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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA – ICHF


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA –
PPGA

Mulheres em movimento:
A Bicicleta pela perspectiva de gênero na cidade de Niterói

Niterói
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA – ICHF
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA –
PPGA

Mulheres em movimento:
A Bicicleta pela perspectiva de gênero na cidade de Niterói

VIVIAN DA SILVA GARELLI MACHADO


Dissertação apresentada ao Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal
Fluminense, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre, pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Orientador:
Prof. Dr. Luiz Fernando Rojo

Niterói
2019

2
BANCA EXAMINADORA

________________________________________________
Prof. Doutor Luiz Fernando Rojo
Orientador – PPGA – UFF

________________________________________________
Profª. Doutora Gisele Fonseca Chagas
Examinadora Interna – PPGA – UFF

________________________________________________
Profª. Doutora Nina Pinheiro Bittar
Examinadora Externa – UFRJ

3
AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar às minhas interlocutoras pela confiança e boa vontade de


me concederem as entrevistas e me inspirarem com suas histórias. Em paralelo agradeço
a todes que contribuíram com a produção do debate da mobilidade, Niterói de Bicicleta,
Nittrans, Bike Anjo, bike anjas e UCB.

Agradeço à minha família, de sangue e de sorte pelo apoio emocional e incentivo para
perseverar na produção acadêmica mesmo diante dos desafios políticos e contextuais,
em especial agradeço às mulheres da minha vida, minha mãe Helena, minha avó Iva e
minha madrinha Mônica que são exemplo e inspiração para mim, ao meu companheiro
de vida Rafael por estar a mais uma etapa ao meu lado e aos amados colegas de turma
Nathalia e Issac, que me provam que pode existir academia com afeto.

Agradeço imensamente ao meu orientador Luiz Fernando Rojo pela acolhida, por ter me
adotado em meio a tempos difíceis, pela oportunidade de estágio docência com turmas
maravilhosas na graduação em Antropologia, pelo também afeto, aprendizado e pelo
engajamento pela educação sempre.

E por fim agradeço a todos que ocupam as ruas e também se manifestam contra o
sucateamento da educação brasileira e acreditam que a educação para todos é o caminho
para construir uma sociedade melhor.

4
RESUMO

Os padrões de mobilidade urbana podem ser analisados sobre diferentes perspectivas


interseccionais como raça, classe e também gênero. Segundo a pesquisa 'O Acesso de
Mulheres e Crianças à Cidade', a mobilidade feminina é marcada pelo uso de transporte
público, mobilidade a pé e também pela bicicleta, construindo padrões de deslocamento
através do marcador de gênero e o conceito da própria vivência da mobilidade como um
lugar. O conceito de direito à mobilidade é também impactado pelo debate de direito à
cidade, pois seu acesso é um espaço de vivência, sociabilidade e resistência. A partir do
primeiro Bicicletário Público da cidade de Niterói (RJ), realizo uma etnografia que
busca conhecer, para além dos números quantitativos, o impacto do debate de corpo e
gênero no construções de identidade e vivências de mulheres na cidade. Para além dos
movimentos sociais, a bicicleta é também um objeto de alcance de diferentes classes e
em diversas regiões da cidade, o que veicula diferentes técnicas corporais e até atingem
o debate do planejamento urbano. Agência e empoderamento estão em debate com os
conceitos de violências urbanas e no trânsito, que são interseccionadas ao debate de
gênero e raça e é apenas a partir da construção dessas experiências pelas próprias
interlocutoras, que a noção de corpo e suas performances de gênero também seguem em
movimento.

PALAVRAS-CHAVE: Mobilidade Urbana; Bicicleta; Corpo; Gênero; Identidade

5
ABSTRACT

Urban mobility patterns can be analyzed on different intersectional perspectives such as


race, class, and also gender. According to research „The Women and Children Access to
the City‟, female mobility is marked by the use of public transportation, mobility on
foot and also by bicycle, building patterns of displacement through the gender marker
and the concept of the experience it self mobility as a place. The concept of the right to
mobility is also impacted by the debate on the right to the city, because its accessis a
space of experience, sociability and resistance. From the first Public Bicicletário of the
city of Niterói (RJ), I made an ethnography that seeks to know, in addition to the
quantitative numbers, the impact of the body and gender debate on the identity
constructions and experiences of women in the city. In addition to social movements,
bicycle is also an object of reaching different classes and in different regions of the city,
which conveys different body techniques and even reaches the urban planning debate.
Agency and empowerment are in debate with the concepts of urban violence and traffic,
which are intersected with the gender and race debate, and it is only from the
construction of these experiences by the interlocutors themselves that the notion of body
and their genre performances also continue to move.

KEYWORDS: Urban Mobility; Bicycle; Body; Genre; Identity

6
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................ 08
1. CAPÍTULO 1MOBILIDADE PELA BICICLETA.................................................. 19
1.1. ALCANÇANDO OS PEDAIS.......................................................................... 20
1.2. APRENDENDO A PEDALAR.........................................................................23
1.3. CAMPO COMO MOBILIDADE..................................................................... 27
1.4. CAMINHO A PEDALAR.................................................................................31

2. CAPÍTULO 2 BICICLETA E A CIDADE............................................................. 34


2.1 NITERÓI EM CAMPO...................................................................................... 35
2.2 O BICICLETÁRIO............................................................................................ 44
2.3 PERCEPÇÕES DA CIDADE............................................................................ 50

3. CAP 3 GÊNERO E MOBILIDADE....................................................................... 53


3.1 CORPO E MOBILIDADE ................................................................................ 57
3.2A BICICLETA E FEMINISMO......................................................................... 66
3.3 VIOLÊCIA DE GÊNERO................................................................................. 70
3.4 GENERO EM MOVIMENTO.......................................................................... 76

4. CAP 4 IDENTIDADE E BICICLETA................................................................... 84


4.1 DESCOBRINDO NOVAS FORMAS DE PEDALAR..................................... 85
4.2 IDENTIDADE E CIDADE................................................................................ 87
4.3 IDENTIDADE E BICICLETA.......................................................................... 90

5. CONCLUSÕES: IDENTIDADE E GENERO ATRAVÉS DA


BICICLETA............................................................................................................. 94

6. BIBLIOGRAFIA...................................................................................................... 98

7. ANEXO 1................................................................................................................102

8. ANEXO 2..............................................................................................................103

7
INTRODUÇÃO

Após muitos anos sem nem tocar numa bicicleta, estava eu de pé paralisada
com a proposta do dono do cicle1 de que podia testá-la ali mesmo, perto da minha
casa na cidade de Niterói, na frente da oficina em um pequeno pedaço de calçada que
dava com meio fio quebradiço ao asfalto da rua, quase na curva em que carros
passavam próximos e em velocidade. Avisei que não andava faziam anos, e ele me
respondeu algo semelhante ao ditado popular, que por vezes já havia ouvido: “é que
nem andar de bicicleta, você nunca esquece”. Bom, subi no camelo2, ainda um pouco
desajeitada pela falta de prática, e dado o impulso imediatamente voltei a pedalar,
como se nunca tivesse parado. Durante minha empolgação me esqueci de um pouco
dos carros que circulavam no entorno e nem cheguei a pensar em preocupações que
teria à posteriori, como local onde iria guardá-la ou em comprar trancas e cadeados
para segurança, apenas retornei e fechei negócio.
Nos dias seguintes comecei de fato a conhecer minha bicicleta quando saí
com ela para passear, e segui na prática descobrindo o caminho a seguir, com a
adrenalina de fazer algo novo em paralelo a enfrentar obstáculos e percepções novas
para mim. O percurso era ainda estranho, pois mesmo conhecendo a pé toda a região
do meu bairro, realiza-lo de bicicleta me demandava uma rapidez em pensar nos
fatores que influenciavam meu deslocamento diferente da mobilidade a pé ou de
carro, tentando encaixa a bicicleta ora na calçada, ora no asfalto, ao lado do carro ou
às vezes no corredor enquanto buscava escapar de buracos e driblar retrovisores,
estando também atenta a pedestres que cruzavam a via quando o transito encontrava-
se parado. Como não tinha carteira de motorista, me sentia condutora pela primeira
vez na rua e como estudante de graduação em ciências sociais na época, não deixei
de pensar no estranhamento que sentia em (re)conhecer minha cidade natal a partir de
um deslocamento diferente, me sentindo mais próxima dos barulhos, como buzinas e
motores, de sensações como calor dos escapamentos e o cheiro da gasolina
queimando, e até da percepção do chão no qual me deslocava, com buracos que

1
Cicle é o termo utilizado na cidade de Niterói para se referir a uma loja de bicicletas especializada em
reparos, mas que também chamada de bicicletaria em outras cidades do Brasil
2
Apelido carinhoso e popular dado à bicicleta

8
testavam meu equilíbrio, por menores e insignificantes que fossem, já que sobre duas
rodas percebia melhor os desníveis no chão.
Meu objetivo naquela primeira saída era conhecer um grupo que realizava
passeios mensais de bicicleta na cidade de Niterói, o Pedal Sonoro3, que eu tinha
ouvido falar ser como um flashmob4que utilizava música nas próprias bicicletas para
passear, porém descobri nas minhas primeiras edições que se tratava de um grupo
regular, que uma proposta não apenas lúdica, mas envolvendo uma reflexão sobre
uma visibilidade para uma causa política pela bicicleta5. Segundo o próprio coletivo
em descrição disponível no site:

“Através de suas ações, o Pedal Sonoro ocupa, discute e


resignifica o espaço urbano, promove o uso da bicicleta como meio de
transporte e alternativa viável para a melhoria da mobilidade urbana e
incentiva a implementação de políticas públicas e atitudes que
contribuam na construção de cidades para pessoas”.(Pedal Sonoro)

Essa descrição era ainda inexistente no começo do coletivo, que caminhava


em seus primeiros meses de existência, utilizando a rede social facebook como meio
de divulgação, e principalmente utilizando imagens dos passeios, que foi a minha
fonte de pesquisa para participar pela primeira vez. Para chegar ao local do encontro,
chamado de cicloponto6, eu me perdi algumas vezes entre os caminhos para chegar,
pois era surpreendida em caminhos que não tinha espaço para circular na rua ao lado
do carro e/ou que a calçada era estreita demais. Depois de dar algumas voltas
reconheci o local do cicloponto a partir de outras características, um espaço bem
conhecido no calçadão da praia de Icaraí, muito utilizado por demais atividades de

3
“O Pedal Sonoro é um coletivo de ciclistas urbanos, sem fins lucrativos, integrado por voluntario (a)s,
que tem como principais objetivos: de promover a utilização da bicicleta como meio de
transporte;colaborar para a sustentabilidade e mobilidade urbana das cidades; e conscientizar os ciclistas a
respeito de seus direitos e deveres. (...)Nossa principal ação é a organização de bicicletadas musicais
temáticas, periódicas, que ocorrem, no mínimo, duas vezes ao mês.” (texto próprio) retirado do site
<https://pedalsonoro.com.br/quemsomos/>
4
Termo utilizado para se referir a uma atividade formada por um grupo de ao menos 10 pessoas que se
reúnem repentinamente em um ambiente público para realizam uma performance atípica por um certo
período de tempo, e que com sua conclusão é rapidamente se dispersada como se nada tivesse acontecido.
5
Frase retirada de discurso durante a concentração de uma das atividades do Pedal sonoro em abril de
2017
6
Local onde se reúnem grupos de bicicleta na cidade de Niterói, localizado no bairro de Icaraí, no
calçadão da praia, e é reconhecido por uma roda de bicicleta presa no alto do poste.

9
grupos de dança e ginástica, como salsa, capoeira, yoga e ginástica para idosos,
porém em horários alternativos. Eu mesma já estive diversas vezes nesse mesmo
local, mas quando ocupado por muitas bicicletas com luzes piscando ao anoitecer, se
transformou em um local totalmente diferente. Estranhei o familiar (VELHO, 1978) e
essa sensação inicial me marcou profundamente, pois senti como se redescobrisse
minha própria cidade, e não apenas nos pontos de saída e chegada do trajeto, mas
incluindo o deslocamento e o movimento como partes do processo.

Figura 1: Imagem do Cicloponto durante a concentração do Pedal Sonoro. Imagem disponível no


facebook do coletivo em<https://:www.facebook.com/pedasonoro>.

Durante tal deslocamento, também me senti muito exposta, por não portar
equipamentos de segurança e por me sentir minha pele tão próxima dos veículos. A
relação entre o corpo o movimento é um fator que me deixou uma sementinha para
reflexão futura sobre como o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do ser
humano (MAUSS, 1950).Senti-me exposta, principalmente ao lado de carros que
tinham insulfilm7, nos quais não era possível visualizar quem estava lá dentro e se essa
pessoa podia me ver também. Ao mesmo tempo, me sentia vista por pedestres e pessoas
dentro dos ônibus, e recebia muitas buzinas em grande parte de motociclistas por estar
ocupando um espaço na rua no qual eles utilizam para trafegar por dentre os carros. Em
2015 eu não via muitos outros ciclistas no trânsito na cidade de Niterói, e antes de
começar a pedalar nem enxergava muito a presença de bicicletas em geral. Não tenho

7
Adesivo plástico utilizado para que escurece os vidros e é utilizado em carros para diminuir a
visibilidade da parte interior.

10
ideia se de fato minha presença na bicicleta chamava tanta atenção quanto eu sentia
chamar, mas por vezes nos anos seguintes, já fui parada por outras pessoas que me
diziam ver-me passando de bicicleta em meio a transito, ou por me conhecerem, ou pela
minha própria bicicleta decorada com adesivos e flores, ou ainda por pedalar por vezes
de salto alto. Essa desenvoltura conquistei nos meses e anos seguintes, a partir do
contato com a rede de ciclistas ativistas da cidade.
Por anos, frequentei o Pedal Sonoro e conversava, sobretudo sobre os caminhos
e desafios de usar a bicicleta na mobilidade urbana do dia a dia, aprendendo, sobretudo
sobre o discurso de direito à rua e da atitude política de ocupar a rua (e não a calçada)
como forma de defender o reconhecimento da bicicleta como veículo na prática do
transito diário. Muitos ciclistas nos encontros ativistas compartilharam os mesmos
desafios de locomoção nas ruas por conta de xingamentos de motoristas impacientes ou
insatisfeitos em disputar o espaço com ciclistas, mas foi só quando conversei com
outras mulheres que ouvi relatos semelhantes e por vezes piores sobre assédios sofridos
durante uma pedalada e ainda o impacto da visibilidade do corpo feminino em
específico em meio ao trânsito, diálogo que engloba o debate de violência urbana e
contra o ciclista, mas que é interseccionável ao debate da violência de gênero na relação
entre corpo, cidade e gênero. Essa relação é pouco explorada no cicloativismo8 em
geral, mas é em decorrência da sua necessidade que surgiram diversos movimentos, não
somente na cidade de Niterói, do cicloativismo e feminismo, produzindo movimentos
sociais de mulheres ciclistas, fundando entre outros movimentos, o festival nacional
para ciclistas feministas, o 100Gurias100Medo9 e o ativismo negro do movimento
PretaVemdeBike10 tocado por mulheres negras que entre outras atividades ensinam
outras mulheres negras a pedalar, o Movimento La Frida Bike11.
Essa foi a descrição do meu reencontro com a bicicleta na vida adulta, que foi
um passo fundamental na inclusão desse veículo no meu deslocamento cotidiano, e que
aos poucos foi gerando reflexões que culminaram no meu conhecimento e envolvimento

8
Definição do encontro entre o ativismo e o movimento de ciclistas, gerando os cicloativistas, termo
autointitulado e que é aplicado em contextos de forma diferente como abordarei no quarto capítulo.
9
Evento feminista construído por coletivos de mulheres ciclistas que é “voltado para mostrar que as
ciclistas do Brasil estão unidas em prol de um país com mais qualidade na mobilidade e respeito para as
mulheres (cis e não cis)”. Texto disponível em https://www.facebook.com/pg/100gurias100medo/about/
10
“O projeto‟ Preta,vem de bike!‟ é uma ação que une promoção da bicicleta com inclusão social,
igualdade étnica e igualdade de gênero, visa levar a mobilidade urbana, além da orla, às periferias e
comunidades quilombolas”. Disponível em: https://www.lafridabike.com/
11
O Movimenta La Frida é uma organização formada por cicloativistas negras que tem como objetivo
incluir e fortalecer a mobilidade nos planos de transporte das mulheres sendo também uma ferramenta
para emancipação da mulher na sociedade. Disponível em: https://www.lafridabike.com/

11
com a temática bicicleta, a princípio através dos movimentos sociais e políticas públicas
em audiências públicas e plenárias sobre o tema, mas que despertou ao longo dos anos a
minha vontade de realizar uma pesquisa sobre o assunto de modo a compreender sua
inserção na temática mais ampla da mobilidade urbana. Em 2016 realizei minha
monografia de graduação (Garelli, 2017) sobre o encontro de agendas dos movimentos
sociais pela bicicleta como ativismo feminista da marcha das vadias nas cidades do Rio
de Janeiro e Niterói, porém este foi apenas um recorte dentro da grande possibilidade de
investigação sobre a relação entre mobilidade urbana, bicicleta e, sobretudo, do seu
alcance com o debate de gênero. A bicicleta como veículo de mobilidade urbana se
enquadra dentro do debate de mobilidade urbana, direito à cidade e acesso a ela no qual
nem todos os atores estão envolvidos necessariamente com o ativismo, e produzem
percepções variadas sobre a própria bicicleta e suas vivências e visões de cidade, se
entrelaçando a outros fatores como corpo, moradia, classe, raça, trabalho, e também
gênero.
Durante o ano de 2016 aconteceu no bairro de Copacabana na cidade do Rio de
Janeiro o fórum BiciRio12, evento organizado pela prefeitura do Rio de Janeiro e que
contou com a presença de órgãos públicos da cidade, agencias financiadoras e também
de uma pequena parcela da população, ligada aos movimentos sociais de cicloativistas.
A localização do encontro gerou críticas dos ativistas, pois além de acontecer em
horário comercial em dia da semana - fator que dificulta a participação social mais
ampla, já que o bairro é localizado numa das regiões consideradas privilegiadas da
cidade - ainda, o hotel onde aconteceu o evento não possuía qualquer aparato para
estacionamento de bicicletas mesmo sendo um congresso do tema, com ausência
notável de paraciclos13 e/ou bicicletarios14, e nem somente era „permitida‟15 a parada
destas no estacionamento do hotel ou até nos postes em frente à calçada.

12
Evento anual organizado pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro para tratar de assuntos relativos a
mobilidade urbana pela bicicleta.
13
Paraciclo é uma das estruturas de bicicletários existentes. O suporte físico onde a bicicleta é presa,
podendo ser instalado como parte do mobiliário urbano ou dentro de uma área de limitada, chamada de
bicicletário. São estruturas de metal que podem ter formatos distintos, mas comumente visto em formato
de U invertido instalados como peças de mobiliário urbano (em calçadas ou fachadas) e devem respeitar a
legislação urbana e não podem atrapalhar a circulação de pedestres.
14
Bicicletários são locais destinados ao estacionamento de bicicletas em uma estação ou estrutura
projetada para uso como estacionamento para bicicletas. Um bicicletário pode ser mantido pela prefeitura
ou por lojas, empresas e/ou condomínios e seguem orientações nacionais e internacionais para sua
construção.
15
Não existe lei que regularize o estacionamento de bicicletas em espaços privados na cidade do Rio,
como no estacionamento do Hotel, porém também não encontrei legislação correspondente a autoridade

12
Durante toda a manhã o evento seguia como uma série de apresentações dos
planos do governo municipal, até que iniciada a rodada de palestras, era imaginado
finalmente ser possível interagir com o que era explanado. Durante a fala de um
representante do banco financiador das bicicletas compartilhadas chamadas de
"laranjinhas" na cidade do Rio de Janeiro, foi feita uma afirmação sobre os padrões de
comportamento das “as mulheres cadastradas no sistema do BikeRio16 alcançam
números de quase 40% dos perfis pois as mulheres pedalam pouco pois pedalam apenas
por lazer”. Quando confrontado pelos ativistas no local sobre a fonte dessas
informações na sessão de perguntas, o responsável se absteve da fala, mesmo sobre
protestos da plateia. Logo após o encerramento da mesa ele deixou o evento,
impossibilitando a interação tão desejada pelos presentes.Essa afirmação me incomodou
pela ausência de informação por parte dos ativistas, prefeitura ou quaisquer dados que
pudessem levar a uma reflexão sobre o tema da mobilidade urbana pela bicicleta e
gênero.
O sistema de bicicletas do BikeRio não atende toda o município do Rio de
Janeiro, e é distribuído de forma a privilegiar regiões – com alta concentração de
estações – em detrimento de outras que não possuem o serviço. Tal questão é abordada
pela pesquisadora e geógrafa Cristiane Ribeiro (2018), que relaciona o sistema com o
perfil populacional da cidade, cruzando dados de distribuição de renda, classe e raça, a
fim de compreender a relação entre o acesso a cidade e o planejamento urbano. A
afirmação encara não apenas a questão de gênero, mas passa por cima de reflexões
quanto à interseccionalidade17 com demais variáveis de classe, renda e raça, construindo
a urgência na produção de dados sobre a mobilidade como um todo, trabalhando o
debate de modais de mobilidade18não apenas como escolhas, mas dentro do quadro
geral da população na qual os usos são determinados pelas necessidades e
oportunidades. No planejamento urbano, atualmente existem estudos, por exemplo,

privada sobre a utilização dos postes na rua. A única exceção são os prédios de consulados, no qual parte
da calçada é território do país correspondente, caso que em 2015 rendeu processo na cidade do Rio por
conta da retirada de uma bicicleta estacionada em frente ao consulado americano (Assunto discutido em
reunião do coletivo Massa Crítica Niterói em 2015).
16
Sistema de Bicicletas compartilhadas financiadas pelo banco Itaú. Disponível em:
<https://bikeitau.com.br/bikerio/
17
Conceito cunhado por KimberléCrenshaw, autora estadunidense referência do Feminismo Negro e
pioneira nos estudos interseccionais.Ela utiliza o termo interseccionalidade de forma a analisar gênero e o
movimento negro como movimentos independentes mas que possuem interações entre si. Pretendo
explorar a sua relação com a análise de gênero a partir da
18
Modais, linguagem técnica do planejamento urbano que trabalha com as modalidades de transporte,
como ônibus, metrô, bicicleta, etc.

13
sobre a falta de acesso à cidade para os moradores que dependem do sistema de BRT19
sem ter opções de integração ou acesso direto a demais regiões da cidade como praias e
áreas de cultura e lazer.
O debate da mobilidade urbana mobiliza a reflexão sobre como o acesso a
cidade se dá a partir da inclusão do fator da mobilidade, mas mais ainda, como seu uso
afeta e é afetado pela experiência do uso da população no planejamento urbano, corpo e
mobilidade. A situação do evento BiciRio me mobilizou a ampliar a investigação da
bicicleta dentro do debate da mobilidade urbana e pensar no seu uso a partir da
diversidade de pessoas que encaram trajetos distintos e tem visões de cidade construída
em experiências plurais. Os números quantitativos por si só não conta dessas
experiências, mas são capazes de mobilizar a investigação da presença de mulheres
ciclistas nas cidades, seus desafios e superações que as motivam a, de forma crescente,
utilizar a bicicleta como meio de transporte, e ainda as diferenças de gênero e demais
interseccionalidade que atravessam essa experiência de mover-se no meio urbano.
Na cidade de Niterói, há uma participação contínua da produção de dados sobre
a presença de ciclistas na cidade a fim de justificar a defesa de políticas públicas em
torno da mobilidade pela bicicleta, tanto a prefeitura quanto a sociedade civil e a
academia realizam parcerias apara a realização do método de contagens de ciclistas20,
presente tanto nas pesquisas nacionais do Perfil do Ciclista Brasileiro21, como nas
contagens de ciclistas cadastrados no Bicicletário Público de Niterói pelo programa da
prefeitura Niterói de Bicicleta. É através dessas contagens que é comprovada a
correlação entre o uso de equipamentos públicos por ciclistas e o investimento em
malha cicloviaria na cidade, pois tanto o Bicicletário como as ciclovias e ciclorrotas22
foram fruto do pedido e uso da população através dos movimentos sociais, assim como
19
Transporte Rápido por Ônibus (Bus Rapid Transit, BRT) Representa um transporte articulado que
trafega em corredor exclusivo e na cidade do Rio de Janeiro atende sobretudo a região da Zona Oeste,
sendo uma das únicas opções de transporte em alguns bairros. Segundo a descrição no site “Este modelo
de mobilidade existe em 140 países e, aqui na cidade do Rio de Janeiro, é administrado por um grupo de
empresas privadas de transporte de passageiros, reunidas em um consórcio. Nos corredores, cerca de 450
mil pessoas são transportadas por dia. Os números do BRT Rio impressionam, principalmente, por se
tratar de um investimento relativamente novo: nele já são feitas 8 mil viagens diárias com uma frota de
440 ônibus”. Disponível em: http://brtrio.com/conheca
20
Essa é uma das técnicas de pesquisa adotada por instituições, ONGs e até prefeituras para quantificar o
as bicicletas utilizadas na região de modo a justificar investimentos e/ou reivindicar políticas de
promoção da bicicleta. Manual de metodologia indicada para realizar tal contagem disponível em:
http://transporteativo.org.br/ta/?page_id=11178
21
Perfil do Ciclista do Brasil disponível em: http://www.ta.org.br/perfil/perfil.pdf
22
Ruas que possuem um desenho de uma bicicleta em cor branca indicando a orientação da passagem de
ciclistas naquela via, mas sem uma demarcação da divisão do espaço em formato de uma linha vermelha,
como as ciclofaixas, ou ainda sem uma separação física que garanta a exclusividade da via como as
ciclovias.

14
o investimento em aparelhos públicos voltados para a bicicleta incentivam mais pessoas
a aderirem a essa nova forma de mobilidade. Eu realizei algumas contagem em
exclusividade para a pesquisa, de modo a compreender qual o uso de uma das principais
rotas de ciclovia na cidade de Niterói, a ciclovia da rua Amaral Peixoto, que corta o
bairro do centro e liga as zonas norte e sul da cidade para com a Universidade Federal
Fluminense, barcas e termina de ônibus da cidade.
Meu objetivo investigativo é pesquisar o uso da bicicleta como mobilidade
urbana por mulheres na cidade de Niterói, investigando através do método de contagens
e entrevistas o uso da bicicleta como mobilidade feminina no dia-a-dia, além dos
envolvimentos como esporte lazer ou movimentos sociais, a fim de compreender os
diferentes usos e perfil que aparecem em pesquisas e dados, tanto acadêmicos quanto
levantamentos da prefeitura e de movimentos sociais. Minha primeira ideia era realizar
uma pesquisa sobre gênero e mobilidade pela bicicleta em Niterói de modo a construir
um perfil municipal de gênero da cidade, utilizando tais contagens e entrevistas em
diferentes vias e regiões da cidade de Niterói, desde a circulação em ciclovias,
ciclorrotas e ciclofaixas23, como em vias com ausência de malha cicloviária, a fim de
englobar um parâmetro representativo de mulheres que pedalam na cidade, buscando
coletar informações nas mais diferentes, porém a partir da sugestão do meu orientador
em virtude do tempo de mestrado, comecei a investir no ponto focal do Bicicletário
Público como referencia para realizar entrevistas com mulheres que pedalam na cidade,
já que o mesmo localiza-se na região central da cidade e é capaz de integração tanto
com as diferentes regiões sul e norte da cidade, como também integra a mobilidade a pé
na região central e de transporte público para a própria cidade ou para fora, por meio de
ônibus, vans e barcas. Entrevistar mulheres desconhecidas e compreender suas
diferentes experiências no uso da bicicleta não como ativismo, mas como forma de
locomoção na cidade se apresentou como meu objetivo para pensar as relações entre
corpo, identidade e gênero no meio urbano.
Escolhi a cidade de Niterói também pela produção de dados de crescimento de
mulheres que pedalam na cidade, destoando inclusive da média nacional segundo o
Perfil do Ciclista Brasileiro, no qual a média nacional de mulheres que pedalam em

23
Malha cicloviária: que engloba sinalização e demarcação no asfalto destinado ao da bicicleta, como em:
ciclorrotas – vias que contem um desenho de bicicleta no asfalto indicando e estimulando o uso de
bicicletas nas vias; ciclofaixa – faixa de cor vermelha que delimita um espaço da rua a ser utilizado pela
bicicleta, normalmente no bordo da pista, mas que não possui uma separação física entre a bicicleta e
demais veículos; ciclovia – faixa destinada ao uso de bicicletas que possui uma separação física, como os
segregadores ou canteiros, que impedem a ocupação da faixa por outros veículos.

15
2015 seria de 7% enquanto a média da cidade de Niterói alcançaria os 13%! Como esses
números são construídos? Qual a tradução de tais números na vivência cotidiana na
cidade? E ainda como que as próprias mulheres que pedalam na cidade experienciam
essa relação entre corpo, mobilidade e gênero?
Comecei então a frequentar não apenas o local do bicicletário, mas também seu
entorno, identificando as calçadas e ciclovias que comunicavam o bicicletário com as
barcas, percursos a pé, e claro, de bicicleta. Minha ideia inicial era estar próxima a
porta, com o consentimento da equipe que trabalha no Bicicletário, nos horários de
maior movimento, que segundo a administradora do Bicicletário, Tatiane24, teria um
grande movimento nos horários de manhã e noite correspondente ao trânsito, mas que
há uma grande movimentação durante todo dia, com lotação mesmo no meio da tarde.
Minhas primeiras tentativas não saíram como esperava, pois aqueles que paravam suas
bicicletas pela manhã faziam tal movimento em grande agilidade por conta o horário
apertado para ir ao trabalho, faculdade ou, em grande parte, para pegar a próxima barca,
o que me fez quase correr atrás de alguns contatos, o que foi em vão, pois não havia
tempo de explicar que não estava vendendo algo ou pedindo doações.
O horário noturno era mais fácil de abordar e tive mais sucesso, mas me deixava
com apenas um perfil de pessoas, que iam buscar suas bicicletas. Por isso, depois de
identificar que grande parte do público seguia para as barcas comecei a também realizar
a travessia, e abordar as mulheres que carregavam consigo bicicletas com a
identificação do bicicletário, e por vezes elas seguiam acompanhadas de mais pessoas
que também utilizavam a bicicleta, mas que não estavam consigo na hora ou que já

24
Tatiane Vilela, 33 anos, moradora do bairro Fonseca, Niterói (zona norte), mãe (leva seu filho à escola
de Bicicleta) e administradora do espaço do Bicicletário Araribóia.

Escolho utilizar o nome real das minhas interlocutoras partindo de uma reflexão acerca da realidade do
campo e suas exigências éticas e políticas a partir de (FONSECA, Claudia, 2010). Acredito que o
antropólogo deva realizar decisões quanto o uso do anonimato na necessidade de proteger os
interlocutores e grupo pesquisados da exposição das suas opiniões e práticas relatadas na pesquisa sempre
que necessário, visto que tais relatos são fruto de um contrato de confiança para com o pesquisador. O
objetivo da investigação antropológia não é de julgar ou expor legalmente atividades, nem buscar a
validade através da exposição da “verdade”, mas compreender como são construídas as redes de relação e
produção de comportamentos e como são produzidas diferentes verdades e interpretações do mundo.
Investigações que trabalhem, por exemplo, com grupos étnicos, movimentos políticos, violência e
trabalhos informais podem exigir do pesquisador a defesa do anonimato de seus interlocutores, sem por
isso perder a validade científica através da comprovação de nomes reais. No meu campo investigativo,
porém, não me deparei com tal necessidade de uma postura minha no sentido de “proteção”, como entre
um grupo em situação de vulnerabilidade e a pessoa responsável pela pesquisa. Aqui, todas as mulheres
entrevistadas são de classe média e escolarizadas e cientes do conteúdo da pesquisa através do
consentimento informado dos dados por conta do meu campo e das vivências e circuitos expostos a partir
da mobilidade cotidiana das minhas interlocutoras.

16
haviam deixado no bicicletário. Essa identificação nas barcas também se tornou
propícia, pois, segundo as palavras do autofalante “os ciclistas devem aguardar para
embarcar por último”, e uma vez que o embarque é liberado, eles se concentram em pé
na parte de trás das barcas, facilitando a minha abordagem. Outra forma de abordagem
significativa acontecia quando eu mesma estava me deslocando de bicicleta pela cidade
e cruzava com alguma outra mulher de bicicleta e identificava o adesivo do bicicletário,
logo aproveitava para abordá-las e em todas as situações tive um retorno positivo.
Busco aqui afirmar o destaque de uma antropologia da cidade (AGIER, 2011),
afim de explorar a cidade como um contexto de pesquisa, e não apenas como meio para
alcançar um tema a princípio deslocado de seu território. O trabalho de campo
etnográfico consiste em mais do que um método de pesquisa, mas um meio de fornecer
o contato entre o universo acadêmico e a realidade social, a fim da construção de um
conhecimento que mais do que nunca, no atual contexto político brasileiro, necessita de
diálogo para não apenas sua própria sobrevivência, mas sobrevivência do pensamento
crítico capaz de modificar a sociedade. Segundo MAGNAMI, 2002, p.26):

“Trata-se de uma primeira aproximação à complexidade da


dinâmica urbana contemporânea: nesse plano, a unidade de análise da
antropologia urbana seria constituída pelas diferentes práticas e não pela
cidade como uma totalidade ou uma forma específica de assentamento,
configurando o que se entende antes por antropologia na cidade e não
ao menos não ainda – como uma antropologia da cidade.Para identificar
essas práticas e seus agentes, foi proposta uma estratégia que recebeu a
denominação de um olhar de perto e de dentro, em contraste com visões
que foram classificadas como de fora e de longe. Ao partir dos próprios
arranjos desenvolvidos pelos atores sociais em seus múltiplos contextos
de atuação e uso do espaço e das estruturas urbanas, este olhar vai além
da fragmentação que, à primeira vista, parece caracterizar a dinâmica
das grandes cidades e procura identificar as regularidades, os padrões
que presidem o comportamento dos atores sociais. Supõe recortes bem
delimitados que possibilitam o costumeiro exercício da cuidadosa
descrição etnográfica”.

Apesar da minha origem de pesquisa estar imersa na atividade com os


movimentos sociais pela bicicleta, estudar sua relação com a mobilidade urbana sem a
relação direta com o ativismo se abriu como um novo campo para mim e tem sido um
agente de transformação do próprio pesquisador. A questão da "distância" como
condição para a análise antropológica, reflete sobre a relação sujeito/objeto, no qual
pensar a partir de um olhar externo a sua vivência pessoal é mais do que assumir uma

17
ideia imaterial de colocar-se no lugar do outro, mas ampliar a sua ideia de universo e
refletir sobre como além do próprio horizonte analisar perspectivas distintas, mesmo
que sobre assuntos os quais julgar-se-ia totalmente conhecidos.
Através das técnicas de entrevistas, observação e contagem de ciclistas, busco
realizar uma etnografia que investiga a relação entre mobilidade urbana pela bicicleta e
desigualdade de gênero e identidade, buscando entender porque as mulheres pedalam
menos, mas ainda em destaque, porque apesar dessa tendência, tal expressão de
mulheres que pedalam na cidade de Niterói tem aumentado.
No primeiro capítulo pretendo analisar a importância da pesquisa sobre a
mobilidade urbana e a abordagem multidisciplinar que transpassa conceitos como
trânsito e transporte, incluindo assim a visão antropológica do meio urbano dentro do
eixo das ciências sociais e correlacionando tais abordagens ao estudo da mobilidade
pela bicicleta.
No segundo capítulo pretendo abordar o território como campo de pesquisa,
analisando a cidade de Niterói e seus deslocamentos, entrando mais afundo no campo e
dando voz as questões da mobilidade pela bicicleta na cidade a partir do destaque da
análise do impacto da identidade de gênero e na mobilidade de mulheres.
No terceiro capítulo abordo a questão de gênero com mais profundidade,
trabalhando com os conceitos teóricos de interseccionalidade para lidar com as falas
urgentes em campo, pensando na importância entre o cruzamento mobilidade, bicicleta
e gênero.
No quarto capítulo pretendo analisar o perfil das mulheres que pedalam, que
constroem a sua identidade também a partir da sua mobilidade e participação na cidade,
refletindo sobre como a cidade modifica e é modificada pelos agentes e seus circuitos.

18
CAPÍTULO 1

MOBILIDADE PELA
BICICLETA

19
1.1 MOBILIDADE URBANA COMO TEMA

“O transporte é um importante instrumento de direcionamento do


desenvolvimento urbano das cidades. A mobilidade urbana bem planejada, com
sistemas integrados e sustentáveis, garante o acesso dos cidadãos às cidades e
proporciona qualidade de vida e desenvolvimento econômico” (Ministério das
Cidades, 2003)

“Sai da Rua”/”Sai da Calçada”. Um dos conflitos que aparecem com recorrência


nas entrevistas é a descrição de intimidações sofridas por pessoas de bicicleta quando
encaram uma região sem a demarcação de ciclovias ou ciclofaixas25, o que obriga aos
usuários de bicicletas a escolher quais espaços vão utilizar, mediante a intimidações de
pedestres , quando estão nas calçadas, e mediante a intimidações de motoristas quando
estão no asfalto. Existem leis que normatizam a utilização da bicicleta nas cidades
brasileiras, o Código de Transito Brasileiro (CTB), porém a prática é outra, na qual
muitas vezes nem os motoristas, ciclistas ou pedestres sabem quais são os espaço as
ocupar “é como se a gente não tivesse lugar” segundo conversas com algumas mulheres
que pedalam na cidade de Niterói, tendo alguns pontos do discurso em comum, como
uma das colocações da atual coordenadora do Programa Niterói de Bicicleta, da
prefeitura de Niterói, na qual “Não adianta promover só a bicicleta, tem que mexer no
estacionamento, no planejamento da cidade, do espaço das ruas, na qual fala da
responsabilidade de partilhar a rua dentre diferentes modais de mobilidade”. Para tratar
do tema da mobilidade, é necessário um diálogo multidisciplinar para dar conta de todos
os desdobramentos da reflexão sobre a mobilidade em uma cidade que não para.
Contendo reflexões em contato com demais áreas como geografia e arquitetura, se faz
necessário tratar da diversidade de pontos de vista a fim de atingir os conceitos de
movimento no planejamento e principalmente no uso urbano.
A partir da interpretação do geógrafo Tuan (2013, p. 169) de que a definição de
lugar consistiria em uma “pausa no movimento” é possível problematizar a ideia de
movimento e não movimento, uma vez que é possível pensar em lugar não apenas como
um espaço físico, mas também como uma construção social. Invertendo a sentença, é
possível analisar que essa afirmação também a ideia de que o movimento seria um não

25
Faixas na cor vermelha que delimitam o espaço de circulação da bicicleta, mas quem não possui uma
separação física como os segregadores presentes nas ciclovias.

20
lugar (AUGÉ, 1994)26 o que excluiria toda a sociabilidade que pode ser construída em
movimento. A dimensão da mobilidade, segundo John Urry27é um componente da
própria vida social, e trabalha a partir da ideia da diferença de um sistema de transportes
racionalizado e preocupado com a produção e consumo, enquanto uma mobilidade, que
seria orgânica, e se organizaria a partir das relações pessoais, familiares e símbolos.
Esse debate entre transporte e mobilidade possui grande presença no campo da
geografia, e na engenharia de transportes, mas é através de uma visão multidisciplinar
que é possível dar conta dessa temática tão ampla e complexa. Na sociologia aponta
para uma visão do próprio movimento como categorizador da organização social,
daqueles que seriam móveis e daqueles imóveis. Concordando com o texto de abertura
do primeiro capítulo da Cartilha Lei nº 12.587/12 – Política Nacional de Mobilidade
Urbana, Urry trata a mobilidade urbana como “complexo fenômeno social que
ultrapassa as dimensões físicas, corporais e econômicas, envolvendo também as
dimensões cultural, afetiva, imaginária, espacial e individual” (Marandola Jr., 2009,
apud URRY, 2007, p.1)28
O termo mobilidade pode ser interpretado como uma conexão entre pessoas,
lugares, objetos, culturas, entre outros, e quando aplicado juntamente com o tema
urbano, faz pensar (AGIER, 2011, p.1)29: “o que faz cidade?”. A partir da própria
mobilidade e do desenvolvimento de técnicas de comunicação e tecnologia que
devemos construir uma antropologia “da cidade”, afim de sobrepor a discussão entre
campo x cidade para dar lugar a investigação das diversas formas de territoriedade que
emergem dentro de um mesmo espaço, uma mobilidade das próprias fronteiras da
cidade. O antropólogo deve analisar a produção de cultura e significado que são
construídos a partir das relações cotidianas e também em situações extraordinárias.
O conceito de circulação a partir de Caiafa30 reflete sobre a vida urbana a partir
do conceito de divisão do trabalho, construindo a diversidade como a base das relações,
uma vez que são construídas diferentes profissões, relações afetivas, e também distintas
formas de se mover. entre outros aspectos”. Tanto o conceito de lugar quanto o de
mobilidade estão relacionados não apenas a conexões, mas também às desconexões,
26
AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus,
1994, 111 páginas.
27
ELLIOTT, A.; URRY, J. Mobile Lives. London: Routledge, 2010. 194p.
28
Marandola Jr., Rev. bras. estud. popul. vol.26 no.1 São Paulo Jan./June 2009 disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-30982009000100013>
29
Agier, Michel. Antropologia da Cidade: Lugares, Situações, Movimentos. Tradução de Graça Índias
Cordeiro. São Paulo, Editora Terceiro Nome, 2011
30
(CAIAFA, J. , 2002)

21
conflitos e enfrentamentos, uma vez que distante das ideias de igualdade, a cidade é
dividida e territorizada de formas desiguais e principalmente, vivenciada a partir de
distintos olhares e permanências. O conceito de acesso à cidade, tratando o transporte a
partir do artigo 6º da Constituição Brasileira31, como um direito social é aplicado de
forma distinta nas diferentes fronteiras da cidade, sendo a mobilidade um importante
fator de reflexo do acesso à cidade. As atuais formas de mobilidade e conectividade
podem produzir geografias de exclusão, de desconexão, de desigualdade e de
imobilidade.Segundo Jacques Levy:

“Pode-se definir a mobilidade como a relação social ligada à


mudança de lugar, isto é, como o conjunto de modalidades pelas quais
os membros de uma sociedade tratam a possibilidade de eles próprios
ou outros ocuparem sucessivamente vários lugares. Por essa
definição, excluímos duas outras opções: aquela que reduziria a
mobilidade ao mero deslocamento [...], eliminando assim as suas
dimensões ideais e virtuais, e aquelas que dariam um sentido muito
geral deste termo, jogando com metáforas (tal como mobilidade
social) ou com extensões incontroladas (a comunicação, por
exemplo)”
(Levy, 2001, p. 7)

Essa busca por definições da mobilidade urbana é necessária não para escolher
uma corrente mais verídica ou em contraposição a outra, mas para explorar a
diversidade de definições e de origens dos estudos urbanos sobre mobilidade, mas um
ponto em comum é tratar a mobilidade para além de um mero deslocamento físico, mas
integrado a uma mobilidade também cultural e social, refletindo que o pensar sobre o
acesso à cidade como uma forma de alcançar a diversidade de serviços oferecidos por
ela, e uma vez que não há um transporte acessível para um determinado local, seleciona-
se também quais as camadas sociais que acessam determinado espaço. A bicicleta está
integrada como um dos veículos e modais que permitem o acesso a cidade, e pensar a
partir da bicicleta é também pensar como uma das formas de acessar a cidade, e no caso
dessa pesquisa, Niterói.

31
Disponível em: <https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_15.12.2016/art_6_.asp>

22
1.2 MOBILIDADE EM CAMPO

A Política Nacional de Mobilidade Urbana(Lei Nº 12.587/2012)32é uma diretriz


nacional que orienta a implantação de estímulos à mobilidade urbana nas cidades. Ela
orienta os municípios a priorizar os modos de transporte ativos e coletivos sobre os
motorizados e individuais, incentivando a integração entre modais como matriz de
deslocamento da população. Utilizando como instrumento a criação de Planos
Municipais de Mobilidade Urbana, que são obrigatórios para por municípios com mais
de vinte mil habitantes, em 2018 foi realizada uma consulta pública via plataforma do
Colab33 pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Mobilidade da cidade de Niterói
(SMU), a fim de auxiliar a construção do PMUS: Plano de Mobilidade Urbana
Sustentável de Niterói, no qual “visa priorizar o transporte coletivo e os modos ativos (a
pé e bicicleta), dando mais qualidade e rapidez às viagens, contribuindo com uma
mobilidade mais sustentável”34.
A mobilidade aparece como tema cada vez mais presente no debate sobre acesso
e direito à cidade através da construção de leis35, da produção acadêmica em congressos
específicos do tema– como Velocity Conference, Fórum Mundial da Bicicleta,
100GuriasSemMedo, BiciRio, Encontro Latino Americano de Bicicletas
Compartilhadas e o Bicicultura -, além da participação popular através dos movimentos
sociais. Na cidade de Niterói, a consulta pública ao PMUS trata em suas diretrizes de:
“Priorizar o transporte público coletivo, os modos ativos e os modos compartilhados,
em relação aos modos individuais motorizados, por meio de inúmeras ações, dentre
elas, a criação de faixas exclusivas, ciclovias e ampliação de passeios”, além de:
“Diminuir o desequilíbrio existente na apropriação do espaço utilizado para a
mobilidade urbana, garantindo a distribuição equilibrada e democrática dos espaços

32
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12587.htm> Acesso
fevereiro de 2019.
33
Colab.re é uma rede social voltada para a cidadania que tem como objetivo conectar cidadãos e cidades
de maneira transparente e com foco na resolução de problemas, discussão de projetos e avaliação dos
serviços públicos.
34
Disponível em: http://pmusniteroi.com.br/ Acesso em novembro de 2018.
35
Além do Plano de Mobilidade Urbana, também me refiro ao Código de Transito Brasileiro e Estatuto
das Cidades, que regularizam o tema da mobilidade nas cidades e dessa forma reconhecem a importância
do deslocamento como “necessário ao desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm além de
garantir direitos e deveres à quem está em transito, sendo este “pessoas, veículos e animais, isolados ou
em grupos”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9503.htm Acesso em fevereiro
de 2019.

23
públicos de circulação que favoreça os modos coletivos que atendem a maioria da
população, sobretudo os estratos populacionais mais vulneráveis”.
A promoção da mobilidade nas cidades e a democratização dos espaços
aparecem no PMUS como diretamente relacionadas ao acesso pela população à
equipamentos públicos de lazer, saúde, educação, pois impacta nas diversas formas de
vivência e interação com o meio urbano. A experiência urbana na utilização do
transporte público ou em transporte individual motorizado, por exemplo, são distintas,
pela construção de vivências diferentes em um mesmo espaço, como o tempo gasto no
deslocamento, custo, distancia percorrida, assim como a infraestrutura, que impactam
em diferentes percepções de uma mesma cidade. Debater a acessibilidade é partir de
uma percepção de desigualdade na cidade, relacionada a diferentes formas de
investimento público em asfalto, ciclovias, pontos de ônibus e rampas de acesso.
A consulta do PMUS36 obteve 1900 respostas, sendo a consulta pública da
cidade que alcançou a maior participação pela população, segundo o subsecretário da
SMU Rogério Gama. Como ela foi realizada somente na forma online, o que infere no
próprio acesso à pesquisa, pois restringe as respostas a apenas parte da população que
possui acesso à internet, ainda assim seus resultados alcançaram pessoas de quase todos
os bairros da cidade e ainda de municípios exteriores, o que estabelece um alcance
representativo da pesquisa.Os resultados parciais da consulta, apresentados pelo próprio
subsecretário do SMU em seminário da Nittrans – departamento de transporte de
Niterói – apontam para uma necessidade grande de ampliação dos investimentos e
distribuição do transporte público para além da região Centro-Sul da cidade, além de
integração com demais modais. As perguntas da consulta eram em grande parte
objetivas, contando ainda com três perguntas abertas, onde era possível discursar sobre
os problemas, soluções e ainda projeções futuras de como a cidade estaria em 10 anos.
A mobilidade urbana pode ser analisada sobre diferentes perspectivas, como
raça, classe, trabalho, e também gênero. Segundo pesquisa "O Acesso de Mulheres e
Crianças à Cidade"37do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento - ITDP
Brasil, a mobilidade feminina é marcada pelo uso de modais ativos ( que privilegiam o
uso de transporte não motorizado como o automóvel), principalmente através da
integração de modais como transporte público, a mobilidade a pé e a mobilidade pela

36
Disponível em: http://pmusniteroi.com.br/
37
Disponível no site do ITDP e em: <http://2rps5v3y8o843iokettbxnya.wpengine.netdna-cdn.com/wp-
content/uploads/2018/01/ITDP-Brasil-_-O-Acesso-de-Mulheres-e-Criancas-a-Cidade-_-JAN-2018.pdf>

24
bicicleta. A pesquisa realizada em Recife, PE, investiga essa diferença no perfil de
mobilidade através da análise de gênero, demonstrando que a divisão desigual de tarefas
e cuidados com a família tornam necessária à mobilidade feminina a utilização de mais
de transporte/modais pela necessidade de realizar paradas para compras e tarefas ao
longo do percurso. Essa é uma característica essencial para a mobilidade ativa38pela
bicicleta, pela sua capacidade de atender como um modal de baixo custo e de fácil
integração e realização de paradas ao longo do percurso, porém a utilização da bicicleta
pelas mulheres ainda se encontra em uma desigualdade notável em relação aos homens.
Em 2015 foi realizada a Pesquisa do Perfil do Ciclista Brasileiro39que buscava
integrar a coleta de dados de diversas cidades do Brasil para entender o perfil das
pessoas que utilizam a bicicleta nas suas respectivas cidades, analisando desde a
frequência de uso da bicicleta na semana, faixa etária, renda, motivações e desafios.
Essa foi também a primeira pesquisa que incluiu a investigação do perfil de gênero a
nível nacional, e levantou dados inéditos para análise. O percentual médio total de
mulheres que pedalavam em 10 cidades brasileiras de diferentes regiões contatava que
apenas 7% de mulheres dentre o total de 502 entrevistas. Nesse estudo, a cidade de
Niterói esteve presente e se destacou ao alcançar a porcentagem de 13% de mulheres
ciclistas, um número que representa quase que o dobro do manifestado a nível
brasileiro.
Desde 2015, a prefeitura de Niterói através do programa Niterói de Bicicleta,
realizou novas contagens do número de ciclistas nas ruas, por vezes em parceria com o
Mobilidade Niterói, coletivo presente na pesquisa do Perfil do Ciclista Brasileiro, na
qual em 2018, o número teve um alcance ainda maior, chegando a média de 18% de
mulheres ciclistas40. Em meio aos desafios da mobilidade urbana feminina, como a
cidade de Niterói opera em um expressivo crescente número de novas ciclistas mediante
ao crescimento do número de ciclistas em geral? Em pesquisa realizada pelo próprio
programa Niterói de Bicicleta para identificar o Perfil dos usuários do Bicicletário
Araribóia41, o número de mulheres é mais expressivo ainda, chegando aos 29,9% de

38
Mobilidade que não usa propulsão de motores para realizar o deslocamento
39
TRANSPORTE ATIVO (2015). Perfil do Ciclista Brasileiro. Parceria Nacional Pela Mobilidade por
Bicicleta (Livreto). Acesso em maio de 2019
40
Pesquisa “Contagem Amaral Peixoto: Dados brutos de maio de 2018” disponível no site do programa
Niterói de Bicicleta em:<http://www.niteroidebicicleta.rj.gov.br/index.php/biblioteca/relatorios-e-
pesquisas>. Acesso em Maio de 2019
41
Pesquisa Perfil dos usuários do Bicicletário Araribóia disponível em:
:<http://www.niteroidebicicleta.rj.gov.br/index.php/biblioteca/relatorios-e-pesquisas>. Acesso em Maio
de 2019

25
mulheres cadastradas. Como explicar esse crescimento de mulheres nos dados de
usuárias mulheres, mas que não remetem às contagens de ciclistas realizadas? Quais são
os desafios que modificam os habitus das mulheres que pedalam e quais são seus
padrões de comportamento e deslocamento? Qual o diálogo que existe com os
movimentos sociais de cicloativismo e/ou feminismo? A partir de uma perspectiva
qualitativa, realizo uma etnografia sobre os padrões de mobilidade e identidade das
mulheres que pedalam na cidade de Niterói, a partir de um ponto focal: o Bicicletário
Público da cidade, localizado no bairro central de Niterói.
A antropologia urbana vem desde a década de 197042 consolidando a
importância de pesquisas relacionadas a gênero e cidades, a partir do impacto entre o
ambiente e a dinâmica de atividades econômicas, socioculturais e políticas na população
residente. A eclosão de temáticas sobre moradia, trabalho, consumo e movimentos
sociais, evidencia a importância integrar tais diferentes áreas e regiões na cidade através
da investigação sobre a mobilidade urbana. Mais do que uma análise do deslocamento, a
mobilidade urbana inclui a reflexão sobre os hábitos de mobilidade e de acesso à cidade
por diferentes grupos de pessoas. Uma mesma cidade pode ser interpretada e vivida por
diferentes perspectivas e características interseccionais, como também raça e classe.
A relação entre o debate de gênero e o processo de urbanização é marcado pelo
conceito de „transição urbana‟, como um fator favorável ao crescimento da população
feminina nas cidades (ALVES, CAVENAGHI, et al., 2017)43. A transição urbana como
um processo de melhora dos equipamentos de saúde para a população gera um impacto
no crescimento da população feminina, uma vez que os índices de mortalidade materna
diminuem, provocando um aumento da expectativa de vida feminina nas cidades. O
desenvolvimento da população feminina também está ligado à possibilidade de
reconfiguração das relações sociais, uma vez que uma maior oferta de emprego
resultante de processo oriundos da revolução industrial possui um papel importante na
conquista de renda própria e, portanto de autonomia feminina. O acesso aos
instrumentos disponíveis na cidade se torna um debate extremante importante e
necessário, seja na configuração espacial desse acesso, quanto na sua configuração
imaterial, do acesso à informação e condições/padrões de deslocamento que são
42
BONETTI, Aline 2009
43
ALVES, CAVENAGHI, CARVALHO, SOARES. Meio século de feminismo e empedramento das
mulheres no contexto das transformações sociodemográficas do Brasil. In: BLAY, Eva Alterman, Avelar,
Lúcia, organizadoras. 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile: A Construção das Mulheres como
Atores Políticos e Democráticos– 1 ed., 1 reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
Fapesp, 2017

26
interseccionaveis44 a demais fatores. Estudar a mobilidade urbana das mulheres na
cidade é também trabalhar com reflexões quanto à identidade e padrões de
comportamento no recorte de gênero e seu impacto na população.

1.3 CAMPO COMO MOBILIDADE

Morar em Niterói e pesquisar na cidade me deu a sensação de vivenciar o campo


quase que interruptamente. Por vezes, em que puxava assunto com outras pessoas
durante meus próprios percursos, estando de bicicleta ou não, sentia que assuntos como
trânsito e formas de mobilidade permeiam os papos, que mesmo quando eu não os
iniciava, eram facilmente convertidos em assuntos sobre a mobilidade na cidade,
sobretudo sobre o engarrafamento, que nos horários de maior movimentação na manhã
e noite modificam a dinâmica da cidade. Meu principal meio de transporte na cidade é a
bicicleta, que me leva para a universidade, compras, lazer e também como atuação
política e voluntariado, uma vez que participo de alguns grupos de ativistas de ciclistas
na cidade. Andar a pé ou de ônibus me faz perceber a cidade de diferentes maneiras, por
conta das diferenças de trajetos e obstáculos, ao mesmo tempo em que estar a pé e
enquanto empurro minha bicicleta me faz refletir sobre um novo desafio, desde a
largura das calçadas até os desníveis e rampas aparentes no caminho.
A mobilidade ativa45– que demanda a utilização do nosso próprio corpo como
propulsor, ou seja, que não depende de máquinas para realizar o movimento – é
defendida por urbanistas e ativistas como soluções para os impasses de mobilidade nas
grandes e medias cidades, estimulando inclusive a sua possibilidade de integração entre
os diferentes modos de deslocamento a partir bicicletário próximos às em estações e

44
A partir do artigo: “Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes
brasileiras” de Adriana Piscitelli. Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008” buscarei discorrer sobre
como apreender e articular uma multiplicidade de diferenças e desigualdades de gênero e demais
conceitos para construir um dialogo..
45
Termo referente à mobilidade urbana que não utiliza motores/propulsão artificial, como bicicleta, e a
mobilidade a pé. Recentemente o termo também encara debates acerca da introdução do patinete como
meio de transporte a partir dos aplicativos de compartilhamento de patinetes elétricos assim como é
realizado o sistema de bicicletas compartilhadas. Esse tema está em discussão a nível federal e também
municipal nas cidades em que os aplicativos operam, como o caso do Rio de Janeiro:
<https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/06/11/deputados-aprovam-regulamentacao-de-
patinetes-eletricos-no-rj.ghtml> Acesso: junho 2019

27
pontos de ônibus, ou ainda com calçadas e rampas adequadas ao acesso de pedestres,
como em ambos os casos é referencia a região da praça Araribóia, onde está localizado
o Bicicletário Araribóia na região do centro da cidade de Niterói, localizado próximo à
estação das barcas e de diversos pontos de ônibus de grande movimento e terminal
rodoviário, além de contar com uma grande calçada espaçosa com acesso de rampas. O
modelo de integração permite o uso do transporte ativo e coletivo de forma associada,
estimulando o uso menor do automóvel de forma a diminuir e desestimular a
mobilidade individual através do carro, promovendo debates também em prol da
sustentabilidade e saúde. O movimento como parte da minha atividade rotineira na
cidade na qual também realizo a pesquisa me estimulou à reflexão contínua quanto a
mobilidade urbana como parte fundamental do cotidiano.
A aproximação entre o campo e o não-campo – os momentos que eu
teoricamente estaria apenas vivendo na minha cidade, sem preocupações antropológicas
iminentes –é uma via de mão dupla: me rendeu situações boas e ruins, que no final se
tornam crônicas sobre as fronteiras móveis dentre a pesquisa e o que seria apenas a
vivência, pois são fronteiras imaginárias, que facilitam a reflexão mas não impedem o
diálogo dentre si. Por vezes, essa aproximação também era benéfica, no sentido de
entrar em contato com pessoas de órgãos e eventos a partir de contatos estabelecidos
nos meus grupos e movimentos sociais. Um exemplo é a aproximação que eu fiz em
cursos oferecidos pela prefeitura, reuniões de planejamento, eventos, e também da
Semana Nacional de Trânsito da cidade de Niterói, em Setembro de 2018, no mês da
mobilidade, a partir da minha atuação como voluntária do Bike Anjo Niterói.46
Um dos convites mais interessantes foi quando, em nome de um grupo de
pesquisa de bicicletas criado por professores do departamento de segurança pública da
UFF, o Labciclo, fui a uma reunião na prefeitura de Niterói para assistir uma palestra de
uma arquiteta convidada, Meli Malastesta47, sobre a integração do planejamento urbano
a pé e de bicicleta nas políticas publicas das cidades. Acontece que por falta de

46
Bike anjo é uma ONG que existe em mais de 600 cidades no Brasil e no mundo na qual ciclistas
voluntários ensinam a pedalar gratuitamente.
47
MeliMalatesta (Maria Ermelina Brosch Malatesta) é arquiteta e urbanista formada pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie e com mestrado e doutorado pela FAU USP. Com 35 anos de serviços prestados
à CET – Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, sua atividade profissional foi totalmente
dedicada à mobilidade não motorizada, a pé e de bicicleta. Atualmente, ministra palestras e cursos de
especialização em Mobilidade Não Motorizada além de atuar como consultora em políticas, planos e
projetos voltados a pedestres e ciclistas. Autobiografia disponível no site:
<https://www.mobilize.org.br/blogs/pe-de-igualdade/>. Acessado em Agosto de 2018.

28
comunicação interna, o convite não deveria ter sido enviado ao Labciclo, pois na
verdade era uma reunião interna da prefeitura, pois a intenção da organização feita pelo
programa Niterói de Bicicleta segundo a própria coordenadora do programa Claudia
Tavares48, era de “fazer uma capacitação interna da prefeitura convocando as secretarias
para trabalharem em conjunto ao tema da mobilidade ativa”. Bom, como cheguei já no
inicio da palestra em andamento, a Claudia apenas pode me abordar no intervalo na
metade do dia. A situação foi um pouco constrangedora, pois eu não deveria estar lá,
porém o mais interessante é que essa foi a oportunidade perfeita para dialogar e
conhecer as pessoas que dentro da prefeitura estava interessadas no debate da
mobilidade pela bicicleta.
Aproveitei ainda a ocasião para explicar para a Cláudia como cheguei ali, e que
surpreendentemente não foi através dos movimentos sociais, mas a partir da própria
universidade. Nesse momento pude apresentar o tema da minha pesquisa e esclarecer as
minhas intenções naquela palestra, pois mais do que cobrar, estava ali para ouvir.
Mesmo depois esclarecer o não convite, como não fui convidada a me retirar, permaneci
ali até o final do dia, e ainda, convidei a Claudia para uma entrevista. Tive ainda a
oportunidade de conversar com o subsecretário Rogério Gama da SMU, resultando em
um convite para participar da análise de respostas de consulta pública do Plano de
Mobilidade Urbana Sustentável na cidade, a PMUS.
Essa função dupla de pesquisadora e ativista sempre foi uma grande
preocupação para mim, o que me levou a me distanciar da organização de grupos de
pedal da cidade, a fim de cultivar algum estranhamento como participante, e dessa
forma voltar a apenas pedalar na cidade, sem vinculo necessários com os movimentos
sociais, buscando um olhar para os demais usos da bicicleta na cidade de Niterói.Para
alcançar esse público que circula na cidade flutuando entre as diferentes formas de
identidade relacionada a bicicleta, como para além dos movimentos sociais o esporte,
lazer e mobilidade urbana, por sugestão do meu orientador, segui em direção a
investigação a partir dos cadastros de ciclistas no Bicicletário Araribóia. O Bicicletário
Araribóia é um marco na cidade de Niterói sendo o primeiro bicicletário público da
cidade, o que estimulou o uso por novos ciclistas, como tem sido investigado em
recente pesquisa de 2018 do programa Niterói de Bicicleta, porém seus dados quando
confrontados com as contagens de ciclistas nas ruas apresentam discrepâncias,

48
Atual Coordenadora do Programa Niterói de Bicicleta, vinculado da prefeitura de Niterói.

29
sobretudo pela investigação de gênero,contendo uma variação de 27% a 29,9%
mulheres no bicicletário enquanto nas ruas alcançam apenas os dados de 18%. Entender
quem são essas mulheres e seus papéis identitários na relação com a mobilidade urbana
pela bicicleta ajuda a compreender o uso e impacto da bicicleta na mobilidade feminina
na cidade de Niterói.
Tais dados quantitativos são relevantes e necessários para levantar questões e
apreender noções de universo e possíveis padrões de comportamento, porém aqui cabe o
papel da análise qualitativa como complementar e necessária para investigar a partir do
cotidiano individual como são realizadas as escolhas de mobilidade e qual o impacto na
relação dessas mulheres ciclistas na sua relação com a cidade. Para tal investigação, foi
necessário compreender também as fronteiras de identidade e papel social, no qual
mesmo como ciclista, era necessário mover as fronteiras e investigar a partir de
termologias já conhecidas, novos usos e significações do pedalar como mulher na
cidade de Niterói. O papel de pesquisadora esta relacionado ao cuidado em ouvir mais,
me autocriticar, e ainda perguntar mais, mesmo o que parecia já obvio, conhecendo
ainda novas interpretações para uma mesma palavra ou categoria. Foi assim quem
comecei a repensar a própria palavra definidora do campo, a ciclista.
No início, por exemplo, pensava em abordar apenas as pessoas que utilizavam o
bicicletário no seu próprio local de existência, e pensava em entrevistar pessoas em seus
horários de maior movimentação de chegada e saída do Bicicletário, porém o momento
da chegada era muito corrido, com hora para pegar a barca ou outro compromisso, o que
dificultava em demasia minha abordagem. Diante disso, passei a puxar conversa
também com ciclistas que passavam na rua, ou que paravam ao mesmo tempo no sinal,
pois cada bicicleta recebe um adesivo com numeração característica do bicicletário, e
surpreendentemente, consegui contatos de pessoas solicitas em confiar seus números a
outra pessoa de bicicleta parada no tempo curto de um sinal. A escolha de um espaço
público de estacionamento de bicicletas facilitou o meu recorte e delimitação do público
alvo, pois mesmo quando eu estava em outra performance, como apenas voltando do
mercado de bicicleta, eu identificava a numeração da bicicleta e rapidamente mudava a
minha função no momento.
Em quase todas as entrevistas eu abordei a pessoa para conseguir seu contato e
posteriormente realizar a entrevista. Houve apenas duas vezes que realizai a entrevista
de supetão: uma foi durante a travessia das barcas, que abordei uma ciclista que por
conta da falta de tempo, topou responder as perguntas durante a travessia de 15 minutos,

30
e outra vez que durante um grupo de pedal só para mulheres também concordou durante
o tempo de espera realizar a entrevista.
Foram 10 entrevistas ao todos, em diversos locais como cafeterias, praças, na
universidade, no próprio bicicletário e até nas barcas. Utilizo na pesquisa os nomes
verdadeiros das entrevistadas, sem a necessidade de utilizar pseudônimos e sem
qualquer solicitação da necessidade do mesmo. Eu utilizo os dados das entrevistas em
conjuntos com as pesquisas realizadas pela prefeitura e instituições que trabalham com a
pauta da mobilidade urbana, além dos eventos que participei nos anos de 2017 e 2018
na cidade do Rio de Janeiro e Niterói sobre o tema da bicicleta, e as contagens
realizadas pela prefeitura de Niterói na figura do programa Niterói de Bicicleta, pelo
coletivo Mobilidade Niterói49e as que foram realizadas por mim mesma. Minha intenção
era alcançar mulheres de deferentes perfis que utilizam a bicicleta como meio de
transporte na cidade de Niterói e entender as motivações e desafios que as levam a
escolher um modal que mesmo que em destaque nas noticias atuais representa ainda
uma parcela pequena, sobretudo de utilização pelas mulheres.

1.4 CAMINHO A PEDALAR

Através do meu primeiro contato com a bicicleta na forma de ativismo caminhei


durante o mestrado para pensar como recuperar o estranhamento com o meu objeto de
pesquisa, e de forma a dar conta no curto tempo de pesquisa como mestranda, decidi
explorar o campo da bicicleta para além da minha zona de conforto, pensar na
mobilidade urbana de maneira mais ampla, e investigar o uso da bicicleta no dia a dia,
refletindo as questões levantadas pelos demais grupos na cidade, mas em contato com
quem apenas circula e engrossa os dados de circulação pela bicicleta na cidade. A
bicicleta é um veículo visualmente presente na cidade de Niterói, mas que não é
utilizada apenas por grupos específicos, é um meio de transporte de parte da população,
em diferentes camadas sociais e regiões. Para entender o papel da bicicleta na
construção de identidades na cidade é necessário investigar os fluxos e dinâmicas que
envolvem a população de maneira geral, para além do debate de ideias e buscando

49
Coletivo formado por ciclistas e acadêmicos que possui como função gerar dados da utilização da
bicicleta na cidade de Niterói.

31
encarar a bicicleta como um meio de transporte dentro da pauta da mobilidade urbana
na cidade.
Busco nessa pesquisa compreender como é a perspectiva da mobilidade
feminina na cidade de Niterói, investigando, sobretudo através da observação no bairro
do centro de Niterói, além de dados e entrevistas colhidas a partir de contatos em um
local de grande movimento na cidade, o Bicicletrário Público localizado na Praça
Araribóia. Busco dar conta de diferentes perspectivas sobre o assunto, construindo
assim a diversidade dentro do debate identitário, elegendo como objeto as mulheres que
pedalam na cidade de Niterói, de forma poder contrapor e unir perspectivas da
mobilidade feminina dentro e fora do ativismo. Dessa forma pretendo realizar o que
considero a distinção da pesquisa antropológica, de compreender para além dos dados
quantitativos sobre a cidade, a perspectiva dessas mulheres, sobre si mesma e sobre a
forma como constroem não apenas suas relações sociais como a própria cidade em que
vivem.
Para refletir sobre os dados de demais pesquisas apresentados aqui, comecei a
realizar ma combinação entre as entrevistas com mulheres ciclistas na cidade, em
observar a movimentação nas ruas e no bicicletário da cidade, além de realizar minhas
próprias contagens de ciclistas, principalmente durante as horas de maior movimentação
na manhã e final da tarde/noite50. Essa é a combinação das técnicas de observação, e
pesquisa quantitativa a fim de compreender o número de ciclistas passantes por
gênero51, além das entrevistas qualitativas quem são esses ciclistas. Foram quatro
investidas pela manhã, e quatro investidas a tarde/noite durante o segundo semestre de
2018, variando uma média de 17% a 20% de mulheres que utilizam as bicicletas na
cidade superando até novas contagens nas capitais brasileiras, como na proporção

50
Seguindo as orientações de realização de contagens de ciclistas, realizei as contagens nos horários de
rush, no qual se registram as maiores movimentações na cidade a fim de cumprir o horário de trabalho,
sendo realizadas entre 7h e 9h da manhã, e de 17h as 19h da tarde/noite.
51
Nas contagens realizadas pelo programa Niterói de Bicicleta a palavra referida é sexo para designar a
divisão entre Mulheres e Homens , porém nas contagens que realizei utilizo o termo gênero afim de
contemplar uma designação social de performances femininas ou masculinas que contemplem os debates
atuais de gênero e sexualidade. Aqui a diferença entre as categorias sexo e gênero não estão em relação a
natureza e cultura, já que ambas as categorias são construídas socialmente (BUTLER, J. 2015), logo a
escolha do uso da categoria gênero tem a ver com a preocupação em incluir não apenas o conceito binário
de Homem/Mulher, mas também as possibilidades de demais performances do ser mulher.Segundo Joan
Scott,(1995): “o gênero deve ser redefinido e reestruturado em conjunção com uma visão de igualdade
política e social que inclua não somente o sexo, mas também a classe e a raça”.
Nas contagens não é possível identificar em segundos de movimento dos ciclistas que passam mais
detalhes quanto a identidade de cada pessoa, porém esta lacuna é mais facilmente preenchida durante as
entrevistas de campo.

32
existência na cidade do Rio de Janeiro que desde 2015 acompanha nessas contagens
oficiais pela ONG Transporte Ativo, a média de 7% a 8% de ciclistas mulheres.
Segundo a enfermeira Beatriz (38) 52, a relação das características de mobilidade
feminina tem tudo a ver com o território e as características da cidade de Niterói.

“Primeiro de tudo Niterói é a cidade que mais tem mulher.


Já ouvi falar isso? A cidade que mais tem mulher vai ter mais
mulher ciclista ne? Niterói é uma cidade pequena, provinciana,
que não tinha essa quantidade de violência que tem. Niterói é era
uma cidade de interior, eu cresci com isso assim, então aqui,
Niterói é cercado de praia, e quanto mais cercado de praia, mais
as pessoas são incentivadas a fazer um esporte, pedalar em frente
a praia, e como tem mais mulheres, as mulheres
consequentemente vão fazer mais isso.
Homem, é mais preocupado em carro, carro, carro, acho
que é tendência mundial! As mulheres vão ser bicicleta e homem
carro, ainda mais hoje em dia que todo quer ser mais fitness,
sarada. Se você parar aqui (praia de Icaraí) você vai ver muito
mais mulheres correndo que homens. Olha que mulher hoje
(domingo) ta fazendo comida em casa, mas mesmo assim, tem um
monte, entendeu?”.

Para entender melhor como funciona essa dinâmica na cidade, é necessário


recorrer a análise da antropologia urbana, de construir uma reflexão acerca do território
da cidade, explorando as características físicas e móveis da cidade de Niterói, para aí
sim, permitir uma profundidade na pesquisa.

52
Beatriz Nunez, 38 anos, enfermeira e estudante de farmácia na universidade Anhanguera, moradora do
bairro de Santa Rosa (zona Sul)

33
CAPÍTULO 2

BICICLETA E A CIDADE

34
Neste capítulo trazer as rotas, desafios e facilidades do uso da bicicleta na cidade
de Niterói a partir das entrevistas realizadas com minhas interlocutoras e a partir da
minha observação e pesquisa durante o mestrado. Inicio a apresentando a cidade de
Niterói com sua geografia e população; o Bicicletário, base dos meus encontros de
interlocutoras e sua criação e impacto na cidade; E ainda introduzo algumas delas
através de suas percepções da cidade de Niterói.

2.1 CIDADE DE NITERÓI

A cidade de Niterói53 localiza-se na região metropolitana do estado do Rio de


Janeiro, com população de 511.786 pessoas54 e extensão de 134,074 km², e ocupando
uma importante posição geográfica de conexão de muitas cidades do estado com a atual
capital estadual, a cidade do Rio de Janeiro, população de 6.688.927 pessoas55, e com
extensão de 1.200,177 km² por se inserir em uma rota de mobilidade de pessoas e
mercadorias. Niterói possui fronteira com as cidades de São Gonçalo e Maricá, além do
litoral se localizar em parte no oceano atlântico e em parte na baía de Guanabara, local
de conexão com a cidade do Rio de Janeiro. Um grande marco na mobilidade não
apenas das cidades, mas do estado foi a construção da Ponte Rio-Niterói em 197456,uma
obra de grande porte realizada durante a era da ditadura militar instaurada, e que serviu
de propaganda nacional como um símbolo de desenvolvimento econômico e
modernização com apoio da indústria automotiva que desde o governo de Juscelino
Kubitschek57 ampliava sua entrada, consolidada com a construção de rodovias e

53
A cidade de Niterói foi capital do Estado do Rio de Janeiro em 1834 até 1893 e posteriormente de 1903
à 1975, com a extinção do estado da Guanabara e anexação da cidade do Rio de Janeiro como capital do
estado
54
Dados IBGE disponíveis em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/niteroi/panorama>
55
Dados IBGE disponíveis em:<https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/rio-de-janeiro/panorama>
56
A Ponte Presidente Costa e Silva, popularmente conhecida como Ponte Rio-Niterói, foi uma importante
obra inaugurada em 1974, mas que começou a ser construída em 1968, que usou um sistema muito
avançado de sustentação e que foi realizada durante a ditadura militar 1964 -1985, como parte das
grandes obras que marcaram a implementação do transporte rodoviário através de estradas que auxiliaram
na popularização do automóvel como meio principal de transporte. Sua extensão é de 13km e ainda hoje é
um importante meio de comunicação de pessoas e mercadorias no estado do Rio de Janeiro com conexão
da capital com as demais cidades do Estado. O nome da Ponte é em homenagem ao general Arthur da
Costa e Silva, responsável pela assinatura do decreto que autorizou a sua construção. Fonte: http://portal-
hml.antt.gov.br/rodovias/old/Ponte_Presidente_Costa_e_Silva.html Acesso em abril de 2019.
57
Presidente do Brasil entre os anos de 1955 a 1960, possuía como lema progressista a Idea de
desenvolver o país “cinquenta anos em cinco”, através de um plano de investimento em para o

35
incentivos nacionais durante o governo militar. Antes da construção da ponte, a
mobilidade entre as cidades era feita através de rotas maiores pelo interior do estado,
mas principalmente a partir da rede aquaviária de barcas e balsas que realizam até hoje
se fazem presentes na Baía de Guanabara.

Mapa 1: Região Metropolitana do Estado do Rio. A cidade de Niterói na cor Laranja, fazendo
fronteira com as cidade de Maricá (amarelo) e São Gonçalo (bege), além de se comunicar através da baía
de Guanabara com a capital, Rio de Janeiro (roxo).

desenvolvimento econômico, principalmente nas áreas de infraestrutura (rodovias, hidrelétricas,


aeroportos) e indústria. Além do marco da construção da nova capital federal, a cidade de Brasília,
também foi responsável pela abertura econômica para o capital internacional, dentre muitas empresas,
para a entrada de montadoras de automóveis.

36
Mapa 2: Divisão de regiões da cidade de Niterói. Fonte: Caderno de Mapas da Secretaria de
Urbanismo de Niterói <http://urbanismo.niteroi.rj.gov.br/wp-content/uploads/2015/10/diagnostico-
tecnico-volume-3-3_caderno_de_mapas.pdf> Acesso em Maio de 2019

A utilização de barcas e a presença de estaleiros em Niterói também contribui


para a pauta da mobilidade como um debate crucial na cidade, responsável ainda pelo
escoamento de produtos e ofertas de trabalho das obras interioranas da Petrobrás58.
Apesar das dimensões menores que a cidade vizinha, Niterói possui grande
desenvolvimento no estado, sendo o 3º maior PIB do estado e 5ª maior população do
estado59, concentrando serviços, indústria, comercio, hospitais e universidades,
incluindo a Universidade Federal Fluminense (UFF), atraindo assim muitos estudantes,
professores e servidores para a cidade. Uma característica proveniente da sua posição
como ex-capital do estado do Rio de Janeiro, durante o período em que a cidade do Rio
de Janeiro era a capital federal.
Segundo dados da pesquisa do perfil de mobilidade da cidade de Niterói
utilizados em palestra do subsecretário de urbanismo a partir da consulta pública60de

58
Obra do Comperj da Petrobrás, que localiza-se no município de Itaboraí- RJ. Disponível em:
<http://www.petrobras.com.br/pt/nossas-atividades/principais-operacoes/refinarias/complexo-
petroquimico-do-rio-de-janeiro-comperj.htm> Acesso em Julho de 2018.
59
Dados IBGE:https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/niteroi/panorama>
60
Consulta Pública realizada no ano de 2018 realizada pela secretaria de urbanismo da cidade de Niterói,
na qual convidada pelo subsecretário Rogério Gama, auxiliei na análise dos dados, porém que ainda não

37
mobilidade PMUS, a cidade é caracterizada como uma importante ligação de tráfego
entre a atual capital e as demais cidades da região metropolitana e interior do estado. Há
ainda um número representativo de pessoas que possui compromissos de trabalho e/ou
estudo na cidade vizinha, marcando a importância do debate de mobilidade na cidade.
Um grande exemplo também impacto do sistema rodoviário na cidade de Niterói
foi a paralisação dos caminhoneiros de 201861que retirou grande parte dos veículos
automotores individuais e de passeio das ruas do país pela falta de fornecimento de
combustível, o que gerou uma crise a nível nacional do fornecimento, pois demonstrou
também a dependência econômica do transporte de alimentos e serviços do sistema
rodoviário.Niterói também foi impactada de mesmo modo, diminuindo a oferta de
transporte público através dos ônibus e até mesmo aquaviário62, que paralisou a frota de
barcas que interligavam também as cidades de Niterói e do Rio de Janeiro. As opções de
mobilidade ativa na cidade de Niterói para além do transporte rodoviário e aquaviário
são a mobilidade a pé e pela bicicleta, sendo a segunda responsável pelo surgimento de
diversos grupos de ativistas pela bicicleta nos últimos anos na cidade de Niterói,
reivindicando debates sobre direito à cidade, sustentabilidade e acessibilidade. Esse é
um movimento mais amplo a nível nacional a partir da década de 80 quando os
movimentos sociais pela ecologia ganharam força no Brasil após o período de
redemocratização.
No estado do Rio de Janeiro, as primeiras ciclovias foram construídas na orla da
cidade do Rio de Janeiro para a recepção do evento Eco-9263, que demarca a bicicleta
como uma bandeira também sustentável e apresentada como alternativa futura para os
problemas ambientais fruto da poluição do trânsito. Em 2011 os movimentos sociais de
ciclistas ativistas, ou seja, cicloativistas começaram a ganhar força no Rio e em Niterói

foram publicados os resultados oficialmente até a presente data, mas que a consulta à página da pesquisa
está disponível em:
61
Termo polêmico em relação à paralisação da distribuição de alimentos liderada por alguns grupos de
caminhoneiros em todo Brasil no dia20 de maio de 2018 e se estendeu por mais de 1 semana de
paralisação total contra os reajustes frequentes de preços dos combustíveis, pelo fim da cobrança de
pedágio por eixo suspenso e pelo fim do PIS/Cofins sobre o diesel.
62
Disponível em: < https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/barcas-suspendem-linha-de-niteroi-e-
altera-horarios-em-outros-trechos.ghtml> Acesso Julho 2018. 15 Evento mundial sediado no Brasil em
1992 que representou um marco nas conferências de sustentabilidade e ecologia.

63 A Eco-92 foi um evento mundial histórico – a maior conferência já realizada no planeta, com a
presença de delegações de 178 países para discutir meio ambiente e sustentabilidade em 1992. Seu
ineditismo fez com que o encontro resultasse em documentos-referência, e a continuação de sua agenda
foi um dos objetivos da Rio+20, realizada em 2012 também na cidade do Rio de Janeiro.

38
a partir de 2014 se constituíram movimentos cicloativistas que buscavam gerar
visibilidade da causa da bicicleta para a cidade, reivindicando mais infraestrutura,
sinalização e sensibilização para a promoção de uma cultura da bicicleta.
Nesse contexto de movimentação na cidade de Niterói, conheci em 2014 os
coletivos Pedal Sonoro e Massa Crítica tão logo comprei uma bicicleta, o que me
motivou a participar dos movimentos e a conhecer coletivos de cicloativistas feministas
que surgiam não apenas em Niterói como na cidade do Rio de Janeiro. Em 2015
conheci também durante um evento nacional da cultura da Bicicleta, promovida pela
União dos Ciclistas do Brasil - UCB64, o Bicicultura65na cidade de São Paulo, outros
movimentos de cicloativistas feministas, que buscavam integrar uma rede nacional de
trocas, consolidada durante o Fórum Mundial da Bicicleta de 2016. Esse tour pelos
eventos e coletivos me fez perceber a dimensão do ativismo pela bicicleta, e, portanto,
como meu ponto de partida foi essencial para compreender as demandas nas mais
diferentes cidades no Brasil e no Mundo. Essa rede continua a crescer e no ano de 2018
aconteceram consecutivamente dois eventos sobre a cultura da bicicleta organizada
pelos movimentos sociais ativistas, o Bicicultura e o 100 Gurias100Medo66, sendo esse
segundo organizado por e para mulheres cicloativistas, alcançando sua 3a edição.
Outros dois eventos sobre bicicleta também aconteceram, porém se entendem para fora
do círculo cicloativista: o Velo-City Conference67, evento mundial que reúne empresas,
instituições, governos e investidores, contendo uma participação baixa de ativistas, e o
Encontro latino-americano de bicicletas públicas e compartilhadas68, que possuía uma
seletividade aos participantes, sendo organizado e executado para além do ativismo,
com a presença de investidores e governos locais em sua maioria.

64
UCB - Associação de Associações de Bicicleta no Brasil. Disponível em:
<http://www.uniaodeciclistas.org.br/> Acesso Julho 2018.
65
O Bicicultura – Encontro Brasileiro de Mobilidade por Bicicleta e Cicloativismo – é um encontro
anual, organizado pela sociedade civil, para celebrar e promover a cultura da bicicleta como meio de
transporte nas cidades brasileiras. O Bicicultura 2018 aconteceu entre 7 e 9 de Junho. Disponível em: <
http://bicicultura.rio> Acesso Julho 2018. 18 Acesso Julho 2018.
66
Evento nacional exclusivo para mulheres cicloativistas feministas e que teve sua 3a edição na cidade do
Rio de Janeiro nos dias 16 e 17 de Junho. Disponível em: https://www.facebook.com/100gurias100medo/
67
A conferência do Velo-City é organizada pela Federação Europeia de Ciclistas e a principal conferência
internacional de planejamento sobre ciclismo. As conferências são projetadas para incentivar o ciclismo
como parte do transporte diário e recreação. Em 2018 sua edição aconteceu na cidade do Rio de Janeiro
de 12 a 15 de Junho. Disponível em: <https://www.velo-city2018.rio/> Acesso Julho 2018.
68
Entre 9 e 10 de Junho de 2018. Não tenho mais informações pois não foi um evento aberto a inscrições
individuais, apenas ligadas a governos ou empresas. Disponível em: <
http://transporteativo.org.br/ta/?page_id=11230> Acesso Julho 2018.

39
Dentro dos círculos ativistas, cada vez mais existe uma preocupação em
envolver a população para além dos atores já engajados, e uma autocrítica surgiu
inclusive durante a última edição do Bicicultura, que aconteceu dentro do Museu do
Amanhã, um local de acesso limitado e de participação direcionada, com poucas
atividades em espaço público e que pudessem de fato envolver a população, reforçando
estigmas de classe e zona, pois segundo a pesquisa do Perfil Nacional do Ciclista
(2015), grande parte dos usuários de bicicleta estão para além das zonas privilegiadas da
cidade, e utilizam a bicicleta como forma de mobilidade por ser uma opção econômica e
rápida. O uso da bicicleta está para além dos privilégios, pois não alcança apenas quem
escolheu não usar o automóvel, mas quem substitui os demais meios de mobilidade
ativa como ônibus ou trem pela bicicleta como meio de mobilidade urbana ao trabalho,
muito mais que para o lazer.
Nesse sentido, a ideia de acesso à cidade é muito presente no discurso dos
coletivos, que tem desenvolvido as interseções com os movimentos sociais, eclodindo
ações que abarquem uma diversidade de pessoas na cidade e alcancem a periferia, por
exemplo. Esse é o exemplo do projeto Preta Vem de Bike69, do La Frida Bike, que
busca ensinar mulheres negras a pedalarem e a acessarem a cidade de diversas formas
também como através de oficinas e atividades artísticas. O La Frida apresenta os
recortes de gênero e raça como fundamentais na construção da mobilidade nas cidades,
e tem impactado nas ações para com os movimentos de cicloativistas de forma a pensar
estratégias de fortalecimento com demais movimentos sociais.
Em abril de 2017, uma notícia do jornal O Globo70 me chamou a atenção,
tratando o número de ciclistas teria dobrado em relação aos últimos dois anos na cidade
de Niterói, e as explicações para tal seriam das mais diversas, de impacto da construção
de novas infraestruturas na promoção do uso da bicicleta, ou a geografia plana que
permite alcançar através da bicicleta toda a cidade num raio de 5km, diante
principalmente do trânsito na cidade. Buscando mais dados sobre o assunto, em 2017 o
coletivo Mobilidade Niterói, que na ausência de produção de dados pela prefeitura de

69
La Frida Bike é um projeto de ciclofeminismo e poesia que agrega projetos sociais voltados à periferia
e às mulheres negras. Disponível em: <http://www.lafridabike.com/> Acesso em Julho 2018 22
Disponível em: < https://oglobo.globo.com/rio/bairros/numero-de-bicicletas-nas-ruas-de-niteroi-dobra-
em-dois-anos-21238402> Acesso Julho de 2018.
70
Disponível em: < https://oglobo.globo.com/rio/bairros/numero-de-bicicletas-nas-ruas-de-niteroi-dobra-
em-dois-anos-21238402> Acesso Julho de 2018.

40
Niterói realiza pesquisas quantitativas na cidade de forma reconhecida pela prefeitura e
com dados compartilhados pela mesma, apresentou um aumento nesse ano de quase
20% só de ciclistas mulheres na cidade desde os números de 2015. É uma porcentagem
considerável e que justifica a escolha da cidade como campo de pesquisa. Mas como
esses dados foram constituídos? Como a cidade contribui para tal crescimento, seja
através dos movimentos sociais e/ou das políticas públicas de mobilidade pela bicicleta?
A produção de dados através de pesquisa é uma das garantias da validade
científica a partir do confronto de diferentes dados e da produção de outros a partir da
contribuição das pessoas em campo. A tarefa do etnógrafo é integrar a visão “nativa” na
pesquisa para entender a percepção da realidade a partir dos usuários do aparelho
público, que constroem cotidianamente a cidade e são construídos também por seus
acessos e fronteiras. Eu comecei frequentando as atividades de bicicleta na cidade,
desde encontros ativistas, a passeios lúdicos nas cidades de Niterói e Rio de Janeiro, e
então passei a explorar o olhar atento em ciclovias e ciclofaixas da cidade, até que
comecei a realizar também contagens dos ciclistas a fim de construir dados inexistentes
desde 2015 sobre gênero na mobilidade por bicicleta em Niterói.
Por conta da localização do bicicletário próximo a orla e em frente a uma das
principais ciclovias da cidade, que divide a região central e realiza a ligação com bairros
das zonas norte e sul da cidade, escolhi um ponto localizado no primeiro quarteirão,
para realizar minha própria contagem de ciclistas para ter uma noção da circulação na
região e da desigualdade de gênero na ciclomobilidade da cidade. A contagem oi
realizada de maneira manual, na qual eu contava o número de bicicletas que passavam,
tentando incluir os dados de direção (Barcas –B ou Hospital Antonio Pedro-AP). Além
disso contabilizava o que eu percebia como gênero masculino ou feminino, além do
modelo da bicicleta (entre urbana/hibrida, speed, elétrica, dobrável, cargueira ou
triciclo). Eu tirei fotos próprias para que pudesse ilustrar a minha busca pela percepção
da diversidade de pessoas e bicicletas que passavam por mim. A exemplo, segue a foto
abaixo com legenda:

41
Figura 2Mulher pedalando na ciclovia da Avenida Amaral Peixoto. modelo da bicicleta: urbana
na direção B (Barcas) na faixa de hora entre 7h ás 9h.

Figura 3Ciclistas em grupo de gênero misto subindo a ciclovia Amaral peixoto na direção AP (Hospital
Antonio Pedro) em modelos de bicicletas varias na faixa de hora entre 17h às 19h

42
Durante minha contagem passaram por hora entre 180 à 260 ciclistas por hora,
sendo deste número apenas de 37 a 40 mulheres de bicicleta. Esses são números que
demonstram a desigualdade de circulação de mulheres em relação ao número de
ciclistas observados, porém em comparação aos números apresentados de contagens
realizadas na mesma ciclovia pela prefeitura de Niterói e do Coletivo Mobilidade
Niterói durante o primeiro semestre de 2018, são bastante representativos que há um
pequeno crescimento da presença das mulheres nas estatísticas, mesmo que ainda com
um caminho à equidade a ser percorrido. Entretanto, para analisar essa divisão de
gênero é necessário também analisar a relação dos ciclistas em geral com o ambiente,
para pensar o gênero em relação a interação com a cidade, portanto as contagens
realizadas por mim vão além da busca por números, mas pelo entendimento dos padrões
de comportamento das mulheres em circulação, e portanto a necessidade da
investigação para além dos números, mas em contato com as pessoas.
As obras em prol da ciclomobilidade possuem um papel importante na
visibilidade da bicicleta na cidade, e Niterói possui algumas obras que são de grande
importância, assim como os investimentos em paraciclos71 pela cidade, e muitas pessoas
inclusive dentre os movimentos cicloativistas contam que foram estimulados a começar
a pedalar por conta dessas novas obras na cidade, como o recente túnel entre os bairros
de Charitas e Cafubá, que possui uma ciclovia em toda sua extensão, além do
Bicicletário localizado na Praça Araribóia. As obras muitas vezes não tem ligação entre
si, o que gera conflitos, principalmente por atrair novos pedalantes que carecem de
orientações sobre como realizar trajetos, ou ainda pelo desproporcional investimento em
áreas privilegiadas em relação a regiões periféricas, porém esse é um investimento claro
e que pode ser percebido pelo grande fluxo de bicicletas em circulação constante.
Algumas ciclovias chegam a engarrafar nos horários de grande circulação de saída da
manhã e retorno à noite.
Com grande movimento de bicicletas pelas ruas é possível perceber as diferentes
performances que a bicicleta possibilita, como seus diversos usos, pessoas e até distintas
bicicletas propriamente, que determinam formas de se mover também
diferenciadas,como bicicletas de passeio ou de corrida, assim como um mercado que se
abre para acessórios, bicicletas e também roupas próprias para pedalar. Isso leva a
diferentes construções de grupos que reivindicam a ideia da identidade ciclista, dentre

71
Aparato destinado ao estacionamento de bicicletas.O modelo mais popular na cidade de Niterói e
espalhado por diversos pontos da cidade é o de “U” invertido no chão e soldado no solo.

43
suas diversas formas, além da existência de performances que ficam à margem dessas
classificações. Que identidades são produzidas pela bicicleta? Como o recorte de gênero
impacta no dia-a-dia das mulheres que pedalam na cidade de Niteroi? Para isso é
preciso pensar como o Bicicletário público pode me ajudar a buscar respostas para essas
questões no âmbito de buscar entender antes os territórios, para ai sim refletir sobre a
ocupação desse espaço por diferentes vivências e atores.

2.2 O BICICLETÁRIO

Figura 4:Imagem do Site do programa Niterói de Bicicleta, onde tem uma aba específica sobre o
Bicicletário Araribóia. Disponível em: <http://www.niteroidebicicleta.rj.gov.br/>

“O Bicicletário Arariboia é um equipamento público


construído e administrado pela Prefeitura Municipal de Niterói.
Seu uso é livre e gratuito a todos, moradores e visitantes da
cidade, mediante registro no local durante o horário de
funcionamento. Para registrar-se, o interessado deve levar
consigo: carteira de identidade, CPF e sua bicicleta. No ato do
registro o mesmo deverá assinar termo de uso onde estão
descritos todas as regras internas do equipamento”.
Fonte:<http://www.niteroidebicicleta.rj.gov.br/bicicletarioarariboia/>

44
Desde a inauguração do primeiro Bicicletário Público de Niterói meu trajeto não
chegava até o centro da cidade, pois me dirigia quase todos os dias à universidade, o que
me fez demorar a estreá-lo, apesar de estar curiosa e ansiosa para conhecê-lo. Desde
2014 os grupos de cicloativistas da cidade realizavam captações de assinaturas para
entregar ao coordenador na época do programa Niterói de Bicicleta, afim de embasar a
solicitação da sua construção. Foram necessários alguns anos, mas em março de 201772,
na gestão da coordenadora do programa Isabela Ledo, o bicicletário foi inaugurado.
Essa foi uma construção de muitas mãos e que simboliza um marco na gestão da
bicicleta na cidade de Niterói.
Segundo Tatiane, administradora do bicicletário de Niterói, o bicicletário possui
atualmente 8 mil bicicletas cadastradas e mais de 6 mil usuários cadastrados – cada
usuário pode cadastrar até 3 bicicletas – com perfis de usuários bem diversificados, mas
principalmente composta por universitários, pessoas mais velhas e trabalhadores que
realizam o percurso Rio-Niterói, mas também conta com pessoas que realizam
atividades Niterói-São Gonçalo. É possível deixar a bicicleta por pernoite de 48h, nesse
esquema hoje pernoitam em torno de 100 bicicletas. Tem ainda casos de pessoas que
utilizam a própria bicicleta como trabalho, seja para entregas ou para carregar
ferramentas para trabalho. São ao todo 446 vagas com expectativas de aumento futuro,
pois a demanda é altíssima, alcançando a lotação praticamente todos os dias, nos
horários de movimentação da manhã e noite, e também no meio da tarde.

72
Notícia disponível em <http://www.ofluminense.com.br/pt-br/cidades/biciclet%C3%A1rio-arariboia-
%C3%A9-inaugurado-no-centro-de-niter%C3%B3i> Acesso em Julho de 2018

45
Figura 5Localização do Bicicletário: Ao lado das Barcas, na rua Visconde do Rio Branco e próxima da
ciclovia da Rua Amaral Peixoto. Imagens tiradas do site do Programa Niterói de Bicicleta

Em Pesquisa73realizada em Julho de 2017 e 2018 o perfil dos usuários do


bicicletário registrou um aumento de 27,8% de mulheres em 2017 para 29,9%, que
mesmo operando em grande desigualdade de gênero, registra o maior índice de
mulheres relacionadas ao uso da bicicleta no país, que segundo a pesquisa do perfil do
ciclista brasileiro beirava os 10%. O perfil segue descrevendo uma grande incidência de
pessoas de 20 a 40 anos, em maioria de graduação completa e que utilizam unicamente
a bicicleta ou que integram seu uso com outro modal (barcas ou ônibus). As distancias
variam principalmente até 20 minutos de distância e durante 5/6 dias da semana,
percorrendo na maioria até 2,5km (tanto residentes da Zona Sul quanto da Zona Norte
da Cidade). 49% não usavam a bicicleta antes e passaram a utilizá-la também em mais
tarefas a partir da construção do bicicletário. A maior substituição pela bicicleta é
registrada em 62% de antigos usuários de ônibus e 12,3% que antes utilizavam a
mobilidade a pé. Ao todo foram 350 entrevistados com uma pesquisa de 95% de
confiança.

73
Disponível em:
<http://www.ppp.niteroi.rj.gov.br/ANEXO_1_Relat%C3%B3rio_preliminar_da_pesquisa_do_biciclet%C
3%A1rio.pdf>

46
Para além dos dados dessa consulta, eu realizei contagens e entrevistas com
diferentes usuárias do bicicletário, por vezes entrevistadas dentro dasubstituição
bicicletário e também em outros locais como cafés, no calçadão da praia e ainda
arredores das ciclovias. Dentre a maior parte das minhas entrevistadas, elas
privilegiavam a utilização do bicicletário em momentos específicos em que
necessitavam realizar uma integração para outra cidade, pois quando circulavam dentro
da cidade, privilegiavam a utilização exclusiva da bicicleta. O bicicletário foi um ponto
de encontro prático e bastante receptivo, pois sua utilização supera as expectativas em
sua construção, incentivando ainda mais novos usuários pela simples existência e
permanência da estrutura em local de fácil acesso. Segundo a Tatiana, há um projeto de
construção de um novo bicicletário em outro ponto do centro da cidade, próximo à
prefeitura. Segundo a coordenadora do programa Niterói de Bicicleta, Claudia Tavares
sobre como aconteceu a construção da negociação do Bicicletário:

“Por inicio pensava se em contactar as barcas para realizar um sistema


parecido com o existente com a supervia no rio, mas acabou que a mobilização
para fazer acabou sendo em um terreno da prefeitura, cedido a um
estacionamento, mas já era um plano ter o bicicletário, para alem do abaixo
assinado que teve então uma coisa ajudou a outra, pois é bom quando a
sociedade civil pressiona também”.

Durante atividades promovidas pelo coletivo pedal Sonoro e Massa Crítica, fora
coletados entre 2014 e 2015 3 mil assinaturas que representavam o interesse da sociedade civil
para construção de um Bicicletário Público. O abaixo-assinado foi entregue na prefeitura pelos
coletivos, e integraram a justificativa para a construção do ambiente, inaugurado em março de
2017, mesmo com atraso. Claudia continua:

“Desde a inauguração já estava quase na lotação, mas a obra


demorou um pouco e recebemos criticas, mas também acho que ele
trouxe boas surpresas pra gente porque a demanda é desconhecida,
quando você coloca já gera mais demanda. 416 vagas com mais 30
vagas moveis e lotou de novo.”.

Para a ciclista Beatriz Nunez, o bicicletário foi uma boa aquisição para a cidade:

47
“Antes de conhecer o bicicletário é difícil acreditar que a
prefeitura tenha feito algo tão bom. És uper organizado, seguro, porque
varias e varias vezes choveu e não tinha como pegar a minha bicicleta.
passou o final de semana lá. Não rola assalto lá. Lá é bem seguro, cara.
(...) Faz 1 ano que uso lá (o bicicletário) Quando eu entrei, ache que
tinha que pagar algo, porque a parada é tão organizada! Porra,
bebedouro, parada pra lavar a mão, tendeu?”.

A estrutura do Bicicletário possui vagas em ganchos e paraciclos no chão, após uma


estrutura transparente de vidros e uma guarita onde é feito o controle de entrada e saída
mediante a identificação com numeração na bicicleta. O teto é aberto, com apenas algumas
calhas para proteção das bicicletas sob a chuva ou sol, mas que mantém os corredores com teto
aberto e vista para a orla da cidade de Niterói, bem ao lado da estação de Barcas. Existe um
banheiro compartilhado, totem de autorreparos e uma pia. Havia bancos para descanso que
foram recentemente retirados para dar lugar a novas vagas no chão devido a lotação constante
da estrutura.
O registro é realizado com rapidez, mediante a apresentação de documento para
completar uma ficha contendo nome completo, CPF, email, telefone, foto da bicicleta
modelo e cor. A diversidade para Tatiane é um importante marcador: “Temos bicicleta
boa, mais ou menos, bicicleta ruim”. E o cadastro pode ser realizado mesmo para
menores de 16 anos, mediante o acompanhamento de um responsável. Há também uma
“grande rotatividade durante todo o dia. Gente que vem com roupa social, roupa de
acadêmica, gente que parece ter muita grana, gente que não parece ter grana nenhuma.
Aqui é muito diversificado”.

A própria Tatiane aponta a importância do bicicletário como um incentivo para


sua mobilidade pela bicicleta na cidade:

“Comum mês que eu vim pra cá (trabalhar no bicicletario) eu vi pessoas


que vinham de mais longe que eu, mais velhas, ai eu comprei uma bike e
comecei a vir de bicicleta pra Ca, na calçada na alameda (zona norte) e depois
pegava a são Lourenço (ciclovia no bairro Barreto) e saia na faixa para o centro.
Virou o meu meio de transporte. Meu filho, por exemplo, não gosta de
andar de ônibus mais “ah, mas eu não quero, quero ir de bicicleta” fica enjoado
no ônibus, por causa do transito mesmo. Ai eu vi que é diferente, as pessoas

48
ficam suando, mas chegam com uma energia diferente, fazem um exercício e
ficam melhores, ai peguei isso pra mim também, pra sair do sedentarismo”.

Segundo a pesquisa realizada em 2018 sobre o perfil de ciclistas que passam


pelo bicicletário, diferente da minha contagem que registrou uma média de 18% de
ciclistas mulheres, o perfil alcança 27,8% de mulheres que frequentam o espaço, o que
me parece sugerir o uso feminino maior em horários alternativos aos picos de trabalho,
como meio da tarde ou finais de semana. O perfil da pesquisa do bicicletário sugere
então, 72% de homens ciclistas usuários, em grande idade com idades de 20 a 39 anos,
com graduação completa, renda de 1 a 5 salários mínimos, com uso desde menos de 6
meses a mais de 5 anos, com trajetos curtos de até 30 minutos e distância percorrida de
até 3km.
A integração com outros modais de transporte também aparece como alta (69%),
além de grande parte de integração com a cidade do Rio de Janeiro pela proximidade
com as barcas (54%), ou para deslocamento na cidade (44%) sendo a integração com a
cidade de São Gonçalo a menor parte da fatia(pouco mais de 1%). Esses usuários
utilizam a bicicleta de 5 a 6 dias por semana, ou seja, quase todos os dias, e grande
parte, quase 50% passaram a usar a bike por conta do estimulo à construção do
bicicletário ou da estrutura cicloviarias como ciclofaixas e ciclorrotas, adotando o modal
bicicleta nas suas tarefas diárias, trocando principalmente o transporte público do ônibus
pela bicicleta (69%).
Os retornos são muito positivos, que inspiram a ampliação e criação de novos
bicicletários pela prefeitura. Segundo Claudia:

“Agora a SMU já reservou o espaço para dobrar de tamanho, porque


não adianta colocar mais 50, 100, a gente precisa de mais área pra botar mais
bicicletas. Uma opção seria transformar o estacionamento numa praça para uso
também. A ideia é de ter um conforto para o ciclista com oficina, bebedouro e
banheiro compartilhado”.

49
2.3 PERCEPÇÕES DA CIDADE

Durante a última contagem de ciclistas que realizei manualmente no final da


ciclovia da Amaral Peixoto uma situação me chamou a atenção. Escolhi tal ponto, pois
se localiza quase na integração de faixa que interliga a ciclovia ao bicicletário, além de
me permitir realizar tais contagem compreendendo o movimento de pedalantes em
ambas as direções além de abarcar pessoas que vem do Rio, da Zona Sul e Zona Norte
da cidade. Como já havia contribuído em algumas contagens em parceria com o
Mobilidade Niterói, levei um colete reflexivo – igual ao usado por motociclistas – para
gerar confiabilidade, afinal eu estava sozinha com uma prancheta na mão e munida de
uma câmera fotográfica nos horário de 7h as 9h da manhã e 17h30 as 19h30 da noite74.
Eu contei todos os ciclistas que passaram por mim e anotei as variáveis de gênero,
aparente função da bicicleta (mobilidade, trabalho, esporte) e o modelo da bicicleta
(speed, urbana, bmx, elétrica, dobrável, cargueira ou triciclo). Surpreendentemente
houve ainda a presença de bicicletas infantis, patinete, skate e muitas caronas sobre a
bicicleta (mais de 1 ciclista).
Uma das minhas expectativas – que não se realizou – foi de que as pessoas que
passaram pedalando parariam para falar comigo, porem algumas se quer perceberam
que eu estava ali apesar do colete amarelo-limão reflexivo. Na verdade, as únicas
pessoas que vieram se dirigir a mim em todo o momento da contagem – para além da
interação de conhecidos que quando me viam de suas bikes tocavam a campainha –
foram dois homens motoristas de automóveis. O primeiro, encostou o carro ao lado da
ciclovia – que possui segregadores que tentam impedir o avanço de carros sobre a
passagem das bicicleta – e saiu do carro sem ligar o pisca alerta para acessar um dos
comércios localizados ali na calçada, procedimento que todos fazem ali, pois é local
destinado a paradas rápidas e descarga de produtos e pessoas, e não de estacionamento.
Percebi que ele me olhava, mas continuei a dar conta da quase incessante contagem de
bicicletas e quando menos percebi ele tinha se aproximado de mim. Tão logo ele me
perguntou se eu era da prefeitura e sem me deixar responder já continuou se justificando
do estacionamento do seu carro. Quando pude falar algo apenas disse que não sou da
prefeitura e que estava realizando outro trabalho. Eu então me virei para continuar a

74
Em tais contagens eu segui as instruções do Guia de Contagem de Ciclista, fornecido pela ONG carioca
Transporte Ativo, uma das referencias no Brasil quanto a debates e realização de pesquisas sobre
bicicleta. Disponível em: http://transporteativo.org.br/ta/?page_id=11178

50
contagem ele então se preparou para sair, ainda desconfiado, que eu puxassem um talão
de multas.
O segundo me pareceu ser motorista de aplicativo, ele invadiu com o carro a
ciclovia mesmo por cima dos segregadores para que a sua passageira descesse do carro
no meio da ciclovia e mais próxima a calçada. Ele demorou um pouco mexendo no
celular fixado no painel quando começaram a vir novos ciclistas na ciclovia e eu
preparei minha prancheta e minha câmera para tentar registrar algumas fotos,
principalmente das mulheres, meu alvo de interesse na pesquisa. Foi quando ele
encostou o carro ao meu lado, abaixou o vidro e se dirigiu a mim em tom grosso e alto
“- Pô, você não vai me multar não, né? Da uma força ai”. e eu continuei quieta, pois no
momento ainda passavam ciclistas e eu precisava computar os dados na prancheta. E ele
continuou insistindo, me chamando e se justificando, porém em tom alto “- Pô, eu sou
trabalhador, virei a noite cara...”, até que eu senti que precisava falar algo antes que ele
saísse do carro e viesse até a mim. E então retruquei apenas “Senhor, estou fazendo o
meu trabalho, com licença” e fingi anotar algo desviando o olhar. Ele insistiu ainda mais
algumas vezes “-Não acredito que você vai fazer isso com alguém de bem” e começou a
ser ameaçador “Olha pra mim garota! Tu não vai fazer isso comigo não!” E eu apenas
retruquei mais uma vez “Estou apenas fazendo o meu trabalho” e repeti isso algumas
vezes torcendo para que o medo dele de ser multado o fizesse apenas ir embora, de
forma a não prolongar o conflito ou dele sair do carro e exigir uma identificação minha
e até me agredir. Não queria me afastar da ciclovia também, pois caso perdesse algum
ciclista de vista meu tempo na contagem seria arruinado, portanto andei para algum
outro ponto da caçada, ainda do lado da ciclovia no mesmo quarteirão, até que ele
desistiu e arrancou com o carro – que nesse tempo todo continuou bloqueando a
ciclovia e sendo alvo de xingamentos por quem passava, o que o deixava mais nervoso.
Eu vi o carro arrancando e ele gritando algo que parecia com “VADIAAA!!!!!”.

51
Figura 6:Imagem do carro no qual o motorista me abordou. Capturei sem querer enquanto
fotografava a mulher sobre a bicicleta. Foto de minha autoria registrada no dia 27/11/2018.

Esse foi o meu maior teste de paciente em um momento de pesquisa, pois eu


tenho um temperamento forte e em grande parte das situações do meu deslocamento eu
acabo retrucando e comprando uma briga em caso de assédio, mas consegui manter a
calma pois pensava muito na minha segurança a pé e ainda na importância de estar ali
como pesquisadora. Não me surpreendeu que na perda da argumentação em algum
momento o cidadão apelaria para um xingamento remetente a uma desqualificação pelo
gênero. Refleti bastante sobre o impacto do meu gênero como pesquisadora naquele
momento. Como seria se o pesquisador fosse homem? Como essas relações de gênero
parecem importar no debate da mobilidade urbana? E o modo de investigar essa relação
a partir além da minha experiência individualizada é refletir a partir do relato de demais
mulheres que utilizam a bicicleta no dia a dia e movimento a partir dessa relação.

52
CAP ÍTULO 3

GÊNERO

53
Nesse capítulo, condensarei grande parte das minhas perguntas para as
entrevistadas que tratavam do impacto do gênero no cruzamento com a mobilidade
delas. Primeiro realizava perguntas mais indiretas sobre o caminho que elas percorriam
os desafios encontrados nesse percurso, e ainda como elas lidavam com esses
problemas. Por fim fazia uma pergunta mais direta, sobre o sentimento de visibilidade
na bicicleta, de assédio, violência e ainda se sentiam algum impacto do gênero delas
nesse percurso.
Nesse capítulo vou apresentar mais detalhadamente as minhas interlocutoras e os
dados etnográficos das entrevistas a fim de investigar a mobilidade feminina do uso da
bicicleta no dia-a-dia na cidade de Niterói.
Ao todo foram 10 entrevistadas com idades de 22 a 61 anos, classe média, com
graduação ou cursando o 3º grau, moradoras da cidade de Niterói nas regiões Praias da
Baía (sul e centro) e Norte. Uma delas é a coordenadora do programa de Niterói de
Bicicleta e outra administradora do Bicicletário Araribóia, mas que também partilharam
suas mobilidades individuais através da bicicleta, e as demais não representam governo,
ONGs ou movimentos sociais. As entrevistas aconteceram no segundo semestre de
2018 e primeiro semestre de 2019, e todas as entrevistadas estão cadastradas no
Bicicletário Araribóia localizado na região central de Niterói. Conheci algumas delas
durante visitas ao bicicletário e outras durante meu próprio percurso na cidade, em
ciclovias e/ou calçadas próximas a paraciclos na qual em maioria estava eu mesma de
bicicleta. Minhas tentativas de abordagem a pé foram quase todas negativas, por muitos
passarem apressadamente a caminho do trabalho depois de estacionar a bicicleta durante
o dia, ou por vezes no horário do final da tarde/noite me evitavam e apressavam o passo
imagino eu pensando que poderia ser uma vendedora ou oferecendo algo, pois já
passavam negando antes mesmo de eu dirigir minha palavra. Em outubro de 2018, por
exemplo, decidi não utilizar como campo a abordagem a pé por conta das eleições, que
lotavam as ruas de pessoas contratadas para abordar transeuntes com materiais de
campanha.
Em campo realizei minhas abordagens trajando roupas comuns, sem se
destinarem especificamente a utilização da bicicleta, porém portando uma prancheta
para anotar os contatos, salvo a situação das contagens de ciclistas, nas quais utilizei um
colete refletivo a fim de garantir credibilidade na coleta de dados na ciclovia, mediante
a possibilidade de desconfiança dos mesmos enquanto realizava contagens e tirava
fotografias. Esse uso do colete inclusive foi uma orientação de outros pesquisadores que

54
já tinham realizado a contagem de ciclistas na cidade de Niterói em outros momentos.
Não tive quaisquer problemas com os ciclistas que me viram realizando anotações –
muitos até sorriram para mim -, apenas tive problemas com algumas abordagens de
motoristas que estacionavam irregularmente ao lado ou sobre a ciclovia e vinham a ter
comigo considerando que eu fosse uma funcionária da prefeitura, resultando em um
caso de intimidação e agressão verbal sofrida em campo.
As disputas de poder nas ruas impactam e são impactadas pela forma como nos
identificamos e nos posicionamos, seja a partir do trânsito na relação entre condutores
de diferentes veículos, seja nas relações de gênero, e ainda na confluência de ambas.
Diferentes papéis sociais no transito permitem diferentes experiências e enfrentamentos,
não apenas na mudança do veículo em curso, mas também o tipo de mobilidade por: a)
trabalho para empresas privadas: daqueles que exercem a mobilidade como profissão,
como taxistas, motorista de ônibus, motoristas de aplicativos, entregadores de moto ou
bicicleta, motoristas de caminhão; b) mobilidade própria: como a mobilidade individual
para compras, estudos e até o local de trabalho; e ainda c) os órgãos reguladores do
trânsito, segurança e exceções como serviços de socorro que possuem preferência na
passagem diante emergências: agentes de trânsito, polícia militar e guarda municipal -
que na cidade de Niterói utilizam bicicletas para patrulha e pelo programa de segurança
Niterói Presente75 -, reboques, ambulâncias e bombeiros.
Quanto às técnicas de investigação, utilizo, para além da utilização de dados
quantitativos de contagens realizadas pela prefeitura, instituições e ONGs, a observação
e em alguns momentos participação durante eventos e atividades promovidas tanto pela
sociedade civil, academia ou pela prefeitura da cidade de Niterói, e ainda entrevistas
com as 10 interlocutoras que possuem cadastro Bicicletário Araribóia. Nas contagens de
ciclistas que realizei na ciclovia Amaral Peixoto, importante rota de do centro da cidade
de Niterói, sobretudo por realizar a ligação entre o Bicicletário Araribóia e as demais
regiões da cidade e até ligação com o município de São Gonçalo. Minha intenção era
realizar uma medição do fluxo de ciclistas que circulavam na ciclovia, analisando
primeiramente as categorias Homem/Mulher, Modelo da bicicleta

75
Programa Niterói Presente é um convênio do Niterói Presente entre a prefeitura com o governo do
estado do Rio de Janeiro e faz parte do Programa Segurança Presente, também chamado de Sociedade
Segura que contrata policiais de folga, da reserva e civis egressos das Forças Armadas para reforçar o
policiamento em algumas regiões do estado. Disponível em:
<http://www.rj.gov.br/web/imprensa/exibeconteudo?article-id=2838847> Acesso 30 de junho de 2019

55
urbana/elétrica/speed/cargueira/dobrável e a direção (Barcas ou Icaraí/Barreto). A
categoria Homem/Mulher foi construída a partir da percepção de performance de gênero
que é compartilhada pelo indivíduo, a forma como a pessoa se apresenta em sociedade.

“se alguém „é‟ uma mulher, isso certamente não é tudo o que
esse alguém é (...) o gênero estabelece interseções com modalidades
raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades
discursivamente constituídas (...) [e] se tornou impossível separar a
noção de „gênero‟ das interseções políticas e culturais em que
invariavelmente ela é produzida e mantida”(BUTLER, 2003, p. 20).

Nessa etapa não pude porem realizar uma investigação mais a fundo e por isso
recorri ao binarismo Homem e Mulher como as categorias de distinção possíveis para
análise, como é a metodologia utilizada nas contagens de ciclistas em diferentes
manuais de pesquisa como aquelas que são realizadas nas contagens oficiais de ONGs e
governo para construir a noção de gênero/sexo.
Nas entrevistas utilizei um roteiro de perguntas que variava a ordem das mesmas
podendo se ajustar ao envolvimento da entrevistada para com cada questão, pois sendo
perguntas abertas, a intenção era captar a interpretação de cada questão por cada uma.
A partir do roteiro (ANEXO 1) pude então analisar as respostas das entrevistas a
fim de compreender as diferentes percepções de um mesmo tema, que comparado as
pesquisas de dados brutos realizadas como o Perfil do Ciclista Brasileiro (2015) e com
auxilio das contagens pude analisar o que será investigado nos capítulos subseguintes a
partir das categorias de corpo, gênero e identidade.

56
3.1 CORPO E MOBILIDADE

Um dos eventos marcantes durante a infância é o aprender a pedalar. Muitas


pessoas possuem histórias sobre esse evento, mesmo em casos nos quais não tenham
sido bem sucedidos. Esse lado lúdico da bicicleta permite explorar as questões
relacionadas ao aprendizado da bicicleta, como uma técnica a ser desenvolvida sobre a
diversidade de corpos, histórias e aprendizados. A bicicleta demanda uma história
corporal desenvolvida em diferentes partes do corpo, como pernas e pés, abdômen,
pélvis, ombro, e até a cabeça. Para pedalar é necessário utilizar todo o seu corpo a fim
de encontrar um ponto de equilíbrio no centro do movimento, permitindo o
deslocamento através da força dos pedais em conjunto com a direção a ser seguida.
Tudo isso demanda um aprendizado corporal (Wacquant, 2002) específico, e que
mesmo diante de inseguranças, dúvidas e até possíveis traumas, uma vez aprendido
existe uma memória do corpo, que permanece. A aprendizagem do movimento como
esporte demanda o treinamento de habilidades específicas como a realizar curvas, as
curvas, descida de rampas, como passar marchas... sem contar os diferentes modelos de
bicicletas, que exigem adaptações dentre posições do guidão, altura do selim (banco), e
até modelos de selim que se adaptem à anatomias femininas.

Figura 6: Propaganda da fabricante de bicicletas Monark vendendo diferentes modelos de


bicicleta masculino e feminino. Na imagem aparece uma família de bicicleta e com seus diferentes

57
modelos, sendo uma criança de uniforrme escolar, um homem adulto de uniforme/macacão que parece ser
de trabalho e mulher com roupas cotidianas na qual não fica claro seu trajeto. Fonte: Google Imagens

Figuras 7 e 8: Propaganda da fabricante de bicicletas Caloi apresentando o modelo feminino de


bicicleta Ceci, com uma mulher sentada na bicicleta com quadro feminino, composta de uma cestinha na
qual ela leva um animal de pelúcia branco e sem bolsas ou mochilas, indicando lazer; Propaganda do
modelo equivalente, Brisa, da fabricante Monark que descreve: “Monark Brisa, uma bicicleta inspirada na
própria mulher! Delicada, em tons suaves, com estrutura leve e resistente. E por isso mesmo super
especial! Toda mulher merece um pouco de Brisa”. Próxima á bicicleta está inscrita a palavra infância.Ela
possui os equipamentos de cestinha e protetor de selim (para não manchar a roupa de graxa da corrente).
Fonte: Google Imagens.

58
Figura 9: Propaganda da fabricante de bicicletas Monark com a descrição “Monark vai ao trabalho... e a
vida corre feliz”. Na imagem aparecem 3 homens que parecem estar saindo do local de trabalho com suas
respectivas bicicletas.

As técnicas corporais que envolvem o ato de pedalar se iniciam antes de subir na


bicicleta, que consiste no aprendizado que é transmitido em grande parte na infância,
que é o saber pedalar. Os diferentes modelos de bicicleta alteram também esse
aprendizado, pois utilizar uma bicicleta dobrável no qual se senta com a coluna em um
ângulo de 90º graus além de rodas pequenas tamanho aro 20 é uma experiência distinta
que pedalar quase “deitado” sobre uma bicicleta tipo speed(corrida) com grandes rodas
aro 27 ¼, próprias para corrida. O corpo se ajusta a diferentes modelos e formas de
pedalar, o que constrói o conceito de bikefit, uma consulta feita com profissionais para
aprender a regular a bicicleta para a altura das pernas, braços e tronco, de modo que
cada corpo demanda diferentes ajustes. Para Danielle76, 22 anos, estudante da UFF, a
bicicleta garante seu acesso ao campus, que na sua ausência a obriga a realizar uma
distancia curta, porém “chata” até o campus da UFF a pé.
As diferentes formas de utilizar a bicicleta também são dados interessantes, para
o trabalho, ou lazer, ou para de fato trabalhar com a bicicleta realizando entregas. Estas
possibilidades geram dados distintos que pretendo analisar também através da ideia de
performances distintas, como rituais de preparação para o ato de pedalar, que envolvem
76
Danielle, 22 anos, estudante de RI na UFF, moradora do centro de Niterói.

59
acessórios e roupas específicas como roupas que garantam a mobilidade, capacete, luzes
refletoras, sapatilhas com encaixe nos pedais, presilhas reflexivas, luvas próprias e
mochilas do tipo alforje77, por exemplo.
Usos distintos da bicicleta geram performances que impactam nos variados
modelos de bicicleta, assim como diferentes categorias de identidade dentre a
mobilidade pela bicicleta como os cicloativistas, os fixeiros, os ciclistas esportistas e de
competição, os atletas de bicicleta tipo bmx, ciclistas de montain bike, os cicloturistas,
ciclistas mensageiros, entre outras possibilidades de grupos que pluralizam as relações
com a bicicleta. Para Alice78 a bicicleta e uma extensão do seu corpo, que necessita de
cuidados tal qual ela própria “a bicicleta é a minha filha, é como se ela pudesse falar
comigo!” Tais grupos serão melhor explorados no capítulo 4.
A relação entre esses grupos e o engajamento é também um reflexo nas
performances de gênero variadas nos determinados grupos. Gênero e mobilidade de
maneira geral acompanham a questão da visibilidade nas ruas e a relação com distintas
formas de violência: a violência urbana, violência contra a mulher e a violência no
trânsito, e dentre os grupos mais politizados existem histórias e debates quanto a
reivindicação de direitos e principalmente, embates quanto a performance de gênero em
meio ao trânsito.
E a diferentes bicicletas, multiplicam-se os diferentes usos, e ainda demandam
adaptações conforme o objetivo, seja esporte, lazer, ativismo, trabalho, e também
mobilidade urbana. As roupas e acessórios usados para pedalar eram itens de grande
curiosidade investigativa uma vez que o uso cotidiano da bicicleta exige uma adaptação,
e o mercado inclusive tem investido em roupas e equipamentos próprios para as
mulheres ciclistas, como bermudas e blusas femininas que para além da estética, agora
são produzidas também incluindo tecnologias que acompanham os trajes masculinos
antes únicos no mercado. Um exemplo é o macacão tipo bretelle79, que segundo relatos
de mulheres que participam também de competições, esse modelo chegou a pouco
tempo no Brasil como um modelo feminino para melhoria do desempenho, pois esse
macacão possuía um único modelo com alças finas, que incomodam na região dos seios,
pois eram projetados para corpos masculinos apenas.

77
Tipo de bolsa que se prende na parte traseira da bicicleta para transportar itens. Como alforje para
motocicletas e cavalaria.
78
Alice Leal, 25 anos, professora de educação física, moradora de São Francisco
79
Modelo de macacão para pedalar utilizado por grupos de esportistas para a realização de atividade
física

60
O debate de gênero e corpo inclui a bicicleta, e não apenas o ciclista no alcance
temático, uma vez que a própria bicicleta produz conceitos de gênero a partir de
modelos comercializados como “quadros femininos” que consistem em modelos antigos
que foram criados pensando na necessidade das mulheres subirem na bicicleta sem ter
que levantar muito as pernas, caracterizando a formação como um “U” que permite
montar na bicicleta com mais facilidade. Esses modelos são conhecidos também por
trem saído de fábrica com cestinha e acessórios femininos (SIMPSON, Clare S. 2007).
A desigualdade nas construções de categorias de competições esportistas entre
categorias femininas e masculinas, evidencia a importância do estudo da mobilidade
feminina, como a exemplo o próprio Tour De France80 que possui uma longa história de
luta pela permanência de categorias femininas. No Brasil, as Fixolimpíadas -
competições de fixeiros81-a pouco tempo começaram a incluir a categoria feminina por
um esforço dentre mulheres no eixo Rio - São Paulo para forma uma só equipe a fim de
promover a participação de mulheres no esporte, exigindo assim novas adaptações do
mercado, na produção de acessórios e equipamentos que contemplam corpos não apenas
masculinos voga, mas que ainda possuem um caminho para atingir os debates de
diversidade de corpos, na ausência de dados sobre participação de pessoas não-binárias
em movimentos sociais pela bicicleta.
O evento 100Gurias100Medo 2018 que teve seu encontro na cidade do Rio de
Janeiro recebeu pela primeira vez em sua edição uma roda de conversa provocada por
pessoas não binárias e trans para dialogar sobre a falta de espaço para diálogos e
intersecções nos movimentos sociais, abrindo um diálogo através do movimento
ciclofeminista82.
Essa não foi a primeira vez que vi um diálogo sobre corpo, bicicleta e gênero.
Conheci a oficina das Bike Anjas, mulheres da ONG Bike Anjo em São Paulo que
ofereciam oficinas de conforto para incentivar mulheres a pedalarem e trocarem
experiência sobre ser mulher e pedalar, envolvendo debates sobre como pedalar
menstruada, como pedalar de saia/vestido, oficinas de reparos, além de apresentar uma
rede de mulheres para quem quiser pedalar em companhia. Uma das dicas e adaptações
de roupas cotidianas para a prática do pedal mais emblemáticas que conheci foi o truque

80
Competição anual de ciclismo de estrada realizada na França que é referencia no mundo todo.
81
Um grupo que utiliza a bicicleta tipo fixa como mobilidade urbana, esporte e forma de vida. A bicicleta
fixa é um modelo simples, rápido e prático, que simboliza o estilo de vida jovem e minimalista e
sustentável.
82
Cicloativista + feminista

61
da moeda e do elástico83, que adapta uma saia longa para um formato de calça que
facilita a mobilidade na bicicleta.
Os debates sobre corpo, gênero e bicicleta por vezes esbarram em questões
ligadas à saúde e bem estar, no qual é representativo o interesse de mulheres que
procuram a bicicleta a partir de preocupações com a saúde do corpo e estética e esses
são fatores que apareceram durante as entrevistas que realizei. Como aparece na
pesquisa do Perfil do Ciclista (2017)84 após logo após o incentivo estrutural de ciclovias
e rotas apropriadas, a saúde é apontado como um dos fatores mais representativos na
promoção do uso das bicicletas nas cidades brasileiras.A questão da saúde, não apenas
física como principalmente mental, devido ao stress e até doenças como ansiedade e
depressão apareceram nas respostas diante aos motivos para começar a pedalar.
Principalmente dentre mulheres mais velhas, o debate do exercício dialoga com a busca
pela bicicleta como mobilidade: “a bicicleta como forma de fazer amizades, exercitar a
mente e até sair da depressão. Claro que eu tive que reaprender a pedalar, mas na
verdade a gente não esquece não. O corpo não esquece, só precisa treinar.” (Maria
Edith85). Já Viviane86, diz que já superou algumas crises de depressão desde que
começou a pedalar. “É uma terapia! Antes não tinha vontade de sair, agora quero
conhecer lugares novos, e sempre tem algum grupo animado em fazer algo diferente.
Me motivou a querer sair de casa”.
Por diversas vezes em pesquisa conversei com mulheres que buscaram na
bicicleta um caminho para realizar uma rotina de exercícios ligados a atividades
rotineiras. Muitas delas já caminhavam até seus respectivos compromissos, além de
burlar o estresse de ficarem presas em um engarrafamento na cidade, porém a partir das
entrevistas, o tema saúde aparece principalmente a partir de relatos de mulheres com
mais de 40 anos, como é o caso de Maria Edith e Viviane, que se dedicam à atividade a
partir de indicações médicas “Eu sempre pedalei, porém depois de uma certa idade,

83
Formas de transformar a saia/vestido em um short/bermuda para pedalar envolvendo o meio da
saia/vestido em uma moeda e prendendo com um elástico. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=gqzaY6N1mrY> Acesso em maio de 2019.
84
Em sequencia à pesquisa de 2015, foi realizada no ano de 2017 uma nova Pesquisa Perfil do Ciclista
Brasileiro, organizada pelo Transporte Ativo e LABMOB/UFRJ em parceria com instituições e Ongs
locais, porém os dados de gênero estão ausentes nessa segunda pesquisa impossibilitando uma
comparação direta, até porque “Cabe ressaltar que não é possível uma comparação direta com a primeira
edição da pesquisa – realizada em 2015 – pois agora adotamos outro método de amostragem, mais
refinado e que resultou, em muitos casos, em amostras com tamanhos distintos”. Disponível em:
http://ta.org.br/perfil/ciclista18.pdf Acesso em Maio de 2019.
85
Maria Edith Correia, 61 anos, moradora do Vital Brazil(zona sul), técnica de enfermagem aposentada.
86
Viviane Ribeiro, assistente administrativa, moradora do Barreto (zona norte). Ela pediu para não ter
idade revelada.

62
comecei a ter problemas de saúde e por recomendação dele (médico) transformei a
bicicleta num exercício”(Maria Edith).
A relação entre corpo e mobilidade não atinge apenas questões de saúde, mas
desde a sua utilização na mecânica da mobilidade, como sinalização e indicação de
curva/mudança de faixa para direita ou esquerda que é realizada com as mãos, utilização
de assovios e gritos na ausência de campainha ou até ausência de retorno diante do
toque suave de modelos de campainhas que necessitam do uso da voz do próprio
ciclista, como também a interação e exposição da pele com o ambiente, à poluição,
vento, sol e chuva, além do barulho produzido por buzinas de automóveis e de motores
de motocicletas e até a temperatura desses motores. Nessa linha de raciocínio, a
velocidade dos deslocamentos no trânsito também impactam nos corpos como
organismo em exposição em meio ao tráfego, que independentemente dos meios de
transporte reagem a diferentes impactos resultantes tanto mobilidade em si, como
freadas, aceleração, quanto também da imobilidade resultante de um engarrafamento.
A velocidade atinge a visibilidade na rua e atribui aceleração aos corpos, mesmo
sem impacto direto, como o caso relatado por Sandra87 que conta o trauma de pedalar na
rua na avenida Marques de Paraná, local onde não há uma malha cicloviária fixa, apenas
alguns cones colocados temporariamente pela prefeitura, no qual em um certo trajeto
realizado na rua pela ausência dos cones e ao lado da faixa de ônibus, um deles “passou
tão rápido que nem vi, só senti uma onda de vento que quase me derrubou no chão, e a
partir desse dia só circulo nesse trecho pela calçada até encontrar uma ciclovia”.
A socialização de gênero impacta no padrão de mobilidade exercido no dia-a-
dia, a partir da inclusão de tarefas e cuidados com a casa e o lar no mapa de circulação
de mulheres nas cidades.. Segundo (ITDP, 2018) os marcadores de gênero importantes
dados investigativos uma vez que mulheres e homens possuem padrões de mobilidade
distintos, sendo:

“A aproximação dos custos com o transporte, entretanto,


não abrange completamente a complexidade da forma como as
mulheres se deslocam na cidade. A desigualdade na distribuição
dos trabalhos relativos ao cuidado da casa e da família leva as
mulheres a ter um padrão de mobilidade mais complexo que os

87
Sandra, 40 anos, funcionária do TJ, moradora do Jardim Icaraí (zona sul).

63
dos homens, marcado, em geral, por um número maior de
viagens, para múltiplos destinos e encadeadas”. (ITDP, 2018,
P.85)

Os cuidados com a casa, compras, cuidados com a família indicam padrões


distintos entre homens e mulheres, que realizam mais viagens com mais paradas e
integrações, enquanto homens se deslocam mais direto entre casa/trabalho sem muitas
paradas. Assim a mobilidade é uma parte integrante e fundamental da jornada de
trabalho que constitui a vivência

“A mobilidade não é neutra em relação ao gênero. Cada vez que


se escolhe investir recursos escassos em infraestruturas que priorizam
os deslocamentos em transporte individual motorizado, está se fazendo
uma escolha que impacta não só em piores padrões de deslocamento e
desenvolvimento urbano para todos, mas em maior desigualdade de
acesso à cidade. Consequentemente, as mulheres de baixa renda e
moradoras de regiões periféricas, acabam sendo as mais prejudicadas e
as mais expostas aos riscos da violência e da exclusão social”.
(ITDP, 2018, p.126)

A dialética entre gênero e mobilidade é construída, e experenciada no cotidiano,


como uma forma de agir e se situar-se a partir da interação com a cidade. A bicicleta é
um dos caminhos para reflexão do corpo levando em conta a realidade vivida em
sociedade.

“a mobilidade possui uma dupla face: a corporal e a social. São


pessoas – homens e mulheres – com seus corpos que se deslocam como
espaço/tempo, impulsionadas ou limitadas por estruturas econômicas,
significados sociais e representações culturais. O movimento das
pessoas é também carregado de subjetividades que atuam como
dispositivos de interdição, restrição ou acolhimento de corpos em
localidades, lugares e territórios da cidade” (CRESSWELL, 2006 apud
BARBOSA, 2016, p.52).

64
Uma das questões apresentadas às minhas interlocutoras era sobre as suas
percepções de exposição do corpo em meio ao trânsito e seus possíveis desafios durante
o trajeto realizado, e as respostas variavam de acordo com a interferência de outras
variáveis como distância percorrida, iluminação, fluxo de pessoas e carros, entre outras,
ou seja, o contexto vivido por cada uma, mesmo se tratando da mesma cidade, pode
modificar a percepção da rua para cada pessoa e tornar a análise de tais experiências
mais plural. Durante um curso de extensão realizado em parceria do Bike Anjo com o
laboratório da UFRJ Já pra Rua de formação de educadores chamado Criança e
Território, uma das atividades proposta foi um „dever de casa‟ no qual os educadores
poderiam interagir com crianças através de desenhos e perguntas sobre a rua dos
espaços frequentados por elas, e para a surpresa de todos, uma das percepções
apresentadas durante atividade na Casa Reviver pela educadora Beatriz Soares foi a
ausência de reconhecimento da rua na região de moradia no alto do morro onde segundo
as crianças “só tinha escada e beco”. Aqui o conceito de rua foi questionado e
resignificado com outras ideias, a fim de demonstrar a diversidade de olhares e
significados atribuídos a um mesmo conceito.
Frequentar a ciclovia exige um preparo distinto de pedalar na rua ou na calçada,
pois exige uma atenção às sinalizações próprias e integrações do determinado trajeto. A
preferência pelo uso da ciclovia e a necessidade da expansão dessa malha cicloviária foi
unanime na resposta de todas as entrevistadas, apesar da falta de conservação e presença
de muitos buracos em sua extensão, a infraestrutura cicloviária na forma tano de
ciclovias/faixas/rotas/ foram grande incentivadoras para o uso da bicicleta na cidade. O
uso da calçada se dá apenas na ausência de ciclovias e rotas segura na percepção de
cada uma. Segundo as pesquisas que contemplavam apenas contagem de ciclistas como
as pesquisas do Perfil do Ciclista Brasileiro, são contabilizados os ciclistas que circulam
na ciclovia em questão, porém no caso dessas mulheres que não pedalam na rua e
acabam circulando apenas em calçadas, realizando rotas alternativas mesmo diante de
ciclovias por medo? Esse talvez seja um dos fatos para existir a divergência entre esses
dados de circulação de mulheres de 18% enquanto que o cadastro do Bicicletario chegar
a quase 30%. Para investigar melhor isso, é necessário compreender a partir das
entrevistas como se comportam diferentes mulheres e suas percepções da cidade.

65
3.2A BICICLETA E FEMINISMOS

A relação entre a temática de gênero e a mobilidade urbana se origina no período


industrial, no qual é a partir do trabalho e circulação das mulheres nas fábricas que os
espaços passam a ser ocupados pelas mulheres, principalmente na luta por direitos ao
voto88. Mover-se na cidade, algo antes muito restrito e regrado, que passa a integrar as
reivindicações de grupos formados por mulheres, pela defesa de direitos trabalhistas, o
sufrágio e a sua mobilidade. Mobilidade feminina é um tema que engendra perspectivas
plurais de análise, podendo tratar-se do deslocamento da mulher em diversos aspectos e
espaços, como dentre países, regiões, cidades, bairros, e até dentre sua casa e o
ambiente fora dela.

A rua, representando o local comum de contato e circulação de pessoas no meio


urbano, é um espaço que reproduz visualmente as desigualdades, no qual a mobilidade
se insere como um meio na luta por demais frentes como trabalho, lazer, violência,
moradia, etc. A pauta da mobilidade urbana feminina é integrante dos movimentos
sociais feministas historicamente, mas é a partir das atuais correntes que expõe debates
de visibilidade do corpo feminino no meio urbano, as pautas dos movimentos sociais
cicloativistas e feministas se entrelaçam em debates quanto a violência, moralidade,
conquista de direitos, planejamento urbano e fragilidade.
“Mas você vai sozinha?” Frase comum no dia-a-dia do deslocamento feminino,
associado à fragilidade, medo violência e também demarcação de gênero, por
subentender que uma mulher não pode ocupar o espaço urbano desacompanhada,
principalmente desacompanhada de outro homem, como um exemplo recente desse
debate foi à polêmica sobre um caso de 28 de fevereiro de 2016 em que as argentinas,
Marina Menegazzo, de 21 anos, e María José Coni, de 22 anos, foram encontradas
mortas em Montañita, no Equador, por terem resistido a uma tentativa de estupro.
Notícias em jornais frisavam que as jovens “viajavam sozinhas” e mensagens em redes
sociais destacavam que, por estarem “viajando sozinhas”, sabiam do risco que corriam.

88
A partir de uma leitura interseccional, que busca a construção de um olhar menos direcionado e mais
aberto as diversidades, é importante reconhecer a luta sufragista, mas sem romantizá-la. Segundo Hackot:
“a importância de chamar a atenção da a partir das questões de raça e classe que estiveram muito
presentes durante todo processo de luta pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos. A bicicleta serviu
sim, na virada do século XIX para o XX, como um instrumento de liberdade para mulheres – mas para as
mulheres brancas e, especialmente, burguesas”.Davis (2016) discute em Mulheres, Raça e Classe: “ o
racismo das lideranças do movimento sufragista e o (não) papel desenvolvido pela devastadora maioria
delas na luta antirracista e pelos direitos civis estados-unidenses”.

66
O episódio deu origem à campanha #ViajoSola89 (tradução #ViajoSozinha) criada na
internet como repúdio ao ocorrido e pelo direito de mulheres viajarem sozinhas sem
serem culpadas por isso.
Esse caso ilustra esse recorte de gênero relacionado ao deslocamento nas
cidades, algo que é proveniente das desigualdades de gênero e da construção de uma
sociedade binária e machista, que para tratar melhor do assunto, é necessária uma
investigação quanto aos espaços de convivência e deslocamento destinados a mulheres e
homens, pois este assunto transcende o universalismo do indivíduo e encara um debate
sobre gênero e a construção do lugar da mulher na sociedade. Ao tratar das formas de
deslocamento das mulheres no meio urbano, perpasso dentre outras categorias de
análise da vivência da mulher na cidade, portanto a mobilidade urbana é o apenas um
recorte da temática de gênero sobre a percepção das mulheres ciclistas na forma como
executam esse deslocamento.
Na cidade do Rio de Janeiro, cada vez mais surgiram projetos ligados à bicicleta,
com pautas em comum e parceria dentre os estados e dentre países. A partir da década
de 1980, no processo de redemocratização brasileira, diversas pautas eram reerguidas
como parte de uma reivindicação na participação popular nos projetos do poder público,
juntamente no momento em que o mundo debatia questões como meio ambiente e
sustentabilidade e os integrava nas pautas de debates locais. Com esse estopim de cunho
sustentável, a bicicleta reaparece como protagonista em meio os movimentos sociais
autodeclarados cicloativistas, que defendem a utilização da bicicleta como meio de
transporte e como solução urbana.
A Marcha Mundial e a Marcha das Vadias90 tratam, como ponto comum,
reivindicações quanto à autodeterminação do corpo em debates como aborto e

89
Repercussões que originaram o famoso caso em 2016 da hashtag #ViajoSola :#ViajoSozinha: Como a
morte de duas turistas argentinas levou a debate sobre assédio. Disponível em:
<http://www.bbc.com/mundo/noticias/2016/03/160304_america_latina_turistas_argentinas_montanita_ec
uador_viajosola_ppb> acesso novembro de 2017.
90
“O evento que deu origem às Marchas das Vadias no Brasil foi um protesto realizado na
cidade de Toronto, no Canadá, em 24 de janeiro de 2011. O motivo que desencadeou a
manifestação foi uma declaração do policial Michael Sanguinetti, na escola de direito
Osgode Hall acerca do aumento do número de estupros naquele local.
O agente afirmou „Vocês sabem, eu acho que nós estamos fazendo rodeios aqui. Disseram-
me que eu não deveria dizer isso - de qualquer forma, mulheres deveriam evitar vestirem-se
como vadias para que não sejam vítimas‟. Por discordarem destas posições algumas
mulheres organizaram a SlutWalk. Para elas, a declaração culpava as vítimas pelos estupros
e ditava uma maneira específica de se vestir. Tal manifestação foi apropriada por diversos
67
maternidade, do direito às ruas e à sua visibilidade, e também com meio ambiente e
saúde, relativos às preocupações sustentáveis como descarte de absorventes, utilização
da pílula. Esses novos movimentos têm também como característica marcante a
presença das mobilizações por redes, principalmente por meio de redes sociais que
substituem os domínios pagos de sites. Esse novo perfil de através das redes que são
realizados debates e também marcações de reuniões e mobilizações presenciais, até por
possuírem em seus nomes a ideia de “Marcha”, portanto de ocupação da rua e
movimento no meio urbano.
A relação entre a mulher e a rua reaparece, tornando assim possível uma
reaproximação entre o movimento com os debates sobre mobilidade urbana pelo uso da
bicicleta, que também debatem questões em comum sobre a visibilidade e identidade,
corpo e suas representações no meio urbano, meio ambiente e saúde.
Os debates de ambos os movimentos criaram uma pauta comum no Brasil, sobre
a violência, assédio, representatividade, autonomia, liberdade, dentre outras. Mulheres e
as bicicletas possuem uma história partilhada de luta por visibilidade e direito a rua. A
bicicleta é um instrumento utilizado pelos movimentos sociais atuais e pelo debate
feminista como uma representação da conquista de direitos e como uma extensão do
próprio corpo que busca retomar para si a independência da mobilidade na cidade.
A partir do momento que a bicicleta se associa a um veículo ativo, que torna a
mulher agente do deslocamento, há uma sensação de liberdade que se sobrepõe, pois
quando as mesmas utilizam outros veículos e o transporte público, não se sentiriam
mais seguras uma vez que seus deslocamentos estariam dependendo de outros sujeitos,
como a espera num ponto de ônibus, o caminhar até o carro/automotor, sujeitos no
metrô, entre outros.
Pedalar se apresenta como um ato político, de reivindicação do espaço público
como de direito aos sujeitos. Dentre as apresentações de falas e debates atuais, o
feminismo e o cicloativismo têm muito a caminhar ainda juntos, debates para resolver e
ainda uma grande luta quanto ao espaço a ser democratizado nas ruas e no imaginário
social da população.

movimentos em distintos países. No plano brasileiro, a primeira edição da Marcha das


Vadias ocorreu na cidade de São Paulo, em quatro de junho de 2011, desde então foram
realizadas várias reedições em diferentes cidades. Em 2013, por exemplo, aconteceram
marchas em mais de vinte cidades brasileiras”. (Pp.9)
(QUINTANILHA, Aline , 2015).
68
“O feminismo pós-moderno concentra-se na
análise da diversidade da produção discursiva da
subjetividade. Com isso, desloca-se o campo de estudos
das mulheres e dos sexos para o estudo das relações de
gênero, compreendendo-se este último como categoria
relacional”. (SCOTT, 1990, p.)

Refletir sobre o acesso à cidade a partir da bicicleta é pensar no alcance à


diversidade de pessoas, corpos, bicicletas e trajetos e usos relacionados, a fim de
produzir um debate verdadeiramente inclusivo de modo a alcançar diferentes realidades.
A bicicleta é um meio de transporte de baixo custo que expõe a diversidade de agentes
que circulam nas ruas de distintas origens, destinos e motivações. A partir da temática
da diversidade, identifico a confluência de agenda da mobilidade urbana pela bicicleta
com, diante da diversidade de correntes interpretativas, o movimento feminista
interseccional, considerando ambas construções a partir da diversidade e prática em
meio à interação.
A ideia de opressão parte do principio que ela não é única e não atua apenas
através do gênero ou da mobilidade, pois podem se manifestar na confluência de demais
características como raça, classe, etnia, origem, etc. As visões experenciadas entre
mulheres diferentes produzem variadas formas de interpretação e apreensão da opressão
de formas distintas. Tenho o cuidado aqui em não projetar a ideia de padrões culturais
de opressão rígidos sobre corpos e experiências do ser mulher tão plurais, portanto a
interseccionalidade aparece aqui como possibilidade de resposta para construir a ideia
de diferentes vivências da mulher ciclista, inclusive numa mesma cidade.
Um caso interessante ocorreu durante o evento 100 Gurias 100 Medo no ano de
2018, no qual no a partir da inscrição de uma pessoa não binária, o evento se abriu para
conversar sobre demais experiências e opressões de gênero a partir da bicicleta. Assim
surgiu a mesa de diversidade de gênero, que contou com diferentes debates entre
sexualidade, binarismo e raça que são vivenciadas pelas pessoas que usam a bicicleta. A
presença da pessoa inscrita construiu a necessidade de tal mesa, com uma pessoa não
binária e um homem trans que dialogaram com as mulheres cis 91 presentes no evento e

91
Cisgênero e Trangênero: Cisgênero é o indivíduo que se apresenta ao mundo e se identifica com o seu
gênero biológico. No caso, as mulheres cis são pessoas consideradas do „sexo feminino‟ ao nascer e que
continuam a se identificar e se apresentar como pessoas do gênero feminino, que dialogavam na mesa de

69
de diferentes cidades do Brasil sobre como pensar o feminismo interseccional e também
o ciclofeminismo92 como um lugar receptivo as diferentes experiências de diversidade
relacionadas ao gênero, e seus enfrentamentos na prática da vida urbana.
Na minha percepção durante as atividades realizadas pelos grupos de mulheres
que pedalam na cidade de Niterói e em eventos cicloativistas e ciclofeministas que
estive presente, as mulheres engajadas em tais movimentos possuem ainda o padrão
classe média, branca e cisgênero em maioria. Tal movimento ciclofeminista é recente,
surgindo em conjunto com os novos movimentos sociais há poucos anos, e estando em
formação ainda quebrar barreiras para de fato ser inclusivo e diverso como se propõe,
mas esse lugar já é reivindicado por grupos como Preta Vem de Bike e BiciQueer e
esteve presente, como relatado anteriormente, pela primeira vez no evento
ciclofeminista 100Gurias100Medo. Busco nessa pesquisa alcançar as representações de
mulheres que pedalam além do que o ciclofeminismo, pois para além do
posicionamento político feminista articulado nas redes de ativismo, quais são as táticas
de permanências através da bicicleta que fazem com que mulheres pedalem na cidade
mesmo diante de percepções de violências e resistências.

3.3 VIOLÊCIA E GÊNERO

“Assedio na bicicleta pode acontecer, mas eu passo batida e nem


vejo, agora asseio tipo intimidação ai sim. Às vezes você ta na calçada.
As vezes a bicicleta lá longe de você e eu vou pela calçada respeitando
mas mesmo assim, ai vem „porra, não era pra você ta passando aqui não,
vai pela rua!‟ entendeu? Essas coisas eu escuto bastante” (Beatriz)

O discurso do corpo como resistência urbana é um discurso utilizado nos


movimentos sociais feministas relativos às novas ondas feministas, tanto dentre as
correntes como a Marcha das Vadias, que usa símbolos de nudez e violência para tratar

diversidade com um homem trans, ou seja, uma pessoa considerada do „sexo feminino‟ ao nascer, mas
que passou a se identificar e se apresentar como do „sexo masculino‟. Há ainda as pessoas não binárias,
que não se identificam com nenhuma das classificações e transitam dentre ambas as identidades.
92
Denominação ouvida durante o evento 100Gurias100Medo para tratar o movimento de mulheres
cicloativistas.

70
da invisibilidade da mulher e das desigualdades de discursos de gênero, quanto no
movimento negro e/ou mulherismo93 que trata do corpo negro como um corpo de
resistência. A violência é um tema que também une distintas perspectivas de gênero,
pois a mobilidade feminina é envolta de temas como assédio nos diferentes modais de
transporte. A campanha argentina “viajo sola”, os “vagões exclusivos”, assim como
relatos de assédio na bicicleta ou em maioria os relatos de cantadas a pé são assuntos
que quanto tocados mexem com o emocional das mulheres, que principalmente em
grupos se torna um longo momento de exposições de casos e desabafo.

Quando a categoria violência engendra uma ponte com a palavra assédio, os


relatos cotidianos na vida social da mulher existem para além da relação com a
bicicleta, sendo essa violência/assédio interpretada como cantadas na rua, com violência
física, constrangimento, ou ainda, intimidação. O carro é citado como grande agente de
intimidação, porem surpreendentemente a categoria pedestre, que aparece durante as
entrevistas como grande produtora de confrontos, uma vez que o medo dos automóveis
faz com que muitas ciclistas utilizem as calçadas, portanto sua experiência sensível de
maior confronto é a partilha do espaço com pedestres, o que a princípio poderia excluir
a importância da relação carro x bicicleta, mas que apenas esta escondida uma vez que o
território de ação da calçada exige a reconfiguração da ótica para tratar da relação entre
ciclista x pedestres.

“teve uma vez que eu tava perto de casa, na rua mesmo, tava na
contramão, no cantinho, o filho da puta veio e estacionou, na minha
frente. Ai eu parei de bicicleta e ele tipo “ah você ta errada, você ta na
contramão!!! Gente, custava ter a educação? Eu tava passando! E veio
com o carro e parou na minha frente! Tava no meio fio, não tinha como
passar. Resultado: tive que esperar todos os carros passarem, o sinal
fechar, pra conseguir desviar dele, e continua. E ele não saiu. Esse tipo de
assedio, que rola.
O transito é perigoso, mas por incrível que pareça os acidentes
que eu vejo e que aconteceu comigo foi com pedestre, mais do que com

93
Conceito citado a partir de Revista Gelédes, referência em temas de feminismo e movimento negro:
Disponível em: <https://www.geledes.org.br/10-referencias-sobre-o-matriarcado-africano-e-o-papel-da-
mulher-em-africa/>. Acesso em Julho de 2018

71
carro. Com carro, nenhum, eles (os carros) estão repeitando bastante, mas
eu ando mais pela calçada. Só quando tem parte de cone que eu vou pela
rua, mas raramente vou na rua. Eu vou pela ciclovia ou ciclofaixa, mas
fora isso não vou pela rua, aquelas que tem a bicicletinha no chão ele (os
carros) não respeitam, ai esquece. Tem que ter algo para separar se não
eles (os carros) quebram”. (Beatriz)

A disputa pelos espaços como calçadas e ciclovias, compartilhadas ou não,


constrói enfrentamentos mais sensíveis para os atores na bicicleta ou a pé.

“As vezes sinto as pessoas violentas em relação ao ciclista, seja


ele o “sexo” que for, de dar fechada, achar que a gente (ciclista) é
abusado, que a gente é espaçoso, por exemplo, você estuda na UFF vê
que a ciclovia da Amaral Peixoto é bem delimitada, bem direitinho ali, e
você vê o pessoal parado dentro dela! E ai você reclama e ai as pessoas „a
sai daqui!‟ e ai você ta na rua e mandam você pra calçada, ai você ta na
calçada e mandam você para a rua, mas assim, eu encontro também
pessoas que são gentis, carros que param, motos que param pra gente
passar... então, tipo assim, ultimamente eu tento ver o lado melhorzinho...
da pessoa, mas eu sei que é perigoso, que todo mundo fala que andar de
bicicleta é perigoso, as pessoas do meu trabalho falam mas pra mim não
é. Eu vou. Perigoso é estar num carro e ser assaltado. Eu vou. Porque eu
acho que se a gente não se mexer e começar (a pedalar), nunca vai virar
uma coisa normal, você pedalar. Sempre vão achar que é perigoso
pedalar. Hoje mesmo eu estava falando com minha amiga aqui no rio. Eu
to um pouco apreensiva, pois não é Niterói, mas eu acho que alguém tem
que começar, e esse alguém tem que ser eu. De noite é minha primeira
vez no rio, pois já vim pedalar de dia, no Leblon, mas de noite é outra
cidade”. (Liliane, 56)

A relação com o termo perigo está relacionado também a questão do horário,


pois a hora também delimita a mobilidade feminina na cidade, modificando itinerários,
e muitas vezes até excluindo o acesso e direito à cidade. As entrevistadas relataram que
delimitavam seu trajeto de bicicleta certas horas da noite, algumas em relação a um

72
desafio físico no trajeto, como no caso de Alice (25) o túnel São Francisco-Icaraí, e as
demais delimitavam o próprio acesso à cidade a partir dos horários posteriores as 21h,
nos quais, segundo Viviane (43): “Eu já não ando na rua depois das 21h nem a pé, até
evito pegar o ônibus porque tenho medo de ficar la no ponto, sabe? as vezes o 42
(ônibus da linha Barreto-Centro) nem vem, e quando vem ta vazio. Nem de bike eu
passo lá muito tarde não, ta muito largado lá, não tem uma luz se quer”. Já Maria Edith
(61), prefere pedalar de dia, manhã ou a tarde, pois é quando ela tem mais atividades no
dia a dia, tem movimento e ela pode aproveitar para fazer as compras e ir nas
atividades: “pago conta, compro meu almoço, faço tudo!. Gosto de ver as pessoas
passando, aquela muvucada, sabe? É melhor que de noite, quando não nem ninguém,
fica perigoso, ne?”.
A categoria do assédio é elaborada como presente tal qual a mobilidade feminina
a pé, porém a bicicleta constrói uma sensação de agilidade para sair da situação que
permite uma percepção de segurança de gênero diferente da experiência a pé, uma vez
que existe a possibilidade de fugir com maior chance do que a pé. O assédio é percebido
de maneiras distintas a partir da possibilidade de agência sobre o fato.

“Roupa delimita o uso, por questão de assedio, nem mesmo a pé .


acontece com frequência, principalmente vestido/saia. Mas não muda por
causa da bicicleta mas usa o mesmo para a mobilidade a pé. O trajeto
muda de acordo com o horário e pedalar a noite de bicicleta melhor é
melhor que caminhar a noite pois esta vazio, acha pior de dia cheio de
pessoas e carros (medo da violência no transito mais do que a violência
urbana). „eu me sinto mais a vontade de bicicleta e segura, do que a pé,
pois me sinto mais rápida‟. Eu não diria empoderada pela bicicleta, muda
nossa percepção, vivencia e relação com a cidade, mas não acho que me
empodera, é apenas mais um recurso”. (Danielle, 20)

Gênero é uma das formas de interação humana, sendo empregada para explicitar
como as desigualdades são vivenciadas, porém com o cuidado de não uniformizá-las,
mas pensar na sua diversidade empírica. A interseccionalidade, portanto, é um fator
essencial para tratar não apenas do gênero como as demais categorias, incluindo a noção
de trabalhar com corpos em mobilidade. (PIRES, 2009)

73
Mas a violência não é fruto apenas de experiências fora de casa, Alice conta que
como moradora de São Francisco, circulava pelo bairro, mas não atravessava o túnel em
direção ao centro/Icaraí por uma proibição do pai por considerar a bicicleta e a distancia
perigosas, questão que ela superou quando fez 18 anos e passou a se perceber mais
autônoma. Ela conta ainda que a desigualdade no tratamento revela que seu irmão não
teve a mesma cobrança/proibição como norma e regulação do corpo. Para Alice (25) a
insegurança esta relacionada ao medo do furto ainda supera o medo com o transito, que
é o único impeditivo que estabelece a ela mesma um horário de retorno, pela
insegurança na travessia do túnel, como uma barreira na infraestrutura.
Na contramão das políticas atuais do governo federal em 2019 94, a análise da
velocidade como uma ferramenta de poder que normatiza os corpos ao acesso à cidade e
impede espaços de convivência - como em que são aplicadas as ruas acalmadas95e
espaços destinados a atividade pedestre – assim como impede a vida diante ao
espantoso número de morte por velocidade no transito no Brasil, a campanha do Maio
Amarelo96, evidencia a relação da imprudência no transito e principalmente o fator
velocidade como responsáveis pelo número de mortes no trânsito. Segundo pesquisa da
Seguradora Líder97em 2018, as mortes por acidentes de trânsito (17.791 mortes por ano)
supera demais dados de mortes por crimes violentos no Brasil (12.559 mortes por ano).

“a cidade sempre foi uma caixa de velocidades. A organização


das cidades são as ruas, por onde a pressa se instaura como regra de
circulação, e aqueles que se demoram na interação com o ambiente, na
possibilidade de flanância são acusados de interromper a circulação”.
(VIRILIO, 1996, p. 48)

94
Em noticias recentes sobre possibilidade de retirada de radares que fiscalizam a velocidade em
rodovias: <https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-diz-que-vai-desativar-todos-os-radares-de-
rodovias/> e <https://g1.globo.com/carros/noticia/2019/04/01/ministerio-informa-que-suspendeu-
instalacao-de-radares-em-rodovias-federais-apos-ordem-de-bolsonaro.ghtml> Acesso em Maio de 2019.
95
Soluções urbanísticas para diminuição da velocidade dos automóveis a partir da reestruturação da rua
com alargamento de espaço destinado a circulação de pedestres e ciclistas, utilizando barreiras físicas,
bancos e arborização para obrigar o automóvel, na falta de espaço, a reduzir a velocidade. Exemplo
disponível em:
<https://eixomonumental.s3.amazonaws.com/documents/bfda630b103e2a9fedfe2687b27449b3.pdf>
Acesso Maio 2019
96
O Movimento Maio Amarelo nasce com uma só proposta: chamar a atenção da sociedade para o alto
índice de mortes e feridos no trânsito em todo o mundo. Disponível em: <https://maioamarelo.com/o-
movimento/> Acesso em Maio de 2019.
97
Disponível em: <https://www.seguradoralider.com.br/Documents/Relatorio-
Anual/RELATORIO%20ANUAL_2018_WEB.pdf> Acesso em Maio de 2019.

74
Para Virilio, a velocidade não se trata apenas do deslocamento, mas também do
desenvolvimento tecnológico e da informação, que impacta na forma como a sociedade
se relaciona, online e offline na produção de trabalho e pressa para executar quaisquer
tarefas no dia-a-dia. A velocidade produz violência sobre corpos, seja no transito ou no
impacto na saúde mental e física devido ao desgaste de realização das tarefas no
cotidiano. A velocidade estimulada a construção de poder ligado à potência, e força,
presente na publicidade de automóveis que valorizam a alta performance, mesmo diante
a realidade da infraestrutura em que a velocidade da via não permite.

Afirmar que a bicicleta seria uma oposição à noção de velocidade seria um tanto
simplista, pois apesar das políticas públicas de desenvolvimento da mobilidade ativa
como prioritária na ocupação de espaços públicos, os comportamentos em cotidianos
nas bicicletas muitas vezes reproduzem a velocidade. Diante de engarrafamentos e
trânsito intenso, existem ciclistas que reproduzem o mesmo comportamento do
deslocamento pela velocidade pois em determinados trajetos a bicicleta pode ser a
opção que possui o menor tempo de deslocamento98. A ideia de desvelocidades é
defendida na promoção do pedalar como uma opção de vivência sustentável99 e ainda de
acesso à cidade e consumo100. Quanto maior a densidade de pessoas, maior é a pressa e
a impossibilidade de locomover-se. Essa é a síntese do engarrafamento. A velocidade
impede inclusive a possibilidade de reparar nas casas, no comércio, nas demais pessoas
envoltas no transito. É como depois de muito tempo se dar conta que uma casa antiga já
não reside mais ali, pois a velocidade se torna uma „projeção cinemática da realidade‟,
quem que vemos os flashs da realidade, sem quase sequencias montadas na direção do
nosso trajeto.

Dentre os grupos citados, os relatos de sobre a violência são presentes, porém a


violência eleita pelas mulheres entrevistadas se desdobra em três: a violência de
trânsito, violência urbana, e ainda violência de gênero. Debates como fragilidade e
visibilidade, velocidade e masculinidade, são temas comuns aos grupos de ciclistas as
feministas, que realizam rodas de conversa e pedais exclusivos para mulheres na cidade,

98
A exemplo, os desafios intermodais. Disponível em: http://ciclobr.org.br/bicicleta-volta-a-ser-mais-
rapida-no-desafio-intermodal-de-sp/pagina/500 Acesso: Junho 2019
99
SILVEIRA, Mariana. Mobilidade Sustentável: A bicicleta como um meio de transporte integrado.
Dissertação de Mestrado em Engenharia de Transportes, COPPE, UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.
100
ManualBicicleta e Comercio da Ciclocidade. Disponível em:
<https://www.ciclocidade.org.br/biblioteca/file/107-manual-bicicleta-e-comercio>. Acesso em Junho de
2019.

75
mas que compõe muitas mulheres que já pertencem ao cenário do engajamento pela
bicicleta, e que atualmente buscam círculos interseccionais de debate de classe e raça,
expostas na desigualdade de origens, se concentrando ainda os movimentos da cidade
no eixo centro-sul, que refletem o alcance as políticas de infraestrutura da cidade, mas
que não representam todo o quantitativo de mulheres que pedalam, principalmente na
periferia e mesmo que diante de ausência de infraestrutura cicloviária.

3.4 GÊNERO EM MOVIMENTO

A relação entre mobilidade urbana e o espaço é modificada pelas dinâmicas e


grupos sociais que movimentam o ambiente em dois sentidos da palavra: o de
deslocamento pelo espaço, e ainda, o de incidência, de ação e alteração através do uso
em prol de manifestações festivas e/ou políticas. A visão da cidade é modificada pelos
trajetos e trajetórias distintos como pedestre, ciclista ou motorista, pois diferentes
movimentos configuram plurais percepções, interações e experiências sobre o mesmo
ambiente urbano. Porém é importante não cair em generalizações, pois para não cair no
senso comum não devemos encarar identidades como unilaterais. Não existe uma única
performance universal de como ser pedestre, pois essas categorias também estão em
disputa de acordo com o contexto expressado e representam portanto a mobilidade para
além do seu papel no trânsito também.
Ser pedestre, ou ciclista, por exemplo, é ser atravessado por intersecções de
demais identidades e categorias na cidade, uma mesma pessoa se movimenta a noite, ou
em horários variados de forma distinta, principalmente em grandes centros urbanos ou
em determinadas regiões que possa considerar violentas, ou se essa pessoa possui
mobilidade reduzida, ou ainda a partir de distinções de mobilidade de gênero. Portanto,
é necessário tratar assim como pedestre ou motorista, o termo ciclista como uma
categoria de identidade que não é unânime, constante ou definida.
Analisando a mobilidade urbana somente sobre a ótica de gênero, já é possível
refletir sobre inúmeras questões sobre, por exemplo, como a mobilidade feminina é
presente de forma distinta na cidade, em relação à debates como visibilidade, violência,
e até a sua relação com a Casa e a Rua (DAMATTA, 1985). Afinando um pouco mais é
possível trabalhar a perspectiva da mobilidade feminina no uso de modais que

76
privilegiam a mobilidade ativa101. Dentre a discussão de acesso à cidade, a mobilidade
urbana integra um dos fatores que mais incidem na dinâmica diária, envolvendo fatores
como renda, acessibilidade, saúde, trabalho, entre outros. O tempo gasto de
deslocamento, o preço e o modal influenciam na qualidade de vida e na própria relação
que a pessoa tem com a cidade. E esse deslocamento é plural uma vez que as pessoas
que compõe a sociedade também são diversas e incidem também como fator que
complexifica as relações sociais de mobilidade, portanto as interseções de classe, gênero
e idade, por exemplo, são necessárias para compreender as distintas formas de
deslocamento na vida urbana.
Segundo o ITDP Brasil (2016), em estudo realizado sobre, um dado interessante
mapeado á nível nacional foi o perfil de deslocamento das mulheres nas cidades
brasileiras, em que grande parte se desloca utilizando mais modais integrados, com
paradas maiores entre as integrações, e principalmente privilegiando a mobilidade ativa
a pé. Em trecho do estudo:

"A mobilidade não é neutra em relação ao gênero. Cada


vez que se escolhe investir recursos escassos em infraestruturas
que priorizam os deslocamentos em transporte individual
motorizado, está se fazendo uma escolha que impacta não só em
piores padrões de deslocamento e desenvolvimento urbano para
todos, mas em maior desigualdade de acesso à cidade". (ITDP,
2018, P. 126)

O gênero é um fator que impacta em grande questão nas escolhas de modais,


horários, na prevalência da mobilidade em companhia, pois grande parte do perfil
brasileiro de trabalhadoras é composto por mulheres de baixa renda, que portanto
utilizam a mobilidade a pé e integrada com o transporte público para se locomover,
opondo-se ao modelo de transporte individual e motorizado, que é o modelo
privilegiado nas políticas de mobilidade urbanas governamentais, o modelo rodoviário.
Essa é a mesma conclusão de uma pesquisa sobre Mulheres e o Ciclismo Urbano na
América Latina (DÍAZ; ROJAS, 2017) que trata do perfil feminino de mobilidade em

101
Mobilidade ativa é um conceito relativo à mobilidade que utiliza a propulsão humana para se
locomover, ou seja, que não utiliza motores. Exemplo: a mobilidade a pé, o uso de transporte público, ou
por bicicleta.

77
que os trajeto se apresentam como muito mais complexos que em comparado ao perfil
masculino, e justifica a atenção das mulheres em integrar ao seu trajeto os cuidados com
a família e o cuidado doméstico.

"En todo tipo de contextos las mujerestienenpatrones de


actividades –y por ello de viajes- que sonmucho más complejos que lós
de ya, que usualmente mezclanactividadeslaboralescon una fuerte carga
de labores domésticas y de cuidado de otrosmiembros de lafamilia, la
denominada movilidaddel cuidado. Así, laEncuestadel Uso Del
Tiempoen Estados Unidos de 2003 señala que lãs
mujeresempleadasdestinan una hora diaria más que lós hombres a
labores Del hogar, incluyendolaatención a otrosmiembros de lafamilia".
(Díaz; Rojas, 2017, P.8)

A relação da mobilidade ativa com o recorte de gênero é fundamental para a


explorar as formas e modalidades de deslocamento feminino, porém é necessário levar
em consideração também os fatores como tempo, segurança e distância, pois a distancia
percorrida e tempo de deslocamento impactam no planejamento feminino de horários e
locais que circula na cidade, pois uma mesma praça ou comercio possui atividades em
determinados horários e maior ou menor circulação de pessoas, que contribui para a
sensação de segurança nas paradas entre modais e também dentro dos próprios modais
de deslocamento, como ônibus, metrô, trem, vlt, brt, barcas, entre outros modais.
Um exemplo disso é a criação dos carros femininos102(vagões exclusivos)103 no
Metrô Rio e nos trens da empresa SuperVia como reflexo do impacto das questões de
gênero na mobilidade urbana, pois seria uma solução para a questão do assédio como
uma medida apenas educativa, mas que necessitou da instauração de multas em dinheiro
como forma de combate ao assédio de mulheres no transporte. Essa medida divide
opiniões sobre sua eficácia como uma ação que não age educativamente, mas de forma
punitiva e que acaba por isolar as mulheres dos homens ao invés de trazer medidas que

102
Vagões exclusivos femininos são composições ferroviárias que dedicam alguns carros para o transporte
apenas de passageiras mulheres e que são diferenciados pela cor rosa dos demais vagões. Disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-08/lei-garante-vagao-exclusivo-para-
mulheres-em-trens-e-metro-do-rio>. Acesso em Julho de 2018.
103
Aqui optei por descrever também como 'carros exclusivos' ao invés de vagões pelo debate também do
termo vagão representar o transporte de carga, enquanto o termo carro representa o transporte de pessoas.

78
melhorem o convívio misto em todos os vagões e nos demais horários além dos de
lotação. Apesar da polêmica é marcante o impacto do debate da mobilidade feminina no
deslocamento através dos meios de transporte público, que traz consigo o debate de
violência de gênero também em demais modais.
Nesse recorte da mobilidade ativa feminina, a bicicleta aparece como um dos
modais possíveis e atuais, mas que representa ainda uma opção de baixa adesão pelas
mulheres quando comparada a adesão por homens no Brasil. Segundo O Perfil do
Ciclista Brasileiro (2015), um dos dados que mais chamou a atenção foi o recorte de
gênero. Dentre os dados quantitativos realizados nas capitais do país, com apenas a
exceção a cidade de Niterói-RJ como a única não capital incluída no estudo, uma vez
que a cidade de Niterói já se destacava por compreender dados de mobilidade na cidade
mesmo diante da falta de investimentos como ocorre em grandes capitais. Na pesquisa
seguinte (2017) o foi ampliada os dados sobre o uso da bicicleta mostraram uma
presença majoritariamente masculina, destacando na média nacional de apenas 7% de
mulheres como usuárias da bicicleta. Porém, um dado intrigante é que apenas a cidade
de Niterói, apesar de ainda apresentar dados também de inferior participação das
mulheres nos deslocamentos pela bicicleta, era a cidade com os dados mais distintos,
apresentando um total de 13% de mulheres que utilizam a bicicleta.
Esses dados me fizeram refletir, sobretudo nas questões relativas à sensação de
segurança, tempo de deslocamento e de distância como fatores importantes a serem
considerados na mobilidade feminina ativa. A rua é um espaço de disputas, seja sendo o
trânsito um grande exemplo de embates na relação indivíduo x sociedade, evidenciando
desigualdades de acesso à cidade, como nas pautas de moradia, tempo de deslocamento,
qualidade do transporte, e violência.
O acesso à cidade, ou mais ainda, o conceito de direito à cidade é presente nos
novos movimentos sociais (GOHN, 1995), pois tanto na luta feminista quanto nos
movimentos ecológicos pela bicicleta, questões de visibilidade e ocupação do espaço
público esbarram no debate de movimento, de deslocamento dos indivíduos pela cidade.
Durante a entrevista, em uma das perguntas eram sobre o que ela considerava
que motivava as pessoas a andarem de bicicleta na cidade, Liliane104 me fez pensar
sobre as características da cidade que são imprescindíveis para entender o
comportamento da sua população:

104
Liliane Mello, 54 anos, funcionária da UFF, moradora do Fonseca

79
“Eu não uso o Barreto, mas tem muita gente que vem de
São Gonçalo de bike, até o centro, de Niterói. Se for fazer uma
contagem, a probabilidade maior é de „homem‟, da Zona Norte é
de homem, mas eu vejo algumas mulheres também. De diferentes
faixas etárias, diferentes classes sociais. Muito estudante da UFF,
não sei se a UFF também é uma cidade de muitos alunos. Ela tem
uma característica muito diferente que muita gente vem de outros
estados, muitas vezes aluno até por uma questão financeira usa
bicicleta porque é mais barato, você não paga ônibus, apesar da
uff ter busão... er, mais tem neh”

A análise campo, portanto, é imprescindível para trabalhar com o tema da


mobilidade, para que então a relação com os corpos circulantes e suas associações em
grupos, movimentos sociais e ainda para também compreender aqueles que não estão
associados, que se classificam como transeuntes. Segundo o relato de Liliane, a
presença de uma universidade federal altera a dinâmica da cidade, uma vez que a
presença de estudantes pode impactar na ocupação do espaço no circuito universitário,
movimentando não apenas as atividades no entorno da universidade como também as
mobilidades e acessos a ela, dentre ônibus, caminhabilidade e possibilidade na
utilização da bicicleta como meio de transporte por um recorte de renda.
Apesar de relatos da administradora do Bicicletário e também dos funcionários,
não registrei entre minhas abordagens e entrevistas finalizadas com nenhuma mulher
fora do padrão classe média e branca, um dado também ausente na própria pesquisa do
perfil do usuário do bicicletário, que esta registrado por “sexo” e por “renda” porém não
há o cruzamento de dados com “etnia” ou “raça” na pesquisa, porém a diversidade de
usos é registrada nas ruas, através da observação em campo e também no
acompanhamento das contagens, que necessitam ainda de uma produção de dados que
inclua o campo da diversidade completamente para o melhor entendimento dos
cruzamentos interseccionais da categoria gênero e seu impacto na mobilidade da cidade.
O Bicicletário apesar da sua localização central, ainda foge do alcance de demais
circuitos que circundam a região central, e não contempla outras rotas como quem mora
na zona norte ou oceânica e que possuem jornadas de trabalho na zona sul, por exemplo,

80
sendo a região de Icaraí depois da região do centro o segundo ponto com mais ofertas de
trabalho e serviços na cidade105.
Para Beatriz (38), a presença de mulheres pedalando tem a ver não somente com
as dimensões da cidade, como também pelo incentivo ao esporte:

“Niterói é uma cidade pequena, provinciana, que não tinha


essa quantidade de violência que tem. Niterói é era uma cidade de
interior, eu cresci com isso assim, então aqui, Niterói é cercado de
praia, e quanto mais cercado de praia, mais as pessoas são
incentivadas a fazer um esporte, pedalar em frente a praia, e como
tem mais mulheres, as mulheres consequentemente vão fazer mais
isso”

Ela conta como sempre usou a bicicleta na cidade desde pequena, por conta das
dimensões e aspectos de interior “provincianos”, além de relacionar o cuidado do corpo
e saúde pelas mulheres, incentivando a pratica de exercícios físicos. Ela continua:

“Homem, é mais preocupado em carro, carro, carro, acho


que é tendência mundial! As mulheres vão ser bicicleta e homem
carro, ainda mais hoje em dia que todo quer ser mais fitness,
sarada. Se você parar aqui (praia de Icaraí) você vai ver muito
mais mulheres correndo que homens. Olha que mulher hoje
(domingo) ta fazendo comida em casa, mas mesmo assim, tem um
monte, entendeu?”

Para Beatriz a prática da bicicleta envolve não apenas a mobilidade urbana como
também o lazer e o esporte, representando uma forma de cuidado com a saúde, o que
seria segundo ela teria uma maior incidência de preocupação pelas mulheres, utilizando
as categorias “fitness”, “emagrecimento”, como uma prática das mulheres, e ainda mais
no uso da bicicleta. Mais uma vez a preocupação com o corpo aparece em relação ao
uso da bicicleta, mas além da análise quanto a visibilidade e aprendizado de técnicas

105
Tais dados de mobilidade ao trabalho foram coletados através da pesquisa PMUS Niteroi na qual tive
contato e acompanhamento durante a análise de dados na secretaria de transportes, porem infelizmente até
o presente momento ainda não foi lançada oficialmente.

81
corporais, aqui a saúde e estética também aparecem como preocupações através da
prática da bicicleta também como esporte. Essa linha de investigação não é meu alvo,
porém já existem trabalhos sobre o tema entre as temáticas esporte, saúde e bicicleta
como (Soares, 2016), (Andrade, 2007) e (Velozo, 2010)106.
Ainda sobre a pergunta sobre porque as mulheres pedalam na cidade de Niterói,
outra resposta interessante a se destacar foi a de Maria Edith (61) que contou que pedala
pelo hábito de sempre tê-lo feito, além da ideia de lazer, distração: “Sempre tive
bicicleta, a gente dividia lá em casa pra todo mundo. Não tinha tanta gente na rua e pra
mim sempre fez bem pra cabeça, sabe?Era mais rápido e em conta que esperar uma
condução. Tem muita gente que sempre fez isso, lá em casa mesmo éramos 4”. A
bicicleta aparece como meio de transporte já usado, mas que ganha outros contornos
através das novas leis de trânsito, como o Código de Transito Brasileiro, que inclui a
bicicleta como veículo, e ainda no planejamento das cidades através do Estatuto das
Cidades, discussão trabalhada por (CORREA,Aline, 2017, PP. 61-71).
Quando mais para o final das entrevistas passei para a pergunta sobre o porque
continuar pedalando, diante dos desafios já anteriormente expostos por elas, houveram
algumas particularidades, mas um dos temas em comum a fala é a de liberdade. A noção
de agência sobre o próprio deslocamento é um dos fatores que me chamou atenção, em
relação a liberdade de ir e vir e também de movimento em meio a situação de transito
intenso e engarrafamento. Segundo Viviane (41):

“Não aguentava mais ficar esperando ônibus pra ele vir


lotado, acabava indo a pé e ficava muito suada/cansada e quando
tinha carro além do gasto de combustível e ainda ficava parada
quase 2h na ponte pro rio, daí cansei, porque no ônibus ia
dormindo (...) ai de bici eu sei a hora que demoro pra chegar e
fico mais acordada e disposta”.

106
Indicações:
SOARE, C. L. (2016). As roupas destinadas aos exercícios físicos e ao esporte: nova sensibilidade, nova
educação do corpo (Brasil, 1920-1940). Pro-Posições, 22(3), 81-96;
ANDRADE DE MELO, Victor Mulheres em movimento: a presença feminina nos primórdios do esporte
na cidade do Rio de Janeiro (até 1910) Revista Brasileira de História, vol. 27, núm. 54, dezembro,São
Paulo, 2007, pp. 127-152
VELOZO, E. Ciclismo e cultura: anotações sobre os usos da bicicleta. Anais do V Congresso
Sulbrasileiro de Ciências do Esporte. UIVALI – Itajaí– SC 23 a 25 de setembro de 2010.

82
A autonomia de realizar o trajeto no seu tempo e ritmo, além de não se sentir
dependente de outro condutor ou do engarrafamento parecem ser bônus à Viviane. Já
Liliane, a ideia de liberdade: “o que te motivou passar a usar a bike? Ah, a bicicleta me
faz sentir livre. Minha vontade é sair pedalando pela estrada!”, assim como Alice, que
começou a sair de casa, transpassar o túnel de São Francisco para circular sozinha para
além da ideia de segurança da família “A bicicleta que fez conhecer meus limites, saca,
descobri outros lugares e poder passar o túnel, porque meu pai tinha muito receio e só
quando ele saiu de casa que comecei a sair de bike”.
As diferentes categorias de segurança, visibilidade, liberdade e corpo são
acionados por diferentes mulheres entrevistadas, que apesar da pouca variedade dentre a
faixa de classe, há uma diversidade de domicilio, percursos, e idade, representando
assim diferentes usos da bicicleta na cidade de Niterói, porém concordando sobre a sua
vontade de continuar usando a bicicleta como veículo no dia-a-dia. Esse uso, porém vai
além da ideia de movimento a partir de um objeto, ele engendra o movimento das
categorias de corpo e gênero no cotidiano de cada uma. A mudança do transporte a
partir da agência individual e não motorizado traz a tona a relação de identidade a partir
do gênero para outras demandas, política, sustentável, de saúde. O movimento vai além
dos seus trajetos casa-trabalho e movimentam a própria visibilidade de suas identidades
a partir da bicicleta. Seriam ciclistas a partir do uso da bicicleta? Procurando investigar
a autoimagem de quem usa a bicicleta para além das reivindicações dos movimentos
sociais, proponho repensar a ideia de identidade a partir da bicicleta no próximo
capítulo.

83
CAPÍTULO 4

IDENTIDADE E BICICLETA

84
Identidade, pertencimento e bicicleta: como as mulheres na cidade de Niterói
constroem as categorias de pertencimento a partir da bicicleta? A rua é um espaço
adquirido e/ou reivindicado? Como construir uma análise sobre o uso da bicicleta que
inclua as mulheres a partir do conceito de diversidade? Buscando responder a última
pergunta do questionário, investigando a categoria ciclista como uma disputa de
imagem e identidade, proponho às entrevistas a revisão das suas ideias de pertencimento
e mobilidade a partir da bicicleta.

4.1 DESCOBRINDO NOVAS FORMAS DE PEDALAR

Era uma manhã bem cedo, por volta de 6h quando marquei de pedalar com uma
amiga, Thais, que me levaria para “girar” na ciclofaixa temporária localizada no bairro
de São Francisco, chamada assim, pois era (ela foi recentemente apagada pela
prefeitura) uma faixa vermelha pintada no asfalto nas pistas da praia de São Francisco,
criadas com o intuito de oferecer como uma pista de treino para ciclistas esportistas,
funcionando até meio-dia, quando virava estacionamento legalizado da prefeitura até as
5h da manhã. Como a faixa rodeava o canteiro central das pistas, dava a sensação de
estar girando na rua da praia.
Nós duas nos atrasamos um pouco, chegando em São Francisco apenas as 6h40,
quando grande parte dos atletas já estava finalizando os treinos por conta do horário de
rush na região. Mas esse não foi o maior impacto causado na nossa chegada.Quando
Thais me ligou no dia anterior para combinarmos a aventura, ela me orientou o básico:
ir com uma bermuda confortável ou calça de lycra na ausência de bermuda própria para
ciclismo (que possui uma espuma ou gel que afofa a região das nádegas, minimizando
possíveis assaduras), além de capacete e água. Eu segui as instruções, levando o que
estava habituada. Pois bem, apareci no local combinado com uma mochila com 3
ferramentas básicas e uma capa de chuva, tranca de cadeado tipo U-Lock107, além de
uma garrafinha cm uma água... que congelou! Resultado: chamei atenção de todos os
ciclistas do local, por estar totalmente errada (como me explicaram por vezes dias e dias

107
Tipo de tranca de bicicleta altamente segura porém muito mais pesada que outros modelos. Possui
formato de U invertido.

85
depois do ocorrido) que eu deveria ter levado o menos possível, pois quanto menor
peso, maior a performance, além da falta de necessidade de trancas numa atividade que
a ideia é você alcançar a velocidade, e nunca parar.
Ainda assim, a minha amiga, mais experiente e preparada também chamava a
atenção por não se encaixar nos padrões de vestimenta dos ciclistas do local, pois no
lugar de jerseys ou não apenas ela, como eu, estávamos de bicicletas antigas, capacetes
de skate e ainda bicicletas tipo speed108 pesadas, uma monark 10 e uma caloi 10109 das
décadas de 1970 e 1980. Nos sentimos destacadas ainda por não estarmos integrando
nenhum pelotão, que eram liderados todos por homens, com uma presença baixa de
mulheres que quando presentes eram acompanhadas por um homem. Nos sentimos
como estávamos deslocadas em um outro ambiente de grupos de bicicleta. Quando eu
consegui conversar com alguns desses ciclistas esportivas sobre as condições dessa pista
de bicicletas ser dedicada apenas para trenós e não também para mobilidade urbana nos
demais horários, alguns demonstraram descaso em defender a pauta da mobilidade pela
bicicleta, quando a sua performance esportista estava ligada á bicicleta, mas a sua
mobilidade urbana era outra, pois alguns presentes me contaram que treinam cedo,
retornam para casa, tomam banho e utilizam demais modais para ir ao trabalho, como
ônibus ou carro, ou seja não estão interessados na pauta da mobilidade urbana.
O conceito de ciclista não aparece uma definição simples e direta, ela existe para
si mesmo e na forma de categorizar outrem, na relação entre identidades endo e sexo,
construindo a produção também de estigmas a partir de estereótipos da identidade,
ciclistas que é lida por diferentes pessoas em diferentes contextos. O “ciclista da Jersey”
intitulado como categoria de acusação entre ativistas para aqueles esportistas que usam
roupas específicas, acusadas de serem fantasias pois se distanciam do ativismo que
caracterizaria seu uso. Ao mesmo tempo, não utilizar equipamentos de segurança como
capacete e não realizar grandes distancias como os esportistas, fazem com que eles
utilizem o termo bicicleteiro para se referir a exatamente esses ativistas que não estaria
pedalando da maneira „correta‟ para se intitularem ciclistas.

108
Tipo de bicicleta de corrida com guidão baixo e pneu fino.
109
Modelos de bicicletas tipo de corrida das décadas de 79 e 80. São consideradas vintages, porem muito
mais pesadas que as atuais por terem sido construídas de ferro, incomparáveis à tecnologia atual de fibra
de carbono

86
4.2 IDENTIDADE E CIDADE

Segundo Caiafa (2002) a construção da cidade e suas diversas sociabilidades tem


relação direta com a construção de identidades que interferem e sofrem interferência dos
locais de residência, associação e mobilidade “Nas áreas residenciais segregadas, em
geral dependentes do automóvel, cria-se um meio propício às recorrências familiares, à
confirmação das identidades. É o modo de vida dos condomínios fechados, que ocorre
entre nós e que é o modelo que predomina nas cidades ou anti-cidades” (CAIAFA,
2002, p. 93). A utilização de diferentes modais constroem interpretações e interações
com a cidade distintas. O trajeto percorrido em um automóvel é uma experiência
distinta de um deslocamento realizado pelo transporte público ou até a pé, pois envolve
não apenas o deslocamento individual, mas o impacto das interações entre indivíduos no
espaço da rua.

“A privatização e o confinamento geram, portanto, ao mesmo


tempo um adensamento aberrante, desigual, e uma movimentação
segregante. Trata-se de uma desurbanização, de forças contra a densidade
e a circulação, que marcam historicamente a expansão das cidades. Nas
cidades, a densidade apoia-se na dispersão porque a mobilidade é
fundamental para que a população possa se distribuir e se misturar,
ocupando coletivamente o espaço da cidade, preferindo-o aos espaços
fechados. É uma dispersão atrativa porque há uma atração pelo espaço
coletivo e não para fora dele num desejo de segregar-se. Historicamente,
a aglomeração urbana preenche um espaço coletivo, densamente
populado” (CAIAFA, 2002, pp.3).

A mobilidade nas cidades é um tema constante diante da urbanização e os


processos de densidade urbana e de concentração de oportunidades de trabalho,
complexificando as relações sociais que por mais preenchidas de modais de transporte,
não integram a cidade como um todo, um desafio contemporâneo, mas que possui raízes
históricas no processo de desigualdades de planejamento urbano para os cidadãos. As
cidades em questão possuem um histórico de organização em torno do eixo centro-zona
sul, que igualmente oferece grandes possibilidades de deslocamento em contraponto às

87
demais regiões, fruto da concentração de renda que no Rio de Janeiro e Niterói que
migrou da área central para a recente zona sul destas cidades.
Os perfil de pessoas destacadas dentro da rede cicloativista representam em
maioria mulheres brancas com idade a cima dos 40 e que residem em áreas valorizadas
na cidade de Niterói, porém esse não é o perfil necessário das mulheres que pedalam na
cidade de Niterói e essa investigação esta ainda em processo, por isso busquei nas
entrevistas ampliar a investigação para mulheres que também não estivessem em tal
padrão, o que não foi difícil no quesito de idade, por Niterói comportar um grande
número de universitários que utilizam também a bicicleta, porém as entrevistas
alcançaram mulheres que em geral realizam trajetos curtos de até 2,5km,
compreendendo as regiões valorizadas das praias da Baía e início da zona Norte, nos
bairros do Barreto e Fonseca.
É possível partir da definição de ciclista pelo ativismo para que posteriormente
seja comparável aos dados colhidos fora dos circuitos de mobilização política,
trabalhando assim como dois conceitos guarda-chuvas que existem aqui para fins
metodológicos: a) a identidade construída da ciclista pela visão das redes de
cicloativistas; b) a identidade em construção da ciclista nos demais espaços e possíveis
grupos na cidade. A partir da busca por definições de construção da identidade como em
relação a outras demandas “a identidade não existe em si mesma, independente das
estratégias de afirmação dos atores sociais que são ao mesmo tempo produto e suporte
das lutas sociais e políticas” (BELL, 1975apud CUCHE, 2002, p. 197), quando ligada à
rede de cultura da bicicleta, representa ainda a rede de sociabilidade que transcende os
corpos humanos, e alcançam os objetos como representações, extensões do próprio
corpo.
Os objetos são usados como forma de dar significado à vida das pessoas,
construindo e mantendo identidades sociais(APPADURAI, 2002), o que na cultura da
bicicleta inclui não apenas a construção a identidade do ciclista, mas também através da
integração de todos os demais objetos de usos do ciclista no dia-a-dia e que fazem parte
da sua expressão de personalidade. Um exemplo ocorreu em uma tarde no centro da
cidade do Rio, na qual estacionei minha bicicleta em um poste na rua pela ausência de
paraciclos. Enquanto aguardava na fila de uma loja que estava, recebo a seguinte
mensagem de um conhecido; “- Ola, o que está fazendo aqui pelo Rio? Vi a Rubi
(minha bicicleta) estacionada na rua! Vamos tomar um café?”. Nesse momento me dei
conta da importância na relação do objeto bicicleta com a minha construção de

88
identidade, uma vez que eu escolho um nome para esse objeto de maneira a personificá-
lo, assim como no reconhecimento social da minha bicicleta como extensão da minha
identidade como ciclista.
E essa não foi uma situação incomum, perguntando a mais pessoas obtive
diversas histórias de pessoas que se reconheceram na rua pela bicicleta, e até situações
como a de duas pessoas recém-apresentadas que tiveram um diálogo parecido com
“Olá, é você que para naquela esquina todos os dias? Vejo sempre sua bicicleta por la!”.
Por muito tempo estacionei minha bicicleta no mesmo local que alguns amigos, e
guardo até hoje as conversas em formas de bilhetinhos que deixávamos nas bicicletas,
pois pela incompatibilidade de horários, mal nos víamos, mas sempre conversávamos
através das bicicletas. A sociabilidade se estende aos objetos, que podem tornar-se
representações de identidades culturais. A bicicleta pode também representar a ausência,
como no caso das ghostbikes - a bicicleta fantasma (tradução livre) consiste em uma
mobilização em torno da morte de um ciclista no trânsito. Existe uma performance no
processo, desde recolher sucatas de bicicleta ou até mesmo a própria bicicleta da pessoa
até o preparo na cor branca e por fim a manifestação que se encerra no ato de pendurar
essa bicicleta fantasma no local onde aconteceu a fatalidade. Esta é uma forma
ritualística de visibilidade e mobilização da rede de cicloativistas sobre a morte no
trânsito.
Um exemplo de ato é um dos casos que acompanhei na cidade do Rio de
Janeiro, em que uma ciclista e ativista Fernanda L. Ribeiro foi atropelada no bairro de
Botafogo, zona sul da cidade em Julho de 2017110. A comoção foi especial para algumas
pessoas que a conheciam e mobilizaram atividades de contestação, e em geral é possível
circular nas cidades no Brasil e no mundo e se deparar com algumas bicicletas
fantasmas pelas cidades, como uma marca da morte no meio urbano que simboliza a
violência e presença da identidade ciclista no cotidiano urbano. É importante pensar
nesse debate acerca da identidade como algo em constante construção, que não se da
apenas no âmbito privado, mas a partir de interações com demais pessoas, expondo e
colocando em contato identidades que podem performadas distintamente na construção
cultural.

110
Disponível em: <https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/ciclista-morre-apos-ser-atropelada-na-zona-sul-
do-rio-27072017> Acesso em abril de 2018.

89
4.3 IDENTIDADE E BICICLETA

Quando comecei a pensar na construção do roteiro das entrevistas, tinha como


intenção chegar na pergunta chave sobre a identidade que cada interlocutora carregava
consigo quanto ao aspecto do pertencimento à categoria ciclista, amplamente
empregada nas mais diversas pesquisas até no Código de Trânsito Brasileiro (CTB)
mas que é utilizado por diferentes grupos e coletivos de maneiras distintas. Em um
evento promovido pelo coletivo Pedal Sonoro em abril de 2017, havia uma roda de
conversa sobre o CTB, direitos e deveres do ciclista, a partir do manual de bolso
organizado pela Claudiléa Pinto, no qual ela compilou os artigos referentes à bicicleta.
Muitas foram as reclamações quanto a falta de segurança no trânsito, atitudes dos
motoristas de carros e ônibus, pedestres e até outros ciclistas, demarcando aqueles que
não pedalavam segundo as regras, como andar na contramão ou em calçadas como
bicicleteiros. Essa categoria de acusação ficou na minha mente, até porque quando o
debate entrava diante da polêmica da obrigatoriedade do capacete que divide opiniões
quanto a sua eficácia, sustentado principalmente por grupos de ciclistas esportistas, que
utilizam diversos equipamentos de segurança, não somente o capacete, para pedalar, e
que consideram os ativistas como próprios bicicleteiros por nãoseguirem padrões de
vestimenta e segurança. A partir dessa conversa, comecei a me questionar sobre o
pertencimento à categoria ciclista, que muito além de possuir uma bicicleta, ela carrega
consigo as construções conceituais dos diferentes grupos.
Pensar aqui a identidade como algo relacional e contextual, e não fixa é
fundamental para compreender as divergências de construções conceituais. É possível,
portanto um mesmo indivíduo construir a ideia da sua identidade a partir do ciclista
enquanto é socialmente interpretado como um bicicleteiro por outra construção, pois “a
identidade é um fenômeno que deriva da dialética entre um indivíduo e a sociedade”.
(BERGER; LUCKMAN, 1976, p.230)
O conceito de identidade foi explorado durante as entrevistas mas era diluído nas
pesquisa de forma a mapear o universo simbólico de cada entrevistada, porem ao final
eu realizava a pergunta direta ao conceito de identidade como ciclista, e isso produziu
uma riqueza interpretativa que me permitiu entender melhor o motivo da resposta
correspondente. Dentre as entrevistadas, recebi 7 respostas afirmativas quanto a se
considerarem ciclistas enquanto tive 3 respostas negativas, porém essa seria uma análise
simplista do fato, uma vez que dentre as respostas positivas o próprio conceito de

90
ciclista varia entre pessoa que possui bicicleta, como também a afirmação de que
ciclista e cicloativista seriam sinônimos.

“Eu me considero ciclista, como alguém que pedala, mas


segundo meu filho ciclista é quem faz aquelas coisas (pedalar
para longe como esporte), mas eu sou ciclista. Eu não sou ciclista
de competição, eu não sou ciclista de bmx, de montain bike, nem
de speed de estrada, eu sou ciclista. E de uma certa maneira,
quem é ciclista e é mulher é ativista. Não necessariamente, as
vezes nem sabe que é, né?Mas ela é, porque ela (a mulher) ta indo
contra aquele fluxo, de que tem que ter carro, tem que ser perua,
tendeu? Eu acho que ela pode até nem saber.” (Liliane, 54)

Segundo Liliane, o conceito de gênero e ativismo estariam diretamente


relacionados, e ainda articulados a ideia de liberdade e empoderamento pela bicicleta
“Olha, é implícito, pois no Brasil, uma mulher pedalar ela é necessariamente uma
ativista. Eu acho, porque as pessoas já olham meio torto as vezes. E eu, em Niterói,
tenho observado isso, que tem muita mulher pedalando”. Enquanto isso, Danielle que
também se considera ciclista possui uma ideia diferente: “eu não diria empoderada pela
bicicleta, muda nossa percepção, vivencia e relação com a cidade, mas não acho que me
empodera, é apenas mais um recurso”.
Enquanto isso dentre as três resposta negativas quanto a autoidentificação como
ciclista, também temos disparidades na ideia de que para ser ciclista é necessário utilizar
os equipamentos de segurança como nas atividades esportivas – como as jerseys,
capacete, bretelles. Sandra (40): “Não me considero ciclista daquele (esporte) jeito,
sabe? Vou de bike pro trabalho só, e é um pedaço curto, tipo 20 minutos. Também não
uso todo aquele equipamento (blusa tipo Jersey). (...) só capacete que uso, mas nem
sempre”.
Já para Cláudia (54), ser ciclista tem a ver com a frequência do uso da bicicleta,
devido a sua maior mobilidade a pé, ela não se considera ciclista: “ah ciclista não, acho
que ciclista é quem usa todo dia ou quase sempre. Eu ando muito mais a pé, tenho medo
de andar na rua. Acho vocês (quem pedala) muito corajosos”.
Já Viviane (41) se irrita com os ciclistas que “andam na contramão e atrapalham
quem pedala certinho”, chamado estes de “maus ciclistas”, que acabam fazendo uma

91
“ma fama” dos ciclistas que já tem que “disputar com os carros”. Apresentei diferentes
interpretações do termo que demonstram perspectivas não apenas de identidade a partir
da bicicleta, mas também de pertencimento à uma “cultura” da bicicleta, que é
reivindicada pelos movimentos sociais.
As identidades mais uma vez estão em negociação contínua, pois o ato de
pedalar em diferentes bicicletas provoca também outras formas de „exercer o ciclismo‟.
A relacional abre um diálogo para pensar na construção de gênero a partir da
interpretação interseccional, na qual a diversidade e o dialogo são fundamentais para
compreender a totalidade de experiências e buscar inverter a lógica de desigualdade,
tanto para o conceito de gênero quanto de mobilidade.
É a partir da compreensão e inclusão da diferença que as políticas publicas pela
bicicleta podem tornar as ruas inclusivas para a ciclomobilidade de mulheres que ainda
não circulam por medo da relação com o automóvel, ou falta de confiança na qualidade
das demarcações. As definições de ciclista, apesar de presentes na lei, como no código
de Transito Brasileiro, que regula a bicicleta como veículo tal qual regula o ciclista a
partir de diretrizes de direitos e deveres a serem seguidos no transito, porém este não o
define, apenas constrói a ideia de que o ciclista compreende toda pessoa que pedala,
porém a partir dos relatos acima é possível repensar o pertencimento e identidade
atribuído a esse ciclista. Se tivesse me ocupado de uma investigação mais profunda do
termo, esbarraria possivelmente em interpretações diferentes a partir de outros pontos de
vista como de motociclistas, motoristas e pedestres, que vivenciam diferentes
experiências de enfrentamento e disputas do espaço de mobilidade na cidade.
A ideia de pertencimento das mulheres que pedalam a categoria de ciclista
perpassa pela ideia de pertencimento á cidade, e os enfrentamentos do ser mulher no
espaço público, o que é atravessado pelos deferentes modos de mobilidade e disputadas
desse espaço. Ser ciclista esta normatizado na lei como uma prática igual a diferentes
experiências, pessoas e cidades, o que exclui as diferenças, porém a prática dentre
exigência de equipamentos e orientações de circulação dificultam a inclusão das
experiências plurais, e para falar de gênero não é possível ignorar os conceitos de
diversidade. Viviane (41) conta que por vezes já foi “chamada a atenção” por estar sem
algum equipamento:

“Quando me chama com aquele tom de voz sarcástico é o que


mais me irrita, como se soubesse mais, saca? Como uma vez num sinal

92
outro cara (na bicicleta) veio falar comigo, me chamando de „morena‟
todo íntimo e dizendo que eu não estava de capacete e que tava errada.
Daí eu respondi que 1º que não é obrigado, pois eu já li a lei, e ele
ignorou ne? e continuou que eu tinha que comprar um capacete. Eu já
sem paciência soltei que eu NÃO TENHO NADA e que mesmo que eu
quisesse, é um absurdo porque tem gente que não tem grana pra isso?!
Aquelas luzinhas também são obrigadas ter... e espelho retrovisor, mas
na real quem pode comprar isso?!”

Durante minhas observações e contagens de ciclistas nas ruas e ciclovias do


centro da cidade, era possível ver bicicletas equipadas com cadeirinhas para crianças, e
outras com crianças sentadas na garupa, por desconhecimento, falta de renda ou até de
interesse em adquirir tais equipamentos. No uso cotidiano e comum ver pessoas
sentadas no quadro da bicicleta, principalmente casais, assim como diferentes usos e
modelos de bicicleta compondo acessórios distintos. Dentre as entrevistadas, sempre
perguntava o modelo de bicicleta, uso e acessórios que cada uma portava, e houve
diferentes respostas, dentre bicicletas urbanas, hibridas, elétricas e antigas, com
cestinha, equipamentos de luzes e campanhia, e até a ausência de todas as anteriores.
Para algumas entrevistadas a decoração da bicicleta faz parte da complementação da sua
identidade, com adesivos e plaquinhas, enquanto para outras quanto menos enfeites,
menos chama a atenção para roubos.
Para Alice, que se refere à bicicleta como “minha filha” e ainda “como se ela
falasse comigo”, o cuidado com a bicicleta, como já abordado no subcapítulo de „Corpo
e Gênero‟, o cuidado para com sua bicicleta é quase como um cuidado para si, se
referindo ao zelo para com um objeto que representa uma extensão da sua mobilidade, o
seu alcance da cidade, ao seu direito de ir e vir, e por isso seu receio com a segurança da
sua bicicleta “eu busco os bicicletários da rua (paracilos) para parar, pois tenho medo de
deixá-la em qualquer lugar”.

93
CONCLUSÕES

IDENTIDADE E GÊNERO
ATRAVÉS DA BICICLETA

94
Nas ruas, ciclovias, ciclofaixas, ciclorrotas e até calçadas; as bicicletas estão
presentes em diversos espaços e são visualmente um fenômeno de mobilidade que
retornou a eclodir e ocupar o espaço urbano, não apenas na cidade de Niterói como por
todo o Brasil e por diversos locais do mundo. Diante disso, porque então se concentrar
em uma análise de gênero das pessoas que pedalam? Porque diferenciar o termo
ciclista? Esse tipo de investigação não segrega?
A bicicleta como mobilidade, lazer, esporte, pela saúde ou ás compras, os
diferentes usos são notados nas ruas da cidade de Niterói pelo grande volume de
ciclistas que circulam na cidade em diferentes horários, com diferentes modelos de
bicicleta. Para falar de bicicleta com o intuito de incluir suas variáveis é necessário falar
de diversidade, e não apenas do objeto bicicleta, mas também dos responsáveis a gerar
energia e movimento dessa invenção antiga e ao mesmo tempo contemporânea. Os
pedalantes circulam a partir de diferentes visões de cidade, utilizando suas bikes como
uma extensão da sua mobilidade a fim de alcançar diferentes e novos espaços. Por
oportunidade, rapidez, saúde, política, sustentabilidade ou também economia, o conceito
de ciclista também está em constante mobilidade e parte de diferentes perspectivas que
por vezes podem ser até conflitantes, como o caso de ciclistas vs bicicleteiros, mas da
mesma forma, a experiência de diferentes corpos que possuem marcadores de
identidade tão fortes como gênero, classe e raça não podem ser ignorados.
A socialização de mulheres, homens e novas categorias conceituais para além do
gênero como oposição binária demonstram a necessidade de incluir essas experiências
plurais a fim de abraçar a ideia da diversidade como um conceito parte da empiria como
porta de entrada para a produção de conhecimento que dialogue com a realidade e gere
políticas públicas e ativismos pela inclusão não pontual, mas constante. Os conceitos de
diversidade e movimento pensados como necessários para não enrijecer e tornar
démodé em relação à experiência prática. Nesse sentido, a produção de dados sobre a
relação entre gênero e bicicleta é urgente para garantir um retorno efetivo da produção
de políticas em prol da bicicleta e da mobilidade feminina, uma vez que o alcance
espacial da mobilidade diária das mulheres possui marcadores de diferença em relação à
mobilidade dos homens, e essa investigação necessita do cruzamento de dados a partir
das jornadas de trabalho, mas também incluindo as diferentes percepções de segurança e
acesso à cidade.

95
A utilização de infraestrutura dedicada à bicicleta aparece como determinante na
maioria das entrevistas, sendo fundamental para desenvolver a ideia de pertencimento
como ciclista à cidade e de ocupação do espaço público. Quando ausente grande parte
das mulheres escolhe utilizar a calçada e demais espaços longe da rua e do
enfrentamento com os carros, mesmo diante das leis e normas que regem o direito de
circulação na rua, porém esse distanciamento da realidade provoca a criação e
adaptação de outras práticas ligadas ao uso da bicicleta, e produz diferentes conceitos de
ciclista.
A investigação interseccional dentre gênero e raça esteve ausente na última
Pesquisa do perfil do Ciclista de 2017, assim como em diversas outras pesquisas. A
PMUS, que deve ainda ser lançada não continha o campo de raça, dificultando a
possibilidade de cruzamento de dados, necessários para de fato compreender as
diferenças de percepções e pontos de vista de quem pedala na cidade de Niterói.
Em campo, percebi que a investigação de contagens de ciclistas nos horários de
rush no inicio da manhã e final da tarde não contemplam muitas diferentes mobilidades
femininas, que se dividem em jornadas de trabalho e cuidados para com a família e
compras para casa. Dentre minhas 10 interlocutoras, 5 percorrem os horários da jornada
de trabalho apresentada nas contagens, as possuem negociações do tempo em maneiras
diferentes e em dias também variados, por isso proponho novas formas de
interpretações de categorias que parecem já superadas, mas que necessitam de mais
investigação, como o termo ciclista, e suas interseções de categorias variadas.
Na produção acadêmica me deparei com uma gama de publicações recentes, a
partir de 2002, porém com uma eclosão dos anos de 2010 e principalmente a partir de
2015, um caminho necessário para uma melhor visualização do campo de pesquisa a
partir da bicicleta sob perspectivas variadas,inclusive de áreas e produções científicas
distintas, e ainda em 2019 é necessário ressaltar a importância da produção científica
para a compreensão da realidade e dessa forma estar em constante movimento tal qual a
vida prática, desse modo buscando atingir verdadeiramente a sociedade e não apenas
uma parcela, ou ainda, percepções de realidade particulares. A antropologia como
ciência deve investigar diferentes produções de realidade e verdade a fim de
desconstruir conceitos e dessa forma contribuir para o exercício de um pensamento
crítico diverso e compreensivo.
Neste trabalho busquei contribuir com a produção de ciência e para o campo da
mobilidade, em constante crescimento sob o recorte de gênero a partir das mobilidades

96
de mulheres pedalantes da cidade de Niterói. Concluo sobre a necessidade de
continuidade da produção de pesquisas sobre o tema mobilidade que caminhem lado à
lado às produções interseccionais que constroem a identidade daqueles que circulam na
cidade e são determinantes para o entendimento de seus deslocamentos.A revisão e
adaptação de contagens que incluam diferentes padrões de comportamento para além do
ciclista homem, cis, branco e classe média, dessa forma garantindo o constante
movimento e adaptação a novos usos e práticas, buscando não a enquadrar os usos da
bicicleta nos parâmetros pré-definidos, mas adaptando o termo ciclistas as diferentes
práticas já existentes na rua. Para investigar a mobilidade para além dos padrões
masculinidade já estabelecidos como padrões de jornada de trabalho e de
comportamento no trânsito ao mesmo tempo, questões de equidade - isto é, igualdade de
acesso a oportunidades - ainda tem um caminho epistemológico a percorrer.

97
BILIOGRAFIA

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101
ANEXO 1 ROTEIRO DE ENTREVISTAS

ROTEIRO:

1ª parte Informações Pessoais:

 Nome, Idade e Profissão,


 Bairro / Rua de Residência
 Com quem mais reside?

2ª parte Mobilidade:

 Quais os modais que utiliza com mais frequência? e


 Por quantos dias na semana utiliza (ônibus, carro, bicicleta, bascas, outros)?

3ª Parte Bicicleta:

 Como aprendeu a pedalar?


 Quando começou a usá-la no dia-a-dia?
 Porque utiliza a bicicleta?
 Quais as rotas que utiliza de bicicleta com mais frequência?
 Utiliza a malha cicloviária/calçada/rua?
 Como começou a usar o bicicletário e qual a frequência?
 Quais são seus maiores desafios? E benefícios?

4ª parte Identidade:

 Qual modelo da sua bicicleta?


 Você utiliza para quais atividades (mobilidade, esporte, lazer, ativismo, outros)?
 Pedala em grupo ou sozinha?
 Você ao usar a bicicleta se sente pertencente a algum grupo, iniciativa ou
coletivo com ou sem relação à bicicleta?
 Como se prepara para pedalar (o que leva consigo, quais as escolhas de roupas e
acessórios)?
 Você se considera ciclista, cicloativista ou bicicleteira?

102
ANEXO 2 – EXEMPLO DE CONTAGEM DE CICLISTAS

DIA 27/11

7h as 8h :

sentido barcas: 28 mulheres ( 18 urbana, 1 speed, 4 eletrica, 3 dobravei) /

129 homens (2 cargueiras, 120 urbanas, 3 speed, 5 eletricas e 3 dobraveis)

Sentido Antonio Pedro: 6 mulheres (5 urbanas e 1 dobravel) / 18 homens (18 urbanas)

8h as 9h:

Sentido barcas: 42 mulheres (35 urbanas, 4 eletricas e 3 dobraveis) / 197 homens (4


cargueiras, 2 triciclos, 17 eletricas, 7 speeds, 11 dobraveis e 156 urbana )

Sentido Antonio Pedro: 4 mulheres (urbana) / 22 homens (18 urbanas, 1 dobravel, 1


eletrica e 2 cargueiras)

DIA 28/11

17h as 18h

Sentido Antonio Pedro: 24 mulheres(2 dobraveis, 22 urbanas) / 131 homens (8


eletrica, 6 dobravel, 114 urbana, 2 cargueiras, 1 bike de trabalho) * + 2 skates e 1 bike
fora da ciclovia e na contramao

Sentido barcas: 10 mulheres (9 urbana e 1 dobravel) / 43 homens (43 urbana, 2


eletrica, 1 bmx, 5 dobraveis, 1 infantil) + 1 skate

18h as 19h

Sentido Antonio Pedro: 42 mulheres ( 7eletrica, 32 urbana, 3 dobraveis) / 177 homens


(9 eletrica, 163 urbana, 5 dobravel) + *3 skate e 1 patinete

Sentido Barcas: 13 mulheres (12 urbana, 1 dobravel) / 35 homens (31 urbana, 1


eletrica, 1 triciclo, 2 dobravel)

ESTATISTICAS DAS CONTAGENS:

Turno: Manhã

103
ANALISE POR SENTIDO: B(28+42)70 mulheres + (129 +197) 326 homens = 396
ciclistas = 17% mulheres ciclistas. /

AP: (6+4)10 mulheres + (18+22) 40 homens = 50 ciclistas = 20%

ANALISE POR HORA:

1ª hora de contagem (28+6) 34 mulheres + (129+18)147 homens = 181 ciclistas = 18%

2ª hora de contagem (42+4) 46 mulheres + (197 +22) 219 homens = 265 ciclistas = 17%

ANALISE TOTAL DIA:

Dia 27/11: 28 + 42 + 6 + 4 = 80 mulheres ciclistas

Dia 28/11: 129 + 18 + 197 + 22 = 366 homens ciclistas

Total: 446 ciclistas

Porcentagem de mulheres: 17,9 ~ 18% mulheres de ciclistas que circulam no


horário pré-comercial da manhã

Turno tarde/noite:

ANALISE POR SENTIDO: AP (24 + 42) 66mulheres/308 homens = 374 ciclistas =


17% /

B (10+13)23mulheres + 78 homens = 101 ciclistas = 22%

ANALISE POR HORA:

A cada hora passaram:

1ª hora (24 + 10) 34 mulheres +154 homens = 188 ciclistas = 18% de mulheres

2ª hora (42+13)35 mulheres +212 = 247ciclistas = 14%

ANALISE TOTAL NOITE:

24 + 10 + 42 + 13 = 89 mulheres

386 homens

Total de ciclistas: 475

Porcentagem de mulheres: 18,7% ~ 19% que circulam no horário pós-comercial


da tarde/noite

104
ANALISE TOTAL A PARTIR DOS DOIS TURNOS

80 + 89 = 169 mulheres

366 + 386 = 752 homens

921 ciclistas

Porcentagem de mulheres: 17,4% mulheres ciclistas em relação ao universo de 921


ciclistas contabilizados

105

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