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24/05/2020 Como quilombolas estão atravessando a pandemia no Brasil?

| Nexo Jornal

DEBATE (/ENSAIO/DEBATE/)

Como
quilombolas
estão FOTO: RICKEY ROGERS/REUTERS

atravessando
a pandemia
no Brasil?
Lizely Borges, Kel Baster e Selma Dealdina
28 de Abril de 2020

Dependentes de narrativas da radiodifusão privada e das redes sociais acessadas de maneira


precária, as comunidades se veem ainda mais vulneráveis a uma realidade que já as
castigava antes da pandemia

“Há mais de 300 anos estamos totalmente isolados, sem internet, energia, um telefone funcionando precariamente. Só
(temos) uma técnica de enfermagem quilombola que anda de casa em casa conversando com os quilombolas e não
quilombolas.” Essa é a realidade da comunidade Vila Velha do Cassipore, no município de Oiapoque (AP), diante da
ameaça da pandemia de covid-19. No atual contexto, a comunidade quilombola formada por 80 famílias tem tido ainda
mais dificuldade em receber informações seguras e acessar serviços básicos.

A Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e o Intervozes – Coletivo
Brasil de Comunicação Social realizaram uma pesquisa sobre direito à comunicação e acesso à informação junto a
comunidades quilombolas, para compreender como elas têm se informado sobre o novo coronavírus. Foram realizadas
consultas a 29 membros de comunidades quilombolas, de 11 estados das cinco regiões do Brasil.

Nessa amostra, a maioria das comunidades consultadas depende da informação proveniente de canais privados de TV e
rádio e de redes sociais para adoção de comportamentos seguros no atual contexto. Órgãos responsáveis pelas questões
quilombolas, como o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e o Mapa (Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento), pastas sob controle de expoentes do agronegócio e opositores à política de titulação dos
territórios, não têm desempenhado o devido papel de orientação às comunidades, aponta o levantamento. Em Vila Velha
do Cassipore, é comum o uso do rádio a pilha, já que a energia elétrica por lá ainda não chegou e, apenas quando se
consegue óleo diesel para o gerador, a comunidade pode assistir aos telejornais.

Com uma representação midiática majoritariamente urbana e branca, os veículos privados de comunicação constroem
narrativas distantes das realidades de comunidades quilombolas. As orientações gerais de prevenção ao coronavírus,
como lavar as mãos frequentemente e o protocolo padrão de isolamento, mostram-se pouco efetivas para algumas
famílias quilombolas, pelas dinâmicas de vida e questões estruturais distintas. Em muitos quilombos, a sobrevivência é
dependente da lógica comunitária, por exemplo no que diz respeito ao acesso a alimentos. E há características culturais
fundamentais, como o cumprimento aos mais velhos com um beijo na mão, que precisam ser consideradas. É, para as
comunidades, sinal de benção e respeito.

Na pesquisa, a internet é bastante citada como meio de informação. Com acesso limitado por franquia de dados e
modalidade pré-paga, além de baixa qualidade de sinal, as comunidades relatam que conversam e trocam mensagens
sobre a covid-19 por meio de aplicativos de mensagens e outras redes sociais, com conexões de celulares.

Computadores também não fazem parte do cotidiano de muitas comunidades quilombolas, exceto nas localidades onde
há unidades nas associações de moradores ou nas escolas. Algumas dessas instituições de ensino localizadas nas
comunidades foram citadas na pesquisa como centros de informação, já que os computadores podem ser compartilhados
com muitas famílias que não dispõem de acesso domiciliar.

https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/Como-quilombolas-estão-atravessando-a-pandemia-no-Brasil 1/3
24/05/2020 Como quilombolas estão atravessando a pandemia no Brasil? | Nexo Jornal
Diante do limitado acesso a equipamentos, as comunidades se valem de outras estratégias. É o caso do Quilombo Oiteiro
dos Nogueiras, no município de Itapeçuru Mirim (MA). “Para contornar isso (a falta de acesso), a associação adquiriu os
equipamentos de internet e foram instalados na praça da comunidade. Assim, cada pessoa que utiliza contribui com R$
10 mensalmente. Esse dinheiro é usado para pagar a mensalidade da internet, que custa R$ 150. Já teve mês que ficamos
sem usar porque as pessoas não tinham dinheiro para contribuir.” O relato evidencia ação coletiva da comunidade para
superar a não oferta de um serviço que é, de acordo com o Marco Civil da Internet, considerado essencial.

A essencialidade do acesso à rede fica explícita quando da exigência de cadastro para receber auxílio emergencial do
governo no valor de R$ 600. Tal cadastro só pode ser realizado via aplicativo instalado no celular. Pensando nesses casos,
o Intervozes protocolou, em 18 de março, um requerimento na Anatel (http://intervozes.org.br/intervozes-solicita-a-
anatel-a-proibicao-da-suspensao-de-conexoes-moveis-e-banda-larga-por-90-dias/) (Agência Nacional de
Telecomunicações), solicitando que o órgão publique uma liminar proibindo a suspensão de serviços de conexão à
internet móvel ou fixa por 90 dias. Mais de um mês depois, a Agência não deu resposta.

Dado o contexto, a construção de redes offline de confiança é uma importante via para a circulação de informação dentro
das comunidades. Para a maioria das participantes da pesquisa são os agentes de saúde as principais referências no
atendimento às dúvidas sobre a covid-19. Waldira Santos, a técnica de enfermagem citada na abertura deste texto, tem
recorrido à escrita de cartas para amigos e familiares que residem na capital do estado do Amapá ou no município de
Oiapoque, a 152 km da comunidade.

Os meios comunitários também exercem papel fundamental. Em duas das comunidades que responderam ao
questionário, destaca-se a existência de rádios comunitárias que informam os moradores por meio de conteúdos
produzidos localmente e “importados” de fora da localidade.

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UMA VEZ QUE A INSTALAÇÃO DE SERVIÇOS ESSENCIAIS, COMO SANEAMENTO E OFERTA DE


ÁGUA E ENERGIA, ESTÁ CONDICIONADA AO TÍTULO, A MAIOR PARTE DOS QUILOMBOS VEM
SOFRENDO DE MANEIRA ACENTUADA COM A PANDEMIA

Mesmo antes de se tornar presidente, Jair Bolsonaro disse, em mais de uma ocasião, que não faria demarcação e titulação
de territórios indígenas e quilombolas. A promessa vem sendo seguida à risca pelo poder público neste primeiro ano de
governo.

Na luta em defesa do território quilombola, a não titulação é a maior demonstração de como o racismo estrutural tem
agido. Segundo a Conaq, são mais de 6.330 quilombos no Brasil, distribuídos em 24 estados da federação. No entanto,
apenas 134 territórios possuem titulação definitiva. Na pesquisa, dos 29 quilombos participantes, apenas dois estão
parcialmente titularizados, e somente oito têm as certificações de reconhecimento quilombola. Infelizmente, a titulação
no Brasil patina, gerando um conflito agrário que culmina na ameaça e morte de lideranças quilombolas.

No entanto, neste período de pandemia é importante observar como o Estado brasileiro trata com desigualdade a situação
que não é diferente, sem a pandemia: se ricos e brancos não fossem também vítimas do coronavírus, certamente, nada
estaria sendo feito para impedir que negros e pobres morressem de covid-19.

https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/Como-quilombolas-estão-atravessando-a-pandemia-no-Brasil 2/3
24/05/2020 Como quilombolas estão atravessando a pandemia no Brasil? | Nexo Jornal
Uma vez que a instalação de serviços essenciais, como saneamento e oferta de água e energia, está condicionada ao título,
a maior parte dos quilombos (participantes ou não da pesquisa) vem sofrendo de maneira acentuada com a manifestação
da pandemia. Das 29 comunidades consultadas, 22 responderam que não houve nenhuma informação oriunda do poder
público em âmbito municipal, estadual ou federal sobre como se proteger do coronavírus.

Dependentes de narrativas da radiodifusão privada e das redes sociais acessadas de maneira precária, as comunidades se
veem ainda mais vulneráveis a uma realidade que já as castigava antes da pandemia. Tendo em vista a ausência de
medidas de proteção da população quilombola e, por outro lado, a retirada de direitos acelerada no último ano, no que
depender da presidência, os quilombos não terão acesso à informação e à titulação mesmo que isso lhes custe a vida.

Lizely Borges é jornalista da Terra de Direitos, mestre em comunicação pela UnB (Universidade de Brasília) e
integrante do Intervozes.

Kel Baster é jornalista, mestre em comunicação pela UFPB (Universidade Federal de Paraíba) e integrante do
Intervozes.

Selma Dealdina é quilombola, assistente social e secretária executiva da Conaq (Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas).

Iara Moura é jornalista, mestra em comunicação pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e coordenadora do
Intervozes.

Camila Nobrega é jornalista, doutoranda em ciência política na Universidade Livre de Berlim e integrante do
Intervozes.

Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal e não
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