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A predação e o mal na contemporaneidade


Joel Birman

A morte do jovem Rafael Mascarenhas, em julho de 2010, consternou a todos que o


conheciam, não apenas porque era um jovem adorável, mas também porque morreu aos 18
anos de maneira trágica e violenta. Rafael foi atropelado quando andava de skate no túnel
Zuzu Angel, no Rio de Janeiro, num momento em que ele estava fechado para manutenção.

A tragédia
Mesmo nessas condições, alguns jovens resolveram atravessá-lo de carro em alta
velocidade, numa competição feroz para saber quem era o mais rápido ao volante e o mais
corajoso no acelerador. O jovem Rafael foi atingido sem nenhum escrúpulo.

O último requinte de crueldade dessa história escatológica é que, mesmo estando o carro
com toda a parte da frente amassada, o vidro quebrado e sem a placa dianteira, os
atropeladores foram liberados pela polícia carioca logo em seguida, numa vistoria regular
para exame de documentos e busca de drogas.

Estamos todos solidários com a perda e a dor insuportável dos pais. Todos sabemos o que
significa a perda de um filho, em qualquer circunstância, na medida em que isso é uma
inversão e até mesmo uma transgressão da ordem simbólica, pois o que se espera é que os
filhos enterrem os pais. Numa situação como essa, porém, a morte tem ainda um efeito
particularmente traumático. Não apenas porque foi inesperada, mas também porque o
inesperado se conjugou barbaramente com a violência gratuita.

É preciso destacar pelo menos três tópicos aqui. Antes de mais nada, o desaparecimento do
atropelador, que não prestou socorro à vítima e procurou se eximir da responsabilidade.
Em seguida, a conduta do pai, que levou o carro completamente avariado a uma oficina
para reconstruí-lo e apagar as marcas evidentes do acidente. Finalmente, o procedimento
da polícia, que liberou o carro semidestruído e sem a placa dianteira, o que permite pensar
em prática ostensiva de corrupção. Eis a tragédia.

A farsa
No dia seguinte ao acidente funesto, o que se passou pôde ficar ainda mais claro. Segundo a
família do atropelador, os policiais propuseram liberar o veículo em troca de 10 mil reais.
No entanto, segundo os policiais, o jovem estava completamente em pânico e foi a família
quem propôs o pacto da corrupção.

Qual a versão verdadeira? É possível que a versão da família prevaleça, em decorrência de


seu poder econômico e social. De qualquer maneira, ficou estabelecido um pacto entre o
pai do jovem e os policiais: o de encontrar-se no dia seguinte para o pagamento em
dinheiro vivo. Com isso, o pai podia enviar o carro avariado para uma oficina, a fim de
apagar os signos ostensivos do acidente. Mas o negócio não se fechou conforme o esperado,
pelo aparecimento de um dado novo: o jovem atropelador e sua família descobriram que o
jovem morto era filho da atriz Cissa Guimarães e que por causa disso a história não seria
facilmente arquivada. O fato de ser filho de uma atriz provocou a mobilização da classe
média e da elite. Isso obrigou a família e o jovem atropelador a depor na polícia,
entregando os policiais corruptos.

Foi, portanto, a notoriedade pública da família da vítima que impediu tanto a maquiagem
da história funesta como a conclusão do pacto de corrupção. Não fosse isso, tudo teria
ocorrido às mil maravilhas para o jovem atropelador, a família e a polícia.

Nos últimos meses, múltiplos acidentes funestos como esse, ou similares, aconteceram nas
grandes cidades brasileiras. Todos foram devidamente arquivados com o pacto da
corrupção, para acobertar vergonhosamente o ocorrido. Concorreu para isso a não
notoriedade das vítimas e de suas famílias, que não teriam capital econômico nem capital
social para botar a boca no trombone e galvanizar a opinião pública.

Pode-se dizer sem vacilar que cenas como essa ocorrem diariamente no Brasil: os
poderosos protegem ostensivamente seus filhos, contando para isso com a permanente
cobertura corrupta da polícia.

