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CURSO DE PSICOLOGIA
SÃO PAULO - SP
2022
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
CURSO DE PSICOLOGIA
SÃO PAULO - SP
2022
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus amigos, que ouviram minhas reflexões, dúvidas e ansiedades
ao longo do caminho, apesar de mal entenderem sobre o que eu estava falando.
Giovanna, Eduarda, Julio, Claudio, e todos que se interessaram minimamente pelo
tema, eu agradeço, e sem vocês eu não estaria aqui.
Às minhas amigas da faculdade, Bianca, Clara, Isa, Nath, Laura, Ju, Bruna,
Sofia e Livia também agradeço. Por estarem passando pelo processo ao mesmo tempo
que eu, não havia ninguém melhor do que vocês para desabafar, pedir ajuda, dar e pedir
forças. Em especial, Laura, a amiga sem a qual eu não me formaria neste curso, com
toda a certeza.
INTRODUÇÃO
Após maior investigação dentro das comunidades online onde jovens se reúnem
através de fã clubes para interagir com outros que partilhem dos mesmos interesses,
uma palavra em específico chamou-me atenção: “kin”, que é uma abreviação para
“fictionkin”. Fictionkin, em comunidades mais extremas, significa alguém que acredita
ser a reencarnação de um personagem fictício, e é um derivado da expressão “otherkin”,
que é alguém que acredita ser a reencarnação de um ser não-humano. Entretanto, para
grande parte da comunidade fãs de personagens fictícios, a expressão se limita a uma
forte identificação com determinado personagem, sem necessariamente a existência da
crença de que algum dia já se foi este personagem. Uma simples busca no Twitter com a
palavra “kin” gera milhares de resultados, e sua hashtag no Tiktok têm
aproximadamente 442,8 milhões de visualizações. Para os adolescentes que interagem
nestas redes sociais, é comum a definição de si mesmo através de seus “kins”, existindo
diversos motivos geradores desta identificação, seja personalidade, trauma, e alguns até
mesmo desejam manter secretos os motivos pelos quais se identificam com determinado
personagem. O fenômeno “kin” é particularmente comum entre fãs de animações e
quadrinhos japoneses e jogos digitais.
Um dos grandes diferenciais dos mangás para as comics, além de sua variedade
de temas, universos e personagens, é a sua linearidade. A história de um mangá é
geralmente escrita e desenhada pelo mesmo autor, que permanece o mesmo até a
finalização da obra, diferente das comics de super-herói americanas, em que diferentes
autores escrevem sobre o mesmo personagem.
Uma particularidade em relação a estética dos animes e mangás são os olhos dos
personagens, desenhados de maneira desproporcionalmente grandes. Foram
primeiramente desenhados desta forma por Osamu Tezuka, nos anos 1950, e desde
então esta característica tornou-se um marco dos desenhos orientais. Moliné (2004)
propõe que existe uma maior facilidade para a transmissão de sentimentos sinceros e
psicologicamente profundos, para os autores, através dos olhos grandes e brilhantes.
(apud. SANTOS, 2011).
Para Luyten (2014), a difusão mais intensa da moderna cultura pop japonesa
iniciou-se no começo dos anos 2000, quando jovens que cresceram assistindo desenhos
animados convencionais ficaram mais velhos e foram em busca de conteúdos animados
que retratassem temas mais adultos, de alguma forma, como os animes.
Alguns autores, como Napier (2007), entende a prática de cosplay como uma
tentativa de tornar-se alguém além de si mesmo, uma vez que é comum que os
cosplayers ajam conforme os personagens que se vestem. Por outro lado, Bonnichsen
(2011), acredita que a prática deve ser encarada como uma atividade em grupo na qual,
além de outras funções, é uma forma de construção de identidade. Bonnichsen realizou
uma pesquisa com cosplayers em grupos focais, a noção de que o cosplay atua como um
disfarce temporário não foi “suportado” pelas discussões. Ambos os “grupos””
mencionaram, na verdade, que a atividade os auxiliou no desenvolvimento de suas
identidades.
