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Bernard Charlot

A Relação Com o Saber nos


Meios Populares
Uma investigação nos liceus
profissionais de subúrbio

CIIE/Livpsic
2009
Título da obra A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Título original Le Rapport au Savoir en Milieu Populaire: Une Recherche Dans les
Lycées Profissionnels de Banlieue
Ed. ANTHROPOS, 1999

Autores © Bernard Charlot

Tradução e Catarina Matos


Revisão
Científica

Edição CIIE/Livpsic

Colecção Ciências da Educação/5

Depósito legal ????????????????/09

ISBN 978-989-8148-22-3

Data de Edição Dezembro 2009

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A Veleida Anahi,
Yan Wagner,
Ygor Gabriel
e Adriana Carolina
ÍNDICE

PRÓLOGO .................................................................................................................................. 9

INTRODUÇÃO… E AGRADECIMENTOS . ......................................................................... 11

CAP. 1 – A RELAÇÃO COM O SABER NO LICEU PROFISSIONAL:


APRESENTAÇÃO DA INVESTIGAÇÃO ............................................................................... 13
1. A questão da relação com o saber: e porquê no liceu profissional.......................................... 13
2. Como foi feita a pesquisa ...................................................................................................... 18
2.1. Os balanços de saber .................................................................................................... 18
2.2. As entrevistas . .............................................................................................................. 21

CAP. 2 – O QUE DIZEM ELES TER APRENDIDO? . ............................................................ 25


1. Os principais tipos de aprendizagens evocados nos balanços de saber ................................. 25
2. As aprendizagens intelectuais e escolares . ............................................................................ 27
3. As aprendizagens relacionais, afectivas e ligadas ao desenvolvimento pessoal . .................. 29
4. As aprendizagens profissionais .............................................................................................. 32
5. Em resumo ............................................................................................................................. 34

CAP. 3 – ONDE APRENDERAM ELES E COM QUEM? ...................................................... 37


1. Os lugares de aprendizagem .................................................................................................. 37
2. O espaço das aprendizagens afectivas, relacionais e pessoais: a família,
a escola e o bairro ...................................................................................................................... 41
3. Os agentes de aprendizagem . ................................................................................................ 46

CAP. 4 – O QUE É IMPORTANTE PARA ELES? QUAIS SÃO AS SUAS


EXPECTATIVAS? A RELAÇÃO COM O TEMPO ................................................................. 51
1. O que é importante para eles? Quais são as suas expectativas? ............................................ 51
2. A relação com o tempo . ......................................................................................................... 57

CAP. 5 – FORMAS E DOMINANTES DOS BALANÇOS DE SABER: A RELAÇÃO


COM O MUNDO, COM OS OUTROS E CONSIGO PRÓPRIO ............................................ 63
1. O que é que nos ensina a análise formal dos balanços de saber ............................................ 63
2. As dominantes dos balanços de saber .................................................................................... 71

CAP. 6 – RELAÇÃO COM A ESCOLA E RELAÇÃO COM O SABER


NOS BALANÇOS DE SABER . ............................................................................................... 77
1. A relação com a escola: a escola é importante mas aborrecida ............................................. 77
2. A escola e “a vida” ................................................................................................................. 83
3. Aprender, o que é? ................................................................................................................. 87
3.1. A resposta dos alunos ................................................................................................. 88
3.2. Um modelo epistémico .............................................................................................. 92
CAP. 7 – ESTUDOS COMPARATIVOS: RAPAZES E RAPARIGAS,
INDUSTRIAIS E TERCIÁRIOS, BEP E BACCALAURÉAT
PROFISSIONAL, ORIGENS SOCIAIS ................................................................................. 101
1. Rapazes e raparigas . ............................................................................................................ 101
2. Industriais e terciários: e, uma vez mais, rapazes e raparigas . ............................................ 105
3. Alunos de BEP e alunos de baccalauréat profissional ........................................................ 110
4. Comparação segundo a categoria socioprofissional dos pais .............................................. 115

CAP. 8 – COMO É QUE UM ALUNO CHEGA AO LICEU PROFISSIONAL? .................. 123


1. Os que quiseram verdadeiramente ir para o liceu profissional ............................................ 123
2. Os que nunca “entraram” verdadeiramente na escola ......................................................... 127
3. A história de uma queda . ..................................................................................................... 133
3.1. À deriva ...................................................................................................................... 134
3.2. A ruptura ..................................................................................................................... 137
3.3. A reorientação ............................................................................................................. 139
4. A orientação no LP: uma violência, uma ofensa . ................................................................ 143

CAP. 9 – REINVENTAR UM FUTURO ................................................................................ 149


1. A figura do ressentimento: negação, revolta, cinismo ......................................................... 150
2. A figura da prática ................................................................................................................ 158
2.1. A escola e o trabalho, duas coisas completamente diferentes .................................. 159
2.2. Aprender no liceu, aprender na empresa, duas realidades inseparáveis .................. 162
2.3. A construção da experiência: os estágios ................................................................. 165
3. A lógica de nível .................................................................................................................. 169
4. O liceu profissional como segunda oportunidade e atalho .................................................. 174

CAP. 10 – TORNAR-SE ALGUÉM ........................................................................................ 185


1. Samira: quando noutro lugar as coisas não são como se pensa... ........................................ 185
2. As formas da dominação – e a sua ambivalência . ............................................................... 190
3. Ser eu próprio, ser alguém ................................................................................................... 202

CAP. 11 – OS PAIS E A FAMÍLIA . ........................................................................................ 207


1. Os processos .........................................................................................................................208
2. Algumas histórias . ............................................................................................................... 215
2.1. Fatima: a minha mãe ia falar com os meus professores e prometia-lhes que
eu faria melhor no ano seguinte ...................................................................................... 215
2.2. Mourad e Mohamed, alunos de liceu profissional e chefes intelectuais
da família ........................................................................................................................ 217
2.3. Fabrice: se pudesse escolher, escolhia a vida do meu pai com o cérebro do
meu irmão ....................................................................................................................... 219
2.4. Maryline: não estudar era a minha forma de revolta ............................................... 223

CAP. 12 – A SALA DE AULA ................................................................................................ 227


1. Sébastien: eu não presto atenção porque já percebi. Yoan: eu não presto
atenção porque não percebo . ................................................................................................... 228
2. Os colegas ............................................................................................................................ 232
3. Os professores . .................................................................................................................... 234
4. O que significa aprender na escola? . ................................................................................... 245
5. O que é uma aula “interessante”? ........................................................................................ 254
CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 261
1. Os processos de construção e de organização do mundo .................................................... 261
2. A escolaridade enquanto história singular ........................................................................... 265
3. Sobre a relação com o saber dos jovens de meios populares – e sobre a forma
como olham para eles ...............................................................................................................270

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 275

ANEXOS ..................................................................................................................................277
Grelha de escrutínio dos balanços de saber ..............................................................................279
Quadros .................................................................................................................................... 281
Guião de entrevista .................................................................................................................. 295
Lista de entrevistas e dos seus autores . ................................................................................... 297
O ensino em França ................................................................................................................. 303
PRÓLOGO

Dizemos sobre eles que são “concretos”, afirmamos igualmente que não sabem exprimir-
‑se. No entanto, os alunos de liceu profissional dizem muitas vezes coisas que dão que
pensar, revestidas de fórmulas “choque”. No início deste livro que falará deles, é-lhes dada
a palavra. Para que esta nos ajude a passar do nosso mundo para o deles.

Sinto que não gozamos a vida o suficiente. Quando somos jovens vamos à escola, assim que somos
adultos trabalhamos, não temos de facto tempo para nos divertirmos. Depois, chegamos à reforma
mas já não fazemos quase nada, ficamos sobretudo em casa. (R., BEP1 mecânica, E199)1
Desde muito pequena sempre me disseram que eu não valia nada. (Ra., BEP1 contabilidade, E90)
O meu nível é fraco. [Pergunta: Fraco em relação a quê?] A mim. (R., 3e technologique, E135)
No fundo, acho que não sou estúpida. Mas não tenho de todo vontade de ser inteligente como deve
ser! (Ra., 26 anos, titular de um CAP2 de secretariado, a trabalhar, E156)
Eu, eu interesso-me por pastelaria. (R., BEP2 pastelaria, E59)
A mim, eles não me intimidam, sou um rebelde. (R., BEP1 hotelaria, E73)
Estou temporariamente à espera, estou à espera do fim do ano para passar o bac3, estou à espera para
estudar. (Ra., bac pro 2 burocrático secretariado, E120)
Os anos de liceu são os mais belos da tua vida. (Ra., BEP1 hotelaria, E172)
Francamente, os anos de liceu são anos inesquecíveis. (R., bac pro 1 contabilidade, E118)
Eu começo a gostar da escola, é estranho. (R., BEP1, contabilidade, E86)
Graças a este ramo, eu descobri um dom escondido. (Ra., BEP2 contabilidade, E85)
Mesmo no LP4 é preciso trabalhar. (Ra., BEP2 secretariado, E99)
Nós não temos o direito de ser uma nulidade, mas há alguns de entre eles (os professores) que são
pagos para isso. (Ra., BEP1 secretariado, E94)
Há professores com os quais podemos discutir e há outros que não vale a pena, mais vale falar com
uma vaca. (Ra., BEP2 secretariado, E99)

1
R. significa “rapaz” e Ra. “rapariga”. E199 é o número atribuído à entrevista; cf., em anexo, a lista das
entrevistas (e dos seus autores).
2
Nota do tradutor (NT): A sigla original francesa CAP significa certificat d’aptitude professionnelle que
poderá ser traduzido por “certificado de aptidão profissional”. Cf., em anexo, o organograma do sistema
de ensino francês.
3
Bac – expressão por que é designado o bacallauréat (último ano do ensino secundário em França).
4
NT: A sigla original francesa LP significa lycée professionnel que poderá ser traduzido por “liceu pro-
fissional”.
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Também tivemos uma professora muito anarquista que nos ensinava, por assim dizer, as doenças
sexualmente transmissíveis, ela estava obcecada com a sida [risos]. Garanto-te, há cada caso! (Ra.,
bac pro 2 secretariado, E120)
Por outro lado, a minha professora de Francês tem uma coisa boa, ela nunca dá T.P.C. Acho isto, acho
que... em relação a isto ela sobe na minha consideração. Em relação a outros pontos, ela bem pode
estar calada, coitada. (R., bac pro 1 venda/representação, E190)
Foi a directora de turma/tutora que nos disse: vamos passá-la para o 4º ano, 3º tecnológico e ela vai
deixar-nos em paz. Era o que ela dizia, foi o que ela me disse. (Ra., BEP2 electrónica, E167)
Perdi dois anos da minha vida para ser pago como um gajo que conseguiu o BEP. Serve para quê?
Gostaria muito de perguntar ao gajo que pariu isto (...) Se ao menos ainda existissem ministros um bo-
cado novos mas são todos uns velhos tapados, o que é que lhes podes dizer, há 70 anos que eles estão
lá... não têm vontade de mudar. (R., 25 anos, titular de um bac pro estruturas metálicas, armazenista
em trabalho temporário, E159)
Há cinco anos que ando no liceu e nunca percebi nada. (R., 3e technologique, E137)
De momento, não vejo o que possa ter aprendido. Bom, mesmo da parte das aulas e tudo. (Ra., BEP1,
hotelaria, E172)
[Pergunta: O que é que não te agrada nas disciplinas de que não gostas?] Sim, o professor e a matéria.
É tudo, só há isso que não me agrada. E o que fazemos também. (R., bac pro 1 venda representação,
E190)
Não gosto de História porque fala do passado, por isso não me interessa muito visto que eu não tinha
nascido e porque não sei se é verdadeiramente verdade ou não. (Ra., BEP1 contabilidade, E186)
Colocam-nos muitas questões no colégio e no liceu e é preciso responder rápido e bem. Se as respos-
tas não forem boas não faz mal, mas é melhor que sejam boas. (R., 4e technologique, E197)
Prefiro estar no trabalho a estar na escola. [Porquê?] Bom, porque para já és muito mais livre... para
já, tens a tua liberdade de pensamento que na escola não existe. (R., 25 anos titular de um bac pro
estruturas metálicas, armazenista em trabalho temporário, E159)
Morrer a rir, acho que é a coisa melhor, estás a ver? É uma parvoíce o que eu disse mas é verdade que
rir é a vida, estás a ver? (R., bac pro 1 venda representação, E190)

10
I NTRODUÇÃO...
E AGRADECIMENTOS

Este livro assenta na relação com o saber e na escola dos alunos de liceus profissionais
“de subúrbio”. Por isso, encontraremos aqui informações sobre os jovens que frequentam
o liceu profissional (LP). Todavia, não é tanto o LP enquanto tal que está no centro deste
livro, mas sim a sua população. Se o liceu profissional foi escolhido para uma investigação
sobre a relação com o saber, é, antes de mais, porque escolariza, em cada geração, alunos
de origem popular que se depararam com dificuldades na escola. É por esta mesma razão
que os dados foram recolhidos “nos subúrbios”, nomeadamente Seine-Saint-Denis5 e no
Val d’Oise6: entendido no seu sentido problemático e simbólico mais do que geográfico, o
“subúrbio” é um território popular cujos habitantes são confrontados com múltiplas difi-
culdades económicas e sociais. Através dos alunos de liceu profissional de subúrbio, o que
me interessa é a relação com o saber dos jovens de origem popular quando confrontados
com aquilo a que chamamos o insucesso escolar.
A investigação aqui apresentada inscreve-se num programa mais amplo, desenvolvido
pela equipa ESCOL7. Em 1992 foi publicado um livro intitulado École et Savoir Dans les
Banlieues... et Ailleurs que apresentava as ideias base da equipa e os principais resultados
de uma investigação sobre a relação com o saber no collège8 e, em consequência, na escola
5
NT: O departamento de Seine Saint-Denis situa-se a noroeste de Paris e integra a região de Île-de-France.
É um dos subúrbios maiores da capital. Segundo dados de Junho de 2005, este departamento francês tinha
uma taxa de desemprego de 13,5%. Seine-Saint-Denis é a segunda região francesa com maior número de
beneficiários do Rendimento Social de Inserção e é igualmente o departamento francês que conta com o
maior número de imigrantes e filhos da imigração. A maioria das escolas da região está inserida em zonas
de educação prioritária (ZEP), dotadas de medidas suplementares para fazer face a dificuldades sociais e
educativas.
6
NT: O departamento de Val d’Oise situa-se a norte de Paris e integra a região de Île-de-France. É um
subúrbio próspero a nível económico, onde grandes empresas multinacionais como a Siemens, a Peugeot
ou a Pioneer estão instaladas. É aqui que se encontra igualmente a Universidade de Cergy Pontoise, o
segundo pólo universitário da região, depois de Paris. É o departamento mais jovem da Île-de-France.
7
A equipa de investigação Éducation, Socialisation et Collectivités Locales é uma “equipa de acolhimento
doutoral” do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Paris 8-Saint-Denis.
8
Nota dos Editores e Autor: Opta-se por manter no original as referências ao sistema educativo fran-
cês. Em França, a escolarização começa com o ensino infantil (não obrigatório) e cinco anos de escola
primária, designados como CP, CE1, CE2, CM1, CM2 (CP: Curso Preparatório; CE: Curso Elementar;
CM: Curso Médio). A seguir, vem o collège composto por quatro anos de escolaridade designados como:
sixième (6e), cinquième (5e), quatrième (4e) e troisième (3e). No collège, existem também classes de qua-
trième e troisième “tecnológicas”, que acolhem alunos com dificuldades escolares e os preparam para o
liceu profissional. Após o collège vem o liceu geral e tecnológico, com três anos de escolaridade (Seconde,
Première e Terminale) ou o liceu profissional, onde frequentam um CAP – Certificat d’aptitude profes-
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

primária (Charlot, Bautier & Rochex, 1992). Em 1997, tendo começado a redigir a parte
teórica do presente livro, deparei-me com um texto de mais de 100 páginas, centrado em
algumas questões fundamentais: mais do que um capítulo de um livro, tratava-se, de facto,
de um outro livro, assumidamente teórico. Foi publicado como tal, sob o título Du Rapport
au Savoir: Éléments pour une théorie (Charlot, 1997). O facto de este trabalho de teoriza-
ção que acompanha esta investigação já ter sido feito, em grande parte, e apresentado num
outro livro, permitiu centrar o actual na apresentação e análise dos dados recolhidos: mais
de 500 “balanços de saber”, cerca de 200 entrevistas semi-orientadas aprofundadas.
Paralelamente à investigação aqui apresentada, E. Bautier e J.-Y. Rochex, que cola-
boraram no livro de 1992, levaram a cabo uma investigação sobre os jovens dos liceus
gerais e tecnológicos. Do trabalho de ambos resultou um livro, publicado no Outono de
1998 (Bautier & Rochex, 1998). As duas investigações foram realizadas de forma inde-
pendente, mas evidentemente encontraremos em cada uma delas ecos de questões tratadas
na outra.
Uma investigação com uma amplitude destas que aqui é apresentada não pode ter êxi-
to se não beneficiar de apoios, sob diversas formas. Eu sinto-me em dívida, sob diversos
títulos, para com várias pessoas. Quero agradecer-lhes aqui. Frédéric Ronsmans-Davray
recolheu os “balanços de saber” em Persan-Beaumont e procedeu à primeira decifração; a
sua ajuda foi ainda mais preciosa já que ele imaginou um dispositivo que permitiu identi-
ficar os autores destes relatos. Nathalie Bidart efectuou a primeira codificação dos relatos
recolhidos em Saint-Denis. O pessoal do LP de Saint-Denis deu-me uma ajuda constante,
tanto no que diz respeito à recolha de relatos como ao contacto com os jovens entrevis-
tados. Quero agradecer particularmente a Cécile Ricard, Alain Sergio, Imed Midouni e
Marie-Danielle Pierrelée. Por fim, este livro disporia de uma base empírica muito menor
se não tivesse beneficiado do trabalho realizado pelos estudantes de Ciências da Educação
de Paris 8. André Korzec recolheu inúmeras entrevistas em Aubervilliers, no âmbito do
seu mestrado. Muitos alunos da licenciatura (cujos nomes figuram em anexo) deram o seu
contributo, sob forma de uma ou duas entrevistas. Sob alguns aspectos, este livro depende
de uma rubrica que se poderia intitular por “o subúrbio auto-analisa-se”. Por último,
Saeed Païvandi realizou o tratamento estatístico por categorias socioprofissionais dos da-
dos recolhidos em Persan-Beaumont.
Esta investigação foi autofinanciada pela equipa ESCOL.

sionnelle (2 anos) ou um BEP – Brevet d’études professionnelles (2 anos). Os bons alunos de BEP podem
continuar, frequentando 2 anos de baccalauréat profissional (Bac pro) e os melhores podem voltar para o
liceu geral e tecnológico realizando uma Première d’adaptation depois do BEP. Apresenta-se em anexo
um diagrama do sistema de ensino francês até à entrada no ensino superior.
12

CAP. 1
A RELAÇÃO COM O SABER
NO LICEU PROFISSIONAL
Apresentação da investigação

1. A questão da relação com o saber: e porquê no liceu profissional

A questão do insucesso escolar das crianças de meios populares foi uma preocupação
central da sociologia da educação durante mais de 20 anos e ainda hoje permanece um
objecto de trabalho importante. Que certezas é que temos? Que existe uma correlação es-
tatística entre os resultados escolares das crianças e a categoria socioprofissional dos pais.
Esta correlação é irrefutável e constitui um dado adquirido da investigação das ciências
humanas. O problema está em saber de que forma é que a devemos interpretar.
Ela serviu de base às “sociologias da reprodução” que demonstraram, de forma con-
vincente, que a escola beneficia os dominantes e contribui assim para a reprodução da
desigualdade social. Mas estas sociologias nunca explicaram de forma satisfatória como
é que se produz a reprodução: como é que sucede que a escola consolide a desigualdade
social quando as crianças são formadas por professores que, longe de serem os lacaios da
escola capitalista, se posicionam mais do lado do povo?
P. Bourdieu afrontou este problema terrível e propôs nomeadamente as noções-chave
de habitus9 e de capital cultural. As crianças, por condicionamentos sociais, seriam do-
tadas pouco a pouco de dispositivos psíquicos de pensar e agir (os habitus) mais ou
menos conformes àquilo que requer o sucesso na escola dos dominantes. Quaisquer que
sejam o interesse e o poder explicativo do conceito de habitus, ele só adia o problema:
de facto, não se sabe como é que se constituem esses habitus e, para além disso, ha-
bitus socialmente diferenciados. As crianças, não só são dotadas de habitus diferentes
como também, além disso, recebem como herança, por transmissão familiar, um capital
cultural quantitativa e qualitativamente desigual: assim, alguns estão melhor equipados
culturalmente do que outros para enfrentar as exigências do mercado escolar. Mas, uma
vez mais, este conceito, por mais interessante que seja, não é satisfatório: talvez se
“herde” um capital cultural socialmente diferenciado (ainda que seja preciso desconfiar

9
NT: O conceito de habitus surge com o sociólogo Pierre Bourdieu e é considerado como constituindo
todas as experiências passadas, matriz de percepções, apreciações e acções. O habitus é inerente a cada
actor social e de certa forma define-o; tal como aos seus gostos e estilo de vida, está associado à pertença
a uma classe social e tem de ser ajustado quando existe mobilidade.
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

de noções como “capital” ou “herdeiros”, que não passam de metáforas), mas “não se
herda” por esse facto sucesso escolar que supõe um trabalho intenso de valorização
desse capital.
O sucesso e o insucesso escolares não se podem explicar unicamente a partir daquilo
que a criança recebe dos seus pais, para além disso, é preciso saber o que recebe e de que
forma o aproveita. Certamente, é mais provável ter um bom aproveitamento escolar quan-
do se é filho de um professor do que quando se é filho de um operário, mas para o conse-
guir o filho do professor deve, apesar de tudo, trabalhar e, muitas vezes, trabalhar muito e
este sucesso escolar não é automático: também há filhos de professores, e nomeadamente
de universitários, em liceus profissionais, embora não em grande número. Inversamente,
um filho de um operário pode, apesar de tudo, ter um bom aproveitamento escolar. Por
isso, não é suficiente conhecer a origem social de uma criança para compreender porque
é que ela é boa ou má aluna.
Para um bom aproveitamento escolar é preciso trabalhar – e trabalhar de forma eficaz,
isto é, pertinente face àquilo que é requerido pela instituição escolar, mas também face a
uma determinada forma de aprendizagem ou um determinado tipo de saber. O que é que
faz que esta ou aquela criança se vá ou não aplicar na escola? Por que razão as crianças
trabalham mais ou menos na escola, de forma mais ou menos eficaz, e qual é a relação
entre essas diferentes mobilizações escolares e a origem social da criança? Se não nos
quisermos envolver em debates imediatamente armadilhados por questões ideológicas e
corporativas fortes (sobre os “handicaps socioculturais”, por exemplo...), é daí que é pre-
ciso partir.
É daí que parte a problemática da relação com o saber e com a escola – pelo menos,
aquela a partir da qual se constituiu a equipa ESCOL. Apresentadas de forma muito sim-
ples, as questões basilares das investigações da ESCOL sobre a relação com o saber são
as seguintes:
• Que sentido é que tem para uma criança, nomeadamente para uma criança oriunda de
meio popular, ir à escola?
• Que sentido é que tem para ela aplicar-se na escola ou não?
• Que sentido é que tem para ela aprender, na escola ou noutro sítio, e compreender?

