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« A Arte me Curou! »
Analisando o processo de Individuação da Artista Niki de Saint-
Phalle por meio dos Arcanos do Tarô
Campinas
Dezembro 2013
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MÉDICA E PSIQUIATRIA
FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS (FCM)
« A Arte me Curou! »
Analisando o processo de Individuação da Artista Niki de Saint-Phalle
por meio dos Arcanos do Tarô
Campinas
Dezembro 2013
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A Louca Andarilha
Lá vai ela, em meio à grande selva que misteriosamente esconde tantos tesouros.
A cada passo, ela avança carregando-se de um pedaço de ouro aqui e outro ali.
Ela sabe que tem outros por ali esperando prontos para a farta colheita.
Sem pensar muito, ela se dá conta que seu mundo se enche de cores,
... de odores,
...de amores,
Danada! Você quer ouro, diamantes, você se sente deusa. Nada mais que isso!!
Sonho de Laura:
1
Tradução livre: “Eu tinha nove anos de idade, num período em que eu lia sobre heroínas
contemporâneas, mulheres que voavam em aviões e quebravam recordes mundiais. Aqui estava eu
parada no canto segurando a porta aberta do avião, eu estava quase pulando. Eu pude admirar as
cores e os desenhos dos campos abaixo. Quando eu aterrissei, eu tinha voltado no tempo. Eu era um
bebê enlaçado nas rendas de um vestido de casamento gigante que o paraquedas se transformou”.
4
Agradecimentos,
Agradeço ao professor Dr Joël Giglio, ao professor Dr José Jorge Zacharias, nossa querida
professora Lunalva Fiuza Chagas, e a todos os outros professores que com tanta
generosidade, competência, entusiasmo e entrega nos ofereceram esta conexão, nutrindo
nossa paixão e nossa sede de conhecimento. Agradeço aos colegas pelo companherismo,
pelas riquíssimas trocas nos intervalos e nas mensagens solidárias na rede internet. Em
especial ao nosso colega Lucas Valadão por criar esse vínculo informático entre nós e os
professores de forma voluntária e tão generosa. Agradeço também Salete Marisa Dian
Biagioni, pelo apoio, pela proteção e por compartilhar tanta sabedoria.
5
Agradecimentos ........................................................................................................... 5
SUMÁRIO .................................................................................................................... 7
INTRODUÇÃO............................................................................................................. 8
1. VIDA E OBRA DE NIKI DE SAINT-PHALLE:...................................................... 10
1.1. Nascimento: ........................................................................................................ 10
1.2. Infância : ............................................................................................................. 11
1.3. Vida Adulta ......................................................................................................... 13
1.4. Uma vista panorâmica de seu universo artístico: ............................................... 20
2. A ARTE, PSICOLOGIA ANALÍTICA E VIDA SIMBÓLICA..................................... 26
3.1. O Tarô Como Sistema Simbólico ....................................................................... 33
3.2. O Jardim dos Tarôs de Niki de Saint-Phalle ....................................................... 37
4. OS ARCANOS E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO SEGUNDO NIKI DE SAINT-
PHALLE ..................................................................................................................... 40
4.1.1. O Louco ........................................................................................................... 40
4.1.2. O Louco de Niki de Saint-Phalle ...................................................................... 46
4.2.1. A Morte, Arcano n° XIII .................................................................................... 49
4.2.2. A Morte, segunto Niki de Saint-Phalle ............................................................. 54
4.3.1. A Força, Arcano n°XI ....................................................................................... 58
4.3.2. A Força, segundo Niki de Saint-Phalle ............................................................ 64
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................... 68
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 70
ILUSTRAÇÕES ......................................................................................................... 72
7
INTRODUÇÃO
Esta monografia trata da vida e obra da artista Niki de Saint-Phalle. Ela foi
uma pessoa que ao longo da sua existência passou por processos de profunda
transformação. As coisas não foram fáceis para ela. Contudo, ela soube expressar
na sua arte uma tamanha força de vida, denunciando, assim, sua entrega a um
processo de individuação muito profundo. Ela foi uma verdadeira profetiza das
cores, das mensagens arquetípicas, da resiliência, e da Vida Vivenciada com V
maiúsculo.
Ela disse um dia: “A arte me curou!” e eu sempre quis saber por que ela
falou isso. Concluí que para mim ninguém seria melhor que Jung para me
acompanhar nessa busca. Esta monografia tem a ver com este processo que
começou há muito tempo. O foco principal foi o estudo de O Jardim dos Tarôs no Sul
da Toscana (Itália), uma obra monumental que ela começou a construir em 1979,
aos 49 anos de idade, uma mulher na segunda metade da vida, e terminou por volta
de 1996. Esta foi a sua grande obra. Nela, foram representados os 22 arcanos do
tarô de Marselha numa leitura muito pessoal e podemos dizer que é também
universal por se tratar de uma obra de fundo arquetípico evidente. Vamos ver
adiante como podemos sentir seu processo de individuação através dessa
produção.
Esta monografia propõe, portanto, a seguinte jornada: uma vez que sua
vida e obra estejam apresentadas, visitaremos alguns conceitos da psicologia
analítica que poderão dar algum suporte na compreensão destes processos e
conteúdos. Vamos, então, conhecer o tarô de Marselha para finalmente buscar o
tarô de Niki de Saint-Phalle, tentando encontrar, elucidar as raízes do seu processo
de individuação nas suas impressionantes esculturas.
8
um jogo de atração/sedução entre ambas tão potente que transformou o arcano num
tema central na sua vida. E finalmente a Força n° XI, por uma questão de
sincronicidade, pois houve algumas coincidências vinculadas a este arcano que me
conduziram à artista; essa seria uma forma para mim de honrar este encontro.
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1. VIDA E OBRA DE NIKI DE SAINT-PHALLE:
1.1. Nascimento:
Tout était de ma faute. Les ennuis étaient venus avec moi.
Aos três meses, ela se mudou para a casa dos avós paternos em Nièvre,
França, enquanto os pais foram tentar a vida nova nos EUA. Ela somente voltou a
viver com seus pais em Greenwich, em Connecticut, no seu terceiro ano de vida. Em
1937, a família se mudou para Nova York. Agnès passa a se chamar Niki e ela
frequenta a escola religiosa Sacre-Coeur, na 91 East-Street.
2
Tradução
livre:
“Tudo
foi
minha
culpa.
Os
problemas
vieram
comigo.”
“Mamãe
mamãe,
cadê
você?
Você
vai
voltar
um
dia?
É
minha
culpa.
Cada
mulher
fica
sendo
você
mamãe,
mamãe.
Eu
não
preciso
de
você.
Eu
vou
me
virar
sem
você.”
10
1.2. Infância:
3
Tradução livre: “Eu vou rejeitar o seu sistema de valores e vou inventar o meu. Muito cedo eu decidi
ser uma heroína. Quem eu vou ser? George Sand? Joana D’Arc? Napoleão de saias?”
11
estava com tanto medo que ele acabou cedendo e aceitou que ela dormisse com ele
naquela noite. No dia seguinte, a família ficou chocada, tamanha sua rigidez moral.
Nesse mesmo verão, ela foi ajudar o pai buscar uma varinha de pescar na
cabana e ele começou a tocá-la. Ele disse: “Não se mexa!” e ela obedeceu. Desde
então, ele passou a procurá-la muitas outras vezes abusando-se dela, violência
experimentada com profundo sofrimento, decepção, medo, vergonha e angústia. Em
suas confissões, ela questionou o comportamento do seu pai como sendo uma
tentação de exercer o poder absoluto sobre o outro, pelo proibido (Saint-Phalle,
2010), algo do ser humano que quer destruir tudo. Ela experimentou, inclusive,
certa fascinação, e também vivenciou o conflito entre o amor da menina e a perda
da confiança nos seres humanos em geral.
A onze ans je me suis sentie expulsée de la société. Ce père tant aimé est
devenu objet de haine, le monde m’avait montré son hypocrisie, j’avais
5
compris que tout ce qu’on m’enseignait était faux (Saint-Phalle, 2010)
4
Ela conta que sentia, por muito tempo depois, o sexo do pai na sua boca. Aos 20 anos, ela começou
a morder involuntariamente os lábios superiores como que limpando algo muito sujo que ficou. Vinte
anos mais tarde, ela teve que restaurá-lo por meio de uma dolorosa cirurgia estética.
5
Tradução livre: “Aos onze anos eu me senti expulsa da sociedade. Este pai que amava tanto se
transformou em objeto de ódio, o mundo me mostrou a sua hipocrisia, eu compreendi que tudo aquilo
que me ensinaram era falso.”
12
1.3. Vida Adulta
J’étais une jeune femme en colère, mais il a beaucoup de jeunes gens et
de jeunes femmes en colère qui ne deviennent pas artiste pour autant. Je
le suis devenue parce que je n’avais pas le choix – c’est pourquoi je n’ai
pas eu à prendre une décision. C’était mon destin. A une autre époque
j’aurais été enfermée à perpétuité dans un asile d’aliénés.... J’ai adopté l’art
6
pour qu’elle soit mon salut et qu’il réponde à mon exigence personnelle.
(Saint-Phalle, in Lower, 2001, p. 46)
Niki casou-se aos 18 anos com Harry Mathews, em 1950, e já vivia com
ele desde o ano precedente. Ele, filho único de uma importante e rica família
americana. Conta-se que seis meses depois de se casar ela teve que ser operada
de uma apendicite que se transformou numa complicação dolorosa e difícil de ser
tratada (mais um tratamento doloroso).
Esta última teria pouca vontade de ser avó por pura vaidade. Sentia que
esse papel a envelheceria chegando a propor um aborto, o que lhe parecia mais
confortável na situação. Inclusive ela nunca aceitou Niki como nora, alegando que
ela não vinha de uma família tão abastada como a sua e sentia-se incomodada com
seu caráter. Mesmo assim, o casal vivia uma grande cumplicidade e construíam com
amor e criatividade as bases da pequena família.
Naquela ocasião, Niki passou a entrar em contato com uma dor, a que,
para ela, nenhuma dor física podia se comparar. Algo difuso, de fundo emocional,
que ela ainda não conseguia nomear nem encontrar espaço para elaborar. Ela
dormia mal e sentia muita ansiedade. Naquele período, o casal e a pequena Laura
estavam morando numa casinha na região de Nice. Numa tarde, ela teria ido ao
ginecologista onde se sentiu muito constrangida pela maneira fria, humilhante e
invasiva que o médico a tratou. Mais tarde, chegando a casa, eles recebem a visita
14
da amante de Harry. E foi “a gota” que faltava para que o dia acabasse mal... Mas
muito mal...
Harry estava em estado de choque. Ele não tinha noção do que havia
antecedido essa crise. Ele descobriu então sobre as inúmeras tentativas de suicídio
que Niki cometera, das quais, algumas “quase” tiveram sucesso. Era um grito
desesperado por mais amor e ajuda que ele não estava escutando. Ele a amava
tanto, como isso poderia ter acontecido? Enquanto isso, Niki, internada, recebia o
tratamento se perguntando se os ratos que avistava no seu quarto estariam saindo
de dentro dela, olhando o sol de Nice atrás das grades esperando a visita de Harry e
querendo, no mais profundo do seu ser, ver sua filha Laura.
15
Foi aí que algo muito importante aconteceu: ela sentiu uma urgência de
pintar. Algo que ela não explicava, mas simplesmente precisava fazer. Sem nenhum
material nas mãos, ela passou a colecionar folhas secas do jardim, cacos de
qualquer coisa, e conseguiu também um pouco de cola, realizando, assim, as
primeiras colagens. Um amigo, o músico Tony Bonner, foi visitá-la se deparou com
essa situação e lhe ofereceu um estojo de guache, pincel e algumas folhas. Neste
momento, iniciou-se um processo alquímico de cores e formas que o mundo ainda
não havia imaginado. Seis semanas depois, Niki estava em casa!
Nessa carta, seu pai confessou o estupro e pediu-lhe desculpas. Ela não
se lembrava disso. Para ela, era um esquecimento que a protegia de uma verdade
insuportável. Ingenuamente, ela mostrou a carta ao doutor Cossa. E ele disse à Niki:
“Votre père est fou. Rien ne s’est passé. Il invente. La chose est impossible. Un
homme de son milieu et son éducation religieuse ne fait jamais cela.”7 (Saint-Phalle,
2010). Esse médico escreveu uma carta ao pai convidando-o a fazer um tratamento
psiquiátrico. Segundo ele, seria normal para uma filha dita histérica sofrer esse tipo
de alucinação e para um pai que se sente em culpa ser habitado por fantasmas
perigosos (Saint-Phalle, 2010).
7
Tradução livre: “Seu pai está louco. Nada aconteceu. Ele inventa. Isso é impossível. Um homem
deste meio e com esta educação religiosa nunca faria isso.”
16
culturais, e baby-sitters para a Laurinha que crescia e se abria ao mundo
devagarzinho.
Ela abandonou a ambição de ser atriz de teatro e com poucos meios ela
assumiu sua nova meta: a pintura. Inicialmente ela tinha como mentor Hugh Weiss,
quem implorava que ela mantivesse seu gesto espontâneo e nunca fizesse uma
escola de pintura. Ela respeitou o pedido e assim foi. Naquele tempo, os bares de
Paris eram infestados de pessoas e discussões extremamente interessantes:
Matisse, Picasso, Dubuffet, Jackson Pollack, Jonh Ashbery, Rauchenberg, Jasper
Jhons, Jane Freilicher, Daniel Spoerri, Giacometti, Beckett, Saul Steinberg, etc. E
nesse contexto, nasceu o pequeno Philip, o segundo filho do casal.
8
Tradução livre: “Então, você é uma dessas mulheres de escritor que pinta?”
17
paranoïaque. Enhardie, son désir de poursuivre sa carrière d’artiste devint
une obsession. Cette crise lui donna confiance en l’intuition, la chance et le
non rationnel – elle lui permit de déceler la beauté de l’imparfait; et lui
9
inculqua un sentiment de méfiance face à l’illusoire perfection (Parente, in
Lower, 2001, p. 81).
Entretanto, aquele ano foi crucial na sua carreira. Sozinha e com poucas
visitas, mas que finalmente tiveram muita influência no seu processo interno, lendo
Bachelard, caminhando nas montanhas, ela aprofundou seu processo criativo.
Nesse momento, foi concebido, gestado, criado, imaginado e digerido o maior
projeto da sua vida: O Jardim dos Tarôs. Ela sonhava em realizá-lo desde que
visitara, nos anos 1960, o Parque Güel de Gaudí, em Barcelona:
En 1955 je suis allée à Barcelone, avec mon mari Henry Mathews. C’est la
que j’ai vu le magnifique Parc Güell de Gaudi. J’ai rencontré à la fois mon
maître et ma destinée. J’ai tremblé. Je savais qu’un jour, moi aussi, je
construirais un jardin de joie. Un petit coin de paradis, une rencontre entre
11
l’homme et la nature . (Saint-Phalle, 2004, p.2).
11
Tradução livre: “Em 1955 eu foi a Barcelona com meu marido Henri Mathews. Foi lá que eu vi o
magnífico parque Güel de Gaudí. Eu encontrei ao mesmo tempo meu mestre e meu destino. Eu
tremi. Eu sabia que um dia, eu também, eu construiria um jardim de alegria. Um cantinho do paraíso.
Um encontro entre o homem e a natureza.”
19
1.4. Uma vista panorâmica de seu universo artístico:
Quem fala através das imagens primordiais, fala como se tivesse mil vozes;
comove e subjuga, elevando simultaneamente aquilo que qualifica de único
e efêmero na esfera do contínuo devir, eleva o destino pessoal ao destino
da humanidade e com isto também solta em nós todas aquelas forças
benéficas que desde sempre possibilitam a humanidade salvar-se de todos
os perigos e também sobreviver à mais longa noite.
(Jung, 1930, p. 129)
Niki de Saint-Phalle nunca estudou belas artes e nunca fez uma formação
artística. Jamais perdeu sua independência em relação às convenções e ideias
socialmente estabelecidas. Nos anos 1950, começou a pintar seus primeiros
guaches e óleos. Ela usava diferentes suportes e muitas cores sem economia, traço
naïf, já delineando uma grande expressividade num ambiente onírico, urobórico,
mítico, surreal, personagens femininos expressivos e carregados de emoção, de
paisagens estranhas, fundos escuros, animais voando, dragões, estrelas, luas e
céus vermelhos.
12
Os títulos das fases foram escolhidos por mim. Fazem referência a processos alquímicos que serão
mais bem explicados adiante no capítulo da Força.
20
a destruição definitiva. Descobriu o prazer de colar objetos associados à violência e
à ameaça: revólveres, facas, alvos com flechas, machados, etc.
Então, no começo dos anos 1960, ela iniciou sua “descida aos infernos”
(Hunten, apud Lower, 2001, p. 51) artística. Ela passou a cobrir objetos com gesso
branco e convidava o público a atirar as flechas na obra. Esses trabalhos refletiam
certa revolta, um abismo existencial, horror e desespero. Para Hulten (1999), era
uma forma de exorcizar e metamorfosear a vida burguesa originária, num gesto de
desafio. Evocando um sentimento ambíguo de fascínio e repulsa, ela enfrentou os
opostos: o feminino e o masculino – o submisso e a força. Sobretudo, ela introduziu
o tema da morte e da ressurreição.
13
Idem citação n° 11
21
En 1961 j’ai tiré sur: Papa, tous les hommes, les petits, les grands, les
importants, les gros, les hommes, mon frère, la société, l’Eglise, le couvent,
ma famille, ma mère, tous les hommes, Papa, moi-même, les hommes. Je
tirais parce que cela me faisait plaisir et que cela me procurait une sensation
extraordinaire. Je tirais parce que j’étais fascinée de voir le tableau saigner
et mourir. Je tirais pour vivre ce moment magique. C’était un moment de
vérité scorpionique. Pureté blanche. Victime. Prêt! A vos marques! Feu!
Rouge, jaune, bleu, la peinture pleure, la peinture est morte. J’ai tué la
14
peinture. Elle est ressuscitée. Guerre sans victimes. (Saint-Phalle, in
Lower, 2001, p. 53)
Hulten (1999) fala que foi uma forma de liberação das forças criadoras.
Era uma forma imediata de transmutação da realidade numa experiência de
destruição-criação, um revivificar e um ressignificar a realidade: “Après la série des
Tirs, tout était possible”15 (Hulten, 1999, p.15). Foi a partir dos Tiros que ela entrou
no grupo dos Novos Realistas, em que era a única mulher. Foi também nessa fase
que ela passou a ser conhecida pelo grande público que se sentiu seduzido tanto
pela sua beleza, como por sua postura segura e firme e por sua provocação. Sua
imagem passou inclusive a ser referência no movimento feminista. Com seu novo
grupo, eles passaram a atuar também nos palcos incluindo outros universos
artísticos: a música, o teatro e a dança.
3ª fase: Albedo³
Inicialmente nas colagens dos Tiros ela não buscava uma forma definida,
eram apenas objetos quaisquer unidos ao acaso num espaço delimitado esperando
o tiro fatal. Aos poucos começaram a surgir formas definidas no seu trabalho e os
tiros foram cessando. Ela entrou num período chamado Branco. Sempre na
perspectiva da assemblage, em seus relevos, ela passou a buscar reproduzir
imagens de noivas, mulheres grávidas, mulheres parindo, prostitutas, catedrais,
monstros, cabeças, caveiras e corações. Suas representações de mulheres muitas
vezes eram crucificadas e vitimizadas. As noivas seguravam buquês de aranhas e
bonecas desmembradas.
14
Tradução livre: “Em 1961 eu atirei: no meu pai, nos homens, nos pequenos, nos grandes, nos
importantes, nos gordos, no meu irmão, na sociedade, na igreja, em todos os homens, no meu pai,
em mim mesma, nos homens. Eu atirava porque me dava prazer e que isto me fazia sentir uma
sensação extraordinária. Eu atirava porque me fascinava ver o quadro sangrar até morrer. Eu atirava
para viver este momento mágico. Era um momento de verdade escorpiônica. Pureza branca. Vítima.
Pronto! Apontar! Fogo! Vermelho, amarelo, azul, a pintura chora, a pintura está morta. Eu matei a
pintura. Ela ressuscitou. Guerra sem vítimas.”
15
Tradução livre: “Depois da série dos Tiros, tudo era possível”.
22
Algumas dessas imagens, como as noivas e os monstros, adotavam um
aspecto infantilizado e passavam até a ser comercializados em bonecos de plástico
banais. Ela produziu, também neste período, assemblages de altares sinistros
crivados de balas, morcegos, revólveres, etc. Mergulhava, assim, nas marcas
deixadas por sua rígida educação religiosa. Ela certamente transmutava e purificava
sua energia, mas não deixaria de lado seus monstros, sua sombra, ela os
considerava como parte integrante dela mesma. Representando por exemplo, nos
buquês das noivas de aranhas e pedaços de bonecas desmembradas.
24
em filmes de arte, como o cenário do filme The Travelling Companion, de 1966, com
a colaboração de Constantin Mougrave, ou o filme Le Rêve plus Long que la Nuit, de
1975, escrito por ela.
Gostaria de chamar a atenção ao filme Daddy, de 1972, com a
colaboração de Peter Whitehead, como exemplo de sua maneira catártica, poética e
exposta de se expressar. Nele, uma menina pré-adolescente simbolicamente
domina, humilha, se afirma sobre a figura de um tirano masculino matando-o 17
vezes. Em forma de poesia, ela exprimiu toda a sua cólera contra a situação
traumatizante, violenta e humilhante da menina violada. Ela mergulha nas águas da
sexualidade sem preconceitos, explorando a relação mãe-filha, pai tirano/menina
indefesa de uma forma exposta e profundamente simbólica.
Nesse filme, ela falou tudo, dançou nos símbolos, se desnudou na poesia,
na ousadia de quem se abria à sua sombra, enfrentava seus complexos com poucas
barreiras buscando a integridade do ser. Ela renasceu inteira, forte e cheia de vida,
lavando sua alma definitivamente pela violência sofrida no passado. Acredito que
esse filme mereceria uma atenção especial nas referências de situações de
violência contra crianças, na questão da coragem daquele que se relaciona com sua
sombra, na vida-morte-renascimento de um ser integral e com mais frescor criativo.
Ela fez uma série de esculturas em bronze polido sobre deuses egípcios.
Acrescentava pinturas a óleo coloridíssimas dando efeitos de extrema beleza e
originalidade. Criou, ainda, para produção em grande escala, objetos de decoração,
joias, bijuterias e objetos infláveis, inclusive um perfume que financiou parte do
jardim. E finalmente, ela contribuiu com vários movimentos de conscientização: o
mais famoso foi nos anos 1990, com seu filho Philip Mattews, em que ela produziu
um desenho animado intitulado “AIDS: You can’t Catch It Holding Hands”. Além
disso, recebeu prêmios pelo seu engajamento social.
Também publicou livros como Mon Secret (Saint-Phalle, 2010). Trata-se
da publicação de uma carta escrita à sua filha Laura, explicando a violência do
estupro e a solidão que se seguiu na sua história. Mas é, do mesmo modo, um
grande instrumento de conscientização da questão da violência contra a mulher e a
criança. Através de sua obra complexa, nessas ações ela mantinha uma postura de
um grande engajamento, sensibilidade, franqueza e empatia com os problemas da
sua época.
25
2. A ARTE, PSICOLOGIA ANALÍTICA E VIDA SIMBÓLICA.
Não é Goethe quem faz Fausto, mas sim... Fausto quem faz Goethe.
(Jung, 1930, p. 159)
[...] J’ai imposé ma vision parce que je ne pouvais pas faire d’une autre
17
manière .
(Saint-Phalle, 2004, p.6)
Jung (1985) fazia uma diferenciação entre a expressão que tem por
origem o fundo psicológico e a de fundo arquetípico. Este primeiro teria como “pano
de fundo” processos e conteúdos oriundos do que estão no limite do que é
compreendido (inconsciente pessoal) e que não nos é estranho. São elementos que
nos são familiares e podemos, através de certa análise, esgotar no nosso
conhecimento e apreciação todos os sentidos e significados da mensagem proposta.
Essa arte se preocupa em falar de fenômenos sociais, questões de relacionamento,
questões didáticas, a “paixão e de suas vicissitudes, dos destinos e de seus
sofrimentos, da natureza eterna, seus horrores e belezas” (Jung , 1985, p. 140).
Por outro lado, temos a arte de fundo arquetípico. Essa arte possui uma
característica desconcertante por trazer em si temas desconhecidos, estranhos, que
não se compreende facilmente. Ela é portadora de uma carga afetiva e emocional
importante. É reveladora e não se intimida diante da possibilidade de provocar
angústia, destruição, e incompreensão de “natureza profunda, parece surgir de
abismos de uma época arcaica, ou de mundos de sombra e de luz sobre-humanos”
(Jung, 1985, par. 141). Pode ser demoníaca ou sublime, grotesca ou extremamente
frágil. O seu confronto é uma experiência que nos convida ao olhar intuitivo e aceitar
seu mistério. Ela é significação pura, emergente do fundo da vivência originária, na
qual as imagens não estão preocupadas com a beleza, mas com o vibrar de uma
energia conhecida, visionária, eterna, muito intuitiva e de difícil acesso. Jung
17
Tradução livre: “Eu impus minha visão porque eu não podia fazer de outra forma”
26
chamou essa arte de “Grande Arte” e tal é a arte com que estamos lidando nesta
pesquisa.
Aniéla Jaffé (in Jung, 1964) explica que existe uma tendência natural
humana de formular símbolos. Tudo pode se tornar um símbolo a partir do momento
em que depositamos uma expressão religiosa ou artística, conferindo-lhes uma
importância psicológica e afetiva. Um símbolo se vivencia, não se interpreta. Neles
são representados conteúdos instintuais que não podem ser explicados com as
palavras ou na experiência racional. Eles são verdadeiras entidades vivas
provocadores de vivência numinosa.
27
podermos ter controle sobre eles. A qualquer momento nós estamos expostos a ser
invadidos e dominados pelas emoções. Em outras palavras, ninguém está liberado
da força da manifestação dos nossos complexos.
Para Jung (1964), os instintos são uma pulsão fisiológica percebida pelos
sentidos, enquanto os arquétipos são a manifestação das pulsões que se apropria
dos símbolos (imagens ou mitos) para se comunicar. O arquétipo é um centro
energético que necessita que sejam construídos símbolos para dar forma e
significação adotando formas diversas seja por imagens ou por motivos mitológicos.
Ele depende das sensibilidades e das possibilidades podendo ter quantas formas
forem possíveis. Sua base é, portanto, sempre a mesma, ainda que a sua expressão
esteja vinculada ao seu tempo. Estar exposto à experiência arquetípica é ser
possuído por uma força fascinante e terrivelmente misteriosa que é a experiência
numinosa.
28
Van Den Berk (2012) comenta que, para Jung, o momento em que os
conteúdos arquetipais se manifestam, trazendo à consciência os impulsos
inconscientes, é um momento de grande intensidade e por vezes chega a ser
violento. Podem aflorar conteúdos estranhos, desconcertantes, misteriosos e
incompreensíveis racionalmente. A vida consciente pode perceber expressão dos
complexos como ambígua, ilógica, ou indigesta, todavia eles são indispensáveis à
vida. A mente tem um papel importante na gestão dessa força. O Ego, o centro
consciente do nosso ser, precisa ter suficiente habilidade para canalizar, ordenar e
estruturar essa energia.
Jung (1964) acreditava que, para que se tenha uma existência saudável,
é necessário que exista uma relação equilibrada entre a parte instintiva
(inconsciente, arquetípica) e a parte racional (consciente, ego) do espírito humano. A
consciência necessita do inconsciente para enriquecer seu repertório comunicando
sua essência originária. Em compensação, o inconsciente precisa da consciência
para elaborar, organizar e racionalizar esse conteúdo. Os símbolos, portanto, são os
mensageiros que vão permitir a comunicação e a união desses opostos. Jung falava
que a experiência numinosa é a verdadeira terapia.
O que acontece com o artista é que ele se apodera desses conteúdos que
ressurgem do fundo da sua experiência originária e vivencial, que influenciam a sua
intuição como um pressentimento ou uma visão criando um símbolo formalizado
numa obra de arte. O artista, para Jung (1985), teria então uma função educativa,
revelando, renovando e trabalhando continuamente no processo de autorregulação
espiritual na vida das épocas e das nações:
31
Au tout début du jardin j’étais accablée par l’arthrite rhumatoïde et je pouvais
à peine marcher et utiliser mes mais, mais j’ai continué, RIEN ne pouvait
m’arrêter. J’étais ensorcelée. Je sentais aussi que c’était ma destinée de
18
faire ce jardin n’importe la grandeur des difficultés (Saint-Phalle, 2004,
p. 4).
18
Tradução livre: “No começo do jardim eu estava destruída pela artrite reumatoide e eu mal podia
caminhar e utilizar minhas mãos, mas eu continuei, NADA poderia me fazer parar. Eu estava
enfeitiçada. Eu sentia que era o meu destino realizar esse jardim não importando do grau das
dificuldades”.
32
3.
A OBRA DO TARÔ DE NIKI DE SAINT-PHALLE
Comme dans tous les contes de fées avant de trouver le trésor j’ai rencontré
sur mon chemin les dragons, les sorciers, les magiciens, et l’ange de la
19
tempérance .
(Niki de Saint-Phalle, 2004, p. 6)
A palavra Tarô poderia ter a origem egípcia (tar = caminho, ro, rog = real);
ou no hindu-tártaro (tan-tara = zodíaco); ou no hebreu (tora = lei); no latim (rota =
roda, orat = falar); no sânscrito (tat = o todo, tar-o = estrela fixa); no chinês (tao =
princípio indefinível), etc.
(Jodorowski, 2004). Ainda,
nas grandes tradições
religiosas como os
muçulmanos, cristãos, os
judeus, ou mesmo entre
sociedades secretas como os
alquimistas, os maçons, os
ciganos e a rosa-cruz.
34
representação arquetípica, por exemplo, a Imperatriz e o Imperador representando
os arquétipos de mãe e pai, o Papa e o Eremita seriam facetas do velho sábio, etc.
35
chamadas arquétipos, tendo a função de comunicar a sabedoria arcaica de cada
arcano. A partir das figuras estampadas nas cartas, existe uma conexão instintiva
que permite ao indivíduo ser chamado a refletir sobre sua própria existência. O tarô
teria uma função de oráculo, que exerce uma influência sobre nossa psique,
facilitando a adoção de uma ação criativa e inspirando novas ideias e descobertas
de si.
Nichols (2007) fala que Jung viu no Tarô uma rica expressão do
inconsciente coletivo, conceito que criou para designar uma espécie de conteúdo
residual de todas as experiências da humanidade. Lá estão representados, por
exemplo, o amor materno, a autoridade paterna, o impulso para a guerra, ímpeto
criativo, conecção com o self, e o fascínio pelo divino. Na sua complexidade
simbólica por seu profundo aspecto arquetípica, o tarô responde pela expressão
desses conteúdos e por uma necessidade de troca entre o inconsciente e consciente
e é um suporte interessante para a individuação.
36
3.2. O Jardim dos Tarôs de Niki de Saint-Phalle
Le tarot m’a donné une plus grande compréhension du monde spirituel et des
problèmes de la vie et aussi un éveil aux difficultés qui doivent être surmontés
pour qu’on puisse aller à la prochaine épreuve et à la fin du jeu trouver la paix
20
intérieure et le jardin de paradis.
(Saint-Phalle, 2004, p. 70)
20
Tradução livre: “O tarô me trouxe uma maior compreensão do mundo espiritual e dos problemas da
vida e também um despertar das dificuldades que devem ser ultrapassadas para que possamos ir
adiante até a próxima batalha e no final encontrar a paz interior e o jardim do paraíso.”
37
Foram usadas armaduras de ferro com concreto coberto de cerâmica
fabricada no local. Inclusive, foi reativada uma técnica egípcia na qual se moldava a
cerâmica diretamente no local para depois receber o cozimento ao menos três
vezes. Para evitar a diminuição da cerâmica no cozimento, acrescentava-se vidro
cortado à mão.
38
Ela passou muito tempo no interior morando e compartilhando momentos com sua
equipe. Conta que passava horas olhando a vida ao exterior pela janela. Ela se
sentia em segurança e transportada num espaço de magia onde tudo era possível.
Para ela, eram momentos em que a sombra convivia com a luz:
21
Tradução livre: “Neste espaço mágico, eu perdia a noção do tempo. As limitações impostas pela
vida normal eram abolidas. Eu me sentia segura e transportada. Aqui tudo era possível. Mas tinha
também seu lado sombra. Eu sofria de insônia e na noite eu sentia cada segundo empurrar o outro.
Claro, eu imaginava que Deus devia realmente me amar e ter me escolhido para a construção deste
Jardim. Mas eu tinha também visões do inferno: milhares de pequenos demônios pretos, lisos, com
asas horríveis, saiam de todos os orifícios, nojentos, asquerosos. Eu podia me livrar deles? No meio
da noite eu abria a janela da esfinge e eles voavam.”
39
4. OS ARCANOS E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO SEGUNDO NIKI DE
SAINT-PHALLE:
4.1.1. O Louco
Le numéro du Fou est zéro, (pas de nombre) mais
pour moi le zéro est un chiffre. Le fou dans le jeu du tarot est aussi fort que
les autres cartes mises ensemble. Pourquoi ? Parce qu’il représente
l’homme sur sa quête spirituelle, ne sachant pas où il va. Le fou est prêt à
découvrir. Il est le héros des contes de fées qui apparait comme débile mais
22
au fait est capable de trouver le trésor.
(Saint-Phalle, 2004, p. 26)
Esta carta é um arcano diferente dos outros porque ela não tem um
número, é o zero. Ela pode ser tanto a carta número zero como 22. É como se fosse
um arcano que estivesse por toda parte e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Ele
traz a ideia de vazio. Está do lado de fora do tarô, vai aonde ele quer quando ele
quer, está fora do espaço-tempo servindo de vínculo do principio ao fim.
Normalmente, é representado como um andarilho que caminha acompanhado de um
cachorro carregando um bastão, um instrumento musical e uma trouxa.
Segundo Nichols (2007), esse arcano inspira fascínio por ser uma carta
que carrega um simbolismo de ampliação, de mudança de caminho, de ímpeto à
ação (energia), de liberdade, o andar sem muito pensar – mas assertivo, ele
empurra para a vida. O andar do louco é um andar com o olhar no futuro sem deixar
de se servir do olhar da inocência da infância passada. Nichols comenta que o
Louco anda como um louco, mas sabe a dose ideal para não sair da estrada. O
louco não erra no seu caminhar, ele avança sem se importar com as regras do bom
senso, ele age inspirado pelos seus instintos (Chevalier, 2011). O cão o está
acompanhando, relembrando sua íntima relação com o mundo animal e instintivo de
quem dita as coordenadas da viagem.
Nichols (2007) considera-o como o herói que sempre vence com sua
maneira despreocupada, debochada e inocente de ver mundo. Ele perturba a
ordem, desconcerta, e se diverte com isso. É o bufão, o bobo da corte, o arlequim, o
22
Tradução livre: “O louco é o número zero, (sem número) mas para mim o zero é um número. O
louco no jogo do tarô é tão forte como todas as outras cartas colocadas juntas. Por quê? Porque ele
representa o homem na sua busca espiritual, não sabendo aonde ele vai. O louco está pronto a
descobrir. Ele é o herói dos contos de fada que aparece como débil, mas na verdade é capaz de
encontrar o tesouro”.
40
palhaço, o coringa. Como coringa ele representa o vazio, aquele que não tem função
nenhuma, mas que pode mudar o curso do jogo a qualquer momento. Ele aparece
quando quer, mesmo se não for chamado. Seu sorriso dissipa a agressividade. Se
ele decide, e se ele quer, ele traz a destruição e
anarquia. Como um bom bobo da corte, ele se
senta ao lado do rei repleto de privilégios.
Desconfia-se até de que ele é o espião do rei: “ele,
sem dúvida, observa e relata o que fazemos a
“Alguém lá em cima”” (Nichols, 2007, p. 39). É
aquele que recebe a inspiração divina. É a própria
representação do que unifica os dois mundos: porta
em si o olhar numa terra não verbal, uma terra
ancestral, que lhe é familiar, e o olhar dos eventos
contemporâneos de todos os dias. Com a sua
sabedoria instintiva, ele consegue encontrar a
dosagem certa para dar uma nova direção sem
estar muito ridículo. Apesar da sua loucura, ele
inspira segurança pela sua sabedoria.
Figura
5:
Arcano
O
Louco,
Tarô
de
Marseille, Falando sobre cães e estudando o
Jodorowski
(2004)
instinto da vida social dos lobos em estado
selvagem, encontrei uma semelhança com o papel hierárquico do lobo Ômega.
Segundo Ellis (2007), numa alcatéia de lobos, a questão da hierarquia fortemente
estabelecida é a condição básica para a sobrevivência do
grupo. Existe o status do lobo Ômega, um lobo mais fraco
desde o nascimento, menor que os outros. Tem uma
expressão meio inocente, seu uivo é mais melodioso que
os outros, quase um canto. Ele fica um pouco de fora: é o
último a comer e não participa dos ataques à presa como
os Alpha, Beta, e Gama. Desde seu nascimento os outros
o provocam sempre exercendo um papel de bode Figura
4:
Lobo
Ômega
(de
baixo),
fonte:
expiatório. Ele passa o dia brincando com os demais em http://www.gayanature.com/le-‐
loup-‐omega-‐a104100864
posição de submissão. Ellis (2006) fala que ele é (consultado
no
dia
4/01/2014)
41
tradicionalmente chamado de o palhaço do bando, ele tem inclusive outro apelido
sugestivo de lobo-Cinderela. As pesquisas mostraram que este lobo não é tanto o
infeliz da alcatéia quanto parece. Ele é o único do grupo que come os restos da caça
diretamente da loba Alpha (a loba comandante da alcatéia), ou seja, os melhores
pedaços, enquanto os outros (Beta e Gama) têm o direito de comer os pedaços de
segunda categoria que a Alpha decide. Os estudiosos perceberam que esse lobo
tem uma função de equilíbrio no bando: com suas brincadeiras, ele relaxa as
tensões, é receptor de toda agressividade do grupo e faz com que se mantenha a
coesão social. Nas refeições, ele protege o espaço dos lobos de alto escalão, se
fazendo de bobo e brincando, evitando assim maiores conflitos
no momento em que
todos estão famintos.
43
Para ilustrar, podemos imaginar um mandada com seu centro sagrado,
representando a essência do ser, que conteria a essência da vida numa ideia de
pertencimento cósmico. Esse centro seria perfeitamente inconsciente e seria
compartilhado com a humanidade inteira pelo que Jung chama de inconsciente
coletivo. Podemos acessá-lo por meio de intuições, revelações, vivências religiosas,
simbólicas, e ainda, para compreender algo dele, temos que usar da nossa intuição
sem nunca poder ter acesso à totalidade dos conteúdos.
44
numinosa porque nos conecta com algo muito profundo da nossa essência, podendo
até haver uma mudança radical de estilo de vida. Muitas vezes tomamos decisões
inspiradas em uma reflexão racional, baseada em questões morais, sociais,
exigências profissionais, etc. De repente, somos surpreendidos pelo nosso self nos
enviando mensagens completamente opostas desequilibrando nosso plano – sem
querer. Esse é o efeito de louco nas nossas vidas, debochando das exigências,
tentando reorientar os projetos e trazendo novas necessidades que parecia não
termos levado em consideração anteriormente, mas que nos transformam, fazendo
com que estejamos mais próximos de nós mesmos:
45
4.1.2. O Louco de Niki de Saint-Phalle
instinto selvagem tem uma parte importante no ímpeto dessa caminhada. O bastão é
de cor preta, cor muito rica de significados. No Egito antigo e na África do Norte
(Chevalier,1982), por exemplo, o preto é símbolo de fertilidade, diferente da cultura
ocidental em que é ligado ao luto. Preto pode significar também águas profundas, a
vida latente, o vazio, a não manifestação e o nada que prepara um novo
renascimento. Afinal de contas a luz precisa das trevas para acontecer. Tem a ver
com as profundezas da terra, o breu do mundo subterrâneo. Preto é a cor das
virgens negras Isis, Deméter e Cibele. No Brasil, temos Nossa Senhora de
Aparecida que apareceu do fundo das águas turvas do Rio Paraíba trazendo
redenção ao povo faminto da região, ao mesmo tempo em que nutre, ela
espiritualiza. Chevalier fala de cor absoluta da substância universal, a prima matéria,
da diferenciação primordial, do caos original das águas inferiores, do norte, da
morte, é o negro hermético: retorno ao caos indiferenciado (Chevalier, 1982).
46
No texto de apresentação do arcano, Niki fala ainda daquele tipo de herói
de conto de fadas que aparentemente é débil e fraco, mas capaz de encontrar o
tesouro. Ela fala do herói movido pela força do instinto e não pela força egóica,
daquele que pode parecer ridículo ou fora de moda porque simplesmente está
escutando sua voz interior, e com essa escuta ele consegue agir com sabedoria e
mudar o mundo, e especialmente o seu mundo interior. Relembrando o que falamos
no começo desta pesquisa, o artista tem um ego menos ativo que a pessoa comum.
Ele age muito mais em conformidade com o seu self, acabando por negligenciar
alguns aspectos de todo dia.
Se olharmos com atenção a biografia da nossa artista, ela foi alguém que
teve um caminhar pela vida como uma louca no sentido do arcano. Sempre agiu de
uma forma rebelde ou, podemos dizer, revolucionária, mas prefiro a palavra criativa.
Já começou quando ela pintou de vermelho o sexo da escultura das freiras e, mais
tarde, quando ela deixou o país natal porque não suportava as incoerências do
American Way Life. Depois, ainda, a vida boêmia na França, o surto, quando deixou
a família para trás para partir sozinha no mundo para seguir a necessidade de ser
artista, o casamento turbulento com Tinguely, a superação das inúmeras doenças, e
o que acho que a fez uma louca digna deste arcano: nunca ter aceitado estudar arte.
Ela fez aquilo que seu self lhe impôs, escutando sempre alguma voz interna e
instintiva e nunca ter pertencido a uma escola. Além de ela não ter parado de viajar,
ter morado nos EUA, em vários lugares da França, na Espanha, na Suíça e na Itália.
Agiu como uma andarilha, muitas vezes morando em lugares sem conforto e pouco
acolhedores. Isso tudo relembra Jodorowski quando ele fala do louco como alguém
sem nacionalidade.
47
mundo exterior. Estava conectada a algo muito profundo e ainda serviu de profeta,
anunciando as boas novas à humanidade por meio da sua arte de aparência naïf
que evocava inúmeros símbolos que a auxiliaram, sem dúvida, no seu processo de
individuação. Atuou também ativamente em movimentos sociais como o feminismo,
a sensibilização à questão da AIDS, etc. Em suma, mudou profundamente o rumo
da forma de sentir no seu tempo.
48
4.2.1. A Morte, Arcano n° XIII
La Mort est le grand mystère de la vie. Sans mort,
la vie n’aurait aucun sens ; La Mort, avec sa faux permet à des nouvelles
fleurs de pousser. La carte de la mort est la carte du renouvellement. Rester
conscient de la mort est une manière de ne pas être pris par les vanités de
la vie.23
(Saint-Phalle, 2004, p. 20)
Existem muitas semelhanças entre estas duas cartas por ambas tratarem
de aspectos da mesma energia fundamental. A diferença é que a carta do Louco é
sobre um movimento liberatório e a carta da Morte, de um trabalho, de um cultivar
uma nova etapa da vida (Jodorowski, 2004). Esse trabalho tem a ver com o
processo de eliminação do Ego. Nesse momento da jornada, nada mais é tolerado:
sistemas de valores e conceitos redutores, nenhum
elemento inútil. Esse processo, por vezes difícil e
cruel, é que vai nos permitir reencontrar a liberdade
perdida no Louco, na individuação.
50
destronados. E como se não bastasse, o esqueleto caminha se apoiando nas
próprias cabeças para avançar - indicando que este arcano tem a ver com a
purificação dos arquétipos mais profundos.
O símbolo do esqueleto tem a ver com o que nos resta ao final de tudo.
Ele representa a nossa parte mais resistente, o que sobrevive ao tempo, o mais
profundo e tudo o que resta dos nossos antepassados, onde deixamos nossas
marcas definitivamente para nossos futuros descendentes. Como diz Nichols (2007),
“é o homo sapiens arquetípico”, o que representa a verdade básica eterna revelada.
É o nosso segredo mais pessoal, tesouro enterrado, escondido – como o
inconsciente, o mais profundo e verdadeiro Eu. Tem um sentido revelador, pois, ao
mesmo tempo em que é um conjunto de ossos sem vida e monstruoso, é a
revelação da vida como ela é. A aceitação da morte tem a ver com a aceitação da
vida. No tarô de Marselha, o rosto do esqueleto é assexuado e mascarado,
lembrando que a morte é para todo mundo independentemente do sexo e pode ter
muitas facetas.
Por outro lado, a foice tem uma forma de lua crescente sugerindo os
ciclos que virão que são promessas de regeneração. Sua ação nos leva da
mortalidade à imortalidade da consciência individual, pois estamos inseridos num
processo orgânico, natural e vital. Aceitamos a morte porque aceitamos a vida.
53
4.2.2. A Morte segundo Niki de Saint-Phalle:
24
Tradução livre: “Desde o começo o perigo estava presente. Eu aprendi a amar o perigo, o risco, a
ação. Toda a minha vida eu fui torturada pela asma e os problemas respiratórios”
25
Acredito que ela estava querendo trazer o debate entre Chronos e Kairos, ou seja, a questão do
tempo físico/linear e o tempo das profundezas do instante. O tempo do racional (Chronos) e o tempo
da vivência, o tempo do numinoso, o tempo cósmico e conectado com as forças divinas (Kairos) (Von
Franz, 1980).
54
Um grande contraste de cores e a cor preta com um material espelhado
(seja vidro ou cerâmica), brilha com o espelhado prateado e o dourado. Traz, além
do contraste luz e sombra, elementos alquímicos do ouro e da prata, bem como uma
alegria leve e festiva dessa efusão alegórica de cores, de bom humor e de senso de
afirmação de si. A escultura chama a atenção também pela exuberância do seu
imenso tamanho. Nota-se com isso a falta de medo de se expor, de contemplar este
arcano e sua grande sabedoria simbólica exposta assim sem muitos rodeios. Um
verdadeiro triunfo, o Triunfo da Morte!
Nichols (2007) fala que não é raro que alguns tarôs representem a Morte
num cavalo espinoteando tudo o que encontra na frente. Dá uma ideia, assim, da
morte como uma força impessoal, destruindo tudo o que bem entende, queira ou
não ninguém escapa. A vivência da morte é um passo irrevogável – nada será como
antes, um caminho sem retorno. Uma vez que o processo começou, a pessoa se
transforma, ela se torna irreconhecível. Conforme a situação, a pessoa estará
condenada ao exílio, muitas vezes dentro da própria família, ou o próprio país. É um
processo profundo, onde forças do inconsciente tomam a dianteira ignorando
completamente o que o Ego quer conservar por medo, vaidade ou preguiça. Assim
como aconteceu na vida de Niki de Saint-Phalle. Ela teve que se mudar de escola,
de país, de matrimônio. Teve que se distanciar da família, da vida acadêmica, da
futilidade da vida de modelo fotográfico, e o mais doloroso, de seus próprios filhos.
Sua vida foi um constante avanço após rupturas importantes e dolorosas. Muitas
vezes este processo se tornava inevitável, era maior que ela porque vinha de águas
profundas e viscerais, onde o Grande Self Orientador falava mais forte. Com toda
sabedoria, ela se submetia, aceitando o sofrimento e renascendo mais uma vez para
cada nova morte.
55
mortes na sua vida afetiva desde o abandono
Receita da Calcinatio: “Toma um
dos pais, de todos os embates que a família feroz lobo cinzento, que... é
encontrado nos vales e montanhas
enfrentou, o estupro do pai, a doença mental, a
do mundo, nos quais uiva, quase
violência do caráter tempestuoso do seu selvagem, de fome. Dá-lhe o corpo
do rei e, quando ele o tiver
segundo marido Tinguely, a neurótica reação
devorado, queima-o totalmente, até
das sextas-feiras após a carta do pai, a torná-lo cinzas, numa grande
fogueira. Por este processo, o rei
convivência e aceitação da família paralela de será libertado; e quando isso tiver
Tinguely, a solidão de seu exílio na montanha, a sido realizado por três vezes, o leão
terá suplantado o lobo e nada
separação dos filhos, etc. encontrará para devorar. E assim,
nosso corpo terá se tornado
A cada vez ela ressurge triunfante, apropriado para o primeiro estágio
do nosso trabalho”.
oferecendo ao mundo uma obra que inicialmente (Waite, The Hermetic Museum
exibe descaradamente e com toda sua força 1:325, in Edinger, 2006, p. 38)
56
ela, podendo desfrutar dos seus tesouros escondidos. Não é um processo objetivo,
mas um abandonar-se a uma conexão com diferentes níveis da consciência muito
mais profundos que os habituais. É a possibilidade de navegar em níveis de
natureza arcaica, pré-verbal, carregadas de emoção, que exercem uma força
mágica e que antecedem inclusive a própria imagem. É um retorno às origens, às
raízes, às forças formadoras da vida é o verdadeiro encontro com o Divino. Um
estado regressivo onde nos descobrimos inseridos num universo obscuro, urobórico,
vivo, em equilíbrio, somente se pode encontrar num estado de consciência alterada.
Sentimos que somos parte de uma força cósmica.
57
4.3.1. A Força, Arcano n° XI
Une jeune fille mène par la main un féroce dragon par un fil invisible. Le
monstre que la jeune fille doit mâter se trouve à l’intérieur d’elle-même. Elle
doit conquérir ses propres démons. A travers cette épreuve difficile elle
26
découvrira sa propre force.
(Saint-Phalle, 2004, p. 14)
26
Tradução livre: “Uma menina carrega um feroz dragão segurando um fio invisível. O monstro que a
menina deve controlar se encontra no interior dela mesma. Ela deve conquistar seus próprios
demônios. Através deste difícil desafio ela descobrirá a sua própria força”.
58
história de um encontro. As coisas acontecem num lado oculto. A aproximação se
faz delicadamente, calmamente, sutilmente, de maneira muito feminina.
Esse vaso alquímico contém a audácia (Nichols, 2007) do envolvimento a
dois e o contato físico direto: ela manipula, explora, sente o animal com suas
próprias mãos nuas. Nessa relação, ela comunica seus afetos, sua atmosfera, sua fé
e suas expectativas. Tudo é direcionado na relação com o animal. Essa força
trabalhada com as próprias mãos é uma força de criatividade encarnada, de
iluminação, de potência eficaz onde tudo está sob controle. Não parece que a
menina precisa fazer grandes esforços. É uma força equilibrada.
A relação entre os dois arcanos (o Mago, n° I, e a Força, n° XI) mostra
que o trabalho da consciência passa antes da relação com as forças instintivas. O
ego precisa de uma estrutura antes de enfrentar seus demônios. Inclusive, ambos
possuem um chapéu em forma de leminiscata, de infinito, anunciando que os
processos são sempre um ir e vir eternos. No chapéu da menina da Força,
encontramos motivos lembrando plumas de águia como se a Força estivesse pronta
para voar. Jodorowsky (2004) vincula a águia aqui discretamente mencionada com a
abertura versus o que está acima, permitindo que esses ensinamentos (que vêm de
baixo) se comuniquem com as instâncias espirituais. Podemos, entretanto, observar
que a menina está muito bem ancorada num solo amarelado. Jodorowsky interpreta
esse amarelo dizendo que a menina está ancorada no prazer e na beleza mais
sublime. Inclusive o leão compartilha o mesmo solo anunciando que ambos estão
enraizados no mesmo substrato.
Enquanto a primeira dezena estava voltada para a adaptação no mundo
exterior (sobrevivência, competição, estratégia, ritualização...), esse novo ciclo desta
vez é direcionado ao mundo interno, o crescimento interior, a unificação, a questões
básicas da natureza instintual dentro de um princípio feminino e do Eros. Esse
arcano anuncia uma nova magia que se apresenta tendo assim um papel iniciatório:
ele atua como força mediadora entre o ego e as forças mais primitivas do herói.
Na figura do tarô de Marselha, encontramos uma mulher mortal, humana,
vestida à moda do seu tempo, sem coroa nem um trono, contudo ela não é comum,
ela doma um leão com facilidade. Esta mulher aparenta estar na sua segunda
metade da vida pela sua maneira de vestir e sua aparente cultura e refinamento
59
(Nichols, 2007). Felizmente a dama está se mostrando capaz de enfrentar com
serenidade seu destino.
Jodorowsky (2004), no seu movimento de ampliação, observa elementos
contrastantes como as unhas vermelhas tanto dos pés como das mãos da figura
feminina, interpretando como sendo a força vital manifesta. Ele relembra que as
unhas continuam a crescer mesmo depois da morte. Elas simbolizam assim a força
eterna. Ele acredita que tudo indica que estamos falando de uma presença tanto
instintual como espiritual, de uma consciência integrada dos pés à cabeça. Como a
figura não está inserida em nenhuma paisagem, Jodorowsky acredita que este
arcano não se situa nem num tempo nem num espaço: é presença pura e expressão
de grande energia. Ele vê, entretanto, alguns sinais sugerindo dificuldades neste
processo: o pescoço da menina tem um colar vermelho, indicando para ele algum
recalque de energias sexuais ou um sinal de decapitação. A mão da menina com
suas unhas vermelho-sangue na boca da fera pode indicar um conflito causando um
combate sangrento. E finalmente o laço apertado do espartilho pode indicar um
fechamento do coração. Ele fala que poderia ter a ver com um corpo percebido
como fragmentado.
Se lembrarmos do cãozinho do arcano do Louco, podemos imaginar aqui
que o herói não deu a atenção que ele merecia e agora estaria transformado num
imenso leão – agora não tem mais jeito, o confronto e a negociação tornaram-se
inevitáveis. A boa notícia é que o herói é capaz de dar conta de confrontar-se com
sua natureza animal. Nichols fala daqueles terríveis afetos que todos já sentimos
que de repente nos engolem. É a nossa natureza tomando poder sobre nossa
consciência reclamando o espaço de direito. Mais se damos as costas, o animal se
torna mais voraz e exigente. Como ela comenta, numa forma mais suave pode ser a
causa doenças psicossomáticas, um estar fora de si momentâneo, uma boa crise de
raiva, de inveja... Mas pode ser algo mais grave causando uma ruptura fatal de
algum laço forte, um crime passional, ou de uma maneira mais extrema, como uma
crise esquizofrênica. Nesse caso, o ego não consegue mais ter a força necessária
para existir e o leão é o rei, é quem vai governar agora. Ele esteve tão ignorado que
nem leão ele é mais, transformou-se num monstro indomável. Essa é a força dos
complexos.
60
Quando nosso animal, seja o cachorrinho ou o leão, deseja ocupar outro
lugar, a melhor maneira é encará-lo e dar o que ele quer. Inclusive esta força nos é
útil, é o que nos conecta com nosso interior, ela enriquece nossa existência e é o
que nos diferencia da massa. É uma grande companheira – só que ela não gosta de
ficar atrás, ela quer caminhar lado a lado. O ajustamento não pode acontecer de
qualquer maneira e não precisa que a experiência seja uma grande catarse, mas é
uma experiência de conexão, um assumir seu animal pessoal. É necessário que
haja uma conscientização, pois primeiramente o animal precisa existir. Em seguida,
temos que encontrar o lugar adequado de cada um. Aniela Jaffé complementa: “o
homem primitivo precisa domesticar o animal em si mesmo e fazer dele seu
companheiro útil e o homem civilizado precisa curar o animal em si mesmo e torná-
lo seu amigo” (Jaffé apud Nichols 2007, p. 214 ).
A força do leão personifica a autoridade instintual – “o eu quero do eu”
(Nichols, 2007, p. 209). O leão é o símbolo do poder energizante, do sol central da
psique, o Eu. É a força que vai nos ajudar a renunciar valores morais e religiosos
inadequados, materiais, mandatos inúteis, expectativas alheias... É o sangue
dourado que corre nas nossas veias, impedindo que sejamos simples bonecos
moldáveis que obedecem estupidamente os outros. Ele nos ajuda a realizar nossas
energias inconscientes nos dando liberdade de ação e mais autoconfiança. Faz-nos
mais conscientes dando o combustível para um nascer em nós mesmos a partir do
que somos. Abrimo-nos assim a uma nova consciência, mais profunda, mais íntima
e menos incômoda.
Nos contos de fadas, a bela acaba se casando com a fera ou a princesa
beijando o sapo. É o que Nichols (2007) chama de verdade poética: quando a
consciência humana aceita sua natureza primitiva, isto é, o poder autônomo do
instinto. Nesse momento, ocorre a liberação e a transformação da força instintual.
Por sinal, nesses contos, o personagem é sempre uma princesa perdida ou
adormecida, ou mesmo indecisa, ou uma menina inocente, enfim, é um caminho de
ânima, é um despertar a partir de um poder vindo do elemento feminino. Sempre
acaba em finais felizes porque a menina acaba aceitando a sua natureza bestial, e
ressurge casada com seu animal domesticado e transformado. Observamos, então,
que, nos contos, o poder animal nunca age com uma selvageria desenfreada e
61
histérica. Mas o encontro com o animal pessoal ocorre normalmente com certa
simetria como na figura acima.
Todavia um receio ou medo real desta força é natural. É o que Jung
chama de medo do inconsciente. É um medo muito incômodo, como fala Jung: “[...]
não somente impede o autoconhecimento, mas é também o mais grave obstáculo à
compreensão e conhecimento da psicologia” (Jung apud Nichols, p. 206). Todavia é
muito revigorante se conseguirmos aceitar esse destino e o enfrentamento com
êxito. Inevitavelmente vai haver um rompimento momentâneo com as forças do ego.
Mas vêm à tona conteúdos e horizontes novos. Esse encontro é forte porque é
portador da força do arquétipo. Como qualquer encontro com tal teor, ele exige uma
habilidade para usar o poder criativo da força arquetípica de forma consciente de
correr riscos e sem ser engolido por ela. É uma verdadeira arte.
Freud chamou a atenção à força do instinto sexual e Jung ao fato de que
a iluminação é também instintiva e contém um grande poder que pode ser
igualmente perigoso. São instintos que possuem uma força poderosa, arquetípica e
primitiva. Uma vez contaminados por eles, uma mudança na maneira de viver, de
pensar, de agir é iminente. É necessário reestruturar a vida, rupturas serão
necessárias. Seremos diferentes e a arte é também encontrar um meio de lidar com
as frustrações que vão se suceder, inclusive na questão social, pode não ser fácil.
Picasso, na sua série de minotauros, pintou algumas meninas dominando
o feroz minotauro, conforme as imagens:
Figura 14: Le Minotaure Aveuglé conduit par Marie Thérèse aux pigeons dans une nuit étoilée,
Museu Picasso Paris
63
4.3.2. A Força segundo Niki de Saint-Phalle
64
mesmo tempo. Elas têm caráter, são filhas de trovões, de tempestades marítimas,
são guerreiras, amazonas, e tantas outras mil faces. O que mais importa são a
expressão dos potenciais e o equilíbrio da vida como um todo. E todos nós sabemos
que não tem algo mais frágil que o equilíbrio. O que seria da noite sem o dia, do sol
sem suas explosões monumentais e da lua sem suas fases? A vida sem a morte? A
luz sem as trevas? É nesse sentido que Hultem fala da beleza, na expressão real e
arquetípica. Ele comenta que Niki mantém o feminino no seu lugar, nunca se
deixando invadir pelo masculino inibidor quando ela se mantém fiel ao seu
anticonformismo, se tranformando inclusive em exemplo no movimento feminista do
seu tempo.
A partir desse movimento, aos poucos ela introduz as cores que vão se
afirmando na mais profunda variedade e exuberância, produzindo uma ode à vida e
ao bom humor. Nunca mais
ela retornou. Esse
espetáculo colorido foi
explorado até o fim.
Utilizando uma
linguagem alquímica27, ela
passou por um momento
nigredo, relativo à cor preta:
encarando, vivenciando,
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vermelha. Prontamente, o dragão deixou de ter sua existência autônoma, passando
a ser seu parceiro de jornada. Ela nasceu para ela mesma e o mundo se enriqueceu
de todo tipo de cor, pois o sangue da nova vida, ou da unidade psíquica voltou a
correr nas suas veias (Jung, apud Edinger, p. 165), a opus estava, então, concluída.
Ainda restava uma questão: como ela conseguiu realizar essas obras tão
grandiosas com este físico tão debilitado (pulmão queimado por emanações
químicas das esculturas, o hipertiroidismo que quase a matou, a artrose, as crises
de depressão, a neurose...)? Sem contar as condições precárias em que ela vivia
em certos momentos, por exemplo, na época em que morava na Imperatriz, onde
ela falava que passou, frio, calor, sofria inúmeras mordidas de insetos... Onde
encontrou a força para estar longe dos próprios filhos e assumir a relação
complicada com seu segundo marido? Onde ela encontrou a força necessária para
realizar sua obra apesar de tudo? Acho que a resposta está no seu complexo
artístico. Como vimos acima, foi o que manteve as portas da sua vida profunda
abertas à expressão e foi essa força que agiu com prioridade. Ela confiou à arte a
tarefa de manter essa força atuante e domada a partir do dinamismo da vivência
simbólica, que é a portadora da força dos arquétipos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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serviu de anjo da guarda em certos momentos. Ela acabava atraindo situações que
a arrancavam do perigo e acabava se renovando continuamente.
Figura 17 La Mariée ou Eva Maria, 1963. Grilha de
Ferro, Gesso, Rendas, Brinquedos diversos pintados.
Centre Pompidou, Paris
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JUNG, C.G. (org). L'Homme et ses Symboles. Paris: Robert Laffont, 1964.
NICHOLS, S. Jung e o Tarô, Uma jornada Aquetípica. São Paulo: Cultrix, 2007.
SAINT-PHALLE, N. Hary and Me, 1050-1960 The Family Years. Suisse: Benteli,
2006.
VAN DEN BERK, T. Jung on Art, The Autonomy of the Creative Drive. New York:
Psycholoy Press, 2012.
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ILUSTRAÇÕES
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