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Lockdown à brasileira

Jason Tércio

Era uma vez um país tropical, abençoado por Deus e bonito por
natureza. E nesse país habitava um povo alegre, esperto, cordial,
conciliador, hospitaleiro, pacífico, sem preconceito. Um povo cheio
de ginga, que dava um jeitinho em tudo, que carnavalizava a vida.
Pelo menos essa era a imagem estereotipada que vigorou durante
muitas décadas.
Um dia desembarcou nesse país um sujeito muito estranho:
pálido, quase amarelo, e com cabelos vermelhos espetados. Quem
será esse punk branquelo?, pensaram os brasileiros que foram
recebê-lo.
– É aqui o Brasil? – perguntou o visitante.
– Não, o Brasil não é aqui, é lá na Argentina – respondeu o
brasileiro dando uma risada, e cochichou para seu colega: – Mais
um gringo otário. Vamos se dar bem. E aí, Mané, qual é o seu nome?
– Covid. Covid-19.
– O quê? Isso é nome de marciano, mermão. E tu tem cara de
marciano mesmo.
– Vim ensinar o seu povo a ser um pouco mais sério e responsável,
disciplinado e solidário. Pra começar, todos vão ter que ficar
confinados em casa. Os poucos que tiverem de sair, terão que
manter distanciamento entre si e lavar as mãos.
E então aquele povo metido a malandro, que acreditava em suas
fantasias, ficou mais vacilante do que charuto em boca de bêbado,
mais perdido do que cachorrinho que caiu da mudança.
Como manter as mãos limpas quem está acostumado a sujar as
ruas, a despejar esgoto em rios, lagoas e mares, a deixar as praias
imundas no réveillon?
Como manter confinado um povo que acha normal atravessar
sinal vermelho no trânsito, furar fila, estacionar na calçada, chegar
atrasado ou faltar aos compromissos, dar calote em multas, dar
troco errado (a menos, sempre), subornar agentes públicos, pedir
livro emprestado e não devolver? Em suma, um povo acostumado a
burlar as leis e as normas de convívio social civilizado.
E isso se aplica também aos governantes, claro. São cheios de
retórica vazia. Em março o então ministro da Saúde, o
superestimado Henrique Mandetta, afirmou tranquilamente, sobre o
tratamento da pandemia: “O Brasil tem uma grande vantagem em
relação à Europa, temos o SUS em todas as cidades. Isso nos permite
uma agilidade ímpar e nos coloca à frente de nações desenvolvidas
no combate ao vírus”.
Todos sabemos que o SUS nunca deu conta nem dos atendimentos
normais na rede pública. Dois meses depois da fala do agora ex-
ministro, havia no país mais de 10 mil mortos e 156 mil casos,
números que nos vinte dias seguintes subiram para mais de 30 mil e
555 mil, respectivamente – números oficiais, podendo ser maiores.
Então os governadores decretaram lockdown, ou confinamento.
Mas um confinamento bem brasileiro: parcial, sem planejamento
adequado, improvisado, desobedecido, sem falar da picaretagem
com o dinheiro público. No Rio de Janeiro, as autoridades
prometeram sete hospitais de campanha. Dois meses depois de
terem gasto uma fortuna, apenas um hospital estava pronto, e
funcionando parcialmente, por falta de equipamentos.
A China construiu em apenas vinte dias dois hospitais com mil
leitos cada um. E tanto os chineses quanto todos os demais países
asiáticos e europeus afetados pela pandemia (com exceção da
Suécia) começaram a normalizar as atividades públicas só depois
que os números de infectados e de mortos passaram a cair
ininterruptamente. Mesmo com as cautelas, em alguns países, como
Coréia do Sul, houve uma segunda onda de infecções e as medidas
de abertura foram interrompidas.
Aqui no Patropi as autoridades estão fazendo exatamente o
contrário. Com crescentes números de infectados e de mortos, quase
todos os estados brasileiros começaram uma “flexibilização gradual”,
eufemismo para liberar geral.
E assim o país caminha firme para ser, nos próximos meses, o
campeão mundial de infectados, devendo ultrapassar os mais de 100
mil mortos registrados nos Estados Unidos. Em suma, a
esculhambação, a incompetência e a falta de espírito prático (maior
defeito da alma brasileira, segundo Mário de Andrade) colocam o
Brasil no seu maior atoleiro de todos os tempos: crise sanitária, crise
política, crise econômica e crise ética.
Claro que essa situação é agravada pela falta de liderança nos altos
escalões do poder. O país está desgovernado. No Palácio do Planalto
temos um cidadão histriônico, sem controle emocional, inseguro,
com necessidade de se autoafirmar o tempo todo e sem ideias
próprias. É o Papagaio do Trump, seu ídolo – tudo que o Trump diz
ou faz, o Papagaio tenta repetir aqui alguns dias depois.
Enfim, a pandemia está revelando ao mundo as vísceras do
Brasil, uma nação mergulhada na dor, na raiva, no medo, no atraso
social, político e mental. Uma nação dividida, que perdeu as ilusões,
o que é bom, mas perdeu também o rumo. Uma nação sem líderes à
altura dos problemas que enfrenta.
Contudo, é nas grandes crises que emergem os verdadeiros
líderes e submergem os boçais. Pelo menos nos EUA parece que os
dias do Trumpismo estão contados, a julgar pela onda inédita de
protestos antirracistas, e que deverão sem dúvida se refletir nas
eleições presidenciais de novembro.

- Jason Tércio é escritor, autor de “Em busca da alma brasileira


– biografia de Mário de Andrade” (Ed. Sextante) e mais sete livros.

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