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COLÓQUIO INTERNACIONAL 2016 - Construir e habitar a terra: cidades inteligentes e


poéticas urbanas

Tema: Os papéis das utopias no século XXI;

Ficções estético-políticas e a produção simbólica do espaço urbano contemporâneo:


arquitetura e arte urbanas com sinais trocados.

Vera Pallamin / FAUUSP

E àseuàliv oà O ovo te po do u do (2014), o filósofo Paulo Arantes joga com


a ambiguidade do título: o que à primeira vista poderia ser tomado à luz de certa
tradição utópica - numa linhagem que remontaria à publicação de Utopia , de Thomas
Morus (1516) e propostas posteriores associadas às ideias de superação das
desigualdades socioeconômicas e de reconhecimento moral – diz respeito, pelo
contrário, ao que o autor denominaà o oà a era da emergência .

Oà ovoà te poà doà u do à refere-se ao tempo presente, pautado por um


horizonte de expectativas despotencializado frente à ampla derrocada das experiências
revolucionárias. Esse tempo vem se desenrolando desde os anos 1970, ou mais
especificamente, após o fim da trégua dos chamados 30 anos gloriosos do Estado do
Bem-Estar nos países centrais.

Durante esses 30 anos, associados ao keynesianismo, permaneceu a mobilização


de promessas emancipatórias que perpassaram todo o século XX, mas que foram sendo
progressivamente desmanteladas, o que se consolidou com a queda do muro de Berlim
em 1989 e com a dissolução da União Soviética, em 1991. A hipótese de que a forma
social do comunismo seria aferida como decorrência das transformações do capitalismo
mostrou-se historicamente equivocada e o que se viu foiàaàvitó iaàdoà o u is oàdoà
Capitalàso eàoà o u is oàdosà o u istas. , diz Rancière (2010:174, trad. da A.). Após
oà olapsoà sovi ti oà ei ouà po à duasà d adasà aà utopiaà apitalista,à a utopia de uma
perfeita autorregularão do livre mercado e da possibilidade de organizar todas as formas
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de vida humana de acordo com a lógica do mercado , reinado seguido de uma profunda
crise sistêmica (idem).

Nesseà ovoàte po ,à e tasàfo asàso iaisàfo a ultrapassadas historicamente e


outras foram reafirmadas. A era da emergência coincide com a adoção de novas
estratégias de valorização do valor (D-M-D num período de dominância financeira, cujo
objetivo é ampliar a acumulação – com crescente concentração de riquezas - e
realimentar o mesmo circuito, às custas de uma patente irracionalidade social e
ambiental.

Segundo Pierre Dardot e Christian Laval em A Nova ‘azão do Mu do (2013),


essa matriz, mais do que uma política econômica, consiste numa racionalidade que
estrutura a ação de governantes e a conduta dos governados, efetuando-se por meio de
um conjunto de práticas, discursos e dispositivos configurados em torno da competição.
Essas práticas e dispositivos tornam-se um modelo de subjetivação e são internalizadas
em sua lógica normativa, constituindo-se como um dos pilares da reprodutibilidade do
sistema, em meio às constantes crises e danos por este provocados. A pergunta crucial
que esses autores fazem é:

como é possível que, apesar das consequências cada vez mais


catastróficas a que nos têm levado as políticas neoliberais, que elas
sejam cada vez mais ativas, associando Estados e sociedades em crises
políticas e regressões ada vez ais graves? (Laval;Dardot, 2013:13,
trad. A.).

A resposta que propõem é a de que se trata de uma maneira mesma de


organização da realidade, de uma razão regida pelo princípio da concorrência e pela
forma-empresa. No modelo de subjetivação ativado pela racionalidade neoliberal, o
sujeito introjeta a lógica de valorização do valor estabelecendo, de modo homólogo ao
capital, uma relação o à eleà es oà o oà apitalà hu a o à ueà deveà au e ta à
indefinidamente, um valor que tem que aumentar cada vez mais (idem:21). O que está
aí em jogo é uma lógica normativa que é assimilada de modo transversal, desde o plano
pessoal, da subjetividade, até aquele governamental (idem:24).

