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D
o surgimento da noite
Mitologias Yanomami

D
Anne Ballester
(organização e tradução)

L
1ª edição
N
P
IA
U
G

São Paulo 2021


copyright Editora Hedra ltda
Direitos cedidos à n-1 Edições
tradução© Anne Ballester
organização© Anne Ballester
edição Luisa Valentini e Jorge Sallum
coedição Suzana Salama
editor assistente Paulo Henrique Pompermaier
revisão Luisa Valentini e Vicente Sampaio
capa e projeto gráfico Lucas Kröeff

D
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

L
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

S676s Soares, Anne Ballester N


O surgimento da noite: Mitologias yanomami /
Anne Ballester Soares (organização e tradução). –
São Paulo : N-1 edições, 2021.
P
ISBN 978-65-86941-35-7 (Livro do Estudante)
ISBN 978-65-86941-36-4  (Manual do Professor)
1. Mitologia indígena. 2. Mitologias yanomami. 3.
Histórias. 4. Culturao. I. Título.
IA

2021-1380 cdd 398.2


cdu 397

Índices para catálogo sistemático:


1. Mitologia indígena 398.2
2. Mitologia indígena 397
U

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8/9410


Direitos reservados em língua
portuguesa somente para o Brasil
G

n-1 editora
Rua Frei Caneca, 322 (Conjunto 52) 01307-000
São Paulo sp
55 11 991876080
financeiro@n-1edicoes.org

Foi feito o depósito legal.


o surgimento da noite
Mitologias Yanomami

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Sumário

Para ler as palavras yanomami . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

D
o surgimento da noite . . . . . . . . . 9

L
O surgimento da noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Horonamɨ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
N 15
O surgimento do tabaco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Horonamɨ e o tatu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
P
O surgimento da banana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
A anta que andava nas árvores . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Os comedores de terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
IA

A vingança de Horonamɨ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Como morreu o monstro kuku . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Omawë . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
O surgimento da maniva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
U

O dilúvio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
O surgimento da primeira mulher . . . . . . . . . . . . . . . 87
G
paratexto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Como foi feito este livro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
» Sobre o autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
» Sobre a obra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
» Sobre o gênero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

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Para ler as palavras yanomami

Foi adotada neste livro a ortografia elaborada pelo

D
lingüista Henri Ramirez, que é a mais utilizada no
Brasil e, em particular, nos programas de alfabeti-

L
zação de comunidades yanomami.
N
/ɨ/ vogal alta, emitida do céu da boca, e que soa
próximo a I e U
P
/ë/ vogal entre o E e o O do português
/w/ U curto, como em “língua”
IA

/y/ I curto, como em “Mário”


/e/ vogal E, como em português
/o/ O, como em português
U

/u/ U, como em português


G

/i/ U, como em português


/a/ A, como em português
/p/ como P ou B em português
/t/ como T ou D em português

7
o surgimento da noite
/k/ como C de “casa”
/h/ como o RR em “carro”, aspirado e suave
/x/ como X em “xaxim”
/s/ como S em “sapo”
/m/ como M em “mamãe”

D
/n/ como N em “nada”
/r/ como R em “puro”

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O surgimento da noite
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O surgimento da noite

H oronamɨ procurou aquilo que nos per-

D
mite dormir. Ele fez aquilo que nos fará
dormir. Aconteceu em toda a floresta. Ele pro-

L
curou sem desistir, procurou, procurou e acabou
encontrando essa coisa perto da sua moradia. A
N
cauda da coisa já estava visível, pendurada em
um galho, mas Horonamɨ pensava que a coisa es-
P
taria sentada na raiz de uma árvore e continuou
procurando longe, em todas as direções.
Não foi a noite que surgiu sozinha, de repente,
IA

para nós dormirmos. Assim, quem fez não foi


outro. Não foi outro que fez anoitecer: foi Ho-
ronamɨ, e apenas Horonamɨ, quem soprou nosso
U

sono — somente ele.


Qual a razão dessa procura? Como de dia
G

ninguém parava de fazer sexo — vocês também


não fazem sexo de dia? — e como a noite não
existia — era sempre luz forte do dia — para ele
esquecer os outros fazendo sexo, ele procurou a
noite para envolver todos na escuridão.
11
o surgimento da noite
A noite estava empoleirada em cima de uma
árvore não muito distante. Parecia com um mu-
tum empoleirado, cuja cauda repousava na parte
alta de um galho inclinado de uma árvore pai-
kawa.1 Assim era a escuridão. Apesar de a noite
parecer um mutum, Horonamɨ conseguiu encon-

D
trá-la. A noite também cantava como um mutum.
Nessa época, os animais — como arara, mu-

L
tum, queixada, anta, veado, caiarara, maitaca,
irara, tamanduá-bandeira, papagaio e jabuti —
eram Yanomami e, como os Yanomami, moravam
N
em xapono. Horonamɨ designou cada espécie de
animal e deu-lhes seus nomes. Naquela época, ele
P
procurou pela terra firme sem descanso, quando
não havia xaponos espalhados pela selva; havia
IA

somente o xapono dele.2 Os animais também vi-


viam em xapono.3
Quando Horonamɨ soprou a escuridão com
sua zarabatana para nós dormirmos, ele queria
U

que anoitecesse. Ele encontrou a escuridão e so-


prou. Depois de fazer cair a escuridão, ao mesmo
G

tempo se desenhou um pequeno círculo no chão,


1. Árvore baixa, chamada localmente de pé-de-maçarico.
2. Horonamɨ realiza diversas buscas para encontrar tudo que
os Yanomami usam para viver.
3. Isto é, eram gente.

12
o surgimento da noite
embaixo do lugar onde estava empoleirado o dono
da escuridão.
O pai do cunhado de Horonamɨ se chamava
Manawë. Ele era uma boa pessoa, e avisou:
— Ele vai achar agora! Tomem cuidado! —
avisou Manawë no xapono.

D
Quando Horonamɨ flechou o mutum da noite,
apesar de estar perto da sua moradia e de retornar

L
correndo, ele também sofreu, porque anoiteceu
de uma vez. Depois de ter soprado a noite em
todos os cantos, e de ter corrido, ele adormeceu.
N
Naquela noite, os Yanomami também sofreram.
Não anoiteceu devagar. Até Horonamɨ passou
P
fome, pois não tinha como fazer fogo. Ele acabou
ficando na escuridão, apesar de estar perto do seu
IA

xapono. Como foi assim que aconteceu, a mãe


dele também sofreu, todos ficaram tontos de fome
à noite. A escuridão perseguiu Horonamɨ bem de
perto, e ele estava com fome.
U

Depois de a noite apagar o dia, os que mora-


vam com ele morreram de fome, pois comiam so-
G

mente terra, comiam terra vorazmente e sofriam.


Não sobreviveram. Até seu próprio cunhado so-
freu e quase morreu. Horonamɨ ficou angustiado.

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o surgimento da noite
Havia então três pajés: o avô, o avô mais novo
e o cunhado, e eles esquartejaram a noite, fazendo
reaparecer a luz do dia.
Para as pessoas não comerem mais terra, Ho-
ronamɨ foi caçar. Ele nos ensinou a caçar. Ele ti-
nha uma zarabatana, que alguns Yanomami usam

D
para soprar, era isso que ele usava. Ele soprava
os animais, tinha um sopro forte, e foi assim que

L
ele nos ensinou a matar a caça com veneno.
É assim, é a própria história dos antepassados.
É a história daquele que se apossou da floresta, é
N
o início de tudo, a história do primeiro dono da
floresta, Horonamɨ.
P
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14
Horonamɨ

qem nos fez?

D
Esta é a verdadeira história de nosso surgi-
mento: quando a floresta era virgem, apareceu Ho-

L
ronamɨ, personagem principal de nossa história,
por causa de seus ensinamentos. O grande pajé1
N
yanomami Horonamɨ surgiu dele mesmo; surgiu
ao mesmo tempo que esta floresta e foi quem ensi-
P
nou os Yanomami a morar nela. Assim foi o início.
Não existia Yanomami como os de hoje, nem
IA

outro ser humano.


Ele propagou sua sabedoria para que nossa
história fosse sempre lembrada e discutida, como
fazemos agora. Aconteceu bem antes de os tu-
U

xauas yanomami passarem a existir como existem


hoje.2 Horonamɨ foi o primeiro habitante da flo-
G

1. Ser pajé, nestas histórias, quer dizer que o personagem em


questão é ou tem a capacidade de se transformar em espírito e,
com isso, fazer coisas extraordinárias.
2. No Amazonas, onde vivem as comunidades de Ajuricaba
e Komixipɨwei, usa-se “tuxaua” ou “liderança” para designar a

15
o surgimento da noite
resta e nos ensinou a morar nela, assim como en-
sinou também aos estrangeiros, os napë.3 Ele não
tinha pai, mas mesmo assim ele surgiu. Ele sur-
giu em uma floresta maravilhosa.
Quem morava com Horonamɨ? Horonamɨ
morava com seu cunhado, Wɨyanawë, que, apesar

D
de não ter desposado sua irmã, era seu verdadeiro
cunhado.4 Horonamɨ sempre o levava consigo nos

L
períodos que passavam dentro da mata, chamados
wayumɨ, e ensinou os descendentes como ir de
wayumɨ.5 N
Apesar de sua mãe não ter parido Horonamɨ,
pois ele surgiu de repente, o nome de sua mãe era
P
Yotoama. O pajé Horonamɨ foi quem procurou e
descobriu nossa comida, nosso conhecimento da
IA

pessoa de referência de uma comunidade indígena, por essa razão


optou-se por esses termos na tradução.
3. O termo napë designa os estrangeiros, em geral os brancos,
ou quem adotou seus costumes.
U

4. Os Yanomami, tradicionalmente, não podem chamar uns


aos outros por seus nomes próprios, por isso usam termos de
parentesco. Quando não há consanguinidade, são usados termos
G

de afinidade, como cunhado ou sogro. Cunhado é também um


termo positivo, na medida em que indica alguém em quem se
pode confiar.
5. Longas estadias coletivas na floresta. Em geral são motivadas
pela falta de comida no xapono. A comunidade pode se dividir
em vários grupos quando se trata de um xapono populoso, e se
desloca num vasto círculo, fazendo acampamentos sucessivos.

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horonamɨ
floresta e o habitat dos animais, para que, quando
os Yanomami ocupassem a floresta, eles fossem
capazes de aplacar sua fome de carne.
Ele descobriu o nome dos animais quando eles
viviam como nós. Apesar de serem animais, antes
eles viviam do mesmo modo que os Yanomami.

D
Como ele fez aparecer a água para acalmar
a sede dos Yanomami? Ele abriu várias veredas

L
na floresta. Abriu veredas em todas as direções,
de forma que elas nunca sumam e que sempre
bebamos água. N
Horonamɨ tinha seu próprio xapono6 , onde
moravam também seus aliados, que se tornaram
P
muito importantes.
Como se chamava o xapono pertencente a
IA

Horonamɨ? Esse xapono chamava-se Horona.


O xapono vizinho, que ficava do outro lado
do rio, se chamava Menawakoari. Os primeiros
habitantes desse xapono também se chamavam
U

Menawakoari. Penewakoari era o tuxaua e mo-


rava com o grupo dos Kapurawëteri. O tuxaua
G

dos que moravam com Horonamɨ se chamava Pe-

6. Os xaponos são as casas coletivas circulares onde moram os


Yanomami. Cada casa corresponde a uma comunidade; em geral
não se fazem duas casas numa mesma localidade.

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o surgimento da noite
newakoari. Kapurawë era o nome do xapono e da
região dos Kapurawëteri.7
Penewakoari morava com eles e estava desti-
nado a se transformar num monstro. Penewako-
ari depois se transformou no monstro Xõewëhena,
faminto de carne e comedor de crianças. Mas,

D
quando ainda era Yanomami, Penewakoari mo-
rava no xapono Kapurawëteri, vizinho ao xapono

L
Horona.
Nesses xaponos moravam poucas pessoas.
Com o tempo, nos xaponos vizinhos foram apa-
N
recendo mais tuxauas. Os primeiros tuxauas que
viviam nos xaponos vizinhos, os xaponos dos ali-
P
ados, não eram nossos antepassados, eram outros.
Sobre eles se contaram estas histórias.
IA
U
G

7. “Habitantes”: Em alguns casos o xapono tem o nome de seu


tuxaua.

18
O surgimento do tabaco

E sta é a história de Hãxoriwë, o dono do

D
tabaco. Antes ninguém usava o tabaco, por-
que ninguém conhecia suas sementes, nem as so-

L
prava para semear.
“É desse jeito que se coloca o tabaco no lábio!”
N
Ninguém pensava assim. Eles não conheciam o
tabaco; por isso, ninguém andava com brejeira no
P
lábio, ninguém o usava, pois o desconheciam.
Nessa época, Hãxoriwë morava sozinho, não
tinha esposa nem filho. Quando Horonamɨ por
IA

acaso o encontrou, ele fez perguntas a Hãxoriwë.


Horonamɨ o encontrou pois era pajé e se deslo-
cava facilmente. Quando Horonamɨ o encontrou,
U

ele o viu comendo a fruta pahi, um tipo de ingá.


Hãxoriwë estava comendo, mas não usava tabaco.
G

Ele tinha vontade de usar tabaco, por isso chorava.


Hãxoriwë chorava. Estava sofrendo por causa do
tabaco, e assim nos ensinou a ter vontade de usar
o tabaco — por isso choramos quando não tem ta-
baco.
19
o surgimento da noite
Horonamɨ apareceu naquele momento; Hãxo-
riwë estava comendo. Ele comia frutas pahi sem
parar. Os galhos estavam cheios de frutas agru-
padas, que estavam penduradas nos galhos carre-
gados. Horonamɨ o viu comer. Horonamɨ estava
vindo sem nada, não tinha brejeira, mas fez apare-

D
cer no seu lábio um tabaco sem cor. Ele fez apare-
cer o tabaco taratara.1 Enquanto Horonamɨ ainda

L
estava de pé, ele perguntou a Hãxoriwë:
— Quem é você? Você aí, quem é?
— Não pergunte quem sou! Sou Hãxoriwë! —
N
disse ele. — Meu filho,2 é você?
— Sim.
P
— Você, quem é você?
— Sou Horonamɨ, sou Horonamɨ — disse. —
IA

O que você está comendo?


— Não pergunte o que é! — retrucou. — Eu
como fruta. Eu como fruta. É a fruta pahi! —
disse Hãxoriwë.
U

Quando ele disse isso, Horonamɨ olhou. Ele


queria fazer aparecer o tabaco. Ele não fez apa-
G

recer o tabaco da forma que o conhecemos, pois


1. Trata-se de uma variedade forte de tabaco, muito apreciada.
2. Modo carinhoso usado por parentes mais velhos ao se diri-
gerem a parentes mais novos, mais especificamente entre pais e
filhos ou avós e netos.

20
o surgimento do tabaco
ninguém, sequer ele mesmo, sabia preparar o ta-
baco depois de soprar as sementes e de misturar
as folhas com cinzas. Como Horonamɨ era pajé,
ele fez sair o tabaco de dentro de Hãxoriwë. De-
pois de fazer sair o tabaco sem cor, ele o usou. Hã-
xoriwë olhou e quando viu o tabaco:

D
— Hı̃ɨɨ! — chorou logo.
Era um ardil para que Horonamɨ lhe desse o

L
tabaco:
— Brejeira! Meu filho! Brejeira! — chorou
Hãxoriwë. N
— Hı̃ɨɨ! Meu sogro! Você está sofrendo tanto
assim⁈
P
— Sim! Estou querendo, meu filho! Divida o
que você tem no lábio! — chorou ele.
IA

— Meu sogro está sofrendo muito, mesmo!


Me dê algumas das frutas que você está comendo
e eu lhe darei tabaco para você provar! — disse
Horonamɨ.
U

Com essa conversa, Hãxoriwë jogou uma ou


duas frutas. Ele estava sovinando as frutas, guar-
G

dando-as só para si. Horonamɨ experimentou as


frutas.
Depois de chupar as frutas, os caroços caíam
por si sós, de tão maduras:

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o surgimento da noite
“Hıɨ̃ ɨ! Prohu! Prohu!” elas faziam ao cair.
— Sogro! As sementes estão moles. Tem mui-
tas frutas ali grudadas, tire para mim!
— Não, primeiro me passe a brejeira!
Hãxoriwë nos ensinou essa palavra: brejeira.
Assim, quando Horonamɨ a guardou no lábio, ele

D
disse:
— Minha brejeira!
Não apareceu logo esse nome, tabaco.3 Ele

L
só apareceu quando Hãxoriwë pronunciou essa
palavra, até então desconhecida. Horonamɨ lhe
N
deu a brejeira. Horonamɨ aproveitou a situação
e pediu outras frutas. Assim, Hãxoriwë lhe deu
P
mais uma, mais uma e mais uma. Essas frutas
penduradas, depois de colhidas, pareciam cachos
IA

de banana.
— Vamos, meu sogro! Experimente! — disse
Horonamɨ. — Prova!
“Tëɨ!”, Hãxoriwë caiu.
U

— Dê aqui! Traga aqui! — choramingou.


Como Hãxoriwë estava chorando, Horonamɨ
G

lhe deu o tabaco e ele logo o colocou no lábio.


Quando o colocou na boca, ele já ficou tonto, e
tremia de tontura. Ele chorava, embriagado. A

3. Nesta narrativa os dois termos são tratados como sinônimos.

22
o surgimento do tabaco
força do tabaco o pegou imediatamente. Ainda
com o tabaco na boca ele cuspiu, e a espuma caiu
no chão. Onde a espuma caiu, surgiu um broto de
tabaco, que logo cresceu e se espalhou de uma vez.
As folhas de tabaco logo ficaram grandes, como
as folhas da jurubeba.

D
Horonamɨ fez aparecer o tabaco através de Hã-
xoriwë. O conhecimento das sementes foi trans-

L
mitido, por isso nossos antepassados as pegaram
e hoje nós usamos o tabaco, apesar de ele se ori-
ginar do cuspe de Hãxoriwë. N
— Meu sogro, depois de melhorar, você dirá:
é só tabaco! — disse Horonamɨ.
P
Enquanto Hãxoriwë estava pendurado e ine-
briado, uma espuma grande saiu da sua boca, por
IA

causa da força do tabaco. Ele se engasgou e cus-


piu, e foi dessa espuma que surgiu o tabaco, do
cuspe de Hãxoriwë, que se tornou tabaco.
E um dia, quando os antepassados foram de
U

wayumɨ, como de costume, um deles encontrou o


tabaco. Assim, fizeram se multiplicar as sementes
G

e ficaram conhecendo o tabaco.


Quem fez aparecer o tabaco? Nós já sabemos,
não foi outro que o fez aparecer. Não foi um
Yanomami comum.

23
o surgimento da noite
Havia nessa época os Yanomami do xapono
Warahiko, e foram eles que encontraram o tabaco,
foi um deles. Quando viram o tabaco, disseram:
— Õooãa! Uau! Uma plantação de tabaco!
Foram eles que pronunciaram o nome do ta-
baco. Em uma região ali perto, moravam dois

D
Wãimaãtori, de outro xapono. Quando os do xa-
pono Warahiko encontraram um deles, lhe conta-

L
ram a respeito do tabaco.
— Meu filho! Qual é o nome disso? — Ah, é
tabaco! — assim retrucaram os dois Wãimaãtori.
N
Foi assim que aconteceu: Hãxoriwë, os Wa-
rahikoteri e os dois Wãimaãtori descobriram o ta-
P
baco primeiro. Foi assim que o uso do tabaco se
desenvolveu. Os napë não fizeram surgir o tabaco
IA

depois de soprar as sementes. Foi a partir do lu-


gar onde surgiu o tabaco que ele se espalhou por
todo canto. Assim foi.
Como surgiu o tabaco? Já sabemos: Hãxoriwë
U

iniciou o processo quando Horonamɨ fez aparecer


o tabaco, enquanto Hãxoriwë estava olhando. É
G

obra de Horonamɨ, foi ele quem o fez surgir. Ele


é um grande pajé, por isso, o maior.
Depois de o tabaco se espalhar, quando os
Warahikoteri eram Yanomami, eles até desmaia-

24
o surgimento do tabaco
ram com a força do tabaco taratara. Sofreram de
tontura. Os dois Wãimaatori que moravam mais
além, apesar de serem resistentes ao tabaco, tam-
bém desmaiaram e ficaram duros por causa da
força do tabaco taratara. Mas depois eles melho-
raram. Foi assim que, em seguida, pegaram as se-

D
mentes de tabaco e as espalharam, fazendo-as se
multiplicarem aqui. Assim foi.

L
Hãxoriwë morava aqui. Depois da história
do sofrimento de Hãxoriwë, surge a história do
encontro de Horonamɨ com o Tatu.
N
P
IA
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G

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G
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P
N
L
D
Horonamɨ e o tatu
O surgimento do cipó e da embira

D
O Tatu era Yanomami e era muito com-
prido.1 Horonamɨ encontrou o Tatu. Por

L
que Horonamɨ cortou o Tatu bem na cintura?
Nós, Yanomami, amarramos terçados e fazemos
N
as cordas de arco com o cipó-de-apuí que se er-
gue na mata. Nós o cortamos e descascamos. É
P
com isso que nós amarramos nossas redes, com
as embiras de cipó-de-apuí.
IA

Horonamɨ cortou o Tatu. Antes disso não


havia linha de pesca. Nossos antepassados não
tinham corda de rede. Depois de encontrar o Tatu,
depois de esticar suas tripas, depois de destruí-lo,
U

ele o cortou em pedaços.


Foi Tatu quem fez aparecer o machado, pois
G

foi ele quem o fabricou. Ele percebeu que certo


tipo de madeira dura parecia um cabo de machado.
1. Era gente, e tinha os hábitos e o corpo semelhantes aos dos
Yanomami. Trata-se aqui do tatu-de-rabo-mole-comum (Cabas-
sous unicinctus).

27
o surgimento da noite
Assim, o Tatu possuía o único machado. Ele en-
sinou aos napë como fabricar o machado. Então
ele não tinha dificuldade em tirar o mel, pois ti-
nha o machado. Ele fez um cabo comprido, de-
pois de quebrar um pau, enfiou e amarrou o ma-
chado de pedra em um pau, era um machado de

D
pedra; depois de amarrá-lo, ele partiu um tronco
e tomou mel. Os antepassados não tomavam mel,

L
não sabiam tomar. Ele ensinou a tomar mel, ele
que existiu primeiro, quando os Yanomami não
existiam, quando este inventor não morava entre
N
eles, ele ensinou a tomar mel. Esse tatu se chama
moro. Horonamɨ o encontrou.
P
Ku, kõu, kõu, kõu, kõu, kõu!, fazia Tatu, cortando
o tronco. Horonamɨ ouviu esse som pela manhã.
IA

— Ho! Quem produz esse som, eu quero ver.


Dá para ouvir de longe — disse Horonamɨ.
Ele logo foi em direção ao som. O Tatu estava
sozinho; o som fazia zoada. Horonamɨ estava
U

indo na direção do som e parou. Tatu derramava


o mel tima,2 ele o derramava de uma árvore à
G

qual deu o nome de roa3 . Horonamɨ ficou de pé


parado, perto de Tatu, fazendo um som com a
2. Mel de uma abelha de mesmo nome, que faz sua colméia no
oco dos troncos, próximo ao solo.
3. Árvore alta e de madeira dura.

28
horonamɨ e o tatu
boca para chamar sua atenção. Aí fez outro som
com a boca, mas Tatu nem olhava, ele cortava
sem parar, com as pernas abertas. Naquela época,
ninguém chamava o outro de “sogro”, Horonamɨ
nos ensinou então a chamar de “sogro”:4
— Hı̃ɨɨ, meu sogro! — disse. — Meu sogro! —

D
disse Horonamɨ com uma voz assustadora.
Quando disse isso, o Tatu parou.

L
— Ɨ̃ı̃! Õ! — disse assustado. — Ɨ̃! Õ! De quem
é essa voz? — O Tatu falava assim. — De quem é
essa voz? — ele respondeu, com uma voz que não
N
era normal. Era o seu jeito de falar mesmo.
Horonamɨ olhou, sorriu.
P
— Sogro! O que você está comendo? O que é
isso? — disse Horonamɨ.
IA

— Não pergunte quem eu sou! — ele disse —


Você sabe quem eu sou! Sou o Tatu! — disse ele.
Dizendo isso, ele perguntou:
— Qual é o seu nome? — ele desafiou Horo-
U

namɨ a dizer seu nome.


— Ɨ̃ɨ, eu sou Horonamɨ.
G

4. Sogro, ou tio. O uso desse termo indica uma relação de


respeito. Horonamɨ quer se aproximar de Tatu. Trata-se também
de uma observação irônica, pois as mulheres ainda não existem no
período em que acontecem as histórias de Horonamɨ, e portanto
as relações de aliança (sogro/cunhado) não são uma possibilidade.

29
o surgimento da noite
Horonamɨ falava com uma voz bem bonita,
pois ele era bonito.
— Hı̃ɨ, meu filho, eu sou o Tatu.
O Tatu era esbranquiçado. Ele era branco,
como os napë. Ele o chamou logo.
— O que você está querendo fazer? O que você

D
está cortando?
— Ɨ̃ı̃! Estou comendo assim! Estou comendo

L
isto.
— Eu quero experimentar — disse Horonamɨ.
— Quero experimentar um pouco! Posso beber?
N
Que tipo de mel é?
— Não pergunte o que é! É o mel tima — disse
P
o Tatu.
A partir desse momento, nós, Yanomami,
IA

aprendemos a chamar esse mel de tima.


— Lá tem mel tima! — ao vê-lo, eu direi assim.
Foi o Tatu que ensinou o nome. Horonamɨ
chegou mais perto daquele que estava falando. O
U

Tatu maroto chamou Horonamɨ.


— Vai! Experimente, meu filho! Experimente,
G

meu filho! O buraco da colmeia ficou aberto. Pise


nesse buraco e entre nela! — disse.
Era uma armadilha para fazer Horonamɨ en-
trar no buraco da árvore. Horonamɨ aceitou:

30
horonamɨ e o tatu
— Hı̃ɨɨ! Será que o buraco tem espaço sufici-
ente? O mel está jorrando, está gotejando mesmo.
O buraco da colmeia está em baixo. A colmeia
acaba aí. Entre lá dentro! Fique mais em cima,
pise para baixo! Eu estou olhando! — disse o Tatu,
malicioso.

D
Quando ele disse isso, Horonamɨ cedeu e en-
trou logo. Foi logo e entrou, a colmeia fazia baru-

L
lho, e ele foi até o alto da colmeia. Ficou de pé lá
no alto dela. De pé, onde ele entrou, pelo buraco
que Tatu tinha feito. O Tatu fechou o buraco, e
N
não havia outra saída. O Tatu prendeu Horonamɨ
lá em cima. Horonamɨ gritava lá dentro. Não ti-
P
nha como sair. Se Horonamɨ fosse um Yanomami
como outro qualquer, ele jamais sairia. Ele gritou
IA

e gritou lá de dentro, sofrendo, gritando e cho-


rando. Chorava como criança. O Tatu, que o pren-
deu, fugiu correndo para longe. Aquele que es-
tava preso por si só fez espocar a árvore. O Tatu
U

já estava longe.
— Ele não vai me seguir — pensou o Tatu,
G

muito seguro de si.


Horonamɨ, com seu pensamento e seu sopro
forte, arrebentou a árvore roa. Ele ficou de pé e

31
o surgimento da noite
olhou ao redor, mas o feioso que o prendeu não
estava mais ali. Horonamɨ ficou sozinho.
— Hı̃ɨɨ!
Depois de pular com a explosão, passou pe-
gando a dala e a zarabatana que estavam pendu-
radas. Colocou nas costas.

D
— Hıɨ̃ ɨɨ! — gemeu. — O que tem o nome de
Moro, esse feioso, ele ferrou comigo! — disse, triste.

L
Horonamɨ não errou de lugar: ele correu logo
para onde o Tatu havia ido, e foi rápido, ensi-
nando-nos a correr. Horonamɨ correu na direção
N
do lugar onde havia muitas pedras saídas da terra;
ele correu e correu, seguindo os rastros do Tatu,
P
como fazem os cachorros. Daí, Horonamɨ correu
dando uma volta, e cortou o caminho do Tatu. Ho-
IA

ronamɨ o encontrou e o Tatu se assustou. Como o


Tatu o havia prendido, ele ficou com medo e com
raiva por dentro, e tentou agradá-lo, mas não con-
seguiu suscitar a compaixão de Horonamɨ.
U

O Tatu apareceu.
— Taha! Arrá!— disse Horonamɨ.
G

Era mesmo o Tatu. Ele espreitava, com a mão


sobre a testa, à procura de mel. Olhava passando
entre as árvores. Horonamɨ já estava de pé, pe-
gou um atalho e deu uma volta. O Tatu se con-

32
horonamɨ e o tatu
fundiu na floresta e acabou chegando justo onde
estava Horonamɨ. Horonamɨ estava de pé, atrás
da árvore, e deu um susto grande nele. Horonamɨ
queria cortar aquele que o havia aterrorizado. Ele
decidiu levá-lo até um tronco, fingindo que ali ha-
via uma colmeia, para fazê-lo se abaixar. O Tatu

D
pegou o machado.
— Hı̃! Meu filho, aqui está! Aqui está! — disse.

L
— Hõ, hõ, hõ, hõ! Meu filho! Hõ, hõ, hõ, hõ!
Venha cá ver! Olhe aqui! Meu filho, aqui está! —
disse Horonamɨ. N
Horonamɨ dizia isso tentando agradar o Tatu,
e ia indo atrás dele.
P
— Hıɨ̃ ɨ! Me passa isso que você tem aí no ombro,
está afiado mesmo? — disse Horonamɨ, astuto.
IA

A falsa colmeia fazia barulho, e Horonamɨ fez


diminuir esse barulho, para que o Tatu abaixasse
a cabeça para ver melhor a colmeia. Enquanto o
Tatu olhava para a colmeia com a cabeça abaixada,
U

enquanto ele estava nessa posição baixa, ele dizia:


— Aqui está a entrada da colmeia!
G

Quando o Tatu disse isso, o machado já estava


na mão de Horonamɨ e, enquanto o Tatu abaixava
a cabeça, Horonamɨ o cortou bem na cintura.

33
o surgimento da noite
Krihii, kriihii!, fez Horonamɨ, cortando o Tatu
para se vingar, pois ele tinha sofrido por causa do
Tatu.
— Ëëëëããaaë! — gemeu a parte de cima do
longo corpo do Tatu.
Apesar de ser só um pedaço, a parte superior

D
correu embora, sofrendo. Do lado de cá ficou a
parte inferior; as tripas vinham se esticando e a

L
parte superior ficava rolando. Assim, as tripas fo-
ram se esticando até lá, elas não se arrebentaram.
A parte superior daquele que Horonamɨ havia cor-
N
tado, e que ele queria que se tornasse o tatu moro,
foi lá para cima, até onde estão os espíritos. Foi
P
para lá que fugiu a parte superior do Tatu. Aqui
no chão ficou a parte inferior.
IA

Só um pedaço do Tatu chegou aos espíritos.


Suas tripas não apodreceram; elas foram até onde
se erguem as árvores e subiram nelas. Uma parte
das tripas do Tatu se transformou em cipó-de-apuí
U

e outra parte se transformou na embira xinakoto-


rema, com a qual, depois dessa transformação, os
G

Yanomami começaram a amarrar as cabeças das


redes de cipó. Foi assim.
Apesar de nossos antepassados saberem fazer
redes de cipó, eles se deitavam no chão, pois não

34
horonamɨ e o tatu
havia corda. Eles se deitavam no chão — coloca-
vam a rede de cipó no chão para deitar.
Como foi que eles descobriram a rede de cipó?
Eles não sabiam descascar o cipó-titica com os
dentes, então era assim.5 Até as moças deitavam
no chão. Deitavam uns em cima dos outros, como

D
os cachorros. Sofriam na escuridão. Eles eram
assim. Dormiam passando frio. Para que nossos

L
antepassados não passassem mais necessidades,
as tripas de Tatu se tornaram cipó-de-apuí que
amarra as redes. Foi assim. N
Depois da transformação das tripas, eles pas-
saram a usar o cipó para fazer terçados e macha-
P
dos de pedra, e para amarrar a cabeça das redes,
também feitas de um tipo de cipó. Depois, com o
IA

passar do tempo, eles teceram cestos. No início


eles também não sabiam tecer cestos. Assim foi.
Esta história acabou.
U
G

5. O cipó-titica é usado na fabricação de cestos.

35
G
U
IA
P
N
L
D
O surgimento da banana

A história da banana-pacovã. No início

D
era assim. Nossos antepassados surgiram e
não sabiam plantar bananas. Não fosse por isso,

L
não haveria essas bananeiras. Não teria apare-
cido esse tipo de banana. N
Como pensou e agiu aquele que fez surgir a
banana, depois de morar e se estabelecer? Geral-
P
mente a gente vai à mata e encontra um lugar
como se alguém tivesse roçado, um lugar quei-
mado e limpo, bem no meio da selva. A gente
IA

chama esse lugar de “queimado do Fantasma”.


Nesse tipo de lugar se encontra um telhado de pa-
lha, como aquele que nós costumamos tecer.
U

Embora ninguém tenha dito ao Fantasma,


“teça as palhas assim!”, ele as teceu, apesar de nin-
G

guém ter ensinado para ele. Depois de Horonamɨ


ver o queimado, ele encontrou o Fantasma, dono
do queimado, que morava ali. Nesse tipo de lugar,
erguem-se os pés de sororoca, que são semelhan-
tes às bananeiras, mas não dão banana.
37
o surgimento da noite
O surgimento das bananeiras, não foi porque
o Fantasma cortou, queimou e roçou a sororoca.
Ele não as plantou. Elas simplesmente surgiram
no dia seguinte.
Proto! Pauximɨ! Proto! Rokomɨ! Proto! Mo-
narimɨ! Proto! Pakatarimɨ! Proto! Nakoaximɨ!

D
Rokoya! Rokoroko! Roorewë!
Estas bananeiras e sororocas simplesmente

L
saíram delas mesmas. Dois dias depois, o Fan-
tasma voltou ao lugar onde havia queimado as
sororocas e viu que tinha nascido também ba-
N
tata-doce. Não foi em outros xaponos que ele
pegou. Lá onde Fantasma tinha seus alimentos,
P
onde havia as bananeiras, as sororocas se trans-
formaram em bananas-pacovãs e a batata-doce
IA

surgiu. Ali também dava cará, ária, pimenta e o


mamoeiro. Foi o Fantasma que fez aparecer as ba-
naneiras. Elas vêm do Fantasma.
Por que ele as fez aparecer? Porque ele tinha
U

um filho, que ele tinha de alimentar.


Ao ouvir a voz do filho do Fantasma, Horo-
G

namɨ descobriu a sua moradia e pegou com ele


umas mudas de bananeira.
O Fantasma não tinha outros parentes. Ele
mostrou aos Yanomami que é possível ter somente

38
o surgimento da banana
um filho. Ele fez apenas um filho, apesar de sua
esposa ser moça. Agora ele não é mais pajé, como
foi em vida.
Aquele que vinha, Horonamɨ, encontrou as
bananeiras e pediu mudas ao Fantasma. Quando
não existiam nem roças, nem Yanomami, depois

D
de Horonamɨ pegar as bananeiras, ao chegar ao
seu xapono, ele deu nomes a elas, deixando com

L
isso o ensinamento de como plantar as bananei-
ras. Ele as pegou para nós as termos. Até hoje
existem as bananas de diferentes variedades: ro-
N
komɨ, nakoaximɨ, rokoya, pauximɨ, monarimɨ, pa-
katarimɨ. Assim foi.
P
Nossos antepassados e os antepassados dos
napë não comeram banana desde o início. Hoje,
IA

tanto os napë quanto os Yanomami plantam ba-


nanas, a partir do ensinamento de Horonamɨ.

como os napë descobriram a banana


U

Como aconteceu a descoberta da banana pe-


los napë? Qual foi o Yanomami que levou as ba-
G

naneiras aos napë? Ninguém levou as mudas de


bananeira aos napë. Uma moça estava reclusa. 1

1. Quando a menina yanomami tem sua primeira menstruação,


ela fica em reclusão por um período entre uma semana e dez dias,

39
o surgimento da noite
A água saiu e as roças afundaram. Essa água le-
vou a mulher e por onde a levou, levou também as
bananeiras afundadas, até aonde os napë vivem;
foi o rio que levou as bananeiras para que eles, os
napë as descobrissem. O rio desejava a mulher
menstruada porque ela era bonita. No que ela se

D
tornou? O rio a levou porque a desejava. Da mu-
lher menstruada que as águas levaram, sua ima-

L
gem se espalhou nos rios. Multiplicou-se a partir
dela mesma. Foi a água que a pegou. O rio disse:
— Meu sogro, quero uma mulher! Me dê a sua
N
filha!
O rio entrou, perseguindo a mulher. O rio
P
entrou rápido. Olha só a água! Ela entrava por
trás das casas, apesar de a terra ser alta.
IA

— Prako! Prako! — dizia o grande rio.


O pai mandou pintar a filha, nessa hora ele a
pintou, seu irmão a pintou. O pai mandou seu fi-
lho pintá-la. Ele estava com muito medo de se afo-
U

gar na água, que vinha ameaçadora, se mexendo


como em plena tempestade. A água se mexia com
G

grandes banzeiros, nos quais a mulher pintada foi


dentro de um pequeno cômodo feito de folhas de açaí no xapono.
Essa reclusão a protege do assédio de espíritos num momento em
que ela fica em evidência. Aqui a moça atrai o interesse do rio,
que a carrega para fora do xapono para se casar com ela.

40
o surgimento da banana
jogada, apesar da sua beleza. Seu pai a fez afun-
dar. O rio levou a sua filha, e não a devolveu. Ela
não se afogou, e o rio a levou como sua esposa.
— Eu, apesar de ser água, farei dela a mãe
d’água! Eu vou pegá-la — disse o rio.
Por isso, esta Yanomami se tornará a mãe do

D
rio. O rio se retirou. Depois de pintarem seu rosto
com desenhos bonitos, colocaram penas de cauda

L
de papagaio nas suas orelhas. Feito isso, as folhas
de açaizeiro da reclusão foram removidas e a água
entrou. O xapono dele era como os nossos.
N
— Mãe! Mãe! Pinte minha irmã! Enfeite-a!
Enfeite-a depressa! — disse o irmão da moça.2
P
— Essa ideia dói muito, meu filho, mas não
tem jeito, entregue mesmo tua irmã!
IA

Apesar de ser o rio, assim falou o pai. Ele


mandou entregar a filha. Foi assim que ele disse.
Existe um canto sobre a mulher levada pelo rio,
há um canto sobre ela:
U

Xiri tõi!
Xiri tõi,
G

Xiri tõiwë,
Xiri tõi,

2. A moça enfeitada normalmente seria entregue a um marido


humano, não a um marido rio.

41
o surgimento da noite
Xiri tõi,
Xiri tõi,
Xiri tõiwë!
Ela cantou. Quando ela pronunciou o nome
de seu marido, o rio respondeu:
— Tuuuuuuuuuuuu!

D
— Xiri tõi! Xiri tõi! Xiri tõi! — cantou o pai.
Ele falou assim, cantou assim e, quando parou

L
de cantar, o xapono quase caiu, levado pelo rio.
O irmão a pegou para jogá-la, apesar de ela estar
chorando. Ela chorava, por causa do seu irmão:
N
— Ɨ̃ɨaaaı̃ɨ! Meu irmão! Meu irmão! Não fique
triste! Meu pai! Meu pai! Não fique triste! Minha
P
mãe! Minha mãe! Não fique triste!
Enquanto ela chorava assim, o irmão a pegou.
IA

— Hı̃ɨ! — Kopou!, ele a jogou de cabeça.


Fazendo assim, a água a pegou e logo a levou.
O rio cheio já estava esperando. Quando o rio se
retirou, revelou uma grande extensão de terra.
U

—Puuu! — disse o rio.


Foi assim, o rio desceu de uma vez só.
G

— Aëëë! — ela disse.


A mulher se tornou boto, aquele que boia na
superfície da água, pois a jogaram na água quando
ela estava menstruada; ela estava de reclusão, a

42
o surgimento da banana
vagina dela estava ainda sangrando. Por isso se
tornou a mãe da água. A imagem dela se espa-
lhou e ocupou todos os rios. Aquelas bananeiras
rokoroko que a água levou, bem como as pacovas,
se multiplicaram na terra dos napë. Assim foi, as
bananeiras se multiplicaram.

D
L
N
P
IA
U
G

43
G
U
IA
P
N
L
D
A anta que andava nas árvores

F oi Horonamɨ quem perguntou os nomes dos

D
animais. Horonamɨ encheu a floresta de ani-
mais. Horonamɨ encontrou a anta Xamari, que

L
andava como Yanomami. Ela andava nos galhos
baixos, vindo em sua direção.N
Hukru! Hukru! Prãããõ! ela fez ao cair.
Ela andava nas árvores como os cuatás. Afi-
P
nal, ele encontrou a anta andando nas árvores. Fe-
lizmente, ele fez com que ela descesse, para que
IA

nós pudéssemos comê-la.


É sempre um acontecimento quando matamos
uma anta para comê-la!
A anta não andava no chão: andava nas árvo-
U

res de uma espécie nativa de louro, atravessando


os galhos e comendo as frutas maduras. Horo-
G

namɨ fez quebrar o galho para que a anta caísse.


Depois de cair, ela se acostumou a andar no chão.
A anta chegou ao xapono dos esquilos, mas
lá não deu certo, então ela foi para a mata. Os es-

45
o surgimento da noite
quilos se juntaram quando anta ainda era Yano-
mami, e a chamaram. Queriam saber quanto ela
aguentava comer.
Os esquilos viviam como Yanomami: mora-
vam em um xapono no alto das árvores e faziam
festas como nós, embora eles fossem se tornar ani-

D
mais. Um dia, eles chamaram as cutias, os caititus,
as queixadas, as antas, os papagaios e as maitacas.

L
Havia muita comida, mas os convidados não con-
seguiram comer tudo. Até a anta também desistiu
de comer, pois pressentiam que algo ia acontecer.
N
De repente, todos eles se transformaram em
animais.
P
As queixadas também eram Yanomami. Os
cipós se arrebentaram e elas caíram. Foi lá, na
IA

região do xapono dos esquilos onde não conse-


guiram comer, pois estavam prestes a se trans-
formar. Não havia nenhuma queixada antes de
eles se transformarem. Nessas regiões, não havia
U

queixada. Subiram até o alto, subiram, estavam


subindo até a ponta do cipó. Lá, o cipó arreben-
G

tou no meio. Queixada! Se isso não tivesse acon-


tecido, lá naquela floresta, hoje as queixadas an-
dariam nas árvores.

46
a anta qe andava nas árvores
A anta foi quem caiu primeiro e passou a andar
no chão, tornando-se um animal terrestre. Em
seguida, o cipó das queixadas arrebentou. Outros
Yanomami, que ficaram na parte superior do cipó
se transformaram em macacos cuatás. Assim foi.
As queixadas ocuparam toda a floresta. Elas

D
desceram rio abaixo. Horonamɨ conseguiu assim
fazer a anta descer ao chão, e hoje nós as comemos.

L
Assim que foi. Não havia animais no início, pois
eles viviam espalhados, como os Yanomami, em
vários xaponos. N
Yãukuakua! Yãukuakua! Ninguém fazia as-
sim. É assim mesmo. Esse grande animal que
P
anda no chão, quando estamos famintos de carne,
nós a comemos, ela anda mesmo no chão. Nós a
IA

comemos.
U
G

47
G
U
IA
P
N
L
D
Os comedores de terra

E sta é a história dos nossos antepassados

D
que aos poucos se multiplicaram. Ela começa
na época em que não havia Yanomami como os

L
de hoje. Os Comedores de Terra sofriam, porque
eles comiam terra. Os primeiros que surgiram so-
N
freram. Nós também quase que teríamos sofrido,
como as minhocas, por cavar a terra e tomar vi-
P
nho de barro, se não fossem os acontecimentos
que seguem.
IA

Só havia os Comedores de Terra. Eles não co-


nheciam os alimentos que hoje nos alimentam,
apesar de serem muitos, como ingá, como mapa-
rajuba, como conori. Havia cabari, bacaba, mas
U

eles não sabiam tomar vinho de bacaba; tomavam


vinho de barro e de flores, depois de cortá-las lá
G

em cima, eles tomavam vinho delas. Devoravam


as embaúbas novas, e as chamavam de comida.
Se nossos antepassados tivessem surgido nessa
época, nós estaríamos sofrendo hoje.

49
o surgimento da noite
Quem descobriu os alimentos comestíveis?
Morava com eles Horonamɨ, aquele cujo nome
aparece no início, na origem. Ele mostrou a todos
os alimentos que até hoje nós comemos. Depois
de perguntar, experimentar e carregar os alimen-
tos por todos os cantos, ele ensinou os Comedo-

D
res de Terra a comê-los. Foi ele, Horonamɨ, não
outro. Assim foi.

L
Tudo isso não aconteceu embaixo deste céu,
mas do céu que caiu e amassou os primeiros habi-
tantes. Abriram o céu e assim nossos antepassa-
N
dos surgiram. O céu caiu, mas antes ele estava lá
em cima, antes da existência dos nossos antepas-
P
sados, antes de algum napë, entre nós, perguntar
assim:
IA

— Tudo bem?
Eles morriam de fome, pois comiam terra, flo-
res, frutas, excrementos de minhoca, folhas novas
de cabari. É essa a história dos ancestrais. Os an-
U

cestrais no início não comiam os alimentos que


comemos hoje. Eles comiam a pasta que se forma
G

nas árvores junto às casas de cupim. Dizem que


a comiam com voracidade. Apesar de só come-
rem isso, não ficavam doentes, pois não existia
malária, e não precisavam curar ninguém, pois

50
os comedores de terra
não havia doença, não havia dor, nem tosse, por-
tanto não havia necessidade de remédio — não
havia doença, pois não havia napë. Viviam bem,
sem doenças, até terem muitos cabelos brancos.
As mulheres ficavam velhas até terem a cabeça
branca, pois não havia doença.

D
Era assim, no início: não sofriam com conjun-
tivite, nem com feridas, nem tinham marcas de fu-

L
rúnculo. Tinham a pele bonita e somente sofriam
de fome, por causa da terra que comiam. Apoia-
vam-se em paus para andar, por causa da fome.
N
Assim era. Nessa época, não sabiam comer carne,
mas eles estavam bem e, quando um velho morria,
P
ninguém chorava. Não choravam por causa de
um velho morrendo de doença, pois ninguém mor-
IA

ria de doença. Nem havia cobra para picar, dar


dor e matar. Eles viviam bem. Os espíritos não pe-
gavam a alma de ninguém para matar. Era assim.
Eles não ficavam fracos com diarreia, isso não
U

acontecia, apesar de eles não tomarem remédios.


Era assim quando não existia napë, antes de
G

os napë se misturarem; nessa época, os napë exis-


tiam? Sabemos que não! Não existiam.

51
o surgimento da noite
Os rios, apesar de serem grandes, dizem que
eram vazios. Dizem que não se escutava o som de
motor subindo o rio fazendo tu, tu, tu, tu, tu, tu!
Ũ, ũ, ũ, ũ, ũ! Não se escutava o som do avião,
por isso os velhos não morriam de doença. Mor-
riam de cegueira. Era assim que morriam, por

D
causa da cegueira. Tornavam-se cegos e a respira-
ção parava, não por causa de doença, mas de fome.

L
Isso só aconteceria depois. Aconteceu assim.
Ninguém dizia:
— Alguém lá pegou doença e morreu; eles
N
estão chorando lá!
Mesmo quando tinham cabelos brancos, eles
P
andavam saudáveis. Morriam de velhice. Fica-
vam cegos, os olhos secavam, o sangue acabava,
IA

por isso morriam. Mandavam deixar os mortos


fora do xapono,1 para que voltassem como mor-
tos-vivos. Retornavam sempre na forma de mor-
tos-vivos, quando não havia napë entre eles. Os
U

ancestrais ficavam alegres por comer frutas, não


era como agora. Quando comeram carne, eles en-
G

doideceram e passaram mal. Não havia fogo e co-


miam cru. Endoideceram por comer cru.
1. Os xaponos são as casas coletivas circulares onde moram os
Yanomami. Cada casa corresponde a uma comunidade; em geral
não se fazem duas casas numa mesma localidade.

52
os comedores de terra
Depois de eles aprenderem a comer os verda-
deiros alimentos, eles se tornaram como nós. Tor-
naram-se assim, comendo carne cozida. Quando
aconteceu, as crianças se multiplicaram, saudá-
veis, em um e outro xapono. Fizeram um grande
xapono, outros se agruparam, e não pararam de

D
se multiplicar, todos saudáveis.

L
N
P
IA
U
G

53
G
U
IA
P
N
L
D
A vingança de Horonamɨ

O nde o sol se põe, naquela parte da floresta,

D
foi naquela parte que se transformaram. Os
Cuatás viviam como Yanomami. Eles são gente.

L
Moravam como nós, na planície. Pica-Pau Verme-
lho morava junto com os Cuatás, os Rapoahiteri
N
e Lagartixa. Pica-Pau Vermelho e Lagartixa, os
salvadores de Horonamɨ, moravam com os Rapo-
P
ahiteri. Horonamɨ os encontrou, ele mesmo. Ele
os viu comendo. Eles comiam abios. Eles o cha-
IA

maram, ardilosamente, para subir; provocaram o


encontro para fazê-lo gritar.
Horonamɨ subiu, eles o fizeram subir, subir…
Eles o chamaram e quando ele subiu e chegou bem
U

no centro da árvore, em vez de comer, eles puxa-


ram outra árvore, como se estivesse amarrada, e
G

enquanto desciam por ela, disseram a Horonamɨ:


— Fique aí comendo! Aí você ficará satisfeito!
Coma essas frutas que ninguém pegou! — disse-
ram eles.

55
o surgimento da noite
Eles fizeram com que Horonamɨ ficasse ali.
Cuatá, do abieiro onde estava, puxou a árvore ta-
xizeiro com o fio esticado e a ponta mal encaixada,
segurando-a somente pelas folhas. Todos os Cu-
atás saíram, e aquele que eles tinham chamado
ficou sozinho. Eles o deixaram preso no abieiro.

D
O taxizeiro deu um impulso. Ficou só o abieiro.
Horonamɨ ficou agoniado, mesmo sendo Ho-

L
ronamɨ. Ficou gritando de cima, ficou gritando,
ficou preso lá. Quem iria buscá-lo?
— Quem virá me buscar? — pensava ele, cho-
N
rando.
Agoniado, estava muito triste, gritava e pedia
P
socorro; os Rapoahiteri e os Cuatás o deixaram
naquela situação. Esse é o nome dos primeiros
IA

habitantes, os que viviam na mesma época que os


primeiros humanos, Rapoahiteri. Foram eles que
o deixaram ali agoniado.
Bem depois, Lagartixa escutou os gritos de
U

Horonamɨ. Lagartixa subiu, para fazê-lo descer,


queria buscá-lo, queria carregá-lo nas suas costas,
G

mas ele recusou, receando escorregar com ele.


Horonamɨ estava com medo de descer de cabeça
para baixo com Lagartixa.

56
a vingança de horonamɨ
— Não, você não vai me fazer descer direito —
disse Horonamɨ — Você vai me fazer cair!
— Vamos tentar! — disse Lagartixa — Não
tenha medo, eu não vou te fazer cair! Eu te seguro
bem forte! Coloque suas mãos, assim!
Apesar de Lagartixa dizer isso, Horonamɨ tentou,

D
mas os dois ficaram de cabeça para baixo. Ele gri-
tava, quase caiu de cima, Lagartixa quase o fez cair

L
e, como não dava certo, Horonamɨ desistiu. Quando
ele desistiu, porque infelizmente não dava certo,
Pica-Pau Vermelho escutou a voz de Horonamɨ:
N
— De quem é essa voz, de quem é essa voz?
Parece a voz de alguém em dificuldade — disse —
P
Alguém parece estar sofrendo mesmo, a voz, qual
é seu problema, ıɨ̃ ɨ? — disse.
IA

O Pica-Pau Vermelho chegou até lá e fez uma


série de buracos, fez uma espécie de escada no
tronco da árvore. Ele fez a linha de buracos che-
gar certinho à forquilha da árvore onde estava
U

Horonamɨ. Ele mandou:


— Vai! Coloque suas mãos nos buracos e desça.
G

Você não vai cair! Os buracos estão prontos! —


disse.
Ele fez muitos buracos, Pica-Pau Vermelho.
Foi ele quem resolveu o problema. Esses pica-paus

57
o surgimento da noite
são os que fazem buracos nas árvores. Foi ele
quem fez Horonamɨ descer, tirando-o daquela si-
tuação. É o nome dele mesmo, Pica-Pau Verme-
lho, ele era gente. Graças à ação dele, os nossos
antepassados se reproduziram e se multiplicaram.
Foi assim. Pica-Pau Vermelho não era um animal,

D
era um Yanomami. Ele existia como Yanomami e
foi ele que fez Horonamɨ descer.

L
— Não responda mais, nem sempre você en-
contrará alguém para te ajudar, tome outro rumo
quando alguém te chamar! — ele aconselhou a
N
Horonamɨ.
— Sim, você é meu amigo, eu gosto mesmo de
P
você, vou te proteger, eu não vou te fazer mal! —
agradeceu Horonamɨ.
IA

Depois disso, como vingança, Horonamɨ estra-


gou nossos alimentos, ele nos fez comer alimen-
tos amargos, ele tornou os alimentos estranhos,
nos anestesiou a boca para os alimentos comestí-
U

veis, fez nosso paladar estranhar outros alimen-


tos. Ele enfiou uma flechinha envenenada nos ali-
G

mentos, enfiou em todos.


O monstro Kuku devorou Horonamɨ porque
ele agiu assim, ele estragou todos os alimentos
dessa forma. Ele os tornou amargos.

58
a vingança de horonamɨ
No início, eles comiam cabaris crus, quando
eram saborosos, pois não eram amargos, antes de
ele os envenenar.1 Eles os comiam e eram gosto-
sos, assim, comiam cabaris gostosos como beiju.
Simplesmente os cozinhavam; cozidos, os cabaris
eram comidos no mesmo instante. Apesar de eles

D
serem assim, depois de Horonamɨ os picar com a
flechinha — ele picou todas as sementes das fru-

L
tas com o veneno — ele os tornou amargos, todos.
Foi o que ele fez, e mostrou para eles. Ninguém
mostrou a ele os frutos amargos, foi ele que os tor-
N
nou amargos, picando-os com veneno. Quando
ele terminou de picar todas as frutas, ele avisou:
P
— Isto que vocês comem são cabaris — disse Ho-
ronamɨ. — São cabaris, e eram bons, mas vocês não
IA

os prepararão mais como preparavam. Depois de al-


gumas noites, vocês pisarão em cima deles e eles fi-
carão sem gosto, aí vocês vão buscá-los, vocês os co-
merão. Agora eles são amargos! — disse ele — A pre-
U

paração vai demorar muitos dias! — acrescentou.


Assim fizeram. Aconteceu. Não foi qualquer
G

pessoa que estragou as frutas, foi Horonamɨ quem


surgiu primeiro e as estragou, não foi um des-

1. Para comer os cabaris, é preciso deixá-los muitos dias na


água e pisá-los para remover seu veneno.

59
o surgimento da noite
cendente dele. Depois de fazer isso, estragar os
alimentos com o veneno, a seta com veneno es-
tragou a cutia, grudou ao rabo da cutia, e está lá
ainda. O rabo das cutias se tornou a seta da zara-
batana de Horonamɨ, foi o que ele fez, e a cutia
sofreu muito. Horonamɨ fez isso com todos os ali-

D
mentos, aqueles que eram gostosos, as frutas que
eram gostosas.

L
— Não sobrou nenhum!
De fato, nenhum sobrou mesmo, por isso ele
disse assim. Ele os picou com um veneno muito
N
amargo. Quando ele terminou, ele foi se acabar
também: Kuku o comeu. Assim que foi. Como
P
Horonamɨ não ficava quieto, ele acabou numa
situação difícil.
IA
U
G

60
Como morreu o monstro kuku

D epois de tudo que nos ensinou, Horonamɨ

D
acabou morto pelo monstro Kuku. Sua mu-
lher estava no final da gravidez e, quando ela sen-

L
tiu as primeiras dores do parto, o monstro matou
o pai. Quem esfregou a barriga para a criança nas-
N
cer rapidamente foi Yoahiwë ou Yoawë, o irmão
mais velho de Horonamɨ.
P
A partir do momento que o tuxaua Horonamɨ
sumiu, Yoahiwë soprou a montanha, que era a
IA

casa dos espíritos, pois queria matar o monstro


Kuku e vingar a morte de seu irmão.
Ele fez um tipo de arma. Por ser de pedra, a
montanha era indestrutível.
U

O monstro Kuku guardava os ossos de Horo-


namɨ dentro da montanha e os devorava quando
G

a criança nasceu. Nascida a criança, Yoahiwë a


pegou com a placenta e a lavou em água limpa.
O tio pegou logo a criança recém-nascida e a so-
prou para secá-la e acalmá-la. Enquanto isso, ele

61
o surgimento da noite
preparava a zarabatana e escolhia as pedras. Fa-
zendo isso ele nos ensinou a matar. Ele conseguiu
vingar Horonamɨ.
A criança o fazia se lembrar do irmão bonito
que lhe fora arrancado enquanto ele a mantinha
deitada sobre seu peito:

D
— Ũa, ũa, ũa — fazia a criança.
A criança não havia deitado com a mãe e

L
nem mamado ainda quando Yoahiwë soprou for-
temente sua boca. Perto, havia um cipó pendu-
rado, um cipó bem duro, que ele torou; amontoou
N
e amarrou muitas pedras, ele escolheu uma pedra
bem grande e volumosa, colocou-a na zarabatana
P
e fez a criança soprar. Apesar de a criança ser pe-
quena, saiu um sopro forte.
IA

— Meu filho, teu sopro já é forte! — falou.


— Kuxu, kuxu, kuxu! — fez para a criança, que
estava sentada nas coxas do tio. — Vamos, meu
filho, já fortaleceu teu sopro? — perguntou.
U

— Hɨhɨ! — assentiu a criança.


— Experimente! Experimente com isso!
G

— Hɨhɨ!
Ela ficava de pé vacilante, como os filhotes de
jacamim.

62
como morreu o monstro kuku
— Kuxu, kuxu, kuxu! Fique firme, fique firme!
— O tio apoiava a criança contra seu peito.
— Tente! Tente!
Apesar de ser recém-nascida, paha! Ela não
soprava devagar.
Ele segurava a criança na cintura, apoiando-a

D
contra seu peito. Ela fazia as pedras se soltarem
com um som forte, parecido com o som dos cono-

L
ris quando abrem. O cipó-de-apuí representava
a imagem do monstro Kuku que ele iria mesmo
matar. N
Tëı̃ɨɨɨɨ! O cipó se destruiu em pedaços.
— Vamos! Outro, outro, outro, só mais um!
P
Ela soprou novamente. Paha! Ouviu-se o som.
O meio do cipó explodiu em pedaços.
IA

— Bem, o teu sopro já é forte — Ele fez explo-


dir o pedaço de cipó que sobrava. Ele riu. Ela foi
perseguir o monstro, essa mesma criança que ha-
via nascido naquele dia, de manhã cedo.
U

— Hoaa, é mesmo o meu filhinho!


Pegou a criança nos seus braços para vingar o
G

pai dela. Apesar de ser pequena, a criança vingou


seu pai.

63
o surgimento da noite
Apesar de a montanha ser dura, ela resistiu?
Não! A criança fez explodir um pedaço da serra,
pois as pedras eram duras.
Paha! A criança fez cair a serra no chão em um
monte de pedaços. Os pedaços de pedra zoavam.
Tuuuuu! Ela fez zoar os pedaços de pedra.

D
Enquanto isso, o monstro Kuku chorava de medo.
Ele se lamentava, enquanto eles se aproximavam.

L
Ele chorava muito:
— Ɨ̃ɨɨɨ! O que vai ser de mim? — ele gemia,
assustado. N
Os últimos pedaços da montanha ficaram pen-
durados lá. O último pedaço caiu com o monstro
P
e o destruiu:
— Ku! Ku! Ku! Ku! — fez o monstro.
IA

Embora o monstro estivesse morrendo, ele


conseguiu matar o bebê. Com muita dor pelo ir-
mão bonito, que o monstro conseguiu extinguir
quando a criança nasceu, o tio a deitou sobre seu
U

peito para fazer dela o instrumento da sua vin-


gança. Yoahiwë ficou com muita raiva da morte
G

do seu sobrinho, a quem tinha se apegado como


se fosse seu próprio filho, iludindo-se com a idéia
de criá-lo. Como perdeu seu sobrinho, o irmão
mais velho de Horonamɨ fugiu rapidamente num

64
como morreu o monstro kuku
tipo de jangada e, enquanto fugia, transformou-se
em espírito. Seus dois irmãos Yoahiwë e Omawë
correram e seguiram pelo rio, zangados.
— Aë, aë, aë, aë, aë, aë! — dizia ele sem parar,
de raiva pela morte do seu sobrinho.
Sim. Assim fizeram.

D
L
N
P
IA
U
G

65
G
U
IA
P
N
L
D
Omawë

E sta história começa com o nome dos Hoa-

D
xiwëteri. Omawë e Yoasiwë moravam com
os Hoaxiwëteri. O tuxaua Hoaxi, Caiarara, convi-

L
via com eles, por isso se chamavam Hoaxiwëteri.
Nesse mesmo lugar, junto com os Hoaxiwëteri,
N
moravam Omawë, que era o irmão mais novo, e
Yoasiwë, o mais velho. Omawë, mais novo, nas-
P
ceu depois de Yoasiwë. Então, Yoasiwë e seu ir-
mão mais novo, Omawë, moravam com os Hoa-
IA

xiwëteri.
Eles pegaram a filha do monstro Raharariwë.
Os dois viram a filha de Raharariwë. Totewë, ou-
tro nome de Yoasiwë, viu a filha de Raharariwë
U

sentada, pegando piabas — ensinando assim a pe-


gar piabas. Yoasiwë desceu ao rio e, apesar de
G

ele não ter anzóis, onde estava pegando piabas,


ele fez aparecer um tipo de anzol. Não existia an-
zol, mas com seu pensamento, ele o fez surgir e o
amarrou em uma espécie de gancho de pau.

67
o surgimento da noite
Raharariwë e suas filhas moravam no rio Ta-
nape. Era lá que ficava o xapono de Raharariwë.
Omawë as encontrou no rio Tanape.
Era a própria filha de Raharariwë que se cha-
mava Tepahariyoma, Mulher Matrinxã, aquele
peixe branco, de rosto bonito. A irmã mais nova

D
se chamava Peixe.
No início, quando não havia mulher nos ou-

L
tros xapono, quando não existia mulher entre os
homens, os dois pegaram e levaram a filha mais
velha de Raharariwë. O irmão mais novo, que era
N
lindo, conseguiu pegá-la, embora os dois fossem
anambés-azuis muito bonitos.
P
— Que passarinho bonito! — Vocês dizem
assim, pois Omawë era bonito. Foi para ele que a
IA

mulher se entregou.
O irmão mais velho de Omawë se chamava
Hëɨmɨriwë, Anambé-Azul, queria se transformar
em anambé-azul;1 o nome do irmão mais novo
U

era Omawë, saíra-paraíso, bonito, para conseguir


pegar as duas mulheres, foi ele quem fez as duas
G

mulheres se levantarem. Depois de os dois pega-

1. O anambé-azul fornece penas azuis usadas para fazer os


brincos dos pajés.

68
omawë
rem essas duas mulheres, não perguntem o que
aconteceu!
Omawë e seu irmão mais velho, Yoasiwë, o
menos bonito, não foram ao rio, pois estavam
em um lugar diferente. Não moraram logo no
lugar onde pegaram as filhas do monstro aquático

D
Raharariwë: foi a imagem deles que se deslocou,
na forma de passarinho.

L
Omawë não andava na terra, a história de
Omawë é essa, ele não andava na terra para pe-
gar mulher, pois queria se tornar espírito. Ele
N
não criou os Yanomami. Ele era sozinho, inde-
pendente, pois queria se tornar eterno. A ima-
P
gem dele ainda chega aos Yanomami, é ele que se
chama Omawë.
IA
U
G

69
G
U
IA
P
N
L
D
O surgimento da maniva

Quem pegou e espalhou a maniva para nós co-

D
mermos? Não havia maniva. Nossos antepassa-
dos não possuíam maniva como a que nós planta-

L
mos. Não tinham maniva, ela não existia.
No início, quando o monstro Raharariwë mo-
N
rava com suas filhas, sem outros parentes, seu xa-
pono ficava no fundo da água. Raharariwë não
P
morava em terra seca. No início, ele tinha sua
casa dentro da água.
IA

As manivas estavam em uma casa que tinha a


estrutura fincada, como a nossa. Ela tinha esteios
de maniva fincada. Ele possuía maniva. Morava
com elas, Raharariwë, ele mesmo. No início, era
U

ele que a possuía, a maniva que foi multiplicada


e dividida. Quando ninguém tinha plantação de
G

maniva, ele amarrava sua rede lá onde ela estava.


Ele guardava essa casa de maniva fincada. Se
não fosse ele, nós sofreríamos, se Raharariwë não
possuísse a maniva.

71
o surgimento da noite
— Vou plantar maniva. — A gente nem diria
isso. A partir de Raharariwë, a maniva se espa-
lhou e nós comemos farinha. A maniva se espa-
lhou como alimento. Ele possuía a maniva, aquele
cujas filhas foram pegas. Omawë a quebrou e a
pegou.

D
Quem foi traiçoeiramente chamado para den-
tro dessa casa? Quem chegou? A filha entrou

L
com ele dentro da casa de Raharariwë. Ela entrou
maliciosamente com ele dentro da água. A filha
estava lá de pé. Olha só a água! Olhe a superfí-
N
cie da água! A filha estava de pé dentro da água
escura. Ela o levou maliciosamente, para que o
P
pai o assustasse. Ele assim conseguiu chegar até
Raharariwë, mas só para passar medo.
IA

Chamava-se Omawë. Ele tinha o nome da-


quela saíra verde tão bonita, não de outro passari-
nho! Foi ele mesmo, Omawë, que levou a filha de
Raharariwë. Ele conseguiu entrar na água depois
U

de fechar as narinas, foi sua mulher que as fechou:


— Kopou! Ũi, ũi, ũi, ũi, ũi, ũi! — ela fez assim.
G

— Você não se afogará! — disse ela.


— Hı̃ɨɨ! Tëɨ!
O xapono logo ficou sem água. A casa estava
pintada de vermelho escuro como as frutas hũria

72
o surgimento da maniva
bem maduras, como o vermelho cor de sangue
das asas de papagaio em movimento. Raharariwë
morava em uma casa bonita e Omawë chegou até
lá. A filha lhe falou:
— Pai! É teu genro! Eu trouxe teu genro, eu
casei!

D
Raharariwë olhou para Omawë.
— Aquele é teu? Hı̃ɨɨ! É teu?

L
— Pai! É meu marido! Eu casei! Ele é bonito,
tu não achas?
Ele sorriu. Lá, aquelas raízes saídas da terra
N
pareciam enormes.
Onde o sogro estava, havia um pau grande,
P
enfeitado e bonito, no chão, parecido com a pele
das costas de um poraquê. A filha sentou com
IA

Omawë.
— Vai te sentar naquele pau com teu marido,
filha querida!
Ele o fez sentar em cima do pau iwaiwakana
U

para assustá-lo. Esse pau se mexeu como se me-


xem os jacarés. Ele o fez sentar em cima de um
G

pau que se mexia por si só. Omawë se sentou e


perguntou a ela:
— Isto é madeira?

73
o surgimento da noite
— Não é madeira! É maniva! São manivas! —
disse a mulher.
Nós chamaremos de maniva, foi ela que ensi-
nou o nome maniva.
— Como se faz aquilo?
— Ele quebra para fazer beiju, ele faz beiju e

D
come — respondeu ela.
— Hoaa! — exclamou.

L
Ele tirou algumas mudas de maniva que esta-
vam juntas:
— Kero! Eu plantarei minhas manivas! —
N
Omawë disse reservadamente à esposa.
Raharariwë quase comia o genro, se a filha não
P
o protegesse, guardando-o sentado no seu colo.
— Tu me pegas e me fazes sentar no teu colo.
IA

E assim outras farão, fazer sentar o marido no


colo. Assim ela fez e ensinou a fazer.
Omawë ficou com medo por causa do pau que
se mexia, ficou assustado, gritou e chorou como
U

uma criança. Chorou de medo.


Como o pau estava se mexendo, Omawë se tor-
G

nou caba e grudou ao pau, se transformou em caba


tutu si, daquelas branquinhas. Ele ficou abalado.
Ela conteve o pai:

74
o surgimento da maniva
— Pai! Não faça isso! É meu, eu casei! Não
faça isso, por favor! Se você fizer isso, eu não
ficarei aqui! Vamos voltar, nós dois!
Ela mostrou a frente da casa. Raharariwë
quase comeu Omawë, por isso ela fugiu com ele.
Ela também fugiu, pois Raharariwë quase comeu

D
o marido.
— Tu, tu, tu, tu, tu, tu! — ele já estava dizendo.1

L
Aquele que levou as manivas de Raharariwë
boiou com elas e as deu aos seus parentes.
Nós comemos o que ele deixou para acompa-
N
nhar nossa comida, para não sentir mais fome, ele
pegou para nós comermos.
P
Ele levou as mudas de maniva, cujos brotos
ficaram chorando. Já havia realmente fugido.
IA

Levaram manivas cujos irmãos ficaram cho-


rando.
— Pai! Pai! — choravam assim.
Assim fizeram.
U
G

1. Aqui há um jogo com o verbo tu-, cozinhar em água.

75
G
U
IA
P
N
L
D
O dilúvio
O ressurgimento dos yanomami e
o aparecimento dos napë

D
L
D epois da morte do irmão e do sobrinho, Yo-
ahiwë e Omawë fugiram rio abaixo. Havia
N
somente um rio, o rio Tanape. Eles encontraram,
no percurso, outro sobrinho, filho de Manakaya-
P
riyoma, cuja mãe se considerava a irmã dos dois,
por ter o mesmo nome que a irmã deles.
Como se deu esse encontro? Enquanto os
IA

dois estavam no meio do rio, eles escutaram um


chamado vindo de cima.
To! To! Escutaram um som descendo na dire-
U

ção deles. Hı̃ tuuuuu! Fazia o bebê descendo na


direção deles. O sobrinho desceu na sua direção
G

com sede. Hı̃ɨɨ tëɨ! A criança estava amarrada em


uma haste de palmeira.
— Ũa, ũa, ũa! Tio! Tio!
Acabava de descer ao chão, sentado no meio
daquela haste de palmeira:
77
o surgimento da noite
— Sede! Sede! Tio! Sede!
Eles o agarraram. Não foi gente que deu à luz
esse bebê. Ele não tinha pai gerador, mas apenas
apareceu nessa haste de palmeira.
Levaram-no, muito sedento. Ninguém o ge-
rou! Levaram-no, pois era o sobrinho.

D
Foi lá que os dois encontraram o filho de Ma-
nakarariyoma. Por causa desse bebê encontraram

L
o grande rio fechado. Os humanos foram extermi-
nados por causa daquele bebê sedento que surgiu
do nada. N
Como? Omawë não abriu sem razão essa água
na qual se afogaram os Yanomami; foi por causa
P
do sobrinho cujo fôlego se apagava. Ele morria
de sede.
IA

Como se deu esse evento?


— Ẽ, ẽ, ẽ! — assim ele respirava.
Vendo a criança arfar, com a moleira se esva-
ziando, o tio chorava por causa da sede do bebê.
U

— Não vou deixar meu pequeno sobrinho mor-


rer! Não vou ficar feliz, não! — dizia chorando e
G

recuando.
Os olhos do bebê estavam virando e Omawë
dava a espuma de sua baba para ele beber. O
bebê chupava, mas chupava em vão. Sua boca se

78
o dilúvio
enganava com a urina do tio. Ao final, o irmão
mais novo refletiu e decidiu conseguir água de
qualquer forma.
Ele previu que a água estava guardada em-
baixo de uma pedra. Tuku, tuku, tuku! A água
batendo debaixo da pedra fazia esse som.

D
A pedra era muito dura, estava bem fincada;
mesmo assim ele conseguiu tirar um pouco, não

L
de vez. Ele suspendeu a pedra só um pouco,
inclinando-a para o lado, não por baixo. Assim
que ele a empurrou um pouco, a água jorrou. O
N
bebê, que já estava morto, ressuscitou por causa
dessa água.
P
Tuuuuuuuu! Fez a água.
A água logo jorrou longe. O jorro caiu lá, bem
IA

em baixo. A água se curvou e escondeu o céu. A


água jorrou durante duas noites e o rio encheu
rapidamente. Por causa da sede daquele bebê, a
gente daquela época desapareceu.
U

Foi depois desse evento que nossos antepassa-


dos surgiram; a água levou os mortos lá pra baixo,
G

onde os dois preparavam redes. Omawë, Yoasiwë


e o sobrinho fizeram uma cerca de paxiúba dura
como ferro fincado na água, para reter os mortos
levados pelo rio. No mesmo lugar onde Omawë e

79
o surgimento da noite
Yoahiwë se localizavam, eles fizeram outro jirau
bem forte para moquear os mortos e fazer apare-
cer os napë.
Feito isso, a água já trazia outras pessoas so-
frendo, os afogados. O rio ficava bem estreito no
meio da terra dos napë. Pegaram os mortos lá

D
bem perto da terra dos napë, lá em baixo. Chega-
vam pelas águas os quase mortos, onde estavam

L
os dois.
O que fizeram Omawë e seu irmão? Eles usa-
ram aquelas redes que haviam tecido. O irmão
N
mais velho, que era mais esclarecido, disse:
— Irmão menor! Faça logo, os meus já estão
P
passando! Meu irmão, os primeiros já estão pas-
sando!
IA

Prepararam corda de embira. Os dois teceram


um tipo de tarrafa transparente. Eles salvaram as
pessoas com tarrafa de embira omaoma. Não pa-
ravam de lançar a rede onde chegavam os mortos,
U

pegando um a um. Puxaram a rede como se fos-


sem peixes, muitos peixes.
G

Feito isso, ele e o irmão mais novo os joga-


ram em cima do jirau, um por um, quando o fogo
grande se erguia; eles os assaram como se fossem
caça.

80
o dilúvio
Xãaaai! O fogo crescia com a gordura derre-
tida de gente. O irmão mais novo cortou as fo-
lhas novas de sororoca e as deixava no chão. Em
cima dessas folhas, juntava os corpos cremados,
enquanto o outro recuperava os corpos no mesmo
instante.

D
O sobrinho, que rapidamente cresceu, ajudava
seu tio.

L
Eles os jogavam em cima das folhas, os cor-
pos cremados. O irmão mais velho recuperava os
corpos e os raspava. N
Ele raspava os corpos cremados com um tipo
de colher grande. Xoe! Xoe! Xoe! A pele dos
P
cremados produzia esse som.
Eles jogavam os corpos cremados em cima das
IA

folhas novas de sororoca, que estavam no chão


uma perto da outra.
Aqueles que estavam bem raspados, eles sepa-
ravam, pegando-os com um tipo de arpão. Tuuu-
U

uuuuu! Eles não erravam.


— Aë, aë, aë, aë, aë, tãrai! — faziam os dois
G

assim. — Aë, aë, aë, pei kë oooo! Tãrai!


Fizeram assim levantar os Yanomami ressus-
citados com flechas na mão.

81
o surgimento da noite
— Todos, todos, todos, todos! Tãrai! De pé! —
disse Omawë.
Primeiro ressurgiram os Yanomami e depois
apareceram os napë.
Somente os Yanomami Horonamɨ se ergueram
com as flechas na mão.

D
— Kia! Kia! Kia! Ha, ha, haaaa! — diziam eles.
— Tãrai, ha asi ı̃ɨɨ!

L
Eram gordos, pintados e enfeitados, com as
penas de cauda de arara, altivos.
— Ha, ha, ha, ha! N
O irmão mais velho riu sem parar dos que es-
tavam se transformando. Olha aqui! As mulhe-
P
res púberes se erguiam elegantes, apesar de terem
morrido afogadas, elas reapareceram como mo-
IA

ças novas.
Depois de ter amontoado a metade dos corpos
cremados, eles os jogaram na água. Os mortos
não caíram na água em silêncio.
U

O primeiro a dizer: Ĩxima! Ĩxima! se tornou


piranha. Ĩxima! Ĩxima! Todos que disseram isso
G

se tornaram piranhas.
— Koooorooouuu! Kuxu, kuxu, kuxu! — fa-
ziam.

82
o dilúvio
Os demais se transformaram em matrinxã.
Apareceu um monte de peixes flutuando. A su-
perfície da água ficou completamente coberta e
sumia de tanto peixe, a água não se mexia mais
de tanto peixe, de cuja carne gostamos tanto.
Quando dizemos:

D
— É um pacu! — na verdade, comemos a carne
de gente que se tornou peixe, comemos a carne

L
preta de Yanomami.
Da nossa carne de Yanomami surgiram os
napë. Os napë surgiram a partir dos Yanomami
N
que se transformaram. A partir dos nossos cor-
pos cremados, com a transformação, os napë sur-
P
giram.
Antes mesmo da existência dos napë, já havia
IA

aparecido a moradia deles, antes do surgimento


dos motores, do canto do galo, e antes dos pró-
prios ancestrais. Embora sejam a origem de tudo
isso, antes da existência dos napë e das napëyoma
U

falando uma língua estrangeira, Omawë e Yoa-


siwë se surpreenderam quando ressuscitaram e
G

rasparam os outros.
Os ressuscitados ficavam de pé, elegantes, e
atiravam flechas para provar que estavam sãos e
salvos.

83
o surgimento da noite
— Irmão menor, aqueles que eu queria fazer
surgir, eu os deixei à deriva na água! Veja o resul-
tado! — disse o irmão maior, porque havia ressus-
citado todos eles.
Omawë se transformou e, onde se transfor-
mou, a imagem dele se tornou napë. Ele criou os

D
napë. Lá a sua imagem se misturou e ainda está
lá, eles não a veem.

L
— Eu sou aquele que ressuscitou vocês! — ele
diz isso? Omawë não diz isso. Ele existe ainda,
ainda está vivo em algum lugar. — Sou aquele que
N
ressuscitou vocês! — Omawë não nos diz isso.
Não fica perto onde eles estão morando. Os
P
dois que realizaram essa ressurreição são os que
deram origem aos napë. Apesar de os dois ficarem
IA

lá longe em seguida, outros napë chegaram.


O que aconteceu? Se vocês forem pra lá, vocês
não chegarão. Os dois foram até os napë de pele
vermelha.
U

O rio abaixo fica dentro da terra. Como qual-


quer rio, a cabeceira da água nunca fica baixa,
G

quando as fontes das águas se juntam, elas des-


cem; assim as águas do dilúvio se juntaram e for-
maram o mar. O rio não desce plano, o rio acaba
e entra na terra.

84
o dilúvio
Os dois que fizeram a transformação moram
lá, além dessa parte do mundo, rio abaixo, lá onde
emboca a mãe do rio, onde entra um rio só. Eles
são eternos.
Onde você pode ir? Não há aonde ir. Lá fica
o rio, onde não há floresta, onde não há nada.

D
Daquele lado vivem os dois, que fizeram a grande
transformação.

L
Os napë se espalharam. Lá, eles se reproduzi-
ram, rio abaixo; não há mais ninguém onde res-
suscitaram. Eles se dividiram rio abaixo. Foram
N
morar em outros rios. Sim. Foi assim, nenhum
dos que viviam antes sobreviveu.
P
Quando o rio levou os Yanomami, sobrevive-
ram somente dois xaponos. Os antepassados re-
IA

nasceram e se desenvolveram. Eles sobreviveram


para sempre.
As montanhas altíssimas se chamavam
Ũaũaiwë, Rapai e Wãima. Os sobreviventes con-
U

seguiram subir até o cume da serra Rapai, se agru-


param como carapanãs, como moscas, e estavam
G

tristes.
A serra Ũaũaiwë acabou afundando; restou
somente o cume da montanha. O céu parecia se
apoiar no cume das montanhas Rapai e Wãima.

85
o surgimento da noite
Não deu para o rio atingir o cume dessas monta-
nhas.

D
L
N
P
IA
U
G

86
O surgimento da primeira mulher

A gora vem a história dos Unissexuais. O

D
nome deles, os Unissexuais, vem do fato de
a mulher não ter aparecido imediatamente. Eles

L
se agruparam.
O surgimento dos nossos antepassados acon-
N
teceu a partir da perna de Japu. Ainda não havia
surgido a mulher.
P
Depois do rapto da filha de Raharariwë, segue
a história dos Unissexuais que moravam juntos,
IA

quando não havia mulheres.


Apesar de serem homens, eles faziam sexo
entre eles. Apesar de terem pênis, eles faziam sexo
entre eles. No meio da copulação deles, surgiu
U

Japu.
Depois do surgimento de Japu, lá os ancestrais
G

dos Waika, dos Xamatari, dos Parahiteri e dos


Xirixianateri nasceram. Na parte carnuda abaixo
do joelho da perna de Japu, apareceu uma vagina.

87
o surgimento da noite
Nossos antepassados não nasceram da perna
de Japu. O surgimento dos nossos ancestrais é
outra história.
Nessa época, os antepassados dos Waika se re-
produziram a partir da perna de Japu. Nossos an-
tepassados e, consequentemente, nossas gerações

D
já nasceram de mulher e não a partir da perna de
Japu. Foram outros os antepassados dos Waika.

L
Os antepassados dos Waika nasceram da vagina
da filha de Japu. A história deles é diferente.1
Japu apareceu e se misturou a eles. Aquele
N
que ia ser o marido dele já morava no xapono.
Depois de a vagina aparecer, foi ele quem falou
P
com o marido para fazer sexo.
A vagina apareceu, semelhante àquela das
IA

mulheres. Os Unissexuais se satisfizeram com a


perna de Japu. Daí, nasceu a primeira mulher,
o que possibilitou aos Unissexuais fazerem sexo.
U

1. O par waika/xamatari parece ter sido usado originalmente


G

para designar outros grupos yanomami vivendo em região geográ-


fica diversa de quem fala, os primeiros ao norte e oeste, e os segun-
dos ao sul, reconhecendo-se neles conjuntos de características que
os particularizam. Os termos foram atribuídos em diferentes mo-
mentos pelos brancos para designar grupos específicos de forma
estável e, no caso de xamatari, para designar a própria língua do
tronco yanomami usada pelos Parahiteri que fizeram este livro.

88
o surgimento da primeira mulher
Foi graças à perna de Japu, portanto, que eles se
satisfizeram.
Nossos primeiros ancestrais são oriundos da
perna de Japu. Primeiro, nasceu uma mulher, de-
pois nasceu outra. Assim se fez. Depois, outra.
Assim. Fizeram outra. Depois de nascer a pri-

D
meira mulher, a partir da qual nasceram as outras,
surgiram os parentes de nossos antepassados.

L
— Prohu! — logo disse o homem que nasceu
primeiro.
Chamaremos o primeiro homem que nasceu
N
assim de nosso antepassado. Eles se multiplica-
ram a partir da mulher que nasceu da perna de
P
Japu, a partir da filha mais velha de Japu. Conti-
nuaram a se multiplicar. Nasceram cinco mulhe-
IA

res. Nasceram assim.


Depois de elas nascerem, a vagina sumiu da
perna de Japu, porque ela já havia feito as mulhe-
res. Já estavam se reproduzindo. Nós os chama-
U

mos de nossos parentes. Nossos antepassados se


reproduziram, continuaram a se reproduzir.
G

Se não fosse a perna de Japu, nossos paren-


tes não existiriam. Aqueles com os quais nos mis-
turamos e fazemos amizade são nossos parentes,
nossos verdadeiros parentes. Foi o que aconteceu.

89
o surgimento da noite
Depois de nascerem, eles ocuparam toda a flo-
resta. Não são outros que nos fizeram! Não foi
Omawë que nos criou! Omawë mora em cima,
apesar de ter morado primeiramente nesta flo-
resta. Ele fugiu da condição de Yanomami. Ele
voou, ele foi morar lá em cima, assim eram os dois

D
irmãos no início. Foi assim mesmo.
Nossos ancestrais saíram da perna de Japu; ele

L
não morou mais ali, foi a um lugar diferente. Japu
se chamará Napërari, quando se tornar espírito.
Seu marido também. N
Apesar de ter um pênis igual a nosso, ele fa-
zia sexo com outro homem, apesar de ter o pê-
P
nis amarrado, ele engravidou a perna de Japu, ge-
rando as mulheres, na perna dele mesmo. A va-
IA

gina na perna menstruava, e ficava sentada no


chão no tempo da menstruação, ensinando a sen-
tar no chão em período menstrual. Fez aparecer
a barriga na perna.
U

Depois de nascer, a mulher chorou, o pai se


levantou rapidamente, ele a pegou logo, cortou o
G

cordão umbilical e ela cresceu rapidamente. Na-


quele momento, Japu se tornou homem nova-
mente. Foi assim. Essa história acabou.

90
D
L
Paratexto
N
P
IA
U
G
G
U
IA
P
N
L
D
Como foi feito este livro

anne ballester soares

D
L
sobre o autor
N
Os Yanomami habitam uma grande extensão da
floresta amazônica, que cobre parte dos estados
P
de Roraima e do Amazonas, e também uma parte
da Venezuela. Sua população está estimada em 35
mil pessoas, que falam quatro línguas diferentes,
IA

todas pertencentes a um pequeno tronco linguís-


tico isolado. Essas línguas são chamadas yano-
mae, ninam, sanuma e xamatari.
U

As comunidades de onde veio este livro são


falantes da língua xamatari ocidental, e ficam no
G

município de Barcelos, no estado do Amazonas,


na região conhecida como Médio Rio Negro, em
torno do rio Demini.

93
o surgimento da noite
Além dessas quatro línguas, no Brasil há um
total de 154 línguas indígenas faladas por todo o
território brasileiro, mas antes do Brasil colônia,
tínhamos entre 600 e 1000 línguas. O trabalho
de registro feito pelos pesquisadores em conjunto
com as comunidades indígenas é de extrema im-

D
portância para conseguir conservar a história des-
ses idiomas. Não somente para consultas posteri-

L
ores, mas para a organização da própria comuni-
dade.
Em 2008, as comunidades Ajuricaba, do rio
N
Demini, Komixipɨwei, do rio Jutaí, e Cachoeira
Aracá, do rio Aracá — todas situadas no municí-
P
pio de Barcelos, estado do Amazonas — decidi-
ram gravar e transcrever todas as histórias conta-
IA

das por seus pajés. Elas conseguiram fazer essas


gravações e transcrições com o apoio do Prêmio
Culturas Indígenas de 2008, promovido pelo Mi-
nistério da Cultura e pela Associação Guarani Te-
U

nonde Porã.
No mês de junho de 2009, o pajé Moraes, da
G

comunidade de Komixipɨwei, contou todas as his-


tórias, auxiliado pelos pajés Mauricio, Romário e
Lauro. Os professores yanomami Tancredo e Ma-
ciel, da comunidade de Ajuricaba, ajudaram nas

94
como foi feito este livro
viagens entre Ajuricaba e Barcelos durante a rea-
lização do projeto. Depois, no mês de julho, Tan-
credo e outro professor, Simão, me ajudaram a fa-
zer a transcrição das gravações, e Tancredo e Car-
los, professores respectivamente de Ajuricaba e
Komixipɨwei, me ajudaram a fazer uma primeira

D
tradução para a língua portuguesa.
Fomos melhorando essa tradução com a ajuda

L
de muita gente: Otávio Ironasiteri, que é professor
yanomami na comunidade Bicho-Açu, no rio Ma-
rauiá, o linguista Henri Ramirez, e minha amiga
N
Ieda Akselrude de Seixas. Esse trabalho deu ori-
gem ao livro Nohi patama Parahiteri pë rë kuo-
P
nowei të ã — História mitológica do grupo Parahi-
teri, editado em 2010 para circulação nas aldeias
IA

yanomami do Amazonas onde se fala o xamatari,


especialmente os rios Demini, Padauiri e Marauiá.
Em 2013, a editora Hedra propôs a essas mes-
mas comunidades e a mim que fizéssemos uma
U

reedição dos textos, retraduzindo, anotando e or-


denando as narrativas para apresentar essas his-
G

tórias para adultos e para crianças de todo o Bra-


sil. Assim, o livro original deu origem a diversos
livros com as muitas histórias contadas pelos pa-
jés yanomami.

95
o surgimento da noite
sobre a obra
Este livro reúne histórias contadas por pajés
yanomami do rio Demini, sobre os tempos antigos,
quando seres que hoje são animais e espíritos
eram gente como os Yanomami de hoje. Estas
histórias contam como o mundo veio a ser como

D
ele é agora.
Trata-se de um saber sobre a origem do mundo

L
e dos conhecimentos dos Yanomami que as pes-
soas aprendem e amadurecem ao longo da vida,
N
por isto este é um livro para adultos. As crianças
yanomami também conhecem estas histórias, mas
P
sugerimos que os pais das crianças de outros lu-
gares as leiam antes de compartilhá-las com seus
filhos.
IA

Ao apresentar narrativas sobre os mitos de cri-


ação sob a perspectiva Yanomami, O Surgimento
da Noite desvela outros modos de existência e
U

crenças que transbordam da lógica ocidental e eu-


rocêntrica. Apesar do título do livro fazer refe-
rência ao surgimento da noite, as narrativas en-
G

contradas ao decorrer da leitura abordam o surgi-


mento de outros elementos também. Encontrare-
mos o surgimento do tabaco, do cipó e da banana
através das aventuras do personagem Horonamɨ.

96
como foi feito este livro
Horonamɨ é um grande pajé que surgiu dele
mesmo, assim como é relatado na narrativa. Sur-
giu junto com as florestas e ensinou aos Yanoma-
mis como morar nelas. Além de compartilhar os
conhecimentos com os Yanomamis, ele também
compartilhou suas histórias com os estrangeiros.

D
a lógica cristã e o mito de criação indígena

L
Assim que se iniciou a colonização do Brasil, os
portugueses acreditavam que tudo aquilo que não
N
se pareciam com eles poderia ser denominado de
selvagem. A Coroa Portuguesa sempre foi muito
P
conhecida por ser extremamente católica, logo a
sua história é repleta de perseguições e intolerân-
cia em relação as novas religiões.
IA

As missões jesuíticas são as provas de como a


intolerância cultural era altamente disseminada
no século xvi e xvii. A metrópole envia padres
U

que tinham como missão catequizar a comuni-


dade indígena e os fazerem acreditar na existên-
G

cia de um Deus, em conceitos maniqueístas e a


supremacia da cultura europeia.
Sob a perspectiva cristão, o mundo foi criado
em sete dias por um Deus único e onipresente.
Após os sete dias, a humanidade foi criada a par-

97
o surgimento da noite
tir de Adão e Eva. Tudo o que existe no mundo foi
criado exclusivamente por um único ser. Quando
acompanhamos as narrativas dos Yanomamis, não
temos a figura de um Grande Criador e único, mas
temos a criação dos elementos e o surgimento dos
fenômenos físicos, como a noite ou o dia, a partir

D
de aventuras vividas em conjunto pela comuni-
dade.

L
A ideia de coletivo e a concepção do surgi-
mento de elementos a partir de ações ou reações é
a linha de raciocínio das comunidades. Não existe
N
uma figura única que deva ser respeitada, mas
existe um conjunto de ações da natureza e todos
P
os seus elementos e quando uma comunidade tra-
balha em conjunto, a natureza poderá fornecer
IA

novos conceitos e outros novos elementos.


De leitura rápida, O Surgimento da Noite é re-
cheado de histórias fantásticas. A valorização da
natureza e de seus elementos é a peça fundamen-
U

tal para entender a cultura Yanomami. O modo de


narrar apresentado é muito semelhante as aven-
G

turas de Macunaíma, obra de Mario de Andrade.


O autor modernista mergulhou nas histórias bra-
sileiras para construir seu herói e suas aventuras.

98
como foi feito este livro
É importante conhecermos e valorizarmos os
relatos e as culturas que já existiam no Brasil an-
tes da colonização. Os registros fonéticos e fono-
lógicos realizados pelos pesquisadores são como
um tesouro que devem ser compartilhados e bem
cuidados. Ler as narrativas Yanomamis é poder se

D
conectar com o Brasil anterior aquele que apren-
demos nas aulas de história.

L
sobre o gênero
N
Essas narrativas podem ser classificas como
mitologias indígenas pois relacionam-se ao con-
P
texto específico de produção de mitologias e cren-
ças dos povos originários. Como esses povos pri-
meiros eram ágrafos, isto é não tinham um sis-
IA

tema de escrita, estas narrativas eram tradicional-


mente transmitidas pela oralidade. A narrativa
oral é caracterizada por alguns elementos especí-
U

ficos: normalmente é entoada, como uma canção,


o que ajuda na memorização da história; revela
mitos e histórias relacionados à cosmovisão de
G

um povo; envole a criação de um espaço diferente,


uma demarcação de sacralidade em contraposição
ao espaço profano do cotidiano, se formos pensar
com o mitólogo romeno Mircea Eliade.

99
o surgimento da noite
Entre o povo Guarani, por exemplo, são co-
muns as rodas para fumar petygua, cachimbo
de tabaco, para a contação de histórias. Já os
Hupd’ah, povo do Alto Rio Negro, narram suas
histórias em rodas que fumam tabaco e mascam
coca. Entre os Yanomami, a prática é a ingestão

D
de yãkoana, pó feito com cascas de árvores secas
e pulverizadas, que iniciam o indígena no conhe-

L
cimento xamânico de seu povo.
Como relata o líder indígena Davi Kopenawa
em A queda do céu, o consumo de yãkoana está in-
N
timamente relacionado à transmissão das narrati-
vas tradicionais yanomami, pois permite ao xamã
P
ouvir as palavras de Omama, demiurgo da cosmo-
gonia yanomami, possibilitando-lhe a transmis-
IA

são de histórias e narrativas que atravessam ge-


rações. É através da yãkoana, igualmente, que o
xamã pode visualizar os xapiri, os espíritos da flo-
resta, presentes em cada elemento natural, seja
U

um animal, árvore ou mesmo a terra e a água. Per-


cebe-se, assim, como a narrativa tradicional ya-
G

nomami está intrinsecamente ligada à construção


de espaços e rituais específicos.
Registradas em livro, essas narrativas aproxi-
mariam-se do gênero conto, que “remonta aos pri-

100
como foi feito este livro
mórdios da própria arte literária”. De linguagem
concisa, por vezes poética, o conto é unívoco e uni-
valente, sob a perspectiva do ângulo dramático:
Etimologicamente preso à linguagem teatral, “drama” signi-
ficava “ação”. E com o tempo passou a designar toda peça
destinada à representação. Na época romântica, dado o prin-
cípio da fusão de gêneros, entendia-se por drama o misto

D
de tragédia e comédia. Transferido para a prosa de ficção, o
termo “drama” entrou a significar “conflito”, “atrito”. Nesse

L
caso, “ação” “conflito” se tonaram equivalentes, uma vez
que toda ação pressupõe conflito, e este, promove a ação,
ou por meio dela se manifesta; em suma, ambos se impli-
N
cam mutuamente.
O conto é, pois, uma narrativa unívoca, univalente:
P
constitui uma unidade dramática, uma célula dramática,
visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma
só ação. Caracteriza-se, assim, por conter unidade de ação,
IA

tomada esta como a sequência de atos praticados pelos pro-


tagonistas, ou de acontecimentos de que participam. A ação
pode ser externa, quando as personagens se deslocam no
espaço e no tempo, e interna, quando o conflito se localiza
em sua mente.1
U

Partindo da definição de Massaud Moisés so-


G

bre o conto, evidencia-se a principal característica


desse gênero literário: a unidade de conflito, con-
densada em ações que se completam em um único
1. moisés, Massaud. A criação literária. São Paulo: Cultrix, 2006,
p. 40.

101
o surgimento da noite
enredo. Ao conto, ainda seguindo Moisés, abor-
recem as divagações e os excessos, pois há uma
concentração de efeitos e pormenores essenciais,
em sua brevidade, para o bom funcionamento do
conto. Cada construção, cada palavra nesse gê-
nero tem sua razão de existir, pois integra a eco-

D
nomia global da narrativa.
São contos, no entanto, com uma nítida di-

L
mensão mítica, pois têm seus componentes essen-
ciais na esfera do sagrado, buscando equacionar
grandes questões espirituais e materiais dessa so-
N
ciedade. Nota-se que, tradicionalmente, não exis-
tia uma diferença entre a narrativa histórica e a
P
mítica, pois através do próprio mito se explicava
a criação do mundo, dos seres viventes e da socie-
IA

dade tal qual encontra-se. Como é o caso, visto


acima, dos mitos de criação cristãos.
Vale ressaltar, por fim, que, apesar de o por-
tuguês ter se sobressaído como a língua oficial
U

do Brasil, por se tratar do idioma do colonizador,


muitas das palavras e dos mitos indígenas foram
G

assimilados pelos falantes do português.

102
G
U
IA
P
N
L
D
D
L
N
P
IA
U
G

Adverte-se aos curiosos que se imprimiu este livro em nossas


oficinas, em 16 de abril de 2021, em tipologia Libertine, com
diversos sofwares livres, entre eles, LuaLATEX, git & ruby.
(v. f2f7bc6)

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