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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEPORÂNEA


DO BRASIL (CPDOC)

Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida


a citação. A citação deve ser fiel à gravação, com
indicação de fonte conforme abaixo.

DUARTE, Luiz Fernando Dias . Luiz Fernando


Duarte (depoimento, 2022). Rio de Janeiro,
CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), (3h
27min).

Esta entrevista foi realizada na vigência do convênio


entre BANCO SANTANDER. É obrigatório o
crédito às instituições mencionadas.

Luiz Fernando Duarte


(depoimento, 2022)

Rio de Janeiro

2023
Ficha Técnica

Tipo de entrevista: História de vida


Entrevistador(es): Celso Castro; Silvia Monnerat Barbosa e Beatriz Klimeck
Técnico de gravação: Gabriel Cardoso;
Local: Rio de Janeiro - RJ - Brasil;
Data: 29/06/2022
Duração: 3h 27min
Arquivo digital - áudio: 1; Arquivo digital - vídeo: 1;

Temas: Antropologia; Antropologia urbana; Associação Brasileira de Antropologia (ABA);


Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS); Bolsas
de estudo e de pesquisa; Carreira acadêmica; Carreira diplomática; Ciências Sociais;
Ditadura; Ensino privado; Ensino público; Esquerda; Ética; Família; Gilberto Velho;
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); Jornalismo; Marxismo;
Museu Nacional; Niterói; Palácio Itamaraty; Pontifícia Universidade Católica; Pós -
graduação; Psicanálise; Psicologia; Reforma Universitária de 1968; Rio de Janeiro (cidade);
Sistema de cotas; Teatro; Universidade do Estado da Guanabara; Universidade do Estado do
Rio de Janeiro; Universidade Federal do Rio de Janeiro; Universidade Federal Fluminense;
Sumário

Entrevista: 29/06/2022 Origens familiares; família de classe média abastada em Petrópolis e


que tinha relações com a história da cidade; capital cultural da família; interesse pela
carreira diplomática por influência de um primo; nasceu em Niterói e aos 5 anos mudou
para Petrópolis; estudo em colégio público; primário em escola construída pelos bisavôs;
estudo no Colégio Pedro II, de Petrópolis; ginasial no Ginásio Estadual Washington Luiz; o
que se chamava de clássico foi feito em uma escola particular no Colégio São José, em
Petrópolis; a preocupação intelectual iniciou-se no ginásio; grande interesse pela leitura;
ganhou prêmio de melhor crônica do jornal da cidade; participação em grupo de teatro
amador, organizado pelo professor Mauricio Cardoso de Mello e Silva; prêmios com o
teatro amador; temor dos pais com o seguimento da carreira teatral; preparação para o
Itamaraty; mudança para o Rio de Janeiro para cursar direito na Universidade do Estado da
Guanabara, em 1968; importância dos cursos de idiomas; questionamento de seguir a
carreira de diplomata durante a ditadura; desistência do Itamaraty; aproximação com ideias
de esquerda e marxismo; conhecimento da Antropologia Estrutural, de Lévi-Strauss;
fascinação pela Antropologia e realização de cursos avulsos de Ciências Sociais na
Universidade Federal Fluminense (UFF); mestrado no Museu Nacional; pesquisa sobre “O
templo dos judeus em Botafogo” como requisito para entrada no Museu; início do mestrado
em 1974; processo seletivo do mestrado no Museu; trancamento do curso de jornalismo;
trabalho como tradutor no gabinete do Reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), durante a faculdade, em 1968; tornou secretário do Conselho de Ensino para
Graduados e Pesquisa (CEPEG); institucionalização da Reforma Universitária; leitura das
primeiras dissertações do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do
Museu; descobrimento e interesse pela psicanálise; acesso à Antropologia Psicanalista;
identificação com Antropologia Urbana; realização de campo com uma família de Jurujuba
para o trabalho de conclusão de curso da disciplina Antropologia Urbana, do Gilberto
Velho; mudança de orientação do Gilberto Velho para orientação com a Lygia Sigaud;
acesso a bibliografia durante a formação e atualmente; importância do inglês e francês no
mestrado; tese de doutorado datilografada; alteração do contrato de tradutor para Auxiliar de
Ensino; realização do mestrado sem bolsa e trabalhando; passagem direta do mestrado para
o doutorado; orientação de Gilberto Velho no doutorado; publicação da tese, A Vida
Nervosa, defendida em 1985 na coleção do Gilberto Velho na editora Zahar; conhecimento
de Louis Dumont através da tese de doutorado de Luiz Tarlei; aproximação com a área psi
(Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise); batalha para o conhecimento da Antropologia da
Saúde e da Doença no Brasil; deu disciplina no curso de Aperfeiçoamento em Psicologia
Clínica da Pontifícia Universidade Católica (PUC); foi professor visitante da PUC; interação
com a área psi; participação da comissão editorial do Jornal Brasileiro de Psiquiatria;
mudança da corporalidade no mundo psi; artigo sobre como a Antropologia Médica trata os
“nervos” publicado na revista Physis; coadjuvante na criação de um establishment de
Antropologia da Saúde e Doença no Brasil; projeto sobre a psicologização no Brasil junto
com o pessoal do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ); escrita sobre Arthur Ramos; diálogo com a neurociência; críticas as vertentes
reducionista das neurociências; após a defesa em 1985 passou a ser professor titular pleno
das disciplinas; ethos do PPGAS do Museu e sua transformação; posicionamento sobre
cotas raciais no Museu Nacional; renovação dos professores no PPGAS; incêndio do Museu
Nacional; perdas pessoais e do Museu; recuperação do Museu; as pragas sucessivas:
incêndio no Museu, mudança de governo e pandemia; aulas pelo Zoom; trabalhos de campo
após o incêndio; volta ao presencial do Museu; impactos da pandemia; atenção ao Comitê
de Ética em Pesquisa (CEP) e Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP); vice-
presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA); pesquisas com indígenas
submetidas à CONEP; ética em pesquisas voltada para as Ciências Humanas e Sociais;
participação, com Cynthia Sarti, representando a ABA e a Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) em um Grupo de Trabalho (GT) da
CONEP sobre ética em pesquisas para as Ciências Humanas e Sociais; comprometimento
institucional e premiações; presidente da Associação de Amigos do Museu; trabalho no
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); bolsa Sênior do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); retomada das atividades
acadêmicas; orientação de teses; artigo sobre influência do Erving Goffman no PPGAS;
impacto de Dumont em sua vida.
Entrevista: 29/06/2022

Celso Castro - Muito bem, comecemos. Hoje é dia 29 de junho de 2022. Vamos fazer mais
uma entrevista do Projeto Memória das Ciências Sociais no Brasil. Hoje, com o professor Luiz
Fernando Dias Duarte. Celso Castro, Silvia Monnerat e Beatriz Klimeck entrevistando. Ana
Carla, nossa bolsista, no suporte e Gabriel filmando. Bom, Luiz Fernando, em primeiro lugar,
eu queria agradecer muito a sua disponibilidade de colaborar com o nosso Projeto. Você viu, é
um grande conjunto de entrevistas. São mais de 100 já. Sobre memória das Ciências Sociais.
São depoimentos, entrevistas - sobre a trajetória pessoal, biográfica, acadêmica, profissional,
dos cientistas sociais brasileiros - que, depois, ficam disponíveis para consulta pública. Então,
já é, sem falsa modéstia, o maior acervo sobre história das Ciências Sociais no Brasil. Então, é
um prazer tê-lo aqui, por vários motivos. Até porque - eu estava falando - tem aqui um conjunto
de fãs seus. Eu fui seu aluno em dois cursos. Você foi das minhas duas bancas. Enfim, é um
professor muito querido. Silvia acabou sendo sua orientanda depois que o Gilberto morreu. Bia
é uma espécie de neta intelectual. Está fazendo o doutorado no IMS orientada por um ex-
orientando seu. Então, fugindo aqui à objetividade da entrevista, tem uma série de
características pessoais, biográficas, nossas. Mas, enfim, vamos falar sobre a sua trajetória.

Luiz Fernando Dias Duarte - Dão um tom.

Celso Castro - É, um tom. Mas, enfim, vamos acompanhar uma certa linha do tempo, não
necessariamente linear. Eu gostaria de pedir para você falar um pouco da sua família de origem,
onde você nasceu, seus pais ou, enfim, a família mais extensa…

L.F.D.D. - Certo. Bom, em primeiro lugar, agradecer o convite para fazer parte desse panteão
que vocês estão montando aqui. Começando, então, efetivamente, por essa rememoração das
origens sociais. Alguma coisa vocês certamente terão lido no meu Memorial, o Memorial que
eu elaborei para o concurso de professor titular na UFRJ, há 10 anos. Você me lembrava, Silvia,
agora há pouco, na conversa informal. Como eu dizia lá, eu vim de uma família de classe média,
muito marcada pelo imaginário da família de minha mãe. Era uma família que tinha sido
prestigiosa, tinha sido uma família de classe média abastada em Petrópolis e tinha várias
relações com a história de Petrópolis. Como eu acabei indo morar em uma casa que meus pais
construíram lá, nessa quinta que tinha sido de meus avós, meus bisavós, etc., eu fui muito

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marcado imaginariamente pela família de minha mãe do que pela família de meu pai, que era
uma família do Rio de Janeiro. Uma família de funcionários públicos. Meu pai era funcionário
público do Distrito Federal, do então Distrito Federal, do Rio de Janeiro. Foi onde ele se
aposentou ainda. Não era uma família erudita, não era uma família de capital cultural alto, mas
meu pai tinha um interesse cultural muito intenso. Era uma pessoa que gostava muito de
música, de música clássica… de todo tipo de música, da música clássica ao samba, ópera.. E
que lia vorazmente. Então, o meu interesse por leitura começou muito cedo, em função desse
fascínio de meu pai pela leitura e pela música. Uma música que não era apenas o deleite
musical, mas era o conhecimento a respeito do que significava, os compositores, as épocas, as
eras de produção musical etc. Claro que os gostos dele eram gostos… Ele tinha nascido em
1901. Meus pais se casaram muito tardiamente. Então, eram dois pais da belle époque, com os
pés ainda no século XIX, na verdade. Meus avós todos tinham nascido no século XIX.

C.C. - Você tinha irmãos?

L.F.D.D. - Tenho, vou falar deles. Em seguida, daqui a pouco. Bem, com isso, havia esse
influxo, do interesse pela cultura, de meu pai. Mas era assim: Victor Hugo, José de Alencar…
Machado de Assis já era moderníssimo para o meu pai. Do lado da família de minha mãe, havia
algumas personagens que marcaram as minhas possibilidades de interesse de carreira. Havia
um primo de minha avó materna que tinha sido diplomata. No tempo do Barão de Rio Branco
ainda, quando a diplomacia não era profissional. Era um homem rico que tinha sido guindado
à posição de diplomata. E um outro primo… Esse era um primo até um pouco mais distante,
do lado materno. Era botânico. Era do Jardim Botânico. Se tornou um grande especialista em
micologia, em cogumelos e fungos. Então havia esses dois exemplos na família que
parametrizavam um pouco as minhas possibilidades de interesse de carreira. O que fez com
que eu, desde muito cedo, me interessasse pela carreira diplomática, em função desse
personagem. Então, boa parte do meu treinamento acadêmico se deu com vistas a essa futura
carreira diplomática. Depois eu retomo esse fio. No âmbito familiar ainda, como o Celso
perguntou, eu tenho dois irmãos. Eu sou o primogênito. Isso traz uma certa carga, não é?
Sobretudo em relação à figura materna. Há muitos estudos sobre isso. Eu me interesso,
particularmente, por essa questão que eu chamo de “efeitos de fratria”, que são os efeitos
sociológicos a respeito da diferença da posição na ordem dos irmãos… dos irmãos e irmãs.
Enfim. Depois, eu tenho um irmão, o do meio, e tenho uma irmã mais moça. Todos já estão,

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enfim, claro, na minha mesma faixa etária. Há uma diferença de três anos entre eu e meu irmão
e entre meu irmão e minha irmã. Meu irmão continua vivendo em Petrópolis. Ele foi um drop
out, viveu uma vida on the road. On the road não, on the river. Porque ele foi para a Amazônia.
Ele viveu quase toda a vida em um barco nos rios da Amazônia. Até que, tendo tido quatro
filhos, ele se viu obrigado a se localizar em um lugar porque, se não, as crianças não poderiam
estudar. Então, ele acabou voltando. Ele, que tinha sido o mais audacioso, em termos de projeto
de vida naquela época, acabou sendo o único a continuar morando em Petrópolis. Eu e minha
irmã saímos de lá. Minha irmã mora no Rio também, é casada com um psicanalista. Teve uma
carreira na área de moda e vestuário feminino, essas coisas. Bom, a minha situação. Eu fiz os
meus estudos em Petrópolis.

C.C. - Você nasceu no Rio de Janeiro?

L.F.D.D. - Não, eu nasci em Niterói.

C.C. - Em Niterói.

L.F.D.D. - Porque quando meus pais se casaram - ele era do Rio e minha mãe de Petrópolis -
eles decidiram que o jeito seria encontrar uma alternativa a meio caminho, que seria Niterói.

C.C. - Não existia a ponte ainda.

L.F.D.D. - É, não existia a ponte. Então, compraram uma casinha em Niterói e eu nasci lá. Mas
logo eles construíram a nossa… o que nós considerávamos como a nossa casa, que foi em
Petrópolis. Então, a partir dos cinco anos, eu vivi em Petrópolis. Tenho algumas poucas
lembranças dessa casa de Niterói. Mas foi uma coisa de passagem. Eu me considero
petropolitano.

C.C. - Você estudou em colégio… em Petrópolis?

L.F.D.D. - Eu estudei em colégio público. O primário foi em uma escola que nós chamávamos
de “a nossa escola”. Porque era uma escola primária que o prédio tinha sido construído pelos
meus bisavôs para que houvesse uma escola próxima à família. Isso lá em meados do século
XIX. Essa escola tinha sido alugada à então… Eu tenho o contrato de aluguel à Província do
Rio de Janeiro, ainda no Império. Ali estudavam, passavam os primeiros anos, várias gerações

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da minha família materna. Eu também estudei ali, nesse prédio que nós chamávamos de “a
nossa escola”. Era só descer um terreno e entrar no prédio da escola. Depois, eu terminei no
Colégio Pedro II de lá de Petrópolis. Eu terminei o primário. Fiz o ginasial em uma escola
pública também, o Ginásio Estadual Washington Luiz. O que então se chamava de clássico é
que eu fiz em uma escola particular: o Colégio São José, em Petrópolis, que ficava ali na
Avenida Koeler. Hoje é o prédio da Prefeitura. Um prédio muito bonito, um prédio antigo,
muito bonito, daqueles prédios tradicionais de Petrópolis. Bem, no ginásio, é claro que eu
comecei a ter as minhas primeiras preocupações mais propriamente intelectuais, no sentido de
associar investimentos de leituras mais dirigidos. Eu lia muito desde muito pequeno. Eu tinha
10 anos quando meu pai me deu o Tesouro da Juventude, que eu li de cabo a rabo, todas as
frases, todas as letras daqueles, sei lá, doze volumes que tinham aquele Tesouro da Juventude.
Foram uma escola. Até hoje eu me lembro com carinho daquela leitura. E muitas outras coisas.
Eu lia vorazmente. Tudo o que havia em casa. Tudo o que eu… Eu pegava livros emprestados
de famílias amigas. Eu me tornei sócio da Biblioteca Municipal de Petrópolis, onde eu pegava,
toda semana, dois, três livros para ler. Eu era um “rato de biblioteca”. Então, no ginásio, eu já
começava a manifestar uma certa tendência intelectual. Os professores gostavam muito de
mim, eu era o bom aluno, era o “CDF”. Começava a escrever, escrever com interesse literário,
com gosto pela escrita. Ganhei um prêmio de melhor crônica do jornal da cidade. Aquela coisa
de cidade pequena. Mas conheci, a partir daí, vários professores muito marcantes. Um deles,
que eu menciono no memorial, Maurício Cardoso de Mello e Silva, era professor de Português
e de Literatura. Era um homem muito sensível, muito letrado. Tinha uma família numerosa.
Ele era muito animado. Além de nos estimular para a leitura e para o conhecimento da língua
portuguesa e da literatura brasileira e portuguesa, ele organizava saraus em casa, com música
clássica. Ele acabou organizando um grupo de teatro, que foi uma coisa muito importante na
minha formação. Um grupo de teatro amador, evidentemente. Quando eu estiver falando muito
fora do… saindo do script, vocês me avisem.

C.C. - Não, está ótimo.

L.F.D.D. - Porque falar de si é ótimo, não é? [risadas] Então, o Maurício organizou esse grupo
de teatro e eu comecei… Eu era um adolescente timidíssimo. Vocês podem imaginar um
adolescente desastrado, tímido, magro demais, de óculos. Enfim, era uma coisa… Era um
desastre total. O teatro me permitiu assumir uma posição social um pouco mais afirmativa. Eu

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me sentia melhor na minha casca. Eu tinha uma boa voz. Isso era uma coisa que me facilitava.
Eu sabia projetar a voz, etc. Eu tinha uma cultura em geral, dessas leituras tantas. Então, eu
fiquei muito requisitado. Fui um personagem importante dessa experiência de teatro. A gente
fazia textos importantes. Começamos com Doña Rosita La Soltera, do García Lorca, que é uma
peça que até hoje eu admiro demais. Nós, inclusive…

Silvia Monnerat - Ano passado, não é?

L.F.D.D. - É, inclusive, durante a pandemia, me deu a ideia de fazer uma montagem… Nós
montamos em português, claro. Na tradução excelente do Millôr Fernandes. Eu tinha lido,
depois, no original, em espanhol. Mas nunca assisti a montagem no original, em espanhol.
Como tenho muitos colegas, ex-alunos etc., hispanófonos, eu tive a ideia da gente fazer uma
montagem online. Eu distribuí o texto em espanhol do Doña Rosita. A gente fez, teve uma
experiência… Você assistiu?

S.M. - Assisti, eu estava lá assistindo.

L.F.D.D. - Isso me deu muita satisfação.

C.C. - Você era que personagem?

L.F.D.D. - Eu fiz… Nós fizemos duas montagens. Na primeira montagem eu fiz o Don Martín,
que é um personagem secundário que aparece no terceiro ato. Um senhor, um velho professor,
que está manifestando um sentimento de perda, da transformação do mundo. Na segunda
montagem, eu fiz os três papéis masculinos curtos. No primeiro ato, eu faço o primo. No
segundo, eu faço o Senhor X. Eu acho que se chama assim. É um pretendente à mão da Rosita.
É um sujeito muito pedante, tinha acabado de chegar de Paris e tal. No terceiro, eu voltei a
fazer o Don Martín. Então, eu fiz três papéis. Agora, nessa montagem em espanhol, eu não me
lembro qual que eu li. Não me lembro. Enfim, qualquer um teria me dado prazer. É uma peça
que… Bom, o García Lorca, de um modo geral, me encanta. Foi uma coisa muito marcante.
Depois, fizemos O Tempo e os Conways, que é uma peça de repertório muito conhecida.
Fizemos A Prostituta Respeitosa, do Sartre. Fizemos duas peças do Millôr Fernandes, muito
interessantes: O Homem do Princípio ao Fim… Eram montagens de textos que o Millôr
Fernandes fez, que eram muito interessantes: É – o título da peça era “É” – e a outra era O

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Homem do Princípio ao Fim. Enfim, foi uma longa experiência, muito cativante e muito…
cheguei… Meus pais tinham um certo temor de que eu… Embora eles dessem muito apoio à
minha participação no grupo, porque eles adoravam o professor Maurício, mas eles tiveram,
em um certo momento, um pouco de preocupação de que eu pudesse querer fazer a carreira
teatral [risadas]. Porque eles não consideravam, evidentemente, muito segura para o seu
primogênito. Eu ganhei prêmios. Teatro amador, tudo... nada… Mas, enfim. Foi uma coisa que
me fez muito bem. Ao mesmo tempo, eu estava fazendo os meus estudos, claro, me preparando
para o Itamaraty. Então, estudos de línguas, em Petrópolis ainda: Aliança Francesa… O inglês
eu não fiz lá. Nesse primeiro período eu estudava com uma querida professora, uma senhora
islandesa, Ms. Mackenzie, viúva de um escocês, por isso Mackenzie, com quem eu aprendi
inglês durante vários anos. Alemão, havia uma filial do Instituto Goethe em Petrópolis, então,
eu estudei alemão também. Espanhol eu estudei no secundário com uma professora muito
importante também, que foi muito importante na minha formação, Lucia Miranda e Silva. Bem,
aí, quando eu vim… Bem, naquela época ainda era regular que se fizesse Direito para fazer…

C.C. - Era obrigatório, não é? Era obrigatório fazer pelo menos dois anos.

L.F.D.D. - É, você tinha que ter dois anos de graduação. Não era obrigatório que fosse Direito.
Eu acho que as pessoas mais modernas já estavam fazendo Economia. Mas eu ainda era uma
pessoa formada… Porque Petrópolis é uma cidade do interior, não é? Então, culturalmente…
então, eu vinha do interior, literalmente, para cair no Rio de Janeiro. Embora eu conhecesse o
Rio de Janeiro por causa da família de meu pai. Passava férias aqui sempre. Então, eu fiz
vestibular para Petrópolis e fiz para a UERJ - na época UEG - aqui no Catete. Decidi vir, então,
para o Catete, para a Universidade do Estado da Guanabara, na Faculdade de Direito. Comecei
essa parte e continuei os meus cursos de línguas. Entrei na Cultura Inglesa também. Terminei
a Aliança Francesa, Cultura Inglesa. Tirei todos esses títulos necessários: Michigan,
Cambridge, Nancy etc. Continuei o alemão lá no Instituto Goethe no centro da cidade. Eu
menciono no memorial que a Aliança Francesa foi uma experiência extraordinária, para mim.
Foi a minha melhor faculdade, eu digo isso. Porque era um curso… Eu não sei se ainda é, hoje;
espero que seja. Mas era um curso... Nosso último título era Diplôme de Langue et Civilization
Française, porque você estudava tudo: vinhos, províncias, história, literatura, etc. Então, foi
realmente uma formação muito preciosa, muito enriquecedora, à qual eu sou muito grato. Muito
melhor do que os meus cursos de inglês e mesmo de alemão. Porque o alemão, eu estudei acho

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que uns cinco anos. Mas eu me dei conta, quando passei para um certo patamar que se chama
Oberstufe [nível superior], que só quem estava acompanhando o curso era quem tinha alemão
em casa. Ou seja, não era um curso que preparasse efetivamente quem não tinha. Eu tenho até
ascendência alemã, mas era muito distante. Já ninguém mais falava alemão na minha casa.
Então aí eu desisti de continuar o alemão, embora eu consiga ler com um dicionário, e é muito
importante para mim, em certos aspectos da minha carreira mais recente. Depois eu posso
explicar isso, porque o alemão é importante atualmente para mim. Bem, então, me preparando,
eu fiz o curso Alpha, que era um curso privado que tinha excelentes professores. Todos eles
aposentados pela ditadura. O diretor era o Manoel Maurício de Albuquerque, que tinha sido
um importante historiador, professor do IFCS, da UFRJ. Acho que não se chamava IFCS na
época em que ele era professor. Acho que ainda era Instituto de Ciências Sociais. Não me
lembro exatamente. Esse curso foi também muito interessante, muito significativo. Ficava aqui
em Botafogo, não me lembro mais em que rua exatamente. O Direito era um desastre. Era um
curso horrível. Meu Deus, era um curso tão desmoralizante. Era aquela coisa bem tradicional.
Aquelas aulas verborrágicas, sem nenhum conteúdo crítico. Era realmente um desastre. Eu
fiquei muito decepcionado com isso e fui praticamente deixando de frequentar as aulas. Eu
comprava os livros, pegava as apostilas, estudava com colegas, comecei a fazer círculos na
faculdade. Se eu assisti a um semestre de aulas ao longo dos quatro anos de Direito foi muito.
Depois, apareceu um ou outro professor. Acabou de falecer um dos meus professores, o Célio
Borja. Professor de Direito Constitucional. Era um bom professor. Foi Ministro da Justiça. Era
um bom professor. Dois ou três professores se destacaram como efetivamente pessoas que
refletiam e ministravam um ensino de Direito que não fosse uma mera repetição de chavões ou
referências à legislação corrente. Então, quando eu terminei o segundo ano, eu me apresentei
ao concurso do Itamaraty e passei logo na primeira etapa. Era em duas etapas o exame. Ainda
era feito aqui no Palácio do Itamaraty. Eu passei na primeira etapa e iria fazer a segunda, mas
eu achei que seria melhor fazer no ano seguinte a segunda, para eu me preparar melhor. Porque
aí seria mais apertado ainda etc. Eu não tinha pressa. Eu já estava terminando o curso de Direito.
Mas, naquele ano… Isso foi em… Eu entrei na faculdade em 68, 69… Quer dizer, eu devo ter
feito isso em 1970. A Ditadura estava no auge. Eu já tinha me aberto a uma perspectiva de
esquerda, já tinha lido alguma coisa sobre o marxismo, já estava em uma posição… Depois eu
posso falar sobre isso, é uma outra linha de ataque de questões da minha carreira. Além da
convivência na faculdade, etc… Aliás, desde a influência do professor Maurício, esse de

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Petrópolis, toda a perspectiva era uma perspectiva crítica, de esquerda. Então, eu comecei a me
questionar como eu iria ser diplomata de um governo como aquele. Sabia-se que pessoas que
estavam na carreira eram controladas, que tinham… Depois eu até conheci algumas dessas
pessoas que, sendo… Como o Miguel Darcy de Oliveira, o Miguel e a Rosiska Darcy de
Oliveira, que eram diplomatas nessa época e foram aposentados e tal. Além de vários
diplomatas que tinham sido aposentados: Vinícius de Moraes… Enfim, muitos outros. Enfim,
então, eu desisti. De repente, eu desisti do Itamaraty. Foi um golpe, uma mudança de escala de
vida muito marcante, porque eu tinha vivido com esse norte, com esse rumo. A minha
biblioteca era toda voltada para isso, a minha formação, esses investimentos em línguas, etc.
Não era só em línguas, era também em Geografia, em História, porque os exames eram muito
abrangentes. Aí, o que fazer? Eu tinha um colega naquele momento, era meu colega na Cultura
Inglesa. Eu pus até o nome dele no Memorial, agora, de cabeça eu não sei se vou me lembrar.
Ele me falou que estava fazendo o curso de Comunicação na Fluminense e que estava muito
satisfeito. Ele me parecia uma pessoa arejada. Porque havia uma série de intelectuais
interessantes. Efetivamente, havia. Era gente que publicava na Revista Vozes, naquela época:
o Marco Aurélio Garcia, o… Hoje vai ser um teste da minha… dos começos de Alzheimer.
Lembrar de todos os nomes necessários dessa… O Escobar, que foi um intelectual muito
conhecido naquela época. Eles não se tornaram… não deixaram um rastro… O Muniz Sodré
de Araújo Cabral, o Muniz Sodré, esse sim, deixou um rastro importante.

