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PARTE I: FILOSOFIA ANTIGA

AS ORIGENS

1. O SURGIMENTO DA FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA

A) A passagem do pensamento mítico para o filosófico-científico

Um dos modos de se caracterizar a filosofia é através de sua história: forma


de pensamento que nasce na Grécia antiga, por volta do séc. VI a.C.

Os diferentes povos da Antiguidade, todos tiveram visões próprias da


natureza e maneiras diversas de explicar os fenômenos e processos
naturais. Só os gregos, entretanto, fizeram ciência, e é na cultura grega que
podemos identificar o princípio deste tipo de pensamento que podemos
denominar, nesta sua fase inicial, de filosófico-científico.

Quando dizemos que o pensamento filosófico-científico surge na Grécia


caracterizando-o como uma forma de o homem tentar entender o mundo
que o cerca, isto não quer dizer que anteriormente não houvesse também
outras formas de se entender essa realidade. O pensamento mítico antecede
o pensamento filosófico-científico na cultura grega.

O pensamento mítico consiste em uma forma pela qual um povo explica


aspectos essenciais da realidade em que vive: a origem do mundo, o
funcionamento da natureza e dos processos naturais e as origens deste
povo, bem como seus valores básicos. O mito caracteriza-se sobretudo pelo
modo como estas explicações são dadas, ou seja, pelo tipo de discurso que
constitui.

As lendas e narrativas míticas são parte da tradição cultural e folclórica de


um povo. Sua forma de transmissão é basicamente oral.

O pensamento mítico pressupõe a adesão, a aceitação dos indivíduos, na


medida em que constitui as formas de sua experiência do real. O mito não
se justifica, não se fundamenta, portanto, nem se presta ao questionamento,
à crítica ou à correção.

O pensamento filosófico-científico nasce basicamente de uma insatisfação


com o tipo de explicação do real que encontramos no pensamento mítico.
A tentativa dos primeiros filósofos da escola jônica será buscar uma
explicação do mundo natural baseada essencialmente em causas naturais.
A chave da explicação do mundo de nossa experiência estaria então, para
esses pensadores, no próprio mundo, e não fora dele, em alguma realidade
misteriosa e inacessível.

O pensamento filosófico-científico representa assim uma ruptura bastante


radical com o pensamento mítico, enquanto forma de explicar a realidade.
Entretanto, essa ruptura não se dá de forma completa e imediata.

É claro que essa mudança de papel do pensamento mítico, bem como a


perda de seu poder explicativo, resultam de um longo período de transição
e de transformação da própria sociedade grega.

B) Noções fundamentais do pensamento filosófico-científico

Podemos reconhecer nos primeiros pensadores as raízes de conceitos


constitutivos de nossa tradição filosófico-científica.

a. A physis

O objeto de investigação dos primeiros filósofos-cientistas é o mundo


natural; sendo que suas teorias buscam dar uma explicação causal dos
processos e dos fenômenos naturais a partir de causas puramente naturais,
isto é, encontráveis na natureza, no mundo natural, concreto.

b. A causalidade

A característica central da explicação da natureza pelos primeiros filósofos


é, portanto, o apelo à noção de causalidade. Explicar é relacionar um efeito
a uma causa que o antecede e o determina. É importante, entretanto, que o
nexo causal se dê entre fenômenos naturais.

A explicação causal possui, entretanto, um caráter regressivo. Ou seja,


explicamos sempre uma coisa por outra e há assim a possibilidade de se ir
buscando uma causa anterior, mais básica, até o infinito. Cada fenômeno
poderia ser tomado como efeito de uma nova causa, que por sua vez seria
efeito de uma causa anterior, e assim sucessivamente, em um processo sem
fim.
Para evitar que isso aconteça, surge a necessidade de se estabelecer uma
causa primeira, um primeiro princípio, ou conjunto de princípios, que sirva
de ponto de partida para todo o processo racional. É ai que encontramos a
noção de arqué.

c. A arque (elemento primordial)

Os primeiros filósofos vão postular a existência de um elemento primordial


que serviria de ponto de partida para todo o processo.

A importância da noção de arqué está exatamente na tentativa por parte


desses filósofos de apresentar uma explicação da realidade em um sentido
mais profundo, estabelecendo um principio básico que permeie toda a
realidade, que de certa forma unifique, e que ao mesmo tempo seja um
elemento natural. Tal princípio daria precisamente o caráter geral a esse
tipo de explicação, permitindo considerá-la como inaugurando a ciência.

d. O cosmo

O cosmo é o mundo natural, bem como o espaço celeste, enquanto


realidade ordenada de acordo com certos princípios racionais. O cosmo,
entendido como ordem, opõe-se ao caos, que seria precisamente a falta de
ordem, o estado da matéria anterior à sua organização.

e. O logos

O termo grego logos significa literalmente discurso. O logos é o discurso


racional, argumentativo, em que as explicações são justificadas e estão
sujeitas á crítica e à discussão.
f. O caráter crítico

Um dos aspectos mais fundamentais do saber que se constitui nessas


primeiras escolas de pensamento é seu caráter crítico. Isto é, as teorias aí
formuladas não o eram de forma dogmática, não eram apresentadas como
verdades absolutas e definitivas, mas como passíveis de serem discutidas,
de suscitarem divergências e discordâncias, de permitirem formulações e
propostas alternativas.

2. OS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS

A) Apresentação geral da filosofia dos pré-socráticos

A denominação “filósofos pré-socráticos” é basicamente cronológica e


designa os primeiros filósofos, que viveram antes de Sócrates (470-399
a.C.).

