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o surgimento da noite
Mitologias Yanomami
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Anne Ballester
(organização e tradução)
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1ª edição
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
n-1 editora
Rua Frei Caneca, 322 (Conjunto 52) 01307-000
São Paulo sp
55 11 991876080
financeiro@n-1edicoes.org
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Sumário
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o surgimento da noite . . . . . . . . . 9
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O surgimento da noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Horonamɨ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
N 15
O surgimento do tabaco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Horonamɨ e o tatu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
P
O surgimento da banana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
A anta que andava nas árvores . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Os comedores de terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
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A vingança de Horonamɨ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Como morreu o monstro kuku . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Omawë . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
O surgimento da maniva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
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O dilúvio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
O surgimento da primeira mulher . . . . . . . . . . . . . . . 87
G
paratexto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Como foi feito este livro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
» Sobre o autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
» Sobre a obra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
» Sobre o gênero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
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Para ler as palavras yanomami
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lingüista Henri Ramirez, que é a mais utilizada no
Brasil e, em particular, nos programas de alfabeti-
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zação de comunidades yanomami.
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/ɨ/ vogal alta, emitida do céu da boca, e que soa
próximo a I e U
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/ë/ vogal entre o E e o O do português
/w/ U curto, como em “língua”
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o surgimento da noite
/k/ como C de “casa”
/h/ como o RR em “carro”, aspirado e suave
/x/ como X em “xaxim”
/s/ como S em “sapo”
/m/ como M em “mamãe”
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/n/ como N em “nada”
/r/ como R em “puro”
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O surgimento da noite
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mite dormir. Ele fez aquilo que nos fará
dormir. Aconteceu em toda a floresta. Ele pro-
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curou sem desistir, procurou, procurou e acabou
encontrando essa coisa perto da sua moradia. A
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cauda da coisa já estava visível, pendurada em
um galho, mas Horonamɨ pensava que a coisa es-
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taria sentada na raiz de uma árvore e continuou
procurando longe, em todas as direções.
Não foi a noite que surgiu sozinha, de repente,
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trá-la. A noite também cantava como um mutum.
Nessa época, os animais — como arara, mu-
L
tum, queixada, anta, veado, caiarara, maitaca,
irara, tamanduá-bandeira, papagaio e jabuti —
eram Yanomami e, como os Yanomami, moravam
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em xapono. Horonamɨ designou cada espécie de
animal e deu-lhes seus nomes. Naquela época, ele
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procurou pela terra firme sem descanso, quando
não havia xaponos espalhados pela selva; havia
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o surgimento da noite
embaixo do lugar onde estava empoleirado o dono
da escuridão.
O pai do cunhado de Horonamɨ se chamava
Manawë. Ele era uma boa pessoa, e avisou:
— Ele vai achar agora! Tomem cuidado! —
avisou Manawë no xapono.
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Quando Horonamɨ flechou o mutum da noite,
apesar de estar perto da sua moradia e de retornar
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correndo, ele também sofreu, porque anoiteceu
de uma vez. Depois de ter soprado a noite em
todos os cantos, e de ter corrido, ele adormeceu.
N
Naquela noite, os Yanomami também sofreram.
Não anoiteceu devagar. Até Horonamɨ passou
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fome, pois não tinha como fazer fogo. Ele acabou
ficando na escuridão, apesar de estar perto do seu
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o surgimento da noite
Havia então três pajés: o avô, o avô mais novo
e o cunhado, e eles esquartejaram a noite, fazendo
reaparecer a luz do dia.
Para as pessoas não comerem mais terra, Ho-
ronamɨ foi caçar. Ele nos ensinou a caçar. Ele ti-
nha uma zarabatana, que alguns Yanomami usam
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para soprar, era isso que ele usava. Ele soprava
os animais, tinha um sopro forte, e foi assim que
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ele nos ensinou a matar a caça com veneno.
É assim, é a própria história dos antepassados.
É a história daquele que se apossou da floresta, é
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o início de tudo, a história do primeiro dono da
floresta, Horonamɨ.
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Horonamɨ
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Esta é a verdadeira história de nosso surgi-
mento: quando a floresta era virgem, apareceu Ho-
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ronamɨ, personagem principal de nossa história,
por causa de seus ensinamentos. O grande pajé1
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yanomami Horonamɨ surgiu dele mesmo; surgiu
ao mesmo tempo que esta floresta e foi quem ensi-
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nou os Yanomami a morar nela. Assim foi o início.
Não existia Yanomami como os de hoje, nem
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o surgimento da noite
resta e nos ensinou a morar nela, assim como en-
sinou também aos estrangeiros, os napë.3 Ele não
tinha pai, mas mesmo assim ele surgiu. Ele sur-
giu em uma floresta maravilhosa.
Quem morava com Horonamɨ? Horonamɨ
morava com seu cunhado, Wɨyanawë, que, apesar
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de não ter desposado sua irmã, era seu verdadeiro
cunhado.4 Horonamɨ sempre o levava consigo nos
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períodos que passavam dentro da mata, chamados
wayumɨ, e ensinou os descendentes como ir de
wayumɨ.5 N
Apesar de sua mãe não ter parido Horonamɨ,
pois ele surgiu de repente, o nome de sua mãe era
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Yotoama. O pajé Horonamɨ foi quem procurou e
descobriu nossa comida, nosso conhecimento da
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horonamɨ
floresta e o habitat dos animais, para que, quando
os Yanomami ocupassem a floresta, eles fossem
capazes de aplacar sua fome de carne.
Ele descobriu o nome dos animais quando eles
viviam como nós. Apesar de serem animais, antes
eles viviam do mesmo modo que os Yanomami.
D
Como ele fez aparecer a água para acalmar
a sede dos Yanomami? Ele abriu várias veredas
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na floresta. Abriu veredas em todas as direções,
de forma que elas nunca sumam e que sempre
bebamos água. N
Horonamɨ tinha seu próprio xapono6 , onde
moravam também seus aliados, que se tornaram
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muito importantes.
Como se chamava o xapono pertencente a
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o surgimento da noite
newakoari. Kapurawë era o nome do xapono e da
região dos Kapurawëteri.7
Penewakoari morava com eles e estava desti-
nado a se transformar num monstro. Penewako-
ari depois se transformou no monstro Xõewëhena,
faminto de carne e comedor de crianças. Mas,
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quando ainda era Yanomami, Penewakoari mo-
rava no xapono Kapurawëteri, vizinho ao xapono
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Horona.
Nesses xaponos moravam poucas pessoas.
Com o tempo, nos xaponos vizinhos foram apa-
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recendo mais tuxauas. Os primeiros tuxauas que
viviam nos xaponos vizinhos, os xaponos dos ali-
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ados, não eram nossos antepassados, eram outros.
Sobre eles se contaram estas histórias.
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O surgimento do tabaco
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tabaco. Antes ninguém usava o tabaco, por-
que ninguém conhecia suas sementes, nem as so-
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prava para semear.
“É desse jeito que se coloca o tabaco no lábio!”
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Ninguém pensava assim. Eles não conheciam o
tabaco; por isso, ninguém andava com brejeira no
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lábio, ninguém o usava, pois o desconheciam.
Nessa época, Hãxoriwë morava sozinho, não
tinha esposa nem filho. Quando Horonamɨ por
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cer no seu lábio um tabaco sem cor. Ele fez apare-
cer o tabaco taratara.1 Enquanto Horonamɨ ainda
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estava de pé, ele perguntou a Hãxoriwë:
— Quem é você? Você aí, quem é?
— Não pergunte quem sou! Sou Hãxoriwë! —
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disse ele. — Meu filho,2 é você?
— Sim.
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— Você, quem é você?