C.C. - Sim.

L.F.D.D. - Ainda escreve. Foi diretor da Biblioteca Nacional depois.

C.C. - Todos esses, nos anos 70 ou 80…

L.F.D.D. - Eram muito importantes.

C.C. - Tiveram muita presença acadêmica e na mídia, não é?

L.F.D.D. - Eram muito presentes, exatamente. Isso.

C.C. - O Escobar eu acho que foi para Portugal depois.

L.F.D.D. - Isso, depois. Ele já deve ter falecido, eu não sei.

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C.C. - Eu acho que não.

L.F.D.D. - Não?

C.C. - Eu acho que está velhinho.

L.F.D.D. - Seria bom reencontrá-lo. Eram pessoas muito marcantes e realmente muito
estimulantes, muito estimulantes, que nos faziam ler Heidegger, Lévi-Strauss. Aí descobri
Lévi-Strauss. Aí foi…

C.C. - Descobriu como? Você lembra?

L.F.D.D. - Antropologia Estrutural. Antropologia Estrutural.

C.C. - Mas como? O Melatti, em uma entrevista, disse que, um dia, passando em uma livraria,
viu: Antropologia Estrutural. Comprou e pronto, foi ali.

L.F.D.D. - Não, não. Foi dado em uma dessas disciplinas. Eu não me lembro qual das
disciplinas. Mas uma dessas: Marco Aurélio ou Escobar ou Muniz Sodré… Havia outros. A
Nadja… A Nadja… Araujo? Enfim, de alguns eu já me esqueci o… O Cacaso. O poeta,
Cacaso… Algum deles indicou…

C.C. - Lévi-Strauss.

L.F.D.D. - O Lévi-Strauss, A Antropologia Estrutural.

C.C. - Uma pergunta antes de seguir no Lévi-Strauss.

L.F.D.D. - Sim.

C.C. - Você mencionou uma certa aproximação com ideias… Você mencionou livros, leituras,
marxistas ou de esquerda, não é?

L.F.D.D. - É.

C.C. - Teve alguma, vamos dizer, interação social também que levasse a isso ou foi meramente
leituras?

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L.F.D.D. - Bem, “social” no sentido de pessoas que também eram de esquerda.

C.C. - Sim, mas algum movimento?

L.F.D.D. - Mas que não tinham participação política ativa. Essa era a época em que as pessoas
estavam pegando em armas também, não é?

C.C. - Sim.

L.F.D.D. - Quando eu entrei na faculdade, aqui, em 68, como eu disse… Quer dizer, eu cheguei
em 68. Eu peguei a passeata dos 100 mil, peguei o enterro do Édson Luís, peguei todo aquele
ambiente. As prisões das lideranças estudantis na minha própria faculdade, na Faculdade de
Direito da UEG. Mas eu não tinha conexões no Rio que me levassem a participar de grupos de
esquerda organizados, como os que já estavam nesse momento participando de ação partidária
e que viriam a participar de ação… ou que já estavam, naquele momento, participando de ações
de luta armada. Eu escapei por pouco. Aí uma historieta, só para colocar esse ponto. Tinha uma
das minhas colegas e amigas de Petrópolis, era a Lúcia Van Velthem. Não sei se você deve
conhecer, de nome, pelo menos. Ela se tornou antropóloga. Vive em Belém e é professora do
Goeldi - do Instituto do Goeldi. É etnóloga, trabalhou com uma sociedade tribal do norte do
Amapá, fronteira ali com a Guiana Francesa, que eu não vou me lembrar agora o nome. De vez
em quando eu reencontrava a Lúcia. A gente se gostava muito. Tínhamos sido colegas de
Aliança Francesa. A família dela… a família da mãe dela… não, do pai dela, era belga. Ela
falava francês, era uma boa colega de Aliança. Falava francês de casa, quero dizer. Um dia, eu
encontro com Lúcia. Ela estava estagiando no Museu do Folclore, ali naquela área do Museu.
Ela estava fazendo Museologia nessa época. Ela me disse assim: “Luiz, eu quero conversar
com você uma coisa séria, eu quero que você venha na minha casa”. Me deu o endereço. Era
um apartamento ali no Largo do Machado. Marcamos uma hora. No dia lá fui eu. Bati no
apartamento, não tinha ninguém. Eu achei estranho. Disse: “poxa, a Lúcia me convidou;
marcamos claramente”. Enfim. Fui embora, não a reencontrei. Reencontrei-a anos depois e ela
me disse que, naquela tarde, antes de me encontrar, ela tinha caído. Tinha sido levada, ela e a
ala. Não sei nem qual era o movimento ao qual ela estava associada. De modo que, por pouco,
eu não teria sido levado também antes sequer de me ter engajado…

C.C. - Entrado de gaiato no navio.

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L.F.D.D. - É. Eu não sei como teria sido a minha reação. Era tudo muito diferente naquela
época, tudo muito… tudo muito difícil, tudo muito difícil. Eu fiz um depoimento sobre isso,
gravado lá no Programa. Está, eu acho, que no site do Programa. Sobre as implicações… Foi
uma coisa que o Programa… o PPGAS, o Programa do Museu Nacional, organizou em um
determinado momento. Eram 50 anos de memória da Ditadura, uma coisa assim. Cada um fez
um depoimento, eu fiz o meu. Eu acho que eu menciono esse clima que a gente vivia, com as
obras de esquerda escondidas. Aquela preocupação, se houvesse uma batida policial, como ia
ser? Para carregar na rua, era uma preocupação enorme. Levar um Engels ou um Marx. Ou
mesmo a Marta Harnecker ou um Poulantzas. Ao mesmo tempo, pululava intelectualmente.
Era o momento do apogeu do marxismo estruturalista, Althusser, Poulantzas, enfim… toda
aquela… a Marta Harnecker, cujos livros eram uma espécie de bíblia inicial para se introduzir
àquele horizonte. Eu tinha sido introduzido ao marxismo por uma coisa completamente… um
pouco como o Melatti, em relação ao Antropologia Estrutural. Tinha havido uma inundação,
daquelas inundações que sempre ocorrem em Petrópolis no verão. Tinha afetado uma das
poucas livrarias da cidade. Então, muitos livros tinham sido atingidos e, embora tivessem sido
secados, estavam assim com a capa meio torta, uma coisa assim. Então, teve uma liquidação,
nessa livraria, de muitos livros que tinham sido afetados, mas que ainda eram viáveis de leitura.
Eu comprei algumas coisas e dois livros que me marcaram muito, completamente antípodas do
ponto de vista político. Um era do Baran e Sweezy, que eram dois marxistas americanos que
escreveram… acho que alguma coisa “Capitalismo Autoritário”. Era uma introdução ao
marxismo, muito peculiar porque era pela leitura de dois marxistas norte-americanos - do Baran
e Sweezy. Eu acho que ele se queimou no incêndio da minha biblioteca no Museu. Mas,
certamente, me abriu. Eu não tinha me aberto os olhos. Isso, ainda em Petrópolis, ainda no
clássico. O Outro era o A Decadência do Ocidente, do Oswald Spengler. Um pensamento
considerado como de direita, paradigmaticamente de direita. Mas um livro que me causou um
enorme impacto e que eu acho que foi a minha primeira abertura para uma Antropologia, ou
seja, para uma percepção de diferença cultural, que era o tom da leitura que o Spengler… Ele
fazia, digamos, uma exacerbação da ideia da diferença cultural na ideia de organismos
culturais. Então, cada cultura era um organismo cultural, como se tivesse seu nascimento, seu
apogeu e sua morte. Enfim, eu nunca mais reli esse livro. Tinha muita vontade de reler. Mas,
certamente, ele tinha sido influenciado pela tradição que vinha lá do Herder etc., do
Romantismo do século XIX. Bem, mas voltando ao fio do marxismo. Eu tinha sido aberto a

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esse filão de um pensamento de esquerda, particularmente marxista. Tinha tido um certo golpe
de água fria com a leitura do Sartre, da Crítica da Razão Dialética, que era uma crítica bastante
severa do marxismo da época… do comunismo, mais do que do marxismo, do comunismo. O
próprio Sartre tinha dito que o marxismo era o horizonte indepassável do seu tempo. Então, o
meu entusiasmo inicial tinha arrefecido um pouco com a leitura do Sartre. Mas, no Rio de
Janeiro, com esses círculos da Fluminense; na própria Faculdade de Direito também, havia
pessoas de esquerda também, com quem eu compartilhei muita coisa, mas sobretudo depois
que eu entrei no Museu, essas leituras, então, desse marxismo estruturalista foram
fundamentais. Eu era um marxista convencido quando entrei no Programa. Isso, claramente,
não foi uma coisa que me facilitasse muito o caminho, porque era uma coisa muito complicada,
evidentemente. Mesmo os marxistas do Programa já sabiam que tinham que fazer consideráveis
combinações, articulações, com tantas outras coisas que estavam disponíveis naquela época
para produzir uma Antropologia. Mas aí apareceu, então, uma Antropologia Marxista - o
Godelier, o Emmanuel Terray. Isso através de Lygia Sigaud, de Moacir Palmeira e dos jovens
que estavam subindo lá, José Sérgio Leite Lopes, Afrânio Garcia, que eram um pouco
anteriores a mim, que ainda não eram professores, mas que tinham uma presença intelectual
muito marcante. Beatriz Heredia… todo aquele grupo muito associado às pesquisas no
Nordeste e ao grupo de Moacir e de Lygia. O mestrado foi marcado por essa perspectiva.
Quando eu entrei no mestrado… Tá, espera aí. Sim, já pulei...

C.C. - Calma, já pulou.

L.F.D.D. - Já pulei, pois é. Como é que eu cheguei?

C.C. - Na UFF, você chegou a fazer curso?

L.F.D.D. - Sim, pois é. Aí, na Fluminense… Lévi-Strauss, retomando o fio do Lévi-Strauss.


Fascinado com a Antropologia, eu resolvi fazer cursos avulsos lá nas Ciências Sociais. Me
inscrevi em um curso cujo titular era o Castro Faria, mas quem estava dando a disciplina era o
Roberto Kant, Roberto Kant de Lima. Então, eu fiz um curso com o Kant como monitor do
Castro (que eu não conheci lá, diretamente; quer dizer, vi, mas não fui aluno dele naquele
momento) e do Wagner Neves Rocha. Um excelente curso, uma pessoa que eu tenho uma
excelente lembrança. Depois se tornou psicanalista, pelo que eu soube. Abandonou a

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Antropologia. Ele tinha uma bela tese sobre o tempo… temporalidade e tempo em uma… Não
sei se eram os mórmons... não, eram os adventistas do sétimo dia. A dissertação dele. Na época,
só estavam fazendo dissertações no Programa, ainda não tinha o Doutorado… ainda não havia
o Doutorado. Bem, então, eu fiz essas disciplinas que me permitiram abrir um pouco para esse
enorme campo de investimentos que me era completamente desconhecido. Eu entrei no
Programa sem ter lido nada de Weber ou de Durkheim, por exemplo. Eu tinha lido já o Mauss,
eu acho, algum Mauss nessas disciplinas avulsas. Mas eu tinha uma enorme lacuna de formação
em comparação com quem tinha feito Ciências Sociais.

C.C. - Como era o ingresso no Museu? Não era a prova ainda.

L.F.D.D. - Naquele ano…

C.C. - Eu entrei, tinha começado a prova. Antes era uma pesquisa que se fazia, uma semana,
alguma coisa assim.

L.F.D.D. - Justamente.

C.C. - Como era?

L.F.D.D. - Eu peguei ainda esse sistema. Pedia-se que se fizesse uma pesquisa de campo de
algum tipo, qualquer coisa, e fosse ao Programa para redigir um relatório, uma apreciação…
um relato sobre o que você tinha escolhido. Eu estava fazendo análise… terapia de grupo, nesse
momento. A Psicanálise foi outra influência importante na minha carreira. Em algum momento,
pode ser que isso retorne. Acho que sim, espero que sim. Eu tinha uma colega que era uma
colega judia. Ela falava muito da sinagoga que ela frequentava, que era uma sinagoga mais
moderna, ali no alto de Botafogo. Ali perto desse shopping, o shopping de Botafogo, lá do alto,
ali tem uma sinagoga.

Beatriz Klimeck - O Rio Sul?

L.F.D.D. - Não, é antes do Rio Sul. Aquele outro shopping que tem ali, colado no campo do
Botafogo. Não tem um shopping?

C.C. - Acho que é Casa & Gourmet, hoje. Mudou de nome algumas vezes.

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L.F.D.D. - Enfim. Ali, do lado, naquela rua que vai sair na rua do… Ali, onde tem…

C.C. - Que sobe aquele mirante?

L.F.D.D. - É. Ali tem uma sinagoga. Exato. Era a sinagoga dela. Eu pensei: por que não fazer
uma investigação sobre essa sinagoga? Então, fui lá e fiz a minha pequena pesquisa. Eu já tinha
lido algumas coisas e, então, fiz um relato sobre o que era “O Templo dos Judeus em Botafogo”,
era o título da redação. Era uma redação, praticamente. Passei, para minha enorme surpresa,
porque não tinha… Eu acho que tinha… tinha uma entrevista, seguramente. Eu acho que tinha
alguma outra coisa. Certamente não havia uma prova de conhecimento. Felizmente, porque
senão eu não teria passado. Só se auferia essa “sensibilidade etnográfica”, que eu, felizmente,
pareço ter. Eu gostava desse trabalho. Era um trabalho singelo, evidentemente, mas eu gostava
da maneira como eu o escrevi. Mas desapareceu. Desapareceram todas as versões no incêndio,
tanto a que estava na secretaria como a que eu tinha na minha sala. Só me lembro desse título.
Então eu entrei em 74.

C.C. - Tinha uma entrevista em seguida?

L.F.D.D. - Não, isso foi em 73. Eu comecei o curso em 74.

C.C. - Tinha uma entrevista também?

L.F.D.D. - Eu tenho a impressão que havia uma entrevista, mas eu não tenho muita clareza. Eu
me lembro bem da prova, mas da entrevista eu não me lembro bem. Certamente… Não, teve
uma entrevista sim. Teve, teve uma entrevista. Mas eu não me lembro quem participou e nem
do clima da entrevista, se foi uma coisa que tem um sentido…

C.C. - Luiz Fernando foi da minha entrevista, eu me lembro perfeitamente.

L.F.D.D. - É? [risadas] Eu só me lembro de uma coisa absolutamente aterradora que foi quando
começou o ano letivo, no primeiro semestre de 74, no antigo auditório do Museu, não sei se
você se lembra…

C.C. - Sim.

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L.F.D.D. - Tinha aquela mesa grande em cima e tinha o auditório atrás. Você não pegou mais
o auditório do… o antigo auditório do Palácio. Então, os professores se colocaram todos na
mesa, em cima, assim. Aquela faculty toda. Às vezes, nos referíamos àquilo como a faculty.
Com todos os que tinham vindo da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Os onze… Eu me lembro
bem desse número. Os onze aprovados na seleção do mestrado se sentaram embaixo, assim, na
primeira fila do auditório.

C.C. - Gente…

L.F.D.D. - Aí disseram que nós tínhamos que nos apresentar. Eu estava na ponta e pediram que
eu me apresentasse. Eu tive um bloqueio absoluto e não consegui falar nada. Fiquei sem voz.
Pediram para o seguinte falar. Prosseguiram os outros dez.

C.C. - Mesmo com seu treinamento de teatro.

L.F.D.D. - Mesmo com teatro, com tudo, eu fiquei… Era tão importante aquilo. Aqueles
professores… Isso era uma coisa muito notável. O Programa tinha sido criado em 68, ou seja,
ele tinha cinco anos de vida, naquele momento, em 74. Mas aquelas pessoas eram aureoladas
de tanta fama, de tanta… Gilberto, Otávio, Moacir, Lygia…

C.C. - Era o Olimpo, não é?

L.F.D.D. - O Olimpo.

C.C. - Era o Olimpo da Antropologia.

L.F.D.D. - Era o Olimpo. Eu fiquei sem voz. Eu não consegui me manifestar. Eu, sobretudo,
sabendo das minhas… das precariedades da minha formação. Como eu ia falar desse trajeto
tão tortuoso ante aquele Olimpo, ali reunido? Não sei se alguém se lembra disso.

C.C. - Gilberto lembrava, tanto que ele me contou isso.

L.F.D.D. - É verdade? É? Está ótimo. Gilberto era implacável.

C.C. - Ao final, você conseguiu falar, depois de…?

L.F.D.D. - Eu creio que sim, porque eu tinha que falar. Não poderia ter deixado de falar.

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S.M. - Só não precisava ser o primeiro.

L.F.D.D. - Eu só me lembro…

C.C. - Gilberto, às vezes, aumentava um pouco as histórias, mas ele contou que você não falou
nada diante daquele pelotão de deuses fulminantes.

L.F.D.D. - Exatamente. É verdade. Isso ele não inventou não, foi verdade. Bom, então… Enfim,
deixa eu retomar o fio aqui.

C.C. - A prova do Museu.

L.F.D.D. - Não, porque aí eu já estava no Jornalismo, no curso de Comunicação. Aí eu fiz…

C.C. - Você chegou a se matricular no curso de Comunicação?

L.F.D.D. - Eu fiz o curso de Comunicação.

C.C. - Não foi só curso avulso.

L.F.D.D. - Não, não. Eu terminei Direito, porque, a esta altura, eu já estava… Não é? Eu não
tinha muito trabalho com aquilo, estudava em casa, fazia as provas e passava. Mas aí como eu
passei no Mestrado, eu tranquei o Jornalismo. Claro, eu não ia fazer um segundo curso sem
perspectiva ou interesse profissional em fazer. Foi nesse curso que eu conheci minha ex-
mulher, que foi minha colega do curso de Comunicação. A gente se conheceu lá em 71.

C.C. - Quem era?

L.F.D.D. - Cláudia Duarte. A Cláudia Duarte. Não é acadêmica. A Claudia nunca teve uma
carreira acadêmica. Trabalhou com moda, com revistas femininas, esse tipo de coisa. Jornalista.
Terminou o curso de Jornalismo, mas trabalhou sempre em jornalismo feminino. Aí, então,
eu… Bom, eu ainda estava terminando o Direito e aí comecei o Mestrado. Mas aí há uma outra
coisa importante que também tem a ver com a Antropologia, com a escolha da Antropologia.
Quando eu vim para o Rio, eu vim morar com tias. Primeiro com uma tia, depois com outra
tia. Mas eu precisava de dinheiro para as minhas pequenas despesas, para transporte etc. Meus
pais não estavam em condições de me manter com uma mesada estando na faculdade. Então,

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eu tinha que trabalhar. O ano de 68, eu passei… ao mesmo tempo em que estava estudando, eu
passei procurando algum emprego. No final do ano, através de conhecimentos de meu pai, eu
fui fazer uma entrevista de emprego na Reitoria da Universidade, da UFRJ - lá na Praia
Vermelha, ainda funcionava. Havia uma sobrinha de um grande amigo dele que era uma alta
funcionária da Reitoria. Nessa época, a carreira… o funcionalismo público estava congelado
desde as transformações da Ditadura. Então, só se entrava no serviço público como celetista.
Não havia mais concurso, nada. Só havia quem era funcionário público e que estava congelado
em uma carreira fechada. Então, me contrataram, como celetista, como tradutor no gabinete do
Reitor da UFRJ, em função desses meus conhecimentos em línguas etc. Eu fui trabalhar no
gabinete do então… Na época se chamava Sub-Reitor. Agora, esses cargos se chamam Pró-
Reitor. No então Sub-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa, que era um eminente cientista, que
tinha criado o Instituto de Microbiologia da UFRJ - Paulo de Góes - que, hoje em dia se chama,
inclusive, Instituto de Microbiologia Paulo de Góes - que tinha acabado de chegar de uma
posição como adido científico em Washington e que vinha com muita força para dinamizar a
Reitoria da Universidade. O Reitor, naquele momento, era o Raimundo Muniz de Aragão, que
era um químico importante e que era irmão de um general - Muniz de Aragão - muito influente.
O que, naquele momento, era muito necessário para que se conseguisse fazer alguma coisa.
Então, eu fui trabalhar com o doutor Paulo. Logo eu caí nas graças dele. Comecei uma carreira
ali como… mais do que tradutor. Acabei me tornando secretário do CEPEG - Conselho de
Ensino para Graduados e Pesquisa. Na época se chamava assim. Eu acho que hoje se chama
Conselho de Pós-Graduação e Pesquisa. Enfim. Continua sendo um colegiado muito
importante na UFRJ. Era um momento ainda muito próximo da Reforma Universitária, o
grande evento que foi a Reforma Universitária e que se deu na UFRJ. Foi a transformação da
Universidade do Brasil na UFRJ. Tinha se dado justamente na segunda metade dos anos…
Não, na segunda metade não. Tinha se dado justamente… Tinha começado antes de 64. Tinha
começado no final dos anos 50, no começo dos anos 60 e tinha terminado por volta de 68. Foi
quando, efetivamente, foram institucionalizadas as mudanças propostas pela Reforma
Universitária. Eram fundamentais. Era a extinção da cátedra, era a criação do departamento,
era a obrigatoriedade da pós-graduação para a carreira docente… Enfim, tudo isso fazia com
que aquele… (desculpe, perdi o fio) aquele colegiado - o CEPEG - tivesse na sua composição
justamente os membros dessa grande leva de intelectuais que tinham levado a cabo a Reforma
Universitária. Então, eu conheci lá, além do Paulo de Góes, o Carlos Chagas Filho, que tinha

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criado o Instituto de Biofísica; o Carlos Coimbra, que tinha criado a Coppe, uma unidade
importantíssima da UFRJ; enfim, assim por diante. Da Química, da… o Eduardo Portela, que
estava dinamizando a Faculdade de Letras junto com Afrânio Coutinho. Enfim, era uma plêiade
de personagens. Roberto DaMatta. Aliás, primeiro Roberto Cardoso de Oliveira, que eu
conheci ainda como representante do PPGAS. Logo em seguida ele sairia, o episódio que ele
foi para a UnB. Logo em seguida, Roberto DaMatta e Luiz de Castro Faria. Então, conheci os
três lá no CEPEG, no âmbito do CEPEG. Mas isso foi mais, digamos assim, uma experiência
de formação geral do que propriamente ligada à Antropologia. Mas tinha um outro aspecto que
me levava também à Antropologia, que, como secretário do CEPEG, passavam pelas minhas
mãos todas as teses da Universidade. Aí passavam também as incipientes dissertações do
PPGAS. Aí era um deleite. Eu li praticamente todas as primeiras dissertações do PPGAS e
fiquei particularmente cativado pela A Nação dos Homens, que era a dissertação da Lygia
Sigaud, porque era uma combinação muito peculiar entre Antropologia e marxismo. Havia uma
aura marxista, mas era um trabalho solidamente antropológico. É uma tese fascinante,
realmente. A Nação dos Homens, já com trabalho no Nordeste, da Lygia. Isso foi outra
incitação para que eu viesse fazer a seleção para o Programa: era o conhecimento das
dissertações. Inclusive a do Wagner Neves da Rocha, que eu li lá, nesse período. Muitas outras.

C.C. - Deixa eu te perguntar, antes de falar mais aprofundadamente sobre o Programa.

L.F.D.D. - Sim, sim.

C.C. - Você tinha mencionado a Psicanálise como algo importante.

L.F.D.D. - Sim, sim.

C.C. - Você já fazia desde antes, como foi?

L.F.D.D. - Eu descobri a Psicanálise… Embora Petrópolis fosse um lugar tão… como eu


disse…

C.C. - Interior.