Existem alguns motivos para que a cultura pop japonesa tenha encontrado um
mercado tão ávido no Brasil. O Brasil é o país com maior quantidade de descentes de
japoneses fora do Japão, o que foi um fator para que a importação de animes e mangás
ter iniciado anteriormente no país em comparação ao resto do ocidente, uma explicação
parcial para o crescimento da popularidade dos animes e mangás entre os brasileiros nos
últimos 50 anos. Todavia, outros fatores devem ser considerados, como a cultura
participativa que este meio oferece, onde os fãs não somente consomem, como também
produzem conteúdos, através de cosplays e fansubs, por exemplo; e a representatividade
que a gama diversa de personagens oferece ao brasileiro, seja estética ou de
personalidade (SOARES, 2019).
Santos (2011) defende que existe uma nova sub-cultura entre os jovens,
influenciados pela cultura pop japonesa, e é importante estudar a influência dos animes
e mangás dentro do contexto brasileiro no século XXI. A autora discorre sobre o
preconceito existente no meio acadêmico sobre estudos de quadrinhos e mangás, e a
importância de ultrapassar este preconceito para compreender melhor a realidade
diversa brasileira, em especial de sua juventude, e seu contexto cultural.
3 DESENVOLVIMENTO DA IDENTIDADE
O que é identidade? Carl Gustav Jung (1976) utilizava a palavra para referir-se a
casos de igualdade psicológica. Para ele, “A identidade é sempre um fenômeno
inconsciente, pois uma identidade consciente pressuporia já a consciência de duas coisas
iguais entre si, logo uma separação entre sujeito e objeto, com o que o fenômeno da
identidade ficaria anulado” (p. 511). A identidade envolve os fenômenos de
identificação, projeção, introjeção e “participation mystique”, conceitos que serão
explorados no capítulo sobre Identificação. Por isso, neste capítulo será explorado como
a psicologia analítica compreende o desenvolvimento egóico e da persona do sujeito,
além de como outros teóricos enxergam a construção da identidade.
Jung (1986) coloca que o herói é um “ser que possui natureza mais do que mera
humana”, e é um “deus em potencial”. É comum que fantasias de herói surjam no
período da puberdade, e para Jung nossas fantasias atuais foram, em algum tempo,
verdade para povos antigos. A fantasia tem a função da realização de algum desejo
incabível com a realidade, assim como um sonho. Para ele:
Um ponto essencial é que Jung (1986) acredita que o “mito do herói é um drama
inconsciente que só parece na projeção” (p. 459). Portanto, o adolescente busca e se
apega a imagens simbólicas que representem o arquétipo do herói para que seu impulso
inconsciente de dialogar com este arquétipo encontre uma válvula de escape. A
tendência de identificação com essas figuras torna-se especialmente fortes durante esta
fase, mas não é exclusivo a ela.
Durante a fase influenciada pelo arquétipo do Pai, o ego torna-se rígido, com
pouca possibilidade de transição entre os polos opostos, ou é belo ou é feio, ou eu amo
ou odeio. A criança aprende a viver em sociedade, aprende as consequências que têm
suas ações, aprende a seguir regras, ter disciplina, a ler e a escrever.
Brown levanta estudos que afirmam que para que a identificação ocorra, é
essencial primeiro a ocorrência de PSI e PSR (relações parassociais), uma vez que é
necessário que o indivíduo acredite que conheça a persona para identificar-se com ela. É
também colocado que uma forte PSR geralmente leva a identificação. Por último,
Brown coloca adoração como a forma mais intensa de envolvimento com personae
midiáticas, e define como o processo em que se expressa devoção, comprometimento e
amor a uma persona midiática durante e após o consumo da mídia. Tanto a identificação
quanto a adoração podem levar o indivíduo a adotar valores, comportamentos, crenças e
atitudes de uma persona midiática.
Ainda sobre adoração de ídolos, em uma pesquisa de 2003, Cheung e Yue citam
diversos autores que propõe que a adoração de ídolos é importante para a formação do
adolescente, que ganha uma nova esfera para exploração de sua personalidade e
autopercepção, apesar de ser uma forma rasa de exploração quando comparada com
relações interpessoais com outros indivíduos. Neste estudo com adolescentes de Hong
Kong, os pesquisadores obtiveram resultados de que a adoração de ídolos como
popstars pode ser alienante e prejudicial para a formação intelectual de jovens.