Na era da emergência – que corresponde a um estado de crise permanente em


que se reintroduziu a insegurança social - o binômio esperança / medo, afetos estes
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o ple e ta esà ueà estãoà vi uladosà e à suaà dependência mútua em relação à


te po alidadeà daà expe tativa à “afatle,à :7 , e cuja tensão interna acompanhou
inúmeros debates modernos sobre utopia, tende a dar lugar ao binômio urgência / risco,
no qual a distância entre o que se aspira e o que se faz é agudamente encurtada, e em
que muito da luta social é feita em nome de um futuro que não seja pior .

Nesse novo tempo , a matriz dominante quanto à relação com o futuro mudou
significativamente. Na fase anterior de predomínio do capitalismo industrial, a estrutura
temporal foi marcada pela linearidade e pela abertura utópica fomentada pela noção de
progresso: por um lado, tratava-se de se buscar produzir mais dentro de um mesmo
intervalo de tempo, visando-se obter maiores quantidades e de modo mais rápido; por
outro lado, essa aceleração articulava-se a um horizonte aberto do porvir e à fé no
avanço constante em direção ao aperfeiçoamento social, crença esta que vigorou até
meados do século passado.

O colapso da ideia de progresso foi parte das transformações que deslocaram a


relação dominante entre presente, passado e futuro em direção a uma dinâmica em que
o presente tende a substituir o porvir, conformando, nos termos de Helga Nowotny, um
p ese teàp olo gado à 1992:49). No plano das trocas mercantis,

o futuro é um crédito ao qual se recorre incorporando-o a um presente


prolongado e esperando que o presente será suficiente para
reembolsar a soma necessária dos interesses exigidos – e a mais valia.
Dispõe-se do futuro como se ele estivesse presente e assim se engendra
u prese te prolo gado (idem: 51, trad. A.).

A dinâmica gerada pela economia-mundo capitalista passou a ser cada vez mais
presentista, efetivando-se numa experiência do tempo assentada, por um lado, em
fluxos de aceleração, de novidade (como também de obsolescência) e mobilidade e, por
outro, na estagnação social de amplas populações, cujo projeto (se assim pode-se dizer)
é o da sobrevivência. A celeridade já não evoca um futuro radioso, ao mesmo tempo em
que se testemunha a debilitação de projetos a longo prazo, típica da racionalidade
competitiva neoliberal:à oàfutu oàdasà ia çasà ãoà à aisài te p etadoàe àge alàdeà odoà
individual – como um desejo de promoções e de bem-estar social – mas como uma
uestãoàdeàso evidaà oletiva à Nowotny, 1992:51, trad. A.). As velocidades relativas da
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inovação, repetição e destruição são fortemente moduladas, no presente prolongado,


por ciclos de vida de tecnologias ativadas por um capital-risco criado e destruído a fim
de que a acumulação e a circulação continuem. Nessa modulação, a simulação de
eventos e processos (em bases estatísticas) sobrepõe-se cada vez mais ao imprevisto,
num empenho em previsões e prognósticos que concorrem material e simbolicamente
para um encolhimento do que está por vir.

Dois outros fatores intervêm agudamente nesta hipertrofia do presente: o


primeiro, refere-se à conformação da era do trabalho precarizado e do desemprego
estrutural, que acompanhou a reorganização produtiva denominada como acumulação
flexível, em curso desde os anos 1970. De um lado, contratos de trabalho pautados em
tarefas e curto prazo, sem garantias de continuidade, colocando os contratados numa
eterna corda-bamba; de outro, o desempregado, para quem o futuro torna-se
aprisionado, aniquilando seus projetos (e a estes podem se juntar, atualmente, o
número crescente de milhões de imigrantes). O segundo fator, intimamente ligado ao
primeiro, é o do endividamento: o poder da dívida atinge tanto os que estão em
atividade quanto os desempregados, as famílias, empresas e o Estado, e apresenta-se
como