L.F.D.D. - É, interiorano. Aconteciam algumas coisas. Eu estava sempre muito alerta para
pegar qualquer coisa que pudesse ser de algum interesse intelectual. Aí, no auditório do Colégio

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Santa Isabel, que é um colégio de freiras, mas é onde aconteciam as coisas interessantes - o
colégio de freiras onde minha mãe e minhas tias tinham estudado; meu avô, aliás, tinha
estudado lá também - aí houve a conferência de um psicanalista aqui do Rio. Eu fiquei
fascinado a ponto de ir procurá-lo na saída e perguntar…

C.C. - Lembra quem era?

L.F.D.D. - Não, não me lembro. Durante muito tempo eu retive o nome dele, me lembro de
comentar com outras pessoas, mas já há muito tempo que esse nome se esfumou na minha
memória. Não é do Alzheimer não, isso já é mais antigo [risadas]. A não ser que o Alzheimer
seja muito precoce. Aí eu fui procurá-lo pessoalmente na saída para saber como era, como se
fazia isso, como se podia… Ele me deu o endereço dele, do consultório dele. Eu cheguei a
ter… inventei uma história para vir para o Rio com meus pais e cheguei a ter uma consulta com
ele, mas eu não tinha condições de pagar análise e ficou aquela coisa assim. Mas eu comecei a
comprar obras do Freud, comecei a ler. Primeiro foi A Psicopatologia da Vida Cotidiana, em
uma edição francesa, uma tradução que o próprio Freud reviu, que eu perdi também, agora, no
incêndio. Era muito boa. A Psicologia da Vida Cotidiana, Totem e Tabu… Era uma mesma
coleção dessas traduções francesas. Havia um outro: A Interpretação dos Sonhos. Então, eu
tive aquela introdução e aquilo me marcou muito, muito, muito, tanto intelectualmente quanto
na expectativa de fazer análise, em função das coisas da minha cabeça. Quando eu… Eu, na
verdade, só comecei… Eu devo ter começado em uma terapia de grupo. Na época, se fazia
muito terapia de grupo, hoje em dia eu acho que nem se usa mais isso. Era uma maneira…
Estava começando o boom da Psicanálise. Estava começando não, já estávamos no boom,
naquilo que veio a ser chamado “o boom da Psicanálise”, sobre o que Gilberto e Sérvulo
Figueira trabalharam. Então, eu acabei… coincidiu, mais ou menos… Eu me casei em 73, eu
devo ter começado essa análise de grupo em 72, ou seja, antes de entrar para o Programa. Eu
fiz o exame em 73 e comecei em 74 o curso. Então, a Psicanálise já era uma influência
importante, tanto na minha cabeça quanto na minha configuração intelectual, a obra do Freud,
pelo menos; as propostas freudianas. Mas, naquela época, isso ainda não se misturava. Não
havia… No Programa, isso só ficou… Gilberto começou a desenvolver isso mais ou menos por
aquela época. Ainda não havia uma sedimentação. Pelo menos, eu não sabia, não tinha acesso
àquilo que já existia como uma Antropologia Psicanalítica, uma Etnopsiquiatria, eu não sabia
ainda, Géza Róheim, Devereux, etc. Foram coisas que eu só descobri mais tarde. Então, eu fui

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introduzido já na onda que Gilberto desencadeou, com Sérvulo Figueira e com a participação
de uma série de orientandos: eu participei, a Tania Salem, Jane Russo… A Jane Russo entrou
imediatamente, já que ela vinha da Psicologia, ela fez uma tese sobre isso.

C.C. - Agora, no Programa, você fez… Eram cursos que havia? Havia um ano de cursos
obrigatórios? Como era?

L.F.D.D. - Havia três cursos obrigatórios, que eram as três pernas. Isso ficou durante muito
tempo assim. Não me lembro quando isso foi alterado. Era “Organização Social e Parentesco”,
que o Matta deu para mim no primeiro ano. Os três eram obrigatórios no primeiro semestre.
“Antropologia Urbana”, que eu fiz com o Gilberto. E “Sociedades Camponesas”, que eu fiz
com o Otávio. Então, os meus três primeiros professores lá dentro foram Otávio Velho,
Gilberto Velho e Roberto DaMatta. O mais difícil para mim foi “Organização Social e
Parentesco”, porque teoria do parentesco, o Matta era muito desorganizado para dar aquilo.
Enfim, eu boiava solenemente na maior parte da literatura. Eu não tinha chave nenhuma para
aquilo. Foi um longo processo de tentar e conseguir, finalmente… Não tinha lido o As
Estruturas Elementares do Parentesco. Eu tinha lido outras coisas do Lévi-Strauss. Aí, então,
eu também tive que entrar nas Estruturas Elementares e isso foi um grande desafio, realmente,
para mim, um grande desafio. A “Antropologia Urbana” era fascinante, era, enfim, assim, bem
imediato, eu me reconhecia naquilo de maneira muito clara. “Sociedades Camponesas”
também. Otávio é um bom professor. Eu sempre recomendo aos meus orientandos, não sei se
fiz isso com você, que façam o curso de “Sociedades Camponesas”, porque "Sociedades
Camponesas” é uma espécie de microcosmos, não é? Você tem tudo. Você tem religião, você
tem política, você tem parentesco, você tem tudo, do ponto de vista das sociedades camponesas.
Pelo menos, como eram dadas naquela época. Hoje em dia, eu não sei como é que… Otávio
não dá. Geralda já faleceu. Hoje em dia, eu não sei como é que as pessoas que estão ligadas a
essa área, como o John Comerford, etc, como é que eles dão as disciplinas associáveis a isso.
Acho que nem se dá mais com esse título. Mas foi muito importante, também, a disciplina de
Otávio. Fiz um trabalho de curso que me gratificou muito sobre… uma monografia sobre uma
sociedade camponesa do México. Para o Gilberto… O Gilberto teve essa vantagem, como ele
sempre fazia, de exigir que a gente fizesse uma primeira tentativa de campo. Uma coisa
fundamental. Essa foi uma decisão crucial também na… Eu já estava casado. Quer dizer, eu já
estava namorando, ainda não tinha casado, com essa minha ex-mulher, a Claudia, cuja família

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morava na Charitas, no bairro da Charitas, em Niterói, em uma casa muito antiga, muito
prestigiosa, muito legal, que já não existe mais. Eles tinham sido muito ligados… Era uma
família que era muito ligada ao mar. Eles faziam iatismo. Tinham vela. Com isso, eles tinham
muitos contatos com pescadores, com os pescadores daquela orla que ia ali das Charitas até
Jurujuba. Com isso, eles me fizeram a apresentação a uma pessoa que eles conheciam que
morava em Jurujuba. Estou me enrolando no fio… Que morava em Jurujuba. Então, eu fiz a
minha primeira aproximação a Jurujuba para o primeiro trabalho de conclusão de curso da
primeira disciplina, de Antropologia Urbana, com o Gilberto Velho. Esse primeiro contato nem
rendeu muito, mas eu, depois, achei que era muito interessante aquele ambiente lá. Aí fui bater
na porta de uma casa. Ali, afinal, veio a ser a minha família de contato durante décadas. Eu só
parei agora porque perdi toda a memória do trabalho de campo com eles, inclusive a
genealogia… Eu tinha uma genealogia em um papel de metros e metros de distância, que se
foi. Não tinha digitalizado. Aí perdi o ânimo de manter os contatos de pesquisa. Até o incêndio,
eu fazia contatos com essa família. Eu tive relação com cinco gerações dessa família, então,
era uma coisa muito rica. Mantenho contato, assim, agora, pelo Facebook, com alguns dos
membros. Tem um que eu…

C.C. - O… Perdão, um parêntesis.

L.F.D.D. - Tem um que eu telefono no aniversário dele, um dos filhos desse casal.

C.C. - O Srinivas, o grande antropólogo…

L.F.D.D. - Srinivas, sim.

C.C. - …sociólogo indiano, ele perdeu tudo em um incêndio, da pesquisa de campo.

L.F.D.D. - Não brinca.

C.C. - Décadas depois, ele escreveu o The Village Remembered.

L.F.D.D. - Eu não me conheço esse trabalho.

C.C. - The Village Remembered, que é um livro fantástico que ele escreveu com a lembrança.
Ele perdeu tudo em um incêndio criminoso, no caso dele.

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L.F.D.D. - Que bom, é uma boa ideia.

C.C. - Vale a pena você ler: The Village Remembered.

L.F.D.D. - Bom, eu acabei escrevendo sobre essa família.

S. M. - No Três Famílias, não é?

L.F.D.D. - No Três Famílias, exatamente. Eu escrevi, no Três Famílias, sobre essa família, de
modo que alguma coisa está lá. Mas sem dúvida que aquilo tudo foi tão intenso, tão longo, que
pode ser que eu volte a fazer isso, seguindo o exemplo do Srinivas.

C.C. - Agora…

L.F.D.D. - Essas revisitações. Não foi o único revisitador. Tem aquele trabalho fabuloso do
Sidney Mintz, o retorno lá… Tem um outro… Você ia perguntar?

C.C. - Você falou dos cursos. A orientação, quando é que se escolhia?

L.F.D.D. - Sim. Havia uma diferença, na época, que eu acho que não se preservou, entre
“orientador de curso” e “orientador de tese”. Quando eu entrei, eu logo pedi ao Gilberto que
fosse meu orientador de curso. A gente tinha… logo que a gente se conheceu, a gente viu que
a gente tinha proximidades, um ethos semelhante. Conhecíamos algumas pessoas, tínhamos
círculos sociais… havia alguns pontos dos nossos círculos sociais que se conectavam. Então,
ele foi meu orientador de curso. Foi muito chato, porque, em Jurujuba, eu fui me aproximando
de novo das questões de Lygia Sigaud, do trabalho, do marxismo. Aí eu tive que pedir
desculpas ao Gilberto e mudar de orientação de dissertação, para trabalhar com a Lygia. Sem
dúvida foi um pouquinho incômodo. Mas foi engraçado, porque a minha turma de mestrado
era muito interessante. Éramos eu, Eduardo Viveiros de Castro, Roberto Kant de Lima, Regina
Novaes, Zélia Seiblitz, Silvana Miceli e, enfim, um rapaz que eu já não me lembro o nome,
que era o marido da Doris Rinaldi, que foi depois aluna do Programa depois. Não sei se eu
cobri os onze aqui, pode ser que falte alguém. Enfim, era uma turma muito estimulante,
muito… Como eu digo no meu Memorial, eu até estava relendo ele agora, o Eduardo e o Kant
tinham já carreiras solo. Não eram o tipo que ficasse compartilhando muita coisa com os outros.

C.C. - Eduardo Viveiros de Castro?

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L.F.D.D. - Eduardo Viveiros de Castro, é. Mas os outros, todos, nós tínhamos, assim, um
companheirismo muito grande. Era muito difícil de textos. A Biblioteca do Programa cabia na
sala do Matta, era uma parede da sala do Matta. Na sala da coordenação. Depois, passou a ser
considerada sala da coordenação, depois que ele se afastou. Não havia… Xerox era uma coisa
cara e rara. Eu tinha acesso a uma máquina na Reitoria, onde eu continuei trabalhando naquele
período, que se chamava termofax. Era uma coisa que tirava cópias que eram amareladas, muito
feias, estranhas.

C.C. - Temos várias no arquivo aqui.

L.F.D.D. - É?

C.C. - Se quebra, desfaz aquilo.

L.F.D.D. - É, eu imagino que aquilo, com uma certa idade, deva… porque já era; mesmo na
hora, era uma coisa esquisita. Mas eu fazia muita cópia em termofax e a gente trocava muito
os materiais para poder todo mundo ler. Hoje os alunos reclamam que não têm acesso às coisas.
Era uma dificuldade imensa. Imagine, aquelas obras. Você não podia comprar tudo,
encomendar na Leonardo Da Vinci…

C.C. - Da Vinci. Uma fortuna.

L.F.D.D. - Nessa altura, eu já tinha conta na Leonardo Da Vinci também. Mas não dava para
comprar aquilo tudo, evidentemente. Embora o câmbio não fosse essa loucura que é hoje,
naquele momento. Bem…

C.C. - A relação com a bibliografia… um parêntesis. Eu fiz um documentariozinho sobre isso,


a partir das entrevistas. É muito diferente do que é hoje. Você ia nas bibliotecas e, quando tinha
classificação, você achava as coisas. Ou você viajava para o exterior e era uma mala de livros
que ficavam com você. Você podia emprestar, mostrar, comentar, ou não. Quer dizer, a
circulação de informações era muito restrita.

L.F.D.D. - Muito restrita, difícil.

C.C. - Era um mundo muito analógico e artesanal, diferente de hoje. Hoje o aluno: “manda o
PDF, onde tem?”.

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L.F.D.D. - Imagine… É. Já mesmo antes do mundo digital ter se tornado essa benção que é,
desse ponto de vista, pelo menos, das bibliografias, já tudo tinha se tornado um pouco… O
próprio xerox, a tecnologia xerox, no ponto em que chegou, já tinha se tornado um outro
patamar. Você podia, com uma razoável… O Museu tinha um xerox, tinha um serviço de xerox.
Acho que é do seu período, não é?

S.M. - Claro, claro.

L.F.D.D. - Não era caríssimo. Dava para você tirar…

S.M. - Cada professor tinha uma pasta.

L.F.D.D. - Tinham as pastas de cada disciplina, não é? A gente deixava os originais e se fazia
as cópias, para que todo mundo tirasse suas cópias. Já era outro patamar do que tinha sido no
começo dos anos 70. Agora é completamente outra coisa. Você fez o que, um artigo, um
documentário?

C.C. - Um documentário com trechos desse projeto.

L.F.D.D. - Ótimo.

C.C. - Com as pessoas falando: “no meu tempo… naquele tempo…”

L.F.D.D. - Então, você já tem mais um depoimento para ele.

C.C. – “Naquele tempo...”, aí fazem os sinais de datilografar, de como é que se conseguia


acesso às coisas.

L.F.D.D. - Tinha essa coisa também do domínio de línguas, não é? Porque, claro, era-se muito
mais exigente com… Tinha isso, tinham os exames de língua, que eu fiz também para entrar.

C.C. - Eu fiz inglês e francês obrigatórios.

S.M. - Eu também.

L.F.D.D. - Mas como eu tinha os títulos de Nancy e de Cambridge, eu acho que eu nem fiz a
prova. Já entrei com cópia, termofax, dos títulos. Enfim, eu tinha uma proficiência maior do

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que a maior parte dos colegas em relação a isso. Então, era importante ter também alguém que
conhecesse bem inglês e francês. Mesmo tendo o texto, nem sempre era óbvio que todos
entendessem perfeitamente. Sobretudo em francês, era uma dificuldade maior. Bom, então,
essa turma foi muito legal. Mas eu mencionei isso por causa… Eu ia citar alguma coisa da
Silvana. Vocês sabem, Silvana já namorava o Ricardinho, Ricardo Benzaquen de Araújo, que
depois entrou para o Programa também. Havia um ar de família muito forte no Programa. “O
Jardim dos Finzi-Contini”, como tinha sido chamado em determinado momento.

C.C. - O Paul Rabinow que…

L.F.D.D. - Não, não.

C.C. - Não foi ele?

L.F.D.D. - Foi um colega, cujo nome eu, provavelmente, não vou me lembrar. Eu me lembro
perfeitamente do rosto dele, das características dele. Uma pessoa ótima, muito simpática. Mas
não vou me lembrar do nome dele. Era um rapaz que vinha da Economia, que era aluno do
Programa. Foi ele que apelidou com essa expressão de “Jardim dos Finzi-Contini”. Pode ser
que eu venha a me lembrar.

C.C. - Você mencionou que o Gilberto era o orientador de curso e você optou pela Lygia…

L.F.D.D. - Silvana, é esse o ponto. Porque, aí, quando eu troquei Gilberto pela…

C.C. - Gilberto aceitou bem?

L.F.D.D. - Fez que aceitou, não é? [risadas] Deve ter se roído.

C.C. - Ele era muito novo. Ele devia ter o que, trinta anos, trinta e pouquinhos?

L.F.D.D. - Claro, ele tinha só cinco anos mais… Ele é cinco anos mais velho que eu. Eu tinha
vinte e quatro e ele tinha vinte e nove anos.

C.C. - Trinta anos, um garoto. Uma criança.

L.F.D.D. - Imagina… O meu filho está com quarenta agora e parece um garoto. Parece para
mim, claro [risadas]. Então, a Silvana estava com a orientação de curso da Lygia e passou para

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a orientação de tese do Gilberto. Eu me lembro de ter cruzado no pátio, ali no pátio do chafariz,
e a Lygia e o Gilberto fizeram uma menção ao fato de que eles tinham trocados orientandos.

C.C. - Primos cruzados [risadas].

L.F.D.D. - Pode ser que isso tenha aliviado a sensação de mal-estar em relação à Lygia.

S.M. - Qual era a diferença entre “orientador de curso” e “orientador de…”? Era só da
disciplina?

L.F.D.D. - É, era só das disciplinas. Te orientava em fazer…

S.M. - Durante aquela…

L.F.D.D. - Enquanto você não… O que era muito curto, não é? Porque, na verdade, o Mestrado,
em dois anos, você… Naquela época você demorava mais tempo. Eu demorei, certamente, bem
mais tempo do que os dois anos. Esse rigor dos dois anos e quatro anos foi bem posterior à
minha geração.

S.M. - Naquela época eram seis, não é? Naquela época eram quatro?

L.F.D.D. - Eu acho que o meu Doutorado levou seis anos. O Mestrado deve ter levado até
quatro.

C.C. - Quando eu entrei, eram quatro no Mestrado e seis no Doutorado, mas aceita uma
prorrogação de um ano no Mestrado e de até dois no Doutorado.

L.F.D.D. - É.

C.C. - Com bolsa, tudo com bolsa.

L.F.D.D. - Eu não tive bolsa, porque eu trabalhava.

C.C. - Você trabalhava.

L.F.D.D. - Mas é isso. Silvana Miceli, que já faleceu… Dessa turma, já faleceram a Zélia
Seiblitz, a Silvana…

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C.C. - A Lygia era como, orientadora?

L.F.D.D. - A Lygia era uma professora terrível, terrível. Você foi aluno dela também?

C.C. - Não cheguei a ser aluno. Conheci a fama. A fama eu também conheci, a fama de terrível.

L.F.D.D. - Era uma professora terrível. Fascinante, uma pessoa que eu tenho muita saudade,
muita saudade, muita falta. Mas era uma pessoa de uma autoridade… Autoritarismo mesmo.
Eu me lembro que a turma… Mais ou menos essa turma. Em um determinado momento… A
gente sempre circulava pelo Museu, porque o Programa não tinha espaços próprios. Então a
gente tinha aula nos lugares mais inesperados. Isso era em um laboratório daqueles do anexo,
subterrâneo. Aquele anexo lá.

S.M. - Onde ficava a xerox.

L.F.D.D. - Exato. Aí a Lygia chegou e perguntou à turma se tínhamos lido um texto X,


marcado. Todo mundo, mais ou menos, disse que não tinha conseguido. Aí ela se levantou e
disse: “então, vocês leiam e, quando vocês tiverem terminado, vocês me chamam para eu voltar
para o seminário” [risadas]. Uma coisa que eu jamais teria tido a coragem de fazer. Mas era
muito eficiente, isso é verdade. Eu nunca consegui ser um professor assim. Mas eu acho que
infelizmente, porque eu acho que é preciso uma certa mão forte. Mas eu nunca consegui fazer
isso não. Gilberto também era muito exigente, muito exigente. Mas era outro tipo de exigência.
A Lygia era mais direta, mais dura, mais ríspida.

C.C. - Gilberto tinha a questão do horário, não é?

L.F.D.D. - É, Gilberto tinha a questão do horário.

C.C. - Se eu chegasse dois minutos atrasado, ele não falava nada, só olhava para o relógio.

L.F.D.D. - Ele era exigente com as prestações, com os prazos, horários e prazos. Certamente.
Mas era uma pessoa muito onipresente também, que ajudava, que estimulava, que cobrava.
Enfim, vocês sabem.

C.C. - Generoso também.

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L.F.D.D. - Generoso. Agora, Lygia não. Lygia era muito difícil. Um outro seminário em que
eu estava… ou talvez nessa mesma disciplina. Aí ela se virou para mim para perguntar qual era
o conceito X em um autor Y, que nós tínhamos lido há dois ou três seminários atrás. Eu disse
que eu não me lembrava. Ela virou para a turma e disse assim: “vocês precisam cuidar da sua
memória acadêmica” [risadas]. Isso atravessava o coração. Mas, enfim, eu tenho o maior… Ela
foi uma orientadora preciosíssima na Dissertação de Mestrado. Ela tinha uma letra fininha,
assim, a lápis. Ela anotava tudo, fininho, na margem. Era tudo datilografado ainda, naquele
tempo. Isso é outra diferença também fundamental, não é, Celso? Não sei se você comentou
isso nesse seu documentário. É o mundo digital. Em termos de produção de texto, você… Eu
não conseguia… Eu batia muito bem à máquina. Eu tinha estudado, tinha feito o curso
Remington para bater à máquina. Àquela altura já usava a máquina elétrica, que também era
uma benção em relação às antigas máquinas. Em casa, eu tinha uma máquina antiga, de família,
uma Remington, daquelas bem antigas, que fazia uma barulhada. Mas eu não conseguia criar
batendo à máquina. Não sei se é o barulho… Então, a minha Tese de Doutorado foi toda…
seiscentas páginas, foi toda escrita à mão. Era uma pilha de papel dessa altura assim. Então, a
entrada do computador transformou isso completamente, completamente. Imagina, fazer uma
tese de doutorado de 600 páginas em papel. Você revisava aquilo, aí tinha que redatilografar
tudo. Você copiava e colava para lá e para cá. Copiava e colava…

C.C. - Literalmente.

L.F.D.D. - Literalmente, com tesoura e cola. Era uma coisa dantesca quando a gente pensa
nisso, comparado com o que você pode fazer hoje. Ninguém que tenha já começado nesse
âmbito… Você já começou com o computador?

S.M. - Até hoje eu escrevo primeiro à mão mesmo.

L.F.D.D. - É?

S.M. - Mas eu sou... analógica. [risadas]

L.F.D.D. - Bem especial, nesse caso, nesse aspecto.

C.C. - A minha Dissertação de Mestrado foi datilografada.

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L.F.D.D. - Pois é.

C.C. - Máquina elétrica, Praxis 20. Era uma portátil. Era muito bonzinho. Mas datilografada.
Doutorado já foi no computador.

L.F.D.D. - Já foi no computador. Hoje em dia, nem pensar. Eu nem sei mais escrever à mão
direito. Agora… Bom, essa é uma outra diferença. Mas eu estava falando…?

C.C. - No Mestrado. Você emendou direto no Doutorado?

L.F.D.D. - Sim. Aí aconteceu uma coisa curiosa na minha carreira, que eu menciono no meu
Memorial. Eu era, como disse, tradutor. Era contratado como tradutor pela Universidade.
Depois que eu comecei o Mestrado, eu já estava bem adiantado… Eu não sei se foi… Não, foi
ainda antes de ter defendido a Dissertação. Eu consegui, do então Sub-Reitor com quem eu
estava trabalhando, que ele alterasse o meu contrato, era CLT, de Tradutor para Auxiliar de
Ensino. Não era professor auxiliar, era uma categoria que você não precisava fazer concurso.
Não fazia nenhuma seleção acadêmica. Era, um pouco, talvez, como o professor colaborador
hoje em dia, ou o horista na PUC, uma coisa assim.

C.C. - Substituto?

L.F.D.D. - Professor substituto. Talvez como professor substituto, exato. Então, eu, aí, já pude
parar de trabalhar na Reitoria e ficar totalmente dedicado ao Museu. Sem bolsa, claro, mas com
um salário… com um salário. Terminando o Mestrado, logo depois que eu terminei o Mestrado,
eu já podia fazer o concurso para professor assistente. Eu estava me preparando para fazer o
concurso para professor assistente, quando o então ministro da Educação, um dos ministros da
Educação da Ditadura, o Ministro General Rubem Ludwig, me lembro muito bem desse
personagem... Houve uma greve gigantesca como uma daquelas muitas que nós fazíamos nas
universidades e ele resolveu tomar uma iniciativa bem radical de modificar toda a carreira
docente por um decreto. Transformou todos os professores… todos os auxiliares de ensino, e
uma outra categoria que eu não me lembro agora, em professores auxiliares, ou seja, de um
primeiro nível da carreira docente propriamente dita. Então, eu não pude fazer o concurso de
entrada na carreira docente, naquele momento. O meu primeiro concurso, na verdade, foi o de
titular, porque eu fui…

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C.C. - Mas aí deixava de ser CLT e passava a ser funcionário público? Porque você disse que
antes era CLT.

L.F.D.D. - Não, não. Era concurso, mas CLT. O regime do funcionalismo público só foi
reestabelecido com a Constituição de 88. Eu, aí, fui repassado de CLT, para funcionário
público, para o quadro. Pelo que eu estou me lembrando, Celso. Parece que é isso. É,
certamente. Foi em 88? É, 88.

C.C. - Mas aí você deixou a Reitoria e passou a ficar lotado no Departamento de Antropologia.

L.F.D.D. - Aí eu fiquei lotado no Departamento de Antropologia do Museu.

C.C. - Não era o Programa, era o Departamento?

