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A tragédia
Mesmo nessas condições, alguns jovens resolveram atravessá-lo de carro em alta
velocidade, numa competição feroz para saber quem era o mais rápido ao volante e o mais
corajoso no acelerador. O jovem Rafael foi atingido sem nenhum escrúpulo.
O último requinte de crueldade dessa história escatológica é que, mesmo estando o carro
com toda a parte da frente amassada, o vidro quebrado e sem a placa dianteira, os
atropeladores foram liberados pela polícia carioca logo em seguida, numa vistoria regular
para exame de documentos e busca de drogas.
Estamos todos solidários com a perda e a dor insuportável dos pais. Todos sabemos o que
significa a perda de um filho, em qualquer circunstância, na medida em que isso é uma
inversão e até mesmo uma transgressão da ordem simbólica, pois o que se espera é que os
filhos enterrem os pais. Numa situação como essa, porém, a morte tem ainda um efeito
particularmente traumático. Não apenas porque foi inesperada, mas também porque o
inesperado se conjugou barbaramente com a violência gratuita.
É preciso destacar pelo menos três tópicos aqui. Antes de mais nada, o desaparecimento do
atropelador, que não prestou socorro à vítima e procurou se eximir da responsabilidade.
Em seguida, a conduta do pai, que levou o carro completamente avariado a uma oficina
para reconstruí-lo e apagar as marcas evidentes do acidente. Finalmente, o procedimento
da polícia, que liberou o carro semidestruído e sem a placa dianteira, o que permite pensar
em prática ostensiva de corrupção. Eis a tragédia.
A farsa
No dia seguinte ao acidente funesto, o que se passou pôde ficar ainda mais claro. Segundo a
família do atropelador, os policiais propuseram liberar o veículo em troca de 10 mil reais.
No entanto, segundo os policiais, o jovem estava completamente em pânico e foi a família
quem propôs o pacto da corrupção.
Foi, portanto, a notoriedade pública da família da vítima que impediu tanto a maquiagem
da história funesta como a conclusão do pacto de corrupção. Não fosse isso, tudo teria
ocorrido às mil maravilhas para o jovem atropelador, a família e a polícia.
Nos últimos meses, múltiplos acidentes funestos como esse, ou similares, aconteceram nas
grandes cidades brasileiras. Todos foram devidamente arquivados com o pacto da
corrupção, para acobertar vergonhosamente o ocorrido. Concorreu para isso a não
notoriedade das vítimas e de suas famílias, que não teriam capital econômico nem capital
social para botar a boca no trombone e galvanizar a opinião pública.
Pode-se dizer sem vacilar que cenas como essa ocorrem diariamente no Brasil: os
poderosos protegem ostensivamente seus filhos, contando para isso com a permanente
cobertura corrupta da polícia.
Qual é o perfil dos motoristas? Geralmente são jovens oriundos de famílias bem situadas
econômica e socialmente, com nível educacional elevado, inclusive universitário. Além
disso, são lutadores (no caso do atropelador de Rafael, de jiu-jítsu), gostam de cultuar os
esportes e a cultura corporal. Nada contra, bem entendido. Coloco isso aqui em destaque na
medida em que se trata de um signo que se repete e se inscreve num certo perfil desse
contingente da juventude brasileira. Além disso, os carros são presente dos pais, como um
signo efetivo de status, e os filhos os exibem gloriosamente como símbolo de poder social.
Portanto, o perfil desses jovens tem a marca insofismável da repetição do mesmo, isto é,
são sempre ricos, poderosos e fortes. O que os caracteriza efetivamente é a predação dos
outros, pois acreditam plenamente que com a exibição de força e a posse de dinheiro
podem fazer o que quiserem e bem entenderem, não respeitando qualquer limite.
Essa marca ostensiva da predação desdobra-se no imperativo inequívoco da moral do
carcará, isto é: pega, mata e come. Na lógica reguladora da predação, confunde-se o registro
do ser e do parecer, como se o poder fosse o signo efetivo de potência, num eloquente
simulacro da força, orientada pela estratégia de se impor sempre aos outros.
Além disso, é justamente esse segmento da juventude que frequenta os bares para jovens e
se envolve em brigas por motivos insignificantes, geralmente aludindo que “olharam para
as suas mulheres”, e que terminam em ferimentos e até mortes. É ainda esse segmento da
juventude que cultua os músculos em academias high-tech, para que sirvam como arma
para amedrontar possíveis rivais. O que importa aqui é a submissão imediata do outro, pela
simples exibição insinuante da força, num cenário sempre marcado pela moral do
simulacro.
É preciso ainda reconhecer que a predação não é apenas a marca de um segmento social da
juventude, mas é algo que se encontra também fartamente disseminado entre os adultos. A
predação é uma das modalidades efetivas de ser sujeito na atualidade, de maneira que o
segmento jovem da população está apenas se preparando para o futuro, para poder
engrossar as fileiras adultas da predação na ordem social.
Entretanto, é preciso que nos indaguemos agora sobre a constituição social e histórica da
figura do predador, que se destaca ostensivamente hoje como um dos signos mais
eloquentes do mal na contemporaneidade.
Predação
A figura do predador está em evidência nos últimos anos. Fala-se dele hoje como não se
fazia há muito tempo: é a figuração do mal por excelência na atualidade. Essa figura se
encontraria subjacente em diferentes personagens sociais inscritos no primeiro plano dos
inimigos da ordem social contemporânea, como o pedófilo, o criminoso em série, o
corrupto e até mesmo algumas versões do político, que se utilizam do cargo público para
roubar e ampliar suas fontes de poder para estrito usufruto pessoal.
O que não se diz nunca e que precisa ser aqui devidamente sublinhado é que, se a figura da
psicopatia é tão evocada hoje, ela evidencia o lado obscuro da existência social na
contemporaneidade. Com efeito, não é possível conceber a nova circulação simbólica da
figura da psicopatia sem articulá-la efetivamente à do predador.
No entanto, a cadeia argumentativa não deve terminar nesse ponto. É preciso se deslocar
do registro da descrição para o da interpretação, a fim de evidenciar como a figura do
predador é o signo por excelência da ordem social atual: o predador seria ao mesmo tempo
a face oculta dessa ordem. Vale dizer, a ordem social na contemporaneidade produz
positivamente essa predação, nos seus menores detalhes, sendo assim positivamente o
outro lado da moeda e não apenas seu negativo.
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