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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

COGEAE

O ESTUDO DA TRANSFERENCIA NO FRAGMENTO DE UMA


ANÁLISE DE HISTERIA: “O CASO DORA”

MARCELO DE LUNA RODRIGUES

SÃO PAULO – SP
2014
MARCELO DE LUNA RODRIGUES

O ESTUDO DA TRANSFERENCIA NO FRAGMENTO DE UMA


ANÁLISE DE HISTERIA: “O CASO DORA”

Monografia apresentada ao Curso de


Pós-graduação em Teoria Psicanalítica,
da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo – COGEAE, como pré-
requisito para obtenção de título de
pós-graduado orientada pela
Professora Doutora Teresa Endo.

SÃO PAULO – SP
2014
AVALIAÇÃO: .........................................................................................................

ASSINATURA DO ORIENTADOR: .......................................................................


“Posso apenas manifestar a esperança de
que os leitores deste livro se coloquem em
minha difícil posição e me tratem com
indulgência e, além disso, que qualquer um
que encontre alguma espécie de referência a
si próprio em meus sonhos se dispunha a
conceder-me o direito à liberdade de
pensamento – ao menos em minha onírica, se
não em qualquer outra área.”

(Sigmund Freud, prefácio à primeira edição de A


Interpretação dos Sonhos – 1900)
AGRADECIMENTOS

Como dizer “obrigado” quando tantos contribuíram para que eu


realizasse mais este sonho em minha vida?

Ressalto que algumas pessoas são responsáveis, de forma mais direta,


pela elaboração desta monografia.

À minha orientadora Prof.ª Dr.ª Teresa Endo, que me conduziu


brilhantemente a transcorrer estas linhas que seguem e me orientou de forma
concisa, coerente, didática e acadêmica transformando este trabalho em uma
obra inigualável,

À Helen Martinez, por ter acreditado em meu potencial e me ajudado


desde a graduação em Filosofia,

Ao meu amigo Rogério Monteiro, que não me deixa desistir nunca ao


que eu me proponho a fazer e com suas palavras doces e de amigo jamais me
deixa sem um conselho direto e certeiro,

Ao meu pai Nicanor Rodrigues, in memoriam, por toda educação,


cultura, informação e construção na família com sua história e que pode me
constituir como indivíduo,

À minha mãe Maria Luzia Rodrigues, que com toda sua paciência me
escutava com atenção, mesmo não tendo o conhecimento direto deste
trabalho, e me auxiliou nos momentos frágeis que passei durante todo o curso,

Aos meus irmãos Marcus e Michele Luna que sempre acreditam em mim
e me apoiam em tudo,

À minha analista, Danit Pondé, que me direcionou de forma racional e


me fez ver bem de perto o que realmente faz uma transferência em psicanálise,

A todos aqueles que, direta ou indiretamente, assim como eu, buscam o


real motivo de sua existência enquanto ser humano, pensante e curioso
conseguindo atribuir a esta vida o seu lugar na história,
A todos os alunos, colegas e amigos que fiz no curso e que propiciaram
momentos de debate, informações, troca de conhecimento e assim eu
consegui complementar e adquirir o que não tinha ciência.

Enfim, em nome próprio, agradeço a TODOS e a CADA UM que


possibilitaram essa caminhada.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 10

CAPÍTULO 1 - A TEORIA DA TRANSFERENCIA NA PSICANALISE


FREUDIANA..................................................................................................... 13

1.1 O PAPEL DESEMPENHADO PELA RESISTÊNCIA .............................. 20

1.2 OS SENTIMENTOS DERIVADOS DO RECALCADO ................................ 21

1.3 O MANEJO DA TRANSFERENCIA ........................................................... 24

CAPÍTULO 2 - UM ESTUDO DA TRANSFERÊNCIA NO FRAGMENTO DA


OBRA “ESTUDOS SOBRE A HISTERIA” ........................................................ 27

CAPÍTULO 3 - SOBRE A RELAÇÃO DE TRANSFERÊNCIA NO “CASO DORA”


......................................................................................................................... 30

CONCLUSÃO................................................................................................... 37

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................ 39
Resumo

O conceito de transferência, na teoria desenvolvida por Sigmund Freud, é de


importância inestimável porque é por meio de sua instalação e de sua
interpretação que a análise tem a possibilidade de ter acesso aos
representantes inconscientes de seu analisando. A presente monografia tem
como objetivo investigar, estudar e discutir através de comentaristas do tema a
transferência que se faz presente no processo analítico de uma paciente à luz
da teoria freudiana. Especificamente a paciente de Freud que ele designou
com o nome de Dora. O material é fruto do embasamento nas aulas
explanativas, nas leituras obrigatórias e nos comentadores clássicos, conforme
bibliografia básica destinada à auxiliar nesta caminhada da teoria psicanalítica.
Através da análise do caso Dora, pudemos ter acesso à história e a
singularidade da paciente, enquanto sujeito do inconsciente, através do método
psicanalítico, possibilitado pela transferência.

Palavras Chaves: fragmento, transferência, psicanálise, recalque.


Abstract

The concept of transference, the theory developed by Sigmund Freud, is of


inestimable importance because it is through their installation and their
interpretation of the analysis is the possibility of having access to your
unconscious representatives of analyzing. This monograph aims to investigate,
study and discuss the topic through the commentators transfer that is present in
the analysis of a patient in the light of Freudian theory. Specifically, the patient
of Freud what he called the name of Dora. The material is the result of the
basement in explanativas classes, the required readings and classical
commentators as basic bibliography designed to assist in this journey of
psychoanalytic theory. Through analysis of the Dora case, we have access to
the history and uniqueness of the patient as subject of the unconscious, through
the psychoanalytic method, made possible by the transfer.

Key words: fragment, transfer, psychoanalysis, repression.


10

INTRODUÇÃO

Um tema de pesquisa nos escolhe muito antes do que podemos


escolhê-lo e ao longo das linhas a seguir, trataremos do conceito de
transferência na teoria freudiana.

Como a própria palavra nos anuncia, a curiosidade foi explorando e


migrou, se moveu, transferiu no decorrer dos anos. Agora se transformou em
uma questão de pesquisa frente à Teoria Psicanalítica desenvolvida
criteriosamente por Sigmund Freud.

Com o passar do tempo e com as aulas expositivas, essa questão


sempre se renovou e despertou a vontade de escrever sobre o conceito de
transferência em psicanálise, tornando assim possível o aprofundamento e o
entendimento da clínica psicanalítica, através de seu mecanismo fundamental,
pois, sem a transferência a análise não ocorre.

Estranha e intensa é a questão da transferência na análise dos


pacientes e, por mais que se repita, supera ou espanta, o que podemos
esperar dela é sua força e importância enquanto conceito clínico, que nunca
deixa de ser construída e reconstruída, fazendo com isso um dos temas mais
polêmicos e intrigantes de debates na atualidade.

Particularmente o conceito de transferência é interessante pela forma


como Freud vai tecendo este conceito ao longo de seus casos clínicos, no
sentido do caminho que ele percorre para isso, como o interesse surge em
limitar o conceito na clínica das histéricas, de não se deixar tomar pela
transferência e de trata-la com sutil delicadeza e profissionalismo.

Freud conceitua a transferência ao longo de sua obra por vários


caminhos. O termo transferência migra para sugestão, obstáculo a ser
superado, instrumento principal das resistências, repetição, reprodução ou
atualização das imagos parentais e motor do trabalho analítico.
11

Explanar como é construído o conceito da transferência através da


clínica, por quais mudanças ela passa, como esse conceito é inesperadamente
essencial na psicanálise e qual o motivo, para Freud, de não haver
transferência fora da clinica psicanalítica é o que constitui esta monografia.

Desta maneira, pode-se dizer que, para as diferentes escolas


freudianas, o conceito de transferência constituiu um pilar para a teoria e seus
desdobramentos em pesquisa assim como sua evolução estão presentes
desde os primórdios da disciplina e do conceito em si fundamentado pelo
próprio Freud.

Os primeiros relatos clínicos e todos os seus desdobramentos deram


origem ao que se conhece hoje de psicanálise e que nasceu com a fantástica
obra “Estudos sobre a histeria” realizada por Freud e Breuer em meados de
1895.

Através da leitura da construção desse conceito de transferência pela


organização cronológica e com ênfase na leitura de obras essenciais de Freud
- “Estudos sobre a histeria” de 1895, “Fragmentos da análise de um caso de
histeria” de 1905 (Caso Dora), “A psicanálise selvagem” de 1910, “A dinâmica
da transferência” de 1912 e “Observações sobre o amor de transferência” de
1914 – transcorreremos pela construção e transmissão da transferência em
psicanalise, as relações que possibilitaram esta concepção, suas inquietações
e questões profundas no divã, o trabalho com a questão temporal.

Quando um paciente passa a se interessar por tudo o que se relaciona


com a figura do analista e atribui a isso maior importância do que demonstra
por suas próprias questões, parece se desviar de sua própria “doença” e daí a
relação transferencial está completada.

Freud nos afirma que não há transferência fora da sessão clínica, pois é
este tipo de relação muito especial que sustenta o trabalho de análise e o que
garante efetivamente a situação analítica é a posição simbólica assumida pelo
analista no percurso de uma análise.
12

O setting nada mais é que o conjunto de derivações dessa posição


interna do analista que dá consistência ao tratamento e que de certo modo
Freud chama atenção para este ponto ao aludir uma “atitude transferencial no
início do tratamento” antes mesmo de discutir, mais a fundo, os demais
aspectos relacionados com a constituição do setting como a questão do tempo,
dos honorários e outras condições inerentes ao princípio da análise se darão.

O que fica de interessante nesta questão é como o paciente mostra-se


entusiasmado com a pessoa do analista supervalorizando suas qualidades,
sendo amável e reagindo de modo favorável às interpretações do médico, se
esforçando por compreendê-las e se deixando absorver pela tarefa de, em um
exercício contínuo, se entregar a esta relação transferencial colocando seus
sintomas e traumas à tona segundo observações e com o auxílio do analista.

Por fim, uma reflexão sobre o amor transferencial, a “cura pelo amor”,
pontuando que no amor de transferência é preciso pensar o papel
desempenhado pela resistência, os sentimentos derivados do recalcado,
fantasmas inconscientes que remetem à sexualidade infantil e no manejo da
transferência, onde o analista não recusa o amor do paciente, mas não
responde a ele da forma que o paciente queria ou pensa ter.
13

CAPÍTULO 1 - A TEORIA DA TRANSFERENCIA NA


PSICANALISE FREUDIANA

Entre os anos de 1893 e 1895, Freud nos apresenta sua obra “Estudo
sobre a histeria” onde começa a investigar a psicoterapia desta doença nos
mostrando aos poucos como eram os tratamentos para histéricos, onde podiam
chegar e quais as dificuldades encontradas ao longo deste tratamento.

Especificamente no capítulo IV de “Estudos sobre a histeria”, Freud nos


afirma no texto “A psicoterapia da histeria” que “a transferência1 é o pior
obstáculo que podemos encontrar” (p. 182), porém, nos faz necessário
perceber que quando ele afirma isso, ele não está se referindo especificamente
à transferência em si, mas a perturbação2 da relação da transferência com o
paciente.

Em “A dinâmica da transferência” (1912) ele nos diz que:


“É inegável que o controle dos fenômenos da transferência
oferece as maiores dificuldades ao psicanalista, mas não se
deve esquecer que justamente eles nos prestam o
inestimável serviço de tornar atuais e manifestos os impulsos
amorosos ocultos e esquecidos dos pacientes, pois afinal é
impossível liquidar alguém in absentia ou in iffigie” (p.146).

Nem toda transferência é uma perturbação na relação psicanalista-


paciente e analista-analisando, bem como não acreditar que toda perturbação
seja um ato transferencial. O que precisamos deixar bem claro é que se não há
transferência, não há análise e para Freud só há processo transferencial dentro
da análise e nunca fora dela, ou seja, somente na sessão ou no divã que esta
ocorre.

O analista será o alvo dos impulsos amorosos e hostis do paciente e


neste aspecto é que reside a contemporaneidade dos sentimentos de um

1
Transferência designa, em psicanálise, o processo pelo qual os desejos inconscientes se
atualizam sobre determinados objetos no quadro de certo tipo de relação estabelecida com
eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica. (Laplanche e Pontalis, Vocabulário de
Psicanálise, p.668)
2
Perturbar é alterar, modificar, causar embaraço ou arrependimento, abalar, comover, criar
desordem em, causar atordoamento, perder a serenidade, envergonhar-se, embaraçar-se,
alterar-se, modificar-se. (Mini Aurélio – o dicionário da língua portuguesa -, p. 582)
14

paciente em análise porque estão atualizados na transferência e assim sendo,


são sentimentos deslocados com o propósito de evitar ou desviar a recordação
do paciente já que aquilo que fez com que ele recalcasse a ideia e liberasse o
afeto se alia a ideia substituta: seu sofrimento.

A busca de tratamento ocorre no momento em que o paciente se dispõe,


se motiva, está querendo mudar alguma coisa que o intranquiliza, o incomoda,
o faz sofrer. É o desejo de mudar certo estado de coisas. A trajetória a ser
seguida na análise é alcançar a origem daquilo que é perturbador. A
perturbação é que poderá ficar intensificada na relação terapeuta/paciente. É
como se um novo conflito surgisse e aquilo que estava ocorrendo fora do
tratamento se concentrasse em relação ao mesmo.

É este trabalho transferencial, em especial, que sustenta a análise e o


papel do analista é somente de símbolo3 do analisando onde ele deposita toda
sua fantasia, toda sua confiança, ou seja, deve existir um vinculo agradável
entre analisando e analista onde o paciente mostra-se entusiasmado com a
pessoa do analista, supervalorizando-o, reagindo de modo favorável às suas
interpretações e fazendo um esforço para compreendê-las, tentando deixar-se
absorver pela tarefa.

Na análise vai aparecendo associação livre4 e a relação cordial que


surge durante o trabalho do analista fazendo ocorrer uma melhora objetiva em
vários aspectos com relação aos sintomas que resultam na chamada
transferência positiva5 onde há uma facilidade do processo analítico é a chave

3
Simbolismo em sentido lato, modo de representação indireta e figurada de uma ideia, de um
conflito, de um desenho inconsciente; neste sentido, podemos em psicanálise considerar
simbólica qualquer formação substituta. Em sentido restrito, modo de representação que se
distingue principalmente pela constância da relação entre o símbolo e o simbolizado
inconsciente; essa constância encontra-se, não apenas no mesmo indivíduo e de um individuo
para outro, mas nos domínios mais diversos (mito, religião, folclore, linguagem etc) e nas áreas
culturais mais distantes entre si. (Laplanche e Pontalis, Vocabulário de Psicanálise, p. 626)
4
Associação livre é o método que consiste em exprimir indiscriminadamente todos os
pensamentos que acodem ao espírito, quer a partir de um elemento dado (palavra, número,
imagem de um sonho, qualquer representação), quer de forma espontânea. (Laplanche e
Pontalis, Vocabulário de Psicanálise, p.71)
5
A transferência positiva terna é considerada por Freud a maior aliada do tratamento. Através
dela, o analista pode reconhecer o investimento do analisando no doloroso processo
terapêutico, bem como adquirir a influência necessária para a efetividade das suas
intervenções. (Kupermann, http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0103-
58352008000200006&script=sci_arttext, acesso em 05/06/2014)
15

para uma transferência acontecer. Desta forma, o paciente torna-se mais


suscetível a influencia do analista nascendo aí o respeito mútuo, o crescimento
da empatia, uma admiração se exacerba, baixa as resistências e o esforço
pelas associações livres acontece, na maioria das vezes, de forma natural.

Ainda em “A dinâmica da transferência” (1912), Freud nos afirma que:


“Todo iniciante na psicanalise provavelmente se assusta com
as dificuldades que lhe aparecerão ao interpretar as
associações do paciente e cuidar da reprodução do reprimido.
Mas logo chega o momento de ele atribuir pouco valor a
essas dificuldades, e convencer-se de que as únicas
realmente sérias estão no uso da transferência.” (p. 211).

Por outro lado, essa relação de “amor” não dura para sempre e logo
podem surgir dificuldades no tratamento ou na análise onde se revelam
diversos aspectos sendo que podemos classificar como uma impossibilidade
do paciente continuar seguindo a regra normal de seu tratamento ou análise.

A partir do momento que aparecem tais dificuldades de comunicar os


pensamentos ao analista, há interrupção do processo associativo e muitas
vezes isto surge com a constatação de nada mais ocorrer à mente do paciente
para falar ou não mais estar interessado em seu trabalho de análise.

Desta forma, aparece certa negligencia em relação às instruções iniciais


dadas no sentido de “dizer tudo o que lhe vem à cabeça e de não permitir que
obstáculos críticos impeçam de fazê-lo”. (Freud, 1915-1916, p. 134)

Toda vez que isto não ocorre, ou seja, que o paciente fica “fora” do
tratamento estamos diante de uma resistência6 do analisando e esta situação
precisa ser esclarecida, pois, do contrario a análise estará em risco
prejudicando inclusive a associação livre do paciente.

Para ser mais claro, Freud nos esclarece que a causa básica desta
dificuldade do analisando é que ele pode ter transferido para o analista seus

6
Dá-se o nome de resistência a tudo o que, nos atos e palavras do analisando, se opõe ao
acesso deste ao seu inconsciente. Por extensão, Freud falou de resistência à psicanálise para
designar uma atitude de oposição às suas descobertas na medida em que elas revelam os
desejos inconscientes e infligiam ao homem um vexame psicológico. (Laplanche e Pontalis,
Vocabulário de Psicanálise, p.596)
16

componentes pulsionais7, seus sentimentos intensos e afetos, colocando em


ato suas disposições internas junto à figura do analista. Somente o “bom tempo
não pode durar para sempre” (Freud, 1915-1916, p. 132) e o tratamento logo
esbarra em um ponto não desejado, não provocado intencionalmente, levado
pelo tipo de vinculação amorosa que o paciente estabelece com o analista.

Freud afirmou também que a transferência pode emergir como uma


exigência intensa de amor, de atenção, de reconhecimento, mas que sob
outros aspectos como, por exemplo, um desejo de ser recebido como filho
predileto, de ser alvo de uma amizade etc.

Há outro tipo de transferência e assim diferenciamos a forma de


expressão desta como uma hostil que é conhecida em termos psicanalíticos
como transferência negativa8.

É na transferência negativa que o analista observa a resistência do


analisando e esta questão é bem explorada em “A dinâmica da transferência”
(1912), onde Freud distinguiu duas atitudes básicas para analise: de um lado
uma cooperação e de outro lado uma resistência.

Desta maneira a teoria da transferência permite descrever e diferenciar


uma transferência positiva sublimada e as resistências que se alimentam tanto
da transferência erótica quanto da transferência negativa.

Na transferência positiva é reforçada a confiança e propicia-se que o


sujeito fale livremente ao analista sendo esta a regra fundamental e primordial
da psicanálise como condição essencial do trabalho na transferência e “cura”
do paciente.

7
Pulsão é o processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de
motricidade) que faz tender o organismo para um alvo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua
fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu alvo é suprir o estado de tensão que
reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir o seu alvo.
(Laplanche e Pontalis, Vocabulário de Psicanálise, p. 506)
8
A transferência negativa é composta pelos impulsos agressivos e hostis, são consideradas
formas de resistência ao trabalho analítico, constituindo os maiores obstáculos ao tratamento.
(Kupermann, http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0103-
58352008000200006&script=sci_arttext, acesso em 05/06/2014)
17

Na transferência negativa suscita sentimentos agressivos ou elementos


eróticos recalcados propiciando reviver afetos desconectados com a realidade
do quadro clínico e produzir resistências ao trabalho que inviabilizará o
prosseguimento. Daí o discernimento e percepção aguçada do analista em
detectar tal sentimento do analisando.

Vejamos o que Freud afirma sobre essas duas características


transferenciais em “A dinâmica da transferência” de 1912:

“É preciso resolver-se a distinguir uma transferência ‘positiva’


de uma ‘negativa’, a transferência de sentimentos ternos
daquele hostil, e tratar diferentemente os dois tipos de
transferência para o médico. A transferência positiva
decompõe-se ainda na dos sentimentos amigáveis ou ternos
que são capazes de consciência, e nos prolongamentos
destes no inconsciente. Quanto aos últimos, a psicanálise
mostra que via de regra remontam as fontes eróticas, de
maneira que temos que chegar à compreensão de que todos
o nossos afetos de simpatia, amizade, confiança etc., tão
proveitosos na vida, ligam-se geneticamente à sexualidade e
se desenvolveram, por enfraquecimento da meta sexual, a
partir de anseios puramente sexuais, por mais puros e não
sensuais que se apresentem à nossa auto percepção
consciente.” (p.142).

Como o diagnóstico não pode ser feito a partir de um relato de terceiros,


será pela transferência na sessão analítica que a verdade do paciente
relatando seus conflitos com seu desejo e a relação com a lei que o governa
surgirá.

Logo, nada substitui a relação do analista com o analisando e assim, por


mais pormenorizada que seja nada vale se não for colhida na experiência da
transferência de cada tipo clínico que, a sua maneira, reage de certa forma.
Neste tripé temos a neurose, a psicose e a perversão.

A neurose é considerada, teórica e clinicamente, uma das disposições


transferenciais para melhor estudo, mesmo compreendendo que “à primeira
vista parece uma imensa desvantagem metodológica da psicanálise o fato de
nela a transferência, ordinariamente a mais forte alavanca do sucesso, tornar-
se o mais poderoso meio de resistência” (Freud, 1911-1913, p. 137) e foi
através dos neuróticos – especificamente as histéricas – Caso Dora – que
Freud formulou a psicanálise e toda a sua teoria, pois, em histéricas a
18

transferência está à flor da pele e prestes a explodir, uma afirmação do próprio


Freud.

Já a transferência em uma psicose apresenta suas singularidades e


Freud diz que pelo fato da libido dos psicóticos estar toda investida no EU
(narcisismo exacerbado), o processo psicanalítico fica inviabilizado porque os
psicóticos não investem na transferência. Como há ruptura com o mundo
externo, o estabelecimento destas relações de objeto não tem entrada no
mundo da transferência.

E por último, mas não menos importante, na perversão pode-se verificar


que a exigência da satisfação imediata arrisca a todo o momento uma
interrupção no processo transferencial porque o tratamento psicanalítico de
pacientes perversos é o que mais coloca questões para a clinica atual.

Há relações jurídicas intrínsecas e as conexões entre psicanálise,


analista e analisando são delicadas no campo jurídico devido muitas vezes
imaginarmos ser um caso de perversão, quando na realidade se trata de um
paciente com neurose, porém, seu discurso é de um paciente perverso.

O que impulsiona o analista é o trabalho que ele efetua com a


transferência a serviço de seu paciente para vencer as resistências do
analisando. Se o desejo do analista for afinado com o trabalho, a resistência
por parte do analisando surge.

Freud em “Observações sobre o amor de transferência” é especifico nos


afirmando que na transferência o amor ronda das mais variadas formas, por
isso o sucesso na análise (ou não):

“Há muito se notava, no paciente, indícios de uma


transferência afetuosa, e era lícito creditar a essa atitude para
com o médico a sua docilidade, a boa acolhida que dava às
explicações analíticas, a excepcional compreensão e elevada
inteligência que demonstrava. Eis que tudo isso desaparece;
a doente fica sem compreensão, parece absorvida em sua
paixão, e tal mudança ocorre, em geral, num momento em
que esperamos que ela admita ou recorde uma parte
especialmente dolorosa e fortemente reprimida de sua
história.” (p. 215).
19

Falando ainda um pouco sobre transferência e assim como nos afirmou


Freud, os “mais malignos demônios” são convocados no tratamento e as forças
vão agindo perigosamente tanto no quesito benéfico como no destruidor e
dependendo da destreza essa duplicidade pode envenenar o analisando de tal
forma que o tratamento é cessado de forma brusca.

Outro ponto importante a destacar é que a transferência não é


restringida no campo das representações, mas se constitui pelos detalhes,
pelas pequenas percepções, pelas impressões deixadas que não se registra
como memória e que é concebida como um processo interno e criador em que
se mobilizam e se transmudam afetos com efeitos transformadores.

Desta forma, o tato ou a capacidade de “sentir com” o analista é


repensada como uma possibilidade analítica de sintonia de afetos, amor, de ser
sensível às pequenas percepções, apreendendo os afetos de vitalidade e as
atmosferas do momento.

Para Freud, “o médico deve ser opaco aos seus pacientes e, como um
espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o que lhe é mostrado.” Ainda sobre a
posição do analista em relação a sua técnica, chama a atenção para a tentação
do analista em indicar caminhos ou corrigir comportamentos durante uma
análise, conforme ele mesmo nos diz que “a ambição educativa é de tão pouca
utilidade quanto à ambição terapêutica”. Trata-se de algo da ordem do desejo
do médico de curar e não das capacidades reais do seu paciente.

Por outro lado, evocar a contribuição intelectual do paciente durante o


tratamento, solicitando lembranças específicas, pode sugestionar o paciente a
tê-las e segundo nos afirma Renato Mezan, (1998) “a transferência consiste
numa modalidade de deslocamento de afetos entre uma representação e outra,
e num obstáculo ao trabalho de rememoração, isto é, em uma modalidade de
resistência” onde “para situá-lo é necessário recorrer à metapsicologia e à
teoria do processo psicanalítico”. (p. 252).

Para Freud a transferência só se dá no cunho analítico, ou seja,


somente existe transferência na análise, pois, é a transferência quem sustenta
toda a sessão não sendo possível transferência fora dela.
20

A técnica da transferência é a mais preciosa aliada do analista que a


maneja com clareza, distinção, responsabilidade e ética profissional, pois,
interpreta, conforme as associações livres de seus pacientes, todo conteúdo
manifesto “jogado” através do divã.

1.1 O PAPEL DESEMPENHADO PELA RESISTÊNCIA

É na fala do analisando que o analista tem acesso às formações do


inconsciente e neste sentido, tudo aquilo que atrapalha e impede este discurso
é tido como resistência.

Freud constatou que poderosas forças inconscientes se organizam no


analisando, impedindo ou dificultando seu discurso e a maior delas foi descrita
como a transferência que em "A dinâmica da transferência" a descreve como
um obstáculo ao trabalho de rememoração, pois o paciente faz uma falsa
conexão e na sequência associativa, justamente aquela associação mais
reprimida aparece como transferida para o analista, como que desconectada
com a cadeia a que pertence.

Aparece como algo atualizado, atuado com a pessoa do analista e esta


visão da transferência não mais vai ser abandonada e sim amplificada porque
Freud vai oscilar entre ver a transferência como obstáculo e a resistência à
rememoração, ao mesmo tempo, entendê-la como a via para a recuperação do
passado do paciente, a busca daquilo que está inconsciente.

Com outras palavras, Freud vai entender que o paciente repete na


transferência para não lembrar, por ser impossível lembrar e na transferência é
uma forma especial de recordar. Isso aparece bastante na obra “Recordar,
repetir e elaborar”.

O paciente está repetindo protótipos infantis, atualizando seus desejos


inconscientes infantis nas relações atuais, especialmente com o analista,
desenvolvendo então uma neurose de transferência e, desta maneira, vê-se
que as falhas do discurso, as impossibilidades de mantê-lo, desde que parte
21

dele deixa de ser comunicação verbal e se transforma em um viver e atuar na


transferência, são repetições e urge interpretá-las, pois é justamente atentando
para tais repetições e tendo-as como centrais no processo terapêutico que é
possível transformá-las em rememorações, simbolizá-las, integrá-las.

Ao aparecimento da transferência por parte do paciente, o analista


responde com sua contratransferência, uma série de fantasias, desejos,
pensamentos desencadeados pelo paciente em seu psiquismo, que também
serão importantes na elaboração da interpretação.

O processo analítico terá então três referenciais bem definidos: 1) o


discurso do analisando, 2) suas vivências em relação ao analista em posição
de transferência e 3) a captação e manejo da contratransferência por parte do
analista.

Freud, apesar de logo ter compreendido que é na transferência onde vão


ser travadas as batalhas decisivas da análise, nunca deixou de enfatizar que o
analista deve limitar a neurose de transferência, através da rememoração.
Freud insistia que o objetivo da análise era a rememoração do passado e,
quando este não era rememorado e sim "transferido", interpretava e construía
para preencher suas lacunas.

A importância da transferência e da contratransferência pode levar a


algumas distorções como a excessiva preocupação com a interpretação do
aqui e agora e podemos desconsiderar a interpretação do passado e a
elaboração de construções como racionalizações e intelectualizações que
visariam a negar o que efetivamente estaria ocorrendo no "aqui e agora" na
transferência e a contratransferência.

1.2 OS SENTIMENTOS DERIVADOS DO RECALCADO

Em “O recalcamento” de 1915, Freud elabora que o recalque é uma


operação fadada ao fracasso que deixa para trás formações em substitutos.
22

O recalcado retorna porque é uma operação devotada, desde o


princípio, ao fracasso e é necessário conceber o recalque como constituído por
três tempos: 1) o recalque primário; 2) o recalque propriamente dito e; 3) o
retorno do recalcado.

É esse o último tempo do recalque – o retorno do recalcado –, por seu


turno, que permitiu a Freud postular a existência do inconsciente, encontrando
ali a certeza da presença de pensamentos que operam no sujeito, sem que
este possa reconhecê-los como próprios.

O eu experimenta em relação ao inconsciente um sinistro alheamento,


como se pertencesse a outro e, via de regra, é deste modo que o sujeito entra
em contato com seus próprios pensamentos inconscientes: atribui a outrem,
ocasião na qual eles lhe retornam de forma alienada e invertida.

É ainda com o retorno do recalcado que se opera o trabalho analítico e


constitui a porta voz privilegiado do inconsciente, permitindo a via de acesso ao
que, de outro modo, permaneceria inacessível.

O inconsciente recalcado é suposto a partir de seus sucessivos retornos


e sem este retorno nada saberíamos da existência do inconsciente muito
menos a respeito da temática da postulação da existência do inconsciente
como Freud nos expressa:

“Aquilo que deve ser chamado de consciente não precisamos


discutir, está fora de qualquer dúvida. O mais antigo e melhor
significado da palavra inconsciente é descritivo; chamamos
um processo de inconsciente quando temos de supor que no
momento ele está ativado, embora no momento nada
saibamos dele. Essa limitação nos faz refletir que a maioria
dos processos conscientes é consciente por não muito tempo;
logo eles se tornam latentes, mas podem facilmente se tornar
conscientes de novo. Poderíamos também dizer que se
tornaram inconscientes, se for certo que no estado de latência
eles ainda são algo psíquico.” (O mal-estar na civilização,
novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos
– 31. A dissecção da personalidade psíquica, 1930-1936, p.
209-210)

É deste modo que o sujeito tem acesso às suas determinações


inconscientes, como um saber insabido que se impõe e a respeito do qual tudo
ignora sendo que é na relação transferencial que se estabelece em análise o
23

inconsciente surge, sem que com isso possamos dizer que se tenha tornado
consciente e nele se tenha integrado.

A irrupção do inconsciente, que não podemos rigorosamente qualificar


como desconhecida é uma manifestação enigmática, e é nestas condições que
é porta aberta à livre associação por um processo de análise com o objetivo de
não por seu intermédio no qual o sujeito chegue a poder se conhecer um pouco
mais e melhor.

Para Freud o retorno do recalcado mantém com as representações que


permanecem recalcadas os mais estreitos laços de relações lógicas.

Contudo, o material recalcado, ele mesmo, requer, numa análise, um


trabalho de construção e o recalcado, permanecendo inacessível, escapando a
apreensão de forma direta, se constitui em ponto de partida para retornos
vindouros incessantes.

Esse é o modo que encontramos de apontar que em análise só temos


acesso às formações do inconsciente e de que a verdade toda não é, para o
humano, uma possibilidade.

Laplanche (1988), referindo-se à problemática da delimitação entre os


sistemas, coloca que esta trata de uma “sobreposição parcial dos sistemas”,
em que se pode afirmar que “tudo que pertence ao sistema inconsciente, na
medida em que precisamente obedece as leis do processo primário, não é
necessariamente não-consciente, subtraído à consciência”.

Desta maneira, avançando a metáfora de que “sistema inconsciente


seria algo semelhante àqueles desenhos em que as cores e as formas não
coincidem ou em que as cores não preenchem exatamente as delimitações do
traçado, mas pelo contrário, as sobrepõem”, a descoberta de uma ordem de
relações de contiguidade entre os sistemas, e, de modo análogo, entre as
instâncias da segunda tópica é o que Freud denominou de inconsciente, numa
completa e radical rejeição do termo subconsciente.

A noção de comunicação permanente entre os sistemas aponta para


algo completamente diverso da noção embutida na expressão subconsciente e
24

o inconsciente não é o profundo encoberto pela consciência, tampouco é uma


segunda consciência, o inconsciente é como Freud e Lacan pensa o que no
sujeito se manifesta em ato ou em palavras. Isto porque o material recalcado
retorna em substitutos assim que conseguem voltar a elaborar estes.

O inconsciente não tem outro meio de se fazer lembrar senão apelando


para substitutos metafóricos, sob a pena de Freud, não é o que está numa
região sub, abaixo e que necessitaria de uma técnica de escavação para
encontrá-lo.

Não tenho a intenção de homologar as elaborações com aquelas que se


produziram no interior da Psicologia do Ego e desejo apenas destacar que sob
o termo inconsciente abrigam-se proposições teóricas que tomam as mais
variadas direções, o que nos obriga a nomear a qual inconsciente estamos, em
cada ocasião, nos referindo embora haja realmente muitas concepções sobre o
inconsciente, nosso posicionamento é o de que sob o termo psicanálise abriga-
se uma só proposição sobre o inconsciente – a freudiana.

Para Freud e em suas palavras:

“O paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e


reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out).
ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-
o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo.”
(1914a/1996, p. 165).

Contudo, o inconsciente nunca se refere às necessidades ou mesmo a


uma frustração da satisfação destas necessidades, sendo tampouco a
referência às emoções, ainda que contemporaneamente convivamos no nosso
dia a dia com a concepção psicológica de “problemas emocionais”.

1.3 O MANEJO DA TRANSFERENCIA

Freud usa o termo “manejo da transferência” para indicar como agir com
a transferência que se manifesta desde o início do tratamento analítico, como
podemos observar em suas palavras abaixo:
25

“Todavia, o instrumento principal para reprimir a compulsão


do paciente à repetição e transformá-la num motivo para
recordar reside no manejo da transferência. Tornamos a
compulsão inócua, e na verdade útil, concedendo-lhe o direito
de afirmar-se num campo definido. Admitimo-la à
transferência como a um playground no qual se espera que
nos apresente tudo no tocante a impulsos patogênicos, que
se acha oculto na mente do paciente.” (1914a/1996, p. 169).

Desta maneira, ele mesmo propõe que o acting out9 seja admitido pela
análise como um motivo de rememoração, onde os "fenômenos da
transferência prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os
impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente" (A dinâmica da
transferência).

O manejo consistiria em fazer com que os impulsos despertados sirvam


para causar a associação livre e a interpretação dos sintomas. O
termo playground é sugestivo na medida em que pode se referir ao parque
infantil, metaforizando a análise como lugar de pôr em movimento, pela fala, o
infantil que permanece atuante no adulto. Confere também algo de lúdico para
a análise.

Freud não deixa de considerar, na metáfora do químico que maneja


substâncias explosivas, os impulsos sexuais recalcados como forças altamente
explosivas e os mais perigosos impulsos mentais, também utilizando a
metáfora de luta: "Esta luta [...] é travada, quase exclusivamente, nos
fenômenos da transferência. É nesse campo que a vitória tem de ser
conquistada – vitória cuja expressão é a cura permanente da neurose" (A
dinâmica da transferência). Neste sentido, chega a afirmar que as únicas
dificuldades realmente sérias que (o psicanalista) tem de enfrentar residem no
manejo da transferência.

9
Termo utilizado na psicanálise para designar as ações que apresentam, a maior parte das
vezes, um caráter Impulsivo, rompendo relativamente com os sistemas de motivação habituais
do Indivíduo, relativamente isolável no decurso das suas atividades, e que toma muitas vezes
uma forma auto- ou hetero-agressiva. No aparecimento do acting out vê o psicanalista a marca
da emergência do recalcado. Quanto aparece no decorrer de uma análise (quer seja na
sessão, quer fora dela), o acting out tem de ser compreendido na sua conexão com a
transferência, e frequentemente com uma tentativa para a desconhecer radicalmente.
(Laplanche e Pontalis, Vocabulário de Psicanálise, p. 27)
26

Os fenômenos da transferência são um modo de recordação daquilo que


é insuportável ao sujeito trazer à luz de outro modo, uma repetição em ato e
são por eles que o analista pode intervir, porém, como Freud nos adverte
inúmeras vezes, se por um lado falamos das dificuldades e resistências
próprias ao paciente, não podemos nos esquecer que essas também se
desvelam do lado do analista, uma vez que esse empresta sua pessoa à
transferência, não podendo se esquivar dela e do preço a ser pago por ser seu
suporte.

Então, como nos preparar para lidar com a transferência? Freud destaca
que não há um manual a ser seguido, um curso acadêmico a ser realizado ou
mesmo um estudo sistemático que nos abra essa via e que a experiência da
transferência nos deixa à deriva.

A única recomendação que Freud nos apresenta é que algo desse


investimento direcionado ao analista só pode vir manejado pela experiência de
sua própria análise.

Não se trata aqui de uma análise didática, mas da análise do sujeito


convocado a trabalhar como sujeito, se haver com suas próprias questões em
um percurso de análise que não lhe trás nenhuma garantia, mas que possibilita
um certo atravessamento do seu próprio ancoramento subjetivo e uma certa
abertura para vida com tudo de revolucionário que ela porta.

Ao analista cabe o lugar de objeto causa de desejo, e não de sujeito.

E esse é o ideal para que uma análise se faça, porém o que


aprendemos com a psicanálise é que o ideal sempre falha. A análise depende
desse semblante de objeto, que não pode advir se não da própria análise, mas
o analista, ainda que nessa função, tem um nome próprio, está assujeitado e
dividido por um significante: é sujeito também.

Sujeito à angústia, ao tropeço, ao atropelo, a sair de sua função e


aparecer, fazer sua entrada naquilo que lhe é dito.
27

CAPÍTULO 2 - UM ESTUDO DA TRANSFERÊNCIA NO


FRAGMENTO DA OBRA “ESTUDOS SOBRE A HISTERIA”

Freud, durante as duas primeiras décadas da construção de seu


trabalho sobre a teoria psicanalítica, publicou cinco casos clínicos importantes
e todos eles com suas psicopatologias tornaram-se referencia e leitura
obrigatória para qualquer pessoa que queira se aprofundar e estudar psicologia
ou psicanálise.

Por este motivo, decidi analisar um destes casos clínicos, sua relação e
colaboração na transferência da teoria freudiana.

Os cinco casos clínicos mais importantes relatados por Freud são:


“Fragmento de uma análise de histeria” de 1905 conhecido como “O caso
Dora”, “Análise da fobia de um menino de cinco anos” em 1909 também
chamado de “O pequeno Hans”, “Observações sobre um caso de neurose
obsessiva” de 1909 que ficou conhecido popularmente como “O homem dos
ratos”, “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia descrito
autobiograficamente” em 1911, como “O caso Schreber” e “Da história de uma
neurose infantil” de 1918 e que conhecemos como “O homem dos lobos”.

Dentro os cinco casos, o “Caso Dora” é o que foi analisado porque é


impossível não falar sobre o “Fragmento de uma análise de histeria” e também
porque examina a transferência da paciente e do analista, Freud, tomando
como apoio a resistência que Freud identifica e intitula em uma das análises da
paciente.

Em “Fragmento de uma analise de histeria” cabe a questão o que vem a


ser um fragmento?

Fragmento é cada um dos pedaços de uma coisa partida ou quebrada, é


parte dum todo, é pedaço, é fração (Dicionário Aurélio, 2010, p. 361); é o que
resta de uma obra antiga (Dicionário Online de Português); é uma parte de um
discurso (Dicionário Informal Online).

Segundo a afirmação do próprio D’Argord:


28

“A construção teórica de Freud originou-se, sem dúvida, das


ficções que ele elaborou a partir da sua escuta dos pacientes
em análise. Uma construção em análise é o procedimento de
extrair inferências a partir de fragmentos de lembranças e de
associações do sujeito em análise. Esses fragmentos de
lembranças não têm sido em si mesmos, mas é justamente
desse sem-sentido que eles extraem a sua importância na
construção de hipóteses.” (p. 13).

Freud construiu sua teoria baseada em seus atendimentos clínicos e


após atender seus pacientes passava a relatar os casos, além de descrever ele
construía a sua teoria a partir da análise e interpretação de sua clínica.

Com estes fragmentos de lembranças e associações de seus pacientes,


aparentemente sem sentido trazidos na clínica, Freud formulava questões
sobre os não-ditos nestas clínicas e, assim, construía o caso e a teoria
psicanalítica.

Alguns fundamentos para tratamento de histéricos começaram a se


estabelecer pela etiologia da neurose histérica e, atento ao método introduzido
por Charcot, Freud formulou conceitos embasadores de uma nova metodologia
que inaugurou os tratamentos psicanalíticos.

Durante o ano de 1889 Freud se decepciona com o método da sugestão


sob hipnose e defende o mérito de médicos como Bernheim e Janet, ao
mostrar que a hipnose se articula com fenômenos normais da vigília e do sono
e ao fornecer uma explicação psicológica a sugestão hipnótica.

Nesse contexto, podemos observar que o método hipnótico foi


questionado e na medida em que se verificava que seus efeitos terapêuticos
não se aplicavam somente aos casos de histeria mas também a outros estados
patológicos, Freud recusa a oposição psicológico-fisiológica, já que os tipos
clínicos apontados por Charcot negligenciavam alguns mecanismos psíquicos
que contribuíam para a formação dos sintomas histéricos.

Embora sustente a necessidade de se estabelecer objetivos para a


sintomatologia histérica concebida como doença naquele cenário científico, o
método catártico estava estreitamente ligado à hipnose.
29

O hipnotismo, no entanto, deixou de ser usado por Freud como processo


destinado a provocar diretamente a supressão do sintoma e passou a ser
utilizado para induzir a rememoração e por meio do método catártico, Freud
percebeu a possibilidade de reintroduzir no campo de consciência experiências
subjacentes aos sintomas.

Assim, deu início às suas investigações psicanalíticas e trouxe a tona o


conceito de recalque para fundamentar os acontecimentos esquecidos pelo
sujeito histérico.

Com essa reformulação teórica, Freud renunciou rapidamente a hipnose


e a sugestão. Concentrou-se nas associações livres do doente e em 1889, o
dizer de Emmy von N. já indicava à Freud a importância dessa “regra
fundamental” no tratamento analítico em detrimento do método hipnótico,
ouvindo de sua paciente “num claro tom de queixa, que não devia continuar a
perguntar de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar o que
tinha a dizer-me” (FREUD, [1893-1895], 2006, p. 88).

Nos serviços psiquiátricos, em que se desenvolvem pesquisas e novos


métodos de tratamento, a histeria continua sendo um enigma para a ciência e
destituída das atuais categorias nosológicas, pouco se aprende sobre os
fatores etiológicos da sintomatologia histérica no âmbito das clínicas médica e
psicológica.

A contribuição freudiana acerca da importância da escuta analítica para


o tratamento da histeria vem sendo descartada na medida em que a clínica
psiquiátrica reduz o sentido dos ditos do sujeito àquilo que é passível de ser
inscrito em seus manuais. A fala do sujeito é, então, transformada em signos
médicos, visando o estabelecimento da identidade diagnóstica em detrimento
da alteridade revelada nos sintomas.

Um grande equívoco desfeito pela psicanálise de Freud demonstra que


a histeria não é apenas um tipo de sintoma, cujos vestígios encontramos nos
transtornos conversivos e dissociativos. A clínica psicanalítica não se baseia
nas definições funcionais de um “órgão psíquico” a tratar e curar, mas na
escuta do saber inconsciente que cada sujeito revela em análise.
30

O desafio para os psicanalistas nas instituições psiquiátricas implica a


importante tarefa de trazer ao discurso médico contribuições na escuta do
sintoma histérico, este entendido não necessariamente como sinal de doença,
mas como a marca do sujeito do inconsciente. Comprometidos com esse
desafio, o dispositivo analítico não deve ceder às condutas silenciadoras do
saber científico, mas promover a proliferação da fala do sujeito histérico para
implicá-lo na direção de seu tratamento nas instituições.

Constatando que às histéricas é oferecido um tratamento universalista e


classificatório indicado pelos novos manuais diagnósticos marcou a posição de
analistas nas instituições médicas e deixamos o sujeito histérico falar.

Aprendemos com ele, que no terreno da transferência analítica a escuta


do sintoma histérico produz importantes avanços no tratamento realizado nas
instituições psiquiátricas.

CAPÍTULO 3 - SOBRE A RELAÇÃO DE TRANSFERÊNCIA NO


“CASO DORA”

O caso Dora, publicado em 1905, porém redigido entre dezembro de


1900 e janeiro de 1901, é muito importante para os estudos e o
desenvolvimento da psicanálise, pois, a forma que Freud narra seus casos
clínicos revela algo muito importante sobre o seu estilo de escrita: é
determinado pelo objeto da investigação psicanalítica, ou seja, o inconsciente.

O próprio Freud o cita diversas vezes ao longo de seu percurso literário


onde pôde analisar todo o processo psicanalítico de Dora vários quadros
sintomáticos como tosses, afonia, dispneia, enxaquecas, depressão,
insociabilidade histérica e histeria.

A paciente tinha por volta de seus 18 anos e apresentava patologia


histérica relacionada à figura paterna - Freud também tratou o pai de Dora
devido um quadro de crise confusional, seguida de sintomas de paralisia e
ligeiras perturbações psíquicas - e para Freud, a histeria de Dora era
31

relacionada ao recalcamento10 das fantasias, sendo os sintomas o retorno do


recalcado.

Dora foi caracterizada como muito apegada ao pai desde a infância e,


distante da mãe que era determinada a fazê-la participar da vida doméstica
contra sua vontade. Viveu na adolescência uma relação conflituosa com o pai
que envolvia um casal de amigos da família: o senhor e a senhora K.

Durante a análise de Freud, Dora explica que suas fantasias em relação


ao casal cresceram ocasionando um desenlace por parte dele que culmina na
hipótese de que a origem de suas preocupações referentes às relações entre
seu pai e a senhora K eram da ordem do inconsciente, ou seja, de total desejo
reprimido.

Freud precipita algo na paciente que ocasiona o tratamento e ao


anunciar suas interpretações a paciente, aparece uma reação de impacto dele.

O caso Dora possibilita algumas reflexões a respeito da relação analista


e analisando na constituição da teoria psicanalítica, pois nele, Freud pode
postular que alguns sintomas se apresentam como reedições de fantasias que
durante a análise tornam-se conscientes, mas desta vez reeditadas na pessoa
do analista.

Em uma afirmação, Katz (1992) nos diz que “(...) é preciso aprender com
Freud, no caso Dora, e perguntar que lugar ocupou como analista (...)” (p.51),
mas, infelizmente, a falta de manejo de Freud levou-o a abandonar a análise e
romper assim o tratamento, uma vez que lhe pareceu que teria sido por seu

10
Recalcamento ou recalque: a) no sentido próprio uma operação pela qual o individuo procura
repelir ou manter no inconsciente suas representações (pensamentos, imagens, recordações)
ligadas a uma pulsão. O recalcamento produz-se nos casos em que a satisfação de uma
pulsão – susceptível de por si mesma proporcionar prazer – ameaçaria provocar desprazer
relativamente a outras exigências. O recalcamento é especialmente patente na histeria, mas
desempenha também um papel primacial nas outras afecções mentais, assim como em
psicologia normal. Podia ser considerado um processo psíquico universal na medida em que
estaria na origem da constituição do inconsciente como domínio separado do resto do
psiquismo; b) num sentido mais vago: o termo recalcamento é muitas vezes tomado por Freud
numa acepção que o aproxima de defesa, por um lado, na medida em que a operação de
recalcamento tomada no sentido “a” se encontra, pelo menos como uma etapa, em numerosos
processos defensivos complexos (a parte é então tomada pelo todo), e, por outro lado, na
medida em que o modelo teórico do recalcamento é utilizado por Freud como protótipo de
outras operações defensivas. (Laplanche e Pontalis, Vocabulário de Psicanálise, p.553)
32

erro ao não reconhecer durante o tratamento a importância da questão


amorosa de Dora por Sra. K e além disso, vemos que em uma análise o
analista está presente não só com os ouvidos, mas com a sua relação subjetiva
fazendo cortes e recortes do que está sendo dito, priorizando o subjetivo e
entendendo o que é importante para o paciente.

Podemos observar então que se torna necessário e claro o


reconhecimento de que o analista participa da transferência já que ele interfere
com emoções próprias e que a análise o afeta consciente e inconscientemente.

Essa transferência vinda do analista pode até conduzir a um erro de


interpretação e ao rompimento, como transcrito acima, sendo deste modo a
transferência seria uma das maiores ferramentas do analista na condução do
tratamento.

O analista deve ao menos controlar esses sentimentos, pois a


transferência é uma demanda ao analista, que, ao recebê-la não responderá
para, dessa forma, fazer o analisante trabalhar o desejo inconsciente que está
subjacente a ela.

Freud assim encontra fenômenos transferenciais que já conhecia nas


suas praticas psicanalíticas e que os passa pelo cunho organizador da
psicanálise, ou seja, de toda maneira é importante ressaltar que se por um lado
é um fato para nós hoje que ele não considerou sua contratransferência no
caso Dora, por outro essa experiência negativa fez com que ele percebesse o
papel que o analista tem na “cura” do paciente analisado.

Especificamente no caso Dora a transferência não é criada, mas sim


revelada, o que bastou para ocupar posição estratégica no processo analítico
da teoria freudiana: apenas com o impasse colocado na análise de Dora que a
transferência passou a ser delineada na sua dimensão positiva pelo discurso
freudiano.

Freud nos deu três apontamentos sobre a relação entre analista e


analisando: 1) quando há uma opinião negativa pessoal do paciente em
relação ao médico que possa gerar desconfiança, 2) na ocasião que o paciente
33

teme a dependência do médico e 3) na figura do paciente que transfere ao


médico suas representações aflitivas que emergem do conteúdo da análise.

Essa descoberta causou certo desconforto e aborrecimento em seu


descobridor – Freud - que as teorizou de forma a incorporar à técnica como
forma de superação do analisando e que percebe que se trata de uma
compulsão e de uma ilusão na análise: “a relação de transferência deve,
estritamente falando, não corresponder a uma relação entre analisando e
analista e, sim, mais exatamente, a uma relação do analisando com seu
analista”. (Laplanche, 1988, p.16)

Podemos considerar que a histérica está em busca do amor e, assim


sendo, ao seu médico apresenta sua demanda, não sendo difícil caracterizar
uma dramaticidade intensa e esta intensidade de demanda mobiliza
resistências no analista. Como Freud pôde enredar se torna a principal
resistência ao avanço da analise a questão de “como pode uma mulher ser
realmente uma mulher atraente aos olhos de um homem” e se o analista não
sustentar e nem atender esta demanda, a pergunta pode mudar para “o que
existe na mulher que pode agradar ao homem”.

Isto posto cabe ao analista possibilitar à paciente que continue em


análise, produzindo assim a revolução dialética que dissolve a resistência e a
transforma em uma transferência entre analista e analisando, ou seja, a relação
de amor tão falada desde o início deste contexto.

A estrutura clínica do caso Dora foi o que impulsionou Freud a escrever


então a “Interpretação dos sonhos” onde podemos observar que o desejo
causador de doenças ou dos sonhos só se manifesta por meio de ideias
censuradas. Nas profundezas onde o sujeito duvida, o analista deve ter
certeza. Onde o paciente não sabe, não tem certeza, põem em duvida, ali se
tem uma prova de que, se está recalcado, é ali que está o elemento que possui
uma relação de causalidade com a doença do sujeito. Sobre sua causa, nós só
teremos acesso por ausência ou por negação.

O que notamos ao ler este caso é como o psiquismo se organiza diante


de situações triangulares, ou seja, em seu primeiro sonho, há uma presença de
34

componentes do Édipo dela; no segundo sonho a morte do pai inscrita pela


mãe.

A relação da Sra. K com seu pai, as investidas do Sr. K sobre ela própria
com o suposto incitar de seu pai a essas investidas, seus sentimentos em
relação a sua mãe e em relação a Sra. K, era diante desse campo
representativo que o fluxo psíquico de Dora se movimentava e somente na
transferência veio a tona.

Para o sucesso da transferência neste caso, o que Freud utilizou foi um


diálogo baseado à classe da obediência relativo à regra de haver de um lado
um sujeito que fala e de outro um sujeito que, necessariamente, deve ouvir e
responder. Trata-se de um dialogo impregnado de vivencia emocional,
mergulhado na singularidade de cada sujeito (analista e analisando).

Freud desloca a ênfase que dava para os sonhos e passa a ressaltar


ideia de fragmentos e destaca o fato de a adolescente de 18 anos ter
abandonado o tratamento.

Foi devido ao abandono da clínica por Dora que Freud criativamente


repensa o fundamento metodológico de sua psicanálise e não considerando a
transferência como um fenômeno isolado, mas de certa forma, como um
conceito, ele confere um lugar central a esta paciente e a este caso.

E assim, dois elementos levaram Freud a repensar o fundamento da


experiência psicanalítica: 1) a articulação do caso Dora entre o conceito de
transferência e a teoria da sexualidade e 2) o reconhecimento da dimensão
dupla da transferência (dualidade entre a resistência ao tratamento e o meio de
acesso às representações inconscientes do analisando).

Assim, com a articulação entre sexualidade infantil e transferência, fica


fácil dar um passo adiante e reconhecer a duplicidade do processo
transferencial: apesar desse fenômeno oferecer-se como resistência, é só por
meio de sua técnica que a verdade inconsciente do analisando é revelada.

Diante das características apresentadas e da constituição da


transferência a dimensão temporal evidencia-se e o fato da transferência
35

constituir-se como um fenômeno capaz de presentificar os desejos do


analisando que foram despertados no passado e levar o analista a interpretar
tal revivência, modificar isso releva que o processo transferencial existe graças
essa dimensão temporal.

A partir do que foi exposto tem-se que Freud ainda não compreendia a
extensão e a crucial importância da transferência, mas, a narrativa do caso
Dora tinha marcado este aprendizado, tanto que durante o tratamento ele foi
surpreendido pelo abandono da jovem, apesar dos claros sinais que esta lhe
demonstrou desde o primeiro sonho.

Freud penitencia-se pelo erro e justifica que não ficou atento aos indícios
da transferência que a paciente apresentava. Não dominando a transferência,
do caso Dora, se recrimina por ter se preocupado fundamentalmente com a
representação dos fatos e não com a relação estabelecida focalizando sua
relação com a paciente Dora.

Foi exatamente este erro técnico que levou Sigmund Freud a repensar
esta problemática e passar a “dar menos atenção à limpidez do discurso
coerente, ao representado estruturado, para atentar não apenas ao não dito no
plano da fala, que aparece como silencio e vazia na trama discursiva, mas,
sobretudo, ao não dito que se substitui por uma ação qualquer, visando o
analista e o quadro formal da cura”. (Birman & Niceas, p. 27)

Finalizamos com a conclusão freudiana de que manejar o fenômeno da


transferência se torna uma exigência desde que:

“(...) essa parte do trabalho é de longe a mais difícil.


Interpretar os sonhos, extrair das associações do enfermo os
pensamentos e lembranças inconscientes, e outras artes
similares de tradução são fáceis de aprender: o próprio
doente sempre fornece o texto para elas. Somente a
transferência é que se tem de apurar quase que
independentemente, a partir de indícios ínfimos e sem
recorrer em arbitrariedades.” (1893-1895, p. 112).

Com estas palavras finais do belíssimo relato analítico do Caso Dora,


podemos unir o encanto de um excelente romance ao instigante conhecimento
36

dos processos mentais e que sem dúvida nenhuma há um registro do


aprendizado freudiano no que se refere à transferência.

Assim, a transferência é realmente o verdadeiro terreno onde se realiza


uma análise e é por esta razão que Birman afirma que o importante
aprendizado que Freud obteve ao tratar a adolescente de 18 anos é a “dívida
simbólica da psicanálise” (Birman, 1982, p. 117) com Dora.
37

CONCLUSÃO

As linhas que se apresentaram tiveram o objetivo de estudar,


compreender e dissertar sobre a transferência na teoria psicanalítica freudiana
e, para tanto, aos principais textos de Freud foram de grande valia para este
estudo e compreensão dos postulados do médico vienense acerca da teoria da
transferência de 1895 até 1917.

Ainda foram acrescentados importantes comentadores de Freud como


D’Agord, Birman, Niceas, Garcia-Roza, Samuel Katz, Laplanche e Pontalis,
Denise Murano e Renato Mezan.

Foi possível acompanhar os pensamentos, as conceituações, a


construção do conceito de transferência e constatar que os escritos de Freud
passaram de uma noção pontual para uma ideia de fundamentação.

Dentro do processo analítico onde a transferência é pensada como um


obstáculo ao tratamento, esta passa a ser considerada como um elemento
indispensável para que a analise ocorra e, a partir do “Caso Dora”, publicado
em 1905, Freud solidifica toda a sua teoria transferencial.

Por volta dos anos 1920 relaciona a transferência com outros


fundamentos psicanalíticos: resistência, compulsão à repetição e pulsão de
morte.

Em 1914 Freud lança a noção de “compulsão à repetição”, na obra


“Recordar, repetir e elaborar”, onde discrimina dois grupos de pacientes tendo
aqueles que se comportam, na análise, da mesma maneira que na velha cura
catártica onde o processo terapêutico se dá no campo das representações e
aqueles que de forma dominante seus conflitos mentais se transformam em
atos transferenciais.

A transferência possui toda essa importância para a psicanalise porque


sua instalação, sua modalidade, seu conteúdo, sua interpretação e sua
resolução são capazes de caracterizar o tratamento analítico e, desta forma, é
importante considerar que o fenômeno transferencial nasce da constituição
38

psíquica de cada pessoa. Assim se manifesta na relação com o analista de


maneira impar, singular, já que o aparelho psíquico de indivíduo um se constitui
de modo particular também.

Explorou-se também o processo de transferência positiva e transferência


negativa em que na primeira permite o trabalho analítico e na segunda, através
da resistência, este trabalho analítico é um pouco dificultado, porém, com a
utilização das ferramentas da clínica é possível emergir a transferência.

A observação desses fenômenos (transferência, resistência, compulsão


à repetição, fenômenos infantis, libido, contratransferência) possibilitou
perceber aspectos da paciente, no “Caso Dora”, que não são apresentados
conscientemente, mas que acrescentam ao conhecimento de sua estrutura o
caráter dos conflitos.

O aspecto da relação entre paciente e terapeuta releva a dimensão dos


conflitos e disponibilidade para atender casos desta qualidade, pois é a partir
desse vínculo que se torna possível a “aliança analítica”.

O principal instrumento de trabalho do analista é ele mesmo e, sendo


assim, é preciso observar e estar atento aos fenômenos de como a
transferência e a contratransferência são importantes para uma melhor
compreensão do que é trazido pelo analisando.

.
39

BIBLIOGRAFIA

BIRMAN, J., NICEAS, C.A. (1984). Constituição do campo transferencial e o


lugar da interpretação psicanalítica. Um estudo sobre o pensamento de Freud.
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