L.F.D.D. - Não, no Departamento de Antropologia do Museu. Porque aí eu já estava


começando o Doutorado. Fiz… A sua pergunta foi essa, se eu passei direto. Passei direto nesse
sentido, porque eu já estava lá. Apenas fui aceito no Doutorado. Não me lembro como é que se
fazia naquela época, se eu apresentei um projeto. Devo ter apresentado um projeto.

C.C. - Quando eu fiz, em 85, formava-se uma banca de três pessoas, com o futuro orientador e
mais duas pessoas. A minha foi você e o Howard Becker, que estava lá de visitante.

L.F.D.D. - Que legal.

C.C. - Você tinha um projeto que a banca comentava e você era aceito…

L.F.D.D. - Sei. No Doutorado.

C.C. - No Doutorado. Depois que mudou e passou a ter prova também, ou, enfim, entrevista…

S.M. - Na minha época já tinha o processo de passagem direta mesmo, se tivesse um CR até
tal…

C.C. - Não, não, era um processo individualizado, era uma banca para o candidato.

L.F.D.D. - Para o candidato.

C.C. - Eu tive esse luxo de ter…

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L.F.D.D. - Eu não me lembro como é que foi.

S.M. - Na minha época já tinha institucionalizado. Quem tivesse o CR até não sei quanto,
defendeu no prazo, aceite do orientador, fazia um projeto e passava.

C.C. - Teve uma mudança grande, né, na…

L.F.D.D. - Essas mudanças todas me deixam um pouco tonto, porque 40 anos de mudanças
que se sobrepuseram… Quando os meus orientandos me pedem para dizer: “como é assim,
assado?”. “Olha, vai na secretaria, porque eu já não tenho a menor ideia de como as coisas
funcionam”.

C.C. - Mas, enfim, você continuou os estudos de Mestrado e Doutorado.

L.F.D.D. - Continuei o Doutorado, aí com o Gilberto. Durante o Mestrado, eu fui trabalhar


sobre o trabalho na pesca. Então, eu acompanhei as saídas das traineiras. A Dissertação que
saiu, o livro Nas redes do suor, é uma etnografia do trabalho na pesca. Mas eu vivia no bairro.
Eu morei lá, eu fiz trabalho de campo intenso, em geral. O trabalho lá é a vida. Então, surgiu
essa ideia do “nervoso”, da “doença dos nervos”, que começou a me chamar a atenção pela sua
especificidade. Porque, claro, “nervos”, “doenças nervosas”, era uma coisa que eu ouvia muito
na minha família, nos meios… Eram categorias que se usavam nas classes médias também.
Mas eu comecei a perceber que não era a mesma coisa, a suspeitar que não era a mesma coisa,
a suspeitar. Então, meu projeto de Doutorado já foi sobre esse foco na construção social da
pessoa. Era bem gilbertiano, não é? Foi aí que eu voltei para o regaço do mestre.

S.M. - E a Lygia, como ficou nessa história?

L.F.D.D. - Não, a essa altura ela já... Eu defendi com ela e tal. Acho que ela não tinha a
expectativa de que eu continuasse a trabalhar com ela, especificamente. Era diferente, porque
eles tinham aquele establishment da pesquisa no Nordeste, não é? Então, era um think tank
intenso, com muita gente aderida. Não havia a necessidade de mais gente.

C.C. - Depois teve a questão das represas também, não é?

L.F.D.D. - Isso, isso foi os grandes projetos, que eles chamavam de “grandes projetos”.

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C.C. - Só uma dúvida: Moacir e Lygia eram casados no início, quando você fez o projeto?

L.F.D.D. - Sim, quando eu entrei eles eram casados.

C.C. - Depois que eles se separaram.

L.F.D.D. - Bem depois. Eu ainda frequentei a casa deles como um casal. Na época em que ela
era a minha orientadora, eles eram casados. Eu não localizo o momento em que eles se
separaram, nessa longa história.

C.C. - Bom, o Gilberto acabou sendo, me corrija se eu estiver errado, o seu principal
interlocutor e colaborador no Programa.

L.F.D.D. - Ele era sim, sim, sim, sim.

C.C. - Muitas bancas você participava dele e vice-versa.

L.F.D.D. - A partir daí era aquela coisa que ele criava… Ele criava um clima. Ele criava um
ambiente. O Gilberto criava um ambiente com seus orientandos, coisa que eu também nunca
consegui fazer não. Não copiei nem as melhores coisas da Lygia, nem as melhores coisas do
Gilberto, eu acho, em termos de orientação, de ensino, etc. Então, à medida em que você
entrava… Era uma grande galinha, não é? Com seus pintinhos todos debaixo da asa. Já entrava
nas bancas, já fazia mediações para publicação. A minha tese saiu no ano seguinte à defesa. Eu
defendi em 85. A Vida Nervosa já foi publicada…

C.C. - Na coleção do Gilberto na Zahar.

L.F.D.D. - Na Zahar. Com dinheiro do CNPq, a gente pediu apoio ao CNPq, mas na Zahar.
Sem a intervenção, porque era uma coleção prestigiosa, importante etc. Enfim, então, essas
mediações eram cruciais.

C.C. - Eu assisti à sua defesa.

L.F.D.D. - Assistiu? Veja só. A de Doutorado?

C.C. - A de Doutorado.

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L.F.D.D. - Que bom. Eu tenho duas ou três fotos só do período do Doutorado. Aparece a Tania
Dauster, o Ovídio de Abreu. Mas só, que eu reconheço na plateia.

S.M. - Tem muitas fotos suas no arquivo do Gilberto.

L.F.D.D. - Tem?

S.M. - Tem.

L.F.D.D. - Seria interessante ver o que eu não tenho cópia.

C.C. - Estamos terminando de organizar.

L.F.D.D. – Legal. Bem, então é isso. Então, o Gilberto passou a ser a referência principal.
Agora, eu convivia com todo mundo muito bem. Eu gostava muito do José Sérgio, sempre me
dei muito bem com o José Sérgio. Um dos primeiros… talvez o meu primeiro texto acadêmico
foi uma resenha do Vapor do Diabo. Eu publiquei no Jornal do Brasil e, depois, no Anuário
Antropológico, se não me engano. Eu gostava muito do trabalho dele. A Regina Novaes é uma
amiga próxima, querida, então eu acompanhei muito de perto tudo que ela fez, também já no
âmbito de Lygia e Moacir. Eu fiquei muito próximo… Sim. Um outro colega de Mestrado, que
eu esqueci de mencionar quando listei aqui os nomes, foi o Dennis Linhares Barsted, que foi
orientando de Otávio Velho. Era um rapaz muito legal. Era casado com Leila Barsted, que é
uma feminista histórica. Ela faz parte daquele grande grupo, junto com a Branca Moreira Alves,
com a Jacqueline Pitanguy. As acadêmicas feministas mais influentes do grande momento
dessa transformação do campo intelectual, do feminismo. Com Leila, eu fiz uma leitura
sistemática, na casa dela, do Capital. A gente leu o Livro I do Capital. Não passamos do Livro
I, claro, porque aquilo é uma exegese infinita. Mas foi uma coisa muito importante. Então, eu
tinha muitos contatos. Mesmo já com o Gilberto, eu ainda era um marxista. O que era uma
coisa esquisita, não é? Eu me lembro de ter feito um trabalho de curso para ele no Doutorado,
em que eu comprei um livro do Soljenítsin, o grande autor russo que estava muito na moda
naquele momento como uma voz dissidente. Eu arrasei com o Soljenítsin [risadas], como um
traidor… Uma coisa completamente maluca. O Gilberto aceitou aquele trabalho. Mas, àquela
altura, houve duas coisas importantes que alteraram esse meu horizonte. Uma foi a vinda do
Luiz Tarlei de Aragão como professor visitante durante o meu Doutorado. Eu tenho uma foto

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da turma - não sei por que tiraram uma foto da turma - e da sala do PPGAS em que o Tarlei
está dando aula. Estamos Ovídio, eu, Lala, Maria Laura Cavalcanti, Malu Heilborn, Bruna
Franchetto. Enfim, toda uma turma grande. O Luiz Tarlei de Aragão tinha acabado de defender
a sua Tese de Doutorado na França com o Louis Dumont. Uma tese sobre uma ville nouvelle -
uma área de ocupação nova, próxima de Paris. Ele vinha trazendo o pensamento de Louis
Dumont, sistematicamente. O curso era sobre o pensamento de Louis Dumont. Aquilo me
impactou imensamente. Eu me lembro bem de uma conversa na sala do Gilberto. Gilberto não
estava nesse momento. Estávamos Tarlei, eu e Ovídio. Eu e Ovídio éramos muito próximos.
Foi quando o Tarlei explicou a questão do valor no Dumont e foi quando eu percebi o que
estava em jogo na teoria da hierarquia etc. e que passava a ser um leitmotiv da minha produção,
do meu pensamento. Então, o Dumont foi uma revelação fortíssima na direção de um outro
tipo de culturalismo, um cultural-estruturalismo, como eu chamo a produção do Dumont. Ele
era muito próximo ao Lévi-Strauss também. Mas era uma posição diferente. Ele escreveu
aquela obra interessantíssima sobre as duas teorias sobre o parentesco. Ele compara as teorias
pré-lévistraussianas com a teoria lévistraussiana do parentesco. Bom, então, é isso.

C.C. - Gilberto também ficou impactado.

L.F.D.D. - Também, Gilberto também.

C.C. - Eu li o Homo Hierarchicus em um curso do Gilberto e ele sistematicamente juntava com


o Simmel, fazia as aproximações, a questão do individualismo.

L.F.D.D. - Exato. O Gilberto fez uma leitura… Bom, o Louis Dumont já estava circulando no
Roberto DaMatta também, não é? O Tarlei não foi, assim, quem apresentou. O Ricardo
Benzaquen já estava lendo Dumont. Aquele artigo de Eduardo Viveiros de Castro com Ricardo
Benzaquen de Araújo sobre…

C.C. - Romeu e Julieta.

L.F.D.D. - Sobre Romeu e Julieta. Se não me engano cita Dumont. Ou, pelo menos, já havia
alguma coisa dumontsiana naquele horizonte. Teria que conferir a bibliografia, não tenho
certeza. Mas já havia… Ricardinho já estava trabalhando com Dumont, já conhecia o
pensamento de Dumont. Ele era muito precoce. Ricardinho sabia de tudo com muita

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antecedência. Ele foi o primeiro a explicar exatamente o que era a novidade do Foucault, eu
me lembro, lá no restaurante do Museu. Então, por um lado, foi isso. Foi a influência do
pensamento do Dumont pelas mãos do Luiz Tarlei de Aragão, que só deu aquele curso no
Museu e depois foi para Brasília, foi para a UnB. Ele era uma pessoa muito estouvada, muito
peculiar, muito especial. Então ele… Enfim, afinal, não teve a influência, no Brasil, que ele
poderia ter tido. Mas em mim foi muito forte. Por outro lado, eu acho que… Foi traduzido o
Cultura e Razão Prática, do Sahlins. Se não me engano, eu fui… Outra coisa que o Gilberto
também facultava era… Ele fazia traduções, eu fazia revisão de traduções. Era uma coisa
importante para complementar o meu precário salário, naquela época já casado, etc. Então, eu
acho que eu fiz a revisão técnica do Cultura e Razão Prática… da tradução do Razão Prática.
Eu não sei quem fez a tradução, não me lembro quem fez a tradução. Não fui eu que fiz a
tradução. O Sahlins foi outra descoberta. Uma descoberta dolorosa, porque o Sahlins ataca de
frente a razão prática. O marxismo se…

C.C. - Se desmanchou no ar.

L.F.C.C. - Se desmancha no ar, literalmente. Então, foi uma coisa… A primeira reação minha
foi de violenta rejeição. Mas, claro, eu fui pego. Voltei a ler, entrei no livro e, pronto, não tinha
mais salvação. Eu estava resgatado do marxismo. Então, o culturalismo do Sahlins com o
estrutural-culturalismo do Dumont foram dois nortes para o que veio a ser o meu trabalho de
Doutorado sob a orientação do Gilberto. Era um trabalho muito peculiar, como você sabe,
porque era um trabalho com classe popular. Tudo o que o Gilberto estava orientando era com
classes médias ou, pelo menos, circulava em uma esfera mais de classe média. O seu trabalho
não era propriamente definido por classe, mas…

C.C. - É.

L.F.D.D. - Mas, enfim… Acho que o que caracterizava mais, digamos assim, o grupo do
Gilberto, era mais os estudos de camadas médias.

C.C. - Mas no seu caso, Luiz Fernando, se me permite, Gilberto tinha tido - por conta do Nobres
e Anjos, mas, depois, de outros trabalhos - uma aproximação com a área Psi.

L.F.D.D. - Sim.

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C.C. - O próprio Sérvulo, mas não só isso. Ele era convidado para falar. Ele trouxe o Goffman
para o Brasil. Ele circulava muito, embora não tivesse tido a inserção que você viria a ter
depois. É também um eixo do seu trabalho, essa aproximação com a área psi.

L.F.D.D. - Sim, sim.

C.C. - Por aí, eu acho que a proximidade é muito clara.

L.F.D.D. - Tem toda a razão. É verdade. Era um outro lado. Se era diferente pelo lado da
questão da morfologia social, era aproximado pelo ponto de vista da ideologia, da cosmologia
ocidental, não é? Particularmente, esses temas ligados à Psicanálise, que já era um tema de
interesse meu, especificamente, e também do Gilberto, que fazia análise, o pai tinha sido o
tradutor do Erich Fromm, enfim, havia toda uma tradição em relação a isso. Então, sem dúvida,
eu participei diretamente dessas… Eu publiquei, logo no começo da minha carreira, algumas
coisas na Religião & Sociedade sobre a relação com Psicanálise. Comecei a participar de
debates com psicanalistas. Coisa que o Gilberto já tinha aberto… caminhos que o Gilberto já
tinha dado. O IPUB, o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, onde o Gilberto tinha sido acolhido
pelo velho… o fundador do Instituto… fundador, não, mas o reformador do Instituto de
Psiquiatria, o Leme Lopes, professor Leme Lopes, que era um psiquiatrão, mas que tinha
convidado o Gilberto assim que soube das coisas que Gilberto estava fazendo. Então, Gilberto
já tinha um pé no IPUB. Quando o Leme Lopes se… Ele era, aliás, concunhado do Paulo de
Góes, desse professor que eu mencionei, com quem eu trabalhei, que foi muito importante na
minha carreira também, assim, como visão de administração pública, esse tipo de coisa. Então,
o Leme Lopes tinha aberto essa cunha, em um instituto que era psiquiatrão mesmo, para uma
discussão com Psicanálise e com Ciências Sociais. Havia esse caminho lá da PUC, onde estava
o Sérvulo Figueira, a então mulher do Sérvulo, a Ana Maria Nicolaci-da-Costa, a Anna
Lobianco, Anna Carolina Lobianco, com quem eu tenho relações próximas até hoje.

C.C. - O Sérvulo sumiu. Eu tentei achá-lo, até para entrevistá-lo, porque nessa década de 70-
80 ele teve uma proximidade com a Antropologia.

L.F.D.D. - Sim, sim.

C.C. - Não consigo nem contato. Você sabe?

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L.F.D.D. - Eu posso te dar uma referência que vai encontrá-lo.

C.C. - Alguém me disse que ele foi para o Sul.

L.F.D.D. - Ele foi para o Sul. Se tornou uma pessoa muito diferente. É psicanalista,
exclusivamente psicanalista, e parece que de uma linha de Psicanálise meio peculiar. Ele é
muito amigo de meu cunhado, marido de minha irmã, que é psicanalista. Eles foram
companheiros de PUC, daquele tempo. É o Octavio de Souza. A última vez que eu o vi foi na
casa do Octavio. Conversamos e tal. Mas ele está em outra. Mas pode ser que o Octavio… Eu
peço a ele.

C.C. - Sim, sobre essa época…

L.F.D.D. - Você me manda uma mensagem, tá? Não vou me lembrar disso sem anotar aqui,
agora.

C.C. - Agora, eu ia te… Só introduzir: a gente falou dessa aproximação com a área Psi. Mas
eu me lembro que, se não me falhe a memória, em 1990 eu fiz o primeiro ano do Doutorado -
tinham pouquíssimos cursos de Doutorado, na verdade, e um deles foi um com você, chamado
“Antropologia da Medicina”. Foi o primeiro curso, que você disse: “estou entrando nesta área”.
Eu me lembro que nas primeiras aulas você lia verbetes de enciclopédias de Medicina e
Antropologia. Quer dizer, foi do beabá… de entrada no campo da Medicina, que não era Psi.
Vai ser depois uma coisa que você vai adentrar…

L.F.D.D. - É, certo.

C.C. - …mais sistematicamente, vamos dizer assim.

L.F.D.D. - Certo, certo.

C.C. - Quer dizer, Medicina, corpo…

L.F.D.D. - Antropologia da Saúde.

C.C. - …dor, sofrimento, saúde, várias decorrências, não é?

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L.F.D.D. - Sim, você tem razão. O problema é que a minha Tese abria um leque de
possibilidades, a Tese de Doutorado. Uma era a continuação dos estudos de classes populares,
classe trabalhadora, a construção de pessoa das classes trabalhadoras e das camadas médias -
esse era um caminho que me interessava. Mas também me levava para a discussão com a
Psicanálise e com os saberes Psi, de um modo geral, por causa da construção social da pessoa
e por causa da minha hipótese de que o sistema cosmológico dos nervos era um sistema
alternativo ao sistema do psiquismo. Isso era uma coisa que provocava grande curiosidade dos
Psi, tanto da Psiquiatria, como da Psicologia, como da Psicanálise, em diversos níveis. Até
porque, durante… Um dos focos empíricos do meu trabalho de Doutorado, foi um trabalho em
colaboração com uma equipe do serviço de atendimento psicanalítico da PUC. Como se chama
isso? Não é serviço de atendimento, tem um nome isso... É uma espécie de laboratório. Agora
me escapou. É um serviço clínico. Eles prestam atendimento clínico como treinamento das
pessoas que estão se formando em Psicologia, Psicanálise e… em Psicologia e Psicanálise, não
tem Medicina na PUC. Essa psicanalista, Daniela Knauth… Não, Daniela é outra pessoa, fiz
uma confusão agora. Daniela Ropa. A Daniela Ropa coordenava um grupo de discussão e de
pesquisa na Favela de Acari, sobre a possibilidade de atendimento psicológico e psicanalítico.
Então, eu mantive contato… Acari foi uma espécie de terceiro campo, mas um campo indireto.
Eu nunca fui pessoalmente lá. Mas eu discutia com elas, toda semana, como é que tinha sido o
atendimento psicológico, as expectativas de atendimento psicológico etc., o que significava,
como era, como não era. Essa foi uma fonte importante. Então, eu já tinha esse pé também
durante a realização da pesquisa do Doutorado, não apenas depois da publicação do livro.
Também dei um curso - uma disciplina - no curso de Aperfeiçoamento em Psicologia Clínica
da PUC, com algumas pessoas que foram meus alunos lá, com quem eu tenho contato até hoje.

S.M. - Isso foi em 84, quando você estava [Professor] Visitante na PUC, não?

L.F.D.D. - É, quando eu fui Visitante na PUC, exatamente. A Marina Rodrigo Otávio… havia
uma gente de Psicologia, claro, mas havia uma gente ligada à Artes, interessante. Havia aquele
menino que trabalhou depois com masculinidades, o… É realmente um teste, não? [risadas]
Depois de 40 anos de nomes em tantos assuntos. Enfim a tese abria para esse lado psi e abria
para Antropologia da Saúde e da Doença, por causa da questão do adoecimento, daquela
categoria que eu propus na Tese, a de “perturbação físico e moral”, que buscava justamente
evitar o uso das categorias estigmatizantes, “loucura”, “doença mental”, etc. Então, você tem

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toda razão que, também, nessa época, eu comecei a trilhar esse rumo de um conhecimento que
poderia ser aquilo que eu batalhei por ser, no Brasil, uma Antropologia da Saúde e da Doença.
Porque havia a questão da Antropologia Médica. Então, houve o I Congresso Nacional de
Antropologia Médica. Eu participei. Havia alguns participantes importantes dos Estados
Unidos, gente que é muito conhecida hoje, o casal, a Mary-Jo DelVecchio Good e o Byron
Good, que são do grupo do Kleiman, de Harvard, se não me engano. Agora ele está em Harvard.
Não sei se naquela época ele já estava. Eu acho que os Good, o casal Good, na verdade era
canadense. Enfim, eles estavam lá. Estava uma colega, Mabel Grimberg, da UBA, da de
Buenos Aires. Eu batalhei muito para que não se adotasse, no Brasil, a categoria Antropologia
Médica. Porque eu já conhecia, nessa altura, talvez a partir…

S.M. - Do curso.

L.F.D.D. - Desse curso. Eu perdi todos os meus programas de curso, então eu não tenho…

C.C. - Eu tenho.

L.F.D.D. - Você tem esse? Que bom.

C.C. - Posso lhe passar.

L.F.D.D. - Se você puder escanear e me mandar seria muito bom. Eu ficaria satisfeito em ver
isso.

C.C. - Eu fiz um trabalho sobre a solidão.

L.F.D.D. - Fez?

B.K. - Batalhou e conseguiu, professor.

L.F.D.D. - Como?

B.K. - Batalhou e conseguiu. Hoje, no Brasil, a gente trabalha com Antropologia da Saúde e
da Doença.

L.F.D.D. - Sim, nesse sentido… É verdade.

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B.K. - Batalhou e conseguiu.

C.C. - Agora, Luiz Fernando, como era, vamos dizer, a interação com essa área Psi? Porque
ela também se transformou muito (falando aqui como semileigo ). Nos anos 70 você tem,
talvez, o auge da Psicanálise.

L.F.D.D. - É.

C.C. - Nos anos 80, veja a tese da Jane Russo, O Corpo Contra a Palavra, já entra uma série
de coisas. Depois, nos anos 90, a Psiquiatria, remédio, o catálogo lá de coisas, as drogas e
pronto. É dominante até hoje.

S.M. - Teve ainda o processo de reforma psiquiátrica que…

C.C. - Eu estou, evidentemente, simplificando muito. Mas a área Psi se transforma de uma
Psicanálise mais à la Freud para uma coisa muito “corpo” e, depois, para uma coisa “pílula”,
“fórmula”.

L.F.D.D. - Exato. Vou falar disso.

C.C. - Como é que foi lidar durante esse tempo com essas transformações?

L.F.D.D. - Eu acompanhei esse trajeto muito de perto. Gilberto até um certo ponto, porque ele
depois se afastou um pouco dessa área. Eu, depois, continuei com esse trajeto. Como eu
mencionei, o Instituto de Psiquiatria, que era um dos bastiões da Psiquiatria no Brasil, o
Instituto de Psiquiatria da UFRJ, o IPUB, tinha aberto um caminho, na gestão do professor
Leme Lopes, para a entrada de Antropologia e de Psicanálise, através do Gilberto inclusive - a
participação do Gilberto. Eu não sei exatamente como foi a primeira. Não sei se ele foi
convidado a dar uma palestra. Isso foi antes de eu estar em contato com ele. Isso já estava em
curso quando nós começamos a trabalhar juntos. Aí, logo em seguida, houve uma grande
reviravolta na direção do IPUB, com a indicação de um… a nomeação… a eleição de um
diretor, o Raffaele Infante, que era uma pessoa que não era da Psicanálise, mas tinha uma
abertura muito grande com a Psiquiatria Social. Era uma Psiquiatria Social, basicamente, a
perspectiva que ele esposava. Depois, o seu sucessor, ele morreu precocemente, o Raffaele, o
João… Foi um grande aliado nessa Psiquiatria mais aberta, Psiquiatria Social. Esqueci o nome

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dele, também já faleceu. Ele foi diretor depois do… foi diretor do IPUB também. Então, houve
um momento de muito diálogo, muito diálogo. Uma presença… Jane Russo era professora lá.
Depois, a coisa fechou tanto que ela saiu da UFRJ e foi ficar só na UERJ, no IMS. Então,
estávamos lá a Jane, eu, como convidado. Eu cheguei a ser professor da Pós-Graduação de
Psiquiatria. Orientei duas teses lá, participei de bancas, orientandos da Jane. Havia outras
pessoas interessantes nessa fronteira de uma Psiquiatria Social, Psicanálise e Antropologia.

C.C. - Malu, Sérgio Carrara, já estavam lá?

L.F.D.D. - Não, não, não. Isso já é outra fase, já na dinâmica do IMS. No IPUB não.

S.M. - A Erotildes você chegou a orientar?

L.F.D.D. - A Erô foi uma das pessoas que eu orientei. O Maurício Lougon e a Erotildes Leal.
Isso, exatamente. A Erô é uma pessoa fundamental desse período. Havia algumas alianças em
São Paulo, pessoas que eu encontrava de vez em quando. Os nomes, eu poderia tentar evocar.
Havia psicanalistas importantes, como o… esse psicanalista lacaniano que está na Veiga de
Almeida atualmente. Ele tem um nome francês. Não é possível… Enfim, é uma pessoa
importante da Psicanálise. Ele estava lá naquele momento. Tem até uma foto com ele em um
episódio lá, uma cerimônia do IPUB, uma comemoração do IPUB. Ele trabalha com teatro
também, psicanálise e teatro... vai me vir. É uma pessoa importante no campo. Esse foi um
período muito interessante, muito estimulante, muito rico, mas que foi torpedeado, porque
continuou existindo a corrente fisicalista, reducionista, nos nossos termos, fisicalista, da
Psiquiatria Biológica. Pessoas muito influentes que dominavam a Sociedade Brasileira de
Psiquiatria. Eu fui da comissão editorial do Jornal Brasileiro de Psiquiatria, que era o… era e
é, ainda, o veículo do IPUB. Então, isso começou a se dissolver pouco a pouco com a saída da
Jane, com a morte do Raffaele e, finalmente, com a morte desse outro colega, importantíssimo,
o João… Também era muito amigo do Octavio, do meu cunhado Octavio de Souza.