— Sou Horonamɨ, sou Horonamɨ — disse. —
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o surgimento do tabaco
ninguém, sequer ele mesmo, sabia preparar o ta-
baco depois de soprar as sementes e de misturar
as folhas com cinzas. Como Horonamɨ era pajé,
ele fez sair o tabaco de dentro de Hãxoriwë. De-
pois de fazer sair o tabaco sem cor, ele o usou. Hã-
xoriwë olhou e quando viu o tabaco:
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— Hı̃ɨɨ! — chorou logo.
Era um ardil para que Horonamɨ lhe desse o
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tabaco:
— Brejeira! Meu filho! Brejeira! — chorou
Hãxoriwë. N
— Hı̃ɨɨ! Meu sogro! Você está sofrendo tanto
assim⁈
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— Sim! Estou querendo, meu filho! Divida o
que você tem no lábio! — chorou ele.
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o surgimento da noite
“Hıɨ̃ ɨ! Prohu! Prohu!” elas faziam ao cair.
— Sogro! As sementes estão moles. Tem mui-
tas frutas ali grudadas, tire para mim!
— Não, primeiro me passe a brejeira!
Hãxoriwë nos ensinou essa palavra: brejeira.
Assim, quando Horonamɨ a guardou no lábio, ele
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disse:
— Minha brejeira!
Não apareceu logo esse nome, tabaco.3 Ele
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só apareceu quando Hãxoriwë pronunciou essa
palavra, até então desconhecida. Horonamɨ lhe
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deu a brejeira. Horonamɨ aproveitou a situação
e pediu outras frutas. Assim, Hãxoriwë lhe deu
P
mais uma, mais uma e mais uma. Essas frutas
penduradas, depois de colhidas, pareciam cachos
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de banana.
— Vamos, meu sogro! Experimente! — disse
Horonamɨ. — Prova!
“Tëɨ!”, Hãxoriwë caiu.
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o surgimento do tabaco
força do tabaco o pegou imediatamente. Ainda
com o tabaco na boca ele cuspiu, e a espuma caiu
no chão. Onde a espuma caiu, surgiu um broto de
tabaco, que logo cresceu e se espalhou de uma vez.
As folhas de tabaco logo ficaram grandes, como
as folhas da jurubeba.
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Horonamɨ fez aparecer o tabaco através de Hã-
xoriwë. O conhecimento das sementes foi trans-
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mitido, por isso nossos antepassados as pegaram
e hoje nós usamos o tabaco, apesar de ele se ori-
ginar do cuspe de Hãxoriwë. N
— Meu sogro, depois de melhorar, você dirá:
é só tabaco! — disse Horonamɨ.
P
Enquanto Hãxoriwë estava pendurado e ine-
briado, uma espuma grande saiu da sua boca, por
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o surgimento da noite
Havia nessa época os Yanomami do xapono
Warahiko, e foram eles que encontraram o tabaco,
foi um deles. Quando viram o tabaco, disseram:
— Õooãa! Uau! Uma plantação de tabaco!
Foram eles que pronunciaram o nome do ta-
baco. Em uma região ali perto, moravam dois
D
Wãimaãtori, de outro xapono. Quando os do xa-
pono Warahiko encontraram um deles, lhe conta-
L
ram a respeito do tabaco.
— Meu filho! Qual é o nome disso? — Ah, é
tabaco! — assim retrucaram os dois Wãimaãtori.
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Foi assim que aconteceu: Hãxoriwë, os Wa-
rahikoteri e os dois Wãimaãtori descobriram o ta-
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baco primeiro. Foi assim que o uso do tabaco se
desenvolveu. Os napë não fizeram surgir o tabaco
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o surgimento do tabaco
ram com a força do tabaco taratara. Sofreram de
tontura. Os dois Wãimaatori que moravam mais
além, apesar de serem resistentes ao tabaco, tam-
bém desmaiaram e ficaram duros por causa da
força do tabaco taratara. Mas depois eles melho-
raram. Foi assim que, em seguida, pegaram as se-
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mentes de tabaco e as espalharam, fazendo-as se
multiplicarem aqui. Assim foi.
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Hãxoriwë morava aqui. Depois da história
do sofrimento de Hãxoriwë, surge a história do
encontro de Horonamɨ com o Tatu.
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Horonamɨ e o tatu
O surgimento do cipó e da embira
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O Tatu era Yanomami e era muito com-
prido.1 Horonamɨ encontrou o Tatu. Por
L
que Horonamɨ cortou o Tatu bem na cintura?
Nós, Yanomami, amarramos terçados e fazemos
N
as cordas de arco com o cipó-de-apuí que se er-
gue na mata. Nós o cortamos e descascamos. É
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com isso que nós amarramos nossas redes, com
as embiras de cipó-de-apuí.
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o surgimento da noite
Assim, o Tatu possuía o único machado. Ele en-
sinou aos napë como fabricar o machado. Então
ele não tinha dificuldade em tirar o mel, pois ti-
nha o machado. Ele fez um cabo comprido, de-
pois de quebrar um pau, enfiou e amarrou o ma-
chado de pedra em um pau, era um machado de
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pedra; depois de amarrá-lo, ele partiu um tronco
e tomou mel. Os antepassados não tomavam mel,
L
não sabiam tomar. Ele ensinou a tomar mel, ele
que existiu primeiro, quando os Yanomami não
existiam, quando este inventor não morava entre
N
eles, ele ensinou a tomar mel. Esse tatu se chama
moro. Horonamɨ o encontrou.
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Ku, kõu, kõu, kõu, kõu, kõu!, fazia Tatu, cortando
o tronco. Horonamɨ ouviu esse som pela manhã.
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horonamɨ e o tatu
boca para chamar sua atenção. Aí fez outro som
com a boca, mas Tatu nem olhava, ele cortava
sem parar, com as pernas abertas. Naquela época,
ninguém chamava o outro de “sogro”, Horonamɨ
nos ensinou então a chamar de “sogro”:4
— Hı̃ɨɨ, meu sogro! — disse. — Meu sogro! —
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disse Horonamɨ com uma voz assustadora.
Quando disse isso, o Tatu parou.
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— Ɨ̃ı̃! Õ! — disse assustado. — Ɨ̃! Õ! De quem
é essa voz? — O Tatu falava assim. — De quem é
essa voz? — ele respondeu, com uma voz que não
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era normal. Era o seu jeito de falar mesmo.
Horonamɨ olhou, sorriu.
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— Sogro! O que você está comendo? O que é
isso? — disse Horonamɨ.
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o surgimento da noite
Horonamɨ falava com uma voz bem bonita,
pois ele era bonito.
— Hı̃ɨ, meu filho, eu sou o Tatu.
O Tatu era esbranquiçado. Ele era branco,
como os napë. Ele o chamou logo.
— O que você está querendo fazer? O que você
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está cortando?
— Ɨ̃ı̃! Estou comendo assim! Estou comendo
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isto.
— Eu quero experimentar — disse Horonamɨ.
— Quero experimentar um pouco! Posso beber?
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Que tipo de mel é?
— Não pergunte o que é! É o mel tima — disse
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o Tatu.
A partir desse momento, nós, Yanomami,
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horonamɨ e o tatu
— Hı̃ɨɨ! Será que o buraco tem espaço sufici-
ente? O mel está jorrando, está gotejando mesmo.
O buraco da colmeia está em baixo. A colmeia
acaba aí. Entre lá dentro! Fique mais em cima,
pise para baixo! Eu estou olhando! — disse o Tatu,
malicioso.