O pensamento dos pré-socráticos costuma ser dividido em duas grandes


correntes, a escola jônica e a escola italiana.

Escola jônica: caracteriza-se sobretudo pelo interesse pela physis, pelas


teorias sobre a natureza.

Escola italiana: caracteriza-se por uma visão de mundo mais abstrata,


menos voltada para uma explicação naturalista da realidade, prenunciando
em certo sentido o surgimento da lógica e da metafísica.

B) A escola jônica

Tales de Mileto é considerado o primeiro filósofo. Seu modo de explicar a


realidade natural foi a partir dela mesma, sem nenhuma referência ao
sobrenatural ou ao misterioso, formulando a doutrina da água como
elemento primordial, princípio explicativo de todo o processo natural.

Anaximandro foi o principal discípulo e sucessor de Tales. Propôs, no


entanto, o apeiron (o ilimitado ou o indeterminado) como primeiro
princípio.
Anaxímenes, provavelmente discípulo de Anaximandro, adotou por sua
vez o ar como arqué, uma vez que o ar é incorpóreo e se encontra em toda
parte.

Xenófanes defendeu a ideia de um deus único que, segundo alguns, se


identifica com a própria natureza. Adota como elemento primordial a terra,
de onde se originariam todas as coisas.

C) As escolas italianas

a. Pitágoras e o pitagorismo

Uma das principais contribuições dos pitagóricos à filosofia e ao


desenvolvimento da ciência encontra-se na doutrina segundo a qual o
número é o elemento básico explicativo da realidade, podendo-se constatar
uma proporção em todo o cosmo, o que explicaria a harmonia do real
garantindo o seu equilíbrio.

D) Segunda fase do pensamento pré-Socrático

Essa segunda fase caracteriza-se sobretudo por pensadores que, tendo


sofrido a influência de seus predecessores, muitas vezes de mais de uma
tendência, desenvolveram suas teorias a partir de tais influências,
combinando frequentemente aspectos de diferentes escolas e valorizando
uma concepção do mundo natural como múltiplo e dinâmico.

Empédocles de Agrigento é conhecido principalmente por sua doutrina


dos 4 elementos (fogo, água, terra e ar). Esses elementos são vistos como
raízes de todas as coisas, e de sua combinação resulta a pluralidade do
mundo natural.

a. A escola atomista

Leucipo é considerado o fundador dessa escola. Seu pensamento é


conhecido sobretudo a partir de seu discípulo Demócrito, que desenvolveu
o atomismo.
A doutrina do atomismo de Demócrito tornou-se conhecida sobretudo pela
formulação feita por Epicuro, de grande influência na Antiguidade.

A doutrina atomista sustenta que a realidade consiste em átomos e no


vazio, os átomos se atraindo e se repelindo, e gerando com isso os
fenômenos naturais e o movimento.

b. Mobilismo x monismo: Heráclito x Parmênides

Heráclito de Éfeso pode ser considerado, juntamente com os atomistas,


como o principal representante do mobilismo, isto é, da concepção
segundo a qual a realidade natural se caracteriza pelo movimento, todas as
coisas estando em fluxo. A noção de logos desempenha papel central em
seu pensamento, como princípio unificador do real e elemento básico da
racionalidade do cosmo. Heráclito vê a realidade marcada pelo conflito
entre os opostos, conflito que, todavia, não possui um caráter negativo,
sendo a garantia do equilíbrio, através da equivalência e reunião dos
opostos. Assim, dia e noite, calor e frio, vida e morte são opostos que se
complementam.

O fragmento talvez mais famoso de Heráclito é o do rio: “Não podemos


banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque o rio não é mais o mesmo.”
Esse fragmento sintetiza exatamente a ideia da realidade em fluxo,
simbolizada pelo rio que representa o movimento encontrado em todas as
coisas.

Parmênides e os eleatas são adversários dos mobilistas, defendendo uma


posição que podemos caracterizar como monista, ou seja, a doutrina da
existência de uma realidade única. O primeiro argumento contra o
mobilismo consiste em caracterizar o movimento apenas como aparente,
como um aspecto superficial das coisas. O segundo argumento contra o
mobilismo é um argumento de caráter lógico, sustentando que a noção de
movimento pressupõe a noção de permanência como mais básica. Nesse
sentido, o movimento não pode ser tomado como mais básico, como
primitivo, definidor do real.

Em seu Poema, Parmênides afirma que “aquilo que é não pode não ser”,
formulando assim uma versão inicial da lei da identidade, um princípio
lógico-metafísico que consiste em caracterizar a realidade em seu sentido
mais profundo como algo de imutável; exclui assim o movimento e a
mudança como aquilo que não é, porque deixou de ser o que era, e não veio
a ser ainda o que será, e portanto não é nada; por isso apenas o permanente
e imutável pode ser caracterizado como o Ser.

É difícil avaliar a controvérsia entre mobilistas e monistas. Trata-se


praticamente do primeiro grande conflito de paradigmas na tradição
filosófica, o que dá origem a duas grandes correntes, que, de uma forma ou
de outra, sempre encontraremos no desenvolvimento dessa tradição. A
primeira valoriza a pluralidade do real, a contribuição de nossa experiência
concreta para o conhecimento dessa realidade, e a oposição e o conflito
entre os elementos dessa realidade que constatamos a partir dessa
experiência, os quais, longe de ser algo problemático, caracterizam a
própria natureza dessa realidade. A segunda busca aquilo que é único,
permanente, estável, eterno, perfeito; o que não se dá de imediato a nossos
sentidos, só se relevando a nosso pensamento após uma longa experiência
de reflexão.

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