C.C. - Agora, essa hegemonia dessa área mais…

L.F.D.D. - Biológica.

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C.C. - Essa vertente mais biológica. Ela evidentemente afetou todas essas mais sócio-
antropológicas dentro da Medicina Social, ou do gênero, mas teve efeitos mais gerais. Eu estou
lembrando aqui do seu sofrimento à frente do CONEP…

L.F.D.D. - Sim, sim. Mas isso é mais recente, não é?

C.C. - Tentando defender alguma abertura e sensibilidade para a nossa área e que, lamentamos,
foi uma coisa perdida. Hoje…

L.F.D.D. - Essa luta teve muitas frentes, Celso.

C.C. - “Experimentos com seres humanos”, não é? Qualquer entrevista, qualquer interação
virou uma coisa muito alheia à tradição.

L.F.D.D. - Porque começou com um certo desprestígio da Psicanálise dentro, como você
mencionou bem, dos próprios…

C.C. - Do mundo Psi.

L.F.D.D. - Do próprio ambiente psicoterapêutico, do ambiente Psi, seja pelas correntes mais…
tipo as que a Jane analisou, os reichianos…

C.C. - Terapias corporais.

L.F.D.D. - Terapias corporais, etc. Todo esse horizonte da corporalidade, da corporalização,


do embodiment. Isso tudo afetou muito a circulação da Psicanálise. Sem eliminá-la, não é?
Nunca foi eliminada do campo, mas a preeminência interpretativa… Os psicanalistas eram
chamados para interpretar os fenômenos sociais no jornal, não é?

C.C. - Não são mais.

L.F.D.D. - Tinha aquele excelente… Aliás, outro dia eu estava querendo muito encontrar algum
artigo dele. Acho que tem a ver com coisas que estão se passando hoje no Brasil.

C.C. - O Jurandir?

L.F.D.D. - O Eduardo…

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C.C. - Mascarenhas?

L.F.D.D. - Eduardo Mascarenhas.

C.C. - O Joel, o Jurandir…

L.F.D.D. - Sim, o Joel Birman, o Jurandir Freire Costa.

C.C. - Essas pessoas falavam muito sobre a realidade brasileira.

L.F.D.D. - Sim. Mas o Eduardo Mascarenhas tinha uma coluna.

B.K. - O Joel, hoje, com a pandemia, voltou também a escrever sobre.

L.F.D.D. - É verdade. O Joel, às vezes, reaparece também. O Jurandir que está mais calado,
mas acho que mais por opção do próprio Jurandir do que propriamente…. Ele chegou até a ser
indicado “intelectual do ano”, uma vez, pelo Globo, não é? O Jurandir tem uma proeminência
grande. Mas o Eduardo Mascarenhas era um divulgador, realmente, nesse sentido. Ele escreveu
um artigo, naquela época, sobre a noção de “suicídio cultural”, que eu gostaria de reencontrar.
Eu acho que é uma coisa que andou acontecendo nos últimos anos que a gente tem enfrentado.
Tantas pessoas que morreram e que eu acho que morreram pelo ambiente… morreram pelo
ambiente. Ele falava aquilo em relação à ditadura militar daquela época. Hoje nós poderíamos
falar em relação ao ambiente do governo Bolsonaro. Muita gente que, de repente, acabou, não
é? Quer dizer, teve a pandemia, que foi um tremendo acréscimo a essa mortandade. Mas muitos
outros que não foram afetados… Mas, enfim, isso é uma outra coisa que eu gostaria… Eduardo
Mascarenhas, esse artigo.

C.C. - Você estava mencionando que, nos anos 80, essa mudança da corporalidade no mundo
Psi não cancelou a tradição psicanalítica tradicional.

L.F.D.D. - Não, mas influenciou dentro da própria Psicanálise. Dentro da própria Psicanálise
mais tradicional. Hoje você tem correntes mais ferenczianas, que são mais voltadas para a
corporalidade também. Você tem alterações dentro do próprio establishment, propriamente…
do núcleo forte da Psicanálise que também são atraídas. Até em diálogo com as próprias
neurociências, o que me surpreende muito. Porque as neurociências, enfim, são de um
reducionismo… As neurociências é um outro capítulo. Além do CONEP, tem as neurociências

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nesse trajeto da rebiologização, de um modo geral, das interpretações do humano. Era isso que
você tinha me proposto, não é? Tratar disso.

C.C. - Retomando o seu antigo marxismo: a indústria farmacêutica vendendo adoidado como
nunca.

L.F.D.D. - Exatamente [risadas].

C.C. - As fórmulas, os comprimidos…

L.F.D.D. - Eu orientei algumas teses sobre isso. A Ana Venâncio, Ana Teresa Venâncio…

C.C. - Minha colega de Mestrado.

L.F.D.D. - É, do seu Mestrado.

S.M. - Ela esteve na minha banca de Mestrado e de Doutorado. Agora vai estar na de uma aluna
minha.

L.F.D.D. - É? A Ana Teresa fez trabalho sobre isso. Sobre o IPUB, sobre a complexa relação
da Psicanálise com o IPUB e a relação que a Psicanálise teve com a medicamentalização.
Porque, efetivamente, você só podia ter uma psicanalização dentro da Psiquiatria, como estava
se dando no IPUB naquele momento, garantida uma certa pax química. Porque aí você podia
prescindir da camisa de força, dos recursos violentos da Psiquiatria e poder imaginar que você
poderia fazer terapêuticas “doces”, como a da Psicanálise. Então, na verdade, a influência da
medicamentalização psiquiátrica é anterior à da hegemonia da Psiquiatria Biológica. Ela
viabilizava, inclusive, a presença da Psicanálise. Depois é que a Psiquiatria Biológica,
reforçada por uma série de movimentos que, inclusive, são internacionais… A Jane Russo
trabalhou sobre isso: as transformações das DSM, das classificações da Psiquiatria
Internacional, da American Psychiatric Association, basicamente, que são mais importantes do
que a CID, a classificação da OMS. Então, é um processo que a Jane Russo, sobretudo,
acompanhou de uma maneira muito firme, muito presente. É um processo que está em curso.
Eu publiquei um artigo, que foi importante para mim, na Revista Physis, que é uma revista
ligada ao IMS, que é sobre, exatamente… de crítica ao modo pelo qual os “nervos” eram
tratados na Antropologia Médica, justamente. Essa Antropologia Médica refletia muita coisa

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da Medicina. É uma Antropologia muito carregada do objetivismo da Medicina… da
Biomedicina. Então, esse artigo, eu publiquei na Physis. Depois… Havia uma colega, a Ondina
Leal, antropóloga da UFRGS, com quem eu trabalhei, em alguns momentos, por causa dessa…
Desculpe? Ondina Leal. Um parêntesis. Começou-se a se criar um establishment de
Antropologia da Saúde e Doença no Brasil, do qual eu participei como coadjuvante. No Rio
Grande do Sul, a Ondina Leal, Daniela Knauth (que, há pouco, eu confundi com a Daniela
Ropa), Ceres Víctora e todos os seus descendentes. Na Bahia, o grupo da Miriam Rabelo e do
então marido dela, o Paulo… O sobrenome eu não sei se vou me lembrar agora. Era um grupo
interessante. Os seus orientandos, os seus… E o IMS, o Instituto de Medicina Social da UERJ,
com um grupo muito ligado a nós, do Museu: Jane Russo, orientanda do Gilberto, a Lu,
orientanda do Gilberto, Sérgio, meu orientando, Rogério Azize, meu orientando, o Horácio
Sívori…

S.M. - O Martinho.

L.F.D.D. - O Martinho. Enfim, é um filhote do PPGAS, de certa maneira, o IMS. O lado


Antropologia do IMS. O IMS é muito mais complicado [risadas]. Tem os psicanalistas,
inclusive. Tem o Jurandir, tem o Benilton Bezerra, tem o Ortega, que faz uma mediação
complexa. Mas, enfim, o núcleo Antropologia…

C.C. - Resiste.

L.F.D.D. - É, resiste. Então, passou a existir um campo de Antropologia da Saúde e da Doença


no qual eu tive que transitar muito, não é? O IPUB foi um pouco outro pólo, mas que se
estiolou, se fechou, em função da hegemonia da Antropologia Biológica. Que começou a ser
questionada mais recentemente através da Maria…

S.M. - Tavares?

L.F.D.D. - Maria Tavares, claro, que era nossa companheira de viagem daqueles períodos
anteriores. Mas nunca voltou a ser o que era, que eu saiba. Acho que agora tem uma candidatura
forte que é um dos… Está em processo… Vai haver uma modificação lá. É uma pessoa
conhecida, o… Que esteve muito associada à reforma psiquiátrica. Você mencionou a questão

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da reforma psiquiátrica. Esse processo todo se deu, no IPUB inclusive, em função da reforma
psiquiátrica. Havia participantes do IPUB…

S.M. - O Pedro Gabriel.

L.F.D.D. - O Pedro Gabriel. Eu estava querendo me lembrar o nome dele. O Pedro Gabriel.
Aquele outro rapaz que publicou uma outra… Eu não vejo ele há tanto tempo.

S.M. - O nome dele eu estou… Era da sala do lado do Pedro Gabriel. Eu estou esquecendo o
nome dele.

L.F.D.D. - O Pedro Gabriel, certamente, claro… Godinho Delgado.

S.M. - Isso. É marido da Erotildes.

L.F.D.D. - É marido da Erotildes, não é? Eu devo ter sabido disso, mas não me lembrava.
Enfim, então, é uma longa… Realmente, esse filão que você mencionou do mundo Psi, nas
suas grandes transformações, é um filão extremamente complexo. Eu publiquei um artigo, que
o Gilberto gostava, em que eu fiz uma comparação… Ele se chama Dois regimes… achou?

S.M. - Não, não achei o nome.

L.F.D.D. - Dois regimes das relações entre os saberes Psi e a Antropologia, uma coisa assim.
Em que eu peguei… Eu fiz um investimento, em determinado momento, sobre… Junto com a
Jane, a gente teve um projeto… Não fiz um investimento, a gente teve um projeto grande que
era sobre a psicologização no Brasil. Era sobre o surgimento e a institucionalização dos saberes
Psi de um modo geral: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Era junto com o pessoal do Instituto
de Psicologia da UERJ, a Ana María Jacó Vilela, a Jane e eu. Éramos os três coordenadores.
Envolveu muita gente. Muita gente do IMS, muita gente da Psicologia da UERJ e a algumas
pessoas do Museu também. A gente tem até um banco de dados que está agora sendo reativado.
Esteve fora do ar por muito tempo. A gente fez muitas conexões nacionais. A gente fez um
levantamento e alguns investimentos importantes, cada um de nós, individualmente ou em
grupo, sobre certos nós, nódulos ou nós, da história desses saberes. Então, eu fiz um artigo
sobre o Roger Bastide, que foi um dos influenciadores. Escrevi sobre o Arthur Ramos, que foi
outro desses interlocutores da Psicanálise. A Jane escreveu sobre vários outros desses

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psicanalistas originários, os primeiros psicanalistas do Rio de Janeiro e São Paulo. Nós fizemos
conexões internacionais interessantes, com a Argentina, com a Colômbia, com outros países
também… Chile. Eu esqueci de ficar tomando água. A garganta está…

C.C. - Se quiser fazer um intervalo, a gente faz. Fique à vontade.

L.F.D.D. - Sim. Em torno da Psicanálise e Ciências Sociais. Existe até uma rede internacional
online sobre isso. Escrevendo sobre Arthur Ramos e dialogando com a Jane e com a Ana Jacob
sobre esses outros pioneiros da Psicanálise, que vieram todos da Psiquiatria, saíram todos da
Psiquiatria… de certas Psiquiatrias. A Psiquiatria também não era um mundo completamente
uniforme no entre-Guerras. Você tinha as coisas mais do lado da eugenia, do racialismo etc. e
você tinha coisas mais do lado das Ciências Sociais, do diálogo com Gilberto Freyre. Tinha a
herança de Nina Rodrigues, através do Arthur Ramos. A releitura do Nina Rodrigues feita pelo
Arthur Ramos. Esse personagem muito peculiar, que teve uma influência enorme no seu tempo
e que deixou muito pouca herança direta, que foi o Arthur Ramos. Eu me interessei bastante
por ele e escrevi sobre ele. Eu escrevi esse artigo comparando esse período de diálogo, que
pode ser assim exemplificado pelo Arthur Ramos e pelo Bastide, pelo Roger Bastide, com essa
escola do Gilberto Velho, Sérvulo Figueira etc., esse outro momento, e quais eram as
características diferenciais dos períodos que faziam com que eles pudessem ter futuros
diferentes. Eu gosto desse artigo, eu acho que situa bem a presença e o papel do Gilberto nesse
processo. Além do meu próprio, que estava… era secundário, nesse sentido, mas que também
estava se afirmando nesse momento em que eu escrevi esse artigo. Foi publicado também em
uma tradução em francês, se eu não me engano, em uma coletânea que o Federico Neiburg e a
Lygia Sigaud organizaram. Bom, esse filão Psi. Aí, a partir disso, eu continuei com uma
preocupação com esses reducionismos. Tive a experiência muito penosa no Museu do Amanhã,
do comitê científico do Museu do Amanhã, da concepção do Museu do Amanhã, em que eu
tinha que dialogar com uma neurocientista radical, que era a Suzana… Não lembro o nome
dela. A Suzana… Ela está nos Estados Unidos, agora. É uma pessoa que escreveu bastante no
jornal. Foi uma das primeiras neurocientistas midiáticas. Hoje em dia, é o Roberto Lent que
está fazendo isso no Jornal do Brasil. Ele faz isso de uma maneira muito… Ele é um
neurocientista civilizado. Mas essa outra moça não, é uma pessoa muito radical e reducionista
mesmo, pesada. Como é o nome dela? Suzana… Tem um sobrenome italiano. Bom, enfim.

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Então, eu passei a me preocupar particularmente com as neurociências, não só por essa
experiência ali na… basicamente com essa experiência no…

S.M. - Herculano? Suzana Herculano.

L.F.D.D. - Suzana Herculano-Houzel, isso. Herculano-Houzel. Obrigado. A Suzana


Herculano-Houzel, que está nos Estados Unidos agora. Aí escrevi um artigo sobre essa
experiência no Museu do Amanhã, que é uma maneira de desafiar essas leituras. As
neurociências também são um amplo continente. Tem coisas, como eu disse, mais civilizadas
e tem coisas muito reducionistas, muito reducionistas. Tem coisas que chegam às raias do
ridículo, inacreditáveis. Analisar como funciona o transe religioso… não é nem o transe
religioso, a devoção religiosa de religiosas que estão rezando em um convento. Uma coisa
desse tipo. Qual é a área do cérebro que está…? Porque o que acontece e que acabou se
materializando naquela bendita exposição, para não dizer outra coisa, do Museu do Amanhã, é
que o cérebro, e aí tem vários trabalhos sobre isso; inclusive o Ortega, que eu mencionei agora
há pouco, também trabalhou sobre isso - o cerebralismo: o cérebro passa a ser um ente de razão
que caminha na frente dos seres humanos. É o cérebro que faz isso, o cérebro que faz aquilo…
entra aí um diálogo com a Psicologia Evolucionária e a Antropologia Evolucionária. Então, o
cérebro, de repente…

C.C. - É um certo tipo de Sociobiologia renovada…

L.F.D.D. - É, é uma renovação da Sociobiologia.

C.C. - Psicologia Evolucionista. Sei lá, tem uns nomes que eu não…

L.F.D.D. É verdade. Que o Sahlins tinha demolido naquele velho, famoso, artigo.

C.C. - Sim, sim.

L.F.D.D. - Mas é uma Sociobiologia agora lastreada na importantíssima pesquisa


neurocientífica. Esse que é o problema. Porque, efetivamente, as Neurociências são
fundamentais hoje em dia, não é? É um horizonte de trabalho riquíssimo, interessantíssimo. O
problema não são as Neurociências, é a ambição de você ter uma produção neurocientífica que

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seja reducionista em relação aos fenômenos humanos complexos como são os fenômenos
culturais.

C.C. - Fazendo um parênteses: é um o darwinismo com darwinismo social.

L.F.D.D. - É. Já no século XIX você tinha tido essa formulação. Depois a Sociobiologia. Agora,
essas vertentes reducionistas das Neurociências. Tem razão. É um longo projeto. Sem dúvida
nenhuma, as Neurociências reatualizam uma ambição da Biomedicina desde o século XVIII.
Elas começaram copiando o modelo newtoniano, o mecanicismo médico etc., e nunca deixaram
de ter esse horizonte como expectativa, apesar de terem sido influenciadas pelo vitalismo -
coisas que eu estou estudando agora, que estão me interessando particularmente, agora, o
romantismo e o vitalismo. A própria Psiquiatria Biológica, na verdade, ela encontrou o seu
acme no comecinho do século XX, com o nosso bendito… É uma coisa que eu tenho que
escrever na mão, porque todo ano eu tento citar o nome dele e eu não consigo lembrar o nome
dele. Eu passo por essa vergonha em todas as minhas turmas. É um psiquiatra alemão
fundamental, que foi professor do nosso… que dá o título lá… O Juliano Moreira. O Juliano
Moreira estudou com esse senhor alemão que foi o criador, propriamente, da Psiquiatria
Biológica na sua grande configuração. Eu tenho que fazer uma “ponte de burro”, alguma coisa
que eu associe isso, uma comida, um nome de um bicho, alguma coisa assim [risadas]. Não é
possível isso, todo ano eu tenho esse problema. Mas é fácil de encontrar. Na história da
Psiquiatria vocês vão encontrar lá o psiquiatra alemão que foi o professor do… Ou então
procurando pelo Juliano Moreira, que estudou com ele lá na Alemanha e trouxe para o Brasil
a Psiquiatria Biológica. É com h… Enfim. Eu estava, então, onde? Eu estava nesse artigo,
comparando o diálogo Psicanálise e Ciências Sociais na geração do Arthur Ramos com esse
diálogo que se entreteve no Museu e que, infelizmente, acabou também terminando, de certa
maneira. Celso, você colocou esse ponto. Ele não tem mais os cultivadores, não tem mais a
exuberância que teve naquele período. A gente trabalhou muito junto. Era um projeto coletivo,
era um projeto coletivo. Hoje você tem gente trabalhando aqui e ali sobre essas coisas, mas
não… Até porque, a Psicanálise, como você também mencionou, mudou muito, não é? Mesmo
com esse meu cunhado, que é uma pessoa que eu gosto muito, que é um grande psicanalista,
há coisas que eu não consigo conversar com ele sobre isso. Enfim, é um outro regime. Outras
dimensões que estão em jogo. Enfim, esse filão eu acho que eu disse o que eu poderia ter dito.
Por outro lado, é preciso pegar o que eu fiz depois da Tese de Doutorado, do ponto de vista

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mais central, fora esse lado dos investimentos Psi, desse projeto da psicologização, que foi
muito importante. Foi um projeto com recursos do CNPq. Durou bastante tempo e foi muito
profícuo.

S. M. - Antes de ir… Durante o Doutorado, você estava dando aula no Museu, a partir dos anos
80?

L.F.D.D. - Assim que eu terminei os créditos, eu fui autorizado a dar aula. Eu acho que o
Gilberto era o responsável pela disciplina. Eu dava a disciplina, mas o nome do Gilberto é que
aparecia como sendo o responsável. Acho que só depois que eu defendi a Tese de Doutorado
que eu passei a ser… Eu defendi em 85 e passei a ser o titular pleno das disciplinas que eu
pudesse dar. Não sei essa que você fez, se eu já era professor.

C.C. - Você já era professor.

L.F.D.D. - Já era pleno professor [risadas].

C.C. - De fato e de direito.

L.F.D.D. - De fato e de direito. Bom, isso foi sempre uma experiência extraordinária lá do
Programa, tanto nas interlocuções, nas grandes celeumas, nas grandes dificuldades, nas grandes
decepções, que houve lá também, não é? A dissenção entre Moacir Palmeira e Otávio Velho,
fortíssima, em determinado momento, a respeito de questões ligadas à história dos estudos de
sociedades camponesas, política…

C.C. - Eduardo e João Pacheco.

L.F.D.D. - Eduardo e João Pacheco, esse feud que não terminará nunca. A tensão entre Gilberto
e Otávio. Por que não dizer isso? Gilberto e seu irmão. Sempre esteve pulsante também e que
não terminou nem depois da morte de Gilberto, eu diria. Mais recentemente toda essa geração
que… Eu vou ser muito franco, nesse depoimento, em relação a isso. Quer dizer, houve uma…
Não sei nem quais são as posições de vocês em relação a isso. Houve um desafio muito grande
para o ethos do Programa, tal como eu o entendia e entendo até hoje, a partir de uma geração
que começou com o Marcio Goldman. Marcio Goldman, depois se reforçou com a entrada da
Olívia Gomes da Cunha, depois recebeu reforço de uma transformação da Bruna Franchetto. É

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claro que sempre houve a figura complexíssima de Eduardo Viveiros de Castro pairando um
pouco sobre isso. Mas o Eduardo é muito mais do que isso, eu gostaria de dizer, gostaria de
sublinhar isso. Eu tenho uma admiração incondicional pelo trabalho do Eduardo. É uma pessoa
extremamente difícil. É uma pessoa difícil mesmo, sob vários aspectos. Mas é um intelectual
sem par, não é? Agora, essas outras pessoas eu acho foram mais danosas ao Programa do que
contribuíram para ele. São importantes intelectuais.

C.C. - Gilberto, no final da vida, ficava muito incomodado.

L.F.D.D. - Muito incomodado.

C.C. - Com a falta de uma cordialidade institucional.

L.F.D.D. - Exatamente.

C.C. - Uma coisa do gênero que… A geração antiga tinha essas brigas todas que você falou.

L.F.D.D. - Isso, mas eram todas de uma maneira civilizada.

C.C. - Mas mantinha-se alguma…

L.F.D.D. - Mantinha-se uma amizade por trás… Mantinha-se uma amizade por trás. Eu me
lembro, quando eu fui diretor do Museu…

C.C. - É, vamos falar desse período mais agradável e tranquilo da sua trajetória.

L.F.D.D. - Não, pois é. Mas só esse breve episódio. Eu entrei em uma posição política
extremamente complicada em relação à Reitoria, naquele momento, e me vi contra a maior
parte dos meus colegas, fora Gilberto, que ficou ao meu lado.

C.C. - Ou alguns colegas contra você.

L.F.D.D. - É, foi. Eu me lembro de uma Congregação. Eu presidindo uma Congregação do


Museu. Aquela horda contra mim. Eu estava negociando um apoio do Banco Mundial para o
Museu. Banco Mundial: anátema, para uma visão de esquerda. O Banco Mundial tinha acabado
de criar uma linha de apoio cultural. Por que não tentar saber como aquilo ia funcionar? O
Museu carente de tudo... Então, houve uma discussão horrível na Congregação a respeito dessa

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questão do Banco Mundial, se eu ia “vender” o Museu para o Banco Mundial. Terminou, eu
exausto, saíram as pessoas. A Lygia veio. Ela tinha sido particularmente ativa. Ela veio e me
deu um abraço, e disse: “temos um dissenso em relação a isso, mas estou aqui com você”. Isso
eu acho que é um exemplo desse ethos que prevalecia antes dessa transformação.

C.C. - A antiga geração.

S.M. - A institucionalidade, também.

L.F.D.D. - É, exato, exato. Eu fico até emocionado de lembrar isso. Agora, nos últimos tempos,
a coisa mudou muito e ficou muito marcada por uma transformação de ethos. Aí não é nem a
questão de como as pessoas… Quer dizer, é claro que é, se baseia… Ethos é o comportamento
das pessoas. Mas na maneira em que afetou o ethos da instituição. Porque, por exemplo, o
respeito à tradição… à produção tradicional. O respeito ao trabalho acumulado, à cultura
objetiva da Antropologia. Era uma coisa sacrossanta nossa. Ler, sei lá…

C.C. - Conhecer.

L.F.D.D. - Seja quem for: Malinowski ou qualquer outra pessoa menos cotada. Malinowski é
mais difícil você se contrapor, mas enfim. Sei lá. Respeitar. Saber porque Evans-Pritchard
escreveu aquilo, naquele momento. Ou sei lá mais quem. Ou o Godelier escreveu e foi nessa
direção, etc. Isso foi atacado por uma posição em que você desqualificava a tradição.

S.M. - Os clássicos.

L.F.D.D. - Desqualificava os clássicos, não é? Desqualificava os colegas que trabalhavam em


uma certa direção.

C.C. - Sim, é isso que eu ia falar. Dos clássicos chegava nos colegas com seus temas clássicos.

L.F.D.D. - Nos colegas com seus temas, exatamente. Isso foi muito…

C.C. - Seus orientandos.