Para estudar estas questões nunca nos devemos esquecer que o homem é um sujeito,
indissociavelmente singular e social. A singularidade do homem é o que lhe confere a sua
existência, comprometido com uma história que é a sua, mesmo quando ele a partilha com
outros homens. Mas o homem só existe quando socializado: sem o outro, que se apresenta
sempre sob formas sociais, o homenzinho permanece “um menino selvagem”, um “meni-
no lobo”, nunca se humaniza. A história escolar de uma criança é única, feita de encontros
e acontecimentos que lhe conferem uma originalidade irredutível: a minha história escolar
não é semelhante àquela do meu vizinho, nem à do meu irmão – quaisquer que sejam no

14
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

entanto as nossas semelhanças socioculturais. Mas pode acontecer, como o demonstram


os estudos estatísticos, que essas histórias irredutivelmente originais... variem segundo
a origem social. Dois tipos de explicações suspeitas devem ser rejeitadas: aquelas que
pretendem dar conta do sucesso ou do insucesso escolar partindo unicamente da origem
social, esquecendo que se trata da história de um sujeito; aquelas que pretendem explicar
tudo em termos de singularidade (e às vezes, para além disso, só a partir do inconscien-
te...), negligenciando, contudo, a correlação estatística reconhecida entre origem social e
história escolar. A relação com o saber é indissociavelmente social e singular. É o conjunto
(organizado) de relações que um sujeito humano (logo singular e social) mantém com
tudo o que depende da “aprendizagem” e do saber: objecto, “conteúdo de pensamento”,
actividade, relação interpessoal, lugar, pessoa, situação, ocasião, obrigação, etc., ligadas
de certo modo à aprendizagem e ao saber (cf. Charlot, 1997).
A investigação sobre a relação com o saber e com a escola nos collèges de subúrbio
(Charlot, Bautier & Rochex, 1992) mostrou que, para muitos jovens, a escola só faz sentido
se fizer referência a um “bom emprego”: vai-se à escola para “passar”, obter os diplomas e,
no fim de uma aventura mais ou menos longa e penosa, conseguir um bom emprego. Isto
quer dizer, nomeadamente, que o saber enquanto tal apresenta muito pouco interesse para
o aluno. Este último também está muito tentado em procurar a melhor relação qualidade/
preço: o mínimo cansaço possível pelo melhor rendimento (avaliado em termos de notas e
diplomas, já que o saber em si mesmo não surge como um instrumento pertinente de ava-
liação). Aquele a quem os alunos chamam “beto”, que injuriam e por vezes batem, é a tal
personagem odiosa que estuda muito para lá do que é requerido para passar a uma classe
superior – um “colaboracionista”, um “fura-greves” que quebra o ritmo.
Continuar a investigação recolhendo dados no liceu profissional era interessante sob
diversos pontos de vista.
Em primeiro lugar, a investigação permite dispor de uma população de sondagem que,
inegavelmente e apesar de uma heterogeneidade maior do que outrora, continua a ser “de
origem popular”; assim, está praticamente resolvida uma questão que permanece pendente
do ponto de vista teórico: o que é que se entende por “origem popular”?
Em segundo lugar, prosseguir a investigação no liceu profissional trata-se de benefi-
ciar de uma situação paradoxal e, logo, interessante para aprofundar análises anteriores.
O paradoxo é o seguinte. É em referência ao emprego que a escola faz sentido para os
estudantes de meio popular, mas um bom emprego. Ora, o bom emprego é aquele em que
se terá “ido o mais longe possível”, o que implica, no sistema escolar Francês, que se entre
no secundário e não num liceu profissional. Dito de outra forma, este último inscreve-se
na lógica do aluno (ele é profissional), ao mesmo tempo que a contradiz (ele não é visto
pelo aluno que o frequenta como um bom caminho para um bom emprego). O que é que se
passa, do ponto de vista da relação com o saber e com a escola, quando um jovem de meio
popular se encontra face a uma tal contradição?

15
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Em terceiro lugar, os liceus profissionais apresentam, por tradição, certas especifi-


cidades em relação a outros segmentos do aparelho escolar. Professores de uma origem
diferente (outrora oriundos da profissão, hoje em dia formados no ensino técnico10), que
ensinam outras coisas, de uma outra forma, noutros lugares (ateliers), convivem com pro-
fessores de “disciplinas gerais” – eles próprios, com frequência, muito diferentes dos seus
colegas que trabalham no terceiro ciclo ou em liceus gerais e tecnológicos. Para quem
investiga a relação com o saber alargada à relação com a “aprendizagem” existe uma
diversidade interessante. Será que o liceu profissional pode induzir uma reestruturação da
relação desses jovens com o saber e com a escola? Qual? Como?
Em quarto lugar, os liceus profissionais conheceram, desde há vinte anos para cá, evo-
luções fundamentais que induzem incertezas identitárias interessantes para o investiga-
dor11.
Ao longo dos anos 80, o CAP, feito em três anos depois do 5º, que foi durante muito
tempo o diploma de referência do ensino profissional, cedeu o lugar ao BEP12 feito em
dois anos depois do 3º: o nível de formação de base é mais elevado, o tempo de formação
especificamente profissional é mais reduzido.
Por outro lado, metade dos alunos escolarizados no 2º ano do BEP continua hoje
em dia os estudos, seja para o diploma profissional (32,5% em 1996-1997), seja para
uma primeira adaptação para o diploma tecnológico (16%). Portanto, o BEP, diploma
de referência, tende a “desprofissionalizar-se” – isto é, a ser menos pensado como
uma diploma que prepara o acesso directo a um emprego e a tornar-se um simples
ponto de passagem em direcção a uma primeira profissionalização ou a uma primeira
adaptação. Em último caso, o LP torna-se uma via de estudos específica para obter
um diploma.
Por fim, as formações industriais, que definiam tradicionalmente a identidade do esta-
belecimento de formação profissional, recebem hoje em dia menos alunos que as forma-
ções “terciárias” (secretariado, contabilidade, venda, sanitário e social...)13. Ora, tanto a

10
Esta diferença de origem entre ontem e hoje induz, ela própria, efeitos sobre a relação com o saber
desses professores. Cf. Tanguy, 1991.
11
Depois de ter hesitado durante algum tempo, desisti de consagrar um capítulo especial a essas evolu-
ções. Por um lado, um capítulo assim não é verdadeiramente necessário à investigação; basta relembrar de
forma breve as evoluções fundamentais, o que permite por sua vez não sobrecarregar ainda mais um livro
que já é longo... Por outro lado, esse trabalho já foi feito, e bem feito, por autores que estão referenciados
na bibliografia (nomeadamente Lucie Tanguy, Catherine Agulhon, Georges Solaux, Paul Esquieu).
12
NT: A sigla francesa BEP significa Brevet d’études professionnelles, que poderia ser traduzido por “cer-
tificado de estudos profissionais”. Este diploma, que só pode ser feito nos liceus profissionais, permite ao
aluno entrar na vida activa ou prosseguir os seus estudos. O Ministério da Educação francês elaborou um
programa com mais de 50 especialidades à escolha.
13
Em 1996-1997, 238 662 alunos estão inscritos numa turma de CAP ou BEP que assentam em “temas
pluritecnológicos da produção” e 293 182 numa turma de CAP ou BEP que assenta em “temas pluritecno-
lógicos de serviços” (França metropolitana, público + privado) –, ou seja, 45% no sector industrial e 55%
no terciário. Cf. DEP, 1997.
16
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

relação com a “prática” como a relação com o ensino geral não podem ser as mesmas em
estabelecimentos onde dominam as vertentes industrial ou terciária14.
Por todas estas razões, o liceu profissional dos dias de hoje já não é nem o lugar de
formação de uma elite operária recentemente descrita por C. Grignon, nem o espaço de
degredo escolar e social denunciado (de forma, aliás, abusivamente unilateral) durante
os anos 70. O liceu profissional dos dias de hoje já não é um espaço uniforme: a diver-
sidade de níveis (CAP, BEP, menções complementares, formações complementares de
iniciativa local, diplomas profissionais) e a diversidade de especialidades engendram
desigualdades e fenómenos de selecção no seio do próprio LP. “A hierarquia das es-
pecialidades não pára de criar desequilíbrios entre oferta e procura através das quais
são orientadas e seleccionadas as diferentes populações escolarizadas no LP” (Esquieu,
1991). Mesmo do ponto de vista da origem social, constata-se hoje em dia uma certa
diversidade – contudo, os alunos continuam a ser massivamente de origem popular15.
Nesse liceu mais heterogéneo que há uns tempos atrás, a questão da relação com o saber
torna-se mais complexa.
Na maioria das vezes, esse jovens teriam preferido, se tal fosse possível, ir para a
Seconde em vez do liceu profissional. Contudo, ainda é possível inventar para si próprio
um futuro enquanto aluno de LP. Que sentido fazem estes jovens do que lhes acontece
quando são orientados para o LP e do que lhes acontece, em seguida, quando já estão no
próprio LP? Que lugar ocupa a referência ao emprego e, de forma mais geral, à “práti-
ca” na relação destes jovens com o saber e com o LP? Qual é, para eles, o estatuto dos
saberes profissionais? Através de algumas destas questões, e algumas outras mais que
surgirão ao longo dos resultados de pesquisa e das análises, a nossa questão fundamental
permanecerá: que significado tem, para um jovem de meio popular, ir à escola, estudar,
aprender?

14
“O ensino profissional está incontestavelmente a perder aquilo que durante muito tempo lhe conferiu
originalidade (...) A era dos metalúrgicos e da identidade operária que lhe estava associada parece ter
terminado” (Pelpel & Troger, 1993).
15
Em 1994, C. Agulhon sublinha “a permanência de origens familiares populares nos jovens dos LP e as
disparidades socioculturais no seio desses meios populares”. Em 1995-1996, em 10 314 alunos escolariza-
dos num LP público de Seine Saint-Denis, as categorias sociais de origem (PCS – profissões e categorias
socioprofissionais) mais representadas são os operários qualificados (2 835), as pessoas sem actividade
profissional (1 460), os operários não qualificados (852), os empregados civis e agentes de serviço da
função pública (789). Contudo, encontram-se também nesses LP 44 filhos de directores de empresa com
10 assalariados ou mais, 59 de profissão liberal, 87 de quadros superiores da função pública, 21 de pro-
fessores (dados comunicados por J. P. Baraille, DEP – Direcção de Educação Permanente –, Ministério da
Educação Nacional). Estes dados confirmam ao mesmo tempo que os LP acolhem maciçamente jovens de
meios populares e que, não obstante, não existe um determinismo social forte que reserve os LP só a filhos
de meios populares. Dentro desses 10 314 jovens, 7 884 são de nacionalidade francesa (ou seja, 76,4%) e
os outros pertencem a outras 59 nacionalidades (com uma forte representação de países da África do Norte
e de Portugal).
17
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

2. Como foi feita a pesquisa

Para recolher os dados analisados neste livro foram utilizados dois tipos de instrumentos:
balanços de saber e entrevistas semi-orientadas aprofundadas.

2.1. Os balanços de saber


O balanço de saber é um instrumento inventado aquando da investigação sobre os colegas.
Os alunos escrevem um texto a partir da premissa seguinte: “Desde que nasci aprendi
muitas coisas, em minha casa, no bairro, na escola e noutros sítios... O quê? Com quem?
Em tudo isto, o que é que é mais importante para mim? E agora, de que é que estou à es-
pera?” Este balanço é anónimo, o aluno só é convidado a precisar se é rapaz ou rapariga16.
Dependendo dos casos, a premissa foi dada pelo professor da turma ou por um membro da
equipa de investigação. O tempo de redacção (que não foi fixado a priori) varia segundo
os alunos; não excede uma hora.
Assim, entre 1993 e 1995, foram recolhidos 533 balanços exploráveis:
• 282 balanços de rapazes (R.) e 251 de raparigas (Ra.);
• 240 balanços “industriais” (ind.) e 293 “terciários” (terc.): 222 R. ind., 18 Ra. ind.,
60 R. terc., 233 Ra. terc.;
• 42 balanços no 3º tecnológico (32 R., 10 Ra.) (25 industriais, 17 terciários), 24 relatos
em CAP (16 R., 8 Ra.) (11 ind., 13 terc.), 329 balanços em BEP (194 R., 135 Ra.)
(181 ind., 148 terc.), 138 balanços em bac pro (40 R., 98 Ra.) (23 ind., 115 terc.).

Esses balanços foram redigidos em 35 turmas: 15 de industriais e 20 de terciários,


11 num liceu profissional de Saint-Denis (6 ind., 5 terc.) e 24 num liceu profissional de
Persan-Beaumont, no Val d’Oise (9 ind., 15 terc.). Nessas turmas eram ensinadas as espe-
cialidades seguintes:
• BEP: electrotécnica, microtécnicas, OASF (operador-ajustador em sistemas de fa-
bricação), materiais flexíveis, ACC (administração comercial e contabilista), CAS
(comunicação, administrativa e secretariado).
• Bac pro: MSMA (manutenção de sistemas mecânicos automatizados), comércio e
serviços, informática-contabilidade, informática-secretariado.

Baptizei esses textos de balanços de saber, mas, pensando bem, são de facto balanços
da aprendizagem. Eu guardarei, contudo, a expressão “balanço de saber” já que o instru-
16
O investigador é confrontado aqui com duas exigências contraditórias: por um lado, garantir aos alunos o
anonimato afim de obter respostas tão “sinceras” quanto possível; por outro lado, dispor de informações so-
bre os alunos, o que é útil para interpretar as suas respostas. No LP de Saint-Denis, onde os balanços de saber
foram recolhidos pelos professores, o anonimato foi absoluto. No de Persan-Beaumont, Frédéric Ronsmans-
‑Davray, que recolheu os balanços, tinha previamente dado um número de ordem a cada folha distribuída e
podia assim identificar os autores dos balanços; os alunos tinham sido advertidos e sabiam que ele era o único
a poder identificar os balanços de saber. Esta técnica é a mais eficaz mas supõe que os alunos conheçam à
partida a pessoa que lhes distribui os balanços e confiem nela – e foi o que aconteceu neste caso.
18
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

mento está agora identificado com este nome, que além disso é menos palavroso; entretan-
to, não se pode esquecer que é de facto a aprendizagem que é explorada nesses balanços e
não o saber num sentido restrito.
Os balanços de saber não nos indicam o que o aluno aprendeu (objectivamente) mas
o que ele diz ter aprendido no momento em que lhe colocamos a pergunta, nas condições
em que a questão é colocada. Por um lado, isto significa que nós apreendemos não aquilo
que o aluno aprendeu (o que seria aliás impossível), mas o que, para ele, apresenta de
forma suficiente a importância, o sentido, o valor para que ele o evoque no seu relato; essa
triagem feita pelo aluno de forma mais ou menos inconsciente não nos incomoda, pelo
contrário, uma vez que a investigação assenta sobre a relação do aluno com o saber. Por
outro lado, qualquer dado recolhido por um instrumento leva inevitavelmente a sombra
do instrumento que o recolheu; o facto de as instruções se referirem à escola pode não ser
indiferente à natureza das respostas dos alunos. Também aqui esse eventual desvio não
nos incomoda já que nós nos interessamos, antes de mais, pela relação com o saber, de
que os alunos são portadores. Além disso, tanto no liceu profissional como no collège, os
jovens apropriaram-se das instruções de maneiras muito diferentes, de tal forma que se
pode pensar que esta última seja muito pouco indutora.
Os balanços de saber são objecto de um trabalho de escrutínio e, logo, inevitavel-
mente de interpretação17. Para que as respostas façam sentido é preciso reagrupá-las,
categorizá-las, o que supõe que seja preciso fazer escolhas – de forma que a categori-
zação está igualmente ligada à relação com o saber do próprio investigador. Para que o
coeficiente pessoal do investigador pese o menos possível na interpretação dos dados,
cada balanço foi tratado por dois investigadores; além disso, a categorização escolhida
retoma, no essencial, a que foi construída aquando da investigação sobre as escolas do
terceiro ciclo18.
O escrutínio dos balanços de saber recaiu sobre tudo aquilo que pudesse fornecer in-
teligibilidade acerca da forma como se organiza o universo “da aprendizagem” desses jo-
vens. Assim, o que é apreendido são os processos de construção, de organização, de cate-
gorização do mundo que permitem dar um sentido a esse mundo. É a palavra singular que

17
Qualquer investigação implica uma dose de interpretação. É preciso não esquecer que o “vivido” impli-
ca ainda mais interpretação (e muito menor controlo).
18
Esse duplo escrutínio diz respeito à primeira questão, que se presta a uma categorização de respostas (o
inventário do que se diz ter aprendido). Uma primeira codificação foi feita por Frédéric Ronsmans-Davray
para os balanços recolhidos em Persan-Beaumont e por Nathalie Bidart para os oriundos do liceu profis-
sional de Saint-Denis – ambos trabalharam a partir da grelha construída aquando da investigação sobre as
escolas do terceiro ciclo. F. Ronsmans-Davray propôs algumas modificações ligeiras da grelha, que foram
aceites. Em seguida, eu próprio revi cada relato para verificar se estava de acordo com a codificação. O
acordo foi efectivo em mais de 90% dos casos e corrigi menos de 10% das propostas (as dificuldades
assentavam sobre itens como “aprendi a estudar”, que podem ser objecto de interpretações sensivelmente
diferentes. Cf. a grelha de escrutínio, em anexo). Para as outras perguntas, onde a ambiguidade é menor
(onde? Com quem?) ou, pelo contrário, maior e sem dar espaço a uma codificação mais minuciosa (o que
é importante? Quais são as minhas expectativas?), procedi sozinho ao escrutínio.
19
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

é analisada (os balanços de saber são textos produzidos por sujeitos singulares) mas aqui
o interesse também recai sobre processos pelos quais os indivíduos social e escolarmente
dominados colocam o mundo em ordem e não sobre aqueles que constroem uma história
escolar singular. Os balanços de saber também são tratados como um texto só, onde se
procura encontrar regularidades que permitam identificar processos. É o aluno de liceu
profissional como ideal-tipo que é aqui objecto de análise, para lá das diferenças entre
alunos singulares; jamais um aluno real corresponderá completamente a essa construção
teórica que é o ideal-tipo, mas este ideal-tipo capta este “ar de família” (ou de escola...)
que os alunos têm nas fotografias de turma.
O escrutínio interessou-se pelos seguintes pontos que, por vezes reagrupados, são
abordados nos capítulos da primeira metade do livro:
1. As aprendizagens que os alunos evocam;
2. Os lugares a que se referem essas aprendizagens assim como os “agentes de apren-
dizagem”;
3. O que o aluno afirma ser importante e o que diz aprender (as respostas a essas duas
questões estão muito interligadas e não é possível tratá-las separadamente);
4. A forma dos textos que, como havíamos já constatado na nossa investigação sobre
as escolas de 3º ciclo, informa-nos igualmente sobre a relação desses alunos com o
saber;
5. A tónica dominante dos textos. O esquartejamento dos textos em ocorrências desar-
ticula-os e esconde o facto de, por vezes, eles serem construídos em torno de uma
“tónica dominante” (de tom ou de tema) interessante a ter em consideração;
6. O tema do tempo. Porquê o tempo? Por um lado, a relação com o tempo constitui
uma dimensão importante da relação com o saber e, por outro lado, o instrumento
de recolha de dados (o balanço do que se aprendeu desde que se nasceu) presta-se
particularmente bem a uma análise desse tema;
7. As declarações explícitas sobre o saber e a escola, que apresentam de forma evidente
um interesse muito particular sobre esta investigação.

Depois de ter apresentado os resultados de investigação que dizem respeito ao conjun-


to dos balanços de saber, consagro um capítulo à comparação de subpopulações: rapazes
e raparigas; especialidades industriais e terciárias; alunos de brevet d’études profession-
nelles (BEP) e de baccalauréat professionnel (bac pro)19; alunos comparados a partir da
categoria socioprofissional dos seus pais.