Entretanto, a adoração de ídolos “luminosos”, que são ídolos que admirados por suas
conquistas intelectuais ou morais, como grandes cientistas, pensadores, entre outros,
pode promover, através da modelação, jovens com maior autoeficácia. O tipo de ídolos
adorados pode interferir no resultado que essa adoração pode gerar, uma vez que a
adoração envolve a identificação psicológica e o apego emocional (CHEUNG; YUE,
2000).
Sobre projeção, Jung ainda especifica o tipo de conteúdo que mais comumente
são “expelidos” pelo sujeito e projetados no objeto. Em relação a estes conteúdos, Jung
(1976) coloca que: “Trata-se, muito mais ainda, de conteúdos penosos, incompatíveis,
de que o sujeito se desembaraça por projeção, ou de valores positivos que, por qualquer
motivo — a autodepreciação, por exemplo — são inacessíveis ao sujeito” (p. 537). Os
conteúdos projetos são, por muitas vezes, incompatíveis com a identidade que o sujeito
acredita possuir. Ademais, ele coloca que o fenômeno só pode ser chamado de projeção
quando a necessidade de reconhecimento destes conteúdos se impõe, e o alheamento
desta parte da identidade prejudica essencialmente a adaptação do indivíduo. Assim
como para a introjeção, a projeção pode ser ativa ou passiva. A passiva é considerada
como grande parte das projeções, patológicas ou não, que ocorrem automaticamente,
sem um propósito explicito. A ativa envolve o processo de compenetração, que é uma
forma de introjeção do objeto.
Reysen et al. (2021), levantaram variadas pesquisas com fãs de anime em seu
livro “Transported to Another World: The Psychology of Anime Fans”, e em uma delas
abordou a identificação dos fãs de anime com seus personagens favoritos. Nesta
pesquisa, mais de 20% dos participantes indicaram que se sentem fortemente
identificados com seus personagens favoritos, obtendo uma correlação positiva entre
esta identificação e a definição de identificação segundo Cohen e uma correlação
positiva entre esta identificação e entender as atitudes e valores do personagem
identificado similares ao seus. Hoffner e Buchanan (2005) levantaram que similaridades
entre os personagens o indivíduo são facilitadores para a identificação. As similaridades
entre o indivíduo e o personagem identificado podem atuar como sinalizador de que é
possível para o indivíduo tornar-se mais parecido com o personagem em outros
aspectos, nos quais diferem.
Jung (2000), e depois dele, Campbell (1997), Henderson (1964) e muitos outros
se desdobraram sobre os estudos de mitos e lendas de diferentes lugares e diferentes
épocas para estudar imagens arquetípicas e o inconsciente coletivo. Jung define o
inconsciente coletivo como:
Cinco jovens adultos voluntários que se identificam como fãs de animes e mangás
e possuem uma ligação que descrevem como identificação com algum(s) personagem(s)
fictício destas obras. Todos os nomes utilizados para referir-se aos participantes da
pesquisa são fictícios, para preservarmos o sigilo das entrevistas.
A primeira pessoa entrevistada foi Nic, que é não-binária e tem 24 anos. Nic
colocou que a presença de animes e mangás em sua vida era, de certa forma,
“onipresente”, pois além de consumir muitos conteúdos relacionados ao tema, a
decoração de seu quarto envolve animes e mangás, logo, sua exposição a este tipo de
conteúdo é contínua.
A terceira participante foi Patrícia, mulher cis de 24 anos, que descreveu sua
exposição a conteúdos relacionados a animes e mangás como cotidiana, através das
interações com amigos que consomem este tipo de conteúdo, mas que o consumo direto
havia sido mais intenso em sua adolescência.
O último participante foi Lourenço, homem cis de 21 anos, que, assim como os
outros participantes, considerou que sua exposição a conteúdos relacionados a animes e
mangás é intensa, apesar da maior parte desta exposição dar-se de forma indireta, como
conversas com amigos, consumo de conteúdo produzido de fãs para fãs, e não direta,
como assistindo animes ou lendo mangás diariamente.
7.2 INSTRUMENTOS
A coleta de dados foi feita de maneira remota e presencial. Três foram feitas através da
plataforma Zoom, uma foi feita através da plataforma Google Meets e uma foi feita
presencialmente.