L.F.D.D. - Seus orientandos. Os orientandos da gente, quando iam fazer disciplinas com essas
pessoas, eram martirizados, eram maltratados. Eu lembro da Naara Luna, que foi minha

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orientanda, dizendo que… Isso afetava até gente que nem fazia parte desse núcleo duro aí não.
Isso afetava, de um modo geral… Eu acho que essa crítica do Carlos Fausto, com quem me
dou muito bem hoje, mas que… contra essa ideia de que você possa fazer uma Antropologia
da cultura ocidental: “que diabo é isso?”.

S.M. - Quando o Gilberto morreu, muitos professores falaram que não existia Antropologia
Urbana, que, agora que o Gilberto morreu, a Antropologia Urbana…

L.F.D.D. - Exato, foi isso. Quando se fez o concurso, houve uma batalha absurda para evitar
que os orientandos do Gilberto ganhassem o concurso.

S.M. - Assustador.

L.F.D.D. - Eu estava na banca e eu sei como isso foi mobilizado.

S.M. - Nós, que éramos orientandos, quando o Gilberto morreu, foi um… Graças a Deus você
já me aceitou logo, mas foi um constrangimento para grande parte dos orientandos. Ninguém
queria pegar. Parecia que a gente era contagioso.

L.F.D.D. - Pois é. Ficaram comigo, com a Adriana Vianna.

S.M. - Ficou com você e com a Adriana, basicamente. Foi quem aceitou.

L.F.D.D. - Foi terrível, foi uma reação muito…

S.M. - O Antonio Carlos pegou também a Raquel e o Caio.

L.F.D.D. - O Antonio, é verdade. Felizmente, muita gente…

C.C. - Como você, pessoalmente, se sentiu com isso? Ficou mais retraído, vamos dizer, da vida
institucional do Programa?

L.F.D.D. - É, teve um período em que eu fiquei me sentindo muito afastado. Pensei até em sair
do Programa, sabe?

C.C. - Um tipo de “reserva” simmeliana.

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L.F.D.D. - É, uma reserva, é verdade. Uma reserva simmeliana: não se deixar afetar
excessivamente. Mas é muito difícil. Você dando cursos, os alunos sabem. Os seus orientandos
fazem outros cursos. Você sabe… As fofocas correm. O que fulano disse, em tal momento, em
relação a tal autor. É inevitável. E um trato pessoal penoso. Um trato pessoal penoso sobre as
coisas mais variadas. Eu fiz uma apresentação, logo depois da morte de Gilberto, sobre aquele
último artigo dele sobre o trabalho doméstico, o serviço doméstico.

S.M. - Eu fui lá.

L.F.D.D. - Sobre a Deja, etc., aquele artigo. Organizei um grupo e fizemos um pequeno
seminário. Era um seminário, eu acho, tinha mais gente que ia falar. Estava presente Olívia
Cunha, que se considera negra. Se considera e declara que é filha de empregada doméstica.
Muito bem, é uma coisa respeitável, é um traço de uma carreira, como qualquer outro. Mas tem
um ressentimento. Quando se começou a apresentar aquele trabalho do Gilberto como um
trabalho em que ele resgatava a possibilidade de você ter relações diádicas positivas entre um
patrão e uma empregada doméstica, a Olívia começou a subir pela parede lá no canto dela e
fez uma intervenção. Uma intervenção de que estava havendo, não me lembro quais foram as
palavras que ela usou, um escondimento da relação de exploração do serviço doméstico. Foi
uma coisa extremamente constrangedora. Ela falou isso em público. Era um seminário em
homenagem ao Gilberto. Em relação ao último texto que ele tinha produzido, que, obviamente,
não é nenhuma defesa das situações de exploração doméstica. Vocês conhecem o trabalho e
sabem da sutileza com que ele escreveu aquilo. De modo que é um exemplo do clima que se
estabelecia em relação às mais inesperadas coisas. Em relação também… Claro que houve um
episódio muito delicado que foi o da adoção das cotas raciais no programa, em que eu me vi
em uma situação muito difícil. Porque eu tinha, junto com Gilberto, junto com Yvonne, junto
com Peter Fry, tentado produzir uma crítica ao modo pelo qual a questão da racialização estava
se dando, que era, como nós considerávamos, uma crítica de esquerda. Uma crítica que
considerava que aquele processo estava escondendo o sofrimento também dos pobres brancos.
Enfim. Respeito, vocês podem ter outra opinião. Mas nós estávamos defendendo uma opinião
que não era uma opinião de direita. Nós não estávamos querendo impedir que a população
negra ascendesse à pós-graduação em Antropologia ou entrasse na universidade. Eu, por
exemplo, no meu trabalho de campo… esse meu pessoal, essa minha família com quem eu
trabalhei, tem gente de todas as cores possíveis. Me parecia injusto que só as que tivessem cor,

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quer dizer, fenótipo mais escuro, é que tivessem vantagens na entrada à universidade, contra
seus primos, irmãos, etc, que tivessem fenótipo claro, e que tivessem as mesmas dificuldades.
Enfim. A direita foi tomando conta desse movimento contra a racialização e aí não teve mais
jeito. Inclusive, agora foi votada de novo a renovação dessa política e eu votei a favor. Fiz de
novo uma declaração de voto dizendo que eu não tinha abdicado de nenhuma das posições que
eu tinha defendido naquela ocasião, mas que, pelas circunstâncias atuais, políticas, desse
governo, e pelo fato da direita ter assumido essa bandeira, eu voltava à favor da manutenção
das cotas raciais. Mas isso, naquela época, foi um escândalo. Eu fui o único a votar contra. A
Adriana Vianna e María Elvira… Não, María Elvira não.

S.M. - A María Elvira ainda não tinha entrado.

L.F.D.D. - Não, não tinha entrado. Adriana Vianna e…

C.C. - Adriana Facina?

S.M. - Também não tinha entrado ainda não.

L.F.D.D. - Não, também não. Quem foi?

C.C. - Federico?

L.F.D.D. - Não, não. Teve uma outra pessoa também, que se abstiveram… Renata. Renata
Menezes e Adriana Vianna se abstiveram. Giralda, depois, que estava ausente, me disse que se
ela estivesse presente teria votado comigo. Mas isso ficou para as calendas. Aí, claro, criou-se
um clima horroroso. Houve um debate, Eduardo com os alunos, depois eu soube, me contaram
no pátio do chafariz, teria dito: “então, os nazistas estão ganhando o debate?”.

C.C. - Assim, quem ficou contra passou a ser racista e pronto.

L.F.D.D. - Racista, nazista, filho da puta. Enfim, todos os adjetivos. Enfim. Eu compreendo
que fosse uma situação difícil. Era uma situação difícil, uma situação ética muito difícil, uma
situação política muito difícil. Mas nós estávamos apresentando uma coisa que era para ser
discutida, não é? Nunca conseguimos que as nossas posições - a minha, do Peter, da Yvonne,
de Gilberto e de algumas outras pessoas - fossem discutidas nos seus termos. Era
imediatamente reduzido à ilegitimidade. Então, isso certamente contribuiu muito para que esse

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processo de dissenso dentro do Programa se acentuasse. Porque, então, eram os “reacionários”
contra os “inovadores”. Aí também entra uma questão mais propriamente acadêmica. Porque,
nesse período, há uma grande transformação no campo intelectual da Antropologia. Você tem
a entrada em cena de muitos atores que irromperam de um modo muito… quase como uma
geração que irrompe: Marilyn Strathern, Tim Ingold, toda uma plêiade de produtores. A
reavaliação do Roy Wagner, que era muito mais antigo, mas que, de repente, era retomado em
um novo registro. Tudo isso visto como “pós-estruturalista”. Então, a herança lévistraussiana
terminava com seus discípulos mais imediatos: a Françoise Héritier, o Philippe Descola na
França. Você tinha o Sahlins, que era uma figura que ficava um pouco impoluta, em separado.
O Sidney Mintz. Alguns personagens continuavam dignos de…

C.C. - Algum respeito.

L.F.D.D. - De “algum” respeito, é. Mas surgia um novo paradigma, que se apresentava sob a
forma de um messianismo, não é? Eu dei… Eu resolvi enfrentar isso de cara. Eu não conhecia
nada dessas coisas. Não faziam parte do meu ambiente de discussão. Eu não fazia etnologia,
então não tinha porque ler, em princípio, Marilyn Strathern ou Tim Ingold. Mas, enfim, eu
resolvi dar TA II, que é a disciplina Teoria Antropológica II.

S.M. - Foi para a minha turma.

L.F.D.D. - Foi a turma para você?

S.M. - Foi a minha turma.

L.F.D.D. - Você tinha feito…

S.M. - O Marcio tinha dado TA I e você deu TA II.

L.F.D.D. - O Marcio tinha dado TA I antes. Exatamente. Isso que eu ia mencionar.

S.M. - Foi para a minha turma.

L.F.D.D. - Então, eu tenho uma testemunha histórica.

C.C. - Devia ter sido o oposto.

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S.M. - É.

L.F.D.D. - Uma testemunha histórica do desafio que foi dar aquela disciplina.

S.M. - Foi maravilhoso para mim [risadas].

L.F.D.D. - Para você foi maravilhoso. Mas foi dificílimo para mim, porque a turma estava
envenenada contra mim. Tinha um grupo…

S.M. - Tinha?

L.F.D.D. - Tinha um grupo envenenado.

S.M. - Mas aquela turminha era muito difícil. Minha turma não era das mais fáceis também
não.

L.F.D.D. - Tinham pessoas muito ativas.

S.M. - Messiânicas.

L.F.D.D. - É, exato. Então, foi uma dificuldade para mim. Primeiro, porque eu estava tomando
conhecimento. Era um pouco como a Antropologia da Medicina com você. Eu estava tomando
conhecimento pela primeira vez com esses autores. Eu estava tentando produzir um quadro
analítico para compreender o Roy Wagner e aquelas oposições com que ele trabalha, que eram
uma novidade para mim. Eu tinha até tido contado com o Roy Wagner há muito tempo antes,
na minha primeira ida aos Estados Unidos. Mas não tinha me chamado a atenção a obra dele,
o famoso A Invenção da Cultura. Então, esse episódio foi muito importante para mim, essa
disciplina. Porque eu efetivamente fui desafiado. Era desafiador. Não só pelo que eu já sabia
que existia, como por uma turma que tinha sido instruída pelo Marcio Goldman no semestre
anterior. Então, a partir disso, eu me dediquei imensamente a esse tipo de coisa. Eu estaria
dando ainda TA I e TA II. Eu gosto muito de dar essas duas disciplinas. Mas aconteceu um
outro fato, que eu acho que não tem muito a ver com o que a gente está discutindo aqui. Eu
acabei desistindo de dar essa turma. Enfim, tem a ver. É um testemunho também. Quando
foram votadas as cotas, que eu chamo de raciais… Na verdade não são cotas. Nosso sistema
não é de cotas. Mas, enfim, tem uma referência a pessoas afro-brasileiras e a indígenas. Eu
votei favoravelmente aos alunos indígenas, a alguma vantagem para os alunos indígenas, mas

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não para os alunos afrodescendentes. Efetivamente, a partir daí, nós passamos a ter muitos
alunos indígenas.

S.M. - Na minha turma teve o Tonico.

L.F.D.D. - E não discutíamos… É, naquela turma teve o Tonico Benites, justamente, que hoje
em dia é um importante ator do cenário indígena. É muito difícil você saber o que um aluno
indígena está querendo de TA I e TA II. Porque, na verdade, eles entram muito com a
expectativa de ter instrumentos para conhecer a sua realidade e para, depois, serem…do
advocacy, serem defensores articulados. O que é ótimo, excelente. Mas eles não estão
interessados, efetivamente, em saber o que o Herder disse no século XVIII, o que Margaret
Mead disse a respeito… em Sexo e Temperamento. É uma dificuldade você lidar com os alunos
indígenas. Eu não tenho nada contra os alunos indígenas, eu adoraria poder ajudá-los. Mas TA
I e TA II eu não dou mais porque eu não sei o que fazer com eles. O que é uma pena. Agora
mesmo, a disciplina que eu estou dando, que não é TA I ou TA II, é “Pessoa e Subjetividade”,
há um aluno indígena que parece ser muito interessante. É um Tikuna. Mas ele, coitado, está
sem bolsa, na aldeia, com contato precaríssimo online para assistir às aulas, nós estamos com
as aulas online esse semestre, porque não temos espaço físico, e não fala inglês. É uma
situação… O que você faz? Você não pode traduzir todos os textos em inglês que estão na
disciplina para um… Pressupõe-se que os alunos do Programa leiam em inglês. Não é nem que
falem, leiam em inglês. Então, é um dilema tremendo. Eu já coloquei isso na reunião da
Coordenação: “o que eu vou fazer com esse aluno? Me ajudem”. Foi um SOS: “me ajudem. O
que eu faço? O que vocês querem que eu faça? O que o Programa deseja que se faça?”. Mas
isso eu já estou entrando em outra seara. Isso porque também, agora, houve um seminário de
avaliação dos cinco anos, eu acho, desses sistemas de vantagem - não sei nem como descrever
isso. Política afirmativa. É uma política afirmativa. Não são cotas, é uma política afirmativa.
Isso foi também parte desse envenenamento complexo. Marcio agora se aposentou, mas ele
continua orientando. Eduardo se mantém numa posição sempre muito cavalheiro, assim, em
função da sua preeminência absoluta. Participa pouco das discussões. Ele se declara… Eu
mantenho uma boa amizade com o Eduardo, apesar de tudo, apesar de ter me feito algumas…
ter havido alguns incidentes bastante penosos na nossa carreira. Ele foi meu colega de
mestrado, então nós estamos ombro a ombro, desde 74, quase…

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C.C. - Envelhecendo juntos, como diria…

L.F.D.D. - É, envelhecendo juntos. Companheiros de viagem.

C.C. - O Schultz tinha essa expressão.

L.F.D.D. - É, exatamente. Isso, Schultz. Mas eu gosto dele. A gente chegou a ser amigo de
frequentar a casa, etc. Quando a gente se encontra, as coisas correm bem. Ele ultimamente me
confidenciou que também estava muito cansado do Programa, desanimado. Ele é um pouco
mais moço, dois anos mais moço que eu. Então, ele vai sair, na expulsória, mas tarde. Agora
nós estamos enfrentando esse problema no Programa que é o da renovação. Porque, sem
possibilidade de concurso, sem possibilidade de renovação. As pessoas estão… Além de alguns
morrendo, evidentemente, o que aconteceu ainda, depois de Gilberto, com Giralda. Outros
estão se aposentando. José Sérgio se aposentou agora, na expulsória… na compulsória.
Aposentadoria compulsória. Eu sairei daqui a dois anos. Com isso também João Pacheco, toda
uma geração… Hoje eu sou um sênior, não é? Eu, Eduardo, João e José Sérgio somos os
seniores do Programa.

C.C. - Quando eu entrei você era da geração jovem.

L.F.D.D. - É, pois é [risadas].

C.C. - Eu, da novíssima.

L.F.D.D. - Agora, claro, tem muita gente boa nova, mas não o suficiente para manter o
Programa no nível em que ele sempre se manteve. Então, está se fazendo, até agora, uma
chamada pública para professores da UFRJ que queiram ser professores colaboradores do
Programa, em uma tentativa para ver se isso vai ajudar nessa acomodação em um período
crítico como esse.

C.C. - Agora, Luiz Fernando, mudar um pouco sem mudar o local.

L.F.D.D. - Sim.

C.C. - Na sua narrativa, várias vezes você mencionou o incêndio do Museu: “perdi isso no
incêndio”, “o incêndio”, tal. Então, lá na fatídica noite de 2 de setembro de 2018… Eu acho

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que todo mundo aqui se lembra. Eu estava em um hotel lá em São Paulo. Minha mulher me
ligou: “você está com a TV ligada?”. Eu disse: “não”. “Então liga, que o Museu está pegando
fogo”. Eu liguei. Estava em uma área reduzida. Mas quem conhecia o Museu sabia que não
haveria jeito.

L.F.D.D. - Não havia chance.

C.C. - Ia varrer tudo. Uma coisa que me chocou é que a imprensa, os jornalistas falavam: “o
museu da Quinta da Boa Vista”. Eles não tinham a menor ideia do que era o Museu Nacional.

L.F.D.D. - É.

C.C. - Eu fiquei horas devastado. Eu me lembrava muito de Gilberto. Pensava: “ainda bem que
Gilberto, pelo menos, já está morto. Porque imagina ele vendo aquilo. A sala dele, o Jardim
das Princesas, o Museu todo queimando”. Eu fico vendo, até que aparece Luiz Fernando, que
era vice-diretor, se não me engano, explicando o que era o Museu. Porque a imprensa não sabia:
“é um museu lá na Quinta da Boa Vista”. Quer dizer…

L.F.D.D. - E falando da minha raiva. Você deve ter ouvido, eu falando da minha raiva. Eu acho
que isso é foi coisa que eu acho que foi considerada importante depois.

C.C. - Como é que…

L.F.D.D. - O que eu sentia mais era raiva, raiva. Tudo o que a gente tentou, tudo o que a gente…

C.C. - Pois é. Conta um pouco, por mais penoso que seja, como é que soube, como é que foi?

L.F.D.D. - Foi assim. Eu estava em casa. Acho que meu companheiro estava vendo televisão e
me chamou. Já estava a labareda imensa no meio. Aí não tive ânimo de ir lá. Àquela altura já
não teria dado para fazer nada. Algumas pessoas tiveram notícia mais cedo, puderam ir e ainda
puderam tirar algumas coisas das salas… de algumas periféricas. Mas ali, onde ficava a minha
sala, não seria… Foi um ponto… Como foi no auditório, do auditório passou justamente para
a biblioteca do PPGAS e aí pegou aquele lado ali. Tinha, na exposição em cima da minha sala,
exposição linda que nós tínhamos… eu tinha participado muito, a nova exposição de
entomologia e de… de invertebrados e de entomologia, que tinha muito material líquido
inflamável. Daquele lado ali, não sobrou nada. Na minha sala eu tinha ferramentas, porque eu

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trabalhava muito no jardim do Museu. Então, tinha tesouras de poda, tinha coisas desse tipo.
Não sobrou nem os objetos de ferro da minha sala. Ferro. Não sobrou nada, nada. Nem os
objetos metálicos, as estantes, nada. Não sobrou nada. Foi tudo derretido. Não tinha um prego.
Eu só reconheço que é ali por causa da vista da janela, porque ficou um imenso vão. Você sabe
que a visita às ruínas não é nem emocionante? Porque é tão diferente, é uma coisa tão… A
impressão que dá… Porque é muito tijolo, não é? Acabaram todos os revestimentos internos,
praticamente. Então, são aquelas coisas de tijolo maciço. Imensos vãos vazios. As janelas, os
arcos internos, essas coisas. Então, é uma ruína romana. Você se sente, assim, no Monte
Palatino. É uma coisa muito estranha. Como não tem nenhum… Não dá para você sentir que é
a sua sala, porque não tem nada da sua sala. Não tem nem as paredes próximas da sala. Só tem
as paredes externas do palácio. Enfim, foi um desastre total. Eu nunca me recuperarei disso.
Foi uma das coisas mais terríveis da minha vida, sem dúvida alguma. Eu custei muito a me dar
conta das minhas perdas pessoais. Para mim, o maior era a perda do Museu, realmente. Porque
eu fui muito ligado àquilo. Eu fui diretor adjunto, diretor, vice-diretor, presidente da
Associação de Amigos. Eu conhecia cada desvão daquele negócio. Sabia as coleções como é
que eram. As coleções dos outros setores, eu conhecia. Como era uma coleção de entomologia,
de coleóptera. Eu sabia como estavam condicionadas aquelas coisas. Onde havia os problemas
mais graves de manutenção. Os tesouros do Museu, os tesouros, imensos tesouros. Coisas
preciosíssimas. Não só as coleções científicas. As coleções culturais. Coisas incríveis que se
foram. Tudo o que estava no cofre do Museu. Jóias imperiais, moedas. Enfim, é uma coisa
inacreditável. A mobília do século XIX. Nós estávamos com todo o acervo… O Museu do
Primeiro Reinado foi fechado, então toda a coleção de móveis coloniais que estava lá foi para
o Museu. Aquilo tudo desapareceu incinerado. Nas coleções etnológicas, aquele manto dos reis
do Havaí, que foi dado a Pedro I. Uma… Como se chama isso? Uma roupa de samurai. Uma
roupa completa de samurai, do século XIX, que nunca tinha sido exposta. Uma coisa linda. Eu
vi uma vez. Enfim, é uma coisa… É um túnel de memórias de coisas desaparecidas. O acervo
greco-romano, o acervo egípcio… Meu Deus, aquele acervo egípcio extraordinário. Então, para
mim… Na minha sala havia um dos exemplares das pinturas que o Décio Villares tinha feito
para a Exposição Antropológica de 1882. Um material riquíssimo, iconografia maravilhosa da
primeira exposição… O primeiro evento público de reconhecimento do indigenato brasileiro
pelo Estado brasileiro: foi a Exposição Antropológica de 1882. Tudo, uma memória inteira
disso. As esculturas, as pinturas, a memória dos objetos, tudo desapareceu.

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C.C. - Em uma noite.

L.F.D.D. - Em uma noite, em poucas horas.

S.M. - No dia seguinte também, o pessoal foi para lá e teve repressão policial. O que a gente
viu foi uma coisa horrorosa.

L.F.D.D. - É, que aí não podia, tinha as exigências do Corpo de Bombeiros.

S.M. - Mas ver os professores correndo… Eu vi pela televisão. Correndo… Foi uma coisa…

C.C. -Se não me engano, o Moacir estava lá, nas primeiras horas, chorando.

S.M. - É, o Moacir.

L.F.D.D. - O Moacir perdeu tudo, inclusive coisas pessoais dele. Eu também perdi muitas
coisas pessoas. Mas parece que ele perdeu muito mais do que eu, pelo que eu ouvi dizer. A
minha biblioteca pessoal estava toda.

S.M. - Cadernos de campo, tudo, não é?

L.F.D.D. - Sete mil títulos que se foram. Todos os meus arquivos de pesquisa, de trabalho de
campo.

C.C. - Como é que foi reconstruir?

L.F.D.D. - Não...

C.C. - Quer dizer, não reconstruiu, não teve... Mas, vamos dizer, refazer.

L.F.D.D- Tem esse horizonte das coisas virtuais, que eu prefiro, hoje em dia. Eu prefiro arranjar
uma cópia digital do que comprar um livro. Não só porque está caríssimo tudo [risadas]. Se for
comprar no exterior, então, é impossível. Mas algumas coisas eu compro. Eu comprei os meus
livros. Eu recomprei os meus livros, em sebo. Por exemplo, para ter um exemplar da Vida
Nervosa, que foram todos embora. Coisas desse tipo. Recentemente, eu descobri que tem um
que me falta, que eu não consegui.

C.C. - Na sequência das pragas…

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L.F.D.D. - Do Egito.

C.C. - …do Egito antigo, tivemos depois as eleições, não vamos falar disso, e depois tivemos
a pandemia. Como é que você se adaptou aos eventos sucessivos?

L.F.D.D. - Às pragas sucessivas. Bom, primeiro, o incêndio eu enfrentei com a luta. Ainda
como diretor adjunto, eu participei intensamente da batalha: entrevistas, textos, escrevi muito,
falei no exterior, falei na Europa, participei de eventos, de um evento online nos Estados
Unidos, falei na Argentina. E assumi a presidência da Associação de Amigos do Museu
Nacional, que era o veículo fundamental para a captação dos recursos necessários na
reconstrução do palácio. Então, eu passei os últimos dois anos infernais de gestor de uma
empresa. É uma coisa realmente… Enfim, cuidando de obras, de investimentos, de
financiamentos. Mas acho que foi importante. Foi importante. Consegui passar o cargo para
uma outra colega muito dedicada também, que vai continuar o trabalho. Então, o incêndio eu
enfrentei trabalhando. Trabalhando de diferentes maneiras. Bom, a eleição não havia o que
fazer. Nós tivemos a sorte de ainda pegar o finzinho do governo anterior, então conseguimos
alguns recursos ainda do Ministério da Educação. As primeiras intervenções propiciatórias da
recuperação do palácio foram do Ministério da Educação, dez milhões que ainda saíram no
governo Temer. Depois, nunca mais.

C.C. - No governo do… Isso é um fato histórico: o presidente tuitou, em abril, que as
Humanidades, Sociologia, Filosofia, Humanidades em geral, não mereciam o dinheiro do
contribuinte. Alguma coisa do gênero. Enfim, foi…

L.F.D.D. - Quanto ao incêndio, ele ainda era candidato e teria dito, não sei, não vi a gravação:
“o que eu posso fazer? Já queimou mesmo”.

S.M. - É.

L.F.D.D. - Eu soube disso.

C.C. - Não só os recursos ficaram escassos, mas, vamos dizer, há um clima anti-Humanidades.

L.F.D.D. - Uma tensão.

C.C. - As Humanidades não são tão legítimas.

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L.F.D.D. - Claro, claro. Sem dúvida alguma.

C.C. - Científicas. Ou seja…

L.F.D.D. - Isso em um sentido muito lato. Porque é uma guerra cultural o que nós vivemos.
Então, toda a estrutura do antigo Ministério da Cultura foi tomada de assalto. Nós tivemos
enormes dificuldades para a recuperação do Museu com o IBRAM, com o IPHAN e com a Lei
Rouanet - com o…. Como se chama o órgão que gerencia a Lei Rouanet? Esqueci agora.

