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SEASPIRACY, HANDLE WITH CARE

Artigo de opinião, por Paulo Santos

A novidade estava aí, falada por todo o lado, um documentário que expunha os crimes mais
terríveis da pesca comercial e o seu impacto no ecossistema marinho.

Depois de tanto ouvir falar nele – refiro-me, claro, ao documentário Seaspiracy – lá investi
uma hora e meia do meu tempo para perceber do que se tratava.

E fiquei deveras preocupado!

Fiquei preocupado! Não pelo conteúdo do documentário (já lá vamos) mas por ver que a
muita gente podia estar a escapar algo que, para mim, me parecia tão óbvio: Seaspiracy não
é um documentário, é propaganda ativista radical para defender uma tese…

E que tese é essa? Durante todo o documentário, se estiverem atentos, ela vai aparecendo
aqui e acolá: reduzam ou eliminem o consumo de peixe…

E porquê? A verdadeira razão a que os autores procuram chegar vem mesmo no final. Os
peixes são animais sencientes, logo não temos o direito de lhes causar sofrimento e de os
explorar. Por isso não os devemos consumir, temos que nos converter ao vegetarianismo…

Pelo meio vão apresentando vários argumentos. Eles são o plástico no oceano composto na
sua maioria por material de pesca, os crimes da pesca comercial e o correspondente impacto
nos stocks de peixe, o criminoso comércio das barbatanas de tubarão, a pesca de cetáceos

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em vias de extinção, a suposta farsa das entidades que certificam a pesca sustentável, etc.
Nem a aquicultura escapa…

A dado ponto estranhei e comecei a prestar mais atenção! Não há soluções perfeitas, mas
todos sabemos que, com algum esforço, é possível ter soluções viáveis do ponto de vista
ambiental, servindo aquilo que são as necessidades do consumo humano. Mas para estes
indivíduos tudo era mau e não havia solução possível. A não ser uma, reduzir ou eliminar o
consumo de peixe…

Começando a prestar maior atenção, voltando atrás algumas vezes, procurando compreender
o ponto de vista apresentado e ler nas entrelinhas, comecei a aperceber-me de uma coisa.
Este suposto “documentário” (a partir deste ponto passo a usar aspas propositadamente) faz
muitas alegações com base em provas muito superficiais – meia dúzia de conversas – e sem
ser profundamente factual, nomeadamente recorrendo aos estudos da comunidade científica
e falando com os peritos na matéria.

Se elencarmos todos os entrevistados encontramos um total de cinco cientistas num universo


de trinta pessoas que aparecem ao longo da entrevista. Curiosamente aparecem mais
colaboradores da Sea Shepherd – seis ao todo – do que cientistas.

É também curioso que vinte e quatro dos testemunhos, nos quais se incluem os cinco
cientistas, são favoráveis ou corroboram argumentos que suportam a tese apresentada. Não
há contraditório:

• Ric O’Barry, fundador do Dolphin Project, apresentado no próprio documentário como


um ativista
• Lori Marino, fundadora do Whale Sanctuary Project
• Tamara Arenovich, da Sea Shepherd, cuja opinião sobre a caça submarina já
conhecemos
• Paul de Gelder, ativista de tubarões, conservacionista
• Professor Callum Roberts, cientista marinho, oceanógrafo e autor
• Gary Stokes, co-fundador da Oceans Asia
• Captain Peter Hammarstedt, da Sea Sepherd, mais um
• Lamya Essemlali, da Sea Shepherd, mais uma
• George Monbiot, jornalista, autor e ambientalista

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• Dr. Sylvia Earle, bióloga marinha, oceanógrafa, exploradora
• Cyrill Gutsch, fundador da Parley for the Oceans
• Capitão Paul Watson, da Sea Shepherd, outro
• Richard Oppenlander, autor de Food Choice and Sustainability
• Professora Christina Hicks, cientista social ambiental
• Stephano Tricanico, da Sea Shepherd, mais um
• Alistair Allan, da Sea Shepherd, com este são seis ao todo
• Corin Smith, fundador da Inside Scottish Salmon Feedlots
• Don Staniford, fundador da Scotish Salmon Watch
• Steve Trent, Environmental Justice Foundation
• Jonathan Balcombe, biólogo, autor de What a Fish Knows
• Dr. Michael Greger, médico, autor de How Not to Die
• Dr. Jane Hightower, médica, autora de Diagnosis: Mercury
• Dr. Michael Klaper, médico
• Dominique Barnes, co-fundadora de New Wave Foods, bióloga marinha

Neste “documentário” há seis pessoas que são usadas para um verdadeiro “roast”, sendo
apresentados como hipócritas, corruptos e um sanguinário. Curiosamente estas são pessoas
que trabalham com a indústria, procurando soluções para uma pesca sustentável:

• Mark J. Palmer, da Dolphin Safe Tuna/Earth Island Institute


• Jackie Nuñez, Plastic Pollution Coalition
• Diana Cohen, CEO da Plastic Pollution Coalition
• Maria-José Cornax, Oceana
• Comissário Karmenu Vella, comissão das pescas e do ambiente do Parlamento
Europeu
• Jens Mortan Rasmussen, baleeiro das Faroé

É demasiado primário. De um lado os bons (ativistas e similares) do outro lado os maus


(pescadores, aquicultores e quem coopera com eles). Para mim não cola, a realidade é muito
mais complexa, não se consegue abordar um assunto destes, e com esta abrangência, a partir
de uma visão tão radical a preto e branco. Como em tudo, há tons de cinzento.