19
NT: Optou-se por deixar as expressões no original para respeitar as siglas francesas: brevet d’études
professionnelles pode traduzir-se por “certificado de estudos profissionais” e baccalauréat professionnel
pode traduzir-se por “diploma profissional”.
20
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

2.2. As entrevistas
Os balanços de saber permitem estudar o ideal-tipo do aluno de liceu profissional – e,
para além disso, do jovem de meio popular em situação escolar frágil. As entrevistas dão
importância aos processos através dos quais a história escolar desses jovens se constrói
de forma singular.
Na sociedade francesa actual, ser encaminhado para o liceu profissional não é um
acontecimento anódino; para a maioria dos alunos é uma infelicidade, um choque,
uma agressão... em todo o caso uma orientação que agrava o futuro. Um tal aconteci-
mento obriga o sujeito a pensar a sua história, passada e futura, o seu lugar no mundo,
as suas relações com os outros, e leva-o a questionar-se sobre aquilo que é e sobre
o que poderá vir a ser. Além disso, a orientação para o liceu profissional introduz o
jovem num universo de saberes e actividades novas para ele e, logo, susceptíveis de
reestruturar a sua relação com o saber e com a escola. É o conjunto desses processos,
tanto identitários quanto epistemológicos, que se procura compreender com a análise
das entrevistas.
Apoiar-me-ei em mais de 200 entrevistas “semi-orientadas/aprofundadas”, realizadas
entre 1994 e 1997 por mim próprio ou por estudantes. As primeiras entrevistas (uma de-
zena) foram feitas por mim a partir de 1994. Elas apoiam-se num guião de entrevista, que
se encontra em anexo, e exploram os pontos seguintes:
• A história escolar do aluno;
• A forma como chegou ao liceu profissional; o que é que ele sentiu e o que sente
agora;
• O balanço do tempo passado no LP;
• As relações com os professores e com os amigos;
• A vertente familiar da história escolar do aluno;
• O seu conhecimento sobre a actividade profissional;
• A forma de adquirir saberes e savoir-faire, dentro e fora da escola. Poderá uma pro-
fissão ser aprendida na escola? O estágio, se tiver feito um;
• Como é que vê o seu futuro, a sua vida...;
• Inicialmente previsto sob outra forma, foi introduzido um outro tema no guião,
após a primeira entrevista: o que é que significa uma aula ou um professor “inte-
ressante”?

Uma outra série de entrevistas (25) foi realizada por André Korzec, no âmbito do seu
mestrado em Ciências da Educação (Korzec, 1994). Ele explora igualmente a questão da
relação com o saber e com o LP, mas, além disso, reserva uma atenção particular a certos
temas: o trabalho, a empresa, o desemprego, a modernidade.

21
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

As outras entrevistas foram realizadas por estudantes da licenciatura em Ciências da


Educação, no âmbito normal da sua formação20. Alguns destes estudantes utilizaram o
guião de entrevista apresentado anteriormente, outros não. Essas entrevistas assentam
igualmente na questão da relação com o saber e com a escola mas os estudantes, claro está,
ajustam a entrevista em função dos seus próprios interesses. Estas entrevistas feitas pelos
estudantes pouco experientes não são, do ponto de vista técnico, irrepreensíveis (contudo,
existem algumas notáveis). No entanto, apresentam uma qualidade inestimável para a in-
vestigação: os estudantes de Ciências da Educação da Universidade Paris 8 Saint-Denis
são, com frequência, oriundos do mesmo meio que os jovens que constituem a maioria dos
alunos de liceu profissional. Eles têm acesso a jovens aos quais eu não acederia facilmente
(pelo menos em termos de comunicação), por exemplo os rapazes de liceu profissional
de origem africana (e inclusive magrebina) em revolta contra a instituição. Eles fazem
entrevistas sobre a vida quotidiana do bairro. Eles podem colocar questões que eu nunca
colocaria – por exemplo, questionar (e portanto levantar dúvidas), o discurso de vítima do
tipo “isto tudo é porque são racistas” (ora, se sou eu a colocar dúvidas, é porque eu próprio
sou racista...)21.
A maioria destas entrevistas incide nos alunos que preparam um BEP ou um diploma
profissional. Porém, considerei no conjunto entrevistas com alunos de 4e e 3e technologi-
que assim como, no extremo oposto, entrevistas com jovens em Première d’adaptation22
e com jovens adultos que frequentaram o liceu profissional (empregados ou no desem-
prego). Em anexo, encontra-se a lista destas entrevistas (e o nome de quem as realizou).
É evidente que todas as informações assim recolhidas (mais de 2000 páginas de transcri-
ções) não foram usadas aqui. As entrevistas foram estudadas com relação às prioridades
das questões abordadas nesta investigação. Foram seleccionadas por, ao longo de várias
leituras, identificarem os problemas que os alunos têm que enfrentar e as respostas que
eles põem em prática, os sistemas de interpretação que eles constroem e o trabalho que

20
Os estudantes que assistem às minhas aulas sobre a “A escola no subúrbio” devem fazer pelo menos
uma entrevista sobre a questão da relação com o saber e com a escola. Eles escolhem livremente o nível
dos alunos que vão entrevistar. Alguns escolhem os alunos de LP (e, quando querem, pedem-me empres-
tado o meu guião de entrevista). É evidente que a investigação aqui apresentada não necessitava de uma
tal quantidade de entrevistas mas estas últimas foram-se acumulando ao longo do tempo e eu não tive a
coragem de não as considerar...; se, por um lado, atrasou ainda mais a escrita deste livro este facto permitiu
também consolidá-lo numa base mais abrangente, logo mais sólida e detalhada. Não forneço aqui detalhes
sobre as condições de entrega das entrevistas porque o número de entrevistadores é de tal ordem que estas
condições são muito variáveis.
21
Surge aqui uma situação muito conhecida em sociologia, quer se trate dos informadores “indígenas”,
quer, melhor ainda, do famoso exemplo das investigações do sociolinguista William Labov ajudado pelos
seus alunos negros de Harlem.
22
NT: Sendo o sistema educativo francês substancialmente diferente do português e não havendo ex-
pressão equivalente, optou-se pela não tradução de Première d’adaptation. Esta expressão descreve uma
turma reservada aos melhores alunos do último ano de BEP e prepara-os para a obtenção de um diploma
tecnológico.
22
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

eles produzem para os construir. As entrevistas são lidas “em ressonância”23: cada entre-
vista é lida e estudada guardando a memória (ou seja, também uma pista escrita) das per-
guntas e dos elementos de resposta oriundos da leitura das entrevistas precedentes. Assim,
é possível um trabalho de aprofundamento que assenta em numerosas entrevistas para
identificar, explicitar, conceptualizar os processos que produzem e estruturam a história
singular destes jovens.

23
A expressão é de Marie-Pascale Léger, estudante de mestrado.
23
 AP. 2
C
O QUE DIZEM ELES TER
APRENDIDO?

Ao contrário do animal, dotado de instintos que lhe permitem adaptar-se rapidamente ao


seu meio envolvente, o filho do homem nasce inacabado e deve continuar a sua homini-
zação após o nascimento. Para se tornar homem, ele tem que entrar no mundo criado por
gerações precedentes, apropriar-se dele, encontrar aí o seu lugar e, neste mesmo movi-
mento, tornar-se um ser humano, social, singular. Dito de outra forma, o filho do homem é
obrigado a aprender para ser (Charlot, 1997).
Aprender significa adquirir saberes, mas também, de forma mais genérica, controlar
actividades, objectos da vida corrente, formas relacionais. O universo da “aprendizagem”
é muito mais amplo que o do saber, se entendermos por saber um conteúdo de consciência
enunciável através da linguagem. Aprender é apropriar-se de saberes (o teorema de Pitá-
goras, o complemento directo, quem foi Robespierre, qual é a capital do Brasil, o que é o
magnetismo ou um relatório de contas...), mas é também controlar actividades (apertar os
sapatos, conduzir um carro, nadar, dançar, ler...) e iniciar relações com os outros e consigo
próprio (ser bem educado, respeitar os pais, ser útil, seduzir, lutar, mentir, roubar, ser au-
tónomo, ser senhor de si, ultrapassar dificuldades, divertir-se...).
Neste capítulo, trataremos de perceber como se organiza este universo da “aprendiza-
gem” nos jovens escolarizados no liceu profissional – e, para lá disso, o que significam
aprender e saber para os jovens de meio popular, na sociedade francesa, do nosso tempo.

1. Os principais tipos de aprendizagens evocados nos balanços de saber

As aprendizagens que os alunos evocam foram tratadas a partir de dois pontos de vista.
Em primeiro lugar, qual é o peso de um determinado tipo de aprendizagem no conjun-
to das aprendizagens evocadas? Neste caso, cada ocorrência24 é tida em conta, inclusive
quando os alunos enumeram tipos de aprendizagens semelhantes (a hipótese subjacente
é aquela em que a enumeração significa insistência). Em segundo lugar, qual é a per-
centagem de alunos que, no seu texto, cita pelo menos uma vez um determinado tipo de
aprendizagem?

Chamo “ocorrência” a uma “unidade de aprendizagem” que surge no texto; por exemplo, a frase “eu
24

aprendi a nadar e a ler” evoca duas ocorrências.


A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Em anexo25, encontraremos quadros construídos a partir dos balanços de saber que


apresentam, em percentagem, os dados essenciais. O Quadro 1, mais adiante, evidencia os
resultados gerais mais importantes e permite comparar os dados recolhidos no liceu pro-
fissional (LP) com aqueles que tínhamos obtido no último ano do collège de uma escola
em Saint-Denis (3SD) e nas “boas turmas” de um colégio de Massy, nos subúrbios a sul
de Paris (3Ma+)26 (Charlot, Bautier & Rochex, 1992).
Impõe-se uma primeira conclusão à leitura simples deste quadro: o universo do sa-
ber destes jovens (mais precisamente, o seu universo de “aprendizagem”) centra-se em
aprendizagens relacionais e afectivas (ARA=38%) ou ligadas ao desenvolvimento pessoal
(DP=10%).

Quadro 1 – Aprendizagens evocadas (% de ocorrências e % de alunos)


LP 3SD 3Ma+ LP
% oc. % oc. % oc. % alunos
Aprendizagens ligadas à vida quotidiana 8% 16% 4,5% –
Aprendizagens intelectuais ou escolares (AIE) 24% 32% 58% 63%
Aprendizagens relacionais e afectivas (ARA) ou 74% (ARA)
48% 35% 19%
ligadas ao desenvolvimento pessoal (DP) e 40% (DP)
Aprendizagens profissionais 4% – – 16%

A categoria “aprendizagens ligadas à vida quotidiana” reagrupa “tarefas familiares”,


“savoir-faire específicos”, “tempos livres e actividades lúdicas” (cf. grelha em anexo). As
colunas 2, 3 e 4 devem ser lidas assim: em 100 aprendizagens evocadas nos balanços, 8
advêm daquelas que estão ligadas à vida quotidiana... (a categoria “aprendizagens profis-
sionais” não aparecia na investigação sobre os collèges). A coluna 5 lê-se assim: 63 relatos
em 100 citam pelo menos uma aprendizagem intelectual ou escolar27 (não indicamos uma
percentagem para “vida quotidiana” porque o levantamento só foi feito para cada subcate-
goria, sem levantamento global).
É preciso, certamente, recordar que estamos na presença de adolescentes ou de
adultos muito jovens e que, nesta idade, um indivíduo é particularmente sensível às
questões relacionais e ao seu desenvolvimento pessoal. Mas, este facto só justifica
uma parte do fenómeno. Desde a troisième, constatámos que os jovens do collège da
ZEP (zona de educação prioritária) de Saint-Denis davam uma grande importância ao
plano relacional, enquanto que os alunos das “boas turmas” de Massy estavam, antes

25
O número dos quadros apresentados em anexo é precedido da letra A.
26
Os alunos destas boas turmas (opção Alemão) pertencem, em grande maioria, a famílias favorecidas,
enquanto que as turmas do collège de Saint-Denis, como os LP, acolhem massivamente alunos de famílias
populares.
27
Os resultados são da mesma ordem no LP de Saint-Denis (SD) e no de Persan-Beaumont (PB) – o que
tende a confirmar a sua validade, já que as duas populações de inquérito são independentes. Assim, a per-
centagem de ocorrências é respectivamente, para SD e PB, de 47 e 49 para ARA-DP, de 22 e 25 para AIE,
de 11 e 6 para as aprendizagens quotidianas, de 3 e 4 para as aprendizagens profissionais.
26
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

de mais, centrados nas “aprendizagens intelectuais e escolares”, isto é, sobre o saber


no sentido estrito do termo. Esta predominância do plano relacional é ainda maior no
liceu profissional.
Uma segunda conclusão28, mais inesperada, deve ser retirada deste quadro: as apren-
dizagens de tipo profissional, mesmo sendo consideradas no sentido amplo do termo (cf.
grelha de escrutínio, em anexo) estão muito pouco presentes nos balanços de saber dos
alunos do liceu profissional. Elas só representam 4% do total das ocorrências e só 16%
dos alunos (1 em 6) as evocam pelo menos uma vez no seu relato. Este resultado é ainda
mais surpreendente uma vez que os textos foram escritos no liceu profissional e, por isso,
podia-se temer uma obliquidade induzindo os alunos a citar mais aprendizagens profis-
sionais, que não teriam feito se a palavra de ordem tivesse sido dada num outro lugar que
não o LP.
Os dados são mais ambíguos no que toca às aprendizagens intelectuais e escolares:
63% dos alunos citam pelo menos uma, mas esta categoria só reúne 24% das aprendiza-
gens. Dito de outra forma, muitos alunos pensam neste tipo de aprendizagem mas têm
pouco a dizer sobre ela.
Para ir além destas primeiras conclusões, é preciso abrir cada categoria e examinar os
resultados por subcategorias.

2. As aprendizagens intelectuais e escolares

Foram reunidas nesta categoria:


• a s aprendizagens escolares básicas como ler, escrever, contar;
• e xpressões genéricas e tautológicas do tipo “aprendi muitas coisas”, “aprendi o sa-
ber”;
• r eferências a disciplinas escolares através do simples enunciado dessas disciplinas
(aprendi Matemática, Francês...), a evocação de um conteúdo de saber (aprendi o
corpo humano, as fracções...) ou a indicação de uma capacidade (aprendi a exprimir-
‑me em Francês...);
• a prendizagens metodológicas, no sentido estrito (rever, organizar-me) ou amplo (es-
tudar, instruir-me);
• a prendizagens normativas (aprender bem, levantar a mão...);
• a ctividades como pensar, compreender, reflectir, imaginar.

O Quadro 2 permite avaliar o peso destas diferentes subcategorias.

28
Haveria outros pontos a realçar a partir dos quadros A1 e A2 (anexo); nomeadamente poder-se-ia su-
blinhar que as aprendizagens de tipo social, política e religiosa são pouco citadas pelos alunos. Para não
fragmentar uma análise que se tornaria fastidiosa, só comento os resultados mais significativos e deixo o
trabalho complementar para o leitor...
27
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Quadro 2 – As aprendizagens intelectuais e escolares (AIE)


% ocorrências % alunos
Aprendizagens intelectuais e escolares 100% 63%
Aprendizagens escolares básicas 43% 32%
Expressões genéricas e tautológicas 19% 29%
Disciplinas escolares 24% 20%
Aprendizagens metodológicas 6% 9%
Aprendizagens normativas 2% 3%
Pensar... 6% 7%

Disciplinas escolares 100% 20%


- simplesmente nomeadas 31% 5%
- evocação de um conteúdo 34% 8%
- evocação de uma capacidade 34% 12%

Cerca de três quartos das ocorrências AIE podem ser reagrupadas em torno do que eu
apelidarei de pólo vago de saber.
Antes de mais, contamos neste pólo as respostas do tipo “ler, escrever, contar”. É, de
facto, surpreendente constatar que estas aprendizagens escolares básicas, realizadas por
volta dos seis ou sete anos, representam 43% das aprendizagens de tipo intelectual e esco-
lar citadas por alunos de liceu profissional, cuja maioria tem entre 16 e 20 anos. Ou ainda,
com uma outra dedução: mais de 10% do total das aprendizagens evocadas por estes jo-
vens nos seus relatos remetem para “ler, escrever, contar”, aprendizagens essas que datam
de há mais de dez anos (em princípio...), enquanto que as aprendizagens profissionais, que
eles estão a fazer agora, só representam 4% do total. “Na escola, eu aprendi a ler, escrever,
contar e essas três coisas são as três coisas primordiais na vida de um ser humano”, escreve
um aluno no primeiro ano do bac pro que não cita, por outro lado, mais nenhuma aprendi-
zagem escolar. Reter-se-á, à escolha, que para estes jovens ler, escrever e contar foram as
aprendizagens escolares mais importantes... ou que poucas aprendizagens escolares para
além destas fizeram sentido para eles. Notemos, finalmente, para terminar este ponto, que
no collège da ZEP de Saint-Denis, estas aprendizagens básicas representam 22% das AIE:
o seu peso relativo é ainda maior no LP que no collège.
As expressões genéricas e tautológicas (19% das AIE) pertencem igualmente, por de-
finição, a este pólo vago de saber. É preciso acrescentar-lhe as aprendizagens normativas
(2%), a simples enumeração de disciplinas (cerca de 8% das AIE) e talvez uma parte das
aprendizagens metodológicas (porque aprender “a estudar” ou “a instruir-me” é uma ex-
pressão ambígua). No total, cerca de 30% das ocorrências reagrupadas nas AIE remetem
para a ideia de que na escola “aprendi” a fazer aquilo que é suposto quando se vai à escola.
Acrescentadas aos 43% de “ler, escrever, contar”, elas constituem o pólo vago da relação
com o saber.
28
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

As outras ocorrências podem ser reagrupadas em torno de um pólo de apropriação dos


saberes e de actividades intelectuais. Contabilizamos aqui os conteúdos evocados (8% das
AIE), as capacidades (8%), pensar (6%) e uma parte das aprendizagens metodológicas. Ou
seja, cerca de um quarto das aprendizagens reagrupadas na categoria AIE. É de notar que
este pólo da apropriação é mais definido por actividades do que por conteúdos de saber.
Inclusive no campo intelectual, é na ordem da actividade que a aprendizagem faz mais
sentido do que na possessão de um bem. Aprender, para estes jovens de meio popular,
significa menos apropriar-se de um capital (ainda que fosse cultural) do que o tornar-se
capaz29.
De assinalar, por fim, que a relação com o saber dos alunos do liceu profissional é ain-
da mais vaga que a dos alunos do collège numa investigação precedente (Charlot, Bautier
& Rochex, 1992). Eles citam menos AIE, mais “ler, escrever, contar”, mais expressões
genéricas e tautológicas. Em compensação, eles são menos dados, em relação ao collè-
ge, a produzir longas enumerações de disciplinas (simples etiquetas institucionais que
reenviam mais para momentos de emprego do tempo do que para corpos de saber): a sua
relação com o saber é ainda mais vaga mas as neblinas não se condensam exactamente
nos mesmos sítios.
Em suma, o significado do saber, o significado da escola, o significado específico de
uma escolarização no ensino secundário é ainda mais evidente no liceu profissional do
que no collège – o que é aliás normal tendo em conta a selecção pelo insucesso que rege a
orientação em direcção ao liceu profissional no fim do collège. Ora, nenhum outro signi-
ficado específico, que poderia apoiar-se no “P” de “LP” se construiu de facto (só 4% das
ocorrências se referem às aprendizagens profissionais). Nestas condições, o liceu profis-
sional não faz sentido para estes jovens nem enquanto liceu, nem enquanto profissional.
O que deixa um espaço maior para as aprendizagens relacionais e afectivas e para aquelas
que estão ligadas ao desenvolvimento pessoal.
É esta categoria que vamos agora descerrar, para analisar as subcategorias.

3. As aprendizagens relacionais, afectivas e ligadas ao desenvolvimento pessoal

Existem dois tipos de aprendizagens que são muito mais evocados que os outros, qualquer
que seja o sexo, a especialidade de formação, o tipo de turma (cf. anexo, Quadro A3 e
A4): os que estão reagrupados sob o nome de “conformidade” (portar-se bem, a educação,
respeitar os pais, obedecer...) e os que estão reagrupados sob a etiqueta “relações de har-
monia” (vida em comum, solidariedade, amizade, amor, confiança...).

29
O que, neste plano teórico, incita a uma certa desconfiança face a teorias sociológicas que tentam jus-
tificar as desigualdades culturais e escolares em termos de “capital” cultural e simbólico. Assim como é
preciso desconfiar de raciocínios de senso comum (ou por vezes de senso pedagógico...) que traduzem esta
polarização dos alunos de meio popular em relação à actividade (inclusive intelectual) com queda para o
“concreto”.
29
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Quadro 3 – As aprendizagens relacionais e afectivas (ARA)


e ligadas ao desenvolvimento pessoal (DP)
% ocorrências % alunos
Conformidade 27% 48%
Relações de harmonia 22% 42%
Relações de conflito 8% 17%
Conhecer as pessoas, a vida 12% 27%
Não-transgressão 10% 20%

Confiança em si, autonomia 10% 24%


Ultrapassar as dificuldades 7% 16%
Aquilo que sou 3% 10%
Divertir-me, viver bem, rir 2% 5%

ARA+DP 100%

Pode ser surpreendente encontrar a conformidade e a harmonia valorizadas assim por


jovens que vivem num mundo difícil e mantêm entre si relações tensas com frequência. Mas
é preciso compreender o que significam estes resultados: eles indicam, precisamente, que
os jovens tiveram que aprender a conformidade e a harmonia. Estas últimas não são dados
adquiridos, de forma evidente, mas devem ser conquistadas. Mas isto também quer dizer que
é necessário evitar qualquer tipo de miserabilismo: estes alunos de liceu profissional, esco-
larizados em zonas de subúrbio ditas “difíceis”, não estão nem desprovidos de qualquer “re-
lação com a lei”, nem em perdição num mundo desorganizado e anómico – contrariamente
ao que o senso comum, e por vezes a Sociologia, tende a afirmar. Eles aspiram, pelo menos
para uma grande maioria, a interessar-se pela sociedade e nela arquitectar relações harmo-
niosas com os outros; seja como for as relações de harmonia são muito mais citadas por estes
alunos de liceu profissional que o conflito (andar à luta, defender-se, insultar, mentir...) ou a
não-transgressão (“aprendi a não” fazer asneiras, roubar, defraudar...).
Assim, para se poder integrar de maneira conforme e harmoniosa, é preciso evitar a
transgressão que ameaça constantemente a aquisição da confiança em si e da autonomia
para se desembaraçar sozinho e ultrapassar as dificuldades, desenvolver uma forma de
inteligência afectiva e social (conhecer e compreender a vida e as pessoas) e saber, se for
caso disso, defender-se e fazer respeitar-se. Trata-se de aprendizagens reais, que exigem
uma inteligência dos fenómenos afectivos e sociais. Estas aprendizagens açambarcam,
sem dúvida, uma parte importante da energia destes jovens mas eles não saberão evitá-las:
num mundo difícil como é o deles, está em jogo a sua sobrevivência afectiva, relacional e
social. Tais aprendizagens são essenciais para eles e por isso não é surpreendente encon-
trá-las no centro dos balanços de saber.
O Quadro 3 permite formular uma outra conclusão importante, ou pelo menos uma ou-
tra hipótese: no centro do universo destes jovens encontram-se os outros, a vida, o mundo,

30
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

mais do que um Eu muito assumido. Todo o laço ao outro é também um laço a si próprio e
todo o laço a si liga ao outro (Charlot, 1997), mas o que surge aqui é que os jovens vivem
projectados em direcção aos outros mais do que virados para uma construção reflexiva do
seu Eu.
Antes de mais, é de relevar que as aprendizagens relacionais e afectivas são mais evo-
cadas do que aquelas ligadas ao desenvolvimento pessoal: as primeiras contam 38% do
total das ocorrências, as segundas 10%; as primeiras são citadas pelo menos uma vez por
74% dos alunos, as segundas por 40%. O Quadro 3 mostra, além disso, que as duas apren-
dizagens menos evocadas dizem precisamente respeito à afirmação directa de si, num
modo reflexivo ou num modo explosivo: aprendi aquilo que sou, a minha personalidade;
aprendi a divertir-me, a rir.
Aprender “aquilo que sou” supõe um trabalho de distanciamento em relação a si. Estes
jovens sabem tomar a distância, mas eles fazem-no mais em relação à vida e às pessoas
(“conhecer as pessoas, a vida”) que em relação a si próprios. São as pessoas e a vida que
estruturam o seu universo mais do que um Eu reflexivo cujo principal papel seria afirmar-
‑se a si próprio.
Era necessário reler à luz desta ideia (“revisitar”, como se diz hoje em dia) as análises
que François Dubet30 propôs no Galère (1987). Ele notou muito bem que a própria identi-
dade dos jovens dos bairros sociais podia variar segundo as situações em que se encontram:
não só não são os mesmos mas também não parecem dar importância ao princípio de uma
permanência identitária. F. Dubet vê aqui o efeito de uma fragmentação do Eu, de uma
alienação do sujeito, num mundo dominado pela anomia. O Quadro 3 permitiria formular
outras conclusões. Por um lado, a anomia e a diluição da “relação com a lei”, pelo menos
na percepção que os jovens têm do mundo, parecem ser menos importantes do que se diz:
eles permanecem muito ligados a um ideal de conformidade e de relações harmoniosas.
Por outro lado, a fraca afirmação de um Eu reflexivo e centrado em si-próprio aparece,
antes de mais, aqui como uma forma de ligação ao mundo e à vida. Se esta interpretação
estiver exacta, ela significa que a identidade dos jovens varia segundo as situações, porque
a consciência dos jovens de meio popular está centrada em situações e nas relações com
os outros, que elas permitem ou exigem, e não sobre a construção de um Eu reflexivo (Je
réflexif), muito reticente em se afirmar e mostrar uma constância identitária. Na ligação
popular ao mundo, a relação com os outros prevalece sobre a construção reflexiva do Eu
(moi); B. Bernstein já notava, há mais de 20 anos, que os jovens de meio popular estrutu-
ram o seu mundo mais no “nós” e “eles” do que no “eu” (Bernstein, 1975)31.