C.C. - MinC?

L.F.D.D. - Dentro do antigo MinC, que agora é Ministério do Turismo. Mas tem um nome, a
secretaria que trata especificamente. Agora me escapou. Então, processos arquivados, de
doação, de financiamento para a recuperação do Museu. Processos arquivados. O IPHAN, que
cisma com uma coisa que não... Não é o IPHAN em geral. Puseram na regional Rio do IPHAN
um inimigo figadal do Museu Nacional, que sempre quis, tradicionalmente, que o Museu saísse
do Palácio para que ali se fizesse um museu de história do Império. Uma pessoa notória. A
pessoa que foi colocada no IPHAN do Rio, foi essa pessoa, que tinha esse projeto de vida.
Então, ele criou uma fake news, que circulou, que foi considerada real pela estrutura do
Ministério do Turismo e Cultura, que era a ideia de que o Museu Nacional pretendia fazer um
shopping no Palácio de São Cristóvão e que teria uma ala dedicada à Marielle Franco. Em
primeiro lugar, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Imagina, um shopping com uma ala
dedicada à Marielle Franco. Depois, quem poderia imaginar uma coisa dessa, a não ser um
delírio de contrariamento das nossas lutas? Houve uma luta do diretor do Museu Nacional de
explicar que isso era uma fantasia louca, que isso não tinha nenhum fundamento, para poder
liberar algumas coisas. Porque havia uma ordem de que tudo o que viesse do Museu Nacional
seria arquivado. Enfim, dando um exemplo. Bom, a terceira coisa é a pandemia.

C.C. - A pandemia. Como é que você viveu e se adaptou à pandemia?

L.F.D.D. - Pois é, a pandemia, ela começou assim meio… Eu estava ainda… Bom, nós já
estávamos em uma situação muito peculiar, em primeiro lugar, na pandemia. “Nós”, que eu
digo, é o PPGAS. Porque o PPGAS, provavelmente, dos setores do Museu, foi o mais atingido.
No sentido de ter sido todo atingido, porque foram-se todos os gabinetes de trabalho, todos os

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arquivos, toda a secretaria, toda a biblioteca. Não sobrou literalmente nada do PPGAS. Então,
nós já estávamos, digamos assim, virtuais, porque não havia onde sentar, não havia… Porque
os outros setores… A Zoologia, que trabalhava lá em cima: tem uns setores da Zoologia lá no
Horto. Então, eles puderam se remanejar. A Botânica abrigou alguns dos zoólogos. A
Arqueologia tinha espaços no Horto também. Então, os outros setores…

C.C. - No final, salvaram pedacinhos de algumas coisas, não é?

L.F.D.D. - Houve várias recuperações. Houve um projeto de salvação, de resgate, muito sério,
muito complexo. Um trabalho arqueológico com aquilo que sobrou das ruínas. Então, existem,
sei lá, uma quantidade enorme de contêineres com material que foi recuperado das coleções.
Mas não só isso: as pessoas, o trabalho das pessoas. Elas puderam ser absorvidas em
laboratórios. Porque os pesquisadores de Ciências Naturais precisam de laboratórios, precisam
de lupas, precisam de microscópios, essas coisas. É muito mais grave do que para nós, que
podemos… Então, eles conseguiram se reagrupar lá no Horto, no Horto Botânico, onde várias
áreas sobreviveram do Museu. Mas a Antropologia Social ficou completamente no ar,
literalmente. Trabalhou, durante um tempo, na Biblioteca. A Biblioteca que ficou lá salva no
Horto. A velha Biblioteca do Museu, que felizmente tinha sido transferida para o Horto em
1980 e que se salvou assim também. Então, ficamos um pouco lá, dando aula. Mas essa
Biblioteca entrou em obra. Porque já era um projeto antigo que ela fosse remanejada para
aproveitar melhor o espaço. Porque a gente não pode construir mais nada no Horto, por conta
do IPHAN etc. É até justo isso. Já não podia antes. Então, havia esse projeto de… Então, a
Biblioteca foi fechada também. Então, nós não tínhamos mais nem onde dar aula na Biblioteca,
não tínhamos mais a Biblioteca Central do Museu, que tem um fundo de Antropologia, bem ou
mal. Todo o acervo foi todo encaixotado para que se fizesse a obra. Está terminando agora a
obra. Nós estávamos literalmente no ar. Nós já estávamos… Quando entrou a pandemia, nós
já estávamos em regime virtual, praticamente. Então, não houve uma alteração. Em termos de
funcionamento do Programa, não houve uma alteração radical. Claro, houve alteração em
termos de ambiente, de preocupação, o trabalho de campo - quase todo mundo teve que
converter seus projetos de trabalho de campo em alguma coisa bibliográfica ou, enfim, algum
outro recurso porque não seria mais possível você entrar em contato direto com… Nem viajar,
em certo momento, você podia. Pesquisas indígenas, enfim… Algumas pessoas foram
abrigadas no exterior, na Smithsonian, na Inglaterra, também. Na área de Etnologia, aqueles

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vínculos que a Etnologia mantém, internacionais, foram aproveitados nessa direção. Então,
tudo passou a funcionar em regime digital. Eu me adaptei muito bem a dar aulas pelo Zoom.
Hoje eu reconheço que há uma perda considerável para os alunos. Eu vejo pelos meus
orientandos mesmo, que se ressentem de não ter um espaço de convívio pessoal, convívio face
a face.

C.C. - No início, também, não se tinha a percepção de que seriam dois anos, não é?

L.F.D.D. - Imagine.

C.C. - Eram questão de semanas, as semanas viraram meses, os meses viraram o semestre, o
ano… Isso foi…

L.F.D.D. - Eu me lembro que eu tinha uma visão pessimista de que… Estávamos em fevereiro
ou março quando começou a fechar e as pessoas estavam achando: “daqui a dois meses”. Eu,
pessimista, achava que antes de agosto isso nunca vai se resolver [risadas]. Imagine, antes de
agosto. Estamos há dois anos e meio nessa loucura.

C.C. - Eu lembro que eu falei com o presidente da Fundação: “olha, eu acho que só em agosto
que a gente vai voltar”. Ele falou: “do ano que vem” [risadas]. E ele estava errado, porque não
foi agosto do ano que vem. Mas eu fiquei assim: “que isso, Carlos Ivan, agosto do ano que
vem?” Mas lidar com a pandemia a posteriori é fácil, a gente tem bola de cristal do que
aconteceu.

L.F.D.D. - Foi uma loucura, uma coisa extraordinária um evento desses que ficarão como uma
marca histórica absolutamente… Não só pelo que representou, mas pelo que representa de
medo para o futuro, não é? Está aí já, essa Varíola do Macaco. Já teve uma outra coisa. Aí,
daqui a pouco, já aparece outra coisa dessas e não teremos uma…

C.C. - Sim. Algo que era filme de ficção científica.

L.F.D.D. - É ficção científica.

C.C. - Ou história profunda da gripe espanhola, essas coisas.

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L.F.D.D. - É. Que foi reavaliado, agora, o trabalho da Lilia Schwarcz, etc. Mas, enfim, então a
pandemia me afetou, claro, por essa coisa geral. Mas em termos acadêmicos não me afetou
tanto a mim, porque também eu não estou mais fazendo trabalho de campo desde, como eu
disse, o incêndio. Porque a perda do meu material de campo me afetou muito. Eu não consegui
me sentir mais em condição de considerar que eu estava fazendo ainda algum trabalho de
campo com essa família de Jurujuba. Perdia o sentido. Não tinha como reconstituir os fios…
aí, com a pandemia, não seria mais possível. Também o crescimento concomitante dos recursos
digitais, não é? Passou a ser possível você dar um curso inteiro todo digitalizado. Coisa que já
estava caminhando, mas que não era ainda possível até recentemente. Agora a gente faz pastas.
Não são mais aquelas pastas de xerox. Mas são pastas no Google Drive, provavelmente, com
os textos todos digitalizados para consumo coletivo. Os trabalhos… Enfim, é tudo digital, tudo
digital. Enfim. Agora está se voltando ao Museu. Eu sou um dos representantes dos professores
titulares na Congregação. Agora se resolveu fazer… Porque a Universidade vem pressionando
para que se volte à presencialidade. Bom, o PPGAS disse que não tem condição de fazer nesse
semestre. Ainda não tem a Biblioteca. Ele depende do término da obra da Biblioteca, onde o
PPGAS vai ser reinstalado. Eu não sei se eu mencionei isso. Essa reforma da Biblioteca, desde
o começo, previa que o PPGAS fosse ser instalado lá. Porque é o único setor do Museu que
não tem coleções. Então, ele é mais consentâneo em conviver com a Biblioteca Central do
Museu. Só tem arquivos etc. Vai constituir arquivos, enfim, porque não tem mais seus arquivos.
Mas tinha o arquivo lá, o arquivo do Projeto Terra Indígena, estava lá na Biblioteca e também
se salvou.

C.C. - PETI.

L.F.D.D. - É, o PETI, justamente. Então, estamos esperando que, para esse próximo semestre
- que vai começar na primeira semana de setembro, eu acho -, que a gente já possa dar aula lá
na Biblioteca, presencialmente. Vai ser uma grande mudança. Mas aí quiseram fazer a
Congregação já presencial, esta semana. Eu acho que Freud explica, porque eu esqueci que era
presencial e fiquei esperando o link [risadas]. Acho até que eu vou pedir demissão desse cargo,
porque não volto ao Museu para participar de uma reunião chata, administrativa, sem ter onde
me sentar. Porque, se eu fosse depois para minha sala, o meu computador… Mas, enfim, ir,
não vai ter muito sentido. É isso. O impacto da pandemia é mais esse. Eu tive… Eu peguei a
pandemia logo em dezembro do primeiro ano, mas foi leve.

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C.C. - Pegou a COVID, não é?

L.F.D.D. - A COVID. “Peguei a pandemia”… Peguei a COVID. Depois tomei as quatro


vacinas e já estou me preparando para tomar a renovação, no próximo… acho que vai ser esse
ano, não é? Quatro meses.

C.C. - É, quatro meses.

L.F.D.D. - Enfim. Bom, suponho que eu tenha esgotado já…

C.C. - Fernando…

S.M. - Tinha mais coisa que eu gostaria de ouvir, mas eu sei que a gente já está avançado no
tempo.

C.C. - Já temos quase…

L.F.D.D. - Não, não, eu estou disponível.

S.M. - Sobre o CONEP, eu queria muito ouvir mais.

L.F.D.D. - CONEP, é.

S.M. - Também um pouco sobre as reflexões do Três Famílias, quando você faz esse resgate
também de voltar para a sua…

L.F.D.D. - Tá. Eu nem falei das coisas que eu estou interessado em pesquisar agora. Bom, por
onde começamos? Pelo CONEP?

C.C. - Pelo CONEP, pode ser.

L.F.D.D. - Pois, então. Você já tinha levantado essa questão. Eu tive um episódio muito
desagradável relacionado a essa questão da avaliação da ética em pesquisa. Eu tinha orientado
uma dissertação sobre cirurgia plástica, de uma menina. Esse assunto da ética em pesquisa não
estava circulando ainda. Quer dizer, não estava circulando tanto, pelo menos que eu tivesse
ouvido e estivesse atento a isso. Com isso, a menina não… Ela entrevistou uma clínica de
cirurgia plástica e não fez nenhum registro de ética, de comissão de ética, de CEP, que já existia.

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Na banca, estava justamente a Ondina Leal. A Ondina, como já trabalhava com Antropologia
da Saúde, estava mais alerta para isso e ela perguntou se a pesquisa tinha sido registrada no
sistema CEP/CONEP. Eu disse que não e comentei no final da arguição - ela comentou isso na
arguição - que certamente tinha sido um erro meu, que eu lamentava com a pesquisadora, com
a aluna, a mestranda, mas que eu não tinha me atentado para isso. A menina, a mestranda, ficou
furiosa comigo e rompeu relações comigo. Ela iria continuar o Doutorado comigo. Ela cancelou
a continuidade do Doutorado e, pelo que eu posso perceber, eu acho que ela largou a carreira.
Eu nunca mais ouvi falar dela na Antropologia. Então, é uma coisa muito desagradável, que
marcou, de certa maneira ferreteada, com um estigma forte, a minha atenção a esse tema da
avaliação da ética em pesquisa. Eu passei a estar mais atento a isso, passei a tentar saber o que
estava acontecendo e, quando eu fui vice-presidente da ABA, na gestão da Bela Bianco, a Bela
me acometeu esse assunto, me entregou esse assunto para lidar. Acho que eu já tinha publicado
um primeiro artigo em uma coletânea.

S.M. - Com a Soraya, não é?

L.F.D.D. - Com a Soraya Fleischer, talvez. Ou com a…

S.M. - Com a Ceres.

L.F.D.D. - Acho que a coletânea foi com a Ceres. Foi com a Ceres. Então, eu já estava mais ou
menos enfronhado no assunto. Através da ABA e da ANPOCS, eu e Cynthia Sarti passamos a
ser representantes conjuntos da ABA e da ANPOCS. Eu e a Cynthia Sarti. Aí houve várias
moções. Estava-se sentindo já um clima. A primeira reação da ABA a esse sistema foi em 2002,
foi bem precoce, mas não foi respondida. Foi quando eles criaram a resolução que tornava
todas as pesquisas com indígenas subordinadas à CONEP. A ABA reclamou, mas caiu no
vazio, claro. Mas aí já estavam crescendo as inquietações a respeito dessas exigências,
sobretudo nessas duas áreas: de pesquisas institucionalizadas, quer dizer, de pesquisas em
instituições, que fossem de ensino ou de saúde. Secretaria Municipal da Educação ou Secretaria
Municipal da Saúde, isso já era um problema que exigia… ou coisas homólogas, hospitais, etc.
E também na área indígena. Então, houve algumas manifestações de algumas associações,
inicialmente. Da ANPEPP, que é uma das associações de Psicologia; da ABRASCO, de Saúde
Coletiva; e nós da ANPOCS e da ABA, que fomos muito proativos e muito protagonistas dessa

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luta. Então, com isso, houve uma consulta pública da CONEP sobre a 466, que era a primeira
resolução, no final de… Eu publiquei um artigo que é uma cronologia da luta da avaliação da
ética em pesquisa em ciências humanas e lá vocês têm essas datas todas. Não me lembro
exatamente quando foi isso. Deveria me lembrar, mas enfim. Aí eles criaram, ao fim dessa
consulta pública, uma comissão que iria levar à criação de uma resolução complementar à
466… Desculpa, até então era a resolução 196, que tinha sido a primeira. Aí saiu a resolução
466 e, junto - eu acho inclusive que faz parte da 466 - um dispositivo que diz que vai ser criado
uma comissão para que se estabeleçam as novas regras específicas para… Eles não dizem
“específicas”. Complementares à resolução 466, voltada mais para as Ciências Humanas e
Sociais, uma coisa assim. Com isso, eu e Cynthia fomos representando a ABA e a ANPOCS a
participar desse Grupo de Trabalho - era um GT, Grupo de Trabalho. Tinha representantes da
CONEP e tinha representantes do Conselho Nacional de Saúde. A CONEP é um órgão, um
braço do Conselho Nacional de Saúde. É um órgão muito peculiar no quadro administrativo
brasileiro, porque ela foi o primeiro a adotar o chamado “controle social”, que é a incorporação
de representantes da sociedade civil no âmbito do Estado, de modo a torná-lo mais sensível às
necessidades da sociedade. É uma acepção estranha, porque “controle social”, em princípio,
parece ser o contrário: é o controle da sociedade pelo Estado. Nessa acepção brasileira, é o
controle do Estado pela sociedade. Então, fomos lá nós. Primeiro, éramos poucas associações.
Também a Associação de Serviço Social. Depois foram se agregando outras. Chegaram a
participar umas 15 ou 16 associações. Inclusive uma, que era uma infiltrada, que era a
Associação Brasileira de Bioética, que tem uma posição ambígua no campo. Se considera
Ciências Humanas, mas, na verdade, é Biomedicina, etc. Bom, com isso, trabalhamos anos
indo a Brasília de 15 em 15 dias, lutando com as… Em primeiro lugar para ter um discurso
comum entre nós. Porque Psicologia - várias Psicologias, aliás; tem várias associações de
Psicologia - a Antropologia, Direito, Serviço Social, as coisas mais variadas… Jornalismo. Até
que a gente conseguisse se entender sobre o que a gente queria reivindicar demorou um certo
tempo. A gente tinha que fazer isso na retranca. Não poderia ser na frente dos nossos
contendores, que eram os representantes do CONEP e do CNS. Aliás, não era do CNS, era do
Ministério da Saúde, da Diretoria Científica - DCT, eu acho. Diretoria de Ciência do Ministério,
não é? Não é DST - Doenças Sexualmente Transmissíveis [risadas].

S.M. - CNS?

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L.F.D.D. - Acho que é uma coisa assim. Enfim, foi uma batalha. Às vezes eu tinha que tomar
um Rivotril extra antes da reunião. Foi uma vantagem para mim, porque eu descobri o quanto
eu posso ser agressivo. Vocês não imaginam. Eu gritava nas reuniões. Eu era capaz de
espernear. O famoso jus sperniandi.

C.C. - A formação teatral veio à tona.

L.F.D.D. - É, veio à tona, completamente. Eu consegui ser muito agressivo nessas reuniões.
Porque era impossível. Era uma barreira de incompreensível totalmente atroz. A pessoa que
colocaram na presidência desse GT, é uma pessoa terrivelmente ambígua. Nós achávamos,
inicialmente, que ela era uma aliada nossa. Ela foi se mostrando uma infiltrada da CONEP.
Tinha um interesse político lá dentro. Aquilo tudo é atravessado por interesses políticos
partidários da mais baixa qualidade, entendeu? É uma coisa simplesmente atroz você lidar com
o Estado brasileiro, quando chega em certos níveis. Não é só neste governo, é uma coisa mais
profunda. Uma coisa Brasília, não é? É o efeito Brasília que é desnorteante. Enfim, ao final,
conseguimos, depois de mil manobras e de uma manobra final que foi, assim, muito bem
resolvida. Nós pedimos uma audiência com o Conselho Nacional de Saúde, passando por cima
da CONEP. Foi onde que nós conseguimos que algumas das nossas posições, divergentes em
relação à CONEP, entrassem na 510, que veio a ser a nova resolução que parametrizou a
resolução nas Ciências Humanas. Aí aconteceu o desastre definitivo nas nossas relações. O
Jorge Venâncio, que é um médico… Ele não é um pesquisador, nunca foi, nem tem que ser. É
um médico político, um médico de sindicato que se tornou um político. Ele tem um partido
pequeno que ele representa, que faz alianças com outros partidos. Enfim, é uma coisa super
sinistra. Ele nos passou a perna. Porque nós aceitamos que nós fechássemos a Resolução 510
com a garantia de que nós continuaríamos participando das decisões que seriam as seguintes:
a definição dos procedimentos de como a 510 iria ser aplicada e a reforma da Plataforma Brasil.
Sem aquilo se modificar, não adianta nada você mudar o esquema legal abrangente. Aí eles
dissolveram o GT. Dissolveram o GT e nós perdemos toda a possibilidade de continuar
dialogando. Quer dizer, continuou havendo uma série de entreveros que a gente se colocou. Eu
nem cumprimento mais o Jorge Venâncio quando nos cruzamos. Foi uma pessoa que se revelou
de uma deslealdade absolutamente… Estou falando isso com todas as letras. Foi de uma
deslealdade inacreditável. Foi uma das maiores decepções pessoais na vida. Eu dialogava com
ele em todas essas reuniões, praticamente. Às vezes ele me convidava para jantarmos juntos ou

71
almoçarmos juntos e conversarmos sobre certos aspectos. Depois vi que era tudo uma tramóia
sinistra da parte política… “politicosa”, não é? Não é nem política, a grande política. A partir
disso, o que aconteceu foi que tudo foi sendo corroído das nossas relações. Criou-se uma outra
instância lá dentro, que não funciona. Ela é boicotada. A gente conseguiu colocar a Jean
Langdon dentro da própria CONEP. Mas, não sei, eu acho que a Jean também se sentia… Não
era convocada para todas as reuniões. O atual… Agora tem um novo GT de Ética em Pesquisa
na ABA, que está retomando essa discussão, eles até fizeram uma entrevista comigo
recentemente. Eles iam fazer um contato com a Jean para saber exatamente o que está
acontecendo. Eu não vou dizer mais nada sobre isso, porque eu não tenho detalhes. Eu não
conversei com a Jean Langdon sobre isso. Ouvi dizer que, talvez, ela não estivesse se sentindo
muito à vontade lá, o que seria perfeitamente compreensível. Por outro lado, foram-se criando
outros CEPs de Ciências Humanas. O primeiro foi na UnB. Um CEP mais vocacionado para
as Ciências Humanas. Eles não aceitam que seja só de Ciências Humanas. Tem que ter… Eles
têm uma visão de multidisciplinaridade que é aquilo que é só para quando lhes interessa.
Multidisciplinaridade é ter sempre um médico presente para encher o seu saco. Depois da UnB,
foi a UFRJ. Depois a Fluminense. Eu participei dos debates que levaram à criação do CEP de
Ciências Humanas da Fluminense. Atualmente, eu participei também um pouco da criação, que
está em curso, da USP. É aquela menina que trabalha com Antropologia do Direito. Eu gosto
tanto dela, mas eu sempre esqueço o nome. Schritzmeyer, é o último sobrenome dela. Mas ela
não é conhecida por esse último sobrenome. Enfim. Parece que a Unicamp também está
caminhando nessa direção. É alentador porque cria-se um pouquinho mais de respaldo às suas
posições. Mas isso em um ambiente de 827 - uma coisa assim - CEPs no país. Então, tem cinco
que são possivelmente de Ciências Humanas. Então, é um arrasa quarteirão. As indicações para
a renovação da CONEP são feitas por indicações dos CEPs. Nunca se sabe exatamente… É
uma coisa… É uma caixa negra como eles escolhem depois que eles recebem as indicações.
Imagine: 800 CEPs indicando candidatos. É uma lista gigantesca. Como é que aquilo se reduz
a umas poucas quantas vagas, nunca se sabe direito. Enfim, é um sistema completamente
corrompido, corroído e burocrático, que não serve em nada ao avanço do controle da ética em
pesquisa nas Ciências Humanas. Nas Ciências Médicas, eu acho que deve continuar existindo
uma CONEP para controle das Ciências Biomédicas, sem dúvida alguma. Agora mesmo, eles
estiveram muito mobilizados na pandemia, em função de todas essas novidades de vacinas,
novas drogas e as cloroquinas da vida.

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C.C. - Qual efeito você acha que isso vai ter sobre a nova geração de cientistas sociais,
antropólogos?

L.F.D.D. - Olha, a verdade é que o efeito tem sido muito restrito, porque…

C.C. - Pessoalmente, eu fico pensando: “que bom que eu fiz pesquisa de campo, entrevistas,
há 30 anos atrás”.

B.K. - Comemore, comemore.

C.C. - Não existia essas coisas todas.

L.F.D.D. - Olha, em princípio, você só é atrapalhado mesmo se você vai fazer pesquisa
institucional. Em primeiro lugar, em Saúde, claro. Você vai trabalhar em hospital, em
Secretaria Municipal de Saúde, com alguma coisa dessa área, não tem jeito: você tem que
conseguir uma aprovação do CEP. Agora, eu não sei. Eu vejo que você está preocupada com
isso. Os CEPs de Ciências Humanas são acolhedores, eles compreendem o que é uma pesquisa
de ciências humanas. É um pouco chatinho. Você tem que preencher a Plataforma Brasil, você
tem que ser muito claro sobre qual a sua instituição para você não ir parar no Hospital das
Clínicas, porque senão sua pesquisa nunca vai ser aprovada - o Hospital Universitário, no caso,
da UFRJ. Ou então, em algumas circunstâncias em que você queira, depois de terminada a sua
pesquisa, publicar em uma revista da área Médica, da área Biomédica ou da área das Ciências
Naturais, porque aí vão exigir de você a clearance do Sistema CEP/CONEP. As revistas de
Ciências Humanas não estão exigindo ainda. Pode ser que venham a exigir. Um orientando
meu, um pós-doutorando meu, que está pedindo renovação de bolsa na Faperj, mencionou que
a Faperj está pedindo. Ele disse que fez uma alocução e espera que ela seja aceita para escapar
dessa exigência. Eu acho que a Fapesp não está exigindo. Então, enquanto os órgãos
financiadores não exigirem, eu acho que dá para… Eu acho que 90% das pesquisas em Ciências
Humanas no Brasil são feitas sem aprovação no sistema CEP/CONEP. Entendeu, Celso? Então,
não é um impacto assim maciço. Mas é, sem dúvida alguma, um pequeno impacto. Eu tenho
vários orientandos e orientandas que passaram por esse CEP de Ciências Humanas, que é do
Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ. Onde o Museu Nacional tem uma
representação. Eu fui representante durante quatro anos lá. Você ia me perguntar alguma coisa
específica?

73
B.K. - Não, é só que eu sou membro do CEP do Instituto de Medicina Social, que também é
um ótimo lugar, como representante discente.

L.F.D.D. - O Martinho Silva era o coordenador, não era?

B.K. - O Martinho saiu agora, mas o Horácio está lá, o Rogério...