Como dizia Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, na história a tragédia se repete


sempre como farsa, numa genial concepção sobre a experiência da repetição. Assim, aquilo
que é trágico para uns se transforma de maneira eloquente em farsa para outros, contando
para isso com a impunidade ampla e geral dos poderosos, sempre sob a proteção da polícia
regalada pela corrupção.

A juventude e seus males


Infelizmente, esse cenário catastrófico já está se transformando em lugar-comum nas
grandes cidades brasileiras. Com efeito, diversas pessoas já foram mutiladas e mortas por
causa de jovens motoristas que dirigem seus carros em alta velocidade, geralmente
embriagados e drogados, na volta de noitadas turbulentas. Apostam-se corridas para
decidir quem é o mais veloz, como se isso fosse o signo infalível de quem é o mais poderoso
e a marca eloquente da potência de alguém.

Qual é o perfil dos motoristas? Geralmente são jovens oriundos de famílias bem situadas
econômica e socialmente, com nível educacional elevado, inclusive universitário. Além
disso, são lutadores (no caso do atropelador de Rafael, de jiu-jítsu), gostam de cultuar os
esportes e a cultura corporal. Nada contra, bem entendido. Coloco isso aqui em destaque na
medida em que se trata de um signo que se repete e se inscreve num certo perfil desse
contingente da juventude brasileira. Além disso, os carros são presente dos pais, como um
signo efetivo de status, e os filhos os exibem gloriosamente como símbolo de poder social.

Portanto, o perfil desses jovens tem a marca insofismável da repetição do mesmo, isto é,
são sempre ricos, poderosos e fortes. O que os caracteriza efetivamente é a predação dos
outros, pois acreditam plenamente que com a exibição de força e a posse de dinheiro
podem fazer o que quiserem e bem entenderem, não respeitando qualquer limite.
Essa marca ostensiva da predação desdobra-se no imperativo inequívoco da moral do
carcará, isto é: pega, mata e come. Na lógica reguladora da predação, confunde-se o registro
do ser e do parecer, como se o poder fosse o signo efetivo de potência, num eloquente
simulacro da força, orientada pela estratégia de se impor sempre aos outros.

Além disso, é justamente esse segmento da juventude que frequenta os bares para jovens e
se envolve em brigas por motivos insignificantes, geralmente aludindo que “olharam para
as suas mulheres”, e que terminam em ferimentos e até mortes. É ainda esse segmento da
juventude que cultua os músculos em academias high-tech, para que sirvam como arma
para amedrontar possíveis rivais. O que importa aqui é a submissão imediata do outro, pela
simples exibição insinuante da força, num cenário sempre marcado pela moral do
simulacro.

A juventude predadora engloba um contingente importante da população jovem no Brasil.


Fique bem entendido, porém, que isso não é uma particularidade brasileira, apesar de
caracterizar o que há de excessivo no estilo barroco da brasilidade.

É preciso ainda reconhecer que a predação não é apenas a marca de um segmento social da
juventude, mas é algo que se encontra também fartamente disseminado entre os adultos. A
predação é uma das modalidades efetivas de ser sujeito na atualidade, de maneira que o
segmento jovem da população está apenas se preparando para o futuro, para poder
engrossar as fileiras adultas da predação na ordem social.

Entretanto, é preciso que nos indaguemos agora sobre a constituição social e histórica da
figura do predador, que se destaca ostensivamente hoje como um dos signos mais
eloquentes do mal na contemporaneidade.

Predação
A figura do predador está em evidência nos últimos anos. Fala-se dele hoje como não se
fazia há muito tempo: é a figuração do mal por excelência na atualidade. Essa figura se
encontraria subjacente em diferentes personagens sociais inscritos no primeiro plano dos
inimigos da ordem social contemporânea, como o pedófilo, o criminoso em série, o
corrupto e até mesmo algumas versões do político, que se utilizam do cargo público para
roubar e ampliar suas fontes de poder para estrito usufruto pessoal.

Em decorrência disso, a figura do predador passou a ser caracterizada como um psicopata.


Essa é uma figura nosográfica da psiquiatria, constituída no século 19 para designar um
indivíduo que não respeita as leis e as normas sociais, pervertendo-as para benefício
próprio. Com efeito, no século 19 a psicopatia foi descrita como insanidade moral, ou, de
maneira correlata, como a figura prototípica do campo da anormalidade, inscrevendo-se
sempre no âmbito da infração e do crime, como nos mostra Foucault em sua genealogia
sobre atos anormais.

A psicopatia está hoje decididamente na moda novamente, depois de ter desaparecido


durante anos, seja das preocupações psiquiátricas, seja do campo da mídia, desalojando a
categoria de perversão que foi disseminada pela psicanálise. Se esse deslocamento
aconteceu, isso se deve tanto à notoriedade conquistada pela figura do predador na cena
social, por um lado, como à caracterização da psicopatia pela vertente biológica e genética,
designando seres voltados para o exercício do mal e, por isso, incuráveis.
Dessa perspectiva, os psicopatas teriam morfologias cerebrais nitidamente anormais e
marcas genéticas inconfundíveis, que determinariam insofismavelmente seus
comportamentos maléficos e mortíferos. Seriam eles fonte permanente de desordem social,
constituindo então o campo da periculosidade social. Dessa maneira, reatualiza-se a
perspectiva teórica da escola italiana da criminologia (fim do século 19), que, com Cesare
Lombroso (1835-1909), delineou um destino funesto para tais personagens sociais, pela
prisão eterna como forma de defesa social e pelo estabelecimento de estritas medidas de
segurança.

O que não se diz nunca e que precisa ser aqui devidamente sublinhado é que, se a figura da
psicopatia é tão evocada hoje, ela evidencia o lado obscuro da existência social na
contemporaneidade. Com efeito, não é possível conceber a nova circulação simbólica da
figura da psicopatia sem articulá-la efetivamente à do predador.

No entanto, a cadeia argumentativa não deve terminar nesse ponto. É preciso se deslocar
do registro da descrição para o da interpretação, a fim de evidenciar como a figura do
predador é o signo por excelência da ordem social atual: o predador seria ao mesmo tempo
a face oculta dessa ordem. Vale dizer, a ordem social na contemporaneidade produz
positivamente essa predação, nos seus menores detalhes, sendo assim positivamente o
outro lado da moeda e não apenas seu negativo.

O que caracteriza a contemporaneidade, nos registros econômico, social e político, é a


disseminação do paradigma neoliberal no campo da economia política. No entanto, como já
disseram diferentes autores, o neoliberalismo não é apenas a retomada literal do
liberalismo clássico do século 19, mas a extensão do modelo da economia para todas as
dimensões da existência. Com efeito, se o liberalismo clássico se restringia à estrita esfera
da economia, o neoliberalismo pretende estender suas pretensões agora à totalidade da
existência social.

Para isso, o neoliberalismo constitui modalidades específicas de subjetivação,


caracterizada pela autonomia excessiva, pela busca do lucro a todo custo e pela realização
de performances que conduziriam o indivíduo a não se conceber, no limite, como inserido
efetivamente numa ordem social. Nessa perspectiva, o predador seria um efeito
fundamental do individualismo contemporâneo, no qual a autonomia e a não inserção
efetiva numa ordem social conduzem todos a uma luta permanente contra todos, em nome
da luta pela vida, e ao imperativo de vencer custe o que custar. Por isso mesmo, ao produzir
esse novo modelo de individualidade, a contemporaneidade constituiu ao mesmo tempo a
figura do predador e a da psicopatia. Eles seriam a versão antropológica e sua
contrapartida, qual seja, a leitura psicopatológica da individualidade, que foi constituída
efetivamente na contemporaneidade neoliberal, face e verso que seriam de uma mesma
problemática.

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