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22/3/2011

Trânsito: Choque de realidade


Artigos / Entrevistas
Terminado o reino fantasioso do carnaval, somos obrigados a lidar com o real, que chega como um tiro
nas costas. Tsunami no Japão, ao lado de um vergonhoso recorde de mortos nos acidentes de trânsito. 

Algo equivalente a uma catástrofe com um dado terrível e que escondemos de nós mesmos: esse estilo
agressivo de dirigir que rotineiramente mata mais do que epidemias e guerras e com o qual temos uma
relação de absurda tolerância. 

Escrevi sobre o assunto muitas vezes e reuni minhas reflexões num livro recém-publicado: Fé em Deus e
Pé na Tábua - Ou Como e Por Que o Trânsito Enlouquece no Brasil. Nele, eu argumento que os acidentes
são o resultado de uma combinação explosiva: um aumento gigantesco de veículos, todos poderosos;
estradas lastimáveis em matéria de sinalização e asfaltamento; e eis o último e mais importante dado da
equação: nossa alergia à igualdade que obriga a esperar a vez e a aguardar (ou ''pegar'', como falamos
significativamente no Brasil) numa fila. 

A onipotência do nosso lado de meninos mimados pela família ou pelo cargo (que nos torna isentos de
cumprir a lei) numa sociedade onde cada qual tem o seu lugar (e o nosso, obviamente, não é numa imensa
e igualitária fila) é brutalmente desmantelado pelo trânsito. 

Esse organizador do espaço público que, sem nenhum respeito ou consideração (vejam que coisa!), diz
que todos os carros (e com eles os seus motoristas - nós - imaginem!) são iguais perante as rodovias e os
sinais! 

Esse choque entre cabeças que se pensam em termos de mais ou menos prestígio, num ambiente
absolutamente igualitário, cria um sentimento de intolerância, de tal intensidade que acaba promovendo a
ultrapassagem agressiva e a qualquer preço. 

Ele torna invisíveis os outros veículos e nos convence de que a nossa importância social dispensa a
igualdade da espera que experimentamos como sinal de inferioridade. Não suportando seguir a lei que
inferioriza (pois não foi feita para nós), reafirmamos nossa superioridade ultrapassando. 

O resultado é esse triste número de mortes (e de acidentes), revelador de um país que imita todo mundo,
mas não prepara a sua sociedade para essas imitações. Pois de nada vale uma estrada à Estados Unidos ou
Alemanha se não temos ianques bem comportados (que babacas!) e alemães (nazistas que, vejam só,
param em todos os sinais!) para nelas circular! A causa do acidente tem a ver, sim, com falta de
educação. 

Mas é preciso distinguir o tipo de educação que está faltando, pois para com os     nossos comparsas de
partido e de amizade, somos ultra bem-educados. No trânsito, porém, o que falta e o que estamos a dever,
é uma educação para a igualdade - para o outro: o anônimo que está do nosso lado! Essa é a educação
que, como acentuo no livro, precisamos discutir, politizar e ensinar. 

Nosso problema é que em todas as instâncias, somos produtores inveterados de desigualdade e com ela
temos um denso caso de amor. Se ela não existe, não hesitamos em recriá-la. E o Estado à brasileira está
aí para isso. Quando, então, nos vemos numa situação de relativa ou obrigatória igualdade, nosso coração,
ansioso de hierarquia, nos obriga a diferenciar e a desigualar. 

Na vida e na política, o desobedecer (e o enganar e mentir) para ''subir'' ou ''enricar'', é trivial; mas, no
trânsito, pegamos um alto preço pelos nossos desvios. Pois diferentemente do mundo público, onde a
desigualdade que enriquece jamais é descoberta, no carro em velocidade o rompimento com a regra cobra
imediatamente seu preço na forma do aci    dente fatal. 

É, sugiro neste livrinho, esse encontro negativo entre a igualdade necessária das ruas e a desigualdade
inscrita nas casas e nos corações que nos torna propensos ao risco e aos surtos de agressividade, conforme
testemunhamos na cena absurda de um sujeito atropelando ciclistas que caíam como moscas e eram, de
fato, moscas, do ponto de vista do motorista embriagado por sua própria importância social, somente
porque estava de carro. 

Carro que no Brasil ainda é coisa de rico e de autoridade. Que aristocratiza, como faz prova todo cargo
público que o contém como sinecura. Como, ademais, obedecer, se ter poder ainda é, no Brasil,
desobedecer e ser imune às leis? 

Ao lado disso, eis que a família Roriz volta à cena reiterando esses aspectos. Pois o que é o ''grande''
político nacional (guardando, claro, as devidas e honrosas exceções que vão ficando cada vez mais
excepcionais!) senão esse trapezista que pula de um governo para outro e é louvado pela malandragem
felina com a qual sobrevive às suas notáveis ultrapassagens morais e, depois de um salto mortal triplo, cai
no colo dos governantes? 

O problema do trânsito é que ele obriga a tomar providências reais e imediatas. Como a moeda, a dengue,
o crime e a escolaridade, mas um tanto diferentemente dessas mazelas, ele tem muito mais pressa. 

Um sujeito pode fazer um discurso sem entender das regras de gramática ou comer de boca cheia; mas
ninguém pode trafegar nessas cidades e rodovias vergonhosamente sem manutenção, sem policiais e
cheias de crateras, dirigindo como um político: burlando regras e usando o sabe com quem está falando
ou o jeitinho. 

Pois se assim faz, a punição encarnada no acidente chega de modo imediato. Em contraste com o mundo
político (movido a interesses e mensalões), o desastre surge com a indiferença típica da realidade,
ceifando vidas. 

O trânsito faz o que a política esconde: torna o outro real e desperta compaixão. Faz com o que aquele
sujeito invisível, sempre imaginado como inferior, fique igual a nós! 

Roberto DaMatta - Antropólogo 

Originalmente publicado no site Abetran em 16/03/2011


 
Por Perkons - Roberto DaMatta **

http://www.intelog.net/site/default.asp?
TroncoID=907492&SecaoID=508074&SubsecaoID=627271&Template=../artigosnoticias/
user_exibir.asp&ID=149900&Titulo=Tr%E2nsito%3A%20Choque%20de%20realidade. Acessado
em 23/03/2011.

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