7.6 RISCOS
7.7 BENEFÍCIOS
Nic descreve alguns aspectos que considera positivos pelos quais se identifica
com o personagem Franky, de One Piece. Entretanto, coloca que esta identificação tem
mais relação com o jeito que se vê do que o jeito que se comporta. “Às vezes, eu
gostaria até de ser um pouco mais assim (extravagante como o personagem), mas eu sou
meio chata e meio certinha com as coisas”, o que revela aspectos de uma identificação
desejosa com o personagem, onde o indivíduo deseja conscientemente tornar-se mais
similar àquele personagem.
Hector também relata sobre sua identificação com Naruto, protagonista do anime
Naruto, inicialmente através de aspectos negativos. Ele descreve o personagem e todos
os protagonistas de shonen como: “excluídos”, “tem que provar alguma coisa” e “nunca
são os melhores do grupo”, e sobre Naruto especificamente, coloca que: “Mas com o
Naruto eu me identificava total, porque eu era sempre o burro, burrinho, que ninguém
dava nada”. Sua identificação com as características negativas e com o contexto do
personagem, de ser excluído pelos colegas e adultos o fizeram adotar o objetivo de
Naruto como seu objetivo de vida também: “ser uma pessoa importante, uma pessoa
inteligente, que alcançou seu objetivo e se tornou alguém na vida”.
Lourenço coloca que ver sua infância refletida naquele personagem o fez pensar
sobre seu momento atual. Ele diz: “ver tipo a trajetória dele me fez pensar o que eu teria
feito no lugar dele, sabe? Se eu tivesse continuado no mesmo caminho que ele tava,
porque minha vida melhorou depois disso, só que a dele não”.
Patrícia conta que em sua adolescência, pintou seu cabelo de rosa para tornar-se
mais parecida a personagem Sakura. Ela conta que decidiu assumir sua personalidade
como sendo a Sakura, e para isso, tingiu seu cabelo de rosa. Na adolescência, como
trazido anteriormente, uma das formas pelas quais a identidade se constrói é pela adoção
de estilos e imagens, o pertencimento a um grupo se dá pela conformidade aos seus
ideais de beleza, estilo e consumo. Na tentativa de parecer mais a personagem de anime
com a qual se identificava, Patrícia reforçava seu pertencimento àquele grupo através de
sua imagem. É possível interpretar que Patrícia gostaria que sua persona, sua imagem
percebida pelos outros, fosse equivalente a personagem com a qual se identificava. A
forma com que o reforçamento de terceiros a respeito da identificação reafirma a
identidade e a persona dos participantes serão explorados com mais profundidade nos
capítulos adiante.
Lourenço relata que sente muita vontade de vestir-se como Akira, protagonista
de Devilman Crybaby. Além deste personagem, Lourenço menciona que seu corte e cor
de cabelo atuais foram influenciados por personagens de Tokyo Revengers, e deseja
imitar outros cortes de cabelos de personagens que admira ou se identifica.
8.7 Herói
Denise relatou que, apesar de não se inspirar nas personagens com as quais se
identifica, inspira-se em Luffy, protagonista de One Piece, e Naruto, protagonista de
Naruto. Para ela, é admirável a maneira com a qual ambos os personagens perseguem os
seus sonhos, apesar de serem desencorajados a alcançarem eles por muitas pessoas que
os cercam. Para ela, é belo a forma com a qual os dois personagens não desistem, apesar
de em certas situações o mundo parecer ir contra eles. O arquétipo do herói se expressa
através destes personagens, uma vez que eles são indivíduos que constantemente
vencem suas próprias limitações, triunfam sobre os desafios que surgem em seu
caminho, iniciam sua jornada como um indivíduo comum e tornam-se espetaculares ao
longo dela. Ambos os personagens seguem ao chamado da aventura, com um objetivo
claro em mente, e seus esforços para alcançá-los são imensuráveis.