L.F.D.D. - O Horácio.

B.K. - Então, a gente…A maioria do grupo é antropólogo. Então, a gente também tem ali um
lugar…

L.F.D.D. - Aplica a 510 e não a 466.

B.K. - Mas na Saúde Coletiva não tem discussão.

L.F.D.D. - Não tem discussão.

C.C. - Aqui na FGV a gente também criou uma coisa que é bastante amigável.

L.F.D.D. - Onde?

C.C. - Aqui.

L.F.D.D. - Na Fundação. Tá.

B.K. - Sim.

L.F.D.D. - Pois é, há saídas. Agora a gente está em uma fase da luta que é uma coisa
completamente maluca. Enfim, é inacreditável. É um processo que se renova. Parece filme de
terror. Há alguns anos atrás, foi apresentado um Projeto de Lei regulando a pesquisa clínica no
Brasil. Bom, a gente sabia daquilo. Pesquisa clínica, nós não temos nada a ver com pesquisa
clínica. Vai ser ótimo, porque se regularem a pesquisa clínica pode ser que o sistema
CEP/CONEP desista da gente [risadas] e vá se ocupar do que é propriamente a sua área que é
a pesquisa clínica. Bom, acompanhamos isso. Passou no Senado, foi pra lá. Aquela tramitação
complicada. Vai para a comissão X, vai para a comissão Y, volta, pareceres contrários. Tem o
parecer da Luiza Erundina - completamente equivocado, coitada. Deve ter sido mal

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assessorada. Perguntando por que os seres humanos não estavam incluídos. Enfim, a gente
acompanha isso tudo. Aí entra na Câmara e começa outra tramitação. Primeira Comissão,
segunda. A última Comissão é sempre a Comissão de… CCJC - Comissão de Cidadania,
Constituição e Justiça, eu acho, uma coisa assim. Tem esses elementos, eu não sei qual é a
ordem. Aí nós vimos que alguma coisa estava acontecendo errada. Fomos ver o texto do Projeto
e vimos que dentro do projeto de pesquisa clínica tinham sido colocadas locuções do tipo:
“todas as pesquisas envolvendo seres humanos”. Quer dizer, aqueles famosos jabutis, que
sobem nas árvores do legislativo brasileiro, tinham subido intensamente no Projeto de Lei. Aí
ficamos em pânico. Porque se sai uma lei regulando a pesquisa… Aí é uma situação mais forte.
A situação atual é infralegal. São as resoluções do Conselho Nacional de Saúde. Mas se você
tem uma lei, aí não tem mais saída nenhuma. Vai ser todo mundo obrigado: as revistas, as
agências financiadoras, as universidades. Todo mundo vai ter que passar pelos CEPs, não é?
Então, estamos em uma luta, já há algum tempo. Teve uma Audiência Pública antes da
pandemia ainda, em que eu participei representando a ABA; Fernanda Sobral, que é da
Sociologia, uma pessoa ótima, vice-presidente da SBPC - foi na última gestão e continua sendo
agora na atual gestão - da Sociologia da UnB. Naquele momento, nós conseguimos,
aparentemente, convencer o relator do processo. Depois, aquilo demorou muito com a
pandemia e voltou tudo atrás. O Projeto de Lei está às vésperas de ser votado no Plenário e a
gente trabalhando com as assessorias dos parlamentares da SBPC e da ABA para ver se evita
o pior, para ver se retira do Projeto essas locuções que transformam o Projeto de Lei em
pesquisa clínica em Projeto de Lei em pesquisa como um todo.

C.C. - Com seres humanos.

L.F.D.D. - Com seres humanos. Agora, vocês vêem, obra da CONEP, obra do Jorge Venâncio.
Aí nós descobrimos quais são as articulações políticas que fizeram com que o relator X, em
função dos compromissos do seu partido com o partido do Jorge Venâncio, fechasse os olhos
para esse jabuti maluco que subiu ali. Então, é uma coisa sinistra, completamente sinistra. Nós
estamos nessa expectativa. É uma coisa de louco, realmente, como é que esse assunto se
desenrolou. Não termina. Eu já não tenho mais paciência nenhuma de trabalhar nisso [risadas].
Já me dediquei, já escrevi sobre isso - acho que três artigos - já passei vários anos nesse GT da
CONEP, com esse desempenho violento, e passei quatro anos no CEP da UFRJ. Gostaria de

75
não estar mais lutando contra isso, mas é inevitável. Eu tenho memória. Aí quando acontece
alguma coisa me chamam para tentar ajudar.

C.C. - Aguente firme.

L.F.D.D. - Aguentar firme. É, vamos ver. É isso.

S.M. - Nos últimos anos, você recebeu vários prêmios, não é? Da ANPOCS, em 2019, de
excelência acadêmica; em 2020, a Medalha Roquette-Pinto da ABA; em 2021, posse na
Academia Brasileira de Ciências. Como é que está atualmente esse…?

L.F.D.D. - Agora eu acho que chega [risadas]. É bom, não é? Sempre é bom, claro. O nosso
narcisismo básico fica bem alimentado com essas coisas de reconhecimento. Eu acho que tudo
isso é devido… Uma coisa que eu acho que é marcante na minha carreira eu acho que é o fato
de eu sempre ter combinado a carreira acadêmica propriamente dita com uma presença
institucional. Um compromisso institucional, mais do que uma presença. Um compromisso
institucional. Era uma coisa muito característica do Gilberto também. Eu acho até que eu
sublinho isso em algum dos textos que eu escrevi sobre ele.

C.C. - Ele era sempre chamado, não é?

L.F.D.D. - É.

C.C. - Para a ABA, ANPOCS, SBPC, ABC…

L.F.D.D. - Ele tinha uma sabedoria para isso que não é nem de longe a minha. Além dessa
confiança que todo mundo tinha nele, ele tinha essa disposição para se colocar nessa posição.
Era um intelectual público, como eu acho que eu coloquei em um dos textos.

C.C. - IPHAN.

L.F.D.D. - IPHAN, tudo, tudo.

C.C. - Museu do Folclore.

L.F.D.D. - É, é.

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C.C. - Para tudo o Gilberto era…

L.F.D.D. - Muita coisa ele me legou. Eu continuei... trabalhei no IPHAN também. Trabalhei lá
na diretoria dos amigos do Folclore também, ele me pediu que continuasse lá. Mas, é isso,
comprometimento institucional. Quer dizer, eu lutei pelo Museu Nacional. Luto ainda. É uma
coisa que eu sinto internamente. Não é uma coisa externa. Não é uma coisa que eu tenha que
me cobrar. Eu me sinto comprometido. Eu me sinto menos comprometido com o Programa
hoje em dia, em função de toda a história. Talvez um pouco mais agora. Agora, eu não sei
como, a gente conseguiu… A banda boa do PPGAS conseguiu retomar a hegemonia, eu acho.
A gente tem o atual coordenador, que é o Edmundo Pereira. Não sei se vocês conhecem. O
Edmundo é uma pessoa ótima. Então, essa geração nova está criando... No PPGAS, eu estou
voltando a me reaproximar. O Museu eu estarei sempre ligado a ele. Dei o meu sangue e minha
carne na presidência dessa Associação de Amigos. Então, eu vou passar um tempo
descansando. A Universidade também, eu me dediquei a ela. Assim como me dediquei ao
IPHAN. Gostei muito da minha experiência no IPHAN. A experiência de Estado que mais me
gratificou - o Conselho Consultivo do IPHAN. Era uma coisa… Ele foi muito esvaziado.
Agora, não está nem sendo chamado.

C.C. - Sim.

L.F.D.D. - Acho que não está nem sendo convocado.

C.C. - Você pegou a fase do patrimônio imaterial, não é?

L.F.D.D. - Eu fui o primeiro relator de uma matéria de… não é tombamento, o registro do
patrimônio imaterial. Foi uma coisa que foi muito discutida pelos antropólogos, alguns
antropólogos.

C.C. - O Gilberto foi do primeiro tombamento.

L.F.D.D. - O Gilberto foi do primeiro tombamento de um terreiro. Exatamente. É um parecer


histórico. Eu estava lendo… Até, agora, estou preparando um artigo que tem a ver coisas dele,
sobre a influência do Goffman no Programa. Tem um texto em que ele fala da memória desse
evento, como foi difícil, a luta que foi, como o Marcos Vilaça o apoiou.

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C.C. - O arquivo dele tem bastante documento sobre isso.

L.F.D.D. - Tem material, não é? Foram muito combatidas as posições que ele defendeu. Mas
era um colegiado muito interessante.

C.C. - Mas por que te deu tanto prazer, como você falou?

L.F.D.D. - A convivência com as pessoas que participavam. Eram pessoas muito qualificadas,
muito… Você tinha, assim, uma nata de pessoas interessadas em patrimônio. Pessoas muito
inesperadas. Um Almirante, o Almirante Ibsen. É uma pessoa que… Ibsen de Gusmão, eu acho.
Uma pessoa que trabalhou a vida toda com a memória da Marinha, com investimentos… o
Museu da Marinha. Coisas, assim, que você não espera. Advogados, claro. Um advogado
paulista excelente, que às vezes escreve no… eu sempre tendo a falar no Jornal do Brasil. No
Globo. Ainda estou no Jornal do Brasil, afetivamente. Enfim, pessoas desse tipo, pessoas que
têm… Além dos tradicionais arquitetos da tradição do IPHAN, da proteção do patrimônio etc.
Um arquiteto de São Paulo, da USP, fantástico, que tinha matérias muito interessantes sobre a
proteção de áreas urbanas - não só de elementos isolados, mas de áreas urbanas mais do que
elementos isolados. Debates muito ricos. Um diplomata, o Marcos Alencastro, que é um
diplomata já aposentado... muito, muito rico o debate. Muito interessante. O IPHAN, naquela
época, foi uma escola. Mas, é isso. Agora, à ABC eu não estou podendo… À Academia
Brasileira de Ciências eu não estou podendo me dedicar muito. Eu ainda estou recompondo a
minha vida, depois dessa loucura que foi a presidência da Associação de Amigos do Museu.
Eu fiquei, realmente, devastado. Eu fui eleito recentemente e ainda não pude me aproximar
muito. Espero vir a participar mais. No momento, eu estou me dedicando mais à recomposição
da minha vida acadêmica. Me dei conta, por exemplo, que a minha bolsa, que agora é uma
bolsa Sênior… Eu pedi para passar para essa condição para abrir espaço para o pessoal que
está subindo. Há sempre uma demanda enorme. A bolsa Sênior… As bolsas anteriores eram
de cinco anos. A bolsa Sênior é de três anos. Eu estava ainda naquele registro de cinco anos.
Quando voltei agora para a bolsa do CNPq, eu me dei conta de que vai terminar agora em
fevereiro de 2023, e eu só fiz uma parte muito pequena do que eu prometi no projeto. Então,
estou agora tentando me manter vivo. Já consegui criar um esquema para reavivar a dimensão
principal desse projeto. Para publicar o artigo da primeira parte, que tinha sido pronto. Como
eu tinha tido apoio também da FAPERJ, eu corri mais com esse outro projeto. Agora tenho que

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publicar. Mas eu estava dependendo de um banco de dados. Aí eu não tinha onde colocar o
banco de dados, aí eu tive que criar uma página, tive contratar um pessoal para ter um lugar
onde colocar o meu banco de dados. Isso tudo foi demorando e, com isso, eu não sei se o artigo
vai ser publicado. Só essa semana que eu consegui submetê-lo a uma revista. Vamos ver se sai
a tempo do meu relatório para o CNPq, porque tem que ser apresentado antes. Em fevereiro já
seria o fim da minha bolsa. Normalmente você tem que fazer o relatório bem antes. Então, é
isso o que eu estou atualmente empenhado. Muita orientação: eu estou atualmente com 16
orientandos. É uma coisa completamente devastadora. Não faz o menor sentido. Porque a
pandemia retardou. Normalmente, vão entrando e saindo as pessoas. Mas eu fui aceitando e as
pessoas não foram saindo. Quando eu me dei conta: 16 pessoas. Isso é uma loucura. Se eu
acompanhar 16 pessoas fazendo tese, eu não… Eu tenho tabelas para saber a última vez que eu
falei com fulano, a última vez que eu tive uma reunião online com sicrano. Para saber.

C.C. - Eu estou com dez e já tenho que fazer tabela para saber quando é que eu falei o que.

L.F.D.D. - Claro, dez já é muito. É, é. Tem que ter uma tabela, porque, senão, você perde o fio.

C.C. - Sim.

L.F.D.D. – “Quando foi que…?” “Com o que ele está trabalhando mesmo?”

C.C. – “Quando qualifica? Quem está na qualificação?” As pessoas e o que…

L.F.D.D. - Não, é um trabalho insano a orientação. E assim, em uma escala numérica alta,
realmente… Eu não gosto. Eu acho que é inadequado ter tantos orientandos. Vamos dizer, dez
no máximo que se deveria ter. Mas 16…

C.C. - É oito pela CAPES, não é?

L.F.D.D. - É oito pela CAPES.

C.C. - A gente decidiu, internamente, fazer dez porque não tinha gente suficiente.

L.F.D.D. - Eles não estão mais exigindo essa…

C.C. - Na pandemia eles flexibilizaram.

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L.F.D.D. - É, flexibilizaram. Era um critério principis. Era um critério muito forte para a
avaliação. Mas não é mais. Agora, então, a orientação e os cursos. Eu estou dando os cursos.
Estou dando uma disciplina que foi muito voltada para um dos meus pós-doutorandos que é
uma pessoa muito legal, muito forte. Esse de “Pessoa e Subjetividades”. Não teria sido, mas
ele começou a propor um curso, ainda no ano passado, quando eu ainda estava sem condições
de pensar nisso. Entrei, é um assunto que sempre foi parte das minhas tarefas acadêmicas, do
meu horizonte. Então, está sendo muito bom dar. Com ele junto e com uma outra pós-
doutoranda também.

C.C. - A Carolina Castellitti?

L.F.D.D. - Não, a Carolina está fazendo pós-doutorado com o José Sérgio Leite Lopes.

C.C. - É? Eu achei que ela estava com você.

L.F.D.D. - Não sei exatamente qual o projeto que ela está… Ela está lá no Museu, sempre
muito ativa.

S.M. - Achei que ela estava com você.

L.F.D.D. - É, não está comigo não. Esse colombiando, o Marco… Eu acho que vocês vão ouvir
falar dele, o Marco Martínez Moreno. Um cara muito interessante. Ele fez o doutorado na UnB
e está fazendo o pós-doutorado já a algum tempo. Ele trabalha com violência intra-doméstica.
Ele tem uma visão bastante… Violência doméstica. Ele tem uma visão… É uma visão mais
abrangente da lógica da família e do lar, envolvendo violência e… amor e violência, afeto e
violência. Tivemos uma sessão dessa disciplina exatamente sobre isso agora. Um curso que eu
vou dar no próximo semestre é mais, assim, voltado justamente para essa outra linha do projeto
do CNPq. É uma coisa mais filosófica. É uma linha que eu venho perseguindo já a algum
tempo, que é uma coisa de epistemologia… uma história epistemológica das Ciências Humanas
e, particularmente, da Antropologia. Tem muito a ver com o romantismo, com o vitalismo.
Então, esse curso vai se chamar “Vitalismo e Processualismo: entre a Filosofia e a
Antropologia”. A gente vai explorar mais, pesquisar mais… “A gente”, eu quero dizer, porque
tem dois alunos interessados nisso, nessa disciplina que eu estou dando. Uma é a minha
orientanda e a outra não. Explorar as influências do Wittgenstein e do Whitehead na

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Antropologia. A gente sabe do Geertz, da Veena Das. Ambos citam o Wittgenstein com muita
ênfase. Eu já estava interessado no Whitehead por causa do vitalismo… do romantismo e do
vitalismo. Então, vamos juntar essas coisas. É toda uma linha de investimento trabalhosa.
Porque essas coisas dão muito trabalho, não é?

C.C. - Sim.

L.F.D.D. - O diálogo com a Filosofia é complicado. O Whitehead vem das Ciências, vem da
Matemática, de um diálogo com as Ciências Naturais. Não é uma coisa singela.

C.C. - Muito bem. Ótimo, Luiz Fernando.

S.M. - Você viu o artigo da Ísis e do Caio sobre o Gilberto, da relação dele com a Filosofia,
que saiu na Estudos Históricos agora?

L.F.D.D. - Não. De quem é?

S.M. - Da Ísis e do Caio.

L.F.D.D. - Da Ísis e do Caio, eu baixei, mas não li ainda. Você falou “Ísis e Caio”, eu achei
que era um outro nome. Da Ísis e do Caio. Sim, eu baixei, mas ainda não li. porque me
encomendaram um artigo, eu não sei ainda por que eu aceitei; foi ainda no tempo em que eu
estava na presidência da SAMN, sobre o Goffman. Vai ser um seminário internacional sobre
Goffman e como o Goffman cresceu no PPGAS. É claro que isso é Gilberto Velho.

C.C. - No arquivo do Gilberto não tem coisa do Goffman?

S.M. - Tem coisa.

L.F.D.D. - Tem, tem. Eu já coletei. Depois eu posso te mandar a lista do que eu tenho e você
vê.

S.M. - Pode mandar, que aí eu vejo o que tem.

L.F.D.D. - Se você tem outras coisas. Claro, em torno de Gilberto e Goffman tem mil coisas.
Tem muita coisa. Agora, eu tinha pedido tudo do Gilberto, não é? Então, eu tive que pedir a
fulano e sicrano se podiam me conseguir uma cópia disso, daquilo. Do próprio Goffman

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também, perdi. Agora eu vou tentar ver se faço… Enfim, isso é outro investimento que eu tenho
que entregar, porque o seminário vai ser em agosto e eu tenho que entregar isso antes.

S.M. - Bom saber que você é gente que nem a gente, Luiz. Deixando coisa para a última hora
[risadas].

L.F.D.D. - É.

C.C. - Às vezes você aceita: “é para daqui a um ano”.

L.F.D.D - É, exatamente.

C.C. - Só que o “daqui a um ano” chega.

L.F.D.D. - “É uma coisa interessante. Por que não?”.

C.C. - “Por que não daqui a um ano?”

L.F.D.D. - “Vai me abrir um novo horizonte, enriquecedor, etc.”. Goffman, eu não sou
especialista em Goffman. Claro, usei Goffman, me interessa... Você usou Goffman na sua
Tese? Usou, não é?

C.C. - Sim.

L.F.D.D. - Eu tinha que ter feito uma pesquisazinha sobre quais foram os orientandos de
Gilberto que usaram Goffman.

C.C. - Interessante.

S.M. - O Becker fala um pouquinho dele, naquela…

C.C. - Fala dele, não é? Eu estive com o Becker há uns dois meses, lá em San Francisco.

L.F.D.D. - Com que idade está ele?

C.C. - 94.

L.F.D.D - 94 anos…

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C.C. - Ele falou muito do Erving Goffman. Era muito amigo, ele gostava muito. Mas disse que
o Goffman tinha muita inveja dele. Porque o Becker tinha uma vida social, era pianista nos jazz
clubs e tal. O Goffman…

L.F.D.D. - Sempre muito contido, antipático.

C.C. - Era um personagem difícil, mas ele… O Becker tinha a vida real. Ele ficou em dúvida,
realmente, entre deixar de ser músico, pianista, em jazz, conhecia toda a vida social. O Goffman
estudava aquilo, mas não tinha a vivência.

L.F.D.D. - Ele falou sobre isso.

C.C. - Falou sobre isso. Na aula em que eu o convidei, na aula online que Silvia e eu demos no
curso, que era sobre a obra do Gilberto… teve uma aula que eu convidei o Howie para
participar.

L.F.D.D. - Que legal.

C.C. - Eu não avisei a turma porque eu não sabia se ele apareceria ou não. Ele apareceu. Ficou
uma hora e pouco.

S.M. - Ficou uma hora...

B.K. - Adorei.

C.C. - A Bia assistiu.

L.F.D.D. - Ele sempre foi muito aberto.

C.C. - A turma ficou em êxtase, tanto que deu o nome da turma de Howard Becker.

S.M. - Os formandos, é.

C.C. - A gente transcreveu. Ele leu, a Daiane leu e tal. Foi publicado agora, em inglês, na
Estudos Históricos, que a Silvia organizou sobre…

L.F.D.D. - Que legal.

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S.M. - Nessa mesma que saiu o artigo da Ísis e do Caio.

L.F.D.D. - Eu não sei como esse artigo da Ísis e do Caio caíram na minha teia.

S.M. - Eu vou te mandar o dossiê.

C.C. - Bom, eu acho que… Três horas e meia, quase. Eu acho que foi ótimo, Luiz. Cruzamos
a sua trajetória, do início ao fim. Só uma pergunta, que eu faço desde o início do projeto…

L.F.D.D. - Qual é a minha idade? [risadas].

C.C. - A idade nós temos aqui. Fiquei surpreso, porque eu achei que você tinha muito menos.
Mas, enfim. Eu sempre pergunto para os entrevistados: se você tivesse que destacar uma obra,
um livro, pode ser um filme, alguma coisa que te marcou na vida, o que te vem à mente assim?
Uma leitura, uma coisa impactante.

L.F.D.D. - Céus, isso é uma responsabilidade gigantesca, não é? [risadas] Bom, de obra, não
tem jeito, o Dumont, para mim… Nesse caso teria que ser… Na verdade, o Homo Hierarchicus
eu li depois de ler muitos dos artigos dele. Mas o Homo Hierarchicus é uma obra que me…
Quer dizer, os dois, não é? O Homo Hierarchicus e… Vamos dizer que seja O Individualismo,
que é aquela coletânea que tem vários dos artigos que me foram mais marcantes, antes de eu
ter acesso ao Homo Hierarchicus em si, propriamente, completo. Até porque o Homo
Hierarchicus tem toda uma parte mais técnica que escapa um pouco. Com isso eu nem sou
muito inventivo. É uma obra que, realmente, continua representando uma base. Porque mesmo
nesses investimentos, agora, sobre o romantismo e o vitalismo. O vitalismo eu não me lembro
dele falar disso, usar essa categoria. Mas, mesmo assim, são… O romantismo também veio do
Dumont de inspirações a respeito da história do individualismo no Ocidente. Pensando no
Dumont, eu penso também no Georges Gusdorf, o historiador das ideias da Antropologia que
é uma coisa extraordinária. É um sustentáculo de qualquer movimento que eu faça em relação
a uma epistemologia histórica da Antropologia. De artes, eu estou muito imantado… Esse meu
pós-doutorando que está dando esse curso comigo, sobre pessoa e subjetividade, ele é muito
ligado à música clássica e à ópera, particularmente. Ele canta, inclusive. Ele colocou como
matéria suplementar uns podcasts sobre três áreas famosas ao longo do curso. A gente acabou
de fazer essa sobre afeto e violência. Ele propôs uma sobre a ária da Morte de Amor de Tristão

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e Isolda. É o fim da obra - do Tristão e Isolda, do Wagner. O Liebestod: a morte de amor. É
uma coisa que me avassala de uma forma extraordinária. Então, eu cito, como referência, o
Tristão e Isolda e, particularmente, a ária da Morte de Amor. Representa um chamamento à
noção de totalidade, que eu acho que é muito caro à Antropologia, de um modo geral,
crescentemente na Antropologia. O tema da totalidade é um tema que atravessa de uma maneira
muito viva todas as novidades recentes, todos esses horizontes ditos “pós-modernos”, “neo-
românticos”, no meu jargão. Para mim é muito importante também. Eu me dei conta muito
lentamente do que isso podia significar, em termos de vida e em termos de reflexão. Mesmo
falando assim, eu considero que isso continua sendo uma coisa um pouco obscura. Quando eu
digo assim: por que a “totalidade” é uma categoria importante? Eu penso no Durkheim, que
teve um senso de totalidade muito forte. Penso no Mauss. Penso no Dumont. De certa maneira
no Lévi-Strauss, embora isso não seja o mais óbvio da obra dele. Mas eu acho que… Ele usou
como epígrafe de um de seus livros - eu tenho impressão que é do O Pensamento Selvagem,
que é o livro que eu mais gosto dele - que é uma epígrafe do Taylor, muito inesperada. Diz
assim: é impossível ter uma noção de uma parte sem que se tenha uma noção do todo na cabeça.
Uma coisa assim. Estou citando selvagemente. Isso é a essência do holismo do Dumont, da
noção de holismo. Para mim, se torna cada vez mais palpável. Deixa de ser uma coisa mais
abstrata para ser realmente mais instrumento de trabalho, de compreensão. Essa ideia da
articulação, do “entranhamento”, que é uma expressão que o Dumont usava. Embeddedness,
em inglês. Embeddedness. De todos os elementos da vida, de todas as dimensões da vida. De
todos os níveis da reflexão, inclusive - dos níveis cognitivos. Nessa apreensão global. Pode-se
dizer sistêmica, pode-se dizer holista, pode-se dizer entranhada, pode-se dizer embedded - do
que que nós vivemos e do que nós pensamos.

C.C. - Ótimo.

S.M. - Maravilhoso.

C.C. - Bom, mais uma vez, muito obrigado. É um prazer ouvi-lo. Obrigado também à turma aí
do apoio.

L.F.D.D. - Foi ótimo, foi muito estimulante.

C.C. - Que bom.

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S.M. - Maravilhoso, muito obrigada.

[FIM DO DEPOIMENTO]

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