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Quando ele disse isso, Horonamɨ cedeu e en-
trou logo. Foi logo e entrou, a colmeia fazia baru-
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lho, e ele foi até o alto da colmeia. Ficou de pé lá
no alto dela. De pé, onde ele entrou, pelo buraco
que Tatu tinha feito. O Tatu fechou o buraco, e
N
não havia outra saída. O Tatu prendeu Horonamɨ
lá em cima. Horonamɨ gritava lá dentro. Não ti-
P
nha como sair. Se Horonamɨ fosse um Yanomami
como outro qualquer, ele jamais sairia. Ele gritou
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já estava longe.
— Ele não vai me seguir — pensou o Tatu,
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o surgimento da noite
olhou ao redor, mas o feioso que o prendeu não
estava mais ali. Horonamɨ ficou sozinho.
— Hı̃ɨɨ!
Depois de pular com a explosão, passou pe-
gando a dala e a zarabatana que estavam pendu-
radas. Colocou nas costas.
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— Hıɨ̃ ɨɨ! — gemeu. — O que tem o nome de
Moro, esse feioso, ele ferrou comigo! — disse, triste.
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Horonamɨ não errou de lugar: ele correu logo
para onde o Tatu havia ido, e foi rápido, ensi-
nando-nos a correr. Horonamɨ correu na direção
N
do lugar onde havia muitas pedras saídas da terra;
ele correu e correu, seguindo os rastros do Tatu,
P
como fazem os cachorros. Daí, Horonamɨ correu
dando uma volta, e cortou o caminho do Tatu. Ho-
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O Tatu apareceu.
— Taha! Arrá!— disse Horonamɨ.
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horonamɨ e o tatu
fundiu na floresta e acabou chegando justo onde
estava Horonamɨ. Horonamɨ estava de pé, atrás
da árvore, e deu um susto grande nele. Horonamɨ
queria cortar aquele que o havia aterrorizado. Ele
decidiu levá-lo até um tronco, fingindo que ali ha-
via uma colmeia, para fazê-lo se abaixar. O Tatu
D
pegou o machado.
— Hı̃! Meu filho, aqui está! Aqui está! — disse.
L
— Hõ, hõ, hõ, hõ! Meu filho! Hõ, hõ, hõ, hõ!
Venha cá ver! Olhe aqui! Meu filho, aqui está! —
disse Horonamɨ. N
Horonamɨ dizia isso tentando agradar o Tatu,
e ia indo atrás dele.
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— Hıɨ̃ ɨ! Me passa isso que você tem aí no ombro,
está afiado mesmo? — disse Horonamɨ, astuto.
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o surgimento da noite
Krihii, kriihii!, fez Horonamɨ, cortando o Tatu
para se vingar, pois ele tinha sofrido por causa do
Tatu.
— Ëëëëããaaë! — gemeu a parte de cima do
longo corpo do Tatu.
Apesar de ser só um pedaço, a parte superior
D
correu embora, sofrendo. Do lado de cá ficou a
parte inferior; as tripas vinham se esticando e a
L
parte superior ficava rolando. Assim, as tripas fo-
ram se esticando até lá, elas não se arrebentaram.
A parte superior daquele que Horonamɨ havia cor-
N
tado, e que ele queria que se tornasse o tatu moro,
foi lá para cima, até onde estão os espíritos. Foi
P
para lá que fugiu a parte superior do Tatu. Aqui
no chão ficou a parte inferior.
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horonamɨ e o tatu
havia corda. Eles se deitavam no chão — coloca-
vam a rede de cipó no chão para deitar.
Como foi que eles descobriram a rede de cipó?
Eles não sabiam descascar o cipó-titica com os
dentes, então era assim.5 Até as moças deitavam
no chão. Deitavam uns em cima dos outros, como
D
os cachorros. Sofriam na escuridão. Eles eram
assim. Dormiam passando frio. Para que nossos
L
antepassados não passassem mais necessidades,
as tripas de Tatu se tornaram cipó-de-apuí que
amarra as redes. Foi assim. N
Depois da transformação das tripas, eles pas-
saram a usar o cipó para fazer terçados e macha-
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dos de pedra, e para amarrar a cabeça das redes,
também feitas de um tipo de cipó. Depois, com o
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O surgimento da banana
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era assim. Nossos antepassados surgiram e
não sabiam plantar bananas. Não fosse por isso,
L
não haveria essas bananeiras. Não teria apare-
cido esse tipo de banana. N
Como pensou e agiu aquele que fez surgir a
banana, depois de morar e se estabelecer? Geral-
P
mente a gente vai à mata e encontra um lugar
como se alguém tivesse roçado, um lugar quei-
mado e limpo, bem no meio da selva. A gente
IA
D
Rokoya! Rokoroko! Roorewë!
Estas bananeiras e sororocas simplesmente
L
saíram delas mesmas. Dois dias depois, o Fan-
tasma voltou ao lugar onde havia queimado as
sororocas e viu que tinha nascido também ba-
N
tata-doce. Não foi em outros xaponos que ele
pegou. Lá onde Fantasma tinha seus alimentos,
P
onde havia as bananeiras, as sororocas se trans-
formaram em bananas-pacovãs e a batata-doce
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o surgimento da banana
um filho. Ele fez apenas um filho, apesar de sua
esposa ser moça. Agora ele não é mais pajé, como
foi em vida.
Aquele que vinha, Horonamɨ, encontrou as
bananeiras e pediu mudas ao Fantasma. Quando
não existiam nem roças, nem Yanomami, depois
D
de Horonamɨ pegar as bananeiras, ao chegar ao
seu xapono, ele deu nomes a elas, deixando com
L
isso o ensinamento de como plantar as bananei-
ras. Ele as pegou para nós as termos. Até hoje
existem as bananas de diferentes variedades: ro-
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komɨ, nakoaximɨ, rokoya, pauximɨ, monarimɨ, pa-
katarimɨ. Assim foi.
P
Nossos antepassados e os antepassados dos
napë não comeram banana desde o início. Hoje,
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o surgimento da noite
A água saiu e as roças afundaram. Essa água le-
vou a mulher e por onde a levou, levou também as
bananeiras afundadas, até aonde os napë vivem;
foi o rio que levou as bananeiras para que eles, os
napë as descobrissem. O rio desejava a mulher
menstruada porque ela era bonita. No que ela se
D
tornou? O rio a levou porque a desejava. Da mu-
lher menstruada que as águas levaram, sua ima-
L
gem se espalhou nos rios. Multiplicou-se a partir
dela mesma. Foi a água que a pegou. O rio disse:
— Meu sogro, quero uma mulher! Me dê a sua
N
filha!
O rio entrou, perseguindo a mulher. O rio
P
entrou rápido. Olha só a água! Ela entrava por
trás das casas, apesar de a terra ser alta.
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o surgimento da banana
jogada, apesar da sua beleza. Seu pai a fez afun-
dar. O rio levou a sua filha, e não a devolveu. Ela
não se afogou, e o rio a levou como sua esposa.
— Eu, apesar de ser água, farei dela a mãe
d’água! Eu vou pegá-la — disse o rio.
Por isso, esta Yanomami se tornará a mãe do
D
rio. O rio se retirou. Depois de pintarem seu rosto
com desenhos bonitos, colocaram penas de cauda
L
de papagaio nas suas orelhas. Feito isso, as folhas
de açaizeiro da reclusão foram removidas e a água
entrou. O xapono dele era como os nossos.
N
— Mãe! Mãe! Pinte minha irmã! Enfeite-a!
Enfeite-a depressa! — disse o irmão da moça.2
P
— Essa ideia dói muito, meu filho, mas não
tem jeito, entregue mesmo tua irmã!
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Xiri tõi!
Xiri tõi,
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Xiri tõiwë,
Xiri tõi,
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o surgimento da noite
Xiri tõi,
Xiri tõi,
Xiri tõiwë!