Lourenço traz, por sua vez, uma recusa ao Herói clássico, tarefeiro. Em dois
momentos de seu discurso essa recusa fica evidente. Primeiramente, ele expressa
incômodo em relação ao discurso de Naruto, o protagonista, para Neji, personagem com
o qual se identifica e que neste momento da história, age como antagonista. Loureço
menciona que durante muitos anos acreditava que o antagonista estivesse certo, e
somente com o passar dos anos aceitou o lado de Naruto. O discurso de Naruto
relaciona-se com destino: para o protagonista, cada constrói o seu próprio destino, nada
está escrito em pedra. Já Neji discorda, dizendo que todos nascem com seu destino
traçado, e quem nasceu para coisas pequenas nunca alcançará coisas grandes. O herói é,
segundo Campbell (1997), o homem da submissão auto conquistada. Neji aceita a
própria submissão, seu destino premeditado, enquanto Naruto luta para construir seu
futuro, apesar de ouvir de todos ao seu redor que isso não o levará a lugar algum.
Outro momento em que Lourenço traz a recusa ao Herói é quando expressa que:
“os heróis e tipo, nunca desistir, lutar até o final com as coisas, não sei, eu me vejo
muito mais pé no chão, os personagens que eu me identifico dessa forma são muito
mais mundanos”. A imagem arquetípica que dialoga com Lourenço provavelmente é a
do Homem Comum, e não a do Herói, um possível motivo para a recusa ao discurso de
Naruto.
No discurso de Patrícia, surge um elemento interessante: ao recordar de
personagens com as quais se identificava na adolescência, ela percebe o padrão de que
são as personagens femininas com maior importância em seus respectivos animes.
Patrícia reflete e diz que: “acho que isso se relaciona com meu complexo de
protagonista”. Por outro lado, é possível que estas protagonistas carreguem a imagem
arquetípica da Heroína para Patrícia, e por isso tenham tido uma importância tremenda
em sua juventude, numa fase que Patrícia descreve como confusa e difícil. A forma do
Herói pode tomar diversas formas, e para meninas, tomar a forma de Heroína, uma vez
que estas personagens também passam por superações, embarcam na jornada junto aos
protagonistas, passam por provações, vencem suas limitações e triunfam, apesar de
grande parte das vezes seus objetivos estarem atrelados ao romance ou vínculo com
personagem masculino.
Lourenço conta sobre como a obra Boa Noite Punpun o ajudou nestes momentos
de sua vida: “quando eu fiquei bem mal uns meses atrás, eu parava para ler, folhear
algumas páginas que eu lembrava que tinha no mangá, reler algumas frases dele que eu
lembro que tinham ficado marcadas na minha cabeça”. Ele conta que reler era
confortável, encontrar-se novamente naquele mundo era sua zona de conforto. Em suas
palavras: “eu não sei direito o porquê eu estava fazendo isso e porque isso me deixava
bem, mas eu me sentia abraçado, sabe?”. Tanto o personagem quanto a obra ocuparam
um lugar de conforto conhecido para Lourenço, um lugar simbólico que o próprio
desconhece e não sabe explicar, mas sente seu efeito. Jung (2000) propõe que os
símbolos ganham valores importantes na vida do indivíduo pois são a única e a melhor
maneira de expressar algo específico, é a união de conteúdos da consciência e do
inconsciente, logo, impossíveis de serem explicados completamente pela consciência
sem que parte de seu sentido se perca. Lourenço não soube exatamente explicar o
conforto causado pelo personagem e sua história, nem o porquê começou, logo, é
possível inferir que Punpun carrega uma imagem arquetípica importante para Lourenço,
tornou-se um símbolo. É possível, também, analisar esta relação como uma relação de
“empatia dual”, como proposto por Dill-Shackleford et al. (2016), uma vez que
Lourenço sente tanto pela situação que passa tanto pela situação na qual o personagem
se encontra, confortando-se com isso. Através do personagem, ele é capaz de sentir por
seu sofrimento de uma forma distanciada.
Patrícia conta que durante uma fase difícil de sua vida, a única parte boa era os
momentos que tinha com seus amigos para comentar de animes e mangás que assistiam
em conjunto. Ela conta que sua obsessão com a personagem Sakura serviu como uma
muleta, e lhe trouxe muito conforto nesta época de confusão. A definição da
personagem como uma muleta carrega um símbolo muito forte: durante uma fase em
que o ego de Patrícia estava fragilizado, a identificação foi o caminho que encontrou
para se fortalecer e superar esta fase. Patrícia conta que estava passando por um
processo depressivo, com acompanhamento psiquiátrico e uso de medicações. Como é
proposto por Jung (1986), o ego cede a tentação de identificação com figuras que
exercem fascínio sobre a consciência, especialmente em momentos de fragilidade.
Hector relata que o personagem lhe dava segurança de que ele não estava
sozinho. Em suas palavras: “eu direto ficava no quarto e pensava: o que será que o
Naruto faria? Estou com medo, eu sei que o Naruto está atrás da porta [...], ele vai me
defender”. Como o próprio participante trouxe, o símbolo do personagem tornou-se tão
forte para ele, que ocupou o lugar da religião, da fé.
Patrícia conta que não enxerga mais Sakura, personagem com quem se
identificou na adolescência, a representando atualmente. Ela conta que ainda existem
algumas semelhanças entre ela e a personagem, e que sente um carinho por ela, mas não
sente mais a identificação. Quando questionada sobre o significado disso, ela relata:
“ah, acho que isso significa que eu cresci, mas foi bom na época também, condizia com
a fase que eu estava na vida”.
Nic relata algo similar. Menciona que quando adolescente, assistia muitas séries
antes de começar a assistir animes, e sempre se identificava com algum personagem de
série. Um personagem muito importante para sua adolescência foi Tony Stark, dos
quadrinhos e filmes da Marvel, com quem se identificou fortemente por algum tempo.
Atualmente, relata não sentir mais identificação com este personagem, apesar do
carinho por ele perdurar, assim como o relato de Patrícia. Nas palavras de Nic, “o que o
Tony Stark foi para mim na adolescência, o Franky está sendo para mim na vida adulta,
por mais que os personagens tenham coisas parecidas, [...] as diferenças entre eles
representam para mim a evolução que eu fiz de quando eu era adolescente até agora”.
“Tem muitos outros personagens que eu vejo no estilo que eu gosto muito e eu
acho que eles mudam a minha forma de querer aparecer, eu acho, sabe? Mudar minha
não só aparência, mas a forma de agir também” diz Lourenço. O conceito de persona
aparece quase explícito em seu discurso: os personagens que admira alteram a forma
com a qual ele deseja ser visto pelos outros, então, ele adota comportamentos e
elementos da aparência destes personagens para tornar-se mais parecido com eles, e
assim ser reconhecido como parecido com eles. A influência da identificação sobre a
persona é explicita e até mesmo consciente.
Outro fator interessante foi que todos responderam que sentem incomodo
quando alguém fala mal dos personagens com os quais se identificam. Todos colocaram
que quando eram mais jovens, tinham reações mais exageradas, de brigar com amigos e
irritarem-se de fato. Alguns trechos sobre o tema foram: “eu ficava brava de verdade,
não gostava que falava mal dela e tudo que envolvia ela [...] tinha tudo que ser
protegido”; “em certos contextos, é uma coisa que dá aquela feridinha no ego”; “com
meus 13, 14 anos, eu ficaria tipo você não fale mal da Sakura, eu vou atrás da sua
família e pegar seu pé a noite”; “acho muita ignorância das pessoas (falar mal do
Naruto), você não sabe o que ele passou, o que ele sofreu”.
Estes relatos retratam que, quando mais jovens, a identificação era parcialmente
indissociada do ego, e a reação emocional dos participantes a um insulto ao personagem
era a mesma ou talvez mais intensa do que um insulto ao próprio participante. Os
insultos são levados para o lado pessoal, como colocados pelos próprios participantes,
porque de certa forma, eram interpretados como pessoais. Se não há separação clara
entre o ego e o objeto de identificação, um insulto ao objeto é um insulto ao ego. É
possível que o participante não tivesse a percepção de que estava defendendo a si
mesmo enquanto defendia o personagem. É coerente que com o passar dos anos, a
intensidade da reação emocional diminua, uma vez que a própria intensidade da
identificação diminuiu, como também o indivíduo na fase adulta é mais capaz de lidar
com críticas do que o indivíduo na adolescência.
É importante destacar que o único participante que não faz cosplays é o único
que também não citou um aumento de seu ciclo social por conta de animes e mangás
diretamente, entretanto, é professor de língua japonesa, e tem um contato muito
amigável com grande parte de seus alunos, com quem conversa sobre animes e mangás.