se não fosse exercido nem pela repressão nem pela ideologia. Livre ,
o devedor não tem, no entanto, outra escolha a não ser inscrever suas
ações, suas escolhas no caminho definido pelo reembolso da dívida que
contraiu (...). As modalidades de gestão da dívida comprometem as
gerações por vir. E conduzindo os governos a prometer e honrar suas
dívidas, o capitalismo se apodera do futuro (Lazzarato, 2012).

No campo da arquitetura e do urbanismo, a experiência presentista conforma-


se bem naquilo que Rem Koolhaas denominou como cidade genérica e espaço-lixo, nas
formas de produção do espaço em que o tempo vai sendo afastado em prol de
renovação local ou p e a iedadeà ha ita io alà ult a pida , afirma François Hartog
(2014:15). Como não comentar, nestes termos, sobre uma pérola dessa arquitetura
presentista, entre nós: o recém inaugurado Museu do Amanhã, no Pier Mauá (RJ), a
começar pelo seu nome...

Outro poderoso instrumento presentista, continua Hartog, é o turismo,


efetuando a ideia do mundo todo ao alcance da mão (idem,148). Nessa ordem temporal
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observa-se uma mudança no regime de memória,àpoisà a memória não é mais o que


se deve reter do passado para preparar o futuro que se quer: ela é o que faz com que o
presente seja presente para si mesmo . (Pierre Nora apud Hartog, 2014:163). Ela tem
sido manipulada como um instrumento presentista, sem capacidade performativa. O
tempo midiático, assim como o tempo do mercado e da economia são elementos dessa
ordem temporal e realimentam sempre as mesmas premissas, a despeito do devir
constante.

A radicalização da forma-mercadoria nos vários domínios socioeconômicos do


último meio século, que está na raiz dessa matriz temporal, implicou transformações
significativas na produção do espaço e na generalização do urbano, atingindo
diretamente a produção da arquitetura e do espaço público produzidos neste país. Isso
provocou uma troca de sinal da arquitetura: no presente, ela traz, como condição
histórica de sua concepção e imaginação crítica, a profunda fragilização daquele campo
de negatividade e de possibilidades de experiência social associado ao tempo das
promessas emancipatórias, que alimentou tantos projetos.

Do ponto de vista sistêmico, uma questão que se pode extrair é: como nossa
arquitetura tem enfrentado essa condição em que, socialmente, algo de realmente
significativo se desfez? Nessa condição, a noção de espaço público tem sido atacada em
seu núcleo, uma vez que a ideia de democratização de práticas coletivas tem sido
substituída pela ideia do risco associado a essas práticas, muitas vezes acompanhadas
de duras repressões: Esta osà vive doà u aà so iedadeà se u it ia deà is o ,à
argumenta Pauloà á a tes,à ujoà gove oà à aà so ató iaà deà u à se -número de
estratégias preventivas, nos moldes do Direito Penal do Inimigo, pelo menos como
ponto de fuga normativo . A mesma lógica parece reger algo como uma situação de
perene emergência econômica (...) (2014:318).

Comparativamente, quando a FAUUSP foi inaugurada, em 1969, em pleno


regime militar, seu projeto trazia em cada metro quadrado a afirmação de uma tese
socializante, como resistência política. Quase meio século depois, como detalha Giorgio
ága e àe à EstadoàdeàEx eção ,àaàsuspe sãoàdasà eg asàto ou-se técnica usual de
governo. Os tempos atuais de urgência – agora normatizados em vários níveis –
provocaram um deslocamento valorativo no quadro da arquitetura: nesse país, cada
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metro quadrado agora construído (salvo raríssimas exceções) reduz-se às exigências da


mais crua rentabilidade econômica, levando a funcionalização da arquitetura a
patamares críticos inéditos. Esses patamares têm colaborado para desconstruir a cidade
em vários sentidos, sobretudo quanto ao valor de seus espaços coletivos comuns. O
Programa MCMV, em sua escala nacional, sem dúvida é um exemplo consensual dessa
sistêmica desconstrução citadina e de espaços coletivos, mobilizando um montante de
recursos de enorme envergadura.