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Um dos momentos do “documentário” que acho absolutamente incrível é quando afirmam
que os observadores a bordo dos navios de pesca são alvos de assassinato, sem apresentar
qualquer prova conclusiva, no meu entender. Uma coisa é apresentar uma forte suspeita,
outra é afirmar que estes observadores desaparecidos foram assassinados pela “máfia” da
pesca comercial. Demonstra superficialidade e futilidade num assunto tão sério! Não é
credível.

Ainda mais irrisório se torna quando, no mesmo “documentário”, apresentam os piratas da


Somália como uns pobres injustiçados, que não tiveram outra hipótese a não ser recorrer à
pirataria, porque a pesca comercial devastou os seus mares e os deixou sem sustento.
Recordo que estes piratas são responsáveis por múltiplos crimes, entre os quais assassinatos.
Enfim…

No fundo, como peça de investigação jornalística pareceu-me muito fraca, muito pouco
sustentada. Acabei por concluir que eram ativistas que estavam a dialogar comigo, para me
convencerem que tenho que reduzir ou eliminar o consumo de peixe.

E sou só eu a pensar assim? Por momentos pensei que podia estar a ser paranoico. Mas meia
dúzia de pesquisas deixaram-me mais descansado. Posso ser paranoico, mas não sou o único
no mundo a ter esta opinião sobre este “documentário”:

• O New York Times é demolidor na sua opinião relativamente a este “documentário”:


https://www.nytimes.com/2021/03/24/movies/seaspiracy-review.html
• Valentine Thomas, uma conhecida caçadora submarina, também é demolidora
relativamente a este “documentário”:
https://pescavoreseafood.com/blogs/news/seaspiracy-anti-intellectualism-in-the-
modern-age
• Neste vídeo Ray Hilborn, um cientista investigador da atividade pesqueira, rebate
muito dos argumentos apresentados:
https://www.intrafish.com/sustainability/video-seaspiracy-contains-more-lies-than-
a-donald-trump-press-conference-says-top-fisheries-scientist/2-1-990792
• Neste podcast da Intrafish, uma agência de notícias do mundo da pesca, os
comentários ao “documentário” seguem a mesma linha:

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https://soundcloud.com/intrafish/seaspiracy-had-everyone-excited-until-they-
watched-it
• Até mesmo o Greenpeace se pronuncia sobre o tema defendendo uma tese
substancialmente diferente, refutam a solução de reduzir ou parar o consumo de
peixe: https://www.greenpeace.org/aotearoa/story/seaspiracy-netflix-movie-take-
action/

Já agora, para quem queira ver algum contraditório, podem ler as seguintes respostas ao
“documentário”:

• A Marine Stewardship Council publicou uma resposta a este “documentário”


rebatendo alguns dos argumentos que são apresentados:
https://www.msc.org/media-centre/news-opinion/news/2021/03/26/response-to-
netflix-seaspiracy-film
• A Global Aquaculture Alliance também publicou uma resposta ao “documentário” na
mesma linha da resposta apresentada pela Marine Stewardship Council:
https://www.aquaculturealliance.org/advocate/seaspiracy-film-assails-fishing-and-
aquaculture-sectors-that-seem-ready-for-a-good-fight/

Com isto eu não estou a dizer que não há problemas de poluição e sobrepesca, e que tudo
seja uma maravilha na aquicultura, etc. De facto, há problemas, o ecossistema marinho está
ameaçado e devem ser procuradas soluções no sentido de tornar a pesca sustentável a nível
global.

A minha preocupação vai para a comunidade dos pescadores lúdicos, porque vejo muitos a
darem este “documentário” como bom e a fazerem publicidade do mesmo. É preciso ter
consciência que estão a alinhar ombro-com-ombro com o ativismo vegan. E o ativismo vegan
não gosta da pesca lúdica. Seja ela a caça submarina, a pesca à linha apeada ou a pesca à linha
embarcada.

Por isso deixo um alerta: handle with care! Não devemos dar força a este movimento vegan,
se queremos lutar pela sustentabilidade da pesca, procuremos outras formas. Escolham bem
os vossos aliados!

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Para fechar gostaria de deixar este pensamento final: cuidado com quem apoias, um aliado
de hoje pode ser o teu carrasco amanhã!

Oeiras, 4 de Abril de 2021

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