8.15 Cosplay
“Eu me sinto outra pessoa, não tipo outra pessoa, mas eu sinto que consigo
explorar outra faceta minha, que eu consigo me sentir mais confortável com ela” conta
Denise, ao ser questionada sobre a relação entre cosplay e identificação. Em seu
discurso, dois pontos chamam atenção: a exploração de aspectos que não enxerga em si,
como “séria” ou “forte” e a exploração de um visual fora de seu repertório cotidiano.
Através do cosplay, a participante consegue personificar aspectos que considera não
pertencentes a si, mas que admira no personagem o qual faz cosplay. A projeção que a
participante faz de características que considera incompatíveis com si mesma
transparecem através dos personagens que faz cosplay, e tornam-se, de certa maneira,
parte dela, mas de uma forma mais confortável, uma vez que ela está expressando estas
características através da personagem, e olhando-as como parte de si.
Denise demonstra ter consciência que o cosplay pode ser uma forma de
compensação de características que a participante não enxerga em si mesma. Ela diz:
“vem para esse lado também, onde falta, esse tipo de coisa”. Ela conta sobre uma
personagem cuja estética e personalidade define como: “ela é toda misteriosa, a estética
dela é muito bonita, tipo nada a ver comigo, nada a ver comigo at all”, e deseja muito
fazer cosplay dessa personagem por gostar muito dela, admirar sua estética, história e
personalidade. O cosplay é tanto uma forma de expressar admiração pela personagem
quanto de projetar na personagem características que ela não enxerga em si.
Através das entrevistas, a importância que estes personagens possuem na vida dos
indivíduos ganha um caráter subjetivo e realista, explicitando mais uma vez a
importância que estes personagens possuem num nível individual, diferentemente de
grande parte das pesquisas de estudos de mídia, que exploram este viés através de
pesquisas quantitativas, que, apesar de ricas em informações em grande escala, não são
capazes de captar a subjetividade a nível pessoal.
Os animes e mangás, por sua vez, com sua variedade de personagens, tanto em
estilo quanto em personalidade, proporcionam aos jovens uma facilidade ainda maior
para a formação da identificação.
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SENNA, Sylvia Regina Carmo Magalhães; DESSEN, Maria Auxiliadora. Contribuições
das teorias do desenvolvimento humano para a concepção contemporânea da
adolescência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, [S.L.], v. 28, n. 1, p. 101-108, mar. 2012.
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STEIN, Murray. Jung: O Mapa da Alma. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
URBANO, Krystal; ARAUJO, Mayara. O fluxo midiático dos animês e seus modelos
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2021.
VON FRANZ, Marie-Louise. A Interpretação dos Contos de Fadas. 1. ed. São Paulo:
Paulus. 1990.
Os dados serão obtidos por meio de uma conversação, e os Temas Geradores serão:
“Quanto do seu tempo livre você dedica a assistir animes, ler mangás ou realizar
atividades relacionadas a isso, como conversar sobre com seus amigos, ou procurar
fanart na internet, semanalmente?”, “Você considera que tem um alto nível de
exposição a animes e mangás, e conteúdos relacionados?”, “Se possui identificação
forte com mais de um personagem, com qual é mais forte?”, “Como é esta identificação,
o que ela significa para você?”, “Quando começou esta identificação, e por quê?”,
“Pensando neste personagem, você acha que ele representa quem você é atualmente?”,
“Você acha que este personagem é muito parecido com você?”, “Você se sente
emocionalmente apegado a este personagem?”, “Você acha que este personagem faz
parte de você?”, “Você acha que este personagem representa quem você deseja ser? Ou
que você seria melhor se fosse mais parecida com tal personagem?”, “Desde o início
desta identificação, você sente que foi ao longo do tempo tornando-se mais parecido
com tal personagem?”, “Você já foi comparado a este personagem por terceiros?”, “A
relação com este personagem com outros personagens da obra é boa?”, “Você considera
este um personagem popular entre os fãs?”, “O personagem com quem você se
identifica é o seu personagem favorito da obra?”, “Você sente que este personagem, de
alguma maneira, te ajudou em alguma fase difícil em sua vida?”, “Você diria que este
personagem serviu de inspiração para tornar-se quem você deseja ser?” e “Você acha
que seria uma pessoa diferente caso nunca tivesse se identificado com este
personagem?”