30
NT: François Dubet é um sociólogo francês, professor na Universidade de Bordéus e director da École
des hautes études en sciences sociales (EHESS). É autor de inúmeras obras consagradas, na sua maioria, à
marginalidade juvenil, à escola e às instituições. B. Charlot faz referência ao seu livro La Galère: Jeunes
en Survie, Fayard, 1987.
31
Mas é verdade – e neste ponto concordo com F. Dubet – que a crise das grandes ideologias operárias e
populares torna mais difícil hoje do que ontem a definição deste “nós”.
31
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

4. As aprendizagens profissionais

Quadro 4 – As aprendizagens profissionais


% ocorrências % alunos

Aprendizagens profissionais 100% 16%


Indefinido 8% 2%
“Uma boa profissão”, ou ligação profissão/futuro/sucesso 25% 6%
Profissão definida 6% 2%
Actividades da profissão evocadas 6% 1%
Estudos ou diplomas necessários evocados 15% 3%
Saberes necessários para exercer a profissão evocada 20% 3%
Comportamentos evocados, o mundo do trabalho... 17% 4%
Procurar um emprego, encontrar uma profissão 3% 1%

As aprendizagens profissionais raramente são citadas nos balanços de saber. Para além
disso, quando são evocadas, é, em metade dos casos, sem referência ao que é preciso
aprender para exercer a profissão: ou o aluno não dá nenhuma precisão ou então fala de
facto do emprego e não da profissão (trata-se então no futuro de encontrar um emprego e,
se possível, “uma boa profissão”) ou, ainda, a profissão só é evocada através dos estudos
ou dos diplomas que são necessários para a ela aceder.
Por outro lado, quando o aluno evoca uma profissão, esta última pode ter uma ligação
muito longínqua, ou até mesmo nenhuma com os estudos que ele segue. Assim, um aluno
escolarizado num ramo de Contabilidade pode aspirar a tornar-se bombeiro sapador, ma-
rinheiro, instrutor de cães ou inspector de polícia...

Graças ao meu pai, aprendi que só havia uma única paixão para mim: bombeiro sapador. Estou no
curso de Contabilidade porque é sempre preciso um contabilista, mesmo nos bombeiros profissionais.
(BEP)
Para mim o que é importante agora é terminar os estudos (ainda faltam 2 anos) e encontrar, espero
eu, um trabalho bem remunerado. De qualquer forma, tenho que fazer a tropa mas conto alistar-me,
talvez, na marinha ou como instrutor de cães no exército. (bac pro contabilidade)
O que espero, por agora, é ter o meu diploma para passar um concurso (inspector da polícia ou agente
à paisana) ou então, se falhar, continuar no ramo de contabilidade. (bac pro)

Na nossa investigação sobre a relação com o saber dos estudantes do collège, tínhamos
constatado que para muitos deles a escola só faz sentido se fizer referência a uma “boa
profissão”, à qual deve permitir o acesso, e não a saberes e a competências que se podem
aí adquirir. Se nós começámos uma investigação sobre a relação com o saber dos alunos de
liceu profissional foi, entre outras coisas, para perceber o que acontecia quando os alunos
do collège eram encaminhados para um estabelecimento escolar definido como profissio-

32
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

nal mas com saída (na melhor das hipóteses...) para profissões que não correspondem ao
que os alunos de collège entendem como “uma boa profissão”. Como mostra o Quadro 4,
para uma esmagadora maioria destes jovens, a orientação no liceu profissional não muda
de facto nada. A lógica deles continua a ser a de que os estudos devem permitir ter uma boa
profissão no futuro, sem que esta profissão seja definida e sirva de ponto de apoio a uma
nova mobilização escolar. A lógica destes jovens continua a ser a do nível, ou pelo menos a
da inserção no emprego, não é uma lógica de inserção numa profissão com especificidades
identificadas e desejáveis.
Além disso, quando a profissão é evocada de forma um pouco mais precisa é mais em
termos de comportamentos requeridos para exercer a profissão ou, de forma mais geral,
para se adaptar na empresa ou na vida profissional32 que em termos de saberes profissio-
nais ou de actividades específicas.

Ao longo dos meus estudos profissionais, já que me encontro a preparar para o exame de contabilida-
de, aprendi a saber comportar-me, a reagir e trabalhar numa empresa porque já fiz um estágio neste
meio profissional.

É a única indicação “profissional” que este aluno de BEP dá no seu balanço; ele não diz
nada acerca dos saberes e das actividades da Contabilidade, quando cita, por outro lado,
Francês, História, Matemática e Inglês.

Mais tarde gostaria de ser fotógrafo e penso que tudo o que aprendi é importante para esta profissão
porque se não for bem-educado ou não falar inglês não serei fotógrafo por muito tempo, mesmo que
tenha as noções básicas da fotografia. (BEP)

Os saberes profissionais propriamente ditos representam menos de 1% do total das


aprendizagens evocadas nos relatos de saber. Por outro lado, a profissão à qual os jovens
aspiram só tem, muitas vezes, uma ligação muito longínqua com os estudos que estão a
fazer. Finalmente, para eles, o comportamento no trabalho parece ser tão importante quan-
to o domínio dos saberes e das actividades profissionais. Nestas condições, os professores
de liceu profissional já não podem apoiar-se nas características da profissão para formar
os jovens, contrariamente ao que se passava há pouco tempo. Eles encontram-se face a ex-
pectativas vagas ou desajustadas que dizem respeito ao futuro, conjugadas com exigências
elevadas quanto ao nível de inserção profissional.

32
É, mais uma vez, a dimensão relacional que surge aqui, desta vez no trabalho. É preciso, contudo, notar
que são geralmente os alunos dos ramos terciários que evocam estes comportamentos que, de facto, cons-
tituem uma parte importante do que se deve aprender para exercer uma profissão no sector terciário.
33
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

5. Em resumo

Nos jovens, o universo da “aprendizagem” é dominado pela questão da relação com os


outros. Para eles, aprender é, em primeiro lugar e sobretudo, desenvolver relações com os
outros, ser capaz de se desenvencilhar no mundo, compreender a vida e as pessoas e, se for
necessário, saber defender-se. Para eles, trata-se de aprender a ser “alguém” (segundo um
termo que reaparece com frequência nas entrevistas), mas isto passa pela aprendizagem
das relações com os outros mais do que por um trabalho de introspecção do eu – e mais
ainda do que por um trabalho de apropriação dos saberes escolares ou mesmo de saberes
e savoir-faire específicos de uma profissão.
A relação com o saber propriamente dita surge de forma particularmente vaga. As acti-
vidades escolares básicas (ler, escrever, contar) têm muito significado para eles. Mas elas
remetem para os inícios da escolaridade e o que se segue não parece tê-los marcado. Eles
vão à escola para fazer aquilo que se deve fazer quando se vai à escola e esperam que esta
conformidade lhes permita ter uma “boa profissão”, ou pelo menos um emprego.
A esfera profissional, pouco evocada nos balanços de saber, parece regida pela mesma
lógica que a esfera escolar. Aí, mais uma vez, a realidade é pouco nítida, o essencial é estu-
dar e obter os diplomas para ter uma boa profissão; nos balanços de saber, a especificidade
dos conteúdos e das actividades da profissão não é mais asseverada que a dos conteúdos e
das actividades da escola – e, por isso, ela não oferece ponto de apoio suficiente para uma
nova mobilização destes jovens para os estudos.
Estes alunos aspiram a ter boas maneiras, a comportar-se bem, a respeitar os adultos,
a estabelecer relações de solidariedade, de amizade, de frontalidade, de confiança com os
outros. Esta insistência para a conformidade e para as relações harmoniosas surpreenderá
qualquer um que frequentou o liceu profissional, nomeadamente nos bairros com uma
reputação difícil... Mas esta conformidade e esta harmonia são um ideal, elas devem ser
conquistadas e os jovens estão orgulhosos de as ter realizado – de forma que as citam de
boa vontade nos seus balanços de saber. Estes jovens vivem num mundo onde correm o
risco permanente de cair na “asneira”, no “delírio”, na perda de confiança em si.
Se parece impossível ou muito difícil ser conforme e estabelecer com os outros rela-
ções harmoniosas (porque se chumba na escola, porque já não há trabalho e ainda menos
“uma boa profissão” na nossa sociedade...), a tentação de “se afundar” na asneira e no
delírio, na violência e na revolta é grande. Estes jovens são portadores de fortes exigências
de triunfo social e pessoal e vivem situações de tal forma tensas que a sua orientação num
liceu profissional não augura a satisfação das suas exigências. Se estas últimas parecem
vãs, ou se a tensão é muito forte, os jovens podem ceder e, para recuperar os seus termos,
“delirar”, “mergulhar”, “afundar-se”. Quanto mais vulneráveis, mais concedem impor-
tância às relações: cortar com os amigos – esses amigos que os arrastam para o delírio,
fenómeno fundamentalmente colectivo – é uma experiência muitas vezes insuperável. É
de tal forma insuperável que em frente não existe quase nada: os saberes e as actividades
34
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

não fazem sentido, a esperança de uma “boa profissão” que, de facto, é um estatuto social
vago mais do que um conjunto de saberes e actividades identificados e desejáveis.
Contudo, é preciso notar que só se trata de um retrato ideal-tipo dos alunos de liceu
profissional. Tomar em consideração a singularidade dos sujeitos e da sua história, a partir
das entrevistas, vai levar-nos a ilustrar este retrato. Ela revelará, nomeadamente que o
liceu profissional pode transformar a relação destes jovens com os estudos – mas através
de outros processos que não a formação num trabalho específico (com excepção de uma
minoria).

35
 AP. 3
C
ONDE APRENDERAM ELES
E COM QUEM?

As aprendizagens evocadas nos balanços de saber podem fazer referência, por um lado, a
lugares (onde aprenderam eles?) e, por outro lado, a agentes de aprendizagem (quem os
ensinou?).

1. Os lugares de aprendizagem

21% das ocorrências registadas não podem ser relacionadas com um lugar33. As outras repar-
tem-se assim: 38% referem-se à família, 35% à escola, 20% ao bairro, 7% a outros lugares.
Os quadros apresentados em anexo (A9 a A12) permitem proceder a uma análise deta-
lhada. Contentemo-nos, aqui, em pôr à vista alguns resultados.
A que lugares atribuem os jovens as aprendizagens mais significativas nas nossas aná-
lises precedentes?
• As aprendizagens intelectuais e escolares (AIE) referem-se de forma maciça à escola
(84%) e um pouco (11%) à família.
• As aprendizagens profissionais (APro) referem-se muito à escola (83%), completada
por “outros lugares”, que remetem sobretudo para os lugares de estágio (13%).
• As aprendizagens relacionais e afectivas (ARA) ou ligadas ao desenvolvimento pes-
soal (DP) referem-se antes de mais à família (48% de ARA, 45% de DP), depois ao
bairro (30% de ARA, 23% de DP), à escola (15% de ARA, 23% de DP) e outros
lugares (7% de ARA, 10% de DP).

Mas pode também colocar-se a questão inversa: que aprendizagens consideram eles ter
feito neste ou naquele sítio?34
33
Em compensação, algumas referem-se a dois lugares. Exemplo: eu aprendi a ler na escola e com a
minha família; neste caso, esta aprendizagem conta duas vezes: refere-se à escola e à família. De maneira
que o número total de ocorrências contabilizadas no Quadro A9 (3 933) é um pouco superior ao número
de ocorrências apresentado no Quadro A1.
34
Metodologicamente, é importante distinguir esta questão da precedente: Assim, uma aprendizagem
pode ser maciçamente atribuída a um lugar e ser, ao mesmo tempo, raramente evocada nos balanços de
saber: o lugar aparecerá então com uma forte percentagem quando a referência for a própria aprendiza-
gem, mas esta aprendizagem atingirá uma fraca percentagem quando a referência for o meio. Por exemplo,
49% das aprendizagens desportivas são afectas ao bairro mas, tendo em conta o fraco peso deste tipo de
aprendizagem no total dos relatos, só representam 4% das aprendizagens dos jovens no bairro. Existem
aqui dois tipos de informação de igual interesse mas é preciso tomar cautela e não confundir.
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

• Na família, antes de tudo ARA (48% de aprendizagens atribuídas à família) e DP


(12%), completadas pelas tarefas familiares (9%) e AIE (7%);
• Na escola, antes de mais AIE (60% de aprendizagens atribuídas à escola), mas tam-
bém ARA (16%), DP (6%) e APro (10%);
• No bairro, essencialmente ARA (58%) e DP (11%), bem como aprendizagens ligadas
aos tempos livres e a actividades lúdicas (11%);
• Outros sítios, ARA (34%) e DP (13%).

Pelo menos, três pontos pedem um comentário especial.


Em primeiro lugar, a família é, para estes jovens, o primeiro lugar de aprendizagem.
Ela não é esse deserto cultural que às vezes se denuncia35. Ainda por cima, é antes de mais
na família que o jovem faz as aprendizagens que para ele são as mais marcantes. O centro
da gravidade do universo da “aprendizagem” destes jovens está aqui, nas aprendizagens
relacionais, afectivas e pessoais que ele faz na sua família – e, numa escala mais pequena,
no bairro.
Em segundo lugar, os balanços de saber fazem surgir uma complementaridade entre a
família e a escola, uma repartição das tarefas que correspondem muito bem ao que cada
uma destas instâncias exibe como sendo a sua especificidade. A família é o lugar das
aprendizagens básicas, quotidianas, afectivas, relacionais, pessoais; ela é também, como
veremos, o espaço onde se aprende a “boa educação”. A escola, para os jovens, é antes de
mais o lugar das aprendizagens intelectuais e profissionais. A família e a escola são dois
mundos nitidamente diferentes.
Esta diferença não é absoluta. Na escola, os jovens também fazem aprendizagens afec-
tivas, relacionais e pessoais – mas mais com os colegas do que com os funcionários da
instituição... Inversamente, 11% das aprendizagens intelectuais e escolares referem-se à
família; para quase metade (46%) trata-se da ajuda que a família dá para aprender a “ler,
escrever, contar”. É nesta questão das aprendizagens básicas que a semelhança entre a
família e a escola é maior. Isto significa que para estas famílias populares, tal como para
os seus filhos (que ainda falam destas competências nos balanços de saber, dez anos mais
tarde), “ler, escrever, contar” não é uma aprendizagem escolar como as outras; para elas
é uma aposta forte da escola, uma actividade que tem o mesmo significado – e por acrés-
cimo uma actividade onde estes pais têm mais competências que em outros domínios da
escolaridade.
Todavia, se a família e a escola não são dois mundos estanques, eles constituem, aos
olhos dos jovens, dois espaços de aprendizagem profundamente diferentes: não há muitas
semelhanças entre o que se aprende na família e o que se aprende na escola. Isto não quer
dizer que o que se passa na família não tenha impacto na escola e vice-versa, mas que
estes efeitos provavelmente não resistem à natureza das aprendizagens realizadas em cada
Na condição de se considerar que a aprendizagem da relação com os outros e consigo próprio não tem
35

dimensão cultural – o que me recuso a fazer.


38
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

uma das instâncias (pelo menos para os filhos das famílias populares). Pode, sem dúvida,
estender-se estas conclusões das crianças aos seus pais, como outras investigações, no-
meadamente as de Marie-France Doray (1989) ou de Ruth Kohn (1992), incitam a fazer.
Considera-se então que, aos olhos dos meios populares, a família e a escola são espaços de
aprendizagem nitidamente distintos. Este dado permite compreender melhor porque é que
os pais, a priori, não sentem necessidade em encontrar os professores ou os auxiliares das
salas de estudo: as aprendizagens escolares não pertencem ao espaço familiar, que só tem
que assegurar que a criança é “séria” e faz de facto os trabalhos de casa.
Notemos, por fim, que as aprendizagens referidas pelos jovens a este ou àquele lugar
fazem mais ou menos sentido para eles. Na família, e numa certa medida no bairro, os
jovens aprendem o que parece ser o mais importante no seu universo: as aprendizagens
afectivas, relacionais e ligadas ao desenvolvimento pessoal. Ora, a escola não conta muito
para este tipo de aprendizagens. Inversamente, a escola é essencial para as aprendizagens
intelectuais e escolares, que pesam menos nos balanços de saber. Dito de outra forma, para
estes jovens a escola conta pouco, lá onde a aprendizagem faz mais sentido (e aí conta
mais como um espaço de colegas do que como instituição oficial) e está muito presente no
que toca às aprendizagens que menos sentido fazem. A relação destes jovens com o saber
permite concluir que, na escola, existe um défice de sentido para eles.
Atenção, porém, para não se interpretar este balanço de saber como uma nova versão
de um “handicap sociocultural” imputável aos jovens e às suas famílias. Tudo leva a pen-
sar, nos dados que recolhemos, que este défice de sentido, por mais enraizado que esteja
na relação com o mundo, é também o efeito de práticas da instituição escolar e dos seus
agentes.
Assim, a missão que a escola apresenta de boa vontade como sendo prioritária é pre-
cisamente aquela que os jovens referem em menor número em relação à escola: enquanto
que 84% do total das aprendizagens intelectuais e escolares (AIE) são evocadas por rela-
ção com a escola, apenas 69% deste conjunto foi agrupado na rubrica “pensar, reflectir, ser
crítico, imaginar...”. Que esta seja a rubrica de tipo intelectual que menos se refere à escola
leva a interrogações sobre as práticas efectivas desta última36.
De igual modo, é interessante observar de mais perto a rubrica “Política, sociedade,
ideologia, religião” (Quadro A9). De uma maneira geral, os alunos de liceu profissional
evocam pouco as aprendizagens deste tipo (2% do total das ocorrências). Mas, quando
falam delas, em primeiro lugar, eles fazem referência à família (38%), depois à escola
(25%), a outros lugares (22%) e ao bairro (16%). Dito de outra forma, a socialização
explícita, que era uma missão essencial da escola republicana triunfante, está hoje muito
negligenciada, e quando existe, ela advém da família e até do conjunto “bairro + outros
36
“Prefiro estar no trabalho que na escola.” [P.: Porquê?] “Bem, porque para começar és muito mais
livre... tens a liberdade de pensar, que na escola não existe. Se o professor é... ele é parvo, só pensa nele,
não tens a liberdade de pensamento. Nunca se deve contradizer um professor, no fim de contas deves ser
como um cãozinho, senão estás marcado e, então aí, é o fim” (entrevista realizada com um empregado de
armazém, que fez um bac pro de estruturas metálicas – cf. cap. 12).
39
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

lugares” mais do que da escola. Existe aqui um ponto que merece reflexão se se conside-
rar, por um lado, que este aspecto da socialização é importante para integrar jovens que
devem enfrentar, com frequência, problemas identitários ligados à origem dos seus pais,
por outro lado, que uma tal socialização explícita poderia ser a vertente escolar (reflexiva)
de um conhecimento do mundo, da vida, das pessoas que interessam estes jovens, muito
centrados nas questões relacionais. Se a escola padece de um défice de sentido é também
porque ela não se esforça suficientemente para fazer pensar, reflectir, imaginar e ajudar
os alunos a melhor compreender a vida, as pessoas, o mundo. A relação com o saber que
nós apreendemos através destes relatos não é o efeito de uma “natureza” dos alunos, ela
construiu-se na intersecção a partir da sua relação (social) com o mundo e das práticas da
instituição escolar.
Em terceiro lugar, a questão das aprendizagens profissionais também merece atenção.
Notemos, antes de mais, que estas últimas se referem de forma maciça à escola (83%),
mas estão pouco presentes nos balanços de saber. Os jovens têm perfeita consciência que
é o liceu profissional que lhes permitirá realizar estas aprendizagens, mas estas últimas,
contrariamente ao que se poderia supor a priori, não fazem muito sentido (relembremos
que elas só representam 4% do total das aprendizagens citadas nos relatos). A hipótese
segundo a qual a natureza das aprendizagens propostas pelo liceu profissional permitiria
dar um novo significado à escola e uma nova mobilização aos jovens – hipótese que im-
bui fortemente as políticas educativas – surge aqui de forma falhada. Se existe uma nova
mobilização (e veremos que é efectivamente o caso para uma parte destes jovens), ela não
depende fundamentalmente da natureza do que é ensinado. O que tira qualquer pertinência
ao argumento que pretende justificar a orientação para o liceu profissional por um pretenso
e misterioso gosto pelo concreto (supondo que alguém tenha acreditado...).
Às 83% das aprendizagens profissionais que se referem à escola, acrescentam-se 13%
evocadas em relação a “outros lugares”, o que significa aqui os locais de estágio. Não são
os mesmos tipos de aprendizagens profissionais que são, assim, relacionados quer com a
escola, quer com os estágios. Estes últimos são, de facto, evocados a propósito de activida-
des (75% das ocorrências deste tipo fazem referência a “outros lugares”) e comportamentos
necessários para aprender a vida numa empresa (43%). Em compensação, a escola é o lugar
dos saberes profissionais (100% das ocorrências), da aprendizagem de uma “boa profissão”
(100%), dos estudos e dos diplomas que permitem exercer a profissão (92%). A escola é
o lugar dos saberes e das esperanças, o estágio é o lugar das actividades e dos comporta-
mentos. Encontra-se aqui uma outra forma de dissociação e de complementaridade dos
lugares. A escola é certamente portadora de esperanças que fazem profundamente sentido
(os estudos, o diploma, a boa profissão) mas, em matéria de aprendizagens, ela está do lado
do saber enquanto os estágios estão do lado da actividade e, novamente, do relacional.
O universo da “aprendizagem” destes jovens é um universo muito sujeito a clivagens,
organizado por lugares onde os tipos de aprendizagens não se escondem. Aquilo que faz

40
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

mais sentido encontra-se do lado da família, do bairro, dos estágios. A escola distingue-
‑se bem na sua especificidade de saberes, mas estes últimos, quer sejam “intelectuais”
ou profissionais, ocupam apenas um lugar secundário no universo dos jovens. Falta-lhes,
fundamentalmente, a dimensão do relacional: o viver em conjunto, o lado afectivo, ou
pelo menos o que permite compreender melhor o mundo, a vida, as pessoas, as relações
com os outros e consigo próprio. A família, o bairro, “outros lugares” são lugares de emo-
ções. Para estes jovens, a escola não o é, raramente aí se encontra a emoção, até mesmo a
emoção ligada à actividade intelectual.

