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O Globo, 10.6.2014 - primeiro caderno. página 19

Monólogo de um
vira-lata sem complexo

Jason Tércio

Sou o mais livre dos animais urbanos. Tenho as ruas à minha


disposição, durmo em qualquer canto, e quando algum ser humano
resolve me adotar, sou beneficiado pelo Bolsa-Família e como três
refeições por dia. Mas sou também sensível e vulnerável. Por isso
exijo mais respeito e menos preconceito canino!
Me refiro a esse tal “complexo de vira-lata”. O Nelson Rodrigues
bancou o Freud do Andaraí e inventou esta expressão nada científica.
Tudo bem, foi engraçado em 1958, mas já estamos em 2018. Lá se
vão 60 anos de complexo equivocado. É demais, não? Desde então
foi apoderada por autoridades e aliados para se esquivarem de
explicações sobre as falhas e malfeitorias do poder público.
Os governos torraram uma fortuna e as obras ainda estão
incompletas e insatisfatórias? O Brasil já está entre os 15 países com
maior número de homicídios no mundo? É potência econômica na
América Latina, mas um dos 12 países mais desiguais do planeta e o
segundo com mais analfabetismo na América do Sul, só inferior ao
da Bolívia? Se você reclamar e citar nações em melhor situação, tem
complexo de vira-lata.
Aí está. Como se não bastasse o bode expiatório, inventaram o
cão expiatório. Mas até eu, com minha inteligência canina, entendo
que criticar fracassos, insuficiências e incompetências dos governos é
prova de fé na melhoria de um país. Só protesta quem não perdeu a
autoconfiança e a capacidade moral de reagir às injustiças. Quem
cala, consente que o mundo degringole. Quem grita, acredita em
avanços reais, não em discursos ou na boa vontade dos políticos.
E os senhores governantes parecem ignorar que complexo de
vira-lata hoje em dia não passa de um mito folclórico, pertence ao
museu da História, como radinho de pilha, bolero, chanchada,
Grapette, cadilaque, nota de mil cruzeiros, gibi do Zorro, footing,
Repórter Esso, vestido-saco, Maria Fumaça, macaca de auditório,
cuba-libre, JK, o presidente bossa-nova. Era esse o Brasil de 1958,
quando Nelson criou a expressão. Um grande frasista.
Naquele tempo os vira-latas realmente viviam na pior, mordendo
sarna e pulga o dia inteiro, favelados andavam descalços e cheios de
pereba, moravam em barracos de zinco e tábua, crianças morriam de
fome.
De lá pra cá muita coisa mudou. Eu, por exemplo. Vira-lata sim,
mas não complexado. Ninguém me olha com pena. Sou bem
comportado, não passo fome, não faço caca nas calçadas. Tenho
orgulho de minha sub-raça, podem ter certeza. É melhor ser um vira-
lata sem o rabo preso, do que ter pedigree e viver com o rabo entre as
pernas.
Por isso, senhores do poder e das redes sociais, faço um apelo:
deixem os vira-latas em paz. Não temos nada a ver com suas
complicações humanas e desumanas. Na minha turma, quando surge
uma briga, nós dizemos: isso é complexo de gente, que ama e odeia
ao mesmo tempo.
Imagino o que acontecerá se o Brasil perder a Copa. Será que o
povo vai ficar ganindo e chorando, como os vira-latas de 1950? E se
ganhar, as ruas vão ficar lotadas de patrioteiros pit-bulls latindo de
euforia, como em 1958, 1962, 1970?
Ouso prever que não vai acontecer nem uma coisa nem outra.
Desconfio que o Brasil já não depende de futebol para ser feliz ou
infeliz de quatro em quatro anos. Ainda bem. O complexo de vira-
lata acabou faz tempo e está mais do que na hora de acabar também
o complexo de “melhor do mundo”. Bola pra frente.
E antes que eu me esqueça, a melhor frase do Nelson Rodrigues é
“toda unanimidade é burra”.

- ESCRITOR E JORNALISTA.

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