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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e ciências Sociais


Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Pedro Poncioni Mota

Zaratustra e as metamorfoses do tempo e do homem

Rio de Janeiro
2016
Pedro Poncioni Mota

Zaratustra e as metamorfoses do tempo e do homem

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós


Graduação em Filosofia, instituto de filosofia e ciência sociais, da
Universidade federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Orientadora: Professora Doutora Adriany Ferreira de


Mendonça

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016.

1
Pedro Poncioni Mota

Zaratustra e as metamorfoses do tempo e do homem

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Filosofia,


Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisitos parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Aprovado em:

____________________________________________

Adriany Ferreira de Mendonça, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________

Carla Rodrigues, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________

Marcelo de Mello Rangel, Doutor, Universidade Federa de Ouro Preto

2
Agradecimentos

à Professora Adriany Mendonça, pela aceitação e apoio para realização deste trabalho;

à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ, pela


concessão de bolsa de estudos durante o segundo ano do curso de mestrado;

.ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPQ, pela


concessão de bolsa de estudos durante o primeiro ano do curso de mestrado;

à Paula Poncioni, mãe e professora, pelas muitas revisões, apoio e carinho;

à amiga Marina Cavalcanti, pela amizade e discussões;

à Professora Carla Rodrigues, pelos bons encontros e leituras;

Ao professor e amigo Marcello Rangel, pela amizade, carinho e gentileza.

Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação de Filosofia.

3
Resumo

A presente dissertação de mestrado tem como objetivo principal refletir sobre o tema da
temporalidade a partir da obra Assim falou Zaratustra de Friedrich Nietzsche,
considerando a problematização desta temática como necessária para a análise de uma
gênese do pensamento do eterno retorno, que o autor afirma ser a concepção
fundamental da obra. A gênese do eterno retorno compreende uma série de implicações
e valorações referentes a temporalidade (passado, presente e futuro) que possibilitariam
a personagem afirmar outra concepção de tempo. Nesta direção, buscou-se analisar a
trajetória de Zaratustra, enquanto uma dramatização desta gênese, por intermédio dos
capítulos da obra e dos discursos desta personagem, que guardam afinidade com o tema
proposto. Para tanto, foi realizada ampla pesquisa bibliográfica relacionada a temática
proposta. A pesquisa consistiu no levantamento e exame da literatura especializada
concernente aos temas que constituem o quadro conceitual deste estudo –
temporalidade, vontade de criar, vir a ser, eterno retorno, entre os principais. Deste
modo, procurei sustentar que a trajetória de Zaratustra é a condição para que este
pudesse se tornar o mestre do eterno retorno, ao sublinhar em seu percurso os
questionamentos e as diferentes perspectivas da personagem em relação as dimensões
temporais (passado, presente e futuro). Por fim, preocupei-me em vincular as questões
desenvolvidas em relação as valorações do tempo com o pensamento do eterno retorno,
para refletir por que apenas com a afirmação deste pensamento, Nietzsche conceberia
uma formulação trágica capaz de afirmar o tempo para além de uma perspectiva
metafísica.

Palavras chaves: Temporalidade. Eterno retorno. Vontade de criar. Zaratustra.

Abstract

This thesis aims to reflect about the theme of temporality in the work Thus Spoke
Zarathustra by Friedrich Nietzsche, considering the problematic of this issue as
necessary condition for the analysis of the genesis of thought of the eternal recurrence,
which the author says it is the fundamental conception of that work. The genesis of the
eternal recurrence comprises a number of implications and evaluations regarding the
temporality (past, present and future) that would allow the character declares another
conception of time. In this perspective, I have analyzed Zarathustra trajectory as a
dramatization of this genesis, through the chapters of works and speeches of this
character, that is related with the theme of temporality. It was carried out extensive
literature research concerning the issues that constitute the conceptual framework of this
study - temporality, will to create, to become, eternal recurrence, among the others.
Then, I have argued that Zarathustra route is the condition to become the master of the
eternal recurrence, when I have stressed the questions and the different perspectives of
the character in relation to the temporal dimensions (past, present and future). Finally, I
have linked the issues developed over the time valuations with the thought of eternal
recurrence, to reflect why, only with this thought, Nietzsche conceive a tragic
formulation able to declare the time beyond a metaphysical perspective.

Key words: Temporality. Eternal recurrence. Wiil to create. Zarathustra..

4
Lista de Abreviaturas

As referências aos livros de Nietzsche foram feitas da seguinte forma: o sobrenome do


autor, seguido da abreviatura da obra referenciada e o número do aforismo. Nos casos
em que o livro fosse divido em capítulos não dando sequencialidade ao número dos
aforismos ou não fosse constituído de aforismos, optou-se pela referência ao sobrenome
do autor, o ano da publicação da obra utilizada e o número da página.

Anticristo – AC

Aurora - A

Além do Bem e do Mal – ABM

Crepúsculo dos ídolos – CI

A Gaia Ciência – GC

Genealogia da Moral – GM

Humano, Demasiado Humano – HDH

Vontade de poder- VP

5
SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................... 8

CAP. I Crítica à metafísica pela problematização de tempo e do


homem...........................................................................................................15

1.1 O que pode ser o tempo e o homem para Zaratustra.............................15

1.2 O privilégio da dimensão do futuro para a definição do que pode ser o homem:
Além do homem, Além de deus.................................................................. 20

1.3 Além do homem e o pathos da distância................................................30

1.4 Pathos dionisíaco – Criação, dor e superação.......................................34

1.5 Último homem: O porvir do homem sem porvir..................................47

CAP. II O problema do passado e dos valores morais...............................54

2.1 Dos “espíritos” em Zaratustra..............................................................54

2.2 Sobre o espírito de suportação e o último homem..................................60

2.3 Do sagrado não do Leão.........................................................................66

2.4 A criança e a criação de novos valores – esquecimento e memória................70

6
CAP. III Perspectivas do eterno retorno................................................................ 81

3.1 Eterno retorno como estratégia crítica................................................................81

3.2 Eterno retorno – a partir do problema da oposição entre passado e futuro..,,..86

3.3 Passado e futuro - Esquecimento ativo e memória da vontade .........................93

3.4 A dinâmica do mesmo e da diferença a partir do eterno retorno .......................97

3.5 O eterno retorno como principio ético...............................................................101

Considerações finais...................................................................................................114

Referências bibliográficas.............................................................................. ...........118

7
Introdução

O objetivo principal desta dissertação é tratar o tema da temporalidade, partindo


não apenas, mas fundamentalmente de uma interpretação da obra Assim falou
Zaratustra de Friedrich Nietzsche. Ainda que essa não seja uma temática explicitamente
elaborada pelo autor, mas levando em consideração que o mesmo afirma na seção de
Ecce Homo dedicada a Zaratustra que a concepção fundamental da obra é o “eterno
retorno”, “a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar” 1, e se
o eterno retorno é um pensamento que problematiza a noção de tempo, a partir de uma
perspectiva trágica e no sentido de uma superação dos valores da filosofia metafísica 2·,
o tema que proponho encontra uma forte justificativa. Cabe ressaltar preliminarmente
que se tal pensamento (o eterno retorno) não é “apresentado” logo de início e ao longo
das duas primeiras partes da obra é justamente porque Zaratustra, enquanto personagem
dramático, precisa percorrer caminhos e aprendizagens para que possa trazer à luz seu
“pensamento abissal”. O caráter dramático da obra acentua-se pelo fato de Zaratustra
precisar se tornar aquele que ele é: o mestre do eterno retorno 3. Nesse sentido, afirma
Nietzsche, em um fragmento, que Zaratustra é: “A mais trágica historia, com desenlace
divino. Zaratustra torna-se gradualmente maior. Sua doutrina desenvolve-se à medida
que ele cresce. O eterno retorno brilha como um sol poente sobre a última catástrofe”. 4

Para a compreensão desse desenvolvimento da “doutrina” busquei elaborar uma


reflexão acerca dos caminhos e aprendizagens da personagem, caminhos nos quais a
problemática acerca da temporalidade vai se desenvolvendo desde diferentes
perspectivas. Procurei dessa maneira, por intermédio dos discursos de Zaratustra que
guardam certas relações com o problema da temporalidade, explicitar uma gênese do

1
Cf. NIETZSCHE, 1995, p. 82
2
Tradicionalmente as noções de fundamento, eternidade, independência do tempo, auto-afirmação são
atribuídas ao ser enquanto ser do real (Cf. HEIDEGGER, 2002, p. 98) em “oposição” às noções de vir a
ser, tempo, transitoriedade.
3
Heidegger sublinha essa dinâmica ao colocar que: “... antes de mais nada Zaratustra precisa vir a ser
aquele que ele é.” (HEIDEGGER, 2002, p. 90, Grifo do autor) e “Se Zaratustra deve tornar-se o mestre
do eterno retorno, ele não pode tão logo começar com esse ensinamento.” (HEIDEGGER, 2002, p. 91).
4
Fragmento citado por Daniel Halévy. Cf. HALÉVY, 1989, p. 241.

8
pensamento do eterno retorno5. Esta gênese, segundo a hipótese levantada, compreende
diferentes perspectivas de valores acerca da temporalidade que colocam em xeque
certas noções fundamentais da tradição metafísica.

Isto posto, da trajetória de Zaratustra selecionei para uma interpretação filosófica


os seguintes capítulos que desenvolvem e abordam o problema que procuro tratar: da
primeira parte, “O Prólogo de Zaratustra”, no qual o protagonista anuncia o “além do
homem” 6 enquanto uma esperança no futuro em detrimento do presente e do passado; o
“Das três metamorfoses”, onde há uma noção de metamorfose do espírito, que relaciona
cada metamorfose, de maneira singular, com a dimensão do passado encarnado na
figura de um dragão chamado “Tu deves”; Da segunda parte, “Nas ilhas bem
aventuradas”, onde Zaratustra em relação à “vontade de criar” diz que “(...) do tempo e
do devir, devem falar as melhores as imagens (...)”, e "Da redenção”, capítulo em que a
personagem explicita o “espírito de vingança” como uma “aversão da vontade pelo
tempo e seu ‘Foi assim’” 7; e por fim, da terceira parte, o capítulo “Da visão e do
enigma”, no qual há a célebre discussão de Zaratustra com o anão sob o portal do
instante (ou momento) acerca do “eterno retorno” de todas as coisas, e ainda, “o
convalescente”, no qual os animais de Zaratustra e o próprio expressam diferentes
perspectivas do eterno retorno. Se na primeira parte da obra há certo privilegio da
dimensão do futuro associado ao anúncio do “além do homem”, e na segunda parte,
uma ênfase no problema do passado, principalmente como exposto em “Da redenção”,
é apenas na terceira parte que Zaratustra anuncia o eterno retorno como outra
interpretação de tempo para além da dicotomia tradicional entre passado e futuro,
justamente ao se perguntar pelo presente entendido enquanto instante. Esta passagem
insinua uma concepção de tempo (passado, presente e futuro) radicalmente distinta da
noção tradicional do tempo como algo que se dá linearmente e sucessivamente.

Para a reflexão proposta procuramos nos colocar em afinidade com o modo de


“interpretação” que propõe Martin Heidegger (2002), em relação à fala de Zaratustra, o
autor diz que: “(...) Precisamos atentar e considerar como ele o diz, em que ocasião e

5
Machado, nesse sentido afirma que: “A idéia de uma trajetória trágica, que tem como meta o encontro
do destino do personagem central pela afirmação do eterno retorno, aparece algumas vezes no livro como
o caminho pelo qual Zaratustra se torna aquele que ele é” (Machado, 2001, p. 31).
6
Também no § 5 do Prólogo é anunciado o último homem, esse tipo também expressa um vinculo com a
temporalidade, sendo aquele que nada mais anseia, nada mais cria... Ele é o tipo sem porvir.
7
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.151.

9
com que propósito” 8. Roberto Machado (2001) também sublinha esta estratégia de
interpretação, acentuando, porém, o caráter “dinâmico” do protagonista, ao afirmar que:

Dissociar os conteúdos temáticos dos personagens que os anunciam e até


mesmo no caso de Zaratustra, personagem que passa por metamorfoses, do
momento em que o enunciam, é desrespeitar a estrutura temporal ou o
desenvolvimento dramático, no qual esses temas são apresentados no livro
(MACHADO, 2001, p.32).

Ao interpretar Zaratustra dessa maneira, procuro respeitar o caráter dramático


da obra e as metamorfoses do próprio personagem, levando em consideração as
diferentes perspectivas assumidas por este em relação ao tema que proponho; diferentes
perspectivas que, no entanto, são caminhos para o desenvolvimento do pensamento do
eterno retorno.

Este trabalho está organizado do seguinte modo: no primeiro capítulo foi


analisado o item 1 do Prólogo, no qual se inicia o ocaso de Zaratustra. Cheio de luz
assim como desce o sol levando “a luza ao mundo ínfero” 9, ele desce de sua montanha
em direção aos homens, quer levar um presente aos homens. Além disso, podemos ler:
10
“Vê! Esta taça quer voltar a esvaziar-se e Zaratustra quer voltar a ser homem” .
Estranha colocação: quem era Zaratustra antes, que homem Zaratustra “voltará a ser
depois”? Zaratustra quer voltar a ser homem, e vai em direção a eles para ensiná-los o
além do homem, e este é seu presente; em seguida percebendo a incompreensão dos
homens, procura alertá-los sobre o perigo do último homem. Afinal “o que pode ser o
homem” para Zaratustra? O Prólogo como um todo parece girar em torno dessa
temática: “O homem é algo que deve ser superado” 11, “O homem é uma corda estendida
entre o animal e o além do homem – uma corda sobre o abismo. É o perigo de transpô-
lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de temer e parar” 12,
“O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta” 13. Tal parece ser a atmosfera
do prólogo. A pergunta “o que pode ser o homem para Zaratustra?”, nos coloca no
8
Cf. HEIDEGGER, 2002, p. 89. (Grifo do autor)
9
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.27
10
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.27 (Grifo meu).
11
Cf. NIETZSCHE, 1994 p. 29.
12
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 31.
13
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 31.

10
sentido de outras questões: que pode ser o tempo para Zaratustra? Homem e tempo
guardam que modo de relação?

No sentido dessas interrogações, desenvolvi o primeiro capítulo que versa sobre


a questão “o que pode ser o homem para Zaratustra?”. Esta questão mostra-se pertinente
com o objetivo principal mencionado anteriormente, pois a definição de Zaratustra-
Nietzsche sobre o homem acerca-se do problema da temporalidade. A pergunta pelo
homem mostra-se co-pertinente à pergunta que colocamos pelo tempo. O critério
utilizado por Zaratustra para definir “o que pode ser o homem” não é um critério moral
ou metafísico, não pretende expor a essência, verdade ou o fundamento do homem
enquanto uma identidade; mas sim, é possível um critério de avaliação: a vida, vida que
quer sempre superar-se no porvir14, vida como “vontade de poder” 15
e como “vontade
de criação” 16. Não o que é o homem, mas o que pode o homem: é este o sentido da
definição de homem de Zaratustra.

No capítulo seguinte, reflito sobre a relação entre homem e temporalidade


partindo da perspectiva nietzschiana acerca da memória e do esquecimento. Para tal,
procurei interpretar o capítulo “Das três metamorfoses”, que expressa justamente
através da noção de metamorfose uma dinâmica do “espírito” e apresenta diferentes
modos de relação com a temporalidade. Camelo, leão e criança 17, guardariam uma
relação com o passado encarnado na figura do dragão “tu deves” enquanto aquele que
impossibilita toda criação e autossuperação, pois este diz: “todo o valor já foi criado e
todo valor criado sou eu. Na verdade não deve mais haver nenhum ‘eu quero’” 18·. Se o
19
camelo, tal como é dito neste capítulo, “amava outrora tu deves” e aquilo que há neste
de passado, o leão confronta-se com o dragão ao afirmar “um sagrado não” ao dever,
14
“E este segredo a própria me vida me confiou: ‘Vê’, disse, ‘eu sou aquilo que deve sempre superar a si
mesmo” Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 127.
15
Assinalo que optei pela tradução de Paulo césar de Souza do termo “Wille zur Mach” para vontade de
poder. Nesse sentido para uma melhor legibilidade do texto modifico as citações em que o termo esta
traduzido como vontade de potência.
16
Como exposto no capítulo intitulado “Da redenção” o tema da “vontade de criar”, aparece
fundamentalmente articulado com o problema “do tempo e seu foi assim”.
17
Estas são as metamorfoses do espírito, conferir em NIETZSCHE, 1994, p. 43-45.
18
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 44.
19
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.44.

11
abrindo uma possibilidade futura de criação; criação que por sua vez caberá à criança
enquanto aquela que “é esquecimento” e “um sagrado sim”, pois “para o jogo da criação
20
é preciso dizer um sagrado ‘sim’” . É o espírito tornado criança que, por ser
esquecimento, poderia realizar a criação e a superação da moralidade metafísica
encarnada em “tu deves”.

Para uma definição mais precisa do que vem a ser, desde Nietzsche, memória e
esquecimento e da relação que estas “estruturas” mantêm com a temporalidade,
componho uma análise de dois textos que versam diretamente sobre o tema. Para tal,
tomaremos como base para este aprofundamento a Segunda consideração intempestiva:
da utilidade e desvantagem da historia para a vida e a segunda dissertação da
Genealogia da moral. Cabe ressaltar que se a questão acerca da memória-esquecimento
se aproxima de uma temática tradicional da filosofia, procurarei explicitar que
esquecimento e memória são tomados pelo filósofo a partir de uma perspectiva
radicalmente distinta. Nietzsche expõe na “Genealogia”, através de sua concepção de
esquecimento ativo, um modo de relação “afirmativo” com a temporalidade, e
empreende, ao mesmo tempo, sua tarefa crítica de abalar os alicerces do pensamento
metafísico tradicional, justamente ao operar uma transformação na noção de
esquecimento e memória para além da estrutura opositiva de conceitos21·.

No último capítulo, reflito sobre o que pode significar o pensamento do eterno


retorno desde o desenvolvimento de pensamento encaminhado ao longo dos capítulos
anteriores. Assim, desenvolvi como questões norteadoras da composição do último
capítulo as seguintes perguntas: qual é a relação do pensamento do eterno retorno com a
ideia de superação do homem e do espírito de vingança enquanto uma aversão ao
tempo? Como podem ser entendidos, ou melhor, valorizados, passado, presente e futuro
desde o eterno retorno? E ainda, guarda o eterno retorno uma relação própria com as
noções de esquecimento e memória?

Dessa maneira, procurei explicitar que os caminhos percorridos por Zaratustra


são desde a primeira parte da obra dinamizados pelo problema da temporalidade, e
apontam, dessa maneira, para uma gênese do pensamento do eterno retorno. Este pode
ser então interpretado enquanto um pensamento conquistado por Zaratustra ao longo de
20
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.44.
21
Nietzsche em Além do bem e do mal afirma que “a crença fundamental dos metafísicos é a crença nas
oposições de valores” Cf. NIETZSCHE, ABM, par. 2.

12
sua trajetória; tal pensamento, conforme minha hipótese, só pode vir à luz e ser
afirmado após o longo caminho percorrido por Zaratustra. Nesse sentido, entendo a
trajetória da personagem para que se torne o mestre do eterno retorno como o caminho
necessário para a incorporação e afirmação do eterno retorno enquanto o pensamento
mais afirmativo acerca da temporalidade e da vida. Se a obra, segundo essa
interpretação, é marcada em momentos cruciais pelo problema da temporalidade sob
diferentes perspectivas, é com o eterno retorno que Zaratustra “doa” sua colocação
última, sua colocação mais afirmativa sobre tal problema.

Ressalto ainda uma importante questão: porque o eterno retorno sendo “a mais
22
elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar” aparece como
concepção fundamental de uma obra dramática como o é Zaratustra? Assim, um dos
objetivos secundários, mas não menos importante desse capítulo, é pensar porque a
forma de Assim falou Zaratustra e mostra como especialmente oportuna para a
apresentação do pensamento do eterno retorno: a forma dramatizada e poética com que
este pensamento é apresentado em Zaratustra apareceria como uma crítica ao estilo
predominantemente lógico conceitual da tradição metafísica, estilo esse vinculado a
uma vontade de verdade a serviço da razão e de uma explicação e explicitação moral da
existência.

O eterno retorno, assim como apresentado em Zaratustra, pode então ser


entendido, de um modo geral, enquanto uma “estratégia” de superação da noção linear e
sucessiva do tempo arraigada na cultura ocidental. Noção esta que encontra suas bases
na tradição metafísica, no cristianismo como “popularização” desta, e nas noções de
progresso da modernidade. Dessa maneira pretendo com esta dissertação explicitar o
projeto nietzschiano de crítica e superação da metafísica a partir das reflexões
desenvolvidas acerca da temporalidade; entendendo que se tal temática não se apresenta
de forma explícita na obra do filosofo, o pensamento do eterno retorno e a forma com
que ele tem sua gênese em Zaratustra evocam e suscitam esta questão23. .Por fim, são
apresentadas algumas conclusões e reflexões sobre a investigação realizada, seus limites

22
Cf. NIETZSCHE, 1995, p.82.
23
A dissertação deve bastante às reflexões de Martin Heidegger em particular de seu “Quem é o Zaratustra
de Nietzsche?” e a Roberto Machado, em especial a seu livro “Zaratustra: Tragédia Nietzschiana”.
Ambos os autores desenvolvem reflexões acerca da obra Assim falou Zaratustra que envolvem de
maneira essencial a questão da temporalidade.

13
e as questões suscitadas ao longo do processo. Ao final do trabalho encontram-se as
referências sobre a bibliografia consultada.

14
Capítulo I - Crítica à metafísica pela problematização de tempo e do homem

1.1 O que pode ser o tempo e o homem para Zaratustra

Contarei agora a história do Zaratustra. A concepção fundamental da obra, o


pensamento do eterno retorno, a mais elevada forma de afirmação que se
pode em absoluto alcançar é de agosto de 1881: foi lançando em uma pagina
com o sobrescrito: “seis mil pés acima do homem e do tempo (NIETZSCHE,
1995, p.82. Grifo do autor).

Nietzsche relata em Ecce Homo que o pensamento do “eterno retorno” surgiu há


seis mil pés acima do homem e do tempo. É desde essa distância e elevação que o autor
problematizará através de seu Zaratustra certas noções de homem e tempo,
fundamentalmente as determinadas pelo “pensamento metafísico”. Nesse sentido,
proponho pensar o tempo, o problema da temporalidade assim como este pode ser
desenvolvido a partir de Assim falou Zaratustra. Se a princípio, conjecturava que esta
temática estivesse presente apenas na apresentação do pensamento do eterno retorno, o
debruçar-se na pesquisa reconduziu-me por outros caminhos: os caminhos de Zaratustra
24
no vir a ser de tornar-se “o mestre do eterno retorno” ·. O tema da temporalidade
ressoa, então, a partir dos caminhos narrados e atravessados por Zaratustra. Cabe já
ressaltar que não há na obra a apresentação de uma natureza ou uma essência do tempo,
mas experimentações de um pensamento, perspectivas que jogam parodicamente com
representações.

Se, como interpreto,há diferentes perspectivas sobre o tempo no decorrer da


obra, é justamente porque sendo Zaratustra uma obra dramática, seu personagem
central está envolto em uma série de conflitos relacionados com o problema de
superação da metafísica, conflitos que necessita atravessar para que assim os possa
superar - e superar-se. Nesse sentido, é assinalado o caráter de seu devir por seus
animais: “... pois bem sabem os teus animais, ó Zaratustra, quem és e quem deve tornar-
te: és o mestre do eterno retorno. Este, agora é o teu destino!” 25. Portanto, Zaratustra é
aquele que vem a ser o mestre do eterno retorno, e para tal a personagem deve perfazer
caminhos que o colocam no sentido de seu “pensamento abissal”.

24
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.226.
25
Cf. NIETZSCHE, 2008, p. 262, grifo do autor.

15
A indagação pelo tempo ganha sua potência crítica, vigor e amplitude, segundo a
interpretação que proponho, quando se pergunta juntamente pelo “que pode ser o
26
homem?” . Há na avaliação do que pode ser o homem para Zaratustra um co-
pertencimento com a avaliação do tempo. Nesta perspectiva, penso que as noções de
além do homem e último homem, apresentadas no Prólogo, tornam-se fundamentais
para pensar as relações que o homem “estabelece” com a temporalidade. Não que exista
um homem anterior a estas relações, um homem ao modo de uma essência ou
identidade prévia, pois, como busco argumentar, é justamente desde a relação com
tempo que homem vem a ser. Neste sentido, ao interpretar Assim falou Zaratustra em
Ecce homo diz Nietzsche que Zaratustra:

Define com rigor possível o que para ele pode ser somente ‘homem’-não um
objeto de amor ou de compaixão- também o grande nojo ao homem
Zaratustra dominou: o homem é para ele algo informe, um material, uma
pedra feia que necessita de um escultor. (...) Em direção ao homem leva-me
sempre de novo minha fervorosa vontade de criar; assim é levado o martelo à
pedra... Quero terminá-lo, pois uma sombra chegou a mim!- a mais leve e
silente de todas as coisas chegou a mim. A beleza do além do homem chegou
a mim como sombra (...) (NIETZSCHE, 1995, p.93, Grifo do autor).

Inicialmente, cabe sublinhar que a palavra “homem” aparece grifada por aspas
marcando uma estratégia do autor. Segundo Eric Blondel, [Nietzsche] “coloca
27
sistematicamente entre aspas os termos-chaves do discurso moral” . Sinalizar a
palavra homem com as aspas seria então um modo de explicitar uma noção de homem
da qual Nietzsche se afasta radicalmente, pois homem foi (e ainda é) pensado como um
termo-chave do discurso moral metafísico; o homem aparece então como um dos termos
centrais do discurso moral. Com essa noção, o discurso metafísico determinaria o que é
o essencial do homem (quidditas), e assim, invariavelmente, definiria moralmente o que
deve ser o homem, excluindo ou rebaixando nesta determinação todo outro que não se
adequaria a ela. Deste modo, a definição do que pode ser o homem para Zaratustra é
rigorosa no sentido de não ser uma “falsificação moral” 28, justamente porque o autor
deslocaria a definição de homem para fora do âmbito metafísico e moral. Zaratustra
26
Coloco entre aspas essa questão pois retiro-a de uma passagem apresentada em seguida, e também para
sinalizar um deslocamento das interpretações tradicionais das noções que ai aparecem: poder, ser e
homem.
27
Cf. BLONDEL, 1985, p.120.
28
Cf. BLONDEL, 1985, p. 122.

16
“define” homem relacionando-o à “vontade de criar” que não se separa como pode ser
lido, da noção de além do homem. O que Zaratustra chama de homem somente é
definido quando pensando tendo como critérios avaliativos a vontade de criar e o além
do homem. Dessa maneira, Zaratustra ao pensar o homem como algo que ganha seu
sentido a partir da vontade de criar e do além do homem, pensa-o como aquele que só
pode ser no sentido de sua autossuperação desde o porvir29.

De acordo com Nietzsche sua filosofia é feita a golpes de martelo 30, o que sugere
que seu sentido é ser destruidora de ídolos, por isso o martelo é levado à pedra, ao ídolo
chamado “homem”, para que assim possa criar novos porvires. O autor assim descreve
no prólogo de Ecce homo sua atitude filosófica:

Derrubar ídolos (minha palavra para “ideais”) – isto sim é meu ofício. A
realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua veracidade, na medida
em que se forjou um mundo ideal... O “mundo verdadeiro” e o mundo
aparente” – leia-se: o mundo forjado e a realidade... a mentira do ideal foi até
agora a maldição sobre a realidade, através dela a humanidade mesma
tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos – a ponto de adorar
os valores inversos aos únicos que lhe garantiriam o florescimento, o futuro,
o elevado direito ao futuro (NIETZSCHE, 1995, p.18. Grifo do autor).

Homem, como o compreende Zaratustra, é o que está por fazer-se para além de
si e que vem a ser desde a abertura no tempo do porvir. Desta maneira, homem não é
entendido idealmente como uma essência ou substância já dada, acabada, mas ao
contrário, é aquele que pode vir a ser. Assim, o “próprio” do homem não seria, por
exemplo, ser um animal racional, ou qualquer coisa de fixo como uma identidade
própria e prévia. Inclusive, é preciso questionar esse próprio do homem, questionar o
sentido de uma propriedade humana. Nas palavras de Zaratustra “o homem é algo que
deve ser superado” 31. Nesta direção emergem importantes questões: como superar o
homem? Quem é o homem que deve ser superado? Para essas perguntas não há uma
resposta óbvia a ser extraída qual uma fórmula dos textos de Nietzsche, mas acenos que
podem ser vislumbrados; assim, Zaratustra coloca que o homem é uma “ponte,

29
Para delimitar o uso do termo porvir indico que o utilizo no sentido de uma abertura não pré
determinada na dimensão do tempo futuro, em contraposição a compreensão do tempo futuro a partir de
uma teleologia, de um pensamento evolucionista e da noção de progresso que já anteveriam o futuro
como algo determinado.
30
Cf. NIETZSCHE, 1976, p. 7.
31
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 29

17
passagem, transição” 32·. Por intermédio dessa imagem pode-se depreender que em sua
perspectiva o homem não é compreendido como algo estável, imutável, mas marcado
por um dinamismo, por movimentos. É, justamente, a partir destes acenos que procuro
evidenciar o tema proposto.

No prólogo e nos discursos iniciais de Zaratustra são apresentadas algumas


“definições” do que pode ser o homem, que teriam como alvo comum uma tentativa de
redimensionamento da autocompreensão do homem determinada pela metafísica.
Assim, o homem, longe de ser compreendido por Zaratustra enquanto uma unidade,
essencialidade e estabilidade, no sentido tradicional da metafísica, seria a tensão da
possibilidade de vir a ser. Com relação a este caráter de tensão que constitui o homem,
lê-se no Além do bem e do mal, obra com a qual se ocupou Nietzsche após o término de
Zaratustra, que “no homem estão unidos criador e criatura: no homem há matéria,
fragmento, abundância, lodo, argila, absurdo, caos; mas no homem há também criador,
escultor, dureza de martelo, deus-espectador e sétimo dia – vocês entendem essa
oposição?” 33·. Como é mencionado, estão intrinsecamente vinculados criador e criatura
no homem, nem apenas criador, nem somente criatura pré-determinada. Ele é, portanto,
sempre esse jogo de diferença, união de uma oposição; disto adviria a tensão que é o
homem, o caráter paradoxal de sua condição enquanto “criadora-criatura”. Cabe
destacar, é novamente em função da atividade criadora que o autor procura “definir”
homem, ou seja, apontando para seu modo de ser que não é nada de substancial,
essencial, nenhuma identidade própria e prévia, mas, muito antes, esse que é poder criar
para além de si, superar-se.

Assim, criação é sempre também uma tensão, pois é um ato ao mesmo tempo de
destruição. Nietzsche afirma ser este o “pathos dionisíaco” do tipo criador. Na seção de
Ecce Homo referida a Zaratustra, encontra-se a seguinte colocação: “... entre as
precondições para uma tarefa dionisíaca, é decisiva a dureza do martelo, o prazer
34
mesmo no destruir” . Portanto, para o homem assumir sua “condição”, como
Zaratustra a define, é preciso que se imponha esta “tarefa dionisíaca”, para que possa

32
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.30.

33
Cf. NIETZSCHE, 2008, p.163.

34
Cf. NIETZSCHE, 1995, p.94.

18
destruir o que nele mesmo o petrifica35 e que o impossibilita, então, de criar para além
de si. Para esta tarefa, Zaratustra anuncia o além do homem como um horizonte futuro.

Desse modo, na perspectiva de Nietzsche-Zaratustra, homem pode ser


compreendido como aquele que está desde sempre na tensão de um futuro que lhe
sobrevêm marcando seu presente, abrindo-lhe a possibilidade de sua superação, mas
também de um passado que tende a aprisionar a “vontade criadora” tornando-a então
impotente, e impossibilitando assim o homem de criar para além de si36. É esta a tensão
que lhe faria ser ao mesmo tempo criador e criatura, escultor e pedra. É nessa
perspectiva que Zaratustra definirá no prólogo o que para ele pode ser o homem,
colocando-o desde uma tensão entre o passado e o futuro: “O homem é uma corda,
estendida entre o animal e o super homem – uma corda sobre um abismo. é o perigo de
transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e
ficar parado.” 37

Uma corda sobre um abismo, isto é, nenhum fundamento, nenhuma essência. O


homem como pode ser depreendido desta imagem é esse caminho (ponte, passagem e
transição) entre um perigoso estar a caminho (o futuro), um perigoso olhar para trás (o
passado) e um perigoso tremer e ficar parado (o presente).

35
Convém sublinhar que tanto na definição de Zaratustra do que pode ser o homem, quanto no parágrafo
225 de além do bem e do mal aparece a ideia de uma petrificação do homem, daí a necessidade de ser ele
mesmo escultor de si. Tal noção de petrificação do homem será trabalhada no segundo capítulo, pois
veremos como tal noção de petrificação se relaciona com a dimensão do passado que torna impotente a
vontade criadora, assim como aparece no capítulo da segunda parte intitulado “Da redenção”: "‘Aquilo
que foi’- é o nome da pedra que ela não pode rolar” (NIETZSCHE,1994, 151.) A pedra e a petrificação
seriam efeitos do espírito de gravidade, o espírito do peso (o peso da metafísica) que impede o homem de
superar-se e elevar-se além de si.
36
A problemática da relação do homem com o passado será elaborada detalhadamente no capítulo
seguinte.
37
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.31.

19
1.2 O privilégio da dimensão do futuro para a definição do que pode ser o homem:
Além do homem, Além de deus

A fim de desenvolver uma perspectiva de homem a partir de Zaratustra procuro


refletir nas sessões subsequentes acerca da noção de “além do homem”. O ensinamento
desta noção ao homem do povo pode ser interpretado como uma estratégia do
protagonista de deslocar a autocompreensão idealizada que os homens têm de si, e
reabrir, desta maneira, a possibilidade de sua superação e concomitantemente, como
explanaremos, da superação do pensamento metafísico que determina essa mesma
autocompreensão. Cito a passagem em que primeiramente aparece a noção de além do
homem a fim de contextualizar o discurso de Zaratustra:

Ao chegar à cidade mais próxima, encontrou Zaratustra grande quantidade de


povo reunido na praça do mercado; pois lhes foi prometido que iriam ver um
funâmbulo. E Zaratustra assim falou ao povo: ‘Eu vos ensino o além do
homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizeste para superá-lo?
(NIETZSCHE, 1994, p.29).

Se com o anúncio do além do homem Zaratustra pretende deslocar a perspectiva


que os homens do povo estabelecem de si mesmos, é justamente porque para ele, ao
contrário desses últimos, como veremos homem só pode ser avaliado em função de sua
capacidade, ou melhor, de sua possibilidade de autossuperação. Zaratustra desse modo
não é o anunciador do que é homem, ele não pergunta ou responde pela essência do
homem; o homem para ele não é algo dado. Por isso, ao avaliar o homem, ele leva em
consideração “o que pode o homem”. O homem é dessa maneira avaliado desde
“vontade de poder, entendida como dinâmica de auto-superação, movimento de criação
para além de si mesmo e para além do mesmo de si. É com esse sentido que utilizo a
noção de vontade de poder, assim como ela aparece explicitada no capítulo “Do superar
si mesmo”, onde Zaratustra coloca: “Onde encontrei vida, encontrei vontade de poder
(...) E este segredo a própria vida me confiou: ‘Vê’ , disse,‘eu sou aquilo que deve
sempre superar a si mesmo’” 38. É desde o título desse capítulo, que Nietzsche chama
atenção para uma questão que percorre seu Zaratustra: a afirmação da vida como
vontade de poder pela superação de si. Nesta direção em Além do bem e do mal o autor

38
NIETZSCHE, 1994, p.127, grifos do autor.

20
retoma a “definição” de vontade de poder como vida e o relaciona ainda ao problema da
conservação:

Os fisiólogos deveriam refletir ao estabelecer o impulso de autoconservação


como o impulso cardinal de um ser orgânico. Algo que é vivo quer sobretudo
dar vazão à sua força- a vida mesma é vontade de poder (NIETZSCHE,
2009.Grifo meu).

Neste sentido, Nietzsche pensaria a vida sendo vontade de poder no sentido l de


superação, o que seria mais fundamental que o impulso autoconservação. Porém,
vontade de poder como o autor a define não deve se confundida com uma noção
39
simplista de vontade (por exemplo: como arbítrio, autonomia da consciência) . Para
isso, o filósofo adverte que sua noção de vontade de poder se afasta da noção
“tradicional” de vontade:

Os filósofos gostam de falar da vontade como se ela fosse a coisa mais


conhecida do mundo; até Schopenhauer deu a entender inclusive que somente
a vontade nos é verdadeiramente conhecida, completamente conhecida,
conhecida sem desconto e sem acréscimo. Mas sempre volta a me parecer
que Schopenhauer apenas fez precisamente aquilo que os filósofos costumam
fazer: ele assumiu e exagerou um preconceito popular. Querer me parece
antes de tudo algo complicado, algo que é uma unidade apenas como palavra
– e precisamente em uma palavra reside o preconceito popular que se
assenhoreou da sempre apenas escassa cautela dos filósofos. Sejamos, então,
ao menos uma vez mais cautelosos, sejamos “afilosóficos” – digamos: em
todo querer há primeiro, uma multiplicidade de sensações (...) (NIETZSCHE,
2009, p.39. Grifo do autor).

Desta maneira, Nietzsche estaria pensando com a noção de vontade de poder em


algo múltiplo e dinâmico, pois, pode-se dizer que em jogo está uma noção que não se
separa da dimensão temporal da superação no porvir. Nesta direção, o critério de
avaliação do homem é justamente por isso o além do homem, pois este é um sentido que
o recolocaria na dinâmica criadora da vontade de poder. Roberto Machado (2001)
assinala que o além do homem é para Zaratustra o critério de avaliação do homem, e
ainda o relaciona à vontade de poder enquanto dinâmica de criação. Eis um trecho de
seu livro “Zaratustra, tragédia nietzschiana”, em que Machado argumenta sobre a

39
Não se pode deixar de ressaltar que com vontade de poder Nietzsche não está se referindo a uma
vontade que pertenceria ao domínio da consciência, pois, como se pode ler no citado parágrafo 13de além
do bem e do mal tal noção se aplica a todo ser orgânico. Este problema não poderá aqui ser
detalhadamente tratado devido à delimitação do tema que proponho. Assinalo a importância desta
temática e a pretensão de trabalhar futuramente essa questão.

21
expressão vontade de poder como ela aparece pela primeira vez em “De mil e um alvos”
de Zaratustra:

O que faz Zaratustra nesse momento é partir da vontade de poder para situar
a alternativa que se abre para o homem, entre o além do homem, fruto da
vontade criadora, e o último homem, que, para retornar a expressão do
“Prólogo”, “não mais arremessará a flecha de seu anseio para além do
homem”. Ora, considerar a vontade de poder unicamente do ponto de vista do
homem como auto-superação criadora da existência significa, para
Zaratustra, pensar o homem como ponte e não como meta. E não se trata de
considerar um fato: trata-se de formular uma exigência, pois enquanto para
Zaratustra o homem deve ser uma ponte, os próprios homens se tomam como
meta. Tomar-se como meta é desprezar o processo de autosuperacão, próprio
da vontade e só pode levar ao último homem ou a ausência de vontade. O que
significa que Zaratustra está pensando o homem a partir do além do homem
(...) O que se nota , portanto, é o valor do homem, de suas ações, de seus
pensamentos, ser avaliado por um critério: o além do homem. (MACHADO,
2001, p.74. Grifo meu)

Considerar o homem como ponte, explicita Machado, não é constatar um fato, e,


acrescentaríamos descrever uma essencialidade do homem, mas formular uma exigência
que se vincula fundamentalmente com a noção de vontade de poder enquanto
movimento de superação. É somente a partir dessa exigência que o homem poderia se
compreender enquanto transição e ponte, sendo ela portanto um modo de afirmar a
vontade criadora no homem. Essa colocação tem como oposição certo tipo de
autocompreensão que o homem estabelece de si a partir do que proponho chamar de
uma “vontade de conservação”. Portanto, chamo de “vontade de conservação” a força
que se encarna no “homem do povo”, e que se opõe a exigência de Zaratustra de
autossuperação pela vontade de poder. O homem a quem se dirige Zaratustra tem-se
como meta justamente porque compreende-se enquanto uma identidade ou essência
dada, é o homem que se “apossou” da imagem (ideal) do que é homem, cujo sentido
existencial é por isso unicamente conservar essa imagem de si, buscando tornar-se cada
vez mais a semelhança dessa imagem.

Se o homem é avaliado pelo critério do além do homem, cabe perguntar quem é


este homem a quem fala Zaratustra, e porque este formula a exigência do além do
homem para este homem. Sobre o além do homem, Nietzsche em Ecce Homo afirma
que utiliza “a palavra ‘além do homem’, para designação de um tipo que vingou

22
superiormente, em oposição a homens ‘modernos’, a homens ‘bons’, a cristãos e outros
niilistas...” 40.

Desta maneira, além do homem é, então, o tipo antípoda do niilista, e como


procuro interpretar no prólogo de Zaratustra ele é apresentado em oposição ao niilismo
característico da modernidade. Niilismo este resultante da “morte de Deus”. Digo
niilismo característico da modernidade por que este não é o niilismo entendido por
Nietzsche como uma desvalorização da vida em nome de valores superiores (Deus, Bem
eternidade, mundo ideal...), mas uma desvalorização dos próprios valores superiores 41.
Assim, pode-se entender porque, ao apresentar o além do homem, Zaratustra o faz
relacionando-o com a “morte de Deus” 42. Este acontecimento pode ser compreendido
como a marca que “inaugura” a modernidade 43: Deus (valor absoluto) que ocupava o
fundamento, o centro desde onde advinham os valores teria sido substituído pelo
homem – mais especificamente pelo homem que se autocompreende como sujeito da
razão, e que teria a razão como “instrumento” capaz de promover o progresso 44. Assim
Machado (2001), relaciona a “morte de Deus” com o advento da modernidade:

A expressão “morte de deus” é a constatação da ruptura que a modernidade


introduz na historia da cultura com o desaparecimento dos valores absolutos,
das essências, do fundamento divino; significa portanto a substituição, da
autoridade de deus e da igreja pela autoridade do homem considerado como
consciência e razão; a substituição do desejo de eternidade pelos projetos
futuros, de progresso histórico;a substituição de uma beatitude celeste por um
bem estar terrestre. (MACHADO, 2001pag. 48)

Ocupar o lugar de Deus seria então a hybris moderna. Em outras palavras o


orgulho do homem moderno, Zaratustra o reconhecerá no povo a quem fala: “Possuem
alguma coisa da qual se orgulham. Como chamam, mesmo, àquilo que os torno
40
Cf. NIETZSCHE, 1995, p.53-54.
41
Neste sentido, conferir MACHADO, 2001, P.62; DELEUZE, 1976, P.69.
42
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 30.
43
Segundo Machado: “A ´ morte de Deus', condição, pressuposto histórico dos principais temas expostos
no Zaratustra, é a e a constatação do niilismo da modernidade”. Cf. Machado, 2001, p. 47.
44
Pode-se dizer que Nietzsche é um crítico da idéia moderna de progresso. Nesse sentido, ele afirma de
forma sintética no Anticristo: “A humanidade não representa um desenvolvimento para o melhor, para
algo mais forte, mais elevado, como hoje se pensa. O ‘progresso’ é apenas uma idéia moderna, isto é, uma
idéia falsa” Cf. Nietzsche, AC, §4

23
orgulhosos? Chamam-lhe instrução (...)” 45. Com efeito, o homem moderno, tomando-se
como o ápice da humanidade e da história, nada quer saber de superar-se, mas
justamente o contrario, ele procura por todos os meios conservar-se e conservar seus
ideais.

Neste sentido, como acentuado por Machado (2001) pela “morte de Deus”
substitui-se Deus, como fundamento, pelo homem. Porém, levanto uma questão em
relação à sua argumentação de que com a morte de deus há “o desaparecimento dos
valores absolutos, das essências, do fundamento divino”:o homem, ao ocupar o lugar do
centro,não mantém as suas propriedades, o próprio desse centro, as noções de essência,
valor absoluto e fundamento? Penso que o homem autocompreendido como sujeito da
razão e da consciência, ao ocupar o lugar do fundamento,é assim ele mesmo
entronizado e deificado. Tudo pode ser questionado em nome da razão, mas a razão
mesma continua sendo o fundamento inabalável, absoluto, doador de todos os valores.
A ruptura da modernidade com o “valor Deus” apenas obscureceria algo mais profundo:
a continuidade da crença metafísica de um fundamento tomado como absoluto e
inabalável. Nesta direção argumenta Machado, indo além de sua argumentação citada
anteriormente, que:

O homem moderno nega Deus, mas continua inconscientemente a reverenciá-


lo ao pôr em seu lugar ideias modernas como ‘humanidade”, “sociedade
livre”, “ciência”, “progresso”, “felicidade para todos" (...) Substituir deus
pelo homem, como faz a modernidade, colocar valores humanos, demasiado
humanos, no lugar dos valores considerados divinos, não muda o essencial.
Porque o espaço, o lugar em que se coloca o homem continua o mesmo do
deus desaparecido (MACHADO, 2001, p. 64).

Abolida a crença em um além do tempo (Deus, eternidade), o homem moderno


passaria a crer num tempo além, em um “além secularizado” que justificaria a vida. Ora,
essa “crença moderna” chama-se progresso: as formas de desvalorizar o mundo como
ele é mudam, mas a crença metafísica permanece. Assim, argumenta Nietzsche em um
fragmento póstumo, “... o valor, o sentido, a esfera dos valores eram sólidos,
incondicionais, eternos, sendo identificados com Deus... Transferiu-se o advento do
‘Reino de Deus’ no futuro, sobre a terra, no humano - mas no fundo se manteve a
45
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.33

24
crença no antigo ideal...” 46. Ao homem moderno que se substitui ao lugar de Deus só
caberia conservar seu ideal de homem, ainda que acentuando esse seu projeto,
maximizando unicamente aquilo que seria o próprio do homem: sua razão e
consciência.

Neste sentido, porém, o porvir é fundamentalmente condicionado, ainda que de


modo velado47·, pelo passado da metafísica; justamente por ser atravessado pela crença
no ideal cristão-metafísico. Desse modo pode-se dizer que não existe para o homem
moderno futuro enquanto possibilidade de ir além de si, enquanto auto-superação 48. Ou
seja, o que determina a existência do homem moderno é certa “lógica do mesmo” pela
vontade de conservação que exclui e rebaixa qualquer outro porvir e todo porvir outro.
Esta seria a diferença fundamental entre o progresso e o futuro para o homem moderno
e a valorização de Zaratustra do futuro em nome do além do homem: enquanto o
primeiro seria uma acentuação do mesmo pelo progresso da razão, da ciência e da
técnica; o segundo possibilitaria desde a dinâmica da vontade de poder a abertura à
criação de diferenças. Dessa maneira, cabe ponderar que enquanto a conservação é
sempre conservação do mesmo, excluindo a diferença; a noção de superação integra
necessariamente algo de conservação, ainda que para superá-la. Neste sentido,
Nietzsche em sua juventude já colocava sobre o homem moderno: “O homem tinha que
vir a ser como são agora os homens, e não de outra maneira; ninguém tem que se
insurgir contra esse tinha que” 49

A continuidade da crença nos valores metafísicos ainda que obliterada pelo


orgulho do homem moderno de ter partido em dois a história da humanidade por meio
da ruptura advinda pela morte de Deus e pela instauração do homem em seu lugar é
ainda pensada por Nietzsche em relação à ciência, instituição fundamental da
modernidade, não apenas como mera continuidade, mas enquanto triunfo, cumulação e
acentuação da moralidade cristã. O autor, na Gaia ciência, assim argumenta:

46
Cf. NIETZSCHE, 1887-1888, apud Machado, 1997, p. 64.
47
Esse velamento do condicionamento do porvir estaria relacionado a crença e o orgulho do homem
moderno de que através de sua razão, ciência e progresso, ele teria rompido com o passado determinado
pelos ideais metafísicos e cristãos. Nietzsche aponta, como desenvolvo a seguir, para uma continuidade
muito mais fundamental entre os ideais modernos e a metafísica.
48

49
Cf. NIETZSCHE, KSA, vol. 1, p. 312apud GIACÓIA, 1999, sem paginação.

25
Vê-se o que triunfou realmente sobre o Deus cristão: a própria moralidade
cristã, o conceito de veracidade entendido de modo sempre mais rigoroso, a
sutiliza confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em
consciência científica, em asseio intelectual a qualquer preço
“(NIETZSCHE, GC, §357)

E também de forma lapidar, em Além do bem e do mal, o autor coloca que


“hoje um cognoscente poderia facilmente sentir-se como a encarnação animal de deus”
50
.

Determinado pelos valores morais cristãos, o homem moderno dá continuidade dessa


maneira à vontade de correção de mundo, típica do pensamento metafísico, por meio da
consciência científica, que pretenderia se assegurar da vida e do vir a ser que lhe é
próprio através do cálculo e do controle cientifico. Se a metafísica é entendida por
Zaratustra, a partir do capítulo intitulado “Da redenção”, enquanto a aversão da vontade
ao tempo51·, a consciência científica pode ser compreendida como a vontade de
determinar e assegurar dentro de seus limites a indeterminação instaurada pela
dimensão do futuro. A dimensão que possibilitaria todo porvir enquanto movimento de
superação aparece então como instância predeterminada. Neste sentido, Nietzsche
expõe em poucas palavras a relação entre religião, razão, correção da existência e
progresso, no parágrafo 41 da Vontade de potência52:

“Crítica ao homem moderno”: ”O homem bom” foi corrompido e seduzido


pelas más instituições (os tiranos e os padres); A razão constituída como
autoridade; a história que sobrepuja os erros; o futuro considerado como um
progresso. (NIETZSCHE, 1983, p.139. Grifo meu)

Nesta direção, Nietzsche pode-se dizer é um crítico da modernidade, por ele


entendida não como superação dos valores metafísicos, mas como sua continuidade.

50
.Cf. NIETZSCHE, 2009a, p.96.
51
A proposição de que o espírito de vingança se relaciona fundamentalmente com a tradição metafísica é
problematizada detalhadamente na seção seguinte.
52
Ressalto que apesar da polêmica em torno desta obra não publicada por Nietzsche, organizada por
Elizabeth Foster (sua irmã) e Peter Gast, considero que ao citá-la juntamente com outras passagens
publicadas tal obra não apresenta inconvenientes maiores.

26
Sua crítica recairia, principalmente, sob certos aspectos modernos como a ideia de
progresso baseada em uma teleologia53 que levaria os homens a enxergarem-se como
meta, mas também na consciência racional e científica que teria como base uma
“vontade de verdade” a todo custo. Esse último aspecto é desenvolvido de forma
exemplar na terceira dissertação da Genealogia da moral, de uma maneira resumida o
autor, no parágrafo 24, argumenta:

(...) Esses últimos idealistas do conhecimento, únicos nos quais habita e está
hoje encarnada a consciência intelectual – eles se crêem tão afastados quanto
possível do ideal ascético, esses “espíritos livres, muito livres”: e no entanto
eu lhes revelo o que eles próprios não conseguem ver -pois estão demasiado
próximos a si mesmos- : esse também é o seu ideal, eles mesmos o
representam hoje, ninguém mais talvez, eles mesmos são os rebentos mais
espiritualizado desse ideal (...) Esses estão longe de serem espíritos livres:
eles crêem ainda na verdade...” (NIETZSCHE,2009b,p.129)

Se é a partir dessa conjuntura histórica que Zaratustra anuncia o além do


homem, é como uma estratégia que o faz, a fim de abrir ao homem moderno fechado em
sua autocompreensão a possibilidade de sua superação futura. Cabe perguntar o que
quer dizer nesse contexto superação? Nesta perspectiva, a superação do homem, em
nome do além do homem, pode ser entendida como um duplo movimento: ao mesmo
tempo superação da história da metafísica e superação da concepção de homem cunhada
por essa mesma história que determinaria uma estrutura de representação deste
enquanto sujeito da consciência racional e autônoma. A superação do homem é, pois, de
certo modo a superação da metafísica.

Para tanto, Zaratustra anuncia ao homem um novo sentido para a vontade: o


além do homem como sentido da terra, e não mais um além da terra, pois uma vez
abolido “o mundo de deus” e sua esperança de salvação ultra terrena, ainda poder-se-ia
criar um “outro mundo” no futuro, para além do mundo falsificado pelos valores da
metafísica.

Assinalo algumas passagens em que aparece a noção de além do homem: “O


Além do homem é o sentido da terra; fazei vossa vontade dizer ‘que o além do homem

53
Cf. NIETZSCHE, 1976p. 86-88; MACHADO, 2001, p.. 51-52.

27
seja o sentido da terra’” 54·. Igualmente em relação ao além do homem é dito “que o
55
futuro e o distante sejam, a razão do ser de teu hoje...” E ainda: “O presente e o
passado na terra- ah meus amigos, é isso, para mim, o mais insuportável; e eu não
56
saberia viver, se eu não fosse também um vidente daquilo que deve vir.” ·. Nota-se
que passado e o presente são então desvalorizados em detrimento do futuro anunciado
por Zaratustra em nome do além do homem.Entendo a desvalorização do passado e do
presente em favor do além do homem como uma estratégia de Zaratustra para que o
homem se coloque no sentido futuro de sua superação; da superação de sua auto-
representação que o levaria exclusivamente a uma “vontade de conservação”.

É justamente por outro tipo de valoração do tempo, em favor da dimensão


futura, que abra ao homem a possibilidade de sua autossuperação para além do
“progresso do mesmo”, que Zaratustra ensina o além do homem como medida para a
vontade. Ao anunciá-lo, o protagonista estaria a sinalizar outro sentido para a vontade
que poderia inclusive e fundamentalmente superar o princípio de conservação tomado
como meta pela modernidade. Sobre esta Zaratustra diz:

Os mais preocupados hoje indagam: “como se conservará o homem?”


Zaratustra foi o primeiro e único que indagou: “como se superará o
homem?”(...) Isso pergunta e não cessa de perguntar: “como poderá o homem
conservar-se melhor, mais longamente, mais agradavelmente?” Com tal
pergunta — eles são os senhores de hoje. Superai, meus irmãos, esses
senhores de hoje (...) (NIETZSCHE1994, p.288).

Nesta perspectiva, se a vontade de poder enquanto vida é superação, entende-se


porque Zaratustra ensina o além do homem relacionando-o com a morte de Deus. A
partir da morte de Deus abre-se ao homem a possibilidade de autossuperar-se pela
vontade de criar. Assim pergunta Zaratustra: “que haveria, pois, que criar se houvesse
deuses?” 57.

54
Cf. NIETZSCHE, 2008, p. 30.
55
Cf. NIETZSCHE, 2008, p. 77.
56
Cf. NIETZSCHE, 2008, p. 150.
57
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 101.

28
Porém, também surge o grande perigo ao homem, de uma vez nada
vislumbrando para além de si desejar apenas a sua conservação. A autocompreensão do
homem moderno, identificado com os predicados de Deus através da razão e da
consciência autônoma seria, pois, a estrutura que o impossibilitaria ir além de si.
Portanto, o além do homem ensinado por Zaratustra pode ser entendido como a medida
para a “destruição” dos valores metafísicos “incorporados” ao sujeito moderno. Nesse
sentido, Deleuze (1976), em Nietzsche e a filosofia, expõem a relação entre as noções de
homem e Deus pela conservação, ao argumentar que o além do homem seria:

Uma nova maneira de pensar, predicados diferentes dos predicados do


divino, pois o divino ainda é uma maneira de conservar o homem e de
conservar o essencial de Deus. Deus como atributo. Uma nova maneira de
avaliar: Não uma mudança de valores, não uma permutação abstrata ou uma
inversão dialética, mas uma mudança e uma inversão no elemento do qual
deriva o valor dos valores, uma “tranvaloração”. (DELEUZE, 1976, P.76.
Grifo meu).

Dessa maneira, Deleuze (op. Cit.) explicita o além do homem como uma
dimensão que Nietzsche teria pensando para além das determinações e fundamentos
típicos da metafísica. Portanto, o além do homem não poderia ser entendido como uma
abstração (idealização), um jogo dialético ou uma entidade “divina”. Zaratustra, ao
anunciar o além do homem, colocaria em questão ao mesmo tempo os valores divinos e
os valores demasiadamente humanos, ambos valores fundamentados no solo metafísico
que deprecia a vida entendida como vontade de poder, dinâmica de superação para além
de uma “vontade de conservação”.

Neste movimento de aproximação da noção de além do homem, algumas


perguntas tornam-se fundamentais para a reflexão: afinal, é possível conceituar o que
pode ser o além do homem, ou essa noção guarda múltiplos sentidos?Além do homem é
a superação do homem que deixaria o homem assim como sua humanidade para trás?
Ou é outra maneira de pensar o homem?É o além do homem algo alcançável, como uma
possibilidade de realização concreta, uma espécie de evolução do homem? Ao perguntar
pelas possíveis interpretações do além do homem é impossível não se referir justamente
ao homem. Portanto, refletir acerca do além do homem, mesmo que não limitando essa

29
noção a uma única interpretação, ou por isso mesmo, provoca certo abalo na concepção
de homem. Talvez essa seja a importância do além do homem: desestabilizar a noção
tradicional de homem. Porém, penso que se o além do homem fosse algo alcançável
nada mais haveria para se superar ou criar. No entanto, não é justamente desse perigo
que Zaratustra procura afastar-se?

1.3 Além do homem e o pathos da distância

A noção de além do homem seria pertinente pensá-la não como um objetivo,


uma finalidade teleológica, mas para utilizar uma imagem, um horizonte que a cada
aproximação se distância, resguardando sempre uma distância, que em termos temporais
seria algo como um futuro que nunca chega como presente. Como Zaratustra
argumenta, se todos os seres se superaram ao criar algo acima de si mesmo 58, então
pode-se compreender o além do homem como uma possibilidade sempre futura para o
homem. Ainda que em determinadas circunstâncias o homem não o tenha em vista,
como o seria para o homem moderno. Neste sentido, o além do homem se configura
mais como uma dimensão existencial do homem, um horizonte de possibilidade do
homem desde que afinado coma vontade de poder. É nessa direção que Günter Figal
(2008) infere:

O além-do-homem não é porém, nenhum ser diverso do homem, mas o


próprio homem que se lança para além de si, o próprio homem que se
transforma, que é determinado como homem por meio da transformação (...)
Por fim, subsiste uma diferença entre homem e além do homem... Homem e
além do homem não se acham separados como corpo e alma, mas se mantêm
coesos como diferentes no movimento do que se lança para além de si e no
movimento da recriação. No além do homem mostra-se de um “novo modo”
o que é o homem e sempre foi como o ser que pode se distanciar de si
(FIGAL, 2012, p. 173).

58
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.29

30
Nesse sentido, com o anúncio do além do homem, Zaratustra mostraria de um
novo modo o que “é” o homem: “o ser que pode distanciar-se de si". A expressão
“distância de si”, utilizada por Figal, pode ser entendida em termos nietzschianos como
o pathos da distância, e nesse caso específico, como a distância de si. Essa distância
seria acentuada pela apresentação do além do homem futuro que assinalaria a condição
do homem de ser sempre inacabado, aberto, nunca presente a si mesmo. Nietzsche ao
explicitar no além do bem e do mal o pathos da distância, caracteriza-o, relacionando-o
justamente a autossuperação:

(...) Aquele anelo por sempre novos aumentos de distância no interior da


própria alma, a formação de estados mais elevados, mais raros, mais
afastados, mais estendidos, mais amplos, em suma, precisamente a elevação
do tipo “homem”, a continua “auto-superação do homem”(...) (NIETZSCHE,
2009a, p, 208).

Além do homem evidenciaria, enquanto horizonte sempre futuro, a possibilidade


de autossuperação do homem como aquele que pode distanciar-se de si mesmo. Se na
lição do além do homem há um privilégio do porvir, como pode, em consequência, ser
pensada a relação do homem “afinado” à vontade de poder com o presente e o passado?
Figal pensando na proximidade dessa questão, irá abordar o pathos da distância
relacionando-o à temporalidade. O autor argumenta que:

O homem não é nenhuma Substância, ou seja, nenhuma unidade essencial,


que se comprova uma vez mais como a mesma em múltiplas
transformações... Mas uma relação tensa entre a vida presa em si e um outro
ser iminente e possível, isso é sempre assim, em toda e qualquer situação
histórica, só que ele não se faz valer expressamente em toda e qualquer
situação histórica. O homem é um caminho, mas não um caminho para uma
meta, de tal modo que seriamos determinados por um “ainda não” e por um
“a caminho” de nossa determinação histórica. Ao contrario, é uma ligação
daquilo que se acha cindido por um abismo: medida de uma distância infinita
entre aquilo que se foi e aquilo que se quer ser, uma distância que tem que ser
e não pode se fixar como o próprio ser. (FIGAL, 2012, p. 179) 59.

59
Essa passagem de Figal ressoa a seguinte sentença, já citada de Zaratustra: “O homem é uma corda,
esticada entre o animal e o super homem – uma corda sobre o abismo. Um perigoso além, um perigoso a
caminho, um perigoso olhar para trás, um perigo tremer e ficar parado.”

31
Nesta perspectiva, do mesmo modo que homem não é compreendido como
“substância predeterminada, unidade essencial” procuro me afastar de imputar ao além
do homem qualquer espécie de definição essencialista. Nenhuma definição
essencialista, nenhum sentido teleológico da humanidade, nenhuma espécie de evolução
do homem; além do homem, a partir da perspectiva que procuro abordar, é um
ensinamento de Zaratustra a fim de assinalar para o homem uma possibilidade de vida
afirmativa afinada com vontade de poder, e para além da “vontade de conservação”.
Como toda noção fundamental da obra de Nietzsche, a noção de vontade de poder é
constantemente retomada, reavaliada e posicionada frente a outros problemas. Em
relação à autoconservação o autor indica que:

Querer preservar a si mesmo é a expressão de um estado indigente, de uma


limitação do verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão
do poder e, assim querendo, muitas vezes questiona e sacrifica a
autoconservação. (NIETZSCHE, GC, §349).

E é no sentido de sacrifício da autoconservação que Zaratustra, ao anunciar o


além do homem, questiona os valores dos homens modernos, valores tidos por estes
como essenciais e dignos de serem conservados como aquilo que seria o mais próprio
do homem:

Vede, eu vos anúncio o além do homem: é ele o mar onde pode submergir o
vosso grande desprezo. Que podeis experimentar de mais excelso? A hora do
grande desprezo. A hora em que também vossa felicidade se converte em
náusea, do mesmo modo que a vossa razão e virtude. A hora em que dizeis:
“Que me importa minha felicidade não passa de miséria, sujeira e mesquinha
satisfação. Mas justamente, é minha felicidade que deveria justificar a minha
existência” A hora em que dizeis: “Que me importa a minha razão! Acaso
cobiça ela o saber, como o leão o seu alimento? Não passa de miséria, sujeira
e mesquinha satisfação!” (NIETZSCHE, 1994, p. 30-31).

Zaratustra prossegue, então, nomeando os valores modernos (virtude, justiça,


compaixão) que conformam os homens e os fazem todos semelhantes e próximos. Neste
sentido, ele afirma: “Todos querem o mesmo, todos são iguais.” 60Fossem os homens do

60
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.34.

32
povo capazes de tomando distância de sua condição desprezar seus valores e a si
mesmos como aqueles que encarnam esses valores- e nesse ponto do drama, Zaratustra
ainda nutre tais esperanças - vislumbrariam o além do homem como horizonte futuro.
Porém, para tanto, precisariam do pathos da distância a fim de superar seus valores. A
“hora do grande desprezo” seria então a hora de uma reavaliação e destruição dos
valores que amesquinham e nivelam a vida no homem.

Porém, o homem moderno representado no Prólogo em parte pelo homem do


povo, em outra pelo último homem, é o homem em que se encarnam e triunfam os
valores reativos e niilistas, e por isso é incapaz de qualquer ato nobre, criação e
61
autossuperação. São estes, nas palavras de Zaratustra “os senhores de hoje” , que
buscam de modo utilitarista apenas se conservarem de forma mais agradável. Tomar o
princípio de autoconservação como finalidade da vida é para Zaratustra-Nietzsche um
sintoma de fraqueza, uma desmobilização da tensão, da dinâmica própria que é o
homem compreendido desde a vontade de poder, e ainda uma aversão ao tempo, ao
porvir e à transitoriedade.

Desta maneira, Nietzsche argumenta de um modo mais amplo, mas incluindo o


homem, que “(...) algo que é vivo quer sobretudo dar vazão à sua força — a vida
mesma é vontade de poder—: a autoconservação é apenas uma das consequências
62
indiretas e mais frequentes disso” . A autoconservação é, pois, apenas uma das
possíveis conseqüências da vontade de poder, e não algo que deve ser colocado, a partir
de uma inversão de valores típica de toda moral escrava, como primordial 63. O homem
que “quer” apenas sua conservação estaria a negar a vida enquanto vontade de poder.
De outro modo, afirma o autor, em Ecce homo que:

(...) Para compreender o que quer Zaratustra: esse gênero de homem que ele
concebe, concebe a realidade como ela é: ele é forte o bastante para isso – ele
não é a ela estranhado, ele é ela mesma, ele tem ainda em si tudo o que dela é
terrível e questionável, somente então o homem pode possuir grandeza...
(NIETZSCHE, 1994, P.113-114. Grifo do autor).

61
Cf. NIETZSCHE 1994, p.288.
62
Essa passagem já fora citada, retomo-a incluído a passagem que vem ao caso abordar Cf. NIETZSCHE,
2009a, p.35, grifo do autor.
63
Cf. NIETZSCHE, 2009b, p. 26-28.

33
Nesta perspectiva, para a compreensão do que pode ser o homem para
Zaratustra, torna-se necessário discorrer sobre o que quer dizer esse “terrível e
questionável” da “realidade” que Nietzsche pensa sempre sob a chancela da “noção de
Dionísio”.

1.4 Pathos dionisíaco – Criação, dor e superação

Nietzsche, em Ecce Homo, ao fazer suas considerações sobre Zaratustra se


refere constantemente a “ideia de Dionísio” 64, sugerindo que sob diversos aspectos essa
obra realizara o pathos dionisíaco. Deste modo, do ponto de vista “psicológico” do
personagem o autor afirma que:

O problema psicológico no tipo Zaratustra consiste em como aquele que em


grau inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim, pode, no
entanto ser o oposto do espírito de negação (...) Como aquele que tem a mais
dura e terrível percepção da realidade, que pensou “o mais abissal
pensamento, não encontra nisso entretanto objeção alguma ao existir (...)
Antes uma razão a mais para ser ele mesmo o eterno sim a todas as coisas, “O
imenso e ilimitado sim e Amém” (...) mas esta é ideia do Dionísio mais uma
vez. (op. cit., 1995, p.90.Grifo do autor).

Também sobre a linguagem que fala Zaratustra consigo mesmo, ele argumenta
que é “a linguagem do ditirambo” 65. E acrescenta ainda, sobre a criação da obra, que
“coisa igual não foi jamais criada, jamais sentida, jamais sofrida: assim sofre um deus,
66
um Dionísio” ·. Poder-se-ia dizer que Dionísio é o deus que “preside” a obra de

64
CF. NIETZSCHE, 1995, p.90; MACHADO, 2001, p. 24.
65
CF. NIETZSCHE, 1995, p.90.
66
CF. NIETZSCHE, 1995, p.92.

34
Nietzsche, do Nascimento da tragédia a Ecce Homo, o deus das metamorfoses e das
máscaras se insinua.

No prefácio para O nascimento da tragédia, de 1886, intitulado “Tentativa de


autocrítica”, Nietzsche coloca que a questão de Dionísio liga-se ao problema da
afirmação do sofrimento e da dor, pois “uma questão fundamental é a relação dos
gregos com a dor, seu grau de sensibilidade” 67

Porém, nessa obra a linguagem pretendida por Nietzsche não é alcançada pois,
ele mesmo diz de si :

O discípulo de um ‘deus desconhecido’ ainda, que por enquanto se escondia


sob o capucho do douto, sob a pesadez e rabugice dialética do alémão (...)
uma espécie de alma mística e quase menádica, que, de maneira abstrata e
com esforço, quase indecisa sobre e se queria comunicar-se ou esconder-se,
como que balbuciava em uma língua estranha. Ela devia cantar... ” 68.
(NIETZSCHE, 2007, p.14.).

É em Zaratustra que Nietzsche talvez mais livremente cante seu canto


dionisíaco, sem precisar “esconder-se” em uma linguagem metafísica. Contudo, das
diversas nuances do Dionísio de Nietzsche ressalto para esta dissertação o aspecto da
afirmação da vida e do vir a ser até em seus aspectos mais “terríveis”. Neste sentido,
afirma Nietzsche, em Ecce Homo, referindo-se a psicologia da tragédia: “O dizer sim à
vida em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se no
69
sacrifício de seus mais elevados tipos – a isto chamei dionisíaco” . A afirmação da
vida e o sacrifício dos tipos elevados como o “próprio” do dionisíaco está também
presente em seu Zaratustra. Nesta obra o filósofo ressalta “meu conceito de dionisíaco
70
tornou-se ali ato supremo” (p.88). Pode-se indagar como esse “conceito” faz-se ato

67
CF. NIETZSCHE, 2007, p.14-15.
68
CF. NIETZSCHE, 2007, p.14.
69
CF. NIETZSCHE, 1995, p.65.
70
CF. NIETZSCHE, 1995, p.85.

35
em Zaratustra. Em torno dessa questão procuro em seguida refletir sobre o problema do
criador e sua dimensão ligada a afirmação do porvir71.

Na seção IV do Prólogo, as voltas com a lição do além do homem, Zaratustra


expõem o que para ele é valoroso no homem: “O que é grande no homem é ele ser uma
ponte e não uma meta: O que pode amar-se no homem, é ser uma transição e um ocaso.
Amo os que não sabem viver senão no ocaso, porque estão a caminho do outro lado” 72.
Uma série de situações e tipos são em seguida apresentadas como dignas do amor de
Zaratustra73. O que perfaz todas elas é justamente uma “vontade” de ocaso. Ocaso 74que
significa o pôr do sol, ocidente, mas também declínio, perecimento – ocaso, porém, que
leva ao “outro lado”, ao além (do homem). Neste sentido, apenas aqueles que são
capazes de perecer podem superar-se em direção ao além do homem. Como se pode ler
na primeira seção do Prólogo, esse também é o caminho de Zaratustra: “‘Vê! Esta taça
quer voltar a esvaziar-se e Zaratustra quer voltar a ser homem’. Assim começou o ocaso
de Zaratustra” 75. Nesta perspectiva, Zaratustra é a história deste ocaso. Assim, pode-
se entender que o caminho, a ponte que leva ao além do homem não pode dispensar o
homem. O homem é o meio dessa transição em direção ao além do homem, ainda que
para isso sofra seu ocaso e pereça. Neste sentido, argumenta Maurice Blanchot (2007),
em A conversa infinita:

O além do homem de Nietzsche é aquele que unicamente conduz o homem a


ser o que ele é: o ser da superação, em que se afirma a necessidade para ele
de passar e de perecer nessa passagem. (BLANCHOT, 2007, p.75. Grifo
meu).

71
Com esta direção tomada pretendo expor apenas uma das muitas possibilidades de se pensar a relação
entre o conceito de Dionísio e o Zaratustra. A opção por caminho tem sua determinação delimitada pelo
tema proposto nesta dissertação.
72
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.31.
73
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 32, grifo do autor.
74
Pode-se ler essa palavra em muitos sentidos: por do sol, ocidente, morte, declínio; todos esses se
relacionam essencialmente com a tarefa de superação da metafísica proposta por Nietzsche, ou seja, da
história do ocidente: O momento em que o sol, metáfora privilegiada por Platão para o Bem e a Verdade,
se põe, morre e, com ele, o homem determinado pelo discurso moral da metafísica. Cf. Aurélio, 1975.
75
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 27, grifo meu.

36
O além do homem conduziria o homem justamente porque está sempre à frente,
infinitamente distante, futuro, mas ainda assim “convocaria” no presente o movimento
de superação. O que nos leva a algumas questões: qual é a relação entre superação e
perecimento (ocaso)? E como no perecimento pode haver superação?

Como bem observa Maria Cristina Ferraz (1994) em Nietzsche: O bufão dos
deuses, Nietzsche teria concebido a ideia do eterno retorno próximo a um bloco de
pedra em forma de pirâmide. Esta seria “a concretização arquitetônica de morte e
ressurreição, equivalente de certa maneira ao eterno retorno, a pirâmide se associa a um
76
outro elemento que intervém no texto imediatamente a seguir: A fênix” ·. Mais
adiante, Ferraz, indica: “A imagem da fênix (...) remete, por sua vez, à do fogo,
frequentemente empregada por Nietzsche para caracterizar a relação entre certo tipo de
criador e sua obra” 77.

Pirâmide e fênix são termos que denotam a vida na perspectiva dionisíaca, que,
para eternamente renovar-se, deve destruir-se. Neste sentido, para Zaratustra, o criador
por excelência, é o que está em afinidade com vida. Assim, Zaratustra afirma no
capítulo intitulado “Nas ilhas bem-aventuradas”: “Sim, muitas mortes amargas deverá
haver em vossa vida, ó criadores! Assim, sereis intercessores e justificadores de toda a
transitoriedade.” 78. A morte não deve, pois, ser entendida factualmente como o fim ao
final de uma vida, mas no sentido dionisíaco, deus das metamorfoses, que morre e
renasce sempre outro.

No movimento de criar, o criador deve perecer muitas vezes, pois a destruição é


intrínseca à vida e ao devir. Ainda "Nas ilhas bem aventuradas", Zaratustra adverte que:
“Más e anti-humanas chamo todas essas doutrinas do uno e perfeito e imóvel e sacio e
imperecível. (...) Do tempo e do devir, devem falar as melhores imagens: um louvor,
79
devem ser, e uma justificação de toda a transitoriedade!” . O criador deve louvar a
transitoriedade, mas não como algo separado dele. Como se pode ler em grifo na
passagem supracitada do prólogo (seção IV), o que para Zaratustra é grande no homem,
76
Cf. FERRAZ, 1994, p.73.
77
Cf. FERRAZ, 1994 p.74.
78
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 101.
79
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 100.

37
é ser ele uma transição. Desta maneira, pode-se entender que o criador não apenas deve
elogiar e justificar o transitório, mas realizar em si essa dinâmica. Longe de ser um
fatalismo, essa realização é a expressão de uma vida afinada com vontade de poder que
no movimento de superação é capaz de sacrificar-se, pois somente os criadores são os
capazes do sacrifício80 em nome do além do homem. Estes,Zaratustra afirma, poderiam
então “ser pais e antepassados do além do homem” 81.

Posto isso, sublinho que no pensamento de Nietzsche há uma importante relação


entre gravidez e criação. Jacques Derrida (2013) chama atenção para essa metáfora
nietzschiana, ao ponto de afirmar, em Esporas que: “Nietzsche, o que se pode verificar
em todos os lugares, é o pensador da gravidez” 82. Também, Ferraz (1994) o salienta ao
dizer que: “A gravidez é geralmente utilizada pelo filósofo como paradigma da criação
artística” 83. Acrescento apenas que Derrida vai além ao constatar Nietzsche como “o
pensador da gravidez”, pois como discuto em seguida, para Zaratustra gravidez não se
refere apenas à criação artística84, mas a toda criação “dionisíaca”.

Zaratustra chama de criador todo aquele que “afinado” com vontade de poder
destrói valores a fim de criar novos. Na Gaia ciência de Nietzsche há uma distinção
entre dois tipos de artistas, creio encontrar nesta distinção a definição do tipo de criador
a que Zaratustra se referiria:

Quanto aos valores artísticos todos, utilizo-me agora dessa distinção


principal: pergunto, em cada caso, ‘foi a fome ou a abundância que aí se fez
criadora?’. De início, uma outra distinção parece antes recomendar-se – ela
salta bem mais à vista –, ou seja, atentar se a causa da criação é o desejo de
fixar, de eternizar, de ser, ou o desejo de destruição, de mudança, do novo, de
futuro, de vir a ser. (NIETZSCHE, GC, §370. Grifo meu).

80
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 32.
81
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 100.

82
Cf. DERRIDA, 2013, p. 45.
83
Cf. FERRAZ, 1994, p.80.
84
Ressalto no caminho apontado por Derrida, que há em Nietzsche um importante elogio ao parto e às
dores do parto. Zaratustra, segundo o autor, nasce de uma longa gestação de 18 meses como de uma
“fêmea elefante” (Ver: NIETZSCHE, 1995, p. 82-83). Não por acaso tal imagem é constantemente
reiterada nessa obra. Há através da imagem do parto uma síntese de noções que circulam pela obra
nietzschiana: vir a ser, dor, criação, futuro e superação
.

38
Na perspectiva de Zaratustra o criador só poderia ser compreendido como este
que tem como “causa” de sua criação o desejo de destruição, de mudança, do novo, de
futuro, de vir a ser. Nessa perspectiva, o criador, para Zaratustra, pode ser entendido
como um “criador dionisíaco” no qual a abundância de força se faz criadora. Adiante
veremos como esse desejo é típico do pathos dionisíaco.

Em torno da gravidez e da criação, Zaratustra argumenta: “Se o criador quer ele


mesmo ser a criatura, o recém-nascido, então deve querer, também, ser a parturiente e as
dores do parto” 85. Não há, pois, separação entre criador e criação (há diferença, ao criar
o próprio criador diferencia-se de si) no ato de criação/geração o criador supera-se no
outro (o filho/a obra) 86. Neste sentido, na primeira parte de Zaratustra, em “Do caminho
do criador” pode-se ler: “Arder nas tuas próprias chamas, deverás querer; como
87
pretenderias renovar-te, se antes não te tornasses cinza!” . As mortes do criador, é
preciso escrevê-las no plural, como a morte da ave fênix e de Dionísio são “a promessa”
de uma renovação, do novo e do porvir outro. Para isso o criador sendo o que perece
muitas vezes em vida, precisa querer que seja ele mesmo a parturiente e as dores do
parto, para “renascer” a partir do movimento de superação.

Sobre a dor, Zaratustra dirá no capítulo O convalescente: “Eu, Zaratustra, o


defensor da vida, o intercessor da dor...” 88. Vida, como já foi mencionado, é aquela que
quer superar a si mesma; assinalei, ainda, a relação entre superação, o além do homem e
o porvir futuro. A partir disso, pergunto: qual a relação entre vida como superação de si
e dor - e especificamente as dores do parto? Penso que há na “imagem” do parto uma
síntese de noções que ao longo deste capítulo venho trabalhando: vir a ser, dor, criação
e futuro se conjugam em torno do pathos dionisíaco. Neste sentido, Nietzsche, no
Crepúsculo dos ídolos, expõe o que para ele vêm a ser as “dores do parto”:

85
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 101

86
Relembro o parágrafo de Além do bem e do mal analisado anteriormente na secção 1.1 deste capítulo, no
qual Nietzsche argumenta que “no homem estão unidos criador e criatura”.

87
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.79
.
88
Cf. NIETZSCHE, 1994. P. 222.

39
Na ciência dos mistérios a dor é santificada; o esforço de partejar tornava a
dor sagrada. Tudo o que é devir e crescimento, tudo que assegura o porvir,
requer dor. Para que exista a alegria eterna da criação, para que a vontade de
viver se afirme eternamente por si mesma, é necessário que também exista a
dor do parto. A palavra Dionísio significa tudo isso. (...) O mais profundo
instinto, o da vida futura, se traduz ali duma maneira religiosa; a procriação é
o caminho sagrado da vida (NIETZSCHE, 1976, p.110. Grifo do autor).

Nesta direção, a dor como dor do parto para o criador “dionisíaco” não é uma
objeção à vida, mas algo inerente à sua “tarefa vital”. Dor que inclusive operaria como
estimulante89. Para Nietzsche, sublinho, criador é “(...) uma ‘pessoa-mãe’, no sentido
maior da palavra, alguém que sabe e que quer saber apenas das gravidezes e dos partos
de seu espírito (...)” 90·. O criador “dionisíaco” teria na criação vinculada ao instinto de
vida futura a justificação de toda dor, padecimento e sofrimento. Assim, constata
Zaratustra: “Criar - essa é o grande resgate do sofrimento, é o que torna a vida mais
leve” 91. Posto isso, cabe perguntar: porque resgatar o sofrimento? Desde onde a dor
deve ser resgatada? A que interpretação se opõe Zaratustra?

Oposta à sua perspectiva, pode-se supor, está a interpretação do “espírito de


vingança”, mas este, cabe ressaltar, parece ser o pathos da reflexão metafísica.Neste
sentido parece argumentar Zaratustra, em “Da redenção”, não sem ironia: “Espírito de
vingança -foi esta até agora meus amigos a melhor reflexão dos homens: e que onde
92
houvesse sofrimento deveria sempre haver um castigo” . Em seguida aparecem
“dramatizadas”, segundo hipótese levantada, algumas importantes interpretações da
metafísica que relacionam um sentido de sofrimento à vontade e ao tempo:

“Castigo”, precisamente, chama a própria vingança a si mesma; com uma


palavra mendaz, atribui-se hipocritamente, ante seus próprios olhos, uma

89
Nietzsche no crepúsculo dos ídolos dirá algo semelhante ao que argumenta sobre as dores do parto.
Fazendo referência às orgias dionisíacas, ele diz que : “A psicologia da orgia como sentimento de vida e
força transbordante, dentro dos limites do que até a dor opera como estimulante” (Cf. NIETZSCHE,
1976,p.110). Neste sentido, o criador para Zaratustra teria também a dor como estimulo, pois, sua criação
adviria não de uma “fome”, carência, mas de uma abundância de força.
90
Cf. NIETZSCHE, 2012, p.244.
91
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 101.
92
NIETZSCHE, 1994, p.151.

40
consciência limpa. E já que no próprio querer há sofrimento, por isso que não
pode querer para trás – assim o próprio querer e a vida inteira deviam – ser
um castigo! E eis que uma nuvem após a outra entrou a rolar sobre o espírito;
ate que a loucura por fim pregou: “Tudo perece, tudo, portanto, merece
perecer!” E é a própria justiça, aquela lei do tempo, pela qual este deve
devorar seus filhos” – assim pregou a loucura. “Pelo ângulo moral, acham-se
as coisa ordenas segundo o direito e o castigo. Oh! Onde está a nossa
redenção do caudal das coisas e do castigo da ‘existência’? Assim pregou a
loucura. “Pode haver redenção, se há um direito eterno? Ah, impossível de
rolar-se é pedra chamada ‘Foi assim’: eternos, devem, ser os castigos!”
Assim pregou a loucura. “Nenhum ato pode ser destruído: como poderia ser
desfeito pelo castigo! É isto que há de eterno no castigo da existência: que a
existência deve de novo e sempre tornar-se ato e culpa! A não ser que a
vontade, finalmente, se redimisse de si mesma e o querer se tornasse em não
querer; mas vós conheceis meus irmãos essa cantiga da loucura! Para longe
eu vos levei dessas cantigas quando vos ensinei: ‘A vontade é criadora! ’
(NIETZSCHE, 1994, p.151-152).

O “espírito de vingança”, partindo de uma perspectiva (“ângulo”) moral da


existência e do sofrimento diante da transitoriedade das todas as coisas, julga a vontade
e a vida como castigo e punição. De uma constatação: “tudo passa”, chega
“logicamente” (e moralmente) à sentença “tudo merece passar”. Neste sentido, para “o
espírito de vingança” qualquer espécie de criação está fatalmente condenada ao “Foi
assim”, a passar: se tudo passa, torna-se passado, então nada justifica gerar, criar. Para
este “espírito” todo o futuro e presente tornar-se-á em vão passado.

Zaratustra diz, simplesmente, que esta perspectiva é a do espírito de vingança.


Se minha interpretação de que este é o pathos da metafísica estiver adequada, a
metafísica pode, então, ser entendida como vingança contra a vida e o tempo. Essa é
uma hipótese que é imprescindível que se procure confirmar dentro dos limites
possíveis do tema proposto para pesquisa.

Na obra de Nietzsche, A filosofia na época trágica dos gregos, pode-se


encontrar indicações da proximidade do espírito de vingança com os primórdios do
pensamento metafísico. Na seção IV dedicada ao filósofo pré socrático Anaximandro,
Nietzsche reflete em torno de um fragmento no qual, segundo o autor, expressa-se uma
sentença acerca do valor moral da existência. O filósofo grego constata que: “Lá onde
as coisas têm seu surgimento, para lá também devem ir ao fundo, segundo a
necessidade; pois têm de pagar expiação e ser justiçadas por suas injustiças, conforme a

41
ordem do tempo” 93·. Ressalto a utilização de expressões muito próximas: “ordem do
tempo”, diz Anaximandro; “lei do tempo”, fala o espírito de vingança em Zaratustra.

Nietzsche coloca uma importante questão acerca deste fragmento de


Anaximandro: “Sentença enigmática de um verdadeiro pessimista ou divisa oracular
94
sobre a pedra angular da filosofia grega, como iremos interpretá-la?” Esta pergunta é
fundamental, visto que o “espírito” desta sentença parece estar presente de um modo
geral em grande parte das reflexões do que poderia se chamar de tradição metafísica.

Colocada essa questão, Nietzsche, em seguida, constata uma forte semelhança


entre a sentença de Anaximandro e uma consideração de Schopenhauer. Talvez essa
seja uma resposta implícita do autor para sua própria pergunta: sentença pessimista e ao
mesmo tempo pedra angular da filosofia. Nietzsche, então, apresenta a seguinte
consideração do próprio Schopenhauer:

O critério acertado para julgar o homem consiste em considerá-lo justamente


um ser que não deveria de modo algum existir, mas que expia sua existência
por meio de toda a sorte de sofrimento e da morte: o que se pode espera de tal
ser? Não somos todos, afinal de conta, pecadores condenados a morte?
Expiamos primeiro por meio da vida e depois, por meio da morte
(NIETZSCHE, 2008, p.50).

Pela leitura da passagem IV de A filosofia na era trágica este parece ser o


lamento da filosofia metafísica de Anaximandro a Schopenhauer: “Quem poderia
redimir-vos da maldição do vir-a-ser?” 95, muito próxima está a questão do “espírito de
vingança”, “Oh! Onde está a nossa redenção do caudal das coisas e do castigo da
‘existência’?”. Esta seria então a “nossa melhor reflexão até hoje”. Porém, se no filósofo
grego tal consideração moral não é justificada, e nem o poderia ser, pelo conceito
religioso de pecado, esse é evocado por Schopenhauer. É com este pensador alémão
que a questão do sofrimento ligado à noção religiosa de pecado irá se relacionar
explicitamente com a noção de vontade. Como a vontade sofre a libertação do
93
Cf. NIETZSCHE, 2008, p.49.
94
?
Cf. NIETZSCHE, 2008, p. 49-50
.
95
Cf. NIETZSCHE, 2008, P. 53.

42
sofrimento só poderia ser possível se “(...) a vontade, finalmente, se redimisse de si
mesma e o querer se tornasse em não querer” 96.

Tal pensamento culminaria numa condenação de toda a existência: tudo que vem
a ser existe apenas por culpa e deve-se expiar por isso. Desse modo, nada vale criar,
pois tudo que é criado deve segundo a lei do tempo ser extinguindo; diz o “espírito de
vingança” que “(...) é a própria justiça essa lei do tempo que o obriga a devorar os
próprios filhos”. Devorar os próprios filhos, isto é, extinguir todo porvir, e trazer o outro
para o mesmo. Nota-se que esta passagem faz menção a um modo especifico de
concepção da temporalidade, na qual tempo é entendido sob o signo do deus Cronos, de
onde advém nosso nome para o tempo cronológico. Segundo a mitologia grega 97·,
Cronos devorava seus filhos a fim de garantir a proteção de seu reinando, já que
segundo uma profecia ele seria destronado por um daqueles. Nesse sentido, o tempo
cronológico é o tempo da conservação, pois sem criação não há porvir. Cronos como o
deus que devora seus filhos pode ser entendido como um princípio oposto ao exaltado
por Zaratustra na figura da gravidez/criação

O discurso do espírito de vingança em “Da redenção” pode, então, ser entendido


como uma paródia do pensamento metafísico. Pensamento que nada cria, fruto de uma
vontade “impotente”. Se este pensamento é incapaz de afirmar a vida e o vir a ser, busca
então a redenção na eternidade fora do tempo e do devir. Deste pensamento adviriam
“(...) todas essas doutrinas do uno e perfeito e imóvel e sácio e imperecível” que
Zaratustra chama de “más e anti humanas” 98.

Mas também pode-se entender a passagem citada de “Da redenção” como uma
parodia crítica da forma popular do platonismo, que segundo Nietzsche 99, seria o
cristianismo. Se Zaratustra, enquanto porta voz do espírito dionisíaco, tem como critério
a vontade de criar, que afirma a vida inclusive nos seus aspectos mais terríveis como o
sofrimento e o padecimento, seu sentido oposto pode ser encontrado na interpretação

96
CF. NIETZSCHE, 1994, p. 152.
97
Cf. BRANDÃO, 1986, p. 275-280.
98
?
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 100.
99
Refiro-me à passagem do Prólogo de Além do bem e do mal, no qual Nietzsche afirma que “(...) o
Cristianismo é um platonismo para o povo” Cf. NIETZSCHE, 2009a, p.18. Também à referência ao
cristianismo está no título do capítulo: redenção é um termo empregado para a salvação cristã da alma.

43
cristã do sofrimento. Nesta, o sofrimento tem sua expressão máxima com o Jesus na
cruz, “o Deus na cruz”. Todo sofrimento é entendido como expiação do pecado da
humanidade. Tal problema do sentido do sofrimento é desenvolvido por Nietzsche em
um fragmento póstumo de 1888, referindo-se acerca de Cristo e Dionísio enquanto tipos
antípodas:

Dionísio contra o “Crucificado”: aí tendes a oposição. Não é uma diferença


quanto ao martírio – é só que ele tem outro sentido. A vida mesma, sua eterna
fecundidade e retorno, condiciona o tormento, a destruição, a vontade de
aniquilamento. No outro caso, o sofrer, “O crucificado como inocente” vale
como uma objeção contra esta vida, como fórmula de sua condenação –
Adivinha-se: O problema é do sentido do sofrer: se é cristão, se é um sentido
pagão. (...) O deus na cruz é uma maldição sobre vida, um dedo apontado
para redimir-se dela - o Dionísio cortado em pedaços é uma promessa de
vida: eternamente renascerá e voltará da destruição. (NIETZSCHE. FP, 13:14
[89] 1888-1889 apud BITTENCOURT, 2008, P.92).

Neste sentido, em Zaratustra, na parte intitulada “Das velhas e novas tábuas”,


parágrafo26, que já em seu título faz uma alusão ao cristianismo, Zaratustra apresenta
sua versão da crucificação. Nesta, o que “os bons”, os impotentes para a criação,
“crucificam” é o futuro dos homens:

Ó meus irmãos! Onde se encontra o maior perigo para o futuro do homem?


Não, porventura, nos bons e nos justos? (...) Os bons têm de crucificar aquele
que inventa a sua própria virtude! Essa é a verdade! (...) O criador é quem
eles mais odeiam (...) os bons, com efeito – não podem criar: são sempre o
começo do fim - Crucificam aquele que escreve novos valores em novas
tábuas, sacrificam a si mesmos o futuro- crucificam todo o futuro dos
homens! Os bons- sempre foram o começo do fim (NIETZSCHE, 1994,
p.219. Grifo do autor).

Desta maneira, ao crucificarem o futuro, os “bons” são o perigo para o futuro


dos homens, pois “apagam” do horizonte, com a imagem de seu Deus, o movimento de
superação pela vontade criadora. A Lição de Zaratustra do além do homem é de que
com a morte deste princípio inercial e conservador chamado Deus se poderia, pela
vontade criadora, estabelecer o movimento de superação do homem. Esta passagem da
conservação como critério da vida para a superação em nome do além do homem é

44
explicitada em muitos momentos, mas exemplarmente quando Zaratustra, “Nas ilhas
bem aventuradas”, chama a partir de um novo sentido o homem criador para sua
aventura: “Dizia-se ‘Deus’, outrora, quando se olhava para mares distantes: Mas, agora,
vos ensino a dizer: Além do homem. Deus é uma suposição, mas quero que o vosso
supor não vá além de vossa vontade criadora” 100.

Zaratustra é, portanto, o porta voz do pathos Dionisíaco, entendido como o


princípio da vontade criadora, afirmadora do vir a ser e do porvir. A vontade criadora é,
portanto, o critério e a medida que o protagonista anuncia não mais a qualquer homem
(o homem do povo), mas aos seus discípulos e amigos. Deste modo, somente pela
criação de novos valores, pelo parto e dores do parto tornar-se-ia possível a superação
em nome do além do homem. Zaratustra é o anunciador do além do homem, porque é o
porta voz de Dioniso; por isso ele só ama os espíritos criadores, aqueles capazes de
perecer muitas vezes em favor das grandes criações. Perecimento, para o renascimento,
não do mesmo, mas do outro. Neste sentido, o sofrimento para o criador é um estímulo
intrínseco toda a criação que possibilita o surgimento do inaudito.

1.5 Último homem: O porvir do homem sem porvir

Busquei ao longo deste capítulo refletir acerca das avaliações de Zaratustra sobre
o tempo e o homem. Para tanto, discorri essencialmente sobre a noção de além do
homem, que aparece relacionada a um elogio e uma reflexão sobre o valor do porvir e
da criação. Também ponderei para quem Zaratustra endereçava, no prólogo, o anúncio e
a lição do além do homem. No caso, como argumentei, o homem moderno. Nesta seção
busco refletir sobre o último homem, pois esta noção se articula fundamentalmente com
a lição do além do homem, e com a avaliação de Zaratustra acerca do “que pode o
homem”. Contudo, essa noção esteve muito próxima, por um lado como o tipo de
homem que, em Zaratustra, seria o oposto do além do homem, e por outro, como uma
antevisão do protagonista de um porvir possível do homem moderno. Se para Zaratustra
o homem deve ser superado, essa exigência não parte de uma constatação ontológica

100
NIETZSCHE, 1994, p.99.

45
acerca do homem, pois se há a possibilidade de sua superação, há também a de seu
“apequenamento”, como último homem.

Neste sentido, para o homem do povo, a lição do além do homem provoca


apenas risadas e gracejos, haja vista que, segundo Zaratustra, eles têm algo de que se
orgulham. Zaratustra, então, decide “falar-lhes ao orgulho”, e para isso apresenta o
último homem. Esta é sua constatação sobre o homem do povo (o homem moderno):

Possuem alguma coisa da qual se orgulham. Como chamam, mesmo, àquilo


que os torna orgulhosos: chamam-lhe instrução (...) Por isso ouvem com
desagrado, ao seu respeito, a palavra desprezo. Vou, portanto, falar-lhes ao
orgulho. Vou, portanto, falar-lhes do que há de mais desprezível: ou seja, do
último homem (NIETZSCHE, 1994, p. 33. Grifo do autor).

Para Zaratustra, por serem orgulhosos de sua instrução, os homens do povo não
podem ouvir sobre eles a palavra desprezo. Desprezo pode-se entender como
desvalorização. É possível inferir que a imagem do último homem, assim como o
apresenta Zaratustra, deveria provocar nos homens o sentimento de autodesprezo; eles
precisariam desprezar aquilo por que têm apreço (seus valores e a si mesmos), para que
pudessem vislumbrar o além do homem, e assim colocarem-se na dinâmica da
superação. Neste sentido, o último homem não é mera imagem fabulada (assim parece
pensar o povo a quem Zaratustra se dirige), mas o grande perigo do homem. Por isso, ao
apresentar a figura do último homem, Zaratustra previne:

Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem não mais arremessará a


flecha de seu anseio para além do homem e em que a corda de seu arco terá
desaprendido a vibrar! (...) Ai de nós! Aproxima-se o tempo do mais
desprezível dos homens, que nem sequer saberá desprezar-se a si mesmo.
Vede! Eu vos mostro o último homem (NIETZSCHE, 1994, p. 34).

O aproximar-se desse tempo indica a proximidade que o homem do povo tem


com o último homem, isto é, ele está muito próximo, no caminho de torna-se o mais
desprezível. O mais desprezível, afirma Zaratustra, é o homem que é incapaz de
desprezar-se, porque para ele não há sentido na superação, ele não pode mais superar-se.
Retomando o começo do capítulo, a partir da pergunta “o que pode o homem?”,

46
procurei acentuar uma dimensão do homem entendendo-o como possibilidade de
superação. Neste sentido, a palavra possibilidade indicaria uma relação com a
importante noção nietzschiana de vontade de poder. Com a apresentação do último
homem, Zaratustra mostraria outra possibilidade do homem.

Neste sentido, o grande perigo para o homem, alertaria Zaratustra ao apresentar


o último homem, seria ele não mais “poder querer” superar-se. O homem tornar-se-ia
desértico, ou seja, pura infertilidade. Zaratustra adverte que:

Já é tempo de o homem estabelecer a sua meta. Já é tempo de o homem


plantar a semente de sua mais alta esperança. Seu solo ainda é bastante rico
para isso. Mas, algum dia esse solo estará pobre e esgotado, e nenhuma
árvore poderá crescer nele (NIETZSCHE, 1994, p.33).

101
Nesta direção, penso que nessa “meta” (e esperança) está subsumida a ideia
do além do homem. Mas o homem do povo no porvir de tornar-se último homem
autocompreende-se como meta (no sentido de finalidade, objetivo), eis o perigo de seu
orgulho. Pode-se então conceber o último homem como o homem que satisfeito
consigo, deseja apenas sua conservação. Se superação, como já foi colocado, só é
realizável através da criação, que é também um ato de destruição, pode-se entender que
o desprezo requerido por Zaratustra ao homem permitiria a destruição dos valores,
demasiadamente humanos, dos quais ele se orgulha, e que lhe impedem de ir além de si.
Para que o homem pudesse superar-se seria necessário o desprezo, pois não haveria
superação sem desprezo, assim como não há criação sem destruição. Neste sentido,
entende-se a afirmação de Zaratustra quando este diz que “ama aqueles que são
desprezadores, porque são os grandes veneradores e flechas do anseio pela outra
margem.” 102

Pode-se também argumentar que o último homem é o homem incapaz de sofrer:


103
“‘Inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, piscando o olho” . Este é
então o seu refrão, sua máxima. “Cheio de si”, orgulhoso de sua invenção, ele é o
101
Meta, neste sentido, não equivaleria a um princípio teleológico. Já que o além do homem como
argumento é algo inalcançável, perfazendo muito mais cada movimento de superação de si.
102
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 32.
103
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 34.

47
antípoda do criador que tem no sofrimento, inclusive, um estímulo para a criação. No
último homem não há, portanto, o “instinto fundamental da vida, o instinto de vida
futura”, que como visto se relaciona fundamentalmente com criação e superação. Nesta
direção, Heidegger, pensando em torno do último homem, argumenta:

Antevendo tudo isso desde longe, a partir do mais elevado posto, Nietzsche,
já nos anos 80 do século anterior, pronuncia para tanto a palavra simples,
porque pensada: "O deserto cresce". Isso quer dizer: a devastação é mais
sinistra do que o aniquilamento. A destruição elimina apenas aquilo que até
então cresceu e foi construído. A devastação, porém, impede o crescimento
futuro e todo construir... (HEIDEGGER, 1984, p. 30“apud GIACÓIA, 1999.
Grifo meu).

Também, com o último homem, paradoxalmente, o homem “torna-se eterno” -


ele está a “salvo eternamente” de todo sofrimento sob a chancela de sua felicidade. O
último homem instauraria assim “o paraíso na terra”, o que aos olhos de Zaratustra é a
desertificação e o apequenamento da terra e do homem. No sentido oposto, Nietzsche
assinala no fragmento de número 313 do livro a vontade de potência: “A preocupação
de si mesmo e de sua “salvação eterna” não é expressão de uma natureza rica e segura
de si: pois esta pouco se preocupa em ser salva – não tem interesse pela felicidade, de
qualquer natureza”.104

Nesta perspectiva, o último homem teria na “vontade de conservação” seu


instinto dominante; nele, a “lógica do mesmo” seria encarnada em sua máxima força.
Dessa maneira toda diferença, todo porvir outro é necessariamente excluído, pois “todos
querem o mesmo, todos são iguais; e quem sente de outro modo vai voluntário para o
105
manicômio” . Tudo que é grande no homem para Zaratustra (ser transição e ocaso,
isto é, superar-se) no último homem se apequena. Se o além do homem é para
Zaratustra o sentido da terra, com o último homem, diz Zaratustra: “A terra então
tornou-se pequena e nela anda aos pulinhos o último homem, que tudo apequena. Deste
modo, pode-se afirmar que ele é o tipo antípoda, por excelência, do além do homem.

Como já mencionado anteriormente, o homem do povo a quem fala Zaratustra seria o


homem da modernidade, mas em parte esse também seria caricaturado pela figura de

104
Cf. NIETZSCHE, 1983, p.320. Grifo meu.

105
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 34.

48
último homem; o último homem pode ser entendido como culminância do homem
moderno. Nesta direção, Oswaldo Giacóia (1999) em seu artigo “O último homem e a
técnica moderna” argumenta:

Essa figura do homem moderno, Nietzsche o caricaturiza na imagem do


"último homem". Este é o homem do rebanho e da pacífica felicidade das
verdes pastagens. O tipo do último homem, para Nietzsche, determina a
verdadeira meta da pequena política, porque nele se torna vitoriosa a
tendência moderna à mediocrização dos feitos e ideais humanos (GIACÓIA,
1999, sem paginação).

Neste sentido. O último homem pode ser entendido pela medida do


apequenamento: pequeno é o adjetivo que acompanha suas ações e avaliações, pequena
política, mas também, pequena saúde, pequena felicidade, pequena razão, enfim, com
ele toda a terra torna-se pequena. Por isso, os últimos homens são caracterizados por
Zaratustra da seguinte maneira:

‘Inventamos a felicidade’- dizem os últimos homens, piscando o olho.


Abandonaram as regiões onde era duro viver: porque o calor é
necessário. Cada qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega: porque o
calor é necessário. Adoecer e desconfiar é pecado para eles: deve-se
andar com toda atenção. Um tolo, quem ainda tropeça em pedras ou
homens! De quando em quando um pouco de veneno: gera sonhos
agradáveis; e muito veneno, no fim, para um agradável morrer. Ainda
trabalham, porque o trabalho é um passatempo. Mas cuidam que o
passatempo não canse. Mais ninguém torna-se rico ou pobre: por demais
penosas são ambas as coisas. Quem ainda deseja governar? Quem ainda
obedecer? Por demais penosas são ambas as coisas. Nenhum pastor e um
só rebanho. (...) “Outrora todo mundo era doido” – dizem os mais sutis,
piscando o olho. São inteligentes e sabem tudo o que aconteceu: assim
sua chacota não tem fim. Zangam-se, ainda, mais logo reconciliam-se –
para não estragar o estômago. Têm seus pequenos prazeres para os dias e
seus pequenos prazeres para a noite, mas respeitam a saúde. ‘Inventamos
a felicidade’- dizem os últimos homens, piscando o olho. (NIETZSCHE,
1994, p.34).

Portanto, pode-se entender o último homem como o homem sem um sim e um


não106, isto é sem poder de avaliação. Por isso, para ele, destruir, criar e superar não tem
sentido - “por demais penosas são ambas as coisas”. Penoso denota aquilo que causa
desconforto, sofrimento. Desse modo, a felicidade inventada pelo último homem pode

106
Sobre o que para si é a felicidade, no crepúsculo dos ídolos, Nietzsche diz: “Fórmula de minha
felicidade: um sim, um não, uma linha reta, um objetivo...” Cf.: NIETZSCHE, 1976, p.15.

49
ser compreendida como uma proteção contra o sofrimento, que como já vimos é
inerente a toda a vida criadora; sua felicidade nasce, portanto, de sua fraqueza frente à
vida.

Nesse sentido, para ele também não há pathos da distância, pois “todos querem o
mesmo, todos são iguais” e “cada qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega: porque o
calor é necessário”. Esta é a tirania do último homem, “homem de rebanho”, para ele
todos devem ser o mesmo e querer o mesmo. A expressão o mesmo quer dizer o pouco,
o fraco, o medíocre, o pequeno. A nivelação pelo mesmo, pelo pequeno não se restringe
apenas aos homens, pois a terra também “torna-se pequena”. Por isso adverte
Zaratustra, antes de apresentar o último homem: “algum dia, esse solo estará pobre e
esgotado, e nenhuma arvore poderá crescer nele”. Portanto, o último homem é o homem
107
que carrega desertos - “O deserto cresce, ai daquele que oculta desertos!” , diz
Zaratustra; Ou seja, ele é em oposição à figura do criador, estéril. Assim, a pergunta do
último homem exposta por Zaratustra denunciaria sua esterilidade: “Que é amor, que é
criação, que é anseio? Que é estrela? - assim pergunta o último homem, piscando o
olho.” 108

Após apresentar o último homem ao homem do povo, Zaratustra é interrompido


pelos homens do povo que reagem a seu ensinamento com algazarra e júbilo, gritando:
“Tranforma-nos nestes últimos homens! E nós te damos de presente o além do homem!
109
E o povo todo soltava gritos de alegria e fazia estalar a língua” . Se, como
considerado por Zaratustra, o homem do povo tem na razão (instrução) seu orgulho,
então pode-se depreender que este é demasiado próximo dos últimos homens, pois sobre
estes fora dito que “são inteligentes e sabem tudo que aconteceu: assim sua chacota não
tem fim.” Sua reação ao ensinamento de Zaratustra realça esta interpretação. Não se
reconhecendo na imagem narrada por Zaratustra, o homem do povo já se mostra incapaz
do desprezo que o projetaria no sentido de sua auto-superação.

Nietzsche, no Anticristo (2006), de modo sintético e lapidar, avalia:

107
NIETZSCHE, 1994, p. 306.
108
NIETZSCHE, 1994, p.34.
109
NIETZSCHE, 1994, p.35.

50
O que é bom? - Tudo aquilo que desperta no homem o sentimento do poder, a
vontade de poder, o próprio poder. O que é mau? - Tudo o que nasce da
fraqueza. O que é felicidade? A Sensação de que o poder cresce, uma
resistência foi vencida (NIETZSCHE, AC, §2).

Nesta perspectiva, o ensinamento do além homem pode ser entendido como uma
tentativa de Zaratustra despertar no homem do povo o sentimento de poder superar-se;
já o último homem, nascido de uma fraqueza na perspectiva de Zaratustra, soaria como
uma advertência ao porvir do homem moderno, que com seus valores demasiadamente
humanos, rumaria em direção ao apequenamento da vida. O último homem seria então o
homem sem porvir, sem futuro.

Ao final dos discursos acerca do Além do homem e do último homem, dá-se


uma cena que o homem do povo já esperava, o funâmbulo começa a caminhar em sua
corda, mas para a surpresa do povo aparece um tipo, “todo sarapintado a modo de um
palhaço” dizendo:

Para frente, perneta (...) Que fazes aqui, entre torres? Dentro da torre é o teu
lugar. É lá que deveriam trancar-te, a ti que impedes a passagem de alguém
melhor que tu! E, a cada palavra, mais se aproximava do outro; quando,
porém, se achou somente um passo atrás dele, aconteceu a coisa horrível (...)
Soltou um grito diabólico e pulou por cima daquele que lhe estorvava o
caminho. Este, ao ver, assim o rival triunfar, perdeu a cabeça e o pé; deitou
fora a maromba e, mais depressa do que esta, num remoinho de braços e
pernas, despencou no vazio (NIETZSCHE, 1994, p.36).

Esta cena é a dramatização de uma afirmação importante de Zaratustra, já


referida anteriormente, e que procurei ter como princípio para a composição deste
capítulo:

O homem é uma corda estendida entre o animal e o além do homem – uma


corda sobre o abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho,
o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. (NIETZSCHE, 1994,
p.29).

Zaratustra refletindo posteriormente esta cena reflete consigo:

Assombrosa é a existência humana e ainda sem qualquer sentido: pode um


palhaço tornar-se-lhe fatal. Quero ensinar aos homens seu sentido de ser: que
é o além do homem (...) (NIETZSCHE, 1994, p.37).

51
Bastante tempo depois no percurso da personagem, na terceira parte de
Zaratustra em “Das velhas e novas tábuas”, o protagonista ainda reflete sobre
esta cena:

Tal como um sol, também Zaratustra quer ver seu ocaso: agora, está aqui
sentado à espera, rodeado de velhas tábuas partidas, e também de novas
tábuas – escritas pela metade. Eis uma nova tábua; mas onde estão os meus
irmãos que a levem comigo pela vale e aos corações dos homens? (...) O
homem é algo que deve ser superado. Muitos caminhos há e modos de
superá-lo: a escolha cabe a ti. Mas somente um palhaço pensaria: “Pode-se
também pular por cima do homem” (NIETZSCHE, 1994, p.204).

Esta lição Zaratustra parece guardar em seu coração. Neste sentido, ele pergunta
incessantemente pelo que pode ser o homem, pensando, ansiando por auroras que ainda
virão...

Acredito que ao desenvolver a questão proposta, isto é, da pergunta pelo tempo


através do que pode ser o homem para Zaratustra, tenha sido apontada sua relação com
o projeto nietzschiano de crítica a modernidade, e em um sentido mais amplo, a tradição
metafísica. Este projeto não poderia ser realizado, penso, sem uma avaliação por parte
de Nietzsche do que pode ser o homem, que, como visto através de seu Zaratustra não
se separa de uma avaliação da temporalidade e de um elogio ao porvir. Assim nem
homem, nem tempo são, pois, avaliados em um sentido moral, como o faz a tradição
metafísica, mas a partir da noção de vontade de poder como vida que criando supera-se.
Portanto, além do homem seria a dimensão sempre futura que Zaratustra intenta ensinar
aos homens, prevendo, por já ver o enfraquecimento e empobrecimento do homem no
porvir de tornar-se último homem, o homem sem mais porvir que operaria
fundamentalmente pela “lógica do mesmo”. Penso que desenvolvidos esses pontos, o
problema levantado acerca do tempo em uma perspectiva nietzschiana torna-se mais
determinado e relevante. Nesta direção, pretendo desenvolver os elementos
fundamentais para se pensar uma filosofia, sobretudo, criadora e liberadora de novos
porvires.

52
Capitulo II- O problema do passado e dos valores morais

2.1 - Dos “espíritos” em Zaratustra

No capítulo anterior procurei desenvolver a problemática proposta em torno do


tempo na obra Assim falou Zaratustra partindo de alguns acenos presentes
principalmente em certas passagens da primeira parte do livro. Este problema assim
como foi desenvolvido ganhava potência através da reflexão conjunta do “que pode ser
o homem” para Zaratustra e a relação deste “poder ser” com a dimensão do futuro:

53
dimensão temporal que aparece como privilegiada na primeira da parte da obra, pois
abriria a possibilidade de superação para o homem (moderno) na iminência e perigo de
tornar-se o último homem, o homem sem porvir. Neste sentido foi apontado um elogio
de Zaratustra-Nietzsche em relação à dimensão do futuro que se vincula, como
sublinhei, com algumas importantes temáticas presentes em suas obras, tais como o
pathos criador dionisíaco e a noção de vontade de poder.

Neste segundo capítulo aprofundo e desenvolvo a relação “existencial” já


assinalada entre homem e tempo com o intento de acompanhar outras perspectivas (e
valorações) de Zaratustra que se mostram como fundamentais para problematizar certas
noções do tempo e refletir sobre a importância desta temática no desenvolvimento do
enredo Zaratustra como uma gênese do eterno retorno. Para tal, neste capítulo procuro
desenvolver esta direção levando em consideração certas “estruturas” do homem se
relacionariam com a temporalidade, e isto a partir das noções de “metamorfoses do
espírito” e do “espírito de gravidade” e de “memória” e “esquecimento”110.

Se no primeiro capítulo procurei refletir sobre um elogio da dimensão do futuro,


que aparece, não apenas, mas fundamentalmente na primeira parte de Zaratustra, por
esta se ligar ao anúncio do além do homem, procurarei neste segundo capítulo me deter
sobre o problema do passado a partir de um redimensionamento da problemática da
“vontade de criar” 111. Para tal, os capítulos “Das três metamorfoses” e “Do espírito de
112
gravidade” tornam-se eixo fundamental para o desenvolvimento deste segundo
momento. No primeiro livro de Zaratustra, na seção que narra as três metamorfoses, a
personagem apresenta sua perspectiva de espírito, que atravessaria três momentos
singulares: de camelo à leão e de leão à criança. Desses três momentos, dois se
relacionam explicitamente com uma quarta figura o dragão chamado “Tu deves”. Ao
longo do desenvolvimento deste capítulo examino a importância desta última figura e
sua relação com o passado.

110
Assinalo que o uso das aspas em esquecimento e memória aponta para um afastamento e um
deslocamento crítico da noção tradicional dos mesmos propostas pelo autor.
111
A noção de vontade de criar está presente no capítulo intitulado “Da redenção” e se articularia com a
noção de vontade de poder, porém enfatizando o aspecto da criação de valores.
112
Estes capítulos aparecem sucessivamente na primeira e na terceira parte do livro, porém assinalo que
foi a partir da leitura do capítulo “Da redenção”, na segunda parte de Zaratustra, que o problema do
passado tornou-se uma “chave de interpretação” para os outros dois capítulos. O capitulo “Dá redenção”
será examinado na terceira parte desta dissertação.

54
Porém, o que vem a ser o “espírito” das metamorfoses? Para Zaratustra o
“espírito” não é uma dimensão estável e fixa e tão pouco eterna e imutável, assim como
comumente é caracterizada pela tradição metafísica. Esta última seria perpassada e
fundada por uma lógica da identidade, da essencialidade e do fundamento, onde o
espírito seria entendido como algo que coincidiria identitariamente consigo mesmo. De
outro modo, para Zaratustra, o espírito seria dinâmico, diferenciando-se de si a cada
momento de sua metamorfose. Nesta direção, busco interpretar a dinâmica do “espírito
das metamorfoses” e sua relação e diferença com o espírito de gravidade que guardaria
afinidade com a interpretação de espírito da tradição metafísica.

O espírito de gravidade como é apresentado em diversas passagens parece ser o


oposto ao que Zaratustra expõe como sendo “seu” espírito enquanto um espírito que
sofre metamorfoses. O espírito de gravidade é anunciado por Zaratustra como seu
inimigo mortal, assim no capítulo intitulado “Do espírito de gravidade” a personagem
afirma: “E especialmente que eu seja inimigo do espírito de gravidade é modo de ser de
ave; e na verdade, inimigo ferrenho, inimigo mortal e inimigo nato!” 113. Nesta direção
torna-se necessário interpretar o que vem a ser o espírito de gravidade para
compreender o que faz com que este seja digno de ser adversário de Zaratustra.

Este “espírito” pode ser caracterizado a partir de sua relação com o peso
imobilizador dos valores morais que impossibilitariam o movimento de superação e
criação. O espírito de gravidade teria seu representante principal na figura do anão,
porém outras figuras parecem de certa maneira representá-lo, tais como o palhaço que
derruba o funâmbulo no prólogo e o dragão das três metamorfoses. Todos de certa
maneira seriam configurações do espírito de gravidade, gravidade que se relaciona com
certo “peso” e desta maneira inimigos a serem enfrentados por Zaratustra como aquele
que “promoveria” o sentido da terra enquanto a leve114. Como espíritos da gravidade
estes parecem fixar o homem e seus valores na imobilização do grave, do pesado e do
sério115 impossibilitando a dinâmica das metamorfoses que por sua vez se relaciona ao
movimento da superação do homem. Justamente esta configuração do homem

113
Cf. NIETZSCHE P.98.
114
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.199.
115
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.198

55
determinada pelo espírito de gravidade seria para Zaratustra-Nietzsche um modo de
existência baixo, fraco, “pequeno e apequenador”.

Há, portanto, uma questão de medida e pesagem de valores, por um lado valores
pesados e graves e neste sentido imóveis e imobilizadores que seriam tomados como
fundamentais e fundados “desde sempre” como se fossem eternos, e por outro, a criação
de valores que se lançariam e se movimentariam no tempo. Se há um elogio à criação de
valores em Zaratustra este estaria ligado ao que é “transitório” 116 e ao ato do criador que
criaria “o novo”. Entretanto segundo Nietzsche toda criação teria um aspecto destrutivo,
como visto no primeiro capitulo, e é justamente no sentindo da uma destruição
necessária a toda criação que no capítulo “Do espírito de gravidade” Zaratustra
determina sua tarefa: “Quem um dia, ensinar os homens a voar, terá deslocado os
marcos da fronteira; as próprias fronteiras, terão ido pelos ares para ele, que batizara de
novo a terra – como “a leve” 117. Nesta direção, o próprio sentido da terra anunciado no
prólogo é recolocado em relação ao peso ou a leveza, peso e leveza tornam-se medidas
fundamenteis para a avaliação de Zaratustra que se coloca no sentido da superação do
homem.

Portanto, a tarefa de Zaratustra e daqueles que promoveriam a superação do


homem seria deslocar “fronteiras”. “Fronteiras” interpreto no sentido das marcas e
marcos que determinariam desde o passado ou “desde sempre” a medida da vida, dos
valores e do próprio homem e desta maneira demarcariam lugares fechados nos quais os
homens não poderiam ver e ir além do já determinado. Portanto, as fronteiras atuariam
como marcas que fixariam o lugar do homem a partir da qual estes avaliariam em ultima
instância a vida. Em um parágrafo da Gaia ciência (1882) Nietzsche se utiliza uma vez
mais da expressão “marcas das fronteiras”:

Até agora foram os espíritos mais fortes e maus que fizeram a humanidade
avançar mais longe (...) O novo é, em todas as circunstancias, o mau, aquilo
que deseja conquistar, lançar por terra as antigas marcas de fronteiras e as
velhas piedades; e somente o antigo é bom! Os homens bons de cada época
são os cavam fundo nos velhos pensamentos e os fazem dar frutos, os
lavradores do espírito. Mas todo terreno se esgota enfim, e o arado do mal
precisa sempre retornar” (NIETZSCHE, GC, § 4).
116
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.100.
117
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.199.

56
Desse modo, somente os “maus” poderiam criar “o novo”, “o novo” mesmo
seria “o mau”, que conquistaria e lançaria por terras antigas marcas de fronteiras
delimitadoras. “Os maus” abririam espaço para o novo ao “lançar por terra” as marcas
das fronteiras e neste sentido abalariam a segurança das fronteiras nas quais se
conduziriam aqueles que apenas poderiam se conservar dentro de velhas fronteiras. Para
estes que apenas querem se conservar o “bom” só poderia ser o antigo, passado,
conhecido e reconhecido. Também para estes “os homens bons” seriam aqueles que
escavam fundo nos velhos e antigos pensamentos, desde um “movimento inercial”,
atraídos pelo peso de seus espíritos ao fundo. Desta maneira, eles se relacionariam e se
afinariam com o espírito de gravidade, de modo que apenas cavam fundo na terra e
também no profundo dos velhos pensamentos em um movimento de perpétua
conservação do mesmo.

Particularmente em “Do espírito de gravidade” as “fronteiras demarcadoras” se


referem aos valores morais que determinariam os homens desde seu nascimento:
“Quase ainda no berço, já nos dotam com graves palavras e valores: ‘bem” e ‘mal “-
118
assim se chama esse dote” . Neste sentido desde o “princípio” seriamos marcados por
estes antigos e graves valores morais como “pesados fardos” que vem desde antes (do
passado) ou “desde sempre” como valores eternos. Portanto, o espírito de gravidade
guardaria uma relação específica com a temporalidade ao encarnar valores (e também
um modo e modelo de avaliação) que ao longo do tempo tornaram-se sólidos,
petrificados e que dariam o peso e a medida de todas as coisas. Valores que foram
compreendidos como imutáveis e fixos, tornando-se valores fundamentais que não
poderiam ser passíveis de questionamento e problematização, justamente porque
determinariam “desde sempre” e desde “o fundo” (do fundamento) o horizonte da
medida avaliativa de todas as coisas. Nesta direção, penso ser imprescindível refletir
sobre a relação do “espírito de gravidade” com a atividade do conhecimento, pois o
próprio questionar e problematizar seriam pela perspectiva do espírito de gravidade
algo “mau”, Assim, Nietzsche exporia uma relação entre certo modo de conhecimento e
a imutabilidade e petrificação do espírito de gravidade:

Uma reputação sólida costumava ser extremamente útil; e onde quer que a
sociedade continue a ser dominada pelo instinto de rebanho, é ainda muito
118
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.199. Grifo meu.

57
conveniente, para cada indivíduo, fazer com que seu caráter e sua ocupação
sejam tidos por imutáveis- mesmo que no fundo não o sejam (...) Tal
avaliação que em toda parte floresce e floresceu juntamente com a
moralidade dos costumes, educa o “caráter” e difama toda mudança, toda
reaprendizagem e transformação em si ! (...) Quanto ao conhecimento: ... Por
maior que seja a vantagem deste modo de pensar, para o conhecimento ele é
a mais nociva espécie de julgamento em geral: pois ai é condenada e
difamada a disposição que tem o homem de conhecimento para, de maneira
intrépida, declarar-se a qualquer momento contra sua opinião prévia e ser
desconfiado em relação a tudo o quem em nós quer se tornar sólido. A atitude
do homem do conhecimento, ao contradizer a reputação sólida é vista como
desonrosa, ao passo que a petrificação das opiniões tem o monopólio das
honras: sob o sortilégio de tais valores temos que viver ainda hoje! E é difícil
viver, quando se sente o juízo de muitos milênios contra si e em volta de
si...”(NIETZSCHE, GC, §296. Grifo meu).

Se como interpreto essa passagem pode ser interpretada a partir dos


significantes “sólido”, “petrificação” e “imutáveis” como uma referência ao “espírito de
gravidade”, então este “espírito” liga-se definitivamente ao território da moral (e da
moralidade dos costumes) que recebemos da “sociedade” como herança e tábua do bem
e a mal. É neste sentido que o espírito de gravidade manteria profunda relação com o
instinto de rebanho que promove e precisa promover apenas a conservação e a
identidade do próprio rebanho. E por isso seria próprio a todo “rebanho” difamar “toda
mudança, toda reaprendizagem e transformação em si” porque estaria imbuído de juízos
milenares afinados com a gravidade do espírito de gravidade e, portanto, marcado pelo
peso da sedimentação de valores tornados sólidos e pétreos. É neste sentido que o
espírito de gravidade pode ser entendido como o contraposto do espírito das
metamorfoses, mas o contraposto parece ser não o de uma separação absoluta, mas sim
uma tensão que procuro interpretar como a tensão entre as forças ativas (e criadoras) e
as reativas (e conservadoras). Esta parece ser a dinâmica da relação de inimizade entre
Zaratustra e a o anão e os outros personagens que encarnariam o espírito de gravidade.
Nesta mesma dinâmica relacional compreendo a presença do dragão chamado “Tu
deves” na metamorfose do espírito. Desse modo, cabe perguntar se o dragão aparece
como mero elemento externo ou se ele é uma presença constituinte e necessária das
metamorfoses.

No capítulo intitulado “Das três metamorfoses”, o dragão encarnaria de maneira


exemplar o espírito de gravidade, pois nele escamas com “valores milenários
119
resplendem...” . Esta caracterização ressoa a passagem supracitada da Gaia ciência
119
NIETZSCHE, 1994, p.44.

58
que diz que é difícil viver “quando se sente o juízo de muitos milênios contra si e em
volta de si...”. Como um dragão, suas escamas, seu tamanho e seu peso representariam a
solidificação pétrea dos valores e deveres determinadores da vida que impediriam a
passagem e abertura para o novo, para a criação (e destruição) de valores. Torna-se,
portanto, necessário avaliar a relação dos “espíritos da metamorfose” com o dragão
enquanto a encarnação da presença do espírito de gravidade na própria dinâmica do
espírito que vem a ser através das metamorfoses.

2.2 Sobre o espírito de suportação e o último homem

O camelo, o primeiro movimento das metamorfoses do espírito assim é


descrito por Zaratustra:

“O que há de mais pesado, ó heróis”, pergunta o espírito de suportação, para


que eu tome sobre mim e minha força se alegre? Não será isto: humilhar-se
para magoar o próprio orgulho? Fazer brilhar a própria loucura, para
encanecer da própria sabedoria? Ou será isto: apartar-se da nossa causa
quando ela celebra o seu triunfo? Subir para altos montes, a fim de tentar o
tentador? Ou será isto: alimentar-se das bolotas e da erva do conhecimento e,
por amor à verdade, padecer fome na alma? Ou será isto: estar enfermo e
mandar embora os consoladores e ligar-se de amizade aos surdos que não
ouvem nunca o que queremos? Ou será isto: entrar na água suja, se for a água
da verdade, e não enxotar de si nem as rãs frias nem os ardorosos sapos. Ou
será isto: amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma, quando
ele nos quer assustar Todos esses pesadíssimos fardos toma sobre si o espírito
de suportação; e, tal como o camelo, que marcha carregado para o deserto,
marcha ele para o próprio deserto. (NIETZSCHE, 2008, p. 52).

Portanto, o camelo teria a alegria de sua força na suportação de cargas pesadas.


Mas como se pode descrever e interpretar a carga que pesa sobre suas costas? O camelo

59
não pede nada de material, concreto, mas o que pesa, o pesado pode ser interpretado
como o peso dos valores, sua carga seriam valores que pesam. Mas que valores estariam
em jogo? É após a fala de Zaratustra aos homens da praça sobre o último homem e
seus valores que são narradas as metamorfoses do espírito, o que indicaria uma
aproximação contextual entre o anúncio do último homem, homem sem porvir e as
metamorfoses do espírito. Zaratustra pretende falar ao orgulho 120 dos homens da praça
(do povo), na esperança que possam superar-se, pois estariam na iminência e perigo de
tornarem-se os últimos homens. Retomo a descrição de Zaratustra do último homem já
analisada, em outra perspectiva e contexto, no primeiro capítulo:

Aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, que nem sequer


saberá mais desprezar-se a si mesmo. Vede eu vos mostro o último homem
“‘Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela? – assim pergunta
o último homem, piscando o olho... ‘Inventamos a felicidade’ –dizem os
últimos homens, piscando o olho... Abandonaram as regiões onde é duro
viver, porque o calor é necessário. Cada qual ama o vizinho e nele se esfrega:
porque o calor é necessário. Adoecer e desconfiar é pecado, para eles, deve-
se andar com toda atenção... De quando em quando um pouco de veneno:
gera sonhos agradáveis... Ainda trabalham, porque o trabalho é um
passatempo. Mas cuidam de que o passatempo não canse... Quem ainda
deseja governar? Quem, ainda, obedecer? Por demais penosas são ambas as
coisas. Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são
iguais... São inteligentes e sabem tudo o que aconteceu... Têm seus pequenos
prazeres para o dia e seus pequenos prazeres para a noite... ‘Inventamos a
felicidade’ –dizem os últimos homens, piscando o olho. (NIETZSCHE, 1994,
p. 34).

Por sua visão Zaratustra seria capaz de prever a instauração do último homem.
O homem já estaria demasiado próximo de torna-se o mais desprezível dos homens, ou
seja, o homem incapaz de desprezar. Entretanto, sublinho, sobre o camelo é dito
primeiramente que o mais pesado fardo para ele é “humilhar-se, para magoar o próprio
orgulho”. Ora, a força do camelo estaria justamente em tomar como tarefa aquilo que o
homem orgulhoso de si, o homem moderno121 em sua proximidade com último homem,

120
Zaratustra refletindo sobre a reação do povo que não compreendem o anúncio do além do homem,
decide então falar-lhes do último homem, mas estes, diz Zaratustra “possuem alguma coisa do qual se
orgulham. Como chamam mesmo, àquilo que os tornam orgulhosos? Chama-lhe instrução... Por isso
ouvem com desagrado a palavra ‘desprezo’. Vou portanto fala-lhes ao orgulho. Vou portanto falar-lhes do
que há de mais desprezível: ou seja, do último homem.” Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 33)
121
A identificação entre o homem da praça á quem se dirige Zaratustra e o homem moderno é explicitada
por Roberto Machado no livro “Zaratustra, tragédia nietzschiana”. Cf. Pags. 63-65.

60
não poderia realizar, isto é, magoar o próprio orgulho, ao desprezar os valores que os
determinam para assim se superar.

Tudo aquilo que faz a pequena felicidade dos últimos homens que dizem
“inventamos a felicidade”, “adoecer e desconfiar é pecado” e que “são inteligentes e
sabem tudo o que aconteceu”, em suma sua felicidade, saúde, sabedoria, sua causa
triunfante seria colocado em “suspensão” pelo espírito de suportação. O espírito do
camelo seria aquele capaz de desprezar os valores do último homem e isto por carregá-
los em si, mas em um movimento de distanciamento. Neste sentido, o que há de pesado
e que se impõe como tarefa o camelo é como dito em “Das três metamorfoses”, entre
outras passagens: “humilhar-se para magoar o próprio orgulho”, “apartar-se da nossa
causa quando ela celebra o seu triunfo”, “mandar embora os consoladores que
envenenam ainda mais a saúde”. Aquilo que o camelo pede como fardo se mostra então
como oposto, mas em tensa relação com valores dos últimos homens, e ao apartar-se do
“rebanho” o camelo cumpriria um primeiro passo na superação destes valores. O
camelo assumiria sobre si o fardo dos valores dos homens da praça, mas para que possa
desta maneira deslocá-los, justamente ao estabelecer para si outros valores para além
dos valores dos últimos homens, pois ao convocar os heróis a dizer-lhe quais são os
valores (os pesados fardos) ele estaria colocando em tensão os valores estabelecidos e
vigentes. Desta maneira o afastamento do camelo pode ser compreendido como um
tomar certa distância dos valores constituídos, os valores do rebanho (do homem do
povo) em direção a sua solidão (seu deserto). Este distanciamento do camelo em relação
ao rebanho e seus valores pode ser entendido como o distanciamento do andarilho,
assim como descrito por Nietzsche na Gaia ciência:

Para uma vez olhar de longe a nossa moralidade européia, para medi-la em
relação a outras moralidades, anteriores ou vindouras, para isso deve-se fazer
como andarilho que quer saber quão altas são as torres de uma cidade: ele
abandona cidade. “Reflexões sobre os preconceitos morais”, se não
quisermos que sejam preconceitos sobre preconceitos, pressupõe uma
posição fora da moral, algum ponto além do bem e do mal, ate o qual temos
de subir e escalar, e voar, e no caso presente, de todo modo um além de nosso
bem e mal, uma liberdade de toda a “Europa”, entendida essa como uma
soma de imperiosos juízos de valor, que nos foram transmitidos na carne e
no sangue. O fato de querermos ir para fora, para cima, é talvez uma pequena
loucura, um insensato e peculiar “Tu deves”- pois também nos homens de
conhecimento, temos nossa idiossincrasia da “vontade cativa” – a questão é
se realmente podemos ir lá para cima! Isso pode estar ligado a múltiplas
condições, no principal a questao é quão leves ou pesados somos, o

61
problema de nosso “peso especifico”- é preciso ser muito leve- a fim de
levar sua vontade de conhecimento a uma tal distância e como que acima do
seu tempo, a fim de criar para si olhos que abarquem milênios (...). É preciso
haver se livrado de muita coisa que justamente a nos europeus de hoje,
oprime, inibe, detêm, torna pesados. O homem de um tal além, que quer ele
próprio avistar as supremas medida de valor de seu tempo, necessita antes
“superar” em si próprio esse tempo – é a prova de sua força! (NIETZSCHE,
GC, §380. Grifo meu).

Enfatizo através dessa passagem que o deslocamento do camelo seria um tomar


distância dos valores morais que oprimem, inibem, detêm e tornam pesados os homens.
A distância para o espírito de suportação não seria objetiva, fria e neutra como a do
“filósofo contemplativo”, mas um tomar distância que suporta e “necessita antes
‘superar’ em si próprio esse tempo”. Neste sentido, pode-se compreender melhor a
passagem das “metamorfoses” que diz que “como o que há de mais sagrado amava ele,
outrora, o ´Tu deves´”: o amor do camelo ao “Tu deves” se relacionaria com o
“insensato e peculiar Tu deves” do andarilho que ao afastar-se conquista uma posição
singular para pesar os valores morais com uma medida própria. Seu deslocamento seria,
portanto, o movimento destes valores postos em tensão, seu apartar-se um ir além dos
valores triunfantes, ainda que carregue e os acolha junto de si. E isto para superar seu
próprio tempo, ou seja, os valores dos homens (modernos) que teriam sua gênese, como
já apontado no primeiro capítulo, não em uma separação radical com o passado da
tradição “metafísica-cristã”, mas a partir desse solo fundamental.

Esta seria também a tarefa de Zaratustra, assim como é colocado por Nietzsche
em uma anotação: “Zaratustra não quer perder nenhum passado da humanidade- fundir
122
tudo” . Deste modo, Zaratustra também precisaria para superar seu próprio tempo (a
milenar história da tradição “metafísica-cristã”) acolher os valores vigentes para medi-
los, pesá-los, e isto ele poderia fazê-lo por ter outras medidas cunhadas em suas solidões
e também por ser “leve”, isto é, não ser oprimido e tornado pesado por esses valores
vigentes. Portanto, Zaratustra também tem sua hora de espírito de suportação e imbuído
do espírito de camelo também quer (precisa) carregar e suportar o peso do passado. Este
movimento em direção “ao próprio deserto”, ou seja, à solidão, é um movimento
próprio de Zaratustra e constantemente retomado por ele justamente em momentos
122
Cf. HEIDEGEGR, 2002, p. 91.

62
cruciais em que necessita fazer uma pesagem e avaliação sobre aquilo que lhe aflige.
Nesse sentido Zaratustra, tal qual o camelo, não dispensa e pelo contrário, necessita para
“alegria de sua força” suportar pesos. Desse modo, no prólogo, Zaratustra carrega em
suas próprias costas o peso de um morto, mas ainda mais fundamental é que Zaratustra
carregue o anão em suas costas na subida da montanha aonde virá à luz o pensamento
do eterno retorno. O anão seria fundamentalmente a encarnação do peso dos valores,
dos valores tidos como imutáveis, um peso que não deixa avançar, que pode paralisar
todo movimento de elevação e superação. Zaratustra assim encarna o espírito de
suportação do camelo, ele mesmo quer e precisa para alegria de sua força carregar o
fardo, o pesado, mas para o alto, ou seja, em direção a superação dessa força que puxa
para baixo e paralisa. Neste sentido interpreta Günter Figal:

Diferentemente do funâmbulo no prefácio, Zaratustra não teme o espírito de


gravidade: ele o acolheu, ele o carregou- como um camelo- para o alto da
montanha, e ele sabe que o espírito de peso só exerce seu efeito onde um
peso é experimentado como pesado demais e quando se procura como o
funâmbulo, apenas ser leve, iludindo por si mesmo a força da gravidade.
(FIGAL, 2012, p. 226. Grifo meu).

Para superar o peso imobilizador dos valores “petrificados” em um primeiro


momento da metamorfose do espírito, é preciso essencialmente suportá-los. Neste
sentido, o pesado seria signo daquilo que tende para o estático, para baixo e pode assim
paralisar o movimento da vontade criadora de valores. Ora, só há criação de valores no
tempo, no abrir-se do horizonte do porvir. Por isso dragão e anão são ambos inimigos de
Zaratustra já que tendem a paralisar e aprisionar a vontade criadora. Também o último
homem como cumulação do homem moderno mantém uma relação essencial com o
espírito de gravidade: é justamente o tipo que está tomado, possuído e paralisado por
este e tal qual o anão tem a vista baixa, não pode olhar além, para além (de si). É o
homem que descobriu a felicidade, que está satisfeito consigo: para ele o homem é
aquilo que ele crê ser o homem e nada além, pois acredita ter alcançado o estágio
superior e último do ser do homem, assim que para além do progresso, de sua ciência,
sabedoria, felicidade e orgulho - não há nada. O último homem poderia então ser
compreendido como o fruto e cúmulo tardio da longa história da metafísica ocidental,
aquele que vive no presente de um passado velado para ele mesmo, das metamorfoses

63
da tradição platônica ao cristianismo, pois a “força” que o transpassa, ou ainda, o
instinto que o domina é nada mais que o instinto de conservação do mesmo. Para o
último homem o homem (tal como ele o compreende) é algo que deve ser conservado,
com isso a própria terra “tornou-se pequena e nela anda aos pulinhos o último homem,
que tudo apequena”123. Tudo apequena porque é ele mesmo pequeno, daí seu parentesco
e consanguinidade com o anão.

Ao fim de seu discurso sobre o último homem, no prólogo, Zaratustra entende


que os homens da praça, não o compreendem, pois dizem “dá-nos esses últimos
124
homens, ó Zaratustra!” , os homens não se reconhecem, são pequenos demais para
reconhecer-se e suportar a imagem e peso de serem eles mesmos demasiados próximos
dos últimos homens.

É justamente ao espírito de suportação, ao camelo que cabe o dever de tomar


sobre si os fardos, o peso dos valores que vigoram, e ao mesmo tempo pedir (aos heróis)
os valores opostos, assim pode então sua força se alegrar, pois esta força abre o caminho
para a superação dos valores vigentes. O espírito de suportação seria aquele que
principia o caminho de superação próprio da vontade de poder e é nesse sentido que nos
aproximamos do Heidegger quando este explicita o sentido da vontade dizendo “...
vontade de poder que, enquanto criadora, padece e suporta a vontade que luta consigo
125
mesma...” Padecer e suportar é algo próprio do espírito de camelo que como
interpretei dá início a luta da vontade consigo mesma ao impor como tarefa à sua força
carregar aquilo que há de mais pesado, mas não se deixando paralisar. Neste sentido, o
camelo estabelece uma primeira direção no sentido da superação dos valores próprios
aos “últimos homens”. Ao carregar os pesados fardos desses valores e encaminhar-se
para a solidão ele inicia uma primeira “avaliação” dos valores, tencionando aquilo que
estaticamente jaziam ao opor-lhes outros valores. Assim ele suporta tal tensão em suas
próprias costas, colocando em movimento os valores dos últimos homens cunhados pelo
espírito de gravidade, porém somente ao leão caberá uma confrontação com o peso do
passado encarnado em “Tu deves”.

123
Cf. NIETZSCHE, 2008, p. 41.
124
Cf. NIETZSCHE, 2008, p.48.
125
Cf. HEIDEGGER, 2002, p. 89. Grifo meu.

64
2.3 Do sagrado não do Leão

É desde o percurso do camelo, de sua força em suportar os fardos (os valores


morais) e justamente pelo movimento de tomar distância (do rebanho), e se encaminhar
não para qualquer deserto, mas para “o seu próprio deserto” que é o “mais ermo dos
desertos” porque o mais solitário, mais distante, que “dá-se a segunda metamorfose: ali
126
o espírito torna-se leão...” . É nesse lugar desértico, “o próprio deserto”, esse quase
não lugar porque longe das fronteiras e marcas delimitadas, que o leão vem a ser, mas
juntamente com ele o dragão chamado “Tu deves”. A partir dessa transformação o
Zaratustra indaga: “Qual o dragão, ao qual o espírito não quer mais chamar senhor nem
127
deus? 'Tu deves' chama-se o dragão, mas o espírito do leão diz: Eu quero” . Portanto
é apenas quando afirmado um “Eu quero” que aparece também um “Tu deves” que

126
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.43.
127
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.44.

65
impediria esse querer de se afirmar128. A atividade do leão é assim caracterizada por
Zaratustra:

Criar novos valores – isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar
para si a liberdade de novas criações - isso a pujança do leão pode fazer...
Conseguir essa liberdade e opor um sagrado “não” também ao dever: para
isso meus irmãos, precisa-se do leão (NIETZSCHE, 1994, p.44).

Portanto ao Leão é possível um “sagrado não” frente ao dever ditado por


129
“valores milenários” que se encarnam no “Tu deves”, por isto apenas com a
metamorfose do espírito em leão é que o dragão se converte em inimigo e enquanto
inimigo elemento desafiador. O dragão nesse sentido pode ser interpretado como a força
que advinda do passado se presentificaria como obstáculo para toda vontade de criar. É
justamente a partir da atividade e da força do espírito leonino que a dimensão do futuro,
trabalhada na primeira parte da presente dissertação, assume um valor privilegiado, pois
justamente ele é capaz de enfrentar o peso imóvel e imobilizador do passado encarnado
na figura de “Tu deves”. Portanto, desvela-se a partir desse confronto o aspecto
problemático do passado.

A abertura da dimensão do porvir para a criação de novos valores pela força do


leão estaria em afinidade com a dimensão anunciada por Zaratustra do além do
homem130. Esta anunciação se relacionaria ainda com o problema da “morte de Deus”,
pois como lê-se no discurso das metamorfose, o leão:

(...) Quer conquistar como presa, a sua liberdade e ser senhor em seu próprio
deserto. Procura ali o seu derradeiro senhor: quer torna-se-lhe inimigo, bem
como de seu derradeiro deus, quer lutar para vencer o dragão. (Nietzsche,
1994, p.44)

128
Ressalto ainda que somente quando se dá a metamorfose do leão fica-se sabendo que o camelo estava
submetido a uma relação com “Tu deves”: talvez porque o camelo por sua “natureza” não pudesse dar-se
conta de sua própria submissão, afinal dele “inere respeito”, mas ao suportar e deslocar o peso “das cargas
pesadas”, portanto a partir desse pesar (avaliar), pode surgir um querer, mas também um dever encarnado
no dragão “Tu deves”.
129
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.44.
130

66
Desta maneira, pode-se entender Deus, sublinhando o aspecto moral, como
sinônimo dos “valores milenários” e o Dragão encarnando esses valores como senhor e
Deus que tem de ser enfrentado como inimigo, pois impediria a liberdade para criação
de novos valores. Um outro importante aspecto da relação entre a “morte de Deus” e a
necessidade de criar a liberdade para novas criações (no sentido do além do homem) é a
relação destes com um “estágio” da gênese do pensamento do eterno retorno, assim
como é colocado por Nietzsche em uma anotação para o “Assim falou Zaratustra”:

“Retorno” ensinado – “me esqueci da miséria”. Sua compaixão cresce. Ele


percebe que a doutrina não pode ser suportada. [...] Ponto de culminância: o
assassinato sagrado. Ele inventa a doutrina do além do homem.
(NIETZSCHE, FP de 1882/1883 4[81] apud Brusotti, 2012, p.153).

Portanto torna-se essencial desenvolver o problema da “morte de Deus” para


compreender a relação desta com além do homem e a possibilidade da criação de novos
valores que fariam parte da gênese do eterno retorno. No prólogo Zaratustra anuncia “a
morte de Deus”, acontecimento que pode ser entendido tanto no sentido de que a fé no
deus cristão deixou de ser plausível, quanto privilegiando o aspecto filosófico do
acontecimento, o fato de que o mundo supra-sensível, o mundo metafísico foi
desvalorizado. É justamente nessa passagem, que marca a modernidade a partir da
“morte de Deus”, que surgiria a ameaça de um novo tipo de niilismo marcado pelo
pathos do em vão gerado pela descrença nos valores superiores e transcendentais.
Prevendo a instauração do ultimo homem, homem sem “vontade de porvir”, Zaratustra
anunciaria ao homem um novo sentido para a vontade: o além do homem como sentido
da terra, e não mais um além da terra, pois uma vez abolido “o mundo de deus” e sua
esperança de salvação ultra terrena, ainda poder-se-ia criar um “outro mundo” no futuro,
não mais seguindo os valores transcendentais e sim, o sentido da terra.

Nesse sentido, almejaria Zaratustra instigar o homem (moderno) a assumir uma


postura próxima ao espírito do leão, em favor do futuro além do homem, capaz de
afirmar um “não” ao passado e ao presente, enquanto dimensões perpassadas pelo peso
da metafísica e da moral cristã ainda que transfigurado em “valores modernos”. Trata-se
então de uma passagem, uma travessia em direção ao além do homem, mas como tal
passagem é possível? A “morte de Deus” não é por si a consumação do niilismo, pelo

67
contrário a crença no antigo ideal permanece, ainda que como crença no próprio homem
e assim ainda mais velada para ele mesmo. O tempo presente é ainda “insuportável”
para Zaratustra por ser demasiado condicionado pelo peso dos valores passados e por
isso a criação depende de um sagrado “não” em favor da dimensão futura do além do
homem 131.

Neste mesmo sentido, Zaratustra assumiria a posição do leão ao afirmar um


“não” em relação ao passado e ao presente, já que ambos seriam determinados
historicamente por valores metafísicos-cristãos, e também por “direcionar” o sentido da
vontade no futuro em favor do além do homem. Somente a esperança no futuro além do
homem poderia então justificar o presente e o passado, já que apenas abrindo o espaço
de liberdade para a criação no porvir ficaria então instaurado o lugar do homem
enquanto aquele ser que vem-a-ser no tempo.

Assim enquanto o passado e os valores da tradição metafísica determinam o


presente e o futuro esvaziam toda a possibilidade do querer que em afinidade com a
vontade de poder é movimento de superação e criação. Somente quando o peso deste
passado vem à luz como “Tu deves”, passado ocultado pelo orgulho do último homem,
que julga justamente ter superado todo o passado (com seu saber, progresso, ciência...),
pode então o espírito, enquanto espírito leonino, enfrentar aquilo que o subjuga. E os
“valores milenares” só vêm á luz enquanto força imobilizadora de toda vontade quando
um “Eu quero” se impõe e se afirma frente ao “Tu deves”, apenas assim ele é “forçado a
132
encontrar quimera e arbítrio até no que ele tinha de mais sagrado” . Para abrir a
possibilidade de criação de novos valores assim como o faz o espírito leonino é preciso
primeiramente um sagrado “não” capaz de destruir valores petrificados, pois, como
afirma Zaratustra “aquele que deva ser um criador no bem e no mal, em verdade,
primeiro deverá ser um destruidor e destroçador de valores.” 133. Portanto, “o sagrado
não” do leão interpreto como uma força da vontade de criar que primeiramente precisa

131
Em 1882, época da criação do Zaratustra, Nietzsche em um fragmento póstumo em relação a essa
“posição leonina” ainda se referindo à doutrina do eterno retorno (“a vida uma vez mais”), ele diz: “Eu
não quero a vida uma vez mais. Como eu a tenho suportado? Criando. O que me faz tolerar seu
semblante? A visão do Além do homem que afirma a vida” Cf. NIETZSCHE apud Brusotti, 2012, p.153.
Grifo meu
132
Cf. NIETZSCHE, 2008, p. 52.
133
Cf. NIETZSCHE, 2008, p. 146.

68
destruir por um “Não” valores tomados, porque sedimentados, como fixos e eternos,
enquanto suprema e única finalidade da existência. Neste sentido o leão precisa ser
inimigo do dragão que afirma que “todos os valor já foi criado e todo o valor criado sou
134
eu. Na verdade não deve haver mais nenhum ‘eu quero’” . O dragão encarnaria os
valores (morais) que se imporiam desde um passado á ponto de aparecerem através de
sua figura mítica. Estes valores morais ao se imporem como eternos, fixos e imutáveis
conformariam o presente a partir de um fundo, de um fundamento sedimentado
determinando toda a possibilidade de futuro em apenas uma direção, sentido e
finalidade.

É apenas para o leão que o caráter sagrado (imutável, fixo, eterno) dos valores
135
morais pode ser problematizado como “quimera e arbítrio” , arbítrio porque estes
aparecem então apenas como criações que foram ao longo da historia ocidental tomadas
como eternas. É a partir da força do espírito leonino que tais valores são desvalorizados
culminando na “morte de Deus”, na destruição dos valores compreendidos como
supremos e eternos. Porém, o leão ainda não é criador de valores. Zaratustra afirma que
“criar novos valores - isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar para si a
136
liberdade de novas criações – isso a pujança do leão pode fazer” , portanto cumpre a
ele abrir o espaço do porvir, “destruindo” aquilo que há de petrificado, de imóvel e
imobilizador para a dimensão do vir-a-ser

2.4 A criança e a criação de novos valores – esquecimento e memória

É com a terceira metamorfose do espírito em criança que ficaria estabelecida


outra relação com o passado e a partir disso com a temporalidade em geral (passado-
presente-futuro). Essa relação estaria indicada explicitamente pela ausência da figura do

134
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.44.
135
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.44.
136
Cf. NIETZSCHE, 2994, p.44.

69
dragão presente nas duas metamorfoses anteriores. Porém, tal passagem (do leão para a
criança), sublinho, é uma metamorfose e não uma evolução, um progresso linear, pois o
que estaria sendo problematizado (e dramatizado) seria também a própria estrutura
linear da temporalidade a partir da dinâmica do vir-a-ser das metamorfoses. Sobre a
criança é dito no discurso das três metamorfoses: “Inocência, é a criança, e
esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um
movimento inicial, um sagrado dizer ‘sim’” 137.

A partir desta terceira metamorfose torna-se imprescindível problematizar certa


estratégia nietzschiana que não separaria de uma dramatização estilística e artística em
relação a duas categorias fundamentais para a tradição da metafísica ocidental: espírito e
tempo. Procuro por este caminho retomar e desenvolver a direção assinalada no
primeiro capítulo de pensar e problematizar conjuntamente “homem” e tempo. Para tal,
ressalto que “o espírito” é compreendido pela tradição metafísica como algo próprio do
homem, o que há de mais fundamental no humano, e que usualmente designaria a
atividade intelectual, a razão mesma do homem que o diferenciaria hierarquicamente
como ente superior ao animal. Na modernidade “o espírito” seria identificado com a
própria atividade da consciência. Nietzsche sendo um filósofo da suspeita desenvolve
uma radical crítica a hipervaloração da consciência nas práticas cientificas e na filosofia
moderna. O autor, em um parágrafo de sua Gaia ciência, tece uma hipótese crítica e
genealógica apontado para uma superestimação da consciência que receberia os mesmo
atributos do que se considera tradicionalmente próprio ao “espírito”:

Pensam que nela esta o âmago do ser humano, o que nele é duradouro,
derradeiro, eterno, primordial. Tomam a consciência por uma firme grandeza
dada! Negam seu crescimento, suas intermitências. Veem-na como “unidade
do organismo”!-Essa ridícula superestimação e má compreensão da
consciência têm por corolário a grande vantagem de que assim foi impedido
o seu desenvolvimento muito rápido. (NIETZSCHE, GC, §11)

Nesta direção, pode-se argumentar que a consciência é compreendida como


aquilo que há de próprio do homem que expressa sua maturação, e o que nele há de
mais “espiritual” (eterno, uno, derradeiro, mas também objetivo, neutro, racional...) e

137
CF. NIETZSCHE, 2008, p. 53.

70
isto, em contraposição ao que seria do registro da paixão, do instintivo e do mutável.
Haveria, portanto, uma singularidade na dinâmica do espírito das metamorfoses narrada
por Zaratustra, pois a metamorfose do espírito é composta por ao menos dois animais
(pois talvez o dragão também seja um “animal do espírito”) e tem seu “último
momento” figurado pela criança. Desta maneira, o modo como Zaratustra apresenta
“sua” metamorfose do espírito demarcaria um radical deslocamento em relação à
tradição, pois há uma “animalidade do espírito” e seu “ápice” é a figura da criança.
Destaco a posição da criança nas metamorfoses haja vista que haveria através dela uma
série de importantes valorações relacionadas ao aspecto temporal: se por um lado, no
senso temporal cronológico comum a criança ocupa o primeiro “lugar” na linha
temporal, lugar que, cabe ressaltar, é desprestigiado pelo discurso ocidental, pois a
criança seria ainda-não racional, imatura, algo de negativo, que teria a “finalidade” de
crescer e deixar de ser esse “ainda-não” para ser adulta; por outro lado, para Zaratustra
(e Nietzsche) a criança seria de uma figura de “plenitude” e maturação. Assim a posição
que ocupa a criança, posição que melhor pode ser chamada de momento, apontaria para
outra interpretação da dimensão temporal, não cronológica e não linear, ainda que se
possa interpretar essa posição como uma estratégia de inversão do discurso metafísico e
do discurso comum. Para pensar esse problema da inversão metafísica nietzschiana
torna-se necessário pensar as estratégias nietzschianas sempre relacionadas de maneira
critica com a tradição metafísica. Existem inúmeras passagens onde Nietzsche faz
referência à criança; proponho-me refletir sobre duas específicas que relacionam
diretamente a figura do adulto com a criança. Nesta direção, Nietzsche argumenta que:

Nós pensamos que contos de fada e brincadeiras são parte da infância:


míopes que somos! Como se nos fosse possível viver em qualquer outra
idade da vida sem contos de fada e brincadeiras! Sem dúvida, nós os
denominamos e sentimos de modo diferente, mas justamente isso mostra que
se trata da mesma coisa – pois também a criança sente a brincadeira como
seu trabalho e o conto de fadas como sua verdade (NIETZSCHE, HDH, V.2,
§ 270).

Se fosse apenas uma questão de inversão dos valores nos pares de noções
comumente colocados em oposição (criança-adulto) teríamos em consequência uma
desvalorização do adulto, talvez essa estratégia esteja também presente, pois há nos
textos de Nietzsche contundentes críticas aquilo que geralmente é entendido como

71
próprio do adulto, sua “racionalidade”, “seriedade”, “responsabilidade”, “livre arbítrio”,
“moralidade”, “sociabilidade”, “consciência”. Porém, muitos dos escritos de Nietzsche
vão além deste jogo de oposições denunciado pelo filósofo como próprio do “discurso
metafísico”, assim no parágrafo citado pode-se depreender que haveria outra proposição
do que pode ser a criança e o adulto: se por um lado a brincadeira (e a fantasiação) da
criança é tomada como séria, a maturidade só seria alcançada mediante uma seriedade
que não exclui, mas se faz no jogo. Também aquilo que é normalmente tomado como o
sério em si, a verdade e o trabalho partilhariam da mesma “natureza” que o conto de
fadas e a brincadeira. Ainda no aforismo 94 de Além do bem e do mal se pode ler que:
“A maturidade do homem consiste em ter reencontrado a seriedade que em criança se
colocava nos jogos.”138. Neste fragmento Nietzsche apresenta de maneira sintética certo
embaralhamento das categorias tradicionais de criança e adulto e também da estrutura
linear do tempo, pois na criança já estaria a seriedade pretensamente própria do adulto e
este só alcançaria sua maturidade pelo reencontro com a seriedade das crianças nos
jogos. Esta “estrutura” não linear penso estar presente também na descrição da criança
em Zaratustra haja vista que apesar de ser o “último momento” das metamorfoses, ela é
também “um novo começo” e “um movimento inicial”.

Este “re-encontro” do “último” com o “primeiro” remeteria para uma estrutura


circular que a criança figuraria, pois é também dito que ela é “uma roda que gira por si
mesma” aludindo por sua vez para outra estrutura do tempo que não aquela geralmente
assumida como a própria do tempo: a estrutura linear e sucessiva que separaria
terminantemente um antes de um depois - passado e futuro separados por um
presente139. Para melhor expor esta outra “estrutura temporal” faz-se necessário
problematizar qual seria a relação da criança com a temporalidade. Procurei
anteriormente apontar para as relações do espírito de suportação e do espírito leonino
com o passado e o futuro, onde o camelo se relacionaria de maneira insciente com o
passado encarnado no dragão chamado “Tu deves” ainda que colocando valores
sedimentados em movimento; e o leão que enfrentaria o dragão “Tu deves” a fim de

138
Cf. NIETZSCHE, ABM, § 94.

139
Esta outra estrutura temporal é talvez a experiência que Zaratustra narra como o próprio da
aprendizagem de sua alma: “ó minha alma ensinei-te a dizer ‘Hoje’ como ‘Algum dia’ e ‘Outrora’...”. Cf.
NIETZSCHE, 1994, p. 228.

72
abrir o horizonte para novas criações vindouras, havendo pois um privilegio da
dimensão futura nesta dinâmica.

Portanto, as duas primeiras figuras da metamorfose estabeleceriam relações


com a temporalidade a partir dos pólos passado-futuro, o primeiro mais especificamente
com o passado e o segundo com o futuro. Desta maneira o presente não apareceria
enquanto instância temporal problematizada. Porém, com a criança penso que o
presente aparece como importante dimensão, ainda que esta não se explicite
diretamente, pois nada é dito de forma direta sobre o presente na caracterização criança,
a referência ao tempo se explicitaria por a criança ser “esquecimento”.

Assim, a partir de certa noção de esquecimento, desenvolvo uma reflexão


sobre o presente e a relação deste com o passado e o futuro, pois na obra de Nietzsche, a
noção de esquecimento parece ser uma importante chave para abrir possíveis leituras
acerca do problema da temporalidade em seus escritos e particularmente no Zaratustra.
Nietzsche desenvolve em sua Segunda consideração intempestiva: da utilidade e
desvantagem da historia para a vida uma interpretação de sua época tomando o sentido
histórico hiperdesenvolvido por seus contemporâneos como uma “enfermidade” que
teria impossibilitado ou enfraquecido a faculdade do esquecimento, apontada pelo autor
como uma necessidade vital. De certa maneira o autor está preocupado com o valor da
história e da memória histórica em relação à vida, ao sentimento de vitalidade e também
à possibilidade de felicidade e ação140. Nietzsche afirma que somente pelo “poder-
esquecer” felicidade e ação são possíveis, já que um elevado grau de conhecimento
histórico levaria a uma consideração negativa da vida como um perpétuo vir-a-ser 141.
Nesta perspectiva, o autor procura problematizar esta condição com o seguinte exemplo:

Pensem no exemplo mais extremo, um homem que não possuísse de modo


algum a força de esquecer e que estivesse condenado a ver toda parte um vir-
a-ser: tal homem não acredita mais em seu próprio ser, não acredita mais em
si, vê tudo desmanchar-se em pontos móveis e se perde nesta torrente de vir-
a-ser.142
140
Cf. NIETZSCHE, 2003, p.1.
141
Cabe ressaltar que a noção de vir-a-ser é fundamental para Nietzsche e se desdobra em diferentes
escritos seus. A posição acerca do vir-a-ser com conotação negativa pelo autor nesta obra se distância
bastante das obras posteriores.
142
Cf. NIETZSCHE, 2003, p.9.

73
Portanto, o esquecimento é na perspectiva do jovem Nietzsche uma força
necessária para o viver em geral. Esta força o autor reconhece nos animais e o
exemplifica através de um gado pastando feliz do qual o homem sentiria inveja, pois
desejaria viver sem melancolia e dor 143 (que se ligariam a consciência do passar e se
esvair do tempo) assim como o gado viveria na felicidade do instante. Também neste
texto o autor identifica a força do esquecimento na criança ao dizer que:

Em uma proximidade mais familiar, a criança que ainda não tem nada a negar
de passado e brinca entre os gradis do passado e do futuro em uma bem
aventurada cegueira. E, no entanto é preciso que sua brincadeira seja
perturbada: cedo demais a criança é arrancada ao esquecimento, então ela
aprende a entender a expressão “foi”, a senha através do qual a luta, o
sofrimento e o enfado se aproximam do homem para lembrá-lo o que é no
fundo sua existência...” (NIETZSCHE, 2003, p.8. Grifo meu)

É neste sentido que a criança já nos primeiros escritos do autor se


aproximada da força do esquecimento e por isso pode estar entre “os gradis do passado
e do futuro” ou seja no presente. Para a criança essa relação com o presente seria
possível por não “ter nada a negar do passado”, ela não veria em sua cegueira o “foi” de
todo passar. É, posteriormente, a relação com o passado que retirará a criança de sua
felicidade e a ensinará a expressão “foi”. Nesse texto o esquecimento é remetido
fundamentalmente a um contexto histórico em que parece que o próprio esquecimento é
cada vez mais esquecido, este “esquecimento do esquecimento” é denunciado pelo autor
como uma enfermidade prejudicial tanto à vida de um indivíduo, como de um povo ou
cultura. Porém, o autor coloca que para o homem é impossível esquecer completamente
como os animais e a criança. Desta maneira, o autor convida a uma consideração:

(...) Que se saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar no
tempo certo, que se pressinta com um poderoso instinto quando é necessário
sentir de modo histórico, quando de modo a-histórico. Esta é justamente a
sentença que o leitor esta convidado a considerar: o histórico e o a-histórico
são na mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo e
uma cultura. (NIETZSCHE, 2003, p.11)

143
Cf. NIETZSCHE, 2003, p.7.

74
Portanto, a crítica nietzschiana a memória não seria à memória em “si mesma”,
mas a certa hiper-valoração da memória de seus contemporâneos em detrimento do
esquecimento, desde uma hierarquia de valores onde um elemento, a memória, se
sobreporia ao esquecimento. Por isso, o autor afirmaria a necessidade de um “tempo
certo” para o esquecimento (o impulso a-histórico) e para a lembrança (o impulso
histórico). E seria pensando na mencionada “justa medida” entre memória e
esquecimento para a saúde em geral que o autor proporia a noção de força plástica. Esta
me parece ser uma noção que não se limitaria a uma separação dicotômica e
hierarquicamente “metafísica” entre memória e esquecimento. Neste sentido Nietzsche
argumenta em torno da noção de “força plástica” que:

Para determinar este grau e, através dele, então, o limite, no interior do qual o
que passou precisa ser esquecido, caso ele não deva se tornar o coveiro do
presente, seria preciso saber exatamente qual é o tamanho da força plástica de
um homem, de um povo, de uma cultura; penso esta força crescendo
singularmente a partir de si mesma, transformando e incorporando o que é
estranho e passado, curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo
por si mesmas as formas partidas. (...) Quanto mais a natureza intima de um
homem tem raízes fortes, tanto mais ele estará em condição de dominar e se
apropriar também do passado; (...) aquele homem traria todo o passado para
junto de si, o seu próprio passado e o que dele estivesse mais distante,
incorporaria a si e como que transformaria em sangue. (NIETZSCHE, 2003,
p.10. Grifo meu)

Desta maneira, através da noção de “força plástica”, Nietzsche menciona


dois importantes processos que conjugariam simultaneamente esquecimento e memória:
o processo de transformação e incorporação do que é “estranho e passado”.
Transformar e incorporar não os interpreto como uma denegação ou apagamento do já
vivido, mas de uma relação apropriativa, na qual um homem “traria todo o passado”
transformado e incorporado para junto de si. Nesta perspectiva, a relação com o passado
não poderia ser compreendida através de uma memória de um passado factual
apreendida por uma pretensa posição neutra, objetiva. Logo, a “força plástica” pode ser
entendida como uma noção embrionária daquilo que vem a ser, no segundo capítulo da
dissertação da Genealogia da moral, o “esquecimento ativo”. Nietzsche assim descreve
essa noção:

Esquecer não é uma simples vis inertia [força inercial] como crêem os
superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido,
graças a qual o que é por nos experimentado, vivenciado, em nos acolhido,
não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual se
poderia chamar de “assimilação psíquica”) (...) Um pouco de sossego, um
pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o

75
novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger,
prever, predeterminar...- eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse,
espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da
etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade,
esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. (NIETZSCHE, 2009, p.
43, Grifo do autor)

Consequentemente, o “esquecimento”, como uma força ativa inibidora não


seria um mero apagamento da memória do passado vivido e experimentado, aquilo que
é experimentado e vivido não é simplesmente “esquecido” como um apagamento, pois o
processo de digestão é também, como dito sobre a “força plástica” acolhimento e de
certa maneira um processo de incorporação/interpretação. Neste sentido, uma “digestão
saudável” das experiências e vivências poderia ser comparada aquele trazer “todo o
passado para junto de si” 144 e se relacionaria com certa noção de memória, já presente na
intempestiva desde que entendida memória não como um memória de um fato objetivo,
mas como interpretação das experiências, no sentido da incorporação, transformação. O
passado, pois, não é aqui entendido como algo que desde fora vem pesar os passos
impossibilitando qualquer relação com o presente 145. Em um parágrafo da Gaia Ciência
o autor se referindo aos romanos, explicita a relação com o passado a partir das noções
de tradução e “conquista” do que estranho e alheio:

O grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado pela maneira com
que ela faz traduções e procura absorver épocas e livros passados. (...) E a
própria antiguidade romana: de que modo simultaneamente impetuoso e
ingênuo ela pôs as mãos em tudo o que era bom e elevado da anterior
antiguidade grega!Como traduziram as coisas para a atualidade romana. De
modo tiraram o pó das asas da borboleta que é o instante!(...) Eles não
conheciam o prazer do senso histórico, o que era passado e alheio os
incomodava, e sendo romanos, estimulava a conquista romana. De fato
traduzir era conquistar – não apenas ao se omitir o dado histórico: mais do
que isso, acrescentavam alusões à atualidade, apagavam o nome do poeta e
punham o próprio no lugar (NIETZSCHE, GC, §84).

Portanto, o tipo forte, sadio (seja um indivíduo, um povo, uma cultura)


estabeleceria uma relação apropriativa/interpretativa do passado em função do presente,
relação que se aproxima daquela apontada por Nietzsche em sua “intempestiva” a partir
da noção de força plástica. O esquecimento ativo guardaria uma relação com o passado

144
Cf. NIETZSCHE, 2003, p.10
145
Cf. NIETZSCHE, 2003, p.8

76
que não poderia ser entendido a partir memória petrificada, para manter uma imagem
importante para o autor. Assim, a importância do esquecimento ativo se vincula ao
problema do passado, que como procurei apontar é fundamentalmente dramatizado nas
metamorfoses do espírito. Esta dramatização do problema do passado nas
metamorfoses de certa forma estaria presente, como venha apontado, de diferentes
modos ao longo do Zaratustra.

Desta maneira, a questão da temporalidade em Zaratustra desenvolver-se-ia ao


longo da narrativa, primeiro no trato com a questão do futuro e a importância do além
do homem, em seguida pela reflexão do passado como instancia problemática para o
querer e ainda, através da criança compreendida como esquecimento que se relacionaria
com a dimensão do presente a parir de um “esquecimento ativo” que liberaria a
consciência para o novo, o presente. Assim, Zaratustra-Nietzsche estaria
problematizando por diferentes perspectivas a questão da temporalidade através de uma
tensão entre passado-presente-futuro.

Desse modo, com a metamorfose do espírito em criança, a relação com o


presente ganharia outra valorização pois este não mais se conformaria por um passado
alheio, estranho a si. Desta maneira, o espírito poderia criar novos valores não mais
determinados por um “Tu deves” dos valores morais. Mas o novo dos “novos valores”
não poderia ser entendido apenas como mera novidade, mas como a criação de valores
que teriam uma relação própria e singular com o passado e com o futuro.

A criança como último momento da metamorfose não teria o sentido de uma


conclusão teleológica, de um fechamento, mas sim de outra relação com a
temporalidade, apontada pela estrutura circular do tempo, onde passado não seria
entendido como algo dado, factual e alheio e tampouco o futuro como uma dimensão
totalmente determinada por uma finalidade e orientada por noções como progresso e
evolução. A criança abriria a possibilidade de uma relação “inocente” com o vir a ser, o
próprio vir a ser seria afirmado como inocência: sem uma teleologia, causa ou
finalidade pré estabelecida. Nesta direção, Nietzsche se vincularia ao pensamento de
Heráclito assim como o autor o interpreta na Filosofia na idade trágica dos gregos,

77
escrito de sua juventude, onde desenvolve já uma reflexão sobre a criança e sua relação
com a moral e o vir-a-ser146:

Neste mundo, um vir-a-ser e perecer, um erigir e destruir, sem qualquer


imputação moral e numa inocência eternamente igual, possuem apenas o jogo
do artista e da criança. E assim como jogam a criança e o artista, joga
também o fogo eternamente vivo, erigindo e destruindo, em inocência– e,
esse jogo o Aiôn joga consigo próprio. (NIETZSCHE, 2008, P.66)

O espírito tornando criança se vincularia fundamentalmente a uma atividade


inocente, não culpada e, portanto, sem a má consciência do espírito de vingança e sua
147
aversão ao tempo e seu “foi assim” . Pelo “Sim” da criança se estabeleceria outro
vislumbre da estrutura temporal que se aproximaria do presente e através deste
estabelecer-se-ia outra relação com o passado e o futuro. A relação entre a criança e o
tempo cabe lembrar já se encontra na sentença de Heráclito que diz que: “O tempo é
uma criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e para cá; governo de
148
criança” . Pode-se supor, portanto, uma filiação da noção de criança de Nietzsche
com o pensamento heraclitiano.

A inocência “não culpada” do vir-a-ser se vincularia a uma posição não


moralista do homem “diante” da vida, abrindo uma experiência singular para este, pois
o homem não mais se relacionaria com a vida a partir dos valores morais dependentes
do valor da verdade e representados por “Deus” enquanto supremo valor que tornara-se
o fundamento e a diretriz da historia do ocidente. Nesta direção, a inocência da criança e
sua posição para além do bem e do mal dos valores morais só seriam possíveis após o
enfrentamento do leão com o dragão, entendido como “Deus e senhor”. Neste sentido, o
espírito só se tornaria criança após “a morte de Deus”. Acerca deste acontecimento e
sua relação com a moral Nietzsche argumenta que:

146
A reflexão em torno da inocência do vir a ser é retomada e desenvolvida ao longo da sobras do autor e
levanto a hipótese, tal reflexão seria fundamental para a gênese do pensamento do eterno retorno. ?Cf. por
exemplo NIETZSCHE, 2008, par. 7 e NIETZSCHE, 2004, par. 13.
147
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.51.
148
Cf. NIETZSCHE, 2008, p.66.

78
O maior acontecimento recente - o fato de que “Deus esta morto”, de que a
crença no deus cristão perdeu credito- começa a lançar suas sombras sobre a
Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar cuja suspeita no olhar é
forte e refinada o bastante para este espetáculo, alguma velha confiança
parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve
parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiando, mais estranho, mais
“velho”! Mas o evento é demasiado grande, distante e à margem da
compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a noticia dele tenha
sequem chegado, e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença esta
minada, porque estava sobre ela construído, apoiado, arraigado: toda a nossa
moral européia, por exemplo. (Nietzsche, GC, §343).

Se o espírito tornado criança cria valores, assim como é dito nas “metamorfoses
do espírito”, é porque estaria “livre” das determinações morais expressas em última
instancia no nome “Deus”. Portanto, a “morte de Deus” e o abismo aberto a partir deste
acontecimento também possibilitariam uma posição singular do homem que “(...)
perdido para o mundo, conquista seu mundo” 149 a partir da criação de novos valores não
mais sob o peso e o fundamento da moral. Mas se o valor (Deus) que sustentava todos
os outros valores é desvalorizado como seria possível criar novos valores? Talvez por
isso Zaratustra-Nietzsche busque “criar” um novo peso, um peso “afirmativo” capaz de
promover valores a partir de uma medida inaudita e não determinada por valores
morais, transcendentais ou divinos. Seria este o outro sentido da palavra peso articulada
ao pensamento do eterno retorno já presente nas primeiras formulações de Nietzsche
acerca do seu “pensamento abismal” em 1881: “o novo peso: o eterno retorno do
150
mesmo” e que quando apresentado na Gaia ciência leva o titulo de “o maior dos
151
pesos” . Esse “novo peso” seria, portanto, contraposto ao velho peso dos valores
morais expressos maximamente no nome “Deus”. Nesta direção, torna-se
imprescindível para pensar uma gênese do “eterno retorno” como uma criação própria
de Nietzsche considerar que o próprio autor já se encontrava familiarizado com certas
formulações heraclitianas e também formulações cientificas que se aproximavam de sua
concepção do eterno retorno, e isto para compreender as diferenças e a singularidade
com que este pensamento é apresentado no contexto de Zaratustra. Penso que ao atentar
para as diferentes perspectivas acerca da temporalidade no Zaratustra pode-se melhor

149
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.45.
150
NIETZSCHE, IX,11 (141) – primavera –outono de 1881 Apud RUBIRA,2010 , P.128
151
Cf. NIETZSCHE, GC §341.

79
compreender a gênese desse pensamento que seria nas palavras do autor “a mais alta
formula de afirmação” e um sagrado “Sim” ao “jogo da existência” a partir de outra
compressão da temporalidade.

Capítulo III - Perspectivas do eterno retorno

3.1 Eterno retorno como estratégia crítica

Ao atentar para uma gênese do eterno retorno, procurei sublinhar os problemas e


desafios de Zaratustra-Nietzsche em relação às questões da temporalidade que aparecem
ao longo de sua trajetória e que dinamizariam tal gênese. A perspectiva de Zaratustra
em torno do tempo não se faria a partir de um ponto de vista essencialista, que
procuraria uma natureza do tempo por detrás das opiniões representações ou conceitos;
neste sentido, a afirmação do eterno retorno não se cumpriria a partir de uma vontade de
verdade que excluiria diferentes perspectivas sobre o tema do tempo. Desse modo, a
forma com que o pensamento do eterno retorno aparece nas obras publicadas do
autor152, seja em Zaratustra, obra de cunho dramático, ou em A gaia ciência, na forma
de uma hipótese ficcional, confirmariam a inserção desse pensamento na proposta mais
ampla do autor de uma filosofia experimental, de uma experiência perspectivaste do
pensamento. Portanto, pelo modo e estilo através dos quais Nietzsche expressa seu

152
O eterno retorno aparece ainda no § 56 Além do bem e do mal.

80
“pensamento fundamental”, este não ocuparia o lugar de uma verdade ontológica,
cosmológica ou um imperativo ético normativo para todos. Se nas anotações não
publicadas esse pensamento por vezes configura-se na forma de um principio
cosmológico e científico, ainda assim pode-se pensar que tais expressões estariam no
registro de uma experimentação do pensamento153.

Seja no seu Zaratustra ou em A Gaia ciência, o eterno retorno é anunciado


através de personagens, o que circunscreveria este pensamento no âmbito ficcional,
talvez como se Nietzsche experimentasse o eterno retorno através das máscaras de suas
personagens. E, A gaia ciência, o eterno retorno é apresentado da seguinte maneira:

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais


solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu a vives agora
e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras
vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada
pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de
grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e
sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores,
e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da
existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da
poeira! ´ – Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e
amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez
um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus, e
nunca ouvi nada mais divino! “Se esse pensamento adquirisse poder
sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a
pergunta, diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e
ainda inúmeras vezes? “Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre
teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com
a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna
confirmação e chancela?". (Nietzsche, GC, §341).

Desse modo, o autor introduz o eterno retorno sob a forma de uma hipótese (“E
se”) e na forma de uma cena “dramática”, pois aquele que anuncia este pensamento é
um demônio, isto é, uma personagem ficcional. O eterno retorno pode assim ser
compreendido como uma experiência filosófica de Nietzsche, mas também, pelo modo
como ele o inscreveu neste parágrafo, uma experiência proposta para cada um (“se esse

153
Tendo como objetivo principal refletir sobre uma gênese do eterno retorno optei por nã o
trabalhar com o problema de uma formulaçã o científica do eterno retorno. Indico como leitura para
este problema o excelente livro de Luís Rubira: Nietzsche - Do eterno retorno do mesmo à
transvaloração de todos os valores.

81
pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és...”). Portanto, um desafio que se
direciona a um outro, a um singular modo de vida (“assim como tu és”). O efeito do
eterno retorno e a perspectiva com que ele é vivido, o júbilo ou a prostração
dependeriam apenas de cada experiência de vida. Diz o demônio que “esta vida, assim
como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras
vezes...”, referindo-se ao passado e sua determinação ao presente, que, como já visto,
são as dimensões temporais que Zaratustra a princípio nega em favor do porvir. Assim,
o pensamento do eterno retorno através dessa passagem se articula e intensifica o
problema do passado e sua determinação ao presente.

Por ser uma experiência do pensamento, o eterno retorno apareceria em


Zaratustra através das diferentes perspectivas das personagens: do anão e dos animais
de Zaratustra, mas também a partir dos diferentes humores de Zaratustra que
possibilitariam diferentes interpretações acerca do valor e do impacto deste
pensamento154. Importa ressaltar que, como uma experiência do pensamento, não se
trata de um filosofar abstrato, alijado de paixão e pessoalidade – uma experiência do
pensamento para Nietzsche pressupõe a inserção e risco do próprio pensador na
experiência, disto adviria a preocupação e as reticências do autor com a experiência do
pensamento do eterno retorno155. Nessa direção, diz Nietzsche, em A gaia ciência, que
“(...) nos sequiosos de razão, queremos examinar nossas vivências do modo rigoroso
como se faz uma experiência cientifica, hora a hora, dia a dia! Queremos ser nosso
156
experimento e cobaia!” . Ao se colocar a favor do rigor de uma “experiência
científica”, Nietzsche, no entanto, empreende um deslocamento em relação ao próprio
“espírito científico” ao colocar as vivências e a própria “pessoa” como “experimento e
cobaia”.

Neste sentido, é preciso pensar de maneira mais profunda a importância desse


pensamento ser apresentado através de uma obra “ficcional” como o é Zaratustra. Se o

154
Em Zaratustra, o pensamento do eterno retorno é expresso em “Da visão e do enigma”, tanto por
Zaratustra quanto pelo anão, e em “o convalescente” pelos animais e novamente por Zaratustra. Estas
passagens são analisadas nas seções seguintes.
155
Por exemplo, Lou Andreás-Salomé narra como Nietzsche lhe confidenciou o pensamento do eterno
retorno: “Jamais poderei esquecer as horas em ele me contou pela primeira vez com um segredo cuja
verificação e confirmação lhe causavam um horror indizível: ele só falava dele em voz baixa e com os
sinais manifestos do mais profundo terror” CF: ANDRÉAS-SALOMÉ, 1932, TR. Francesa, p.257)
156
Cf. NIETZSCHE, GC, §319.

82
eterno retorno é uma hipótese ficcional – “uma visão e enigma” –, isto não reduziria sua
força e impacto em quem entra em contato com sua formulação. E isto levando também
em consideração que a formulação do eterno retorno no Zaratustra não é dirigida para
os homens da praça, mas para os marinheiros que “gostam de perigo e enigmas”.
Aqueles que se lançam no mar são segundo A gaia ciência, os que abandonaram o solo
firme, a segurança deste solo, e se lançaram em mares a serem abertos sem a segurança
dos valores morais ou dos fundamentos metafísicos:

De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que deus morreu
nos sentimos como iluminados por uma nova aurora, nosso coração
transborda de gratidão, espanto, pressentimento e expectativa - enfim o
horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim
nossos barcos podem finalmente zarpar ao encontro de todo o perigo,
novamente é permitida a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o
nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar
aberto”. (NIETZSCHE, GC, §343. Grifo do autor).

Se o valor da verdade na tradição ocidental aparece associado à ideia de Deus, e


157
este se revela segundo o autor como “a nossa mais longa mentira” ·, logo, a própria
separação dicotômica entre verdade e mentira é desestabilizada, possibilitando uma
nova valorização do “ficcional”. Nesta direção, em um fragmento póstumo de 1881 em
referência ao pensamento do eterno retorno, Nietzsche argumenta que

Mesmo admitindo que a repetição cíclica seja apenas uma verossimilhança


ou possibilidade, o simples pensamento de uma possibilidade pode nos
emocionar e nos transformar, tanto quanto sentimentos ou esperanças. Que se
pense na ação que exerceu a simples possibilidade da eterna condenação.
(NIETZSCHE, 1997 apud MACHADO, 2001, p.149).

É enquanto possibilidade (ficcional) que o pensamento do eterno retorno - ao


menos nas obras publicadas - teria sua força de impacto. Como possibilidade, o eterno
retorno se configura como uma estratégia do autor que se contraporia ao estilo dos
argumentos lógico-metafísicos que pretendem estabelecer uma verdade a partir de uma

157
Cf. NIETZSCHE, GC, §344.

83
pretensa posição neutra, universal e objetiva do conhecimento 158. Assim, o caráter
ficcional do pensamento proposto por Nietzsche liberaria o filosofar para outro modo de
“conhecimento”, aberto ao jogo das perspectivas plurais e singulares - e neste contexto
se encontraria o pensamento do eterno retorno. O eterno retorno é compreendido como
experimentação do pensamento, como um peso para ser avaliado por cada um, por cada
singularidade. Este é talvez o sentido de este pensamento aparecer a partir de diferentes
perspectivas no Zaratustra. E, ainda, por “pressupor” o próprio pensador como
experimento, e a força de cada um que se encontra diante de sua formulação como
aparece na A Gaia ciência, Nietzsche sublinharia um importante aspecto ético que não
se configuraria como uma moral para todos, mas como uma avaliação da vida a partir
do eterno retorno que só poderia ter como medida a singularidade. Ou seja, dito de outra
maneira, o único critério para a desejabilidade da vida “uma vez mais e por toda a
eternidade” não poderia ser um critério extrínseco à própria vida, mas apenas a vida, e
cada vida singularmente considerada.

Também, se o eterno retorno é apresentado em Zaratustra e em A gaia ciência a


partir de uma linguagem ficcional, isto tampouco retiraria sua força e rigor quando se
entende este pensamento a partir do projeto nietzschiano de crítica e superação da
metafísica. Este seria o sentido da apresentação do eterno retorno na terceira obra em
que ele aparece publicamente, em Além do bem e do mal Nietzsche afirma que:

Aquele que, movido por uma espécie de desejo enigmático, tem há tanto,
como eu, se esforçado em pensar o pessimismo até suas profundezas, redimi-
lo de sua estreiteza e de sua simplicidade metade-cristã, metade-alémã, pois é
sob esse aspecto que ele se nos apareceu por último ao longo deste século,
quero dizer, sob a forma da filosofia schopenhaueriana. Aquele que
verdadeiramente considerou uma vez, sob todos os seus aspectos, com um
olhar asiático e superasiático o pensamento mais negador que há no mundo –
aquela negação do universo para além do bem e do mal, e não mais, como
Buda e Schopenhauer, sob o encanto e a ilusão da moral –, aquele, talvez,
assim se tenha feito abrir os olhos, sem precisamente querer fazê-lo, para o
ideal contrário, para o ideal do homem mais impetuoso, mais vivo e mais
afirmador que há sobre a terra, do homem que não somente aprendeu a se
contentar com aquilo que foi e com aquilo que é, mas que quer que o mesmo
estado de coisas continue, tal como foi e tal como é, e isto por toda a
eternidade, incessantemente gritando “bis” [da capo], não somente para si,
mas para a peça inteira, para todo o espetáculo, e não somente para um

158
Nesta direção, em referência ao pensamento de Parmênides, Nietzsche afirma que: “Parmênides disse:
´não se pode pensar o que não é´: nós estamos no extremo oposto, e dizemos: ´o que pode ser pensando
deve ser certamente uma ficção”. Cf. NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 14 [48] apud MACHADO,
2001, p.151.

84
espetáculo como esse, mas no fundo para aquele que precisa desse
espetáculo, pois que tem sempre necessidade de si mesmo e que se torna
necessário. – Como?[!] Não seria isto – circulus vitiosus deus?
(NIETZSCHE, ABM, §. 56).

O pensamento do eterno retorno, tal qual o contexto em que Nietzsche o


apresenta neste parágrafo– a partir da longa historia da metafísica e pelo cristianismo
como negações do mundo – adquire sua força a partir dessa mesma história, mas como
um ideal contrário ao “instinto” negador da vida. Se o instinto negador da vida tem sua
longa descendência pela vontade de verdade, o “ideal contrário” afirmado pelo eterno
retorno não poderia estar circunscrito neste registro, mas se relacionaria desde uma
posição critica em relação a esta tradição.

Nesta terceira parte da dissertação procuro, então, pensar o caminho já


desenvolvido anteriormente, mas levando em consideração o pensamento do eterno
retorno como uma estratégia de crítica da concepção linear-sucessiva do tempo, a partir
de uma proposição nietzschiana de outra concepção da relação entre vontade e
temporalidade.

3.2. Eterno retorno – a partir do problema da oposição entre passado e futuro

Através de seu Zaratustra, Nietzsche empreenderia uma crítica paródica a certa


concepção metafísica do tempo. Se o autor entende que “a crença fundamental dos
metafísicos é a crença nas oposições de valores” 159, em relação ao tempo esta crença se
mostra patente a partir dos valores opostos atribuídos ao passado e ao futuro. Nesta
direção, procurei expor anteriormente como no próprio discurso de Zaratustra esta
valorização estaria presente. Porém, isso se dá não como fundamento de uma
compreensão do tempo, mas como um problema a ser acolhido e um desafio a ser
pensando. Portanto, Zaratustra não dispensa ou nega uma perspectiva metafísica do
tempo, mas a suporta para que possa vislumbrar suas últimas consequências a fim de
superá-las. Este confronto com os valores atribuídos pela metafísica ao passado e ao
159
Cf. NIETZSCHE, ABM, §2.

85
futuro encontra seu ponto de tensão culminante no capítulo intitulado “Da redenção”,
onde o passado como peso determinado e imutável “aprisionaria” a vontade de criar em
sua impotência frente a todo irrecuperável “Foi assim”. Nesta direção afirma Zaratustra
que:

O querer liberta: mas como se chama aquilo que mantém em cadeias também o
libertador? “Foi assim”: é este o nome do ranger de dentes e da mais solitária angustia
da vontade. Impotente contra o que está feito – é ela um mau espectador de todo
passado. (Cf. NIETZSCHE, 1994, p.151.).

Neste capítulo, a reflexão da articulação entre a vontade e o tempo é


aprofundada, e é somente a partir dessa passagem que a temporalidade ganha uma
dimensão explicitamente problemática na obra, tornando-se então elemento central no
discurso de Zaratustra. Este afirma em “Da redenção”: “O presente e o passado na terra
- ah meus amigos! – é isso para mim, o mais insuportável; e não saberia viver se não
fosse um vidente daquilo que deve vir”160. Esta formulação, que privilegiaria o futuro
em detrimento do presente e do passado, é constantemente reiterada na primeira parte de
Zaratustra. Contudo, assim como se desenvolve o discurso de Zaratustra em “Da
redenção”, a relação da vontade com o passado é interpretada em outro sentido, pois
Zaratustra não busca mais negar o passado em favor de um futuro, mas redimi-lo:
“Redimir os passados e transformar todo “Foi assim” num “assim eu o quis” – somente
a isso eu chamaria redenção! ”161.

Nesse ponto da trajetória de Zaratustra não se trata mais de afirmar uma


vontade capaz de liberar o espaço de liberdade para a emergência do além do homem
futuro, mas de uma problematização em torno do que tornaria a própria vontade
impotente. Como Zaratustra argumenta, é a aversão “ao tempo e seu ´Foi assim´que
deve ser redimida, já que esta conforma a própria vontade tornando-a “(...) um mau
espectador de todo o passado”162. Por espectadora do passado Nietzsche estaria
explicitando um caráter impotente e passivo da vontade em relação ao tempo e sua

160
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.150.
161
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 151.
162
Ibidem

86
dinâmica considerada como sucessivo-linear. Nesta perspectiva, o passado é
compreendido enquanto a instância em relação à qual a vontade, em princípio, nada
pode, já que o próprio tempo não retrocede. Assim diz Zaratustra: “Que o tempo não
retroceda, é o que a enraivece; ‘Aquilo que foi’ – é o nome da pedra que ela não pode
rolar”163.

Em “Da redenção”, torna-se evidente que apenas a negação do passado e do


presente incapaz de dar conta da relação problemática entre vontade, entendida como
vontade criadora, e a temporalidade. Deste modo, a negação do passado e do presente a
partir dessa articulação é apenas sintoma da aversão da vontade ao “Foi assim”. Porém,
de outra maneira, afirma Zaratustra que a vontade criadora poderia dizer: “(...) mas
assim eu o quis! Assim hei de querê-lo” 164.

Entretanto, pode-se perguntar: como seria possível querer para trás já que o
próprio tempo não retrocede? Querer para trás seria apenas uma aceitação ou
conciliação com o fato de que o passado não pode ser transformado? Nesta direção,
Zaratustra indaga:

E quem lhe ensinou a reconciliação com o tempo e alguma coisa mais


elevada do que toda a reconciliação? Alguma coisa mais elevada do que toda
a reconciliação deve querer a vontade que é vontade de poder; mas como
chega lá? Quem lhe ensinaria o querer para trás? (NIETZSCHE, 1994,
P.152).

Deste modo, se o sentido da vontade de poder é a superação, então esta não


poderia querer apenas uma “reconciliação” com o tempo e seu “Foi assim”. Se o querer
é criador, a relação com o passado deve se instaurar desde uma criação, desde um
caráter ativo da vontade. Assim, importa perquirir: se o tempo não retrocede, como é
possível relacionar-se com o passado desde uma vontade ativa, criadora? Nas anotações
de Nietzsche para seu Zaratustra encontra-se a seguinte passagem: “Esta é a escolha

163
Ibidem
164
NIETZSCHE, 2008, p. 173.

87
diante da qual eu me coloquei: aquilo que eu não quis antes eu preciso querer depois
(reparar, enquadrar – aplacar)”165.

Reparar, enquadrar e aplacar designariam um caráter apropriativo que


transformaria o não querido anteriormente em algo querido posteriormente. Desta
maneira, o querer na vontade não negaria o passado, mas o afirmaria também não de
maneira conciliatória. Afirmar o passado seria então um interpretar e apropriar-se 166, o
que Zaratustra expõe como tarefa da vontade criadora: “Todo ´Foi assim´ é um
fragmento, um enigma e horrendo acaso– até que a vontade criadora diga a seu
propósito ´mas assim eu o quis´” 167. A vontade então se redime da vingança ao aprender
a querer para trás, querer que se articula de modo necessário a criar enquanto um ato de
apropriação e interpretação.

Pelo aspecto reativo da vontade impotente, ao passar do tempo que se esvai


“eternamente” no passado, pode-se pensar ainda como consequência uma
desvalorização do futuro como abertura de toda nova criação, pois também toda criação
seria desfeita pela marcha do tempo. Portanto, a aversão à criação seria um sintoma de
uma vontade impotente tomada pelo pathos do “em vão”. Nesta direção, apenas com a
redenção do passado apresentado como o maior peso e desafio para a vontade criadora,
outra relação com o tempo pode se estabelecer – desta vez uma relação afirmativa.
Neste sentido, Brussotti argumenta que:

165
Cf. NIETZSCHE, 1882/1883 4[81] apud Brusotti, 2012, p.159. Além desta passagem Brussoti cita
outras duas nesta mesma perspectiva: “Aquilo que não quis antes eu preciso querer depois – uma terceira
opção não me foi colocada.” (FP de 1883 22[1]) e “A redenção do acaso: o que deixei acontecer, isso sei
reparar para mim mesmo posteriormente: e por posso querer mais tarde aquilo que não quis antes” (FP de
1883 20[10]).
166
Neste sentido, Nietzsche, refletindo e problematizando o sentido histórico, em uma curta e bela
passagem, explicita um devir do passado: todo grande homem exerce uma força retroativa: toda a historia
é novamente posta na balança por causa dele, e milhares de segredos do passado abandonam seus
esconderijos – rumo ao sol dele. Não há como ver o que ainda se tornará a história (o passado). Talvez o
passado esteja ainda por descobrir. Tantas forças retroativas são ainda necessárias! Cf. NIETZSCHE, GC,
§ 34.

167
NIETZSCHE, 1994, p. 152. Grifo meu.

88
A dificuldade de “redimir” o passado é o principal problema na confrontação
de Zaratustra com o pensamento do eterno retorno. ‘Redimir’ o passado,
reinterpretá-lo, conferir sentido a ele e então afirmá-lo é em Assim falou
Zaratustra uma tarefa infinitamente difícil, quase além do humano. (...)
Também Zaratustra deve reivindicar para si esta habilidade somente uma tal
“redenção” do passado fará com que o futuro esteja novamente aberto. Para
Zaratustra, o futuro só se torna finalmente futuro quando o passado também
se converte em futuro. (BRUSSOTTI, 2012, P.157. Grifo meu).

Se, como visto no segundo capítulo desta dissertação, o passado só é apropriado


ganhando certa abertura que seria própria do futuro, a partir de um esquecimento ativo,
esta outra relação com o passado é apresentada em sua radicalidade a partir do
pensamento do eterno retorno. Neste sentido, a problemática do passado e do futuro é
retomada por Nietzsche no capítulo “Da visão e do enigma” através da discussão entre
Zaratustra e o anão, porém tomando como referência “o portal do instante” 168:

“Olha esse portal, anão!”, prossegui; “ele tem duas faces. Dois caminhos aqui
se juntam; ninguém ainda os percorreu até o fim. Essa longa rua que leva
para trás, dura uma eternidade. E aquela longa rua que leva para frente – é
outra eternidade. Contradizem-se, esses caminhos, dão com a cabeça um no
outro; e aqui neste portal, é onde se juntam. Mas o nome do portal esta
escrito no alto: ´instante´. Mas quem seguisse por um deles – e fosse sempre
adiante e cada vez mais longe: pensas, anão, que esses caminhos iriam
contradizer-se eternamente?” (Cf. NIETZSCHE, 1994, p.166).

A superação da dicotomia entre passado e futuro que os separa em campos


radicalmente opostos e não relacionados penso ser possível ser depreendida a partir da
pergunta feita ao anão por Zaratustra: “pensas, anão, que esses caminhos iriam
contradizer-se eternamente?”. Pode-se supor que estes “caminhos” (passado e futuro)
não se contradiriam eternamente, pois diz também Zaratustra que “neste portal, é onde
se juntam”. Nesta direção, a perspectiva temporal do eterno retorno superaria a
dicotomia de um passado entendido habitualmente como um “não mais agora” e que,
portanto, estaria fora do campo da atividade criadora, e de um futuro compreendido
como um “ainda não agora” inalcançável e aberto, ambos determinados por uma
compreensão do tempo presente como “agora”. Se, como compreendo, o anão é o
168
A tradução de Mário da Silva para augenblické momento. No entanto, preteri a tradução dessa palavra
para instante por este designar por vezes uma medida que não se refere necessariamente ao tempo
cronológico. Neste sentido, sigo a tradução de Gilvan Fogel em seu livro O homem doente do homem e a
transfiguração da dor.

89
representante dos valores metafísicos sedimentados e, portanto, tornados habituais,
Zaratustra pretenderia com sua questão desestabilizar certa estrutura de compreensão de
temporalidade determinada pela tradição metafísica que oporia radicalmente passado e
futuro desde uma noção de presente entendido como “agora”. Nesta direção, Eugen
Fink argumenta que:

A ideia do eterno retorno suprime a oposição entre o passado e o futuro, ou


melhor, confere ao passado o caráter do futuro, o caráter da possibilidade
indeterminada, e ao futuro confere o caráter determinado do passado. Os dois
tempos passam curiosamente um no outro, o tempo é o determinado e
simultaneamente o indeterminado, o já decidido e o ainda por decidir, o
passado tem características do futuro e o futuro características do passado. A
vontade pode agora não só agir para frente, pois ao agir para frente, age
simultaneamente para trás; o tempo perde a sua direção unívoca; as balizas
sólidas da compreensão habitual do tempo agitam-se. (FINK, 1983, P.96).

Assim, o passado tomado pela compreensão habitual como determinado adquire


pelo pensamento do eterno retorno certa abertura (“o caráter da possibilidade
indeterminada”). Mas essa outra compreensão do caráter temporal só seria possível a
partir de uma vontade de criar justamente capaz de querer posteriormente o não querido.
Querer o não querido pressuporia não apenas uma aceitação fatídica do passado, mas
uma interpretação deste passado. Também com isso o futuro adquiriria certa
determinação justamente porque a vontade liberada do peso de um passado fatídico
transfigura-se de impotente em potencia de criar ao afirmar seu querer como um “assim
hei de querê-lo” 169.

Nesse capítulo, Zaratustra traz o problema da temporalidade para outra


referência que não a do futuro e do passado. Desse modo, o instante torna-se o eixo para
outra compreensão da temporalidade. Mas o que vem ser o instante a partir das
perspectivas do anão e de Zaratustra?

Gilvan Fogel (2010) ressalta a compreensão de instante como um “agora” (do


presente) a partir do anão que representaria a compreensão sedimentada e habitual de
tempo:

169
Cf. NIETZSCHE, 1994, P. 152

90
Segundo essa representação habitual [encarnada pelo anão], temos a
linearidade e a sucessividade de passado, presente e futuro, e a contradição,
antes, a oposição de passado (o para trás, o já sido e acontecido) e futuro (o
para frente, o ainda não-sido ou ainda não acontecido num agora (presente)
ínfimo, o qual assim se torna a força, o principio de essencialização do
tempo, a sua gênese, como insistente retomada ou repetição da disjunção, da
separação e da oposição (o “chorismós”) passado-futuro. No agora (O “num
aristotélico) dessa representação, habitual, batem-se passado e futuro cara a
cara, e assim, infinitamente se opõem. (FOGEL, 2010, P.83).

O anão como espírito de gravidade seria o representante da compreensão


habitual do tempo que teria seu fundamento desde a tradição da metafísica aristotélica.
Para o anão, o instante seria apenas o agora (presente) e, desse modo, ele perpetuaria a
compreensão temporal que opõe passado e futuro como dimensões contraditórias. É a
esta compreensão que Zaratustra se opõe como inimigo do espírito de gravidade. Se
Zaratustra apenas formula perguntas ao anão, pode-se depreender o significado do
instante para ele através de uma passagem do capítulo intitulado “Do grande anseio”.
Por este trecho pode-se conceber que o aprendizado e ensinamento de Zaratustra em
relação ao tempo não se referem apenas a uma afirmação do instante como sinônimo de
tempo presente:

Ó minha alma, ensinei-te a dizer “hoje” como “algum dia” e “outrora” e a


dançar a tua ciranda sobre todos os aqui e ali e acolá. (...) Ó minha alma, já
não há, em parte alguma, alma mais amorosa e de maior âmbito e amplitude
do que tu! Onde estariam mais perto um do outro, do que em ti, o futuro e o
passado? (NIETZSCHE, 1994, p. 228).

Assim, entendo que Zaratustra não abandona a dimensão do passado e do futuro


em função de um “agora”, mas os integra a partir do instante que articularia passado-
presente-futuro. Nesse sentido, o “portal do instante” não é apenas a instância do
presente, mas o “lugar” onde se “juntam” passado-presente-futuro. Deste modo, o
instante é afirmado por Zaratustra, pois sua “alma” conquistou “maior âmbito e
amplitude” por não estar apenas circunscrita em um presente (agora), mas articulada de
um modo singular a partir da vontade de criar com a “totalidade” temporal. Nesta
direção, se poderia querer o não querido porque o que se quer não se articula com um

91
passado factual (compreendido desde um “agora”), mas sim uma retomada de uma
vivência que já foi apropriada e incorporada. A vontade de criar é sob este ponto de
vista não um deixar para trás o que passou, mas o incorporar e apropriar-se das
vivências (passadas) liberando “o homem” para a “atividade” (ação) no presente em
favor do porvir.

3.3 Passado e futuro - Esquecimento ativo e memória da vontade

Se é a partir do esquecimento, próprio do espírito transformado em criança, que


se torna possível uma relação apropriativa com o passado, caberia então pensar esta
outra “estrutura” da temporalidade a partir do esquecimento ativo, como também em
relação a certa concepção de memória desenvolvida por Nietzsche . Na segunda
dissertação da Genealogia da moral Nietzsche desenvolve uma noção de “memória da
vontade” que articula de modo singular passado e futuro. Assim como o esquecimento
ativo possibilita uma relação apropriativa com o passado, a “memória da vontade”
estabeleceria outra relação com o porvir, não mais compreendido como pura abertura,
mas a partir de certa determinação da vontade. Nesta perspectiva, Nietzsche explicita a
noção de memória da vontade argumentando que:

Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual esquecer é uma


força, uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta,
uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados
casos – nos casos em que se deve prometer: não sendo um simples não-mais-
poder-livrar-se da impressão uma vez recebida, não a simples indigestão da
palavra uma vez empenhada, da qual não conseguimos dar conta, mas sim
um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir querendo o já querido,
uma verdadeira memória da vontade. (NIETZSCHE, GM, NIETZSCHE,
1994, 44. Grifo do autor).

A memória da vontade estaria circunscrita à retomada de uma vontade ao querer


o já querido, o que possibilitaria ao homem “como faz quem promete, responder por si

92
como porvir” 170. Neste sentido, o futuro adquiriria certa determinação tradicionalmente
atribuída ao passado. Sendo uma memória da vontade, aquilo que é retomado não seria
uma representação do passado tornada consciente, pois a vontade não se refere para
Nietzsche a uma intencionalidade consciente, mas a uma hierarquia de forças ou
impulsos, na qual uma força é capaz de subordinar outras forças em favor de sua
atividade. A retomada de algo querido anteriormente (“querer o já querido”) não se
faria, portanto, necessariamente, pelo registro da consciência como esta é
tradicionalmente concebida enquanto registro oposto aos instintos e impulsos. Porém,
Nietzsche ressalta que “já se percebe que o conceito de consciência, com que deparamos
aqui em sua manifestação mais alta, quase desconcertante, tem uma longa história e
171
variedade de formas atrás de si.” . Esta “alta manifestação” da consciência faz
referência ao homem que Nietsche chama de soberano e neste, assinala o autor:

A consciência dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino,


desceu nele até sua íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante
– como chamará a esse instinto, supondo que necessite de uma palavra para
ele? Mas não há duvida, esse homem soberano o chama de sua consciência...
(NIETZSCHE, 2009, p.45. Grifo do autor).

No homem soberano a consciência não é um registro oposto ao instinto, mas um


instinto dominante que predomina sobre os outros. Porém, deste homem soberano capaz
de uma memória da vontade é preciso perguntar, pela ênfase que dá o autor ao
esquecimento ativo em uma saúde forte, se ele não necessitaria para sua saúde da força
do esquecimento ativo? Além disso, cabe indagar se haveria alguma relação entre a
memória da vontade e o esquecimento ativo, ou Nietzsche estabeleceria estas duas
noções como uma nova oposição?

O deslocamento frente às noções de memória e esquecimento assim como


concebidas pela tradição é feito pelo autor de maneira simultânea no primeiro parágrafo
da segunda dissertação da Genealogia da Moral. E por mais que o esquecimento seja
suspenso nos casos em que se deve prometer, Nietzsche afirma que após um longo
processo da tarefa da natureza de fazer um animal capaz de prometer:
170
Cf. NIETZSCHE, 2009, P.44.
171
Cf. NIETZSCHE, 2009, p.46.

93
Encontramos então o fruto mais maduro de sua árvore, o indivíduo soberano,
igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade dos costumes,
indivíduo autônomo supramoral (pois “autônomo” e moral se excluem).
(NIETZCHE, 2009, p.44).

Suponho que ao menos para esse indivíduo soberano só seria possível uma
memória da vontade, um querer o já querido, se também nele se exercesse um
esquecimento ativo, capaz de liberar a consciência das vivências passadas para que
“haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e funcionários mais nobres, para o
172
reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente)” .
Deste modo, o esquecimento ativo possibilitaria ao individuo soberano a atividade
necessária das funções, como também dos funcionários mais nobres capazes de dispor
os impulsos através do “reger, prever e predeterminar” no sentido de uma determinada
vontade. Esta perspectiva pode ser evidenciada a partir de uma passagem em que o
autor sublinha a função do esquecimento como liberador de um “eu mais subterrâneo”:

Meu instinto decidiu-se inflexível pelo fim daquele ceder, seguir, confundir-
se com outros (...). A doença deu-me igualmente o direito a uma completa
inversão de todos os meus hábitos; ela me permitiu, me ordenou esquecer;
deu-me de presente a obrigação ao repouso, ao ócio, à espera e à paciência…
Mas é isto que significa pensar!… […] Aquele “eu” mais subterrâneo, quase
enterrado, quase emudecido sob a constante imposição de ouvir outros
“eus”– e isto significa ler! –, despertou lentamente, tímida e hesitantemente,
mas enfim voltou a falar. Nunca fui tão feliz comigo mesmo quanto nos
períodos mais doentios e dolorosos de minha vida… (NIETZSCHE, 1995,
p.75).

Assim, o esquecimento permitiria um afastamento de tudo aquilo que


emudeceria o “eu” mais fundo. Em outras palavras, de tudo aquilo que desviaria um
“querer” de sua atividade. Neste sentido, Nietzsche grifa “eu” entre aspas apontando
para um uso próprio do termo que não o da concepção usual. Sob o meu posto e vista,
este “eu” aparece muito mais como um impulso, um afeto que retoma sua força pelo
esquecimento daquilo que o “emudecia”. Portanto, a retomada de um querer necessitaria
da atividade do esquecimento para que este pudesse novamente se impor. Nesta
perspectiva, pode-se supor que uma memória da vontade, a do homem soberano, só

172
Cf. NIETZSCHE, 2009, p.43.

94
seria possível pela faculdade de um esquecimento ativo que permitiria uma retomada,
não de uma representação mnemônica de um querer passado, mas da força desse querer,
e, portanto, de sua capacidade de subordinar e organizar hierarquicamente outras forças
(incluindo as advindas de acasos, novas vivencias, novos contextos...) a favor de sua
atividade e porvir.

Cabe ainda ressaltar que se ao longo da segunda dissertação da Genealogia


Nietzsche expõe uma criação da memória “a ferro e fogo” no animal esquecidiço que é
o homem tornando-o um animal domesticado e ressentido (o animal reativo, por
excelência), esta memória quando vinculada ao homem soberano permite-o ativamente
“responder por si como porvir”.173 Esta é uma “virada” frequente nos textos de
Nietzsche, a memória que servia a fins reativos é colocada em função de uma força
ativa ganhando outra constituição, pois seria subordinada a outra hierarquia, assumindo
uma diferente posição e “função” no interior de um novo complexo de forças.

Nesta direção, refletindo sobre a memória da vontade e o esquecimento ativo,


procurei ressaltar a importância destas duas noções para o desenvolvimento de uma
perspectiva temporal que se aproximaria da dinâmica do eterno retorno assim como
interpretada anteriormente. Pois, pelo esquecimento ativo, o passado, ao ser
incorporado/interpretado, ganharia certa abertura característica do futuro e o futuro, pela
memória da vontade, uma determinação que usualmente seria característica do passado.
Desta maneira, procurei refletir em torno destas noções nietzschianas desenvolvidas
ainda que posteriormente ao Zaratustra, mas que se relacionam com certa
problematização em relação ao tempo que provocaria pela relação entre vontade e
temporalidade uma desestabilização da avaliação metafísica de passado e futuro.

173
Cf. NIETZSCHE, 2009, p.44.

95
3.4 A dinâmica do mesmo e da diferença a partir do eterno retorno

Se a vontade de criar estabelece outra relação com a temporalidade como seria


possível pensar o eterno retorno apenas como retorno do mesmo? Um eterno retorno do
mesmo não impossibilitaria a criação do novo? Se o que retorna é o idêntico, o mesmo
pura e simplesmente, qual seria o sentido da anunciação do além do homem feita na
primeira parte que convocaria o homem ao movimento de superação? E, nesta direção,
não seria o eterno retorno uma absoluta conservação do mesmo, que excluiria todo o
porvir como possibilidade da diferença?

No capítulo intitulado “o convalescente” este parece ser o fastio de Zaratustra em


relação ao eterno retorno – o fato de que o pequeno homem, o homem que nada cria
sempre retornaria: “O grande fastio do homem – isto penetrara em minha goela e me
sufocava; e aquilo que proclamava o adivinho: ‘Tudo é igual, nada vale a pena, o saber
174
nos sufoca’” ·. A consideração do adivinho relacionada ao eterno retorno marcaria
uma posição confrontada pelo próprio Zaratustra ao lidar com os aspectos terríveis
desse pensamento: o eterno retorno do mesmo poderia levar a um niilismo passivo 175, a
uma total indiferença frente à atividade criadora de novos valores. Este é o sentido da
fala do adivinho que antevê:

174
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.225.
175
Roberto Machado explicita o sentido do niilismo passivo do seguinte modo: “(...) o niilismo passivo
causado pela impossibilidade de suportar que não haverá um aperfeiçoam ente do homem no sentido de
um progresso da humanidade, em outras palavras, que o homem pequeno, fraco, doente, reativo,
vingativo, culpado, sempre existirá. (...) Efetivamente, Nietzsche sentiu, como ninguém, que o maior
perigo que traz a morte de Deus é o aumento do niilismo no sentido da própria transformação do niilismo
reativo em um novo e ainda mais devastador tipo de niilismo: o niilismo passivo, representado no
Zaratustra pelo adivinho, personagem inspirado em Schopenhauer, que, não tendo mais esperança em
Deus e não acreditando mais em progresso humano, cansa-se, decepciona-se e lamenta pelo fato de o
homem não ter dado certo.” Cf. MACHADO, 2001, p.130.

96
Uma grande tristeza descer sobre os homens. Os melhores deles casaram-se
de suas obras. Proclamou-se uma doutrina, que uma fé acompanhava: ‘Tudo
é vazio, tudo é igual, tudo foi!’ (...) Inútil foi todo o trabalho (...) Em verdade,
já estamos cansados demais, para morrer; agora continuamos acordados e
vivendo - em câmaras mortuárias. (NIETZSCHE, 1994, p.145).

O pequeno homem é este homem que nada mais cria, por isso entristece
Zaratustra reconhecer que: “Eternamente retorna o homem de que estás cansado, o
pequeno homem” 176. Se tudo retorna como o mesmo, retornará, portanto, também este
homem afinado com o espírito de gravidade que desejaria apenas se conservar e nada
mais criar e superar. Portanto, através desta compreensão da dinâmica do eterno retorno,
o espírito de gravidade configurador do pequeno homem e do “pathos do em vão” não
poderia ser superado ou eliminado de uma vez por todas. Ele retornaria eternamente
como dimensão fundamental da vida. Ainda para Zaratustra, mesmo “o maior dos
homens” é considerado como “pequeno” e por isso ele conclui: “era esse o fastio que eu
177
sentia de toda existência” . Portanto, tomado pelo “pathos do em vão” Zaratustra
sente aversão da própria existência, pois de nada valeria uma existência em que sempre
e eternamente retornasse a “mesmice” e o peso do pequeno homem e do espírito de
gravidade. Aquilo que almejava Zaratustra, uma afirmação da existência e da vida como
superação é confrontado com o peso do eterno retorno do mesmo. Nesta direção afirma
Machado que:

E é justamente essa dificuldade que acarreta o perigo de uma identificação do


“tudo revém” do eterno retorno como o “tudo dá no mesmo”, “tudo é igual,
nada vale a pena do niilismo passivo. (...) A dificuldade do eterno retorno é
afirmar que o pequeno revém, sem cair no pensamento paralisante do
adivinho, de que nada vale a pena. O que pode provocar a náusea, o nojo o
fastio, o sufoco característico do niilismo passivo. (MACHADO, 2001,
P.131).

Mas quem é este Zaratustra que a partir da visão do eterno retorno repudia a existência?
O que o próprio Zaratustra afirma em “O convalescente” é que ele estava doente.

176
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.224.
177
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.225.

97
Zaratustra narra uma compreensão passada, pois diz que “se lembrou de sua
178
enfermidade” . Contudo, nesta passagem Zaratustra é um convalescente que está
recuperando sua saúde, e, a partir de uma nova saúde, pode adquirir outra perspectiva
do eterno retorno. Esta é enunciada por seus animais que falam se referindo a
Zaratustra:

Eternamente retornarei para esta mesma e idêntica vida, nas coisas maiores
como nas menores, para que eu volte a ensinar o eterno retorno de todos a as
coisas- para que eu volte a pregar a palavra do grande meio dia da terra e dos
homens, para que eu volte a anunciar aos homens o além do homem.
(NIETZSCHE, 1994, P.224).

Se são seus animais que anunciam essa perspectiva e não Zaratustra, este,
no entanto, não nega esta interpretação, apenas silencia. Portanto, penso ser válido
analisar esta perspectiva como uma possível interpretação. Se o eterno retorno é um
pensamento referido à vida sem os pressupostos morais e transcendentais da metafísica,
179
e vida para Zaratustra é aquela que “quer superar-se” . Penso o eterno retorno como
um regresso da dinâmica da própria vida entendida como vontade de potência através da
superação. Mas só é possível superação quando há o que se superar. Assim, o que
retornaria seria esta dinâmica tensional entre o mesmo (do espírito de gravidade) e a
diferença pela superação (do além do homem).

Uma vez que o espírito de gravidade sempre retorna enquanto dinâmica da


própria vida, com isso a fixidez e petrificação dos valores também retornariam e,
consequentemente, a desvalorização do vir a ser. Mas é dito na passagem citada que
também retorna o anunciador do além do homem como possibilidade da criação no
porvir. Nesta direção, pode-se compreender melhor as metamorfoses do espírito em um
sentido não progressivo e teleológico, mas como a necessidade de uma perene retomada
da suportarão e deslocamento de valores tornados fixos pelo espírito de gravidade, da
destruição destes valores pelo sagrado “não”, para que haja novamente liberdade para a
criação de novos valores não determinados pelos valores sedimentados. Deste modo,
assinalo uma relação entre uma perspectiva do eterno retorno a partir da interpretação

178
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.226.
179
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 127.

98
dos animais de Zaratustra e o problema da criação dos valores trabalhado nos capítulos
anteriores.

Nietzsche, em A gaia ciência, explicitaria esta dinâmica de um “eterno retorno


do mesmo e da diferença” ao enfatizar que toda criação de novos valores se torna ao
longo do tempo uma sedimentação, uma “realidade”:

A reputação, o nome e a aparência, o peso e a medida habituais de uma coisa,


o modo como é vista - quase sempre uma arbitrariedade e um erro em sua
origem, jogados sobre as coisas como uma roupagem totalmente estranha à
sua natureza e mesmo à sua pele – mediante a crença que as pessoas neles
tiveram, incrementando por gerações, gradualmente se enraizaram e
encravam na coisa, por assim dizer, tornando-se seu próprio corpo: a
aparência inicial termina quase sempre por tornar-se essência e atua como
essência. Que tolo que acharia que basta apontar essa origem e esse
nebulosos manto de ilusão, para destruir o mundo tido por essencial, a
chamada realidade? Somente enquanto criadores podemos destruir! Mas não
esqueçamos também: basta criar novos nomes e avaliações e probabilidade,
para, a longo prazo, criar novas coisas. (NIETZSCHE, GC, §58).

Neste sentido, o autor aponta para uma dinâmica no qual apenas pela criação de
novos valores aquilo que se tornou “realidade” pode ser destruído, mas que novamente a
longo prazo, ressalta Nietzsche, tornar-se-ão “coisas”, “realidade”. Portanto, “realidade”
pode ser compreendida como valores que foram criados, mas “a longo prazo” tornaram-
se fixos e que delimitariam nesta condição o horizonte de novas possibilidades de
avaliações. Assim, Nietzsche atenta para uma dinâmica da criação de valores em que “o
espírito de gravidade” (a força de sedimentação) se faria presente ao fixar uma criação
como “coisa real”. Logo, se toda criação se fixa como realidade, torna-se necessário
para o filosofo que precisa “agir contra o tempo, portanto sobre o tempo [...] em
180
benefício de um tempo por vir” , destruir os valores vigentes a partir de uma medida
de valores próprios. Mas se os novos valores se contrapõem aos velhos há, portanto,
uma relação entre estes: toda criação de novos valores se relacionaria de maneira critica
com os valores vigentes a fim de empreender a destruição destes. Neste sentido, o além
do homem que retornaria como um principio da diferença na dinâmica da repetição do
mesmo seria um “outro nome” para a possibilidade de abertura da criação de valores no

180
Cf. NIETZSCHE, CE 2, “Introdução”.

99
porvir pela destruição daquilo que se tornara ao longo do tempo sedimentado. Assim, o
eterno retorno, nesta perspectiva, não poderia ser apenas um eterno retorno do mesmo,
mas um retorno do mesmo e do diferente, da conservação e da superação, do espírito de
gravidade e do além do homem.

3.5 O eterno retorno como principio ético

Se na seção anterior procurei desenvolver uma interpretação do eterno retorno a


partir da perspectiva dos animais de Zaratustra, faz-se necessário ainda refletir em torno
da narrativa da experiência do próprio Zaratustra para compreender a singularidade de
sua trajetória como mestre do eterno retorno. Roberto Machado, distinguindo estas duas
perspectivas, afirma que:

(...) Para os animais, o eterno retorno é a volta dos círculos naturais, a eterna
repetição do mundo e das coisas do mundo. E é justamente porque os animais
têm uma perspectiva natural com relação ao eterno retorno que eles não
passam pela experiência do niilismo – não são ameaçados pelo horror e pela
náusea -, nem precisam de coragem para ultrapassá-lo e se redimirem. (...) Já
a perspectiva de Zaratustra é a de alguém que pode ter uma vontade
afirmativa ou negativa e que, portanto, precisa de coragem para viver a vida e
sua tragicidade (...) (MACHADO, 2001, p.141).

Nesta perspectiva, para interpretar o impacto do eterno retorno em Zaratustra,


desenvolvo uma reflexão em torno da segunda parte de “Da visão e do enigma” e do
capítulo “O convalescente” em que a personagem narra sua experiência com seu
“pensamento abissal”: após a discussão de Zaratustra com o anão, no portal do instante,
acerca do eterno retorno tal qual uma “visão”, a cena anterior se desvanece dando lugar
a outra situação. Zaratustra diz que seu “pensamento volveu-se ao passado. Sim!
181
Quando eu era criança, na mais remota infância...” . Em síntese, Zaratustra se depara
com um homem ao chão contorcendo-se e sufocando-se. Este homem era um jovem

181
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.167.

100
pastor de cuja boca pendia uma “negra e pesada cobra”. Zaratustra então diz que algo
gritava de dentro de si ao pastor:

Morde! Morde! Decepa-lhe a cabeça! Morde! – assim gritou dentro de mim,


assim meu horror, o meu ódio, o meu asco, a minha compaixão, todo o meu
bem e meu mal gritaram de dentro de mim, um único grito. (...) Quem é o
pastor em cuja garganta a cobra se insinuou? Quem é o homem em cuja
garganta se insinuará tudo o que há de mais negro e mais pesado?
(NIETZSCHE, 1994, p.167).

Estas são as perguntas do enigma proposto por Zaratustra aos marinheiros. Sua
resposta é evidenciada no capítulo “O convalescente” quando Zaratustra narra que
“aquele monstro me penetrou a goela, sufocando-me! Mas eu lhe mordi a cabeça e a
182
cuspi para longe de mim” . Zaratustra, aquele que deve torna-se o mestre do eterno
retorno, era esse homem no perigo de sufocar-se e envenenar-se com o que há de mais
negro e pesado. O anunciador e porta-voz do eterno retorno era o pastor que tinha sua
garganta sufocada por uma negra e pesada cobra. Entretanto, quem é esse monstro, essa
cobra? A cobra é caracterizada como o que há de “mais negro e mais pesado”, e o
pesado como já exposto é a característica fundamental do espírito de gravidade. Desse
modo, o anão que antes o encarnava desaparece, mas o peso do espírito de gravidade é
presentificado na lembrança pela cobra.

Zaratustra afirma ainda que o que penetrara em sua goela e o sufocara fora: “O
grande fastio que sinto do homem” e “aquilo que proclamara o adivinho: Tudo é igual,
183
nada vale a pena, o saber nos sufoca” . Assim, a cobra pode ser entendida como o
peso do niilismo passivo que levaria Zaratustra pela visão do eterno retorno do mesmo
ao “pathos do em vão”. Neste sentido, compreendo seu medo frente aos efeitos do
pensamento do eterno retorno, pois a personagem dizia ao desfecho do diálogo com o
anão: “Assim falei e cada vez mais baixinho: porque tinha medo dos meus próprios
pensamentos, e do que eles ocultavam”184.

182
Cf. NIETZSCHE, 1994, p.224.
183
Cf. NIETZSCHE, 1994, p. 225
184
Cf. NIETZSCHE, 1994, P.167

101
Pode-se, ainda, supor que a referência ao passado e à infância se articulem com
duas questões cruciais que sublinhei na gênese do eterno retorno: o problema do
passado como desafio para a vontade, e o espírito tornado criança como abertura a uma
nova posição frente à temporalidade. Desta maneira, pelo retorno ao seu passado,
Zaratustra retomaria a gênese do eterno retorno através do desafio do passado, pois o
passado compreendido no sentido histórico é a historia da metafísica e do cristianismo
configuradores do “pequeno homem” e do “pathos do em vão” - mas também retomaria
a possibilidade de superação destes pelo espírito tornando criança. Esta superação
expressar-se-ia pelo desfecho da cena, na qual:

O pastor, porém, mordeu, como o grito lhe aconselhava; mordeu com rija
dentada! Cuspiu bem longe a cabeça da cobra; e levantou-se de um pulo. Não
mais pastor, não mais homem – um ser transformado, translumbrado, que ria!
Nunca até aqui na terra, riu alguém como ele ria! Oh, meus irmãos, eu ouvia
um riso que não era riso de homem – e, agora, devora-me uma sede, um
anseio, que nunca se extinguirá! Devora-me um anseio por esse riso: oh,
como posso, ainda suportar viver! E como agora suportaria morrer!
(NIETZCSHE, 1994, P.168).

Como assinala o trecho, o pastor transfigura-se ao morder e lançar ao longe a


cobra, isto é, o peso do niilismo passivo que o sufocava; sua transfiguração é, portanto,
a passagem do peso imobilizador do niilismo passivo à leveza de um “ser” capaz de rir.
Esta seria a risada de “um novo começo”, de um espírito tornando criança para além do
peso moral de um “Tu deves”. Mas para tornar-se possível esse novo começo, o pastor
vivenciou em seu próprio corpo o peso dessa longa historia que é a historia “da melhor
185
reflexão dos homens: o espírito de vingança e sua aversão contra o tempo” , ou seja, a
história da metafísica.

Este “ser” para além do homem (“não mais homem”- diz-se na passagem citada )
riria porque liberto de todo o peso moral que até então determinou o próprio homem e o
próprio deste homem. E é neste sentido que estaria ele para além do homem, ou seja,
para além do homem determinado pela metafísica. Sobre o riso, Nietzsche se dedica de
forma mais ampla como um tema próprio de sua filosofia na sua obra A gaia ciência.
Cabe, portanto, desenvolver uma reflexão sobre o riso a partir desta obra para que se
possa compreender a importância deste riso do além do homem. No primeiro parágrafo,
185
Cf. NIETZSCHE, 1994, pp. 149-153.

102
o autor desenvolve uma reflexão sobre os mestres da finalidade da existência e a
importância do riso:

Para que tudo o que ocorre necessariamente e por si, sempre e sem nenhuma
finalidade, apareça doravante como tendo sido feito para uma finalidade e
seja plausível para o ser humano, enquanto razão e derradeiro mandamento-
para isso entra em cena o mestre da ética, como mestre da finalidade da
existência: para isso ele inventa uma segunda outra existência e com sua nova
mecânica tira essa velha ordinária existência de seus velhos e ordinários
eixos. Sim ele não quer absolutamente que riamos da existência, tampouco de
nós -tampouco dele (...) A cada vez que o “herói” entrava em cena algo de
novo era alcançado, essa horrível contrapartida do riso, essa profunda
comoção de muitos indivíduos a pensar: “Sim, vale a pena viver” sim, vale a
pena que eu viva! - a vida, eu, você, todos nós mutuamente, voltamos a ser
interessantes por algum tempo. - É inegável que a longo prazo cada um
desses grandes mestres da finalidade foi até agora vencido pelo riso, a razão e
a natureza: a breve tragédia sempre passou e retrocedeu afinal à eterna
comedia do existir, e “as ondas incontáveis de risos” – nas palavras de
esquilo- devem finalmente se abater sobre os maiores desses trágicos
também. (NIETZSCHE, GC, §1. Grifo meu).

Portanto, para Nietzsche, o “tempo da tragédia” é “o tempo das morais e


religiões”186, no qual se tornaria necessário para a “conservação da espécie” 187 o
surgimento de uma fé, de uma finalidade para a vida através da qual os homens
poderiam aclamar “vale a pena viver (...) há algo de significativo nesta vida, ela tem
algo por trás de si, embaixo de si, atenção!” 188. Assim, através das morais e religiões
seria sobreposta uma finalidade à vida que atuaria como um fundamento, um solo fixo
para que se pudesse viver. Esta finalidade configurar-se-ia para o homem como o peso e
a gravidade da existência e, portanto, algo que precisaria ser levado a serio, “algo de que
não se pode mais rir em absoluto!” 189. Neste sentido, o autor aponta para uma dinâmica
na qual de tempos em tempos surgiriam esses mestres da finalidade que anunciariam ao
homem um sentido e um dever a ser cumprindo em prol desta finalidade: “a vida deve
ser amada, pois-! O ser humano deve promover a si e ao próximo, pois-! E quaisquer
que sejam e venham a ser futuramente esses Deves e pois!”190. Nietzsche, ao não nomear
186
Nietzsche, GC, § 1.
187
Ibidem.
188
Ibidem.
189
Ibidem.
190
Ibidem.

103
o que viria depois deste “pois”, estaria apontando para uma “estrutura” que seria
ocupada historicamente por diferentes “nomes” (Verdade, Deus, homem, Bem), que
ocupariam a função de um fundamento.

Desta maneira, Nietzsche apresenta um determinado sentido para uma ética que
estaria a serviço de um fundamento moral e que negaria desse modo um caráter
fundamental da vida e da existência apontado em diversas passagens de A gaia ciência:
sua aparência, superficialidade, falta de lei e sentido 191. Esta caracterização da vida
aproximo de uma noção fundamental de Nietzsche, a inocência do vira ser, através da
qual o autor concebe a existência para além de qualquer ordem moral. Nesta direção,
haveria uma afinidade entre o riso e a inocência do vir a ser, pois o riso, o “tempo do
riso” seria o tempo de uma leveza livre do peso da seriedade imposta por uma finalidade
da existência.

Pela afirmação da inocência do vir a ser, Nietzsche procuraria conceber uma


crítica às concepções morais e teológicas que julgam a vida com medidas idealizadas e
extrínsecas à própria vida. Inocência em alémão é Unschuld, palavra que se compõe de
não (un) e culpa (schuld). Desta maneira, Nietzsche estaria fazendo uma referência a
uma compreensão da tradição metafísica que atribui um valor negativo ao vir a ser
frente ao ser. Nesta direção, já na sua Filosofia na época trágica dos gregos, Nietzsche
afirma que para Anaximandro: “O ser originário assim denominado está acima do vir a
ser e, justamente por isso, garante a eternidade e o curso interrupto do vir a ser” 192.
Porém, esta argumentação que explicaria o ininterrupto vir a ser a partir de um ser
indeterminado subordinar-se-ia a um problema ético-moral. Para Nietzsche,
Anaximandro:

Foi o primeiro grego que ousou tomar nas mãos o novelo do mais profundo
problema ético. Como pode perecer algo que tem direito de ser. De onde vem
aquele incansável vir-a-ser e engendrar, de onde vem aquela contorção de dor
na face da natureza (...). Desse mundo do injusto, do insolente declínio da
unidade originária das cosias, Anaximandro refugiou-se em um abrigo
metafísico, do qual se debruça agora, deixa o olhar rolar ao longe, para
enfim, depois de um silencio meditativo, dirigir a todos os seres a pergunta:
“O que vale vosso existir? E se nada vale para que estais ai? Por vossa culpa,
observo eu, demorai-vos nesta existência. (...) vede como murcha vossa terra.
(...) Mas sempre, de novo, voltará a edificar-se um tal mundo de

191
CF. NIETZSCHE, GC, § 64, §109 e § 373.
192
Cf. NIETZSCHE, 2008, p.14.

104
inconstância: quem seria capaz de livrar-vos da maldição do vir a ser?
(NIETZSCHE, 2008, p.14. Grifo Meu).

Através desta passagem, pode-se depreender que o problema ético que


Anaximandro teria tomado em mãos é condicionado por uma “posição” metafísica (e
moral) que parte de uma dualidade entre ser e vir a ser, na qual este último é
moralmente designado como maldição. Neste sentido, o vir a ser subsistiria apenas
devido a uma culpabilidade. Porém, esta concepção estaria ainda presente na
modernidade. Nietzsche argumenta que:

Hoje, […] quando nós, imoralistas, buscamos com toda a energia


retirar novamente do mundo o conceito de culpa e o conceito de
castigo, e deles purificar a psicologia, a história, a natureza, as sanções
e instituições sociais, não existem, a nossos olhos, adversários mais
radicais do que os teólogos, que, mediante o conceito de “ordem
moral do mundo”, continuam a empestear a inocência do vir-a-ser
com “culpa” e “castigo”. (NIETZSCHE, GD/CI, “Os quatro grandes
erros”, § 7).

O autor assinala através desse trecho que as noções de culpa e castigo


apropriadas pelos teólogos não apenas depreciam o vir a ser (e a vida) como também as
diversas esferas da cultura moderna estariam impregnadas por esses valores. Desse
modo, também as ações do homem são moralmente julgadas a partir de conceitos como
culpa e castigo. Nietzsche afirma em Aurora que: “Essa ideia foi introduzida não
somente nas consequências de nossa maneira de agir — e oque poderia haver de mais
nefasto e mais irrazoável que interpretar a causa e o efeito como causa e como
punição!” 193·.

Neste sentido, a afirmação da inocência do vir a ser pode ser entendida como
uma estratégia do autor que visaria a um abalo dos critérios de julgamento moral
(metafísicos e teológicos) de tudo aquilo que vem a ser, incluindo neste também o
homem. Este abalo se faria justamente porque através da afirmação da inocência do vir

193
Cf. NIETZSCHE, A, § 13.

105
a ser Nietzsche se deslocaria do binarismo metafísico que necessitaria da noção de ser
para explicar moralmente a existência de um vir a ser. Desse modo, através da hipótese
da repetibilidade da vida (e nada além disto) pelo eterno retorno o autor conceberia uma
afirmação radical da inocência de um vir a ser sem um principio e um fim, ou seja,
através desta hipótese, o autor buscaria superar as dicotomias metafísicas entre
eternidade e tempo194, ser e vir a ser, um e múltiplo. Esta direção pode ser depreendida,
por exemplo, a partir do seguinte trecho de um fragmento póstumo:

E sabeis sequer o que é para mim o mundo? (...) Este mundo: uma
monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza
de força, que não se torna maior, nem menor, (...) jogo de forças e ondas de
forças ao mesmo tempo um e múltiplo. (Cf. NIETZSCHE, 1978, § 1067).

Para Nietzsche, a concepção da inocência do vir a ser radicalizada através do


eterno retorno, possibilitaria a afirmação de uma existência sem a necessidade de um
inicio ou princípio, fim ou finalidade, noções que possibilitam uma compreensão
teleológica da existência. Desse modo, o autor procuraria se afastar de um erro
filosófico fundamental segundo o qual se compreenderia o vir a ser a partir de uma
perspectiva moral da existência. Neste sentido, o além do homem liberto do peso da
finalidade da existência é aquele que vivenciaria a vida compreendida como inocência
do vir a ser. Também haveria a partir desta posição do além do homem frente ao vir a
ser outra relação com o que fora estabelecido como fundamento e finalidade da vida que
penso poder ser exemplificada pelo ideal humano-sobre-humano que Nietzsche propõe
em A gaia Ciência:

Nós necessitamos, para um novo fim, também de um novo meio, ou seja, de


uma nova saúde, mais forte alerta alegre firme audaz que todas as saúdes até
agora. Aquele cuja alma anseia haver experimentado o inteiro compasso dos
valores e desejos até agora existentes e haver navegado todas as praias desse
“mediterrâneo ideal!” (...) O ideal de um espírito que ingenuamente, ou seja,
sem o querer, e por transbordante abundância e potencia, brinca com tudo o
que até aqui se chamou de santo, bom, intocável, divino. (...) O ideal de bem-
estar humano-sobre-humano, que com frequência parecerá inumano, por
exemplo, ao colocar-se ao lado de toda a seriedade terrena até então, ao lado

194
Cf. MACHADO, 2001, P.135

106
de toda a anterior solenidade em gesto, palavra, tom, olhar, moral e dever,
como sua mais viva paródia involuntária (...) (NIETZSCHE, GC,§382)

Brincar com os valores: isto é próprio ao espírito tornando criança porque


este já não estaria submetido ao imperativo de um “Tu deves”, ou seja, a um dever
moral, pois brincar com o que foi tomado como o mais sério e fundamental para o valor
da existência já seria deslocar esses valores tidos como imutáveis e fixos. Identifico
também esse ideal com a própria trajetória de Zaratustra através de sua lida
constantemente retomada com os valores do espírito de peso. Nesta direção, Zaratustra
diz que “quando vi meu diabo, achei-o sério, meticuloso, profundo e solene: era o
espírito de gravidade – a causa pela qual todas as coisas caem. Não é com a ira, mas
com o riso é que se mata. Eis, pois, vamos matar o espírito de gravidade” 195

Também se pode entender a partir do trecho citado a importância da paródia ao


cristianismo e à metafísica presente no Zaratustra. A paródia seria já uma “posição”
movida pelo pathos do riso capaz de “dessacralizar” a seriedade da finalidade da
existência fundada em valores morais. Nesta perspectiva, Nietzsche escreve em uma
anotação póstuma que: “A partir da cumulação, Zaratustra se relaciona parodicamente
com todos os valores anteriores”196. Portanto, a trajetória de Zaratustra seria este
caminho de colocar-se “ao lado de toda a seriedade terrena até então, ao lado de toda a
anterior solenidade”.

E se a critica de Nietzsche à metafísica e ao cristianismo é sempre uma critica


aos valores morais que os fundamentam pode-se compreender porque também o autor
chama o “mestre da finalidade da existência” de “mestre da ética”. Neste sentido, a ética
pressuporia sempre um fundamento moral que promoveria essencialmente a
conservação daqueles que necessitam de um sentido extrínseco à própria vida e à
inocência do vir a ser, isto é, o pequeno homem incapaz de qualquer criação. Deste
modo, o autor, parodiando Kant, afirma que:

195
Cf. NIETZSCHE, 1994, P.58.
196
CF. NIETZSCHE apud FOGEL, 2010, p.132.

107
A “virtude”, o “dever”, o “bem em si”, o bem dotado do caráter de
impessoalidade e universalidade – são apenas elucubrações que expressam o
declínio, o último grau do enfraquecimento da vida, a chinesice
koenisberguiana. É o contrario que as leis mais profundas da conservação e
do desenvolvimento postulam: que cada um invente sua própria virtude, seu
próprio imperativo categórico (NIETZSCHE, AC, §11).

A partir desse trecho, que explicita uma ética fundada na impessoalidade e


universalidade, uma questão pode ser formulada: como seria uma ética pensada através
do pensamento do eterno retorno e da inocência do vir a ser?

À diferença da passagem em torno do eterno retorno de A gaia ciência197, na


qual Nietzsche expõe dois possíveis efeitos do eterno retorno (o júbilo ou a prostração),
Zaratustra – como pode-se depreender da cena do pastor – experimenta tanto o eterno
retorno como o maior dos pesos por seus aspectos terríveis e problemáticos, que
poderiam levar a um niilismo passivo, quanto pelo riso da inocência. Esta experiência
tornaria Zaratustra o mestre do eterno retorno, pois este haveria vivenciado
perspectivamente os efeitos deste pensamento. Porém, sendo Zaratustra o porta voz do
eterno retorno, estaria ele ensinando a sua aprendizagem? Em “Do espírito de
gravidade”, capítulo no qual Zaratustra explicita sua vontade em contraposição à do
espírito de gravidade, lê-se que:

Experimentar e interrogar – consistiu nisso todo o meu caminhar; e, na


verdade, deve-se aprender, também, a responder a tais perguntas! Mas esse –
é o meu gosto – (...) “Este agora é o meu caminho, onde está o vosso?” –
assim respondia eu aos que me perguntavam “o caminho”. Porque o caminho
– não existe! (NIETZSCHE, 1994, p. 201)

Assim, para Zaratustra não existe o caminho entendido como algo universal e
impessoal que pressuporia uma finalidade (moral) da existência e, consequentemente,
um dever a ser cumprido por todos, pois somente havendo uma finalidade e um único
sentido da existência poderia haver o caminho. Dessa maneira, o eterno retorno como
um pensamento que afirmaria radicalmente a inocência do vir a ser só poderia ser
experimentado como um princípio ético da singularidade198·.

197

198
Sobre uma ética da singularidade em Nietzsche Cf. MACHADO, 2001, P.133.

108
Assim, somente levando em consideração a própria vida (a vida de cada um) de
modo singular poder-se-ia afirmar o instante como um momento criador ao suportar o
que há de problemático e “não querido” em um passado, para que incorporando o “não
querido” este possa ser apropriado e assim liberando a atividade no presente em favor
do porvir. Afirmar o instante “como se” ele fosse repetir-se eternamente é, portanto,
assumir a própria a vida como criação, e este seria o peso insuportável para aqueles que
almejariam uma redenção ou salvação para além desta vida; pelo eterno retorno nada
haveria além desta mesma vida retornando eternamente. Neste sentido, o eterno retorno
seria ao mesmo tempo o maior dos pesos e o pensamento mais afirmativo da vida, pois,
por sua dinâmica, aquilo que há de “não querido” em uma vida retornaria “eternamente”
colocando em prova a força de cada um em confronto com o que há de mais
problemático, mas abrindo assim a possibilidade de sua superação. Roberto Machado,
sobre o eterno retorno, argumenta que:

Nos textos publicados, o pensamento do eterno retorno aparece


principalmente como uma prova, um teste, um desafio que tem por objetivo
aquilatar o efeito que a ideia de eterna repetição da vida tem sobre a vontade
humana. (MACHADO, 2001, p. 151).

Deste modo, interpreto a partir da perspectiva de Zaratustra o eterno retorno


como uma formulação trágica, isto é, “o dizer sim à vida, mesmo em seus problemas
mais duros e estranhos (...)”199, porque colocaria para a vontade o desafio da eterna
repetição de uma vida sem uma salvação ou correção desta. O difícil de suportar nesse
desafio seria afirmação dos aspectos “duros e estranhos” da vida, haja vista que estes
também voltariam. Porém, compreendo a afirmação não como um fatalismo ou uma
resignação, mas um desafio para a vontade de criar, porque apenas por um pathos
afirmativo e criador poder-se-ia transfigurar aquilo que há de mais pesado em
determinada vida. Nesta perspectiva, penso esta transfiguração dos aspectos “duros e
estranhos” da vida no sentido dado por Nietzsche em diversas passagens à criação
artística não de uma obra de arte mas da própria vida como obra:

A arte deve, além disso, ocultar ou reinterpretar tudo o que é feio, aquele lado
penoso, apavorante, repugnante que, a despeito de todo esforço, irrompe
199
Cf. NIETZSCHE, 1995, P.63

109
sempre de novo, de acordo com o que é próprio à natureza humana: deve
proceder desse modo especialmente em vista das paixões e das dores e
angústias da alma e, no inevitável e irremediavelmente feio, fazer
transparecer o significativo. (NIETZSCHE, HDH II, § 174.).

Neste perspectiva, pode-se compreender a articulação que assinalo entre o eterno


retorno e a vontade de criar, articulação aparentemente contraditória, pois pode-se
indagar: como é possível afirmar os aspectos problemáticos da vida (o sofrimento, o
“não querido”...) e ao mesmo tempo promover a criação e a interpretação destes
aspectos, sem que com isso se precisasse corrigir ou idealizar a vida? Penso que a
diferença fundamental entre a correção da vida e a criação está na posição destas frente
à moral. Enquanto toda correção de vida pressupõe uma moral que avalia a vida a partir
de um bem e um mal e, por conseguinte, necessita excluir ou superestimar um pólo em
detrimento do outro, a criação estaria próxima de uma avaliação singular na qual uma
vontade criadora seria capaz de reinterpretar ao considerar (e não excluir moralmente)
“o que é feio, aquele lado penoso, apavorante, repugnante”. Esses aspectos da vida,
conforme se pode ler na passagem supracitada, “irromperiam sempre de novo”. Deste
modo, o autor assinalaria uma necessidade de uma constante retomada da atividade
criadora. Assim, se é possível conceber uma ética a partir do pensamento do eterno
retorno, esta se caracterizaria fundamentalmente pela afirmação “tranfigurativa” do que
é problemático na vida e não por sua negação200. Nesta direção, tampouco o sofrimento
seria negado ou moralmente interpretado como um índice que levaria a uma
desvalorização da vida. Sob esse ponto de vista, Nietzsche propõe uma outra avaliação
do sofrimento:

E se prazer e desprazer forem de tal modo entrelaçados, que quem desejar o


máximo de um tenha de ter igualmente o máximo de outro-. (...) Ainda hoje
vocês têm essa escolha: ou o mínimo de desprazer possível, ausência de dor
(...); ou o máximo de desprazer possível, como preço pelo incremento de uma
abundancia de sutis prazeres e alegrias, ate hoje raramente degustados.
(NIETZSCHE, GC, §12).

200
Nesta direção, argumenta Roberto Machado que: “Deste modo, para a vontade que afirma o eterno
retorno o peso das coisas muda: ao querer o que é, tornando-se independente com relação à moral e sua
dicotomia de valores, a vontade torna leve o peso das cosias” cf. MACHADO, 2001, P.144.

110
Portanto, a exclusão do sofrimento seria ao mesmo tempo a exclusão do prazer.
Desse modo, mesmo aquilo que causa “desprazer” precisaria ser afirmado por aquele
que deseja a vida “uma vez mais”, porque desprazer e prazer estariam entrelaçados.
Assim, querer o não querido e tudo aquilo que se mostra como problemático é
necessário para a vontade que afirma a vida “uma vez mais”. Esta perspectiva aparece
de forma contundente no “canto ébrio” de Zaratustra que faz referencia ao eterno
retorno:

A dor é também um prazer, a maldição é também uma benção, a noite é


também um sol; ide daqui, senão aprendereis: um sábio é também um louco.
Dissestes sim, algum dia, a um prazer? Ó meus amigos, então o dissestes,
também, a todo o sofrimento. Todas as coisas acham-se encadeadas,
entrelaçadas, enlaçadas pelo amor. E se quisestes, algum dia, duas vezes o
que houve uma vez, se dissestes, algum dia: “Gosto de ti felicidade! Volve
depressa, momento!”, então quisestes a volta de tudo! — Tudo de novo, tudo
eternamente, tudo encadeado, entrelaçado, enlaçado pelo amor, então,
amastes o mundo “ (NIETZSCHE, 1994, p. 324).

Através deste canto ébrio, Zaratustra expressaria uma outra forma de valoração
das coisas ao superar as dicotomias próprias da metafísica. Desse modo, o eterno
retorno pode ser entendido como uma afirmação trágica da vida por não excluir seus
aspectos problemáticos, que permitiria àqueles que podem assenti-los dar-lhes um novo
sentido a partir de uma outra relação com a temporalidade. O entrelaçamento de todas
as coisas pode ser compreendido igualmente no sentido temporal: passado, presente e
futuro estariam enlaçados através da vontade de criar. Desvalorizar umas das dimensões
temporais em detrimento da outra equivaleria a desprezar o próprio tempo entendido
como este enlaçamento de suas dimensões. Portanto, o homem, assim como Zaratustra o
compreende, é este que vem a ser desde a abertura no tempo do porvir, assim como
visto anteriormente (seção 1.1). Porém, cabe, após o percurso feito, recolocar essa
proposição: a abertura para a superação no tempo do porvir só seria possível pela
201
“transfiguração” do passado que determinaria o homem no presente em uma
sedimentação e, deste modo, o impediria de ir além de si. Esta abertura seria a
possibilidade de uma determinação da vontade (e não mais de uma vontade determinada
por um “Tu deves” passado) no sentido de uma memória da vontade através da qual o

201
Roberto Machado argumenta que: “Se o eterno retorno é um antídoto à vontade de vingança – dando
nova dignidade ao tempo – é porque transfigura o passado, ao torná-lo resultado da atividade ou da
afirmação da vontade de potencia” Cf. MACHADO, 2001, P. 108.

111
homem pode responder a si mesmo como porvir 202. Portanto, este seria um outro sentido
ético do eterno retorno: ao radicalizar a inocência do vir a ser este pensamento livraria o
homem das noções morais de culpa e castigo (próprias ao espírito de vingança)
permitindo-o o ato criador que é ao mesmo tempo criação e destruição, isto é,
superação.

Considerações finais

Como indicado inicialmente, o objetivo principal desta dissertação foi analisar o tema
da temporalidade em Nietzsche levando em consideração fundamentalmente sua obra Assim
falou Zaratustra. A escolha deste escrito para a reflexão se justificou pela indicação do autor de
que a concepção essencial da obra é o eterno retorno. De acordo com a hipótese levantada por

202
Cf. NIETZSCHE, 2009, P.44.

112
mim, através de uma gênese deste pensamento, Zaratustra afirmaria outra concepção do tempo
que desestabilizaria certas noções fundamentais da tradição metafísica, principalmente as
oposições de valores entre passado e futuro e as noções de identidade e essencialidade que
possibilitariam uma representação do homem enquanto uma essência predeterminada. Neste
sentido, a pergunta “o que pode ser o tempo?” desdobrou-se em outra questão: “o que pode ser
o homem” para Zaratustra.

No intuito de apreender as diferentes perspectivas do tempo em Zaratustra, busquei


refletir sobre a trajetória de Zaratustra considerando-a um caminho necessário para este tornar-
se o mestre do eterno retorno. Deste modo, procurei no primeiro capítulo desta dissertação
compreender o elogio de Zaratustra à dimensão do futuro, em detrimento do presente e do
passado, que aparece essencialmente na primeira parte da obra. Como exposto, este elogio à
dimensão do futuro se relacionaria fundamentalmente com a anunciação do além do homem, e,
como constatado, o anúncio além do homem serviria como uma estratégia a fim de provocar no
homem a sua superação, pois para Zaratustra a vida, e nisto incluso o homem, seria aquela que
quer superar-se. Essa estratégia se direcionaria essencialmente ao homem moderno em vias de
se tornar o último homem, o homem que não tem mais anseio por criar e superar-se. Isto
porque, como examinado, Nietzsche explicita na modernidade uma continuidade e
aprofundamento dos valores da metafísica que tornariam eminente o devir do homem
(moderno) em último homem, o homem sem porvir. Desse modo, em um primeiro momento dos
discursos de Zaratustra para a afirmação do futuro, enquanto uma abertura a possibilidade de
superação do homem, haveria a necessidade de uma negação do presente e do passado, pois a
constituição do presente, no contexto da modernidade, estaria determinada pelo passado
histórico dos valores da metafísica ainda que de modo velado para o homem.

Nesta direção, no segundo capítulo, com o objetivo de compreender a determinação do


homem (moderno) pelo passado como obstrutora do movimento de superação e criação,
procurei analisar duas “categorias” que se contraporiam no discurso de Zaratustra: o espírito de
gravidade e as metamorfoses do espírito. Como exposto, o espírito de gravidade seria o
representante dos valores metafísicos morais que impossibilitariam este movimento de
superação e criação. De outra maneira, a metamorfose do espírito é apresentada em Zaratustra
como uma dinâmica de superação deste peso imobilizador do espírito de gravidade que estaria
presentificado nas metamorfoses pelo dragão chamado “Tu deves”. Neste último, diz Zaratustra,
se encarnam “valores milenários”. Ainda que não expresso explicitamente, Nietzsche, no
capítulo “Das três metamorfoses”, estaria indicando uma problematização do passado e mais
especificamente dos valores advindos do passado que, sedimentados, impediram o homem de
criar novos valores.

113
Procurei, então, assinalar a dinâmica de superação desses “valores milenários”
primeiramente sublinhando a importância do espírito de suportação, pois, se em uma primeira
leitura, este me pareceu apenas ter um caráter passivo frente ao “Tu deves”, a leitura de autores
como Günter Figal203·, Gilvan Fogel204 e de A Gaia ciência 205
tornaram-se indispensáveis para
compreender o camelo como um primeiro momento indispensável das metamorfoses. Desse
modo, o movimento do camelo ao “seu próprio deserto” afigurou-se como o necessário
distanciamento crítico para a avaliação (e deslocamento) dos valores vigentes tornados “fixos”
ou petrificados. Através da segunda metamorfose, a do espírito em leão, procurei evidenciar um
conflito entre a necessidade de abertura do espaço de liberdade para a criação no porvir e a
determinação do homem pelos valores morais do passado (encarnados em “Tu deves”) como
impossibilitadora desta abertura.

Por último, procurei refletir sobre a metamorfose do espírito em criança, pois, através
desta uma outra relação com a temporalidade, tornar-se-ia possível. Para desenvolver essa
proposição, procurei interpretar uma característica que define a criança no Zaratustra, o
esquecimento, e isto levando em consideração a importância que esta atividade tem para o
autor, como se pode depreender a partir dos textos analisados 206. Através das noções de força
plástica e esquecimento ativo busquei abordar uma relação apropriativa/interpretativa do
passado em função do presente, onde o passado não é relacionado a uma memória objetiva dos
fatos.

Segundo minha interpretação, através das metamorfoses do espírito, Nietzsche parece


ter sintetizado uma série de conflitos que aparecem ao longo da trajetória de Zaratustra. Assim,
procurei sublinhar algumas das passagens em que Zaratustra assumiria uma posição próxima
aos diferentes momentos das metamorfoses; devido ao limite imposto pelo objetivo desta
dissertação, outras não foram abordadas. Caberia em outro estudo desenvolver mais
detalhadamente as afinidades entre as metamorfoses e as diferentes etapas da trajetória de
Zaratustra.

No terceiro capítulo, busquei ressaltar como a problematização em torno do tempo em


“Da redenção” torna-se fundamental no discurso de Zaratustra, pois, neste momento de sua
trajetória, o passado não é apenas negado em favor do tempo futuro, mas é pensando como a
instância com a qual a vontade torna-se impotente por não poder querer para trás. Através dessa
203
Cf. FIGAL, 2012, p. 226.
204
Cf. FOGEL, 2010, P.61.

205
Cf. NIETZSCHE, 2012, par.380.

206
A Segunda consideração intempestiva e A genealogia da moral.

114
passagem, o conflito entre superação (e criação) no porvir e a determinação do passado alcança
sua máxima expressão na obra e, como desenvolvido, apenas com a perspectiva temporal do
eterno retorno esse conflito seria superado.

Desse modo, interpretei o pensamento do eterno retorno à luz das questões levantadas
nos capítulos anteriores no intuito de compreender como podem ser valorizados passado,
presente e futuro a partir deste pensamento. Zaratustra, pela afirmação do eterno retorno,
superaria a oposição metafísica entre passado e futuro ao deslocar o problema do tempo para o
instante entendido não como um “agora”, mas como a articulação entre passado, presente e
futuro. Nesta direção, o passado adquiriria certa abertura própria do futuro, e o futuro certa
determinação característica do passado. A fim de desenvolver esta proposição, foram ressaltadas
leituras afins de intérpretes de Nietzsche 207·, mas também através do exame das noções de
esquecimento ativo e memória da vontade, presentes na Genealogia da moral. Busquei, assim,
esclarecer esta outra caracterização do passado e do futuro não mais submetidos à dicotomia da
valoração metafísica.

Neste capítulo, evitando uma sistematização conceitual demasiadamente rígida do


eterno retorno, que se desviaria da proposta de analisar este como uma experiência (filosófica)
do pensamento, procurei interpretar as diferentes perspectivas das personagens (o anão, os
animais e de Zaratustra) acerca do eterno retorno. Desse modo, a análise do eterno retorno só
poderia ser uma interpretação de interpretações, pois ainda que Nietzsche apresente-o como a
concepção fundamental de Zaratustra, este não ocuparia o lugar de um fundamento ontológico,
moral ou cosmológico. Como busquei expor, o fundamental deste pensamento seria sua função
estratégica de crítica frente às concepções morais-metafísicas do mundo. Neste sentido,
desenvolvi uma articulação entre a afirmação da inocência do vir a ser – noção que já havia sido
trabalhada nos capítulos anteriores – e o eterno retorno.

Uma dificuldade encontrada ao tratar do eterno retorno em relação às noções de


superação e criação foi a ênfase que o próprio autor nos textos publicados coloca na repetição
do mesmo, isto é, a repetição da mesma vida sem acréscimos ou diferença. Porém,
compreendendo o eterno retorno como uma formulação trágica que afirmaria inclusive os
aspectos mais duros e problemáticos da existência, como a eterna repetibilidade do mesmo.
Procurei, então, apontar para uma dinâmica em que superação pode ser entendida como
superação destes aspectos que retornariam. Portanto, o que retornaria seria ao mesmo tempo o
peso do imobilizador do espírito de gravidade e a necessidade de superação deste através da
vontade de criar (expressa exemplarmente através das metamorfoses do espírito). Entretanto,
como visto, a vontade de criar teria como desafio a “imobilidade pétrea” do passado que a
207
BRUSSOTTI, FOGEL e FINK.

115
tornaria impotente, e isto segundo uma medida sucessiva e linear do tempo. Neste sentido,
apenas com a dinâmica temporal sugerida na discussão de Zaratustra com o anão seria possível
a superação desta medida. Através do pensamento do eterno retorno, passado e futuro além de
não se “contradizerem eternamente” 208, se atravessariam perdendo a univocidade de seus
sentidos, ganhando certa plasticidade, e, desse modo, possibilitando ao homem, pela vontade de
criar, superar aquilo que o determinaria.

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