Ela cantou. Quando ela pronunciou o nome
de seu marido, o rio respondeu:
— Tuuuuuuuuuuuu!
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— Xiri tõi! Xiri tõi! Xiri tõi! — cantou o pai.
Ele falou assim, cantou assim e, quando parou
L
de cantar, o xapono quase caiu, levado pelo rio.
O irmão a pegou para jogá-la, apesar de ela estar
chorando. Ela chorava, por causa do seu irmão:
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— Ɨ̃ɨaaaı̃ɨ! Meu irmão! Meu irmão! Não fique
triste! Meu pai! Meu pai! Não fique triste! Minha
P
mãe! Minha mãe! Não fique triste!
Enquanto ela chorava assim, o irmão a pegou.
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o surgimento da banana
vagina dela estava ainda sangrando. Por isso se
tornou a mãe da água. A imagem dela se espa-
lhou e ocupou todos os rios. Aquelas bananeiras
rokoroko que a água levou, bem como as pacovas,
se multiplicaram na terra dos napë. Assim foi, as
bananeiras se multiplicaram.
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A anta que andava nas árvores
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animais. Horonamɨ encheu a floresta de ani-
mais. Horonamɨ encontrou a anta Xamari, que
L
andava como Yanomami. Ela andava nos galhos
baixos, vindo em sua direção.N
Hukru! Hukru! Prãããõ! ela fez ao cair.
Ela andava nas árvores como os cuatás. Afi-
P
nal, ele encontrou a anta andando nas árvores. Fe-
lizmente, ele fez com que ela descesse, para que
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o surgimento da noite
quilos se juntaram quando anta ainda era Yano-
mami, e a chamaram. Queriam saber quanto ela
aguentava comer.
Os esquilos viviam como Yanomami: mora-
vam em um xapono no alto das árvores e faziam
festas como nós, embora eles fossem se tornar ani-
D
mais. Um dia, eles chamaram as cutias, os caititus,
as queixadas, as antas, os papagaios e as maitacas.
L
Havia muita comida, mas os convidados não con-
seguiram comer tudo. Até a anta também desistiu
de comer, pois pressentiam que algo ia acontecer.
N
De repente, todos eles se transformaram em
animais.
P
As queixadas também eram Yanomami. Os
cipós se arrebentaram e elas caíram. Foi lá, na
IA
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a anta qe andava nas árvores
A anta foi quem caiu primeiro e passou a andar
no chão, tornando-se um animal terrestre. Em
seguida, o cipó das queixadas arrebentou. Outros
Yanomami, que ficaram na parte superior do cipó
se transformaram em macacos cuatás. Assim foi.
As queixadas ocuparam toda a floresta. Elas
D
desceram rio abaixo. Horonamɨ conseguiu assim
fazer a anta descer ao chão, e hoje nós as comemos.
L
Assim que foi. Não havia animais no início, pois
eles viviam espalhados, como os Yanomami, em
vários xaponos. N
Yãukuakua! Yãukuakua! Ninguém fazia as-
sim. É assim mesmo. Esse grande animal que
P
anda no chão, quando estamos famintos de carne,
nós a comemos, ela anda mesmo no chão. Nós a
IA
comemos.
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P
N
L
D
Os comedores de terra
D
que aos poucos se multiplicaram. Ela começa
na época em que não havia Yanomami como os
L
de hoje. Os Comedores de Terra sofriam, porque
eles comiam terra. Os primeiros que surgiram so-
N
freram. Nós também quase que teríamos sofrido,
como as minhocas, por cavar a terra e tomar vi-
P
nho de barro, se não fossem os acontecimentos
que seguem.
IA
49
o surgimento da noite
Quem descobriu os alimentos comestíveis?
Morava com eles Horonamɨ, aquele cujo nome
aparece no início, na origem. Ele mostrou a todos
os alimentos que até hoje nós comemos. Depois
de perguntar, experimentar e carregar os alimen-
tos por todos os cantos, ele ensinou os Comedo-
D
res de Terra a comê-los. Foi ele, Horonamɨ, não
outro. Assim foi.
L
Tudo isso não aconteceu embaixo deste céu,
mas do céu que caiu e amassou os primeiros habi-
tantes. Abriram o céu e assim nossos antepassa-
N
dos surgiram. O céu caiu, mas antes ele estava lá
em cima, antes da existência dos nossos antepas-
P
sados, antes de algum napë, entre nós, perguntar
assim:
IA
— Tudo bem?
Eles morriam de fome, pois comiam terra, flo-
res, frutas, excrementos de minhoca, folhas novas
de cabari. É essa a história dos ancestrais. Os an-
U
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os comedores de terra
não havia doença, não havia dor, nem tosse, por-
tanto não havia necessidade de remédio — não
havia doença, pois não havia napë. Viviam bem,
sem doenças, até terem muitos cabelos brancos.
As mulheres ficavam velhas até terem a cabeça
branca, pois não havia doença.
D
Era assim, no início: não sofriam com conjun-
tivite, nem com feridas, nem tinham marcas de fu-
L
rúnculo. Tinham a pele bonita e somente sofriam
de fome, por causa da terra que comiam. Apoia-
vam-se em paus para andar, por causa da fome.
N
Assim era. Nessa época, não sabiam comer carne,
mas eles estavam bem e, quando um velho morria,
P
ninguém chorava. Não choravam por causa de
um velho morrendo de doença, pois ninguém mor-
IA
51
o surgimento da noite
Os rios, apesar de serem grandes, dizem que
eram vazios. Dizem que não se escutava o som de
motor subindo o rio fazendo tu, tu, tu, tu, tu, tu!
Ũ, ũ, ũ, ũ, ũ! Não se escutava o som do avião,
por isso os velhos não morriam de doença. Mor-
riam de cegueira. Era assim que morriam, por
D
causa da cegueira. Tornavam-se cegos e a respira-
ção parava, não por causa de doença, mas de fome.
L
Isso só aconteceria depois. Aconteceu assim.
Ninguém dizia:
— Alguém lá pegou doença e morreu; eles
N
estão chorando lá!
Mesmo quando tinham cabelos brancos, eles
P
andavam saudáveis. Morriam de velhice. Fica-
vam cegos, os olhos secavam, o sangue acabava,
IA
52
os comedores de terra
Depois de eles aprenderem a comer os verda-
deiros alimentos, eles se tornaram como nós. Tor-
naram-se assim, comendo carne cozida. Quando
aconteceu, as crianças se multiplicaram, saudá-
veis, em um e outro xapono. Fizeram um grande
xapono, outros se agruparam, e não pararam de
D
se multiplicar, todos saudáveis.
L
N
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N
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D
A vingança de Horonamɨ
D
foi naquela parte que se transformaram. Os
Cuatás viviam como Yanomami. Eles são gente.
L
Moravam como nós, na planície. Pica-Pau Verme-
lho morava junto com os Cuatás, os Rapoahiteri
N
e Lagartixa. Pica-Pau Vermelho e Lagartixa, os
salvadores de Horonamɨ, moravam com os Rapo-
P
ahiteri. Horonamɨ os encontrou, ele mesmo. Ele
os viu comendo. Eles comiam abios. Eles o cha-
IA
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o surgimento da noite
Eles fizeram com que Horonamɨ ficasse ali.
Cuatá, do abieiro onde estava, puxou a árvore ta-
xizeiro com o fio esticado e a ponta mal encaixada,
segurando-a somente pelas folhas. Todos os Cu-
atás saíram, e aquele que eles tinham chamado
ficou sozinho. Eles o deixaram preso no abieiro.
D
O taxizeiro deu um impulso. Ficou só o abieiro.
