazer e na beleza mais
sublime. Inclusive o leão compartilha o mesmo solo anunciando que ambos estão
enraizados no mesmo substrato.
Enquanto a primeira dezena estava voltada para a adaptação no mundo
exterior (sobrevivência, competição, estratégia, ritualização...), esse novo ciclo desta
vez é direcionado ao mundo interno, o crescimento interior, a unificação, a questões
básicas da natureza instintual dentro de um princípio feminino e do Eros. Esse
arcano anuncia uma nova magia que se apresenta tendo assim um papel iniciatório:
ele atua como força mediadora entre o ego e as forças mais primitivas do herói.
Na figura do tarô de Marselha, encontramos uma mulher mortal, humana,
vestida à moda do seu tempo, sem coroa nem um trono, contudo ela não é comum,
ela doma um leão com facilidade. Esta mulher aparenta estar na sua segunda
metade da vida pela sua maneira de vestir e sua aparente cultura e refinamento

59  
 
(Nichols, 2007). Felizmente a dama está se mostrando capaz de enfrentar com
serenidade seu destino.
Jodorowsky (2004), no seu movimento de ampliação, observa elementos
contrastantes como as unhas vermelhas tanto dos pés como das mãos da figura
feminina, interpretando como sendo a força vital manifesta. Ele relembra que as
unhas continuam a crescer mesmo depois da morte. Elas simbolizam assim a força
eterna. Ele acredita que tudo indica que estamos falando de uma presença tanto
instintual como espiritual, de uma consciência integrada dos pés à cabeça. Como a
figura não está inserida em nenhuma paisagem, Jodorowsky acredita que este
arcano não se situa nem num tempo nem num espaço: é presença pura e expressão
de grande energia. Ele vê, entretanto, alguns sinais sugerindo dificuldades neste
processo: o pescoço da menina tem um colar vermelho, indicando para ele algum
recalque de energias sexuais ou um sinal de decapitação. A mão da menina com
suas unhas vermelho-sangue na boca da fera pode indicar um conflito causando um
combate sangrento. E finalmente o laço apertado do espartilho pode indicar um
fechamento do coração. Ele fala que poderia ter a ver com um corpo percebido
como fragmentado.
Se lembrarmos do cãozinho do arcano do Louco, podemos imaginar aqui
que o herói não deu a atenção que ele merecia e agora estaria transformado num
imenso leão – agora não tem mais jeito, o confronto e a negociação tornaram-se
inevitáveis. A boa notícia é que o herói é capaz de dar conta de confrontar-se com
sua natureza animal. Nichols fala daqueles terríveis afetos que todos já sentimos
que de repente nos engolem. É a nossa natureza tomando poder sobre nossa
consciência reclamando o espaço de direito. Mais se damos as costas, o animal se
torna mais voraz e exigente. Como ela comenta, numa forma mais suave pode ser a
causa doenças psicossomáticas, um estar fora de si momentâneo, uma boa crise de
raiva, de inveja... Mas pode ser algo mais grave causando uma ruptura fatal de
algum laço forte, um crime passional, ou de uma maneira mais extrema, como uma
crise esquizofrênica. Nesse caso, o ego não consegue mais ter a força necessária
para existir e o leão é o rei, é quem vai governar agora. Ele esteve tão ignorado que
nem leão ele é mais, transformou-se num monstro indomável. Essa é a força dos
complexos.

60  
 
Quando nosso animal, seja o cachorrinho ou o leão, deseja ocupar outro
lugar, a melhor maneira é encará-lo e dar o que ele quer. Inclusive esta força nos é
útil, é o que nos conecta com nosso interior, ela enriquece nossa existência e é o
que nos diferencia da massa. É uma grande companheira – só que ela não gosta de
ficar atrás, ela quer caminhar lado a lado. O ajustamento não pode acontecer de
qualquer maneira e não precisa que a experiência seja uma grande catarse, mas é
uma experiência de conexão, um assumir seu animal pessoal. É necessário que
haja uma conscientização, pois primeiramente o animal precisa existir. Em seguida,
temos que encontrar o lugar adequado de cada um. Aniela Jaffé complementa: “o
homem primitivo precisa domesticar o animal em si mesmo e fazer dele seu
companheiro útil e o homem civilizado precisa curar o animal em si mesmo e torná-
lo seu amigo” (Jaffé apud Nichols 2007, p. 214 ).
A força do leão personifica a autoridade instintual – “o eu quero do eu”
(Nichols, 2007, p. 209). O leão é o símbolo do poder energizante, do sol central da
psique, o Eu. É a força que vai nos ajudar a renunciar valores morais e religiosos
inadequados, materiais, mandatos inúteis, expectativas alheias... É o sangue
dourado que corre nas nossas veias, impedindo que sejamos simples bonecos
moldáveis que obedecem estupidamente os outros. Ele nos ajuda a realizar nossas
energias inconscientes nos dando liberdade de ação e mais autoconfiança. Faz-nos
mais conscientes dando o combustível para um nascer em nós mesmos a partir do
que somos. Abrimo-nos assim a uma nova consciência, mais profunda, mais íntima
e menos incômoda.
Nos contos de fadas, a bela acaba se casando com a fera ou a princesa
beijando o sapo. É o que Nichols (2007) chama de verdade poética: quando a
consciência humana aceita sua natureza primitiva, isto é, o poder autônomo do
instinto. Nesse momento, ocorre a liberação e a transformação da força instintual.
Por sinal, nesses contos, o personagem é sempre uma princesa perdida ou
adormecida, ou mesmo indecisa, ou uma menina inocente, enfim, é um caminho de
ânima, é um despertar a partir de um poder vindo do elemento feminino. Sempre
acaba em finais felizes porque a menina acaba aceitando a sua natureza bestial, e
ressurge casada com seu animal domesticado e transformado. Observamos, então,
que, nos contos, o poder animal nunca age com uma selvageria desenfreada e

61  
 
histérica. Mas o encontro com o animal pessoal ocorre normalmente com certa
simetria como na figura acima.
Todavia um receio ou medo real desta força é natural. É o que Jung
chama de medo do inconsciente. É um medo muito incômodo, como fala Jung: “[...]
não somente impede o autoconhecimento, mas é também o mais grave obstáculo à
compreensão e conhecimento da psicologia” (Jung apud Nichols, p. 206). Todavia é
muito revigorante se conseguirmos aceitar esse destino e o enfrentamento com
êxito. Inevitavelmente vai haver um rompimento momentâneo com as forças do ego.
Mas vêm à tona conteúdos e horizontes novos. Esse encontro é forte porque é
portador da força do arquétipo. Como qualquer encontro com tal teor, ele exige uma
habilidade para usar o poder criativo da força arquetípica de forma consciente de
correr riscos e sem ser engolido por ela. É uma verdadeira arte.
Freud chamou a atenção à força do instinto sexual e Jung ao fato de que
a iluminação é também instintiva e contém um grande poder que pode ser
igualmente perigoso. São instintos que possuem uma força poderosa, arquetípica e
primitiva. Uma vez contaminados por eles, uma mudança na maneira de viver, de
pensar, de agir é iminente. É necessário reestruturar a vida, rupturas serão
necessárias. Seremos diferentes e a arte é também encontrar um meio de lidar com
as frustrações que vão se suceder, inclusive na questão social, pode não ser fácil.
Picasso, na sua série de minotauros, pintou algumas meninas dominando
o feroz minotauro, conforme as imagens:

  Figura 13: La Monotauromanchie, 1934, Museu Picasso


Paris
62  
 
 

Figura 14: Le Minotaure Aveuglé conduit par Marie Thérèse aux pigeons dans une nuit étoilée,
Museu Picasso Paris

63  
 
4.3.2. A Força segundo Niki de Saint-Phalle
 

A escultura da Força de Niki de Saint-Phalle é monumental. É uma


menina vestida de branco com aparente segurança dominando um imenso dragão
verde. Sua face está pintada de marrom, fazendo referência às virgens negras.
Sabemos que nossa artista é sensível a esse tema porque encontramos no parque
outras referências a essa virgem, como na Imperatriz. Essa menina está vestida
assim para indicar pureza ou será que estamos falando de uma roupa de
casamento? Um matrimônio sagrado: eu comigo mesma. Uma heroína que
conseguiu unir seu ego com seu inconsciente. Seus universos estão doravante
unificados. Eles conquistaram uma relação de boa comunicação, de troca entre eles
e se tornaram um. Sua força interna criada a partir desse matrimônio é suficiente
para criar esse fio invisível e manter o
feroz dragão completamente à mercê da
virgem. Doravante o dragão está cara a
cara com ela, nada a esconder, sem
necessidade de fugas, um existe para o
outro na claridade do dia. No enunciado
do arcano de Niki de Saint-Phalle, ela não
esconde que o monstro faz parte dela e

que o caminho foi duro.


Figura 15: Vista da Escultura A Força de Niki de
Saint Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana
Hulten fala que ela teria feito
um “pacto com as forças obscuras” (Hulten, 1999, p. 14), pois ela nunca
desconsiderou ou tentou esmagar as forças negativas tanto fora como dentro dela.
Mas, sobretudo, ela buscou uma persuasão, uma negociação. Ela lhes manteve
sempre presente e mostrou um aparente prazer em estar reconciliando as partes
dando a cada um seu lugar devido. Por exemplo, em sua relação ao feminino,
Hulten (1999) compara às deusas arcaicas a sua maneira de criar beleza. As deusas
arcaicas não são completamente boazinhas, meigas, aceitando com facilidade
papéis de submissão masculina como as imagens cristãs depois que o mundo
aceitou o patriarcalismo. As deusas, à imagem da Grande Mãe, dão e nutrem a vida
com generosidade, mas a tolhem sem pena, elas reinam na vida e na morte ao

64  
 
mesmo tempo. Elas têm caráter, são filhas de trovões, de tempestades marítimas,
são guerreiras, amazonas, e tantas outras mil faces. O que mais importa são a
expressão dos potenciais e o equilíbrio da vida como um todo. E todos nós sabemos
que não tem algo mais frágil que o equilíbrio. O que seria da noite sem o dia, do sol
sem suas explosões monumentais e da lua sem suas fases? A vida sem a morte? A
luz sem as trevas? É nesse sentido que Hultem fala da beleza, na expressão real e
arquetípica. Ele comenta que Niki mantém o feminino no seu lugar, nunca se
deixando invadir pelo masculino inibidor quando ela se mantém fiel ao seu
anticonformismo, se tranformando inclusive em exemplo no movimento feminista do
seu tempo.

Sua obra essencialmente intuitiva nunca se deixou influenciar por uma


escola ou uma convenção. Hulten fala que ela não precisou se apoiar em nenhum
saber. Ela foi o que foi, seguiu o que sua vivência arquetípica lhe impôs, foi o que
importava. É a verdadeira liberdade.

Retomamos um pouco da jornada artística da nossa grande mulher: após


suas primeiras obras de tom naïf, inocente, onde ela expressava todo um universo
onírico, urobórico e inconsciente, ela entrou num período obscuro com suas
assemblagens, os Tiros e os altares. As assemblagens eram uma forma de
exorcizar o meio burguês em que foi criada e suas dores buscando pedaços que
queriam novos sentidos. Existia um movimento de recolar, rejuntar, adotando o
movimento dos novos realistas, que se preocupava em dar uma nova forma ao lixo,
encontrando novas significações ao que “não servia mais” na sociedade que
adotava radicalmente o consumismo como a maior sua forma de expressão. Os
Tiros foram um canto de louvor à expressão livre, mas também uma reação à
violência interna e à situação política da época. Em seguida, nos seus altares
carregados de morcegos, ratos, de objetos cortantes e armas, ela exorcizava a sua
educação religiosa e moralista.

Ela sempre procurava expressar o que acontecia dentro e fora dela.


Hulten comenta que ela não quis defender sua liberdade por meios agressivos, pois
prezava a comunicação inocente da sua mensagem, e assim escolheu se expressar
pela arte. Apesar de tanta violência na sua história, ela sempre buscava a pureza, a
inocência e a leveza alegre.
65  
 
Entre os anos 1962 e 1964 ela estava no seu período branco quando ela
criou a série das “Mariées” (as noivas). Foram esculturas brancas feitas de grelhas
de ferro, cobertas de tecidos e objetos diversos colados, realizadas de diversas
formas e segurando um buquê feito de pedaços de bonecas, aranhas... (os monstros
e pedaços ainda estavam presentes, mas já tinham uma forma, e estavam
presentes, não negados, ainda mais honrados como buquê da noiva), elas estavam
partindo, sentadas num cavalo... Passaram inclusive a fabricá-las em brinquedos de
plástico e foram comercializadas até em supermercados.

A partir desse movimento, aos poucos ela introduz as cores que vão se
afirmando na mais profunda variedade e exuberância, produzindo uma ode à vida e
ao bom humor. Nunca mais
ela retornou. Esse
espetáculo colorido foi
explorado até o fim.

Utilizando uma
linguagem alquímica27, ela
passou por um momento
nigredo, relativo à cor preta:
encarando, vivenciando,

Figura 16: Vista panorâmica da escultura A Força de Niki de


encarnando sua sombra, seu
Saint Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana imenso dragão verde.
Apresentando-se como uma terrorista da arte, ela atira, explode, lança sua violência
ao fogo purgador da calcinatio. Jung fala que são processos difíceis, perigosos,
repletos de obstáculos e que produzem sofrimento.

Em seguida, ela passou pela fase albedo. É o branco purificado no fogo


da calcinatio, em que o matrimônio sagrado é anunciado pelas suas noivas,
convidando a cauda pavonis a injetar sangue trazendo muitas cores e levando à luz
de um novo nascimento, o movimento rubedo, que por sua vez tem à ver com a cor
                                                                                                                       
27
Jung (apud Edinger, 2006, p. 165) fala que a alquimia é uma projeção do drama “ao mesmo tempo
cósmico e espiritual em termos de laboratório”, através do que os alquimistas chamavam de opus
magnum. Trata-se da operação que tem como objetivo final o “resgate da alma humana e a salvação
do cosmos”. Ou seja, uma porjeção na matéria do drama da vida.

 
66  
 
vermelha. Prontamente, o dragão deixou de ter sua existência autônoma, passando
a ser seu parceiro de jornada. Ela nasceu para ela mesma e o mundo se enriqueceu
de todo tipo de cor, pois o sangue da nova vida, ou da unidade psíquica voltou a
correr nas suas veias (Jung, apud Edinger, p. 165), a opus estava, então, concluída.

Ainda restava uma questão: como ela conseguiu realizar essas obras tão
grandiosas com este físico tão debilitado (pulmão queimado por emanações
químicas das esculturas, o hipertiroidismo que quase a matou, a artrose, as crises
de depressão, a neurose...)? Sem contar as condições precárias em que ela vivia
em certos momentos, por exemplo, na época em que morava na Imperatriz, onde
ela falava que passou, frio, calor, sofria inúmeras mordidas de insetos... Onde
encontrou a força para estar longe dos próprios filhos e assumir a relação
complicada com seu segundo marido? Onde ela encontrou a força necessária para
realizar sua obra apesar de tudo? Acho que a resposta está no seu complexo
artístico. Como vimos acima, foi o que manteve as portas da sua vida profunda
abertas à expressão e foi essa força que agiu com prioridade. Ela confiou à arte a
tarefa de manter essa força atuante e domada a partir do dinamismo da vivência
simbólica, que é a portadora da força dos arquétipos.

A arte foi, portanto, o fio invisível que manteve a opus operante, o


movimento que mantinha sob controle com uma força sutil, porém potente, o grande
dragão verde. A arte, a grande responsável pela salvação da vida.

Agora eu entendo sua frase: “ A Arte me Curou!”

67  
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS
 

A compreensão do conceito de complexo criativo da psicologia analítica


me abriu as portas para resolver a questão da cura pela arte. Essa tendência de
experenciar a vida simbólica, a vivência, os símbolos arquetipais mais intensamente
de quem não sofre dessa espécie de “mal”. Eu disse ironicamente mal, porque,
como vimos, é um percurso heróico, doloroso, com ele se adoece, se enfraquece,
implica separações e rupturas importantes... Mas, por outro lado, tem o poder da
cura. O símbolo tem o poder de integrar os opostos, de tornar perceptivos os
arquétipos, tem uma função pedagógica e terapêutica. Também tem o poder de
transformar a energia psíquica relaxando tensões (Tomasi, 2005). Jung comenta
que o encontro do eu (consciente) com os símbolos (do inconsciente) é apropriado
“para dissolver os bloqueios e estagnações da energia psíquica e, pondo-a em
movimento, transformá-los” (Jung apud Tomasi, 2005, p.162).

Como já dito acima, o arquétipo é carregado de energia. A pessoa que


sofre do complexo artístico se banha da grande energia arquetípica constantemente,
sobretudo se ela dá vasão iniciando-se em alguma linguagem artística, criando e
concretizando sua experiência na produção. Esse é o ato que vai participar do seu
processo de individuação e iluminar o resto do mundo, pois, como vimos antes, a
pessoa se torna mensageira de conteúdos do inconsciente coletivo.

Com este estudo percebemos a diferença entre doença mental e


produção artística. O artista pode viver com problemas no seu cotidiano, são apenas
fraquezas em consequência do seu direcionamento de energia que está
principalmente voltado à criatividade. Por outro lado, a energia de uma pessoa
doente estaria voltada à doença, a pessoa não tem espaço para a criação. Isso não
impede que uma pessoa mentalmente enferma possua um complexo artístico.
Quando não estiver surtando, ela vai criar e isso vai trazer um impacto na sua
recuperação, sem dúvidas.

A nossa heroína era portadora de um imenso complexo artístico que lhe


salvava a vida constantemente, mas também a colocava em perigo. Algo muito
profundo a protegia. Acredito que as portas abertas ao Grande Self Unificador lhe

68  
 
serviu de anjo da guarda em certos momentos. Ela acabava atraindo situações que
a arrancavam do perigo e acabava se renovando continuamente.

É impressionante ver como a arte pode ser portadora das essências,


protetora das verdades, integradora, reveladora, estimuladora de maior conexão
com as mensagens mais profundas, acolhedora e profética. Inclusive a Grande Arte
pode influenciar toda uma sociedade humana. Ousamos assim dizer que o artista,
além de curar suas próprias feridas com sua arte, pode provocar uma cura coletiva.

   
Figura 17 La Mariée ou Eva Maria, 1963. Grilha de
Ferro, Gesso, Rendas, Brinquedos diversos pintados.
Centre Pompidou, Paris

69  
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Olympio, 2011.

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Paulo: Cultrix, 2006.

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2006.

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SAINT-PHALLE, N. Hary and Me, 1050-1960 The Family Years. Suisse: Benteli,
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Psiquiátricos. São Paulo: Vetor, 2005.

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VON FRANZ, M. L. Alquimia- Introdução ao Simbolismo e à Psicologia. São Paulo:


Cultrix, 1980.
70  
 
WHITMONT, E. C. A Busca do Símbolo, Conceitos Básicos de Psicologia Analítica.
São Paulo: Cultrix, 1969.

71  
 
ILUSTRAÇÕES

Figura 1: No Hospital, (de Saint Phalle, 2006) .......................................................... 15


Figura 2: Os 22 Arcanos do Tarô de Marselha.......................................................... 33
Figura 3: Vista do Jardim do Tarô de Niki de Saint Phalle, fonte:
http://www.nikidesaintphalle.com, consultado no dia 04/01/2014 ............................. 37
Figura 4: Lobo Ômega (de baixo), fonte: http://www.gayanature.com/le-loup-omega-
a104100864 (consultado no dia 4/01/2014) .............................................................. 41
Figura 5: Arcano O Louco, Tarô de Marseille, Jodorowski (2004) ............................ 41
Figura 6: A carta do Arcano do Louco no Tarô de Marselha ..................................... 41
Figura 7: Escultura do Louco de Niki de Saint Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana .. 46
Figura 8: Arcano A Morte do Tarô de Marselha, (Jodorowski, 2004) ........................ 49
Figura 9: Antes da ressurreição do rei e da rainha, museu Hermético (Roob, 2011)
................................................................................................................................... 50
Figura 10: A Morte da Escultura de Niki de Saint Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana
................................................................................................................................... 54
Figura 11: Morte do Rei, Museu Hermético (Roob, 2011) ......................................... 56
Figura 12: Arcano A Força XI, Tarô de Marselha, (Jodorowski, 2004)...................... 58
Figura 13: La Monotauromanchie, 1934, Museu Picasso Paris ................................ 62
Figura 14: Le Minotaure Aveuglé conduit par Marie Thérèse aux pigeons dans une
nuit étoilée, Museu Picasso Paris .............................................................................. 63
Figura 15: Vista da Escultura A Força de Niki de Saint Phalle, Jardim dos Tarôs,
Toscana ..................................................................................................................... 64
Figura 16: Vista panorâmica da escultura A Força de Niki de Saint Phalle, Jardim
dos Tarôs, Toscana ................................................................................................... 66
Figura 17 La Mariée ou Eva Maria, 1963. Grilha de Ferro, Gesso, Rendas,
Brinquedos diversos pintados. Centre Pompidou, Paris ........................................... 69

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