Nesseà ovoàte poàdoà u do , pode-se dizer que, entre nós, o campo do projeto
de arquitetura e suas fabulações sofreu um ataque matricial, perdendo muito do seu
possível estofo sociopolítico, em prol de um pragmatismo exasperado. Além disso, o
fato dos projetos públicos terem diminuído consideravelmente, tem favorecido a
hegemonia do privado, tradicionalmente pouco afeito à valorização do social em nossa
cultura, o que tem criado uma condição bastante delicada para a atuação de nossos
arquitetos e urbanistas.

Esse cenário contemporâneo, se, por um lado, tem acarretado entre nós este
acantoamento do potencial cultural da arquitetura e de suas ficções (entendidas aqui
como criações imaginárias calcadas no real) –- por outro, contraditoriamente, tem sido
campo de atuação e matéria-prima de uma profícua produção de ficções artísticas,
transformando sensivelmente os espaços urbanos em que se envolvem.

Tomado em amplo espectro, o que se tem visto nas últimas cinco décadas no
país é um florescimento qualitativo notável desse âmbito artístico, produzindo novas
formas estéticas e gerando uma pluralidade tanto de produtores quanto de
espectadores, de modo a reconfigurar completamente a cena urbana neste campo da
cultura. Vetores de proposição e atuação artística que nos anos sessenta e setenta
estavam apenas despontando, transmutaram-se num espaço de produção diversificado,
amplo e rizomático.

Do ponto de vista econômico, este domínio de ação também experiencia de


forma danosa os efeitos da racionalidade mercantil, já que não existe ilha neste sistema.
Porém é preciso lembrar que se, por um lado, os produtos da cultura foram em muito
assimilados à mercadoria – como Adorno e Horkheimer apontaram desde os anos 1940,
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quando da proposição do conceito de indústria cultural – por outro, na cultura também


abriga-se um potencial de ação antibarbárie constituindo-se como um solo de
germinação de possibilidades. É neste solo que situo aqui as ficções estético-políticas,
que se caracterizam por mobilizar simultaneamente a invenção artística e a efetuação
crítica, dissensual, questionando reflexivamente as tramas da racionalidade dominante.

Nessa constelação, ressalto trabalhos que se voltam para os espaços urbanos,


protagonizando-os, como ocorreu em um monumento horizontal demarcando o lugar
na rua onde um jovem foi morto por policiais; numa procissão noturna pelas ruas de um
bairro semi-destruído pelo mercado imobiliário; na transformação de lotes vagos em
espaços de uso público e coletivo; em ônibus sem catraca; em cozinhas temporárias
abertas num bairro, como forma de socialização coletiva.

Um dos eixos políticos que atravessa trabalhos como esses é uma insistência em
se repensar o comunitário, o engajamento de coletividades, ao mesmo tempo em que
formulam-se sínteses críticas e um investimento no potencial de latências coletivas,
antepondo-se a injunções que desestabilizam a vida socialmente. Neles, o porvir de um
outro modo de viver é ensaiado no presente, tomando corpo, mostrando-se em uma de
suas facetas.

Duas peças paulistanas de teatro político trabalharam de modo incisivo com as


questões anteriormente colocadas. A primeira, intitulada O Farol – A máquina do tempo
ou o lo go agora , de autoria do coletivo teatral OPOVOEMPÉ, foi realizada em 2012.
Trata-se de um experimento cênico organizado em três partes, sendo O Farol a primeira
delas (OPOVOEMPÈ, 2012). Essa peça entrelaça a questão do presentismo e da
aceleração do tempo, ao tema do grande capital e suas típicas estratégias imobiliárias
neoliberais de produção do espaço urbano na metrópole. Nasà palav asà doà g upo,à Oà
Farol seria o experimento focado na cidade. A cidade determinou sua dramaturgia. [E]
O espaço constitui seu primeiro eixo dramatúrgico à . A encenação consiste num
percurso que se desenrola a partir do interior de uma das torres do World Trade Center,
numa região emblemática próxima à Ponte Estaiada, no Rio Pinheiros, ambos ícones da
arquitetura do grande capital na cidade, e segue por trem até a estação final da CPTM,
em Presidente Altino, onde a paisagem é tipicamente periférica. Um fone de ouvido é
utilizado, não como guia mas com uma certa trilha sonora.
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Do ponto de vista propriamente teatral há experiências testadas, como: o


número de espectadores admitidos a cada percurso – no máximo 2, os quais são
acompanhados por uma atriz u à fa ilitado à daà expe i ia,à uaseà i visível ) -
alterando-se a relação usual entre artistas e público no âmbito cênico; e a ausência de
representação e de texto, num modo de pesquisa e desenvolvimento de novas formas
estéticas em sintonia com o teatro de tipo pós-dramático.

Ao longo do percurso urbano proposto, as arquiteturas, as paisagens e os


espaços são os protagonistas, observando-se como a cidade revela o seu tempo, os
fortes contrastes econômicos, fronteiras sociais, assim como a ausência de espaços
públicos não utilitários; caminha-se na marginal de um rio morto transformado em
esgoto; vê-se ainda, de um lado, a ostentação financeira, material e estética dos
edifícios, até espaços completamente técnicos e funcionais como o próprio pátio da
CPTM com os vagões estacionados, em fim de linha.

O espetador que essa peça trabalha é muito próximo daquele que Rancière
de o i aà o oàoà espe tado àe a ipado :à àoàseuàolha ,àsuaàsu jetividade,à e ó ia,à
ideário e suas montagens – e não as falas ou representações dos atores – que darão
conta (ou nâo) de elaborar este percurso cênico como uma experiência artística e crítica.
No registro escrito por um deles, lê-se:

Dali a pouco, o trem me leva ao subúrbio da metrópole. A um subúrbio


próximo, que outros muito mais distantes existem. Todos eles, quanto
mais longínquos mais desprovidos das torres gigantescas, dos vidros
espelhados, de condutores de ar condicionado, de elevadores falantes,
de confortos, de avenidas grandiosas, de carros velozes. Tão mais
parados. (...) Fico mais uma vez a me perguntar: o que justifica a
continuidade dessa diferença na distribuição das benesses vindas do
conhecimento que se acumula? (Opovoempé, 2012)

A segunda peça intitula-seà A últi a palavra a pe últi a ,1 é da autoria do


Teatro da Vertigem, e foi encenada numa passagem subterrânea, fechada há anos, da
Rua Xavier de Toledo, em frente ao Teatro Municipal, no centro de São Paulo. Foi
realizada, primeiramente, em 2008 e remontada em 2014 para a edição da Bienal de

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Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MB4jJXSqugo – acesso janeiro de 2016.
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Arte de São Paulo. Baseia-se em um escrito do filósofoà Gillesà Deleuzeà i tituladoà Oà


esgotado ,àe à ueàseàdiz:à

o esgotado é muito mais que o cansado. Não u si ples a saço,


ão estou si ples e te a sado, apesar da su ida . O a sado ão
dispõe mais de qualquer possibilidade (subjetiva) – não pode,
portanto, realizar a mínima possibilidade (objetiva). Mas esta
permanece, porque nunca se realiza todo o possível; ele é até mesmo
criado à medida que é realizado. O cansado apenas esgotou a
realização, enquanto o esgotado esgota todo o possível. O cansado
não pode mais realizar, mas o esgotado não pode mais possibilitar.
(Deleuze, 1992:67 –trad.).

Esse experimento cênico, também pós-dramático, exime-se de textos e falas. O


público, a cada sessão, foi alocado dentro das vitrines laterais ao longo do corredor da
galeria, assumindo-se a ambiguidade dessa situação. Nela trabalha-se uma perspectiva
crítica sobre a vida urbana contemporânea: àaà idadeà ueà passa àpeloàespaço linear
central, em conflitos, urgências, riscos, espera, obrigação, anseio, desencontro, solidão,
vigilância, ódio, medo, estranheza, silêncio, cansaço, exaustão, esgotamento.
Ambiguamente, este esgotamento reafirma as cruezas e impasses comentados
inicialmente, ao mesmo tempo em que mostra que todo o possível ainda não foi
esgotado, e que há algo por fazer.

A ideia de que o campo da experiência estética tenha certa força indutora no


campo social, de que aos poucos sejam elaboradas certas experiências que poderão
modificar a sensibilidade e tenham força política num plano mais amplo, já estava
presente na teoria estética de Adorno, e foi reafirmada - segundo uma outra formulação
filosófica - por Rancière em sua proposição conceitual da partilha do sensível. Esta
partilha implica, simultânea e contraditoriamente, o compartilhamento de algo comum
e a divisão deste sensível em partes exclusivas. A ação política, nestes termos, consiste
na reconfiguração dessa distribuição, implicando a mútua constituição entre o estético
e o político, de modo que algo de um modifica o outro internamente.

A ação política liga-seà àideiaàdeàutopiaà ua doàaàutopiaàse veàpa aàva ia àasà


percepções de um mundo e a fazer aparecer outro, a constituir a cena de oposição de
doisà u dos à ‘a i e,à :à7 -4). As ficções artísticas, em meio a muitos obstáculos,
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têm, a seu modo, constituído essas cenas, oxigenando-nos. Resta-nos a imensa tarefa
social de reconfigurar tais ficções, em relação à arquitetura.

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Referências

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(orig.:2003).
Arantes, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo, Boitempo, 2014.
Deleuze, Gilles (1992). L Épuis .àI :àBECKETT,à“a uel.àQuad et autres pièces pour la télévision.
Paris: Minuit. Tradução de Ovídio de Abreu e Roberto Machado, disponível em:
http://www.zahar.com.br/sites/default/files/arquivos//t1303.pdf
Hartog, François (2014). Regimes de Historicidade. Presentismo e experiências do Tempo. Trad.
Andréa S. Menezes; Bruna Beffart; Camila R. de Moraes; Maria Cristina de A. Slva; Maria
Helena Martins. Beho Horizonte, Autêntica (orig.: 2003).
Laval,Christian; Dardot, Pierre. La nueva razón del mundo. Trad. Alfonso Diez. Barcelona,
Editorial Gedisa, 2013 (orig. 2009).
Lazzarato, Maurizio (2012). A era do homem endividado.
End: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1108. Acesso: 10/01/2016.

Nowotny, Helga (1992). Le temps à soi – ge se et stru turatio d un sentiment du temps. Trad.
Sabine Bollack; Anne Masclet. Paris, Éditions de la Maison des S ie esàdeàl Homme (orig.:
1989).
Opovoempé (2012). A Máquina do tempo (ou o longo agora).
End.: http://opovoempe.org/site/wp-content/uploads/2012/08/7.Publicacao-Maquina-
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Rancière, Jacques (2010). « Communistes sans communisme ? », in L Id e du o u is e.


Conférence de Londres, 2009, sous la directio à d álai à Badiouà età “lavojà Žižek,à Paris,
Nouvelles Éditions Lignes.
________à .à“e sàetàusageàdeàl utopie.àIn: Michèle Riot-Sarcey. L Utopie e Questions. La
philosophie hors de soi. Saint-Denis, Presses Universitaires de Vincennes.

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