Horonamɨ ficou agoniado, mesmo sendo Ho-
L
ronamɨ. Ficou gritando de cima, ficou gritando,
ficou preso lá. Quem iria buscá-lo?
— Quem virá me buscar? — pensava ele, cho-
N
rando.
Agoniado, estava muito triste, gritava e pedia
P
socorro; os Rapoahiteri e os Cuatás o deixaram
naquela situação. Esse é o nome dos primeiros
IA
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a vingança de horonamɨ
— Não, você não vai me fazer descer direito —
disse Horonamɨ — Você vai me fazer cair!
— Vamos tentar! — disse Lagartixa — Não
tenha medo, eu não vou te fazer cair! Eu te seguro
bem forte! Coloque suas mãos, assim!
Apesar de Lagartixa dizer isso, Horonamɨ tentou,
D
mas os dois ficaram de cabeça para baixo. Ele gri-
tava, quase caiu de cima, Lagartixa quase o fez cair
L
e, como não dava certo, Horonamɨ desistiu. Quando
ele desistiu, porque infelizmente não dava certo,
Pica-Pau Vermelho escutou a voz de Horonamɨ:
N
— De quem é essa voz, de quem é essa voz?
Parece a voz de alguém em dificuldade — disse —
P
Alguém parece estar sofrendo mesmo, a voz, qual
é seu problema, ıɨ̃ ɨ? — disse.
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57
o surgimento da noite
são os que fazem buracos nas árvores. Foi ele
quem fez Horonamɨ descer, tirando-o daquela si-
tuação. É o nome dele mesmo, Pica-Pau Verme-
lho, ele era gente. Graças à ação dele, os nossos
antepassados se reproduziram e se multiplicaram.
Foi assim. Pica-Pau Vermelho não era um animal,
D
era um Yanomami. Ele existia como Yanomami e
foi ele que fez Horonamɨ descer.
L
— Não responda mais, nem sempre você en-
contrará alguém para te ajudar, tome outro rumo
quando alguém te chamar! — ele aconselhou a
N
Horonamɨ.
— Sim, você é meu amigo, eu gosto mesmo de
P
você, vou te proteger, eu não vou te fazer mal! —
agradeceu Horonamɨ.
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a vingança de horonamɨ
No início, eles comiam cabaris crus, quando
eram saborosos, pois não eram amargos, antes de
ele os envenenar.1 Eles os comiam e eram gosto-
sos, assim, comiam cabaris gostosos como beiju.
Simplesmente os cozinhavam; cozidos, os cabaris
eram comidos no mesmo instante. Apesar de eles
D
serem assim, depois de Horonamɨ os picar com a
flechinha — ele picou todas as sementes das fru-
L
tas com o veneno — ele os tornou amargos, todos.
Foi o que ele fez, e mostrou para eles. Ninguém
mostrou a ele os frutos amargos, foi ele que os tor-
N
nou amargos, picando-os com veneno. Quando
ele terminou de picar todas as frutas, ele avisou:
P
— Isto que vocês comem são cabaris — disse Ho-
ronamɨ. — São cabaris, e eram bons, mas vocês não
IA
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o surgimento da noite
cendente dele. Depois de fazer isso, estragar os
alimentos com o veneno, a seta com veneno es-
tragou a cutia, grudou ao rabo da cutia, e está lá
ainda. O rabo das cutias se tornou a seta da zara-
batana de Horonamɨ, foi o que ele fez, e a cutia
sofreu muito. Horonamɨ fez isso com todos os ali-
D
mentos, aqueles que eram gostosos, as frutas que
eram gostosas.
L
— Não sobrou nenhum!
De fato, nenhum sobrou mesmo, por isso ele
disse assim. Ele os picou com um veneno muito
N
amargo. Quando ele terminou, ele foi se acabar
também: Kuku o comeu. Assim que foi. Como
P
Horonamɨ não ficava quieto, ele acabou numa
situação difícil.
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Como morreu o monstro kuku
D
acabou morto pelo monstro Kuku. Sua mu-
lher estava no final da gravidez e, quando ela sen-
L
tiu as primeiras dores do parto, o monstro matou
o pai. Quem esfregou a barriga para a criança nas-
N
cer rapidamente foi Yoahiwë ou Yoawë, o irmão
mais velho de Horonamɨ.
P
A partir do momento que o tuxaua Horonamɨ
sumiu, Yoahiwë soprou a montanha, que era a
IA
61
o surgimento da noite
preparava a zarabatana e escolhia as pedras. Fa-
zendo isso ele nos ensinou a matar. Ele conseguiu
vingar Horonamɨ.
A criança o fazia se lembrar do irmão bonito
que lhe fora arrancado enquanto ele a mantinha
deitada sobre seu peito:
D
— Ũa, ũa, ũa — fazia a criança.
A criança não havia deitado com a mãe e
L
nem mamado ainda quando Yoahiwë soprou for-
temente sua boca. Perto, havia um cipó pendu-
rado, um cipó bem duro, que ele torou; amontoou
N
e amarrou muitas pedras, ele escolheu uma pedra
bem grande e volumosa, colocou-a na zarabatana
P
e fez a criança soprar. Apesar de a criança ser pe-
quena, saiu um sopro forte.
IA
— Hɨhɨ!
Ela ficava de pé vacilante, como os filhotes de
jacamim.
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como morreu o monstro kuku
— Kuxu, kuxu, kuxu! Fique firme, fique firme!
— O tio apoiava a criança contra seu peito.
— Tente! Tente!
Apesar de ser recém-nascida, paha! Ela não
soprava devagar.
Ele segurava a criança na cintura, apoiando-a
D
contra seu peito. Ela fazia as pedras se soltarem
com um som forte, parecido com o som dos cono-
L
ris quando abrem. O cipó-de-apuí representava
a imagem do monstro Kuku que ele iria mesmo
matar. N
Tëı̃ɨɨɨɨ! O cipó se destruiu em pedaços.
— Vamos! Outro, outro, outro, só mais um!
P
Ela soprou novamente. Paha! Ouviu-se o som.
O meio do cipó explodiu em pedaços.
IA
63
o surgimento da noite
Apesar de a montanha ser dura, ela resistiu?
Não! A criança fez explodir um pedaço da serra,
pois as pedras eram duras.
Paha! A criança fez cair a serra no chão em um
monte de pedaços. Os pedaços de pedra zoavam.
Tuuuuu! Ela fez zoar os pedaços de pedra.
D
Enquanto isso, o monstro Kuku chorava de medo.
Ele se lamentava, enquanto eles se aproximavam.
L
Ele chorava muito:
— Ɨ̃ɨɨɨ! O que vai ser de mim? — ele gemia,
assustado. N
Os últimos pedaços da montanha ficaram pen-
durados lá. O último pedaço caiu com o monstro
P
e o destruiu:
— Ku! Ku! Ku! Ku! — fez o monstro.
IA
64
como morreu o monstro kuku
tipo de jangada e, enquanto fugia, transformou-se
em espírito. Seus dois irmãos Yoahiwë e Omawë
correram e seguiram pelo rio, zangados.
— Aë, aë, aë, aë, aë, aë! — dizia ele sem parar,
de raiva pela morte do seu sobrinho.
Sim. Assim fizeram.
D
L
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P
N
L
D
Omawë
D
xiwëteri. Omawë e Yoasiwë moravam com
os Hoaxiwëteri. O tuxaua Hoaxi, Caiarara, convi-
L
via com eles, por isso se chamavam Hoaxiwëteri.
Nesse mesmo lugar, junto com os Hoaxiwëteri,
N
moravam Omawë, que era o irmão mais novo, e
Yoasiwë, o mais velho. Omawë, mais novo, nas-
P
ceu depois de Yoasiwë. Então, Yoasiwë e seu ir-
mão mais novo, Omawë, moravam com os Hoa-
IA
xiwëteri.
Eles pegaram a filha do monstro Raharariwë.
Os dois viram a filha de Raharariwë. Totewë, ou-
tro nome de Yoasiwë, viu a filha de Raharariwë
U
67
o surgimento da noite
Raharariwë e suas filhas moravam no rio Ta-
nape. Era lá que ficava o xapono de Raharariwë.
Omawë as encontrou no rio Tanape.
Era a própria filha de Raharariwë que se cha-
mava Tepahariyoma, Mulher Matrinxã, aquele
peixe branco, de rosto bonito. A irmã mais nova
D
se chamava Peixe.
No início, quando não havia mulher nos ou-
L
tros xapono, quando não existia mulher entre os
homens, os dois pegaram e levaram a filha mais
velha de Raharariwë. O irmão mais novo, que era
N
lindo, conseguiu pegá-la, embora os dois fossem
anambés-azuis muito bonitos.
P
— Que passarinho bonito! — Vocês dizem
assim, pois Omawë era bonito. Foi para ele que a
IA
mulher se entregou.
O irmão mais velho de Omawë se chamava
Hëɨmɨriwë, Anambé-Azul, queria se transformar
em anambé-azul;1 o nome do irmão mais novo
U
68
omawë
rem essas duas mulheres, não perguntem o que
aconteceu!
Omawë e seu irmão mais velho, Yoasiwë, o
menos bonito, não foram ao rio, pois estavam
em um lugar diferente. Não moraram logo no
lugar onde pegaram as filhas do monstro aquático
D
Raharariwë: foi a imagem deles que se deslocou,
na forma de passarinho.
L
Omawë não andava na terra, a história de
Omawë é essa, ele não andava na terra para pe-
gar mulher, pois queria se tornar espírito. Ele
N
não criou os Yanomami. Ele era sozinho, inde-
pendente, pois queria se tornar eterno. A ima-
P
gem dele ainda chega aos Yanomami, é ele que se
chama Omawë.
IA
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N
L
D
O surgimento da maniva
D
mermos? Não havia maniva. Nossos antepassa-
dos não possuíam maniva como a que nós planta-
L
mos. Não tinham maniva, ela não existia.
No início, quando o monstro Raharariwë mo-
N
rava com suas filhas, sem outros parentes, seu xa-
pono ficava no fundo da água. Raharariwë não
P
morava em terra seca. No início, ele tinha sua
casa dentro da água.
IA
71
o surgimento da noite
— Vou plantar maniva. — A gente nem diria
isso. A partir de Raharariwë, a maniva se espa-
lhou e nós comemos farinha. A maniva se espa-
lhou como alimento. Ele possuía a maniva, aquele
cujas filhas foram pegas. Omawë a quebrou e a
pegou.
D
Quem foi traiçoeiramente chamado para den-
tro dessa casa? Quem chegou? A filha entrou
L
com ele dentro da casa de Raharariwë. Ela entrou
maliciosamente com ele dentro da água. A filha
estava lá de pé. Olha só a água! Olhe a superfí-
N
cie da água! A filha estava de pé dentro da água
escura. Ela o levou maliciosamente, para que o
P
pai o assustasse. Ele assim conseguiu chegar até
Raharariwë, mas só para passar medo.
IA
72
o surgimento da maniva
bem maduras, como o vermelho cor de sangue
das asas de papagaio em movimento. Raharariwë
morava em uma casa bonita e Omawë chegou até
lá. A filha lhe falou:
— Pai! É teu genro! Eu trouxe teu genro, eu
casei!
D
Raharariwë olhou para Omawë.
— Aquele é teu? Hı̃ɨɨ! É teu?
L
— Pai! É meu marido! Eu casei! Ele é bonito,
tu não achas?
Ele sorriu. Lá, aquelas raízes saídas da terra
N
pareciam enormes.
Onde o sogro estava, havia um pau grande,
P
enfeitado e bonito, no chão, parecido com a pele
das costas de um poraquê. A filha sentou com
IA
Omawë.
— Vai te sentar naquele pau com teu marido,
filha querida!
Ele o fez sentar em cima do pau iwaiwakana
U
73
o surgimento da noite
— Não é madeira! É maniva! São manivas! —
disse a mulher.
Nós chamaremos de maniva, foi ela que ensi-
nou o nome maniva.
— Como se faz aquilo?
— Ele quebra para fazer beiju, ele faz beiju e
D
come — respondeu ela.
— Hoaa! — exclamou.
L
Ele tirou algumas mudas de maniva que esta-
vam juntas:
— Kero! Eu plantarei minhas manivas! —
N
Omawë disse reservadamente à esposa.
Raharariwë quase comia o genro, se a filha não
P
o protegesse, guardando-o sentado no seu colo.
— Tu me pegas e me fazes sentar no teu colo.
IA
74
o surgimento da maniva
— Pai! Não faça isso! É meu, eu casei! Não
faça isso, por favor! Se você fizer isso, eu não
ficarei aqui! Vamos voltar, nós dois!
Ela mostrou a frente da casa. Raharariwë
quase comeu Omawë, por isso ela fugiu com ele.
Ela também fugiu, pois Raharariwë quase comeu
D
o marido.
— Tu, tu, tu, tu, tu, tu! — ele já estava dizendo.1
L
Aquele que levou as manivas de Raharariwë
boiou com elas e as deu aos seus parentes.
Nós comemos o que ele deixou para acompa-
N
nhar nossa comida, para não sentir mais fome, ele
pegou para nós comermos.
P
Ele levou as mudas de maniva, cujos brotos
ficaram chorando. Já havia realmente fugido.
IA
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L
D
O dilúvio
O ressurgimento dos yanomami e
o aparecimento dos napë
D
L
D epois da morte do irmão e do sobrinho, Yo-
ahiwë e Omawë fugiram rio abaixo. Havia
N
somente um rio, o rio Tanape. Eles encontraram,
no percurso, outro sobrinho, filho de Manakaya-
P
riyoma, cuja mãe se considerava a irmã dos dois,
por ter o mesmo nome que a irmã deles.
Como se deu esse encontro? Enquanto os
IA
D
Foi lá que os dois encontraram o filho de Ma-
nakarariyoma. Por causa desse bebê encontraram
L
o grande rio fechado. Os humanos foram extermi-
nados por causa daquele bebê sedento que surgiu
do nada. N
Como? Omawë não abriu sem razão essa água
na qual se afogaram os Yanomami; foi por causa
P
do sobrinho cujo fôlego se apagava. Ele morria
de sede.
IA
recuando.
Os olhos do bebê estavam virando e Omawë
dava a espuma de sua baba para ele beber. O
bebê chupava, mas chupava em vão. Sua boca se
78
o dilúvio
enganava com a urina do tio. Ao final, o irmão
mais novo refletiu e decidiu conseguir água de
qualquer forma.
Ele previu que a água estava guardada em-
baixo de uma pedra. Tuku, tuku, tuku! A água
batendo debaixo da pedra fazia esse som.
D
A pedra era muito dura, estava bem fincada;
mesmo assim ele conseguiu tirar um pouco, não
L
de vez. Ele suspendeu a pedra só um pouco,
inclinando-a para o lado, não por baixo. Assim
que ele a empurrou um pouco, a água jorrou. O
N
bebê, que já estava morto, ressuscitou por causa
dessa água.
P
Tuuuuuuuu! Fez a água.
A água logo jorrou longe. O jorro caiu lá, bem
IA
79
o surgimento da noite
Yoahiwë se localizavam, eles fizeram outro jirau
bem forte para moquear os mortos e fazer apare-
cer os napë.
Feito isso, a água já trazia outras pessoas so-
frendo, os afogados. O rio ficava bem estreito no
meio da terra dos napë. Pegaram os mortos lá
D
bem perto da terra dos napë, lá em baixo. Chega-
vam pelas águas os quase mortos, onde estavam
L
os dois.
O que fizeram Omawë e seu irmão? Eles usa-
ram aquelas redes que haviam tecido. O irmão
N
mais velho, que era mais esclarecido, disse:
— Irmão menor! Faça logo, os meus já estão
P
passando! Meu irmão, os primeiros já estão pas-
sando!
IA
80
o dilúvio
Xãaaai! O fogo crescia com a gordura derre-
tida de gente. O irmão mais novo cortou as fo-
lhas novas de sororoca e as deixava no chão. Em
cima dessas folhas, juntava os corpos cremados,
enquanto o outro recuperava os corpos no mesmo
instante.
D
O sobrinho, que rapidamente cresceu, ajudava
seu tio.
L
Eles os jogavam em cima das folhas, os cor-
pos cremados. O irmão mais velho recuperava os
corpos e os raspava. N
Ele raspava os corpos cremados com um tipo
de colher grande. Xoe! Xoe! Xoe! A pele dos
P
cremados produzia esse som.
Eles jogavam os corpos cremados em cima das
IA
81
o surgimento da noite
— Todos, todos, todos, todos! Tãrai! De pé! —
disse Omawë.
Primeiro ressurgiram os Yanomami e depois
apareceram os napë.
Somente os Yanomami Horonamɨ se ergueram
com as flechas na mão.
D
— Kia! Kia! Kia! Ha, ha, haaaa! — diziam eles.
— Tãrai, ha asi ı̃ɨɨ!
L
Eram gordos, pintados e enfeitados, com as
penas de cauda de arara, altivos.
— Ha, ha, ha, ha! N
O irmão mais velho riu sem parar dos que es-
tavam se transformando. Olha aqui! As mulhe-
P
res púberes se erguiam elegantes, apesar de terem
morrido afogadas, elas reapareceram como mo-
IA
ças novas.
Depois de ter amontoado a metade dos corpos
cremados, eles os jogaram na água. Os mortos
não caíram na água em silêncio.
U
se tornaram piranhas.
— Koooorooouuu! Kuxu, kuxu, kuxu! — fa-
ziam.
82
o dilúvio
Os demais se transformaram em matrinxã.
Apareceu um monte de peixes flutuando. A su-
perfície da água ficou completamente coberta e
sumia de tanto peixe, a água não se mexia mais
de tanto peixe, de cuja carne gostamos tanto.
Quando dizemos:
D
— É um pacu! — na verdade, comemos a carne
de gente que se tornou peixe, comemos a carne
L
preta de Yanomami.
Da nossa carne de Yanomami surgiram os
napë. Os napë surgiram a partir dos Yanomami
N
que se transformaram. A partir dos nossos cor-
pos cremados, com a transformação, os napë sur-
P
giram.
Antes mesmo da existência dos napë, já havia
IA
rasparam os outros.
Os ressuscitados ficavam de pé, elegantes, e
atiravam flechas para provar que estavam sãos e
salvos.
83
o surgimento da noite
— Irmão menor, aqueles que eu queria fazer
surgir, eu os deixei à deriva na água! Veja o resul-
tado! — disse o irmão maior, porque havia ressus-
citado todos eles.
Omawë se transformou e, onde se transfor-
mou, a imagem dele se tornou napë. Ele criou os
D
napë. Lá a sua imagem se misturou e ainda está
lá, eles não a veem.
L
— Eu sou aquele que ressuscitou vocês! — ele
diz isso? Omawë não diz isso. Ele existe ainda,
ainda está vivo em algum lugar. — Sou aquele que
N
ressuscitou vocês! — Omawë não nos diz isso.
Não fica perto onde eles estão morando. Os
P
dois que realizaram essa ressurreição são os que
deram origem aos napë. Apesar de os dois ficarem
IA
84
o dilúvio
Os dois que fizeram a transformação moram
lá, além dessa parte do mundo, rio abaixo, lá onde
emboca a mãe do rio, onde entra um rio só. Eles
são eternos.
Onde você pode ir? Não há aonde ir. Lá fica
o rio, onde não há floresta, onde não há nada.
D
Daquele lado vivem os dois, que fizeram a grande
transformação.
L
Os napë se espalharam. Lá, eles se reproduzi-
ram, rio abaixo; não há mais ninguém onde res-
suscitaram. Eles se dividiram rio abaixo. Foram
N
morar em outros rios. Sim. Foi assim, nenhum
dos que viviam antes sobreviveu.
P
Quando o rio levou os Yanomami, sobrevive-
ram somente dois xaponos. Os antepassados re-
IA
tristes.
A serra Ũaũaiwë acabou afundando; restou
somente o cume da montanha. O céu parecia se
apoiar no cume das montanhas Rapai e Wãima.
85
o surgimento da noite
Não deu para o rio atingir o cume dessas monta-
nhas.
D
L
N
P
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86
O surgimento da primeira mulher
D
nome deles, os Unissexuais, vem do fato de
a mulher não ter aparecido imediatamente. Eles
L
se agruparam.
O surgimento dos nossos antepassados acon-
N
teceu a partir da perna de Japu. Ainda não havia
surgido a mulher.
P
Depois do rapto da filha de Raharariwë, segue
a história dos Unissexuais que moravam juntos,
IA
Japu.
Depois do surgimento de Japu, lá os ancestrais
G
87
o surgimento da noite
Nossos antepassados não nasceram da perna
de Japu. O surgimento dos nossos ancestrais é
outra história.
Nessa época, os antepassados dos Waika se re-
produziram a partir da perna de Japu. Nossos an-
tepassados e, consequentemente, nossas gerações
D
já nasceram de mulher e não a partir da perna de
Japu. Foram outros os antepassados dos Waika.
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Os antepassados dos Waika nasceram da vagina
da filha de Japu. A história deles é diferente.1
Japu apareceu e se misturou a eles. Aquele
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que ia ser o marido dele já morava no xapono.
Depois de a vagina aparecer, foi ele quem falou
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com o marido para fazer sexo.
A vagina apareceu, semelhante àquela das
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o surgimento da primeira mulher
Foi graças à perna de Japu, portanto, que eles se
satisfizeram.
Nossos primeiros ancestrais são oriundos da
perna de Japu. Primeiro, nasceu uma mulher, de-
pois nasceu outra. Assim se fez. Depois, outra.
Assim. Fizeram outra. Depois de nascer a pri-
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meira mulher, a partir da qual nasceram as outras,
surgiram os parentes de nossos antepassados.
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— Prohu! — logo disse o homem que nasceu
primeiro.
Chamaremos o primeiro homem que nasceu
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assim de nosso antepassado. Eles se multiplica-
ram a partir da mulher que nasceu da perna de
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Japu, a partir da filha mais velha de Japu. Conti-
nuaram a se multiplicar. Nasceram cinco mulhe-
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o surgimento da noite
Depois de nascerem, eles ocuparam toda a flo-
resta. Não são outros que nos fizeram! Não foi
Omawë que nos criou! Omawë mora em cima,
apesar de ter morado primeiramente nesta flo-
resta. Ele fugiu da condição de Yanomami. Ele
voou, ele foi morar lá em cima, assim eram os dois
D
irmãos no início. Foi assim mesmo.
Nossos ancestrais saíram da perna de Japu; ele
L
não morou mais ali, foi a um lugar diferente. Japu
se chamará Napërari, quando se tornar espírito.
Seu marido também. N
Apesar de ter um pênis igual a nosso, ele fa-
zia sexo com outro homem, apesar de ter o pê-
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nis amarrado, ele engravidou a perna de Japu, ge-
rando as mulheres, na perna dele mesmo. A va-
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Paratexto
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Como foi feito este livro
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sobre o autor
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Os Yanomami habitam uma grande extensão da
floresta amazônica, que cobre parte dos estados
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de Roraima e do Amazonas, e também uma parte
da Venezuela. Sua população está estimada em 35
mil pessoas, que falam quatro línguas diferentes,
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o surgimento da noite
Além dessas quatro línguas, no Brasil há um
total de 154 línguas indígenas faladas por todo o
território brasileiro, mas antes do Brasil colônia,
tínhamos entre 600 e 1000 línguas. O trabalho
de registro feito pelos pesquisadores em conjunto
com as comunidades indígenas é de extrema im-
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portância para conseguir conservar a história des-
ses idiomas. Não somente para consultas posteri-
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ores, mas para a organização da própria comuni-
dade.
Em 2008, as comunidades Ajuricaba, do rio
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Demini, Komixipɨwei, do rio Jutaí, e Cachoeira
Aracá, do rio Aracá — todas situadas no municí-
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pio de Barcelos, estado do Amazonas — decidi-
ram gravar e transcrever todas as histórias conta-
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nonde Porã.
No mês de junho de 2009, o pajé Moraes, da
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como foi feito este livro
viagens entre Ajuricaba e Barcelos durante a rea-
lização do projeto. Depois, no mês de julho, Tan-
credo e outro professor, Simão, me ajudaram a fa-
zer a transcrição das gravações, e Tancredo e Car-
los, professores respectivamente de Ajuricaba e
Komixipɨwei, me ajudaram a fazer uma primeira
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tradução para a língua portuguesa.
Fomos melhorando essa tradução com a ajuda
L
de muita gente: Otávio Ironasiteri, que é professor
yanomami na comunidade Bicho-Açu, no rio Ma-
rauiá, o linguista Henri Ramirez, e minha amiga
N
Ieda Akselrude de Seixas. Esse trabalho deu ori-
gem ao livro Nohi patama Parahiteri pë rë kuo-
P
nowei të ã — História mitológica do grupo Parahi-
teri, editado em 2010 para circulação nas aldeias
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o surgimento da noite
sobre a obra
Este livro reúne histórias contadas por pajés
yanomami do rio Demini, sobre os tempos antigos,
quando seres que hoje são animais e espíritos
eram gente como os Yanomami de hoje. Estas
histórias contam como o mundo veio a ser como
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ele é agora.
Trata-se de um saber sobre a origem do mundo
L
e dos conhecimentos dos Yanomami que as pes-
soas aprendem e amadurecem ao longo da vida,
N
por isto este é um livro para adultos. As crianças
yanomami também conhecem estas histórias, mas
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sugerimos que os pais das crianças de outros lu-
gares as leiam antes de compartilhá-las com seus
filhos.
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como foi feito este livro
Horonamɨ é um grande pajé que surgiu dele
mesmo, assim como é relatado na narrativa. Sur-
giu junto com as florestas e ensinou aos Yanoma-
mis como morar nelas. Além de compartilhar os
conhecimentos com os Yanomamis, ele também
compartilhou suas histórias com os estrangeiros.
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a lógica cristã e o mito de criação indígena
L
Assim que se iniciou a colonização do Brasil, os
portugueses acreditavam que tudo aquilo que não
N
se pareciam com eles poderia ser denominado de
selvagem. A Coroa Portuguesa sempre foi muito
P
conhecida por ser extremamente católica, logo a
sua história é repleta de perseguições e intolerân-
cia em relação as novas religiões.
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o surgimento da noite
tir de Adão e Eva. Tudo o que existe no mundo foi
criado exclusivamente por um único ser. Quando
acompanhamos as narrativas dos Yanomamis, não
temos a figura de um Grande Criador e único, mas
temos a criação dos elementos e o surgimento dos
fenômenos físicos, como a noite ou o dia, a partir
D
de aventuras vividas em conjunto pela comuni-
dade.
L
A ideia de coletivo e a concepção do surgi-
mento de elementos a partir de ações ou reações é
a linha de raciocínio das comunidades. Não existe
N
uma figura única que deva ser respeitada, mas
existe um conjunto de ações da natureza e todos
P
os seus elementos e quando uma comunidade tra-
balha em conjunto, a natureza poderá fornecer
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como foi feito este livro
É importante conhecermos e valorizarmos os
relatos e as culturas que já existiam no Brasil an-
tes da colonização. Os registros fonéticos e fono-
lógicos realizados pelos pesquisadores são como
um tesouro que devem ser compartilhados e bem
cuidados. Ler as narrativas Yanomamis é poder se
D
conectar com o Brasil anterior aquele que apren-
demos nas aulas de história.
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sobre o gênero
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Essas narrativas podem ser classificas como
mitologias indígenas pois relacionam-se ao con-
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texto específico de produção de mitologias e cren-
ças dos povos originários. Como esses povos pri-
meiros eram ágrafos, isto é não tinham um sis-
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o surgimento da noite
Entre o povo Guarani, por exemplo, são co-
muns as rodas para fumar petygua, cachimbo
de tabaco, para a contação de histórias. Já os
Hupd’ah, povo do Alto Rio Negro, narram suas
histórias em rodas que fumam tabaco e mascam
coca. Entre os Yanomami, a prática é a ingestão
D
de yãkoana, pó feito com cascas de árvores secas
e pulverizadas, que iniciam o indígena no conhe-
L
cimento xamânico de seu povo.
Como relata o líder indígena Davi Kopenawa
em A queda do céu, o consumo de yãkoana está in-
N
timamente relacionado à transmissão das narrati-
vas tradicionais yanomami, pois permite ao xamã
P
ouvir as palavras de Omama, demiurgo da cosmo-
gonia yanomami, possibilitando-lhe a transmis-
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como foi feito este livro
mórdios da própria arte literária”. De linguagem
concisa, por vezes poética, o conto é unívoco e uni-
valente, sob a perspectiva do ângulo dramático:
Etimologicamente preso à linguagem teatral, “drama” signi-
ficava “ação”. E com o tempo passou a designar toda peça
destinada à representação. Na época romântica, dado o prin-
cípio da fusão de gêneros, entendia-se por drama o misto
D
de tragédia e comédia. Transferido para a prosa de ficção, o
termo “drama” entrou a significar “conflito”, “atrito”. Nesse
L
caso, “ação” “conflito” se tonaram equivalentes, uma vez
que toda ação pressupõe conflito, e este, promove a ação,
ou por meio dela se manifesta; em suma, ambos se impli-
N
cam mutuamente.
O conto é, pois, uma narrativa unívoca, univalente:
P
constitui uma unidade dramática, uma célula dramática,
visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma
só ação. Caracteriza-se, assim, por conter unidade de ação,
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o surgimento da noite
enredo. Ao conto, ainda seguindo Moisés, abor-
recem as divagações e os excessos, pois há uma
concentração de efeitos e pormenores essenciais,
em sua brevidade, para o bom funcionamento do
conto. Cada construção, cada palavra nesse gê-
nero tem sua razão de existir, pois integra a eco-
D
nomia global da narrativa.
São contos, no entanto, com uma nítida di-
L
mensão mítica, pois têm seus componentes essen-
ciais na esfera do sagrado, buscando equacionar
grandes questões espirituais e materiais dessa so-
N
ciedade. Nota-se que, tradicionalmente, não exis-
tia uma diferença entre a narrativa histórica e a
P
mítica, pois através do próprio mito se explicava
a criação do mundo, dos seres viventes e da socie-
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