2. O espaço das aprendizagens afectivas, relacionais e pessoais: a família, a escola e


o bairro

Como é que os tipos de aprendizagens relacionais e afectivas (ARA) e ligados ao desen-


volvimento pessoal (DP) se repartem entre os lugares37?
Para guiar esta análise, dispõe-se de 1 482 ocorrências ARA (das quais 20% não preci-
sam o lugar) e 406 ocorrências DP (das quais 26% não precisam o lugar). Os quadros A11
e A12 (anexo) permitem fazer, se se quiser, uma análise detalhada, que me permite seguir
directamente para as conclusões principais, a partir de uma apresentação de cada lugar.

1. A família surge como o lugar onde os jovens aprenderam:


• a conformidade (portar-se bem, obedecer, ser bem-educado, respeitar...);
• a autonomia (ter confiança em si, desenrascar-se, ser responsável...);
• o voluntarismo (ultrapassar as dificuldades, ser calmo e paciente, atingir um objec-
tivo...).

A um nível menor, acrescentam-se as relações de harmonia-solidariedade (vida em


comum, solidariedade, confiança, amor, amizade...), “conhecer as pessoas e a vida”, e
“aquilo que sou”. Em compensação, defender-se, não transgredir e divertir-se não são
aprendizagens que se referem com frequência à família.
Este ideal-tipo da família exige alguns reparos.
Notemos, antes de mais, que a família é, por excelência, para estes jovens, a instância
onde se aprende a ser conforme e a ser bem-educado. Aqui, estamos muito distantes dos
discursos sobre a demissão da família que, muitas vezes, se ouve no mundo docente. Nós
estamos ainda mais longe dela quando o voluntarismo surge como a terceira característica
mais importante da família, depois da conformidade e da autonomia.
Sem dúvida, existem famílias que não conseguem impedir que os adolescentes entrem
em actividades delituosas e mesmo famílias que tiram partido destas actividades:

É inútil dissecar as categorias AIE e APro: as ocorrências fazem referência de forma maciça à escola e
37

encontra-se esta referência nas subcategorias. Já utilizei, na análise precedente, os números significativos.
41
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Quando entrei na escola fiz um amigo que me ensinou a desenrascar-me sozinho e é a coisa de que
mais me orgulho. Por exemplo, agora já não peço dinheiro aos meus pais, são eles que mo pedem. Até
consegui encontrar trabalho para a minha tia, todos me agradeceram, estava muito orgulhoso de mim.
Os meus pais ensinaram-me muitas coisas sem querer, ex.: quando se vive numa família que morre de
fome já não se pode ser honesto, é preciso vigarizar ao máximo para nos safarmos. (BEP)

Mas, estes casos são marginais, em todos os sentidos do termo. O que nos diz a esma-
gadora maioria destes jovens passa pelo esforço dos seus pais para lhes incutirem normas.
Citemos alguns rapazes – já que é a propósito deles que a escola suspeita da demissão dos
pais.

Os meus pais educaram-me bem porque aprendi muitas coisas: não roubar, não me drogar, não fumar.
(3T)
A minha mãe proibiu-me de fumar ou de beber álcool. (BEP)
Em minha casa, recebi toda a espécie de moral e conselhos para que a minha vida, mais cedo ou mais
tarde, não esteja em perigo. (BEP)
Desde que nasci, os meus pais ensinaram-me o respeito pelos outros, sobretudo pelas pessoas mais
velhas do que eu, como é que a vida actual se desenrola, o que é preciso fazer para sobreviver e é
preciso ter sempre amigos bem comportados e honestos (...) é preciso saber conter-se para não fazer
asneiras com pessoas que não querem ficar quietas para poder continuar os seus estudos e dirigir as
suas vidas. (BEP)

Notemos, igualmente, que a família é muito pouco conflituosa para estes jovens: eles
não vivem a família como um lugar onde é preciso defender-se e desconfiar da transgres-
são. Também não é, inversamente, um lugar para “se divertir”, mesmo que tal aconteça.
De maneira geral, a família surge como um lugar onde não existem grandes tensões. É um
lugar onde se aprende a solidariedade com os outros, ao mesmo tempo que se constrói aí
a sua autonomia, onde se aprende a vida em comum mas também a ter confiança em si, a
ajudar-se mas também a “desenrascar-se”.
Notemos, ainda, que a família surge igualmente como um lugar de construção de sen-
tido: da vida, das pessoas mas também de si-próprio (“aquilo que sou”). Ela é além disso,
deste ponto de vista, um lugar equilibrado: estes jovens aprendem também a conhecer a
vida no bairro, mas aprendem pouco se pensarmos no tempo que lá passam, aprendem
também quando estão na escola, mas nela aprendem pouco a conhecer a vida.
Reparemos, por fim, que estas características mais importantes reenviam muito para
as da família popular “tradicional” francesa, operária ou rural: é preciso ensinar a estas
crianças a bem comportar-se, a ser autónomos, a existir de forma firme, a ser solidários e
a conhecer a vida e as suas próprias possibilidades. Sem dúvida, alguns destes traços são
claramente acentuados pelas culturas de origem dos pais destes jovens (ser bem-educada
para as raparigas, ser autónomo para os rapazes), mas o que aqui está em causa são as mo-

42
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

dulações de uma cultura que encontrou assim a forma de gerir a sua posição de dominado
(de uma cultura popular) mais do que uma cultura de fundamento étnico-religioso (de uma
cultura “de origem”).

2. A escola38 surge, antes de mais, como um lugar de aprendizagem:


• a harmonia-solidariedade;
• e, num nível menor, a conformidade;
• em compensação, “não transgredir” é pouco evocado em relação à escola.

No campo do desenvolvimento pessoal, atribui-se-lhe, antes de qualquer coisa, o vo-


luntarismo, completado pela autonomia e um trabalho reflexivo sobre si-próprio (“aquilo
que sou”).
A escola: lugar onde se quer triunfar, onde se aprende a “desenrascar-se” sozinho,
lugar que ajuda à tomada de consciência de si. Sob esta escola oficial, e ainda mais preg-
nante, está a escola lugar de vida, de amizade e de solidariedade com os amigos.
Esta relação com a escola também exige alguns reparos.
O resultado mais surpreendente é que a escola surge nestes relatos como um lugar
de harmonia – solidariedade mais do que conformidade. A escola lugar da harmonia, da
solidariedade mais do que da conformidade ideológica, da castração institucional, da con-
corrência selvagem? Depois destes relatos terem baralhado a representação da família
demissionária e laxista, eles baralham assim a da escola como lugar de conformidade e de
rivalidade. Mas ainda é preciso analisar bem estes dados.
A escola contribui efectivamente, de forma notável, para a aprendizagem da harmonia
e da solidariedade – a um ponto que é a aprendizagem de tipo relacional ou pessoal mais
citada a propósito da escola. Contudo, a harmonia e a solidariedade ainda se aprendem
mais no bairro e na família do que na escola. De facto, a escola prolonga aqui o que se
passa no bairro e na família: é a propósito dos amigos e não dos professores (salvo ex-
cepção, está claro) que estes jovens evocam as relações de amizade, de entreajuda e de
solidariedade. A escola da qual estes jovens falam aqui não é a instituição oficial, aquela
onde são alunos, ao lado de outros alunos e face aos professores, mas o lugar de vida, em
parte subterrânea e intersticial, onde eles encontram cada dia os amigos e onde eles estão,
precisamente, mais preocupados em ter amigos do que estar em conformidade com as
normas da instituição oficial.
Estas normas não são vãs para eles: os seus balanços de saber evocam também a con-
formidade a propósito da escola. Contudo, é na família, muito mais que na escola, que
estes jovens aprendem a ser bem comportados, a obedecer, a respeitar os adultos, etc. O
38
Relembremos que as instruções convidam o aluno a dizer o que aprendeu desde que nasceu. Por isso,
aquilo que os alunos dizem sobre a escola nos seus balanços de saber não remete só para a experiência do
liceu profissional mas para a “escola” no sentido mais lato do termo, que inclui os diferentes lugares onde
eles foram escolarizados.
43
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

facto de a questão da transgressão (“aprender a não” fazer asneiras, roubar, enganar...)


ser pouco citada a propósito da escola vai no mesmo sentido. A instituição escolar e os
professores lastimam com frequência as fraquezas da “relação com a lei” nos jovens e
atribuem-nas à família e ao bairro. Ora, nestes relatos, parece que a família tenta inculcar
normas aos filhos, que o bairro os confronta com a tentação e o refúgio da transgressão e
que a escola só desempenha um papel secundário na aprendizagem de normas relacionais
e marginal na aprendizagem do refúgio da transgressão. A escola não está em boa posição
para se queixar da diluição da relação com a lei nos jovens.
Notemos, por fim, que para estes jovens, de todos os lugares, a escola é onde se apren-
de menos a conhecer a vida e as pessoas (ainda menos que “em outros lugares”). Nós já
tínhamos ressalvado que estes jovens não atribuem um papel à escola no plano da socia-
lização política, ideológica, religiosa: de uma maneira geral, a escola não surge nestes
relatos como uma instância de construção do sentido da existência. Em compensação,
ela parece contribuir para um trabalho reflexivo do jovem por si próprio: por um lado, as
aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal fazem muita referência à escola (23%)
ao contrário das aprendizagens relacionais e afectivas (15%); por outro lado, a escola
participa de forma significativa na tomada de consciência de “aquilo que sou”. À falta de
os ajudar a conhecer a vida e as pessoas – o que para estes jovens é o mais importante – a
escola ajuda-os a conhecerem-se melhor a si próprios39.

3. O bairro surge, antes de mais, como um lugar onde se aprende:


• a harmonia-solidariedade;
• a não transgredir;
• a ser autónomo.

Ele tem uma influência real, ainda que mais fraca, sobre todos os outros itens (inclusive
“conhecer a vida” e “aquilo que sou”), com excepção a “estar conforme – portar-se bem”.
Esta ligação ao bairro tem como principal característica a ambivalência – a menos que
totalize as respostas dos dois subgrupos nitidamente diferenciadas (não sendo estas duas
interpretações, aliás, exclusivas uma da outra).

No bairro, aprendi a defender-me, a responder às ameaças. Comecei a conduzir motas e carros, a ir a


outros bairros para andar à porrada. Conheci a violência, aprendi que para não ser gozado é preciso ter
dinheiro e para ter dinheiro é preciso cometer crimes. (3T)
No meu bairro, com os meus amigos, eu aprendi alguma coisa e isso é a melhor coisa porque com eles
é como se estivesse protegido de toda a gente. (...) No meu bairro eu gosto muito dos meus amigos e
39
Na investigação sobre os liceus gerais e tecnológicos, levada a cabo por É. Bautier e J.-Y. Rochex
(1998), a construção de si surge como um desafio essencial para os liceais e que dão sentido ao que lhes
é ensinado, investindo o que aprendem neste desafio. Os jovens escolarizados no liceu profissional estão
mais virados para os outros e para o mundo do que para eles mesmos mas, nesta configuração diferente, a
escola desempenha igualmente um papel no trabalho reflexivo sobre si.
44
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

com eles pelo menos não estou sozinho e quando tenho um problema por causa desta escola eles estão
do meu lado para o discutirmos. (BEP)
Os meus amigos mostraram-me que precisavam mais do meu apoio, da minha ajuda do que precisa-
vam de palavras vindas de adultos que só sabem pregar a moral. (BEP)

O bairro é um lugar onde não se aprende o bom comportamento e onde existe o ris-
co permanente de cair na asneira. Mas é também o lugar dos amigos, da solidariedade;
com os amigos, nós divertimo-nos, apoiamo-nos, desabafamos, podemos conversar. No
cruzamento destas duas características, é um lugar importante para aprender a se desen-
rascar e a ser autónomo (menos do que na família, mas mais do que na escola), um lugar
onde, simultaneamente, temos que nos defender, onde é preciso ser responsável, podemos
divertir-nos, aprendemos a conhecer a vida, as pessoas, nós-próprios. O bairro é um lugar
de socialização importante, ambivalente, ao mesmo tempo perigoso e reconfortante, amea-
çador e bastante tentador.

4. Por fim, estes jovens realizam algumas aprendizagens em “outros lugares”. Aqui é
preciso raciocinar com prudência: por um lado, estão reagrupadas sob esta etiqueta residu-
al lugares que podem ser muito diferentes (uma discoteca, um sítio de férias, de estágio...);
por outro lado, muito poucas ocorrências fazem referência a estes lugares (78 ARA, 29
DP). “Outros lugares” aparece sobretudo como um espaço de liberdade, de descoberta do
mundo, de autonomização. Não é um lugar de tensão (o peso de “se defender” e de “não
transgredir” é pouco), mas antes de descontracção (rir, divertir-se).

Esta análise subtil da repartição das aprendizagens relacionais, afectivas e pessoais


confirma aquilo que já mostrava a análise global. A família, o bairro, os amigos não só
asseguram uma grande parte destas aprendizagens mas, além disso, aparecem como sendo
dominantes em relação às aprendizagens mais importantes aos olhos dos jovens (portar-se
bem, as boas relações com os outros e a solidariedade, a autonomia e o desenrascanço).
Longe de ser demissionária e laxista, a família aparece preocupada em educar bem os
filhos e como fonte de voluntarismo, apesar de poder ser vivida como lugar de opressão.
Longe de ser muito simplesmente lugar de perdição ou, ao contrário, lugar de solidarie-
dades populares, o bairro é vivido por estes jovens de forma ambivalente: é um lugar ao
mesmo tempo perigoso e solidário, um lugar bastante excitante onde se aprende a viver
– para o melhor e para o pior. Este não é o domínio de maior influência da escola. A escola
“versão instituição” contribui para a aprendizagem das normas e do voluntarismo (mas
muito menos do que a família nos dois casos), não acrescenta nada ao conhecimento da
vida e das pessoas, mas participa no trabalho reflexivo do adolescente sobre ele próprio.
A escola “versão amigo” desempenha um papel importante na aprendizagem da amizade
e da solidariedade. Nestes balanços de saber, nem a família, nem o bairro... nem a escola

45
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

correspondem ao discurso frequente que a escola tem sobre a família, sobre o bairro, sobre
ela própria.
Existe uma outra forma de abordar estas questões: através das pessoas características
destes diferentes lugares – pais, amigos, professores. É o que faremos agora ao nos debru-
çarmos sobre os “agentes de aprendizagem”.

3. Os agentes de aprendizagem

Nos balanços de saber os alunos evocam com frequência os lugares onde aprenderam. Às
vezes, eles vão mais além: utilizam uma fórmula que designa uma pessoa, um grupo de
pessoas, às vezes um lugar, como agente de aprendizagem. Por exemplo, eles dizem: a
minha mãe ensinou-me, os amigos ensinaram-me, a escola ensinou-me (fórmula diferente
de “na escola, eu aprendi”). Estas ocorrências foram registadas40.
As 789 ocorrências, produzidas por 366 alunos que citam pelo menos um agente de
aprendizagem (69% dos alunos), repartem-se assim:
• agente familiar (pessoa da família ou a própria família enquanto designada como
agente que ensina e não como simples espaço no qual se aprende) – 45%41;
• agente escolar (professores ou a própria escola como agente) – 19%;
• agente juvenil (colegas e amigos, quer sejam os da turma ou os do bairro, bem como
as raras ocorrências que remetem para o próprio bairro42) – 19%;
• “outros” – 16%.

A análise dos tipos de agentes evocados confirma aquilo que a análise dos lugares nos
ensinou: não só a família e o bairro como lugares mas também os membros de família e os
amigos como agentes ocupam um espaço importante no universo da aprendizagem destes
jovens. De notar que os amigos, enquanto agentes de aprendizagem, são tão citados como
os professores. É preciso perceber bem o que isto quer dizer: no universo de aprendizagem
40
Só foram tidos em consideração os agentes de aprendizagem relacionados com uma aprendizagem
determinada, excluindo enumerações prévias ou finais de pessoas que me ensinaram (“com os meus pais”,
“com os meus professores”..., cada fórmula, é de alguma maneira posta em evidência sendo seguida de
uma longa enumeração). Também foram deixados de lado “ensinaram-me”, muito vago, e “eu aprendi”,
forma básica repetida à exaustão nos relatos (mas foram retidas “eu aprendi por mim próprio” ou “eu
aprendi sozinho”). Um agente só é tido em conta uma vez por balanço; por exemplo, se um aluno cita o
seu pai várias vezes num texto, eu só tomo nota uma vez.
41
Ainda que esta percentagem seja provavelmente subestimada (por prudência metodológica). De facto,
quando os jovens utilizam expressões como “os meus familiares” ou “o meu círculo” (classificado em
“outros”), é provável que o mais frequente é que pensem na sua família. Da mesma maneira, a televisão,
por vezes evocada como agente de aprendizagem, pertence ao espaço familiar.
42
Eram possíveis várias classificações e eu tive que fazer escolhas. Assim, classifiquei os camaradas de
turma com os amigos do bairro como “agentes juvenis”, mais do que como “agentes escolares” – o que
leva a considerar como agentes escolares aqueles que representam a instituição enquanto tal. Em compen-
sação, os irmãos, irmãs, primo(a)s foram classificados como “agentes familiares” e não como “agentes
juvenis”. De facto, eu queria avaliar o peso respectivo da família, da instituição escolar enquanto tal e do
grupo de “amigos”.
46
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

destes jovens, os amigos são tão importantes como os professores (na condição, está claro,
de neutralizar, como aqui, a importância do que se aprende com cada tipo de pessoas).
Também nos podemos interessar pela maneira como é citado o agente de aprendiza-
gem. De facto, as expressões utilizadas nos relatos permitem distinguir os agentes nomea-
dos através de um lugar, os que são designados como grupo genérico e os que aparecessem
sob uma forma individualizada. Por exemplo, um aluno pode dizer “a escola ensinou-me”
(lugar), “os professores ensinaram-me” (grupo genérico) ou “o meu professor de Francês
ensinou-me” (pessoa individualizada).
Quer seja familiar, escolar ou juvenil é sob a forma de grupo genérico que o agente de
aprendizagem é citado com mais frequência. Contudo, existem diferenças, muito sensí-
veis, na forma como os jovens evocam os diversos tipos de agentes:
O agente familiar é evocado como:
• grupo genérico (60%);
• pessoa individualizada (29%);
• lugar que me ensina (11%)43.

O agente escolar é evocado como:


• grupo genérico (60%);
• lugar (33%);
• pessoa individualizada (7%).

O agente juvenil é maioritariamente genérico (96%).


A aprendizagem através da família surge assim muito mais individualizada que a
aprendizagem através da escola ou dos amigos. No espaço familiar muito mais do que
em outros lugares, aqueles que aprendem são indivíduos apreendidos e nomeados na sua
singularidade. O grande número de ocorrências (358) permite aqui entrar nos detalhes:
são citados enquanto grupo genérico: “os meus pais” (181 vezes), “os meus irmãos e (ou)
irmãs” (12 vezes) e a família alargada (avós, tias e tios, primos e primas) (22 vezes). São
evocados enquanto agentes individualizados na sua singularidade (cf. Quadro A23): a mãe
(38 vezes), o pai (21 vezes), o irmão (17 vezes), a irmã (17 vezes) e diversos membros da
família alargada (10). Do ponto de vista da aprendizagem, a personagem central do núcleo
familiar é, então, a mãe mais do que o pai44. De notar igualmente que o irmão e a irmã
são, cada um deles, quase tão citados como o pai e que eles são evocados, com muito mais
frequência, sob uma forma individualizada mais do que sob uma forma genérica.
Em compensação, a escola é vista como agente de aprendizagem enquanto lugar ins-
titucional (“a escola ensinou-me”, “o liceu ensinou-me”) ou grupo genérico (professores,
43
Notemos, no entanto, que a ocorrência “família” é ambígua porque ela tanto pode designar o lugar
como o grupo humano (enquanto que a ambiguidade é muito menor para “escola” ou “bairro”). Eu reparti
as ocorrências numa ou noutra categoria em função do contexto onde surge a ocorrência.
44
Mas é preciso distinguir, como será feito mais adiante, as respostas dos rapazes e as das raparigas.
47
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

“profs.”, preceptores). Ela é muito pouco individualizada; ela só surge sob esta forma 10
vezes (“o meu professor”, “o meu preceptor”, “a minha prof. de secretariado”... ou um pro-
fessor chamado pelo nome). Existe aqui um resultado que merece uma atenção particular.
Para estes jovens, não é na sua singularidade que o professor é agente de aprendizagem mas
enquanto exerce a sua função professoral. Em oposição a um modelo inicial, do tipo mestre
– discípulo, construído com base numa relação pessoal, aqui distingue-se um modelo esta-
tutário que repousa em relações funcionais pouco personalizadas. É enquanto instituição ou
grupo genérico que a escola “me ensina” e não através da acção de indivíduos singulares.
Ora, já o vimos, estes jovens dão uma grande importância às relações. Além disso, tanto no
liceu profissional como no terceiro ciclo, eles esperam que o professor “fale com eles”, de
pessoa para pessoa. É, por isso, provável que esta ausência de laços singulares no universo
escolar contribua para que a escola se torne pouco suportável para estes jovens.
Quanto aos amigos, é enquanto grupo que eles ensinam algumas coisas aos jovens.
Sob uma nova forma, encontra-se aqui uma pregnância do colectivo no grupo de pares.
A pressão do grupo é tão forte que distanciar-se das regras do grupo é, sem dúvida, muito
difícil: numa lógica binária, ou se pertence ao grupo ou não e é muito difícil assumir uma
posição de sujeito para se distanciar das regras e continuar a ser membro do grupo.
Finalmente, quem são esses agentes classificados na categoria “outros”45?
• O próprio jovem – encontra-se em 35 balanços de saber (10% dos que nomeiam pelo
menos um agente de aprendizagem) uma fórmula do tipo “eu aprendi sozinho”, “eu
próprio”;
• A televisão ou a rádio (10 vezes);
• As “pessoas de idade madura” (ou “os adultos”, “as pessoas muito mais velhas”) (oito
vezes). A importância da idade e da experiência raramente é citada mas não desapa-
receu totalmente aos olhos destes jovens (não esqueçamos a importância do respeito
pelos mais velhos em certa culturas “tradicionais”, nomeadamente mediterrâneas);
• A namorada (seis vezes) ou o namorado (uma vez). Há um processo interessante:
o namoro faz com que alguns jovens conheçam formas relacionais novas e produz
assim um efeito de cisão que pode reestruturar o seu universo de aprendizagem (para
casar é preciso um apartamento e meios de subsistência, logo dinheiro, logo trabalho,
logo diplomas, logo significa ser “sério”);
• Um agente “profissional” – encontramos três vezes “os estágios ensinaram-me”, bem
como “esta gerente de perfumaria” e “um tutor na empresa” (ou seja, cinco balanços
em 533...). Esta raridade do agente profissional (mais raro que a namorada...) confir-
ma, mais uma vez, que a dimensão profissional está pouco marcada no universo da
aprendizagem destes jovens, ainda que escolarizados no liceu profissional;

45
Cf., em anexo, os Quadros A21, A22, A23.
48
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

• Agentes muito diversos – “pessoas”, professores de piano ou de desporto extra-esco-


lar, vizinhos, polícias, a ama, a vida, os livros, a Bíblia e Deus, as viagens, a escola
de condução, a natureza.

Se os agentes de aprendizagem são, antes de mais, evocados de forma genérica, o mais


importante, sem dúvida, é reter que existem diferenças significativas grandes entre a fa-
mília, formada por pessoas, a escola, enquanto instituição e os amigos que constituem um
grupo etário. A ligação ao outro enquanto agente de aprendizagem toma formas diferentes
nestes três casos. A relação consigo próprio enquanto estudante terá, então, também for-
mas distintas. Na família, o “Eu” que aprende é mais sujeito que no bairro ou na escola. Na
escola, ele é mais objecto da acção da instituição. Com os amigos, ele aprende enquanto
membro do grupo.

49
 AP. 4
C
O QUE É IMPORTANTE PARA
ELES? QUAIS SÃO AS SUAS
EXPECTATIVAS?
A relação com o tempo

O que é importante aprender e quais são as expectativas? A questão convida o aluno a


hierarquizar as suas aprendizagens e a explicitar as suas expectativas.
Ao ser-lhe pedido que diga o que aprendeu desde que nasceu e quais são as suas expec-
tativas, a questão incita-o igualmente a posicionar-se no tempo. Ora, a questão do tempo é
uma daquelas questões às quais é necessário dar muita atenção quando se analisa a relação
com o saber (Charlot, 1997).

1. O que é importante para eles? Quais são as suas expectativas?

Na maioria das vezes, os alunos deram uma resposta global a estas duas perguntas; da mes-
ma forma, elas foram escrutinadas tendo em consideração que se tratava de um só texto.
455 alunos em 533 (ou seja, 85%) dão uma resposta mínima quer a uma, quer a outra
(cf. Quadro A24, em anexo). De notar que 20% não respondem à pergunta sobre a hierarqui-
zação e que 14% ignoram a questão sobre as expectativas (respondendo, sempre, nos dois
casos, à outra questão). A indicação é interessante: é mais fácil para um aluno falar sobre
os seus desejos do que sobre o que é mais importante para ele. Isto acontece, sem dúvida,
porque a tarefa não é a mesma do ponto de vista cognitivo: hierarquizar implica que se tome
alguma distância para considerar o conjunto das aprendizagens e avaliar cada uma delas de
forma comparativa; escrever sobre as nossas expectativas é projectar-se no futuro e centrar o
seu pensamento sobre si próprio no contexto. Ora, precisamente a nossa investigação sobre
o collège mostrou-nos que era difícil para estes jovens constituir um objecto de pensamento
no qual eles próprios não estivessem implicados (Charlot, Bautier & Rochex, 1992).
Algumas respostas são de tal forma vagas que estão próximas de uma não resposta.
Alguns pensam que “tudo” é importante ou esperam “tudo”, enquanto que outros, em
compensação, respondem “nada”46. Outros, ainda, esperam que “tudo corra bem”, “o que
se segue”, “as próximas etapas da vida”, ou até “que tudo isto me serve”.

Mas a maioria destes jovens escolhe esta resposta como complemento (à mesma pergunta ou a outra),
46

detentor de informação.
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Aprendi a disciplina, a respeitar as pessoas do meu meio, a delicadeza, a responsabilidade, a tolerân-


cia, a lealdade. Tudo é importante. Eu não espero nada. (BEP, balanço integral)
Para mim o importante é continuar. Agora espero o que se segue. (BEP)
Eu espero o que a vida nos reserva porque não podemos dizer nada, porque se vive o dia-a-dia como
toda a gente. (BEP)
O que eu espero de tudo isto é que isto me sirva realmente. (bac pro)

Alguns alunos rejeitam a questão das expectativas argumentando de forma inte-


ressante: uns fazem-no num tom sombrio ou cínico: não há nada a esperar da vida
– com excepção, para alguns, da “guita” (isto é o dinheiro). Outros afirmam que não
vale a pena esperar mas desenvencilhar-se sozinho, fazer com que o futuro aconte-
ça.

O que é que é importante para mim em tudo isto? Nada disto importa quando trabalhas toda a tua vida
para acabar no túmulo. E agora eu espero o fim da minha vida. (BEP)
Agora não estou à espera de nada, antes pelo contrário. Aos 18 anos, já tenho a impressão de ter
aprendido demasiado. (BEP)
Eu não espero nada!! Eu vivo a minha vida como toda a gente. Eu sigo o meu destino. Quero ir o mais
longe possível e ter a melhor profissão para ter muita “GUITA!”. (bac pro, balanço integral)
Agora não penso conseguir nada de especial, não, não estou à espera de nada. Aprendo e sigo em
frente. (bac pro)
Eu não espero nada da vida. Sobretudo não espero que alguém trabalhe para mim e me sustente. Quero
ser independente e o meu objectivo são, em primeiro lugar, os diplomas. (BEP)
Eu não estou à espera de nada, não se deve ficar à espera, deve-se fazer com as coisas aconteçam. (bac
pro, balanço integral)

Contudo, no total, mais de 80% dos jovens dão uma resposta um pouco mais precisa
a pelo menos uma das perguntas sobre o que é importante para eles e quais são as suas
expectativas.
Dois tipos de respostas predominam nitidamente (cf. Quadro A24):
• 42% dos alunos evocam a escola, os estudos ou o diploma;
• 42% falam também do trabalho, da profissão ou do emprego.

Estas duas respostas articulam-se, com frequência, uma na outra: 42% dos que citam
a escola ou os estudos e 34% dos que evocam o diploma associam-nos explicitamente ao
trabalho; inversamente, dentre aqueles que colocam o trabalho em primeiro lugar, 23%
associam-no explicitamente aos estudos e 23% ao diploma.
Assim, o que é importante para estes jovens e/ou o que eles esperam é antes de mais
ir à escola, estudar e obter os diplomas para mais tarde ter um trabalho, um emprego, uma
“boa profissão”. A constelação estudos-diploma-trabalho está no seio das suas expectati-
vas.
52
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

O saber não faz parte desta constelação. Só 13% dos alunos (ou seja, 67 em 533) evo-
cam “saber mais”, “aprender mais”, “descobrir coisas”, “a cultura”, “reflectir” ou “ler e
escrever” como sendo importante ou como qualquer coisa que eles esperam. Só 8 alunos
associam explicitamente o tema do trabalho ao do saber.
Assim, a escola e os estudos são importantes mas é a escola enquanto instituição que
distribui diplomas, e então um passaporte para o emprego, que é aqui evocada, muito mais
do que a escola enquanto lugar de aquisição de saberes. Da mesma maneira, o trabalho é
mais pensado como actividade social do que como realização de saberes e de competên-
cias profissionais. O tema do trabalho, o facto de aprender mais, a cultura só encontram
nesta configuração um lugar marginal e mesmo quando o saber é evocado é sempre sem
grandes laços com o trabalho. O que nós avançámos na nossa investigação sobre o collè-
ge (a partir de análises quantitativamente menos precisas) verifica-se de novo aqui: é a
relação institucional escola-diploma-trabalho que é importante para estes jovens, muito
mais que o saber. O importante para eles é frequentar a escola e, mais tarde, ter um bom
contrato, sem que uma relação forte se estabeleça entre escola e saber, saber e trabalho. A
sua relação com a escola não se articula sobre um eixo saberes-actividades profissionais,
definidos nos seus conteúdos específicos, mas sobre um eixo estudos-emprego, apreendi-
dos em termos de nível.
A partir daí, e contrariamente ao que muitas vezes se pensa, o encontro com os sa-
beres e os savoir-faire profissionais não mobilizam, enquanto tal, estes jovens (salvo
excepções, é claro): os saberes, quer sejam gerais ou profissionais, não estão no centro
da sua relação com a escola e a sua relação com o trabalho significa o acesso a um nível
social mais do que a uma “profissão”, enquanto realização de saberes específicos. Se
existe uma nova mobilização (e às vezes existe) é porque o liceu profissional oferece
uma nova oportunidade de acabar os estudos e obter diplomas – ainda por cima, estudos
relativamente longos e diplomas relativamente elevados. Para eles, o essencial é ter êxito,
obter um diploma, se possível continuar os estudos e de qualquer maneira encontrar um
(bom) trabalho.
Não é ao saber que os estudos e o trabalho estão associados, mas sim à felicidade fa-
miliar, ao amor, aos amigos, ao conforto material, à independência – àquilo que para eles
é uma “vida normal”, uma “bela vida”, “conseguir”.
Acontece, certamente, que eles só falem da escola ou do trabalho ou, inversamen-
te, que evoquem uma bela vida futura sem abordar a questão dos estudos ou do tra-
balho.

Eu só espero terminar a escola e ter os meus diplomas. (BEP)


Neste momento, estou à espera do meu diploma e nada mais. (bac pro)
Agora, estou à espera de encontrar trabalho, antes de ter o meu bac pro.
E agora, aquilo que espero é ter uma bela casa, um bom carro e construir uma pequena família com
crianças bonitas, (bac pro)

53
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Contudo, na grande maioria dos casos, eles associam o tema dos estudos ou do traba-
lho e o da felicidade familiar e da bela vida47. Como escreve um aluno de BEP: “O meu
diploma, um bom trabalho, logo uma vida feliz”.

A única coisa que é importante para mim é conseguir um BEP. O que espero é ter uma longa e bela
vida à minha frente. (R., 3T)
Espero ir o mais longe possível nos meus estudos. E encontrar a mulher da minha vida. (3T, R.)
Espero de mim próprio um bom nível escolar e conseguir o meu ou os meus diplomas e encontrar um
trabalho numa empresa de manutenção ou noutro lugar. Casar-me, ter filhos e viajar por vários países
do mundo. (R., BEP)
O que é importante é ter uma boa profissão, uma mulher, uma casa e um carro. E agora espero pelo
sol, a praia, as mulheres em fato de banho. (R., BEP)
O principal para mim é estar viva, ter uma pequena família, algum sítio onde viver, um abrigo. E
agora, espero conseguir o meu BEP para, mais tarde, ter uma profissão. (Ra., BEP)
Aquilo que espero é simples, ter um bom trabalho e talvez alugar um pequeno apartamento, uma
coisa simples! E talvez ter filhos para lhes dar uma educação como a que os meus pais me deram.
(Ra., BEP)
E agora, espero ter os meus diplomas, dinheiro e mulheres. (R., bac pro)
O que eu espero agora é ter um bom trabalho, um bom marido e bons filhos. Mas também que toda a
gente seja feliz, que a guerra acabe. (Ra., bac pro)
Agora, o que é importante para mim é o trabalho, a dinheiro, o amor e a minha mãe. (bac pro, Ra.)
O que eu espero agora é poder entrar na vida activa, ter um apartamento e viver de forma independen-
te, contudo, em relação à vida activa, penso que isso será cada vez mais difícil por causa do desem-
prego que actualmente nos assola. (Ra., bac pro)
O mais importante para mim é tentar acabar os meus estudos [ter os diplomas todos de uma vez], ter
uma boa situação profissional para poder enfim apostar na minha vida sentimental e até familiar mais
tarde. (Ra., bac pro)

A análise quantitativa faz surgir os temas seguintes, que formam uma constelação com
“estudos-diploma-trabalho” (cf. Quadro A24)48:
1. A família, actual (7% dos alunos) ou futura (13%);
2. A vida (88 alunos, ou seja 16%). A fórmula mais frequente é “uma boa vida” (ou
uma “bela vida”, “feliz”, “normal”, “melhor”) mas encontra-se também “melhorar a
minha vida” (ou “triunfar na vida”), “fazer”, “construir”, “gerir” a minha vida;

47
O tema da família e dos filhos é referido tanto pelos rapazes como pelas raparigas.
48
A percentagem de alunos que citam esses temas é inferior à percentagem de alunos que citam os estudos
ou o trabalho. De facto, há muitas maneiras de evocar a bela vida que se espera, de forma que esta refe-
rência à bela vida se encontra quantitativamente distribuída entre diversos temas. Assinalemos igualmente
que se a maioria dos alunos tem expectativas muito “clássicas”, uma parte de sonho subsiste em alguns:
ter êxito desportivo, até mesmo artístico, a um alto nível (não frequente, mas não raro), voltar ao meu país
(raro). Por outro lado, muitos pensam em alistar-se no exército.
54
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

3. Ser autónomo e “desenrascar-me” (40 alunos, ou seja, 8%), bem como “tornar-me
adulto”, “ser maior de idade”, “ter confiança em mim” (12 alunos, ou seja, 2%);
4. Os temas afectivos, relacionais e ligados ao desenvolvimento pessoal (1 a 5% de-
pendendo dos temas). Em relação a este ponto, estes jovens consideram, antes de
mais, importante, ou esperam, o amor, a amizade, a sociabilidade (dar-se bem com
toda a gente, ser prestável com os outros, comunicar com os outros, compreendê-
‑los), a solidariedade, o respeito, mas também compreender a vida, conhecerem-se
a eles mesmos, tornarem-se mais perfeitos e evoluir. Aqui, encontram-se temas
longamente evocados na parte dos seus textos em que fazem o balanço do que
aprenderam;
5. Ser capaz (80 alunos, ou seja, 15%). “Ser capaz” representa uma espécie de síntese
do conjunto da constelação que acabámos de descrever. É, também, simultaneamente
associado à vida (27 alunos) e ao trabalho (25), aos estudos (19), ao diploma (7). En-
contra-se também “mostrar que fui capaz” (2), “ser reconhecido”, “ser alguém” (4).

Finalmente, estes alunos são jovens e para eles o quotidiano tem também a sua im-
portância: eles querem divertir-se, tirar partido da sua juventude e esperam pelos fins-de-
‑semana e pelas férias... Apesar disso, eles não são insensíveis aos temas sociopolíticos
(citados por 5% deles). Eles esperam que o mundo mude, que seja melhor, que as pessoas
sejam felizes e eles lastimam ou denunciam a guerra e a violência, o racismo, o desempre-
go, a miséria e a pobreza, o destino das crianças, a droga e a sida.
A análise, tanto quantitativa como qualitativa, coloca assim em evidência uma cons-
telação de dados, que remete para a configuração base da relação destes jovens com a
escola, o trabalho, o futuro, a vida. É preciso estudar e obter diplomas para ter um trabalho,
o que permite ter a sua autonomia, construir uma família, triunfar na vida e ser alguém,
enfim ter uma boa vida. Eis, fundamentalmente, o que para eles é importante, o que eles
esperam da existência. Eles esperam que os estudos lhes permitam atingir estes objectivos.
Neste sentido, não existe nestes jovens (salvo excepção, evidentemente) uma “cultura
anti-escolar”: a escola, inclusive para os alunos de liceu profissional, é a chave do êxito,
do reconhecimento social, da vida feliz. Mas, apesar disso, a mobilização quotidiana em
actividades de aprendizagem efectivas é para eles difícil porque eles valorizam pouco o
saber ou mesmo a actividade profissional nos seus conteúdos específicos. O paradoxo apa-
rente está aí: estes jovens, nos seus balanços de saber, não evocam conteúdos de saberes,
nem de actividades profissionais mas dizem, contudo, que o importante são os estudos, os
diplomas, o trabalho, o emprego.
Retomemos, de forma um pouco sintética, os dados deste problema.
Estes alunos são escolarizados num liceu profissional. De acordo com a sua natureza
e a sua missão (definidas pelo L e o P de LP), esta instituição tenta transmitir-lhes saberes
(gerais e profissionais) e prepará-los para actividades características do seu futuro traba-
lho.
55
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Ora, nem esses saberes, nem essas actividades, naquilo que têm de específico, mobi-
lizam os jovens.
Certamente, adquirir saberes faz sentido para uma minoria deles: apesar de tudo, 13%
dos alunos evocam o saber quando se lhes pergunta o que é importante para eles e quais
são as suas expectativas. “Eu tento aprender o máximo de coisas para o meu próprio in-
teresse”, escreve um aluno de BEP. Mas, trata-se aqui de uma posição pouco comum. A
maioria dos alunos opta mais por uma posição vaga e passiva, pouco mobilizadora: “É
sempre bom saber mais”, como escreve um deles. Alguns são mais radicais, como este
aluno de BEP: “Em suma, aprende-se muitas coisas que não servem para nada e contam
muito e não se aprende muita coisa que seja verdadeiramente interessante”. Muitas coisas
inúteis, desinteressantes mas que contam muito: a fórmula resume bem o problema com o
qual os jovens se confrontam.
A questão da actividade profissional é um pouco mais complexa. Mais uma vez, en-
contramos aqui uma minoria de jovens “com vocação”, para quem a actividade faz sen-
tido: desde sempre que querem ser padeiro, fotógrafo, bombeiro (mas nem sempre estão
em secções profissionais que levam a estas profissões). Inversamente, alguns reduzem o
trabalho a uma actividade instrumental, cujo conteúdo não tem, enquanto tal, uma grande
importância: “A minha vida baseia-se em torno dos meus amigos (feminino e masculino),
os estudos é só para viver”. Mas a maioria aspira a “uma profissão que goste”, “uma pro-
fissão que me agrade”. Mas do que é que eles gostam na profissão? Não é tanto a natureza
das actividades específicas da profissão mas mais a atmosfera relacional dessa profissão,
isto é, o tipo de relação com o mundo e com os outros que ela permite: uma profissão dinâ-
mica, onde se tem responsabilidades, onde se comunica, onde se ajuda os outros... Dito de
outra forma, o que lhes agrada verdadeiramente na profissão é, precisamente, aquilo que
o liceu profissional, que não é um espaço de trabalho em tamanho e tempo reais, não lhes
pode proporcionar49. O espaço relacional do liceu não é o do trabalho mas o dos amigos.
Nem os saberes, inclusive profissionais, nem as actividades profissionais são muito
mobilizadores enquanto tais: os pontos de apoio que implicam o próprio nome do liceu
profissional (L e P) são esquivos.
Contudo, de forma aparentemente paradoxal, os alunos que não evocam o saber e a
actividade nos seus balanços respondem em seguida que os estudos e o trabalho são as
coisas mais importantes. Mas não são os estudos e o trabalho, no seu conteúdo específico,
que contam: é o diploma e o emprego no seu significado social. Por detrás do paradoxo
aparente, os jovens são lógicos e coerentes: o que eles retêm das aprendizagens que
merecem ser citadas nos seus balanços é o mesmo que esperam da vida. O importante, nos
dois casos, é a relação com os outros, a família, os amigos, é o mundo, a vida, as pessoas,
e eles próprios no meio de tudo isto. Eles aspiram a encontrar aquilo que foi importante
para eles na sua juventude – ou a construir o que, por vezes, não tiveram. Mas eles devem

49
Embora por vezes o liceu o simule.
56
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

encontrá-lo e construí-lo enquanto adultos, independentes, com a sua família e tudo o que
lhe pertence (casa e carro), empenhados em relações afectivas e sociais de adultos. Ora, o
diploma e o emprego são indispensáveis para aceder enquanto adulto ao que é importante
na vida; eles fazem a passagem (no sentido de ritual do termo) entre a vida de jovem e a
vida de adulto bem sucedido50.

A escola ocupa metade na nossa vida para que no fim tenhamos aprendido algumas coisas (...) Eu
espero ser mais “velha” [adulta] para poder viver uma espécie de segunda vida e poder ter a certeza
daquilo que os meus pais me dizem hoje em dia. (BEP)
Eu aprendi na escola a coisa mais importante que é a educação escolar para uma vida mais tarde, no
futuro e agora o que eu espero disto tudo é ser bem sucedido na minha vida profissional, assim como
na minha vida futura graças à escola, claro. (BEP)
A escola é uma grande instituição que nos inculca as regras da vida e do respeito, ela dá-nos um di-
ploma que nos permite viver. (BEP)
Conclusão: hoje em dia, é primordial ter um bom nível de estudos para poder entrar na vida activa.
(bac pro)

A vida actual, a vida de liceal é só uma primeira vida e os jovens esperam impacien-
temente51 uma “segunda vida”, uma “vida mais tarde no futuro”, a vida de adulto definida
pelo trabalho, o casamento, os filhos. Algumas fórmulas, como já reparámos, são muito
fortes: não é muito fácil entrar na vida activa e tudo acontece como se a escola entregasse
um passaporte (chamado diploma) “que permite viver” – o que significa também que o
insucesso escolar impede de viver...

2. A relação com o tempo

“Para mim o importante é continuar. Agora estou à espera do que se segue” (BEP). Esta
frase exprime muito bem a posição mais frequente destes alunos face ao tempo: eles fazem
o ponto de situação do que lhes acontece “neste momento”, “até agora” e esperam “o que
se segue”, “mais tarde”. Existe um curso normal do tempo: é-se criança, tenta-se tirar par-
tido da sua juventude mas também ter boas notas, conseguem-se os diplomas, encontra-se
um trabalho, encontra-se uma casa, casa-se, tem-se filhos. Assim é o curso das coisas
nas quais os jovens se inscrevem, o de uma vida “normal”. “E agora espero ter uma vida
normal. A minha própria vida” (bac pro). “O que é importante para mim é ter uma vida
normal mais tarde” (bac pro). Certamente, alguns temem um pouco a rotina: “Eu espero
ter uma vida NORMAL ou se possível uma vida que seja diferente das outras, que não seja
ROTINEIRA, uma BANALIDADE” (BEP). Mas para a maioria deles levar esta vida já é
50
Está bem à vista aqui porque é que é um erro profundo acreditar que o trabalho já não é um valor para
os jovens. Ele marca o estatuto de adulto, assim como certos ritos em sociedades de outrora ou distantes.
51
“Agora espero o final do ano para finalmente poder fazer os meus exames” (BEP); “ainda faltam dois
anos de espera” (bac pro).
57
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

um triunfo. “Tudo isto é um bocado banal, eu sei, mas para começar se já tiver isto serei
muito feliz, depois veremos...?” (bac pro). Não devemos esquecer que esta vida normal
nem sempre lhes é assegurada no presente e ainda é menos um dado adquirido quando o
desemprego a pode tornar impossível.
Este curso normal do tempo liga as gerações entre elas.

Mas o que no meu coração tem mais importância é, claro está, a minha infância porque se eu não
tivesse tido esta infância feliz e equilibrada, creio que a escola não se teria passado como passou (...)
Eu estou à espera de acabar os estudos e encontrar um trabalho digno do esforço destes estudos. E
talvez encontrar a alma gémea, casar-me e talvez até ter filhos. Eu espero esse momento para poder
dar à minha mulher e aos meus filhos o que os meus pais me deram, ou seja toda a vida deles, de
paciência, de regras e sobretudo de amor. Para que este amor possa ser dado outra vez aos meus netos.
E depois de tudo isto, penso que esperarei pela morte sereno e calmo porque sou muito crente e que
terei realizado o meu sonho mais maravilhoso. (BEP)
O que eu espero da vida futura é que seja bem sucedida; toda a gente deseja que a vida corra bem mas
por causa do desemprego não se pode prever se se será feliz. Eu serei bem sucedido na vida quando
constatar que os meus filhos serão felizes na vida deles. (bac pro)

Ainda que os alunos sejam jovens eles evocam com frequência a sua família futura. Ter
filhos, para eles, assenta no curso normal de uma vida feliz52. A este respeito, é interessante
notar que a questão da filiação, do laço entre as gerações é muito mais importante para
estes jovens do que a ligação ao país de origem53. Por um lado, não é o país que é impor-
tante, mas sim os pais e a ascendência; por outro lado, a questão do laço entre gerações é
tão importante na relação com os seus futuros filhos do que na relação com os seus pais.
Estes jovens preocupam-se mais com o futuro da sua descendência do que com a memória
da origem da sua ascendência.
Surge, assim, nos balanços redigidos por estes jovens uma das características mais
importantes da realidade migratória: migrar é afastar-se do seu passado e projectar-se em
direcção a um futuro desconhecido. A migração é uma aposta no futuro e, por isso, é um
“erro” cingir sempre a análise da migração na problemática da “origem”. Existem “atri-
buições à origem” que acorrentam a um dado momento aqueles que são assim atribuídos,
assim como a residência fixa acorrenta a um lugar. Pensar o fenómeno migratório unica-
mente através da categoria de origem é de facto acorrentar o migrante ao seu passado, ao
“trabalho de imigrante”, a uma posição social dominada e, ainda por cima, esta atribuição
é estendida aos seus filhos, recusando o direito a um futuro diferente aos migrantes e aos
seus filhos. Para estes jovens a ruptura migratória feita pelos seus pais está consumada;
52
Contudo, surge, no balanço de saber de um aluno de BEP: “Agora espero terminar os meus estudos,
depois encontrar um trabalho e ficar solteiro”.
53
A questão da origem surge nos balanços de saber através do tema da filiação, seja em discursos de protesto
contra o racismo, que estes jovens ressentem nos mais diversos lugares, momentos e situações da sua existência
(inclusive na escola). Além disso, alguns, que nasceram no estrangeiro e que sentiram pessoalmente a imigra-
ção, evocam um eventual retorno ao seu país de origem se não encontrarem trabalho em França.
58
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

o problema deles consiste em inscrever o seu futuro e o dos seus filhos no tempo do país
onde nasceram e onde nascerão os seus filhos.
A relação destes jovens com o tempo é, pois, a relação do curso das coisas e da vida: o
importante é continuar, esperar “o que se segue” para si e os seus filhos. Mas a vida tam-
bém não é um longo rio tranquilo: o curso normal do tempo é desorientado, e por vezes
interrompido, por rupturas, felizes ou infelizes, previsíveis ou acidentais. A análise dos
balanços faz surgir acontecimentos que pontuam a existência e por vezes a perturbam. Ao
lê-los tem-se com frequência o sentimento que eles estão (ou estiveram) no fio da navalha
e que a sua vida poderia (ou pôde) oscilar entre o sol ou a sombra depois de um aconteci-
mento, de um encontro. A vida deles pode oscilar, comutar em torno de um determinado
acontecimento e que existe, então, um “antes e um “depois”.
Estes acontecimentos são com frequência acontecimentos familiares: separação ou di-
vórcio dos pais, falecimento de um deles, imigração ou ida e volta entre a França e o seu
país de origem, mudança de casa ou acontecimentos mais misteriosos só evocados pelos
alunos com meias palavras.

Aos 13 anos percebi que dois seres (que eram os mais amados) podiam separar-se e detestar-se. Por
volta dos 15 anos aprendi que este fenómeno se chamava “divórcio”. E para mim, eu não conseguia
perceber isso porque até à data eu ignorava-o e acreditava que era impossível viver uma coisa assim
tão horrível. É por isso que os meus 4e e 3e do collège roçaram a catástrofe e que apesar da minha
escolha cheguei à escola de Saint-Denis inscrito em materiais flexíveis. (BEP)

Embora a ruptura entre os pais surja quase sempre de forma negativa também acontece
que ela seja referida de forma positiva:

A minha mãe não tratava de nós. Depois da minha madrasta ter chegado aprendi muitas coisas.
(BEP)
Eu sempre estudei em escolas normais e tinha decidido estudar gestão, um ensino secundário em
Gestão mas infelizmente a vida tinha decidido de outra forma. A meu ver, eu chumbei o meu 3e por
causa das idas e vindas entre a França e o meu país, depois já não podia continuar (...). (BEP)
No bairro, aprendi o significado da palavra “amigo”, fazíamos muitas coisas juntos, saíamos, contá-
vamos anedotas e tudo uns aos outros, não escondíamos nada, até ao dia em que mudei de casa, o que
representou para mim um vazio enorme. Um mundo onde toda a gente se fecha e falo com conheci-
mento de causa. Vivi coisas inimagináveis. (BEP)

A ruptura no curso do tempo pode também assentar na escola. Numa primeira versão,
a ruptura é negativa: o comportamento de um professor ou a entrada no collège provocam
uma ruptura, depois uma deriva. A segunda versão é positiva: determinado professor ou
determinada orientação (nomeadamente para o LP) enceta um começo, às vezes seguido
de uma verdadeira conversão escolar. Este começo pode, aliás, não ser provocado pela

59
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

escola mas através de familiares, amigos, vizinhos. Às vezes, mas mais raramente, é um
choque profissional que protagoniza a ruptura.

Eu não fiz nada durante anos, mas agora visto tudo o que se passa, eu vou finalmente acabar os meus
estudos, o BEP para mim é como uma saída de emergência, que muita gente critica, mas eu acho que
o BEP é para os alunos que, como eu, perceberam que “quem não arrisca não petisca”, que querem
safar-se, graças ao BEP vou poder fazer aquilo que me agrada!!! (BEP)
Eu ia à escola para armar confusão, eu andei em muitas escolas entre o 6e e o 4e e ao chegar a L.
apercebi-me que estava às portas da vida activa e tomei consciência da importância da escola graças
a algumas pessoas do meu bairro “vai à escola, é a única maneira de te safares, se tiveres más notas
nem podes estar certo de que terás um trabalho medíocre”; então, depois de ter feito o 4e pela segunda
vez as minhas notas melhoraram e o meu comportamento melhorou e agora espero ir o mais longe
possível nos estudos. (3T)
Tudo aquilo que sei devo-o à perfumaria Yves Rocher em L.G. Esta gerente de perfumaria teve um
prazer verdadeiro em me ensinar tudo que diz respeito a tratamentos de rosto e como se deve maqui-
lhar uma cliente (...) E agora espero pelo fim dos meus estudos, daqui a dois ou três anos, e fazer tudo
o que estiver ao meu alcance para tentar gerir uma perfumaria daqui a sete anos porque é o meu maior
sonho, ser gerente de uma perfumaria. (bac pro)

A ruptura pode surgir também com: o desgosto amoroso, os “esquemas”, a droga (ou
o abandono da mesma), a descoberta de uma religião.

A mim, tudo aquilo que me interessa é a minha namorada e acabar os estudos para ter um bom traba-
lho para mim e a minha namorada, estou a borrifar-me para o resto. (BEP)
Aprendi a não infringir a lei bem como a justiça graças (ou por causa de) a uma malfadada história
que me fez reflectir. (BEP)
Aprendi a rezar a Deus, nosso único salvador. Isso aconteceu automaticamente e ao mesmo tempo eu
comecei a falar com pessoas. (BEP)

O tempo da vida é assim marcado por rupturas que perturbam o curso normal das coi-
sas, para o bem e para o mal.
Alguns abandonam-se no decorrer dos acontecimentos e são sacudidos pela vida, com
mais ou menos fatalismo.

Eu não sei muito bem o que esperar disto tudo porque existem muitas coisas que nos esperam quando se
está nas últimas, de momento eu não tenho nada em vista porque não sei bem o que fazer. Há alturas em
que estou farto de tudo e quero acabar com tudo sem me pôr em questão. (BEP)
No meio de tudo isto não há nada que seja importante porque estou arrependida de ter feito todas as
asneiras que fiz quando era pequena e agora continuo a fazê-las, mas é a vida, e faz parte da minha
personalidade, não posso fazer nada. (BEP)
Eu aprendi as coisas da vida, ou seja, os gritos, as raivas, o cansaço, em suma, a vida (...) Agora, es-
pero que as coisas aconteçam e logo se verá com o futuro. (BEP)
Mas quando se está vivo deve-se estar à espera de tudo, sobretudo do pior. (BEP)

60
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Pelo contrário, há outros que acham que é preciso “fazer as coisas acontecerem” por-
que “nada acontece sem esforço”. Longe de se deixarem levar pelo ritmo dos aconteci-
mentos, pela inércia e pela incerteza do tempo, eles estão decididos a lutar para avançar,
evoluir, acumular trunfos e desenrascar-se. Eles esperam um dia colher os frutos dos esfor-
ços feitos no liceu profissional e vingarem-se assim daqueles que não acreditaram neles.
Eles esperam também que o seu próprio triunfo constitua uma espécie de trampolim para
os seus filhos. Eles aspiram às mesmas coisas que os outros (um trabalho, uma família...),
eles também se inscrevem no tempo longo da vida normal e do laço entre as gerações,
eles também sabem que um acidente pode romper o curso do tempo mas demonstram uma
vontade de lutar para ultrapassar os problemas e ter uma vida normal.

Mas o que para mim é importante em tudo isto é ter uma vida bem sucedida, ter uma profissão que
goste (como decoradora de interiores). Não ter mais problemas familiares. Triunfar na minha vida,
seja ela laboral ou familiar, porque gostaria de fundar uma família, ser feliz com o homem que amo,
eis aquilo que é importante para mim e é por isso que vou à escola, para sair com experiência para a
vida futura. Mas tudo o que sei é que conseguirei tudo isto sozinha porque trata-se da minha vida e
não da dos outros, por isso devo lutar sozinha para ter aquilo que desejo. (BEP)
O mais importante no dia de hoje é avançar porque cresci num meio de pouca cultura. A Escola
ensinou-me as coisas básicas, mas eu aprendi o resto na vida quotidiana. Que era preciso antes de mais
avançar, apesar dos problemas que podem surgir. (bac pro)
Independentemente daquilo que serei, nunca me arrependerei porque para lá chegar tive que lutar
sozinha sem nunca ouvir um elogio mas sempre reparos, críticas, críticas, mas estou-me nas tintas
porque um dia provarei a todos esses malvados que eles estavam enganados e aí eles arrepender-se-
‑ão. (BEP)

O isolamento a curto prazo foi apresentado, com frequência, como uma das caracte-
rísticas das classes populares – e a falta de “projecto” como uma das causas do insucesso
escolar dos seus filhos. Os dados recolhidos não vão de maneira nenhuma neste sentido.
Estes jovens inscrevem-se no tempo longo da “vida normal” e da sucessão das gerações.
Mas a sua relação com o tempo não é a relação “estratégica” das classes médias, que
tentam planificar para os seus filhos percursos a longo prazo que lhes assegurem triunfo
e mobilidade social ascendente. Por um lado, é necessário estar seguro dos seus pontos
de apoio para planear a longo prazo; ora, os jovens de famílias populares e os seus pais
estão expostos à instabilidade que estas rupturas provocam, que são uma ameaça cons-
tante. Por outro lado, estes jovens não planeiam projectos mirabolantes, eles têm um
projecto muito simples, tão simples que as classes médias (nomeadamente os professo-
res e os assistentes sociais) não vêem que ali reside um projecto: ter uma vida normal. O
seu projecto é ter um trabalho, um apartamento, um carro, filhos, férias... ou seja, tudo
aquilo que para as classes médias é uma realidade evidente e por isso, para eles, não
constitui um projecto.

61
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

A relação com o tempo destas famílias e dos seus filhos é uma relação de luta: uma
vida normal conquista-se e as conquistas transmitem-se aos filhos. Sem dúvida, nem todos
dão provas do mesmo voluntarismo nesta luta e alguns deixam-se levar pelo fatalismo.
Mas não é menos verdade que para todos eles se trata de um conflito que decorre no
tempo: uma confrontação entre o curso normal da vida e os acidentes “malfadados” que o
vêm perturbar e por vezes dissuadi-lo; alguns recompõem-se através de forças misteriosas
que assim passam a reger-lhes a vida, outros envolvem-se no combate. A sua relação com
o tempo é, então, de tipo “táctico” e não “estratégico”, para retomar a distinção muito
pertinente de Michel de Certeau: não se trata de planear a longo prazo (o que haverá então
a planear quando o percurso ao qual se aspira é definido pelo próprio curso da vida “nor-
mal”?) mas de enganar os constrangimentos e de tentar tirar partido dos próprios acidentes
da vida. Estes jovens não desenham a priori o projecto da sua vida, numa reacção de tipo
tecnológico, eles “fazem bricolage” no próprio curso da sua existência: eles reorientam os
seus projectos a curto prazo para atingir o seu “projecto” a longo prazo (uma vida normal),
eles procuram compromissos entre o seu desejo de viver a sua juventude e a necessidade
de acabar os seus estudos.

Fui eu que escolhi esta direcção embora não estivesse muito entusiasmado. O meu sonho era ser vete-
rinário, mas agora que estou nesta turma não estou descontente. Nós aprendemos logo uma profissão,
neste liceu profissional temos todo o material necessário. Agora aquilo que espero é acabar os estudos
para poder encontrar um bom trabalho. (BEP)
Tomei consciência que devia viver a minha juventude mas sem negligenciar os estudos porque tenho
amigos que estão arrependidos de terem perdido os estudos porque agora, sem qualificações, estão à
nora. É por isso que vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para evitar que me aconteça o mesmo,
sobretudo com o desemprego que existe hoje em dia. (BEP)

O desemprego, de facto: este verdadeiro buraco negro que introduz uma ruptura abso-
luta no curso do tempo e que barra o acesso a uma vida normal de adulto. O desempregado
não dispõe de tempo, ele saiu fora do tempo, fora do curso normal das coisas – ou se pre-
ferirmos, ele está mergulhado num tempo que não flui.

62

CAP. 5
FORMAS E DOMINANTES DOS
BALANÇOS DE SABER
A relação com o mundo, com os outros e consigo
próprio

Fazer o levantamento e contar ocorrências, da forma como o fiz, conduz à desarticulação


dos textos e a um tratamento de um conjunto de unidades justapostas. Este processo tem
a vantagem de produzir a inteligibilidade segundo um método cujo rigor pode ser contro-
lado – e ele é ainda mais legítimo quando os próprios textos provêm com frequência de
enumerações. Mas o texto escrito pelo aluno deve ser analisado igualmente como um dis-
curso organizado segundo certos princípios formais que apresentam por vezes dominantes
de tema ou de tom.

1. O que é que nos ensina a análise formal dos balanços de saber

Escrever um texto, mesmo muito simples, significa reter certas coisas e silenciar outras,
evocar umas antes das outras, deixar a pena fluir ao correr das palavras ou, pelo contrá-
rio, organizar o texto segundo uma ordem, etc.; em suma, significa organizar o mundo e
adoptar uma determinada postura face a este mundo. A análise formal dos balanços de
saber também nos pode informar sobre a relação com o mundo dos jovens que os redi-
giram.
Estes jovens apropriam-se da questão, inflectem-na, contornam-na, transgridem-na e,
por vezes, rejeitam-na.
Alguns recusam-na explicitamente: “É pessoal”, “Quem ousou colocar perguntas tão
estúpidas?”, “Estas perguntas são estranhas”. Outros cumprem a tarefa escrevendo um
texto minimal, com frequência uma enumeração sumária, sem frases. Outros, ainda, ser-
vem-se do balanço para o utilizarem em proveito próprio, falando de uma paixão, de um
tema que lhes é caro ou de uma preocupação; assim, um centra o seu texto em desenhos
animados japoneses, outro só fala da desintoxicação do seu amigo toxicodependente.
Alguns respondem à primeira pergunta, depois à segunda, depois à terceira, mas mui-
tos, nas suas respostas, não seguem a ordem das perguntas: por exemplo, eles podem co-
meçar por uma primeira lista de aprendizagens importantes (o que corresponde à segunda
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

questão) e completá-la em seguida com outras coisas aprendidas, a fim de responder à


primeira pergunta.
Alguns são ostensivamente provocadores, de um modo divertido (eu aprendi a engatar
as raparigas...) ou mais trágico (com frequência sobre o tema da droga). Outros, pelo con-
trário, manifestam uma evidente preocupação de conformidade.
Estes jovens não são redutíveis a um modelo único e simples e os seus balanços
de saber também não. Contudo, os alunos que absorvem de facto a premissa escrevem
textos que se organizam segundo duas formas básicas: a enumeração, dominante, e
o relato, menos frequente. A enumeração surge por vezes como uma resposta dócil e
minimal à premissa, mas ela pode ser igualmente um longo inventário que multiplica
e diversifica as aprendizagens. Os balanços organizados sob forma de relatos ou são
estruturados com referência ao cursus escolar ou apresentam-se sob forma de mini-
‑relatos de vida.
Eis dois exemplos de enumeração. A primeira é sumária e minimalista, a segunda é
substancial. Trata-se, nos dois casos, de balanços integrais de alunos de BEP54.

Em minha casa aprendi a andar, a comer; no bairro aprendi a conhecer as pessoas; na escola aprendi a
ler, a contar. Agora espero ter uma boa profissão e talvez continuar os meus estudos.

No meu bairro aprendi a ter confiança nos outros, a arranjar uma bicicleta, uma mota, por outras pala-
vras aprendi a desenrascar-me em qualquer situação.
Na escola ensinam-me Matemática, Contabilidade, Direito, ADP55, a escrever no computador, na má-
quina e sobretudo a preparar-me para um diploma.
Em minha casa aprendi a portar-me bem em família, entre amigos, a viver em sociedade, a respeitar
os mais velhos, o que está bem ou não...
Sozinho eu aprendi a ir para a cama com mulheres e também a fazer com que elas gostem de mim e
admito que não me safo mal, diria mesmo bem, muito bem. Também aprendi a desenrascar-me sozi-
nho, sem pedir nada a ninguém, em qualquer situação.

O facto de os balanços reproduzirem com mais frequência a forma de enumeração


ou de relato não permite tirar uma conclusão irrefutável. Sem dúvida, são formas muito
simples de discurso mas estas formas correspondem ao que a própria premissa induz
e até convida a fazer: produzir um inventário, contar aquilo que se aprendeu desde a
nascença. É, pois, necessário manter uma certa prudência na interpretação destas for-
mas. Em contrapartida, a própria forma como são feitas a enumeração e o relato merece
atenção56.

54
Na medida em que se trata aqui de dar exemplos formais, eu respeito a paginação dos alunos – quando
geralmente concentro os textos ao suprimir alíneas, a fim de economizar espaço.
55
NT: A sigla francesa ADP significa Administration du personnel.
56
Para não sobrecarregar o texto, centrarei a análise sobre a enumeração, forma mais frequente que o
relato; a análise do relato leva às mesmas conclusões que a da enumeração.
64
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

A enumeração é uma forma de discurso que pode ser mais ou menos conhecedora.
Num extremo, apresenta-se como uma lista de coisas lançadas à toa, numa ordem apa-
rentemente aleatória. Noutro extremo, encontramos o inventário feito pelos notários
ou arqueólogos onde a sucessão temporal dos elementos (a enumeração), remete para
uma classificação em temas, classes e subclasses, séries, etc. Neste caso, a enumeração
pretende ser a apresentação extensiva e exaustiva dos elementos constitutivos de um
objecto (uma sucessão para o notário, um terreno de escavação arqueológica para o
arqueólogo...); a ordem do discurso surge como um ditado da natureza do próprio ob-
jecto. Este tipo de enumeração, se não é sábia, é pelo menos muito ordenada e marcada
por uma preocupação de exaustividade; é rara nos nossos balanços de saber. A enume-
ração, mesmo longa e rica, não é objecto de um trabalho de classificação, organização,
de formatação sistemática. Da mesma maneira, o relato só segue de forma aproximada
o fio do tempo. Mas também é raro que as aprendizagens citadas sejam lançadas à toa
para a folha. Por um lado, a premissa fornece o mínimo de estrutura (segundo os luga-
res: em minha casa, na escola, no bairro, noutros lugares). Por outro lado, e sobretudo,
o que fica na memória no inventário ou no relato é o que faz muito sentido (positivo
ou negativo) para o aluno que escreve o balanço de saber. Estes balanços não mostram
nem uma relação conhecedora do mundo, nem uma relação anómica dos jovens que
perderam todas as referências. Eles têm uma lógica mas é a lógica do sentido e não a
de uma ordenação conhecedora.
Dito de outra forma, nestes balanços de saber o mundo não aparece enquanto um
objecto a inventariar, a ordenar e a expor. Ele não é um sistema de objectos mas um
universo de valores, polarizado por um princípio de implicação pessoal e um princípio
de proximidade relacional. Eu, a minha família, os meus amigos, a minha vida, os meus
futuros filhos... mas também o bem e o mal, a confiança e desconfiança...: a ordenação
do mundo organiza-se em torno de pólos de sentido e não como uma exploração objecti-
va de um mundo que poderia ser descrito ao fazer abstracção do lugar que aí ocupo e dos
problemas que aí encontro. O aluno está muito presente nos seus balanços de saber mas
como comentador do mundo, juiz do bem e do mal, protagonista do mundo actual, ponto
de referência a partir do qual se pode identificar uma família e amigos – e não como
autor, aquele que estabelece os princípios segundo os quais a enumeração é conduzida e
que expõe o mundo objectivamente e com uma certa largueza de vista, aplicando esses
princípios.
Uma análise mais pormenorizada permitirá estabelecer e aprofundar melhor esta con-
clusão. Dois fenómenos merecem uma atenção particular: a referência a princípios, muito
generalizada nos balanços de saber; a utilização muito frequente da oposição para estru-
turar, pelos menos em parte, as enumerações, os relatos e, de forma mais geral, os balan-
ços.

1. As enumerações dos alunos não são frios inventários. Com frequência, o aluno co-
65
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

menta aquilo que escreve. Ele fá-lo por vezes através de marcas de modalização57: “contu-
do”, “pelo contrário”, “se posso dizer”, “é verdade que”, “até agora”, “creio que”, “como
podemos constatar”... Mas estas formas discretas de modalização não são muito frequen-
tes – encontram-se sobretudo nos textos dos “bons alunos” das “boas turmas” (Charlot,
Bautier & Rochex, 1992). Os alunos de liceu profissional intervêm sobretudo nos seus tex-
tos através de comentários explícitos. Estes últimos podem assentar na premissa (“quando
diz... é verdade... mas...”) ou no balanço redigido pelo aluno (“falo muito da minha vida
mas não é frequente, influência do ler”). Com frequência, eles dizem respeito à escola, ao
bairro, à família (“É verdade que sem a escola, ou seja a instrução, hoje em dia, uma pes-
soa não é nada”), as coisas que “servem e as que não servem”. Eles assentam igualmente
sobre si próprio (“gosto do contacto com as pessoas”; “porque fiquei muito tempo debaixo
das saias da minha querida mãe”). Mas os comentários mais frequentes recaem sobre a
“vida”, que vale mais ou menos ser vivida, e no comportamento das “pessoas”. Eles assu-
mem com muita frequência a forma de princípios:

A vida não é fácil. (BEP)


Na vida só se tem uma oportunidade, não se deve perdê-la senão acabou. (BEP)
Somos produto do nosso meio. (BEP)
Também aprendi que todas as pessoas são iguais, mulheres ou homens, brancos ou pretos (3T)
Aprendi que para não ser gozado é preciso ter dinheiro e para ter dinheiro é preciso cometer crimes.
(3T)
Ensinaram-me que nunca se deve ter amigas; as amigas, isso é canja. (3T)
Aprendi que na vida é cada um por si e Deus por todos, que podemos usar as pessoas e deitá-las fora
como quisermos. (BEP)

Estes princípios são evocados como objectos de aprendizagem (aprendi que na vida...)
ou funcionam como reguladores de discurso (pontuam o que acaba de ser escrito). Têm com
frequência uma tonalidade muito sombria e amarga, como se pode constatar pelas citações
precedentes, mas também acontece que se refiram a grandes ideais ou apelem ao volunta-
rismo.
O mais interessante para nós é a forma como nos balanços se articulam a referência à
experiência pessoal e a invocação dos grandes princípios – ou seja, também os discursos
em “eu”, “tu”, “ele” e “nós”.
Alguns princípios são expressos em relação directa com a experiência pessoal e sur-
gem como máximas oriundas desta experiência e que regulam a conduta:

Existe modalização quando aquele que fala não se contenta em dizer as coisas (de forma “referencial”)
57

mas comenta aquilo que diz através de juízos, apreciações, comentários... Intervém ele próprio no seu
discurso, de alguma forma em segundo grau. A modelização surge através de adjectivos, de advérbios,
de formas verbais como “eu penso”, “eu creio”. Cf. Blanchet, 1991; Charlot, Bautier & Rochex, 1992;
Bautier, 1995.
66
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Desde os 20 anos que aprendi que era necessário desconfiar das pessoas, que não se pode contar com
ninguém, que não se pode esperar nada delas. Isto não aprendi com ninguém, isto vem da minha
própria experiência. (bac pro)
Os meus pais ensinaram-me muitas coisas sem querer, ex.: quando se vive numa família que morre de
fome já não se pode ser honesto, é preciso vigarizar ao máximo para nos safarmos. (BEP)
Através das minhas experiências pessoais, aprendi a respeitar os sentimentos da pessoa com quem
saio, que na vida não existem só dias cor-de-rosa, que se somos casados tudo pode acontecer, que não
é obrigatoriamente para toda a vida; aprendi também que se se cometem erros em certos domínios é
preciso saber não os repetir no futuro... (BEP)

Outros princípios aparecem sob uma forma geral, até mesmo universalista, mas atra-
vés de máximas gerais reside uma experiência pessoal:

Aprendi que devia respeitar os outros, que o presente era o futuro, que o saber é uma arma, que as
pessoas não tinham os mesmos direitos na sociedade porque alguns vivem, outros sobrevivem, que
era preciso ir o mais longe possível na sua escolaridade afim de fazer frente a este mundo de ilusão e
que era sempre preciso procurar saber a verdade. (BEP, balanço integral)
Aprendi que a maior parte do tempo é preciso desenrascar-se a si próprio porque o mundo que nos
rodeia é constituído essencialmente por vorazes. “O esperto vive do imbecil e o imbecil do seu traba-
lho”. Escolhe o teu lado! (BEP, balanço integral)
O homem passa por três acontecimentos na sua vida: nascer, viver e morrer. Não sentes que nasceste.
Vive-se um dia de cada vez. O que se quer é dinheiro, mulheres e tudo que tem a ver com isso!!! (bac
pro, balanço integral)

A maior parte das vezes, a experiência pessoal e os princípios são tecidos em textos
que passam sem cessar daquela para estes e reciprocamente. Por vezes, o texto começa por
“eu” depois passa a “ele”, ao “nós”, ao “tu” ou ao enunciado de um princípio geral e volta
eventualmente ao “eu” ou ao “a mim”. Outras vezes, o processo é inverso: o aluno parte do
“ele”, do “nós” ou de um princípio depois passa, em jeito de conclusão, ao “eu”.

A escola era e é para mim um meio de liberdade, de evasão, não só aprendemos muitas coisas como
comunicamos com uns e com outros, isto permite-nos ver que não somos diferentes dos outros, que
somos todos iguais. Eu, eu tenho 22 anos, e ainda continuo na escola [bac pro] e não tenho vergonha
de o admitir, enquanto tivermos a oportunidade de obter mais um diploma é preciso avançar. [eu-ele
e nós-um princípio-eu, eu-um princípio]
A vida aprende-se da mesma forma no bairro, em casa, na escola ou noutro lugar. A vida não se conhe-
ce num dia, aprende-se até à morte. Aqueles que nos podem ensinar são aqueles que já viveram, mas
em geral ou se olha à nossa volta ou se vive sozinho. O que é importante para mim é adquirir a maior
experiência possível. O que espero é viver o mais tempo possível. (bac pro, balanço integral) [um
início em “ele” e “nós”, com regras e princípios depois, como se tratava de uma aplicação de regras
evocadas, frase em “eu” e “para mim”]

Estes extractos de balanços de saber mostram bem como se articulam experiências


pessoais, regras de conduta oriundas da reflexão sobre a experiência pessoal e princípios
67
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

sem dúvida transmitidos pelos pais e os amigos. Frequentemente, é difícil distinguir com
todo o rigor os três níveis, o da experiência, o da regra construída pela indução, o do prin-
cípio formulado enquanto referência. O discurso sobre a experiência toma forma de regra
de vida que passa do “eu” ao “tu” depois ao “nós” ou ao “ele”; e estes pronomes cedem o
lugar a “cada um”, “o homem” ou “é preciso” e encontra-se um adágio ou um princípio.
Inversamente, estes princípios e adágios são mobilizados na medida em que dão forma
geral a uma experiência pessoal. Desde então, regras indutivas e princípios gerais muito
próximos dizem à vez a minha vida e a vida.
Para os alunos, tudo acontece como se o critério de verdade e de objectividade não
fosse a dissociação mas, ao contrário, a convergência da experiência pessoal e do discurso
geral. O mundo não é visto como um objecto do qual se deve falar através de um discurso
depurado de pontos de vista pessoais. Ele desenvolve-se até ao ponto onde se encontram a
experiência que eu tenho e o que eu e outros podemos dizer numa perspectiva mais geral.
A generalização não consiste em abandonar o ponto de vista pessoal mas alargar o campo
de pessoas cujo ponto de vista é levado em consideração. Existe aqui um processo de abs-
tracção mas ele não constrói um objecto, constrói um ponto de vista colectivo – e o discur-
so que o exprime. De facto, existe aqui cultura e, se dúvidas houvesse, o retorno incessante
do tema da “vida” e a sua estreita articulação com a questão de “a minha vida” seriam
suficientes para a estabelecer. Mas é uma cultura do sentido, da acção, do quotidiano, da
vida e do ponto de vista colectivo sobre a vida e não uma cultura “sábia” – entende-se por
isto, uma cultura que constrói objectos, mundos e sistemas que supostamente existem, têm
valor e podem ser apreendidos enquanto tais.

2. Um outro fenómeno merece atenção: a utilização frequente da oposição ou de várias


oposições articuladas seja ao longo do texto, seja até como princípio de estruturação do
discurso.

Quando estou em casa digo para mim próprio que é preciso continuar a ACC. Mas quando estou nas
aulas acho que não vale a pena. Aprendo muito mais com os amigos que com os professores. (BEP
acção comercial e contabilidade, balanço integral) (oposições em minha casa/nas aulas, amigos/pro-
fessores)
É evidente que na escola aprendemos muitas coisas, mas do meu ponto de vista penso que a grande
maioria do nosso saber se aprende no exterior. Desde que estou no liceu e que estou numa especialida-
de que é a burocrática apercebo-me que o ensino não é o mesmo. Para mim, o ensino no liceu é muito
mais concreto: se analisar a situação, o meu saber é muito mais vasto. (bac pro, balanço integral)
(oposições na escola/no exterior; LP/collège)

Muitas são as oposições que aparecem nestes relatos, embora seja muito raro que es-
truturem o conjunto do texto, como nos dois relatos citados acima. É interessante destacar
as mais frequentes, aquelas que polarizam o discurso destes alunos e o seu mundo.

68
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

No extremo de uma das oposições mais frequentes surge a adversidade, sob diferentes
formas: o mal, a dor, o medo, a raiva, o racismo, a guerra, a fome, as crianças abandona-
das, a miséria, o desemprego, o sarilho. O outro extremo define-se ou por um voluntarismo
pessoal ou por grandes sentimentos: eu que luto, que quero acabar os meus estudos, ter
uma boa profissão, ser sério, ser alguém, eu que espero um mundo melhor; a amizade, os
amigos, o amor, a generosidade, a solidariedade...
Um outro grande sistema de oposição remete para lugares de vida destes jovens e
para aqueles que aí encontram: a escola versus a verdadeira vida, o exterior, o mundo do
trabalho; o ensino geral versus o ensino profissional; os amigos, os colegas vs a escola,
os professores; a casa e a escola ou a escola e a profissão vs. o bairro, a rua, os proble-
mas. Às vezes, trata-se de uma oposição interna: a escola maçadora mas que permite
concluir os estudos; os amigos que vos empurram para as asneiras mas que vos ensinam
a vida.
Estes sistemas de oposições atravessam o próprio indivíduo: eu sou bem-educado e
espalhafatoso, eu quero ser normal mas é aborrecido, tenho amigos mas só devo contar
comigo próprio... Por vezes, dá-se uma viragem espectacular: o mundo cai por terra e com
ele o jovem que o habita – a menos que seja o contrário. Então, a oposição diz respeito a
dois momentos temporais, separados por uma cisão ou um “começo”: antes (a mudança de
casa, a separação dos pais ou o falecimento de um deles, a imigração do aluno, a relação
amorosa...) e depois.
Por vezes, estas oposições apresentam-se de forma distinta, como se estes jovens vi-
vessem duas versões do mundo, uma oposta à outra.

Desde que nasci eu aprendi o respeito, os sentimentos pelos outros, o riso e a tristeza, a verdade e a
mentira, mas também a falar, a contar, a ler e tudo isto com os meus pais, as minhas irmãs, os meus
amigo(a)s e os meus inimigo(a)s. (BEP, balanço integral) [O riso e a tristeza, a verdade e a mentira, os
meus amigos e os meus inimigos, a face luminosa e a face sombria do mundo]

Mas o mundo destes jovens também pode organizar-se em torno de duas esferas com-
plementares mais do que opostas. Os relatos usam, então, o balanceamento, o inventário
esforça-se por equilibrar as diferentes dimensões da existência: a escola e a casa, não ne-
gligenciar os estudos mas viver a juventude; a escola que proporciona ambições e o bairro
que permite satisfazê-las, os estudos que me permitirão viver mas os amigos e os pais que
são igualmente importantes...
Por fim, estes alunos utilizam frequentemente, nos seus relatos, a restrição: eles
afirmam alguma coisa e depois, imediatamente, limitam-lhe o campo de validade ou a
importância. É preciso “fazer o favor às pessoas que o merecem”, respeitar os outros
mas na condição de vos respeitarem. Ou ainda: “A escola prepara-me um pouco mais
para o mundo do trabalho, ainda que não tenha tido a possibilidade real de ter provas
disso”. A expressão “apesar de tudo”, que marca uma restrição no próprio movimento

69
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

da afirmação, surge muitas vezes nas entrevistas que foram realizadas com estes jo-
vens.
Para estes jovens, o mundo não é um espectáculo, um objecto para observar, ana-
lisar, teorizar. É o lugar de um combate entre as forças do bem e as do mal, as que
me propulsionam e as que me afundam. É um lugar muito polarizado, organizado em
sistemas de oposições, de compromissos e de equilíbrios instáveis. É um lugar que se
desenvolve em torno de um ponto de referência absoluto: eu, os meus, os meus fami-
liares, os amigos – o que, muitas vezes, não exclui uma compaixão impotente para com
aqueles que sofrem com a miséria e a guerra e para com as crianças abandonadas, que
não vão à escola.
Este mundo surge de forma muito dicotómica: entre o bem e o mal, a adversidade e a
luta para se desenrascar, o riso e a tristeza, a verdade e a mentira, os amigos e os inimi-
gos. No centro deste mundo, o aluno que redige este balanço, atravessado por todas estas
oposições, manifesta ao mesmo tempo um grande moralismo (ele está do lado do bem ou
gostaria de estar) e com frequência um grande cinismo, mais amargo que jocoso (é o mal
que domina tudo e é a ilusão de acreditar que eu próprio lhe posso escapar). Sobreviver
neste mundo implica que se façam compromissos, que se encontrem equilíbrios e que se
comprometam com circunspecção. Porque, embora a vida não seja fácil, é preciso apesar
de tudo viver, é possível apesar de tudo desenrascar-se e conhecer, apesar de tudo, por
vezes, pessoas de confiança (inclusive, sobretudo e apesar de tudo, no corpo docente...). O
mundo destes jovens, tal qual eles o contam e provavelmente o vivem, surge de tal forma
dicotómico e complexo para ser vivido que se compreende que eles dediquem uma grande
parte da sua energia a estudar o livro de instruções.
Para encerrar a análise sobre a forma dos balanços, citarei (quase integralmente) o
relato de uma rapariga que prepara o diploma profissional terciário. Encontramos aí, num
só texto, o essencial do que eu tentei comprovar: os comentários, a estreita articulação da
experiência pessoal (para mim, eu) e de princípios (tu, ele, cada um), sistemas de oposição
que se combinam, o uso da restrição.

Eu vivi muito tempo num bairro social e sei o que isso significa mas não é uma razão para fazer asnei-
ras. Se permaneceres tu próprio e se dizes não à droga, não ao furto, etc., é claro que vais ser tratado de
beto(a) e depois, o que é que tem, quero lá saber! Não são eles que vão construir a tua vida. Cada um
é responsável por si e leva a vida que escolheu. E damo-nos conta a pouco e pouco que os verdadeiros
amigo(a)s são raros. Em minha casa, em contrapartida, aprendi que são raros os filhos que se dão bem
com os seus pais. É sempre preciso fazer aquilo que eles querem. Quando se chega à minha idade o
que se deseja é ter liberdade, independência, tem-se vontade de estar sozinho num apartamento nosso
e viver como se quer sem ter que prestar contas a ninguém. Mas, infelizmente, isso aos 19 anos é um
sonho. De momento, aquilo que quero é o meu BAC e outra coisa que aprendi é que os amigo(a)s é
muito bonito mas quando tu queres ser bem sucedido nalguma coisa é melhor sozinho porque são ra-
ras as pessoas que te ajudam. E os professores também, é a mesma coisa, em vez de nos encorajarem

70
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

e de nos darem aulas interessantes para nos motivarem a vir à escola eles fazem tudo ao contrário.
Há seis anos que estou no LP GS e até agora são poucos os professores de que gostei. Contudo, há
uma. A minha professora de secretariado (Sra. B.), sempre foi minha professora desde que cheguei
e tiro-lhe o chapéu e dou-lhe toda a minha consideração e o meu Amor. É uma das raras professoras
que compreende os jovens e faz tudo para os ajudar. Porque é que, se existem pessoas assim tão boas
à face da Terra, os outros professores não seguem o exemplo? Os professores não param de nos dizer
para seguirmos o exemplo dos bons elementos da turma. Eu, por mim, pago-lhes com a mesma moeda
e digo-lhes para seguirem o exemplo dela.
Pronto, creio que é tudo. De qualquer forma, não é a rabiscar umas linhas numa folha branca que
mudaremos o Mundo (infelizmente).

2. As dominantes dos balanços de saber

A maioria dos balanços de saber referem aprendizagens que advêm de diversos domínios
mas alguns, num número apreciável, são construídos em torno de uma dominante de tema
ou de tom58. Esta última interessa-nos porque ela remete para uma forma dominante de
relação com o mundo.
A análise dos relatos permite identificar quatro grandes dominantes.
Primeira dominante que já tínhamos encontrado na análise formal: a adversidade.
Encontram-se aqui textos centrados no desemprego, na droga, na doença, na guerra, nas
“asneiras” que os jovens fazem, em suma, textos sobre “as engrenagens mortais da vida”.
A tonalidade geral destes textos varia: realismo, resignação conformista, resignação triste,
protesto – e, frequentemente, depressão.

Desde que nasci aprendi muitas coisas em minha casa e na escola. Aprendi muito sobre a vida activa
no mundo do trabalho, o desemprego que não pára de aumentar desde há uns anos. Precisamente
quando as pessoas fecham as empresas, precisamente quanto mais aumentam a esperança de vida e o
tempo mais tudo se torna catastrófico. Mesmo tendo diplomas ao mais alto nível o desemprego bate à
porta porque nós não temos experiência profissional. Então, eu gostaria de saber para que servem os
estudos se é para ