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INTRODUÇÃO
O presente estudo examina a condição equina na história da
soroterapia, considerando o uso crítico de milhões de cavalos para a
produção de plasma pela indústria farmacêutica, nos últimos 120
anos. A realidade desses equinos não se encontra claramente
definida no debate sobre animais utilizados na experimentação
científica e tampouco mereceu atenção dos estudos inter-espécies.
Somente a partir de 2016, princípios éticos e de bem-estar no uso de
animais na produção de antivenenos foram inseridos no documento
da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2016) que estabelece
procedimentos para a produção, controle e regulação de
imunoglobulinas de antivenenos ofídicos. A bio-exploração de
equinos (sobretudo cavalos) como unidade de produção, permanece
prudentemente obscurecida pela indústria de biofármacos, em
âmbito mundial. Ao trazer este tema em um debate sobre
Antropologia da Saúde sob uma perspectiva menos antropocêntrica,
isto é, mais centrada na condição equina, pretendo dar visibilidade a
dois aspectos que me parecem cruciais para pensar uma antrozoo-
história da seroterapia no Brasil. O primeiro aspecto que me parece
relevante diz respeito ao próprio sistema de produção em larga
escala, estritamente sustentado na extração de sangue
hiperimunizado de equinos. O segundo aspecto contempla a dupla
função desses equinos, sobretudo cavalos, como animais soro-
produtores e como unidades de experimentação. Apesar de pouco
debatido, o tema é complexo e requer a compreensão de inúmeras
imbricações no campo da história das ciências da saúde, da
medicina, da indústria de fármacos e dos aspectos institucionais que
definiram a evolução da soroterapia ao longo do século 20 e até o
presente. Uma vasta literatura examina os impasses crônicos desse
sistema de produção no contexto brasileiro, enquanto a crise global
de produção de soro equino é considerada pela Organização
Mundial da Saúde como determinante de uma doença mundialmente
negligenciada que afeta populações de baixa renda. (WHO, 2016).
A possibilidade de uma mudança de paradigma nesse sistema de
produção tem motivado diversos pesquisadores no campo da
biotecnologia, indicando uma ruptura com tal sistema, cujos custos
éticos, ambientais e sociais devem ser necessariamente revistos.
As diversas formas de participação de animais não-humanos na
medicina moderna são ainda pouco discutidas na literatura. Woods
et al (2018) examinaram algumas formas diretas e indiretas que
definem esse envolvimento, demarcando bases para uma história
dos animais na medicina. Seja através de interfaces com anatomia e
fisiologia comparadas, história natural, zoologia, veterinária,
agricultura, nutrição, saúde pública, parasitologia e epidemiologia,
a participação dos animais não-humanos nas ciências da saúde
foram certamente ampliadas com o desenvolvimento da medicina
moderna e contemporânea. Os aspectos éticos dessa imbricação e os
modos como se definem no interior de contextos socio-culturais
específicos, são especialmente relevantes para pautar discussões
sobre bases plurais.
1
O princípio dos 3Rs (reduction, replacement and refinment) orienta
medidas de bem-estar animal na experimentação científica.
da confluência de estudos experimentais realizados em laboratórios
alemães e franceses, nas últimas décadas do século 19. O princípio
de produção de plasma equino hiper-imune adota procedimento
quase idêntico ao praticado há 120 anos para a transferência de
imunoglobulinas (anticorpos) heterólogas, ou seja, derivadas de
outras espécies animais, diferente do ser humano, que proporcionam
imunização passiva, imediata, porém temporária. A hiper-
imunização do animal com inoculação progressiva de toxinas tem o
propósito de gerar uma reação imunológica através do aumento de
anticorpos capazes de neutralizar os efeitos letais daquela toxina
específica. O animal é então sangrado para a extração do plasma
hiper-imunizado, designado como soro. Pela quantidade de sangue
disponível, e por sua docilidade no manejo, os equinos, sobretudo
cavalos, são os principais produtores de plasma, que demanda
produção em larga escala (Bochner, 2016; Monaco, 2018; Pucca et
al, 2019).
3 Tradução da autora.
verdade em tal afirmação. Contudo, tal cenário integrava um
programa de divulgação sobre o revolucionário tratamento que
estava sendo impulsionado por generosas doações ao Instituto
Pasteur. O entusiasmo da sociedade francesa pode ser dimensionado
pela iniciativa de um famoso proprietário de cavalos de corrida, que
ofereceu seu premiado puro-sangue inglês, Salifou, ganhador de
diversos prêmios, para os serviços de produção de soro. De acordo
com o médico Albert Calmette, aquele foi o primeiro puro-sangue
inglês a adentrar nos estábulos do Instituto Pasteur (Simon, 2008).
Contudo, o lento processo de produção do soro equino, cerca de três
meses, foi confrontado com a urgência da crescente demanda
nacional pelo novo medicamento. A esse respeito, o fisiologista
Émile Roux usou termos literais ao observar que “nossos pobres
animais, mesmo ao custo de doar todo seu sangue, não serão capazes
de fornecer um centésimo da quantidade solicitada”4 (Simon,
2007:69-70).
4 Tradução da autora.
equestres vítimas dos nossos
progressos imunológicos, enquanto os
próprios soldados da Guarda se
mortificam: ‘preferíamos que fossem
mandados de vez ao matadouro’.”
Considerações finais
Os milhões de equinos usados como fonte de matéria-prima para a
indústria farmacêutica são um traço invisível de uma doença tropical
globalmente negligenciada (WHO, 2016). Há problemas crônicos,
como crônicas crises de abastecimento, baixa qualidade dos
produtos e no risco de efeitos secundários (doença do soro) gerados
pela inoculação de hemoglobinas heterólogas (William et al, 2011;
WHO, op.cit). Apesar da tradição brasileira na soroterapia, seu
desenvolvimento ocorreu em meio a crises institucionais e
financeiras crônicas ao longo do tempo. Segundo o Ministério da
Saúde (NI 89/2018), a produção dos 9 antivenenos disponíveis no
Brasil vem sendo realizada de forma parcial e criteriosa devido a
fatores que incluem a adequação dos laboratórios às normas de boas
práticas de fabricação da ANVISA:
6
A produção nacional de soro equino provem do Instituto Butantan (SP),
Instituto Vital Brazil (RJ), Fundação Ezequiel Dias (MG), Centro de
Pesquisa e Produção de Imunobiológicos (PR) e de outros centros de
produção menores, como o Instituto de Biologia do Exército.
7
Disponível no endereço eletrônico https://veja.abril.com.br/saude/butanta-
vai-desenvolver-soro-contra-o-ebola/, acessado em 12/09/2021.
8 Disponível no endereço eletrônico
https://www.crfmg.org.br/site/noticias/Instituto-Butantan-
trabalha-em-soro-para-gravidas-infectadas-por-zika, acessado em
12/09/2021.
9
Disponível no endereço eletrônico
https://agenciabrasil.ebc.com.br/en/saude/noticia/2020-08/equine-serum-
found-have-powerful-antibodies-against-covid-19,acessado em
12/09/2021.
monoclonais humanas, não heterólogas, capazes de neutralizar
diferentes toxinas e venenos são alternativas terapêuticas ao plasma
equino (Laustsen et al, 2018; Pucca et al, 2019; Wenzel et al, 2020;
Jenkins et al, 2020). Além disso, o veneno utilizado para a produção
dos antígenos monoclonais pode ser multiplicado em sequência, sem
o impacto sobre a biodiversidade resultante da dependência direta
de milhões de espécimes de aranhas, serpentes, lagartas e
escorpiões. No que diz respeito à segurança e eficácia no tratamento
de envenenamentos, a produção controlada em cultura de célula sem
a utilização do sangue equino eliminará os riscos associados à
doença do soro (serum sickness).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Butantan. In: Cad. de História da Ciência – IB, vol 1, pg:145-166.
Bochner, R. and Struchiner, C.J. (2003) Epidemiologia dos
acidentes ofídicos nos últimos 100 anos no Brasil: uma revisão
(Snake bite epidemiology in the last 100 years in Brazil: a review)
Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(1):7-16, jan-fev, 2003.
Brazil, L.V. (2015) Vital Brazil, meu pai. In: Cad. de História da
Ciência – IB, vol 10, n 1, pg: 115:160.
Pereira Neto, A.F. & Oliveira, E.A. (2002) Vital Brazil: uma obra
com vida. In: Revista do Livro, Rio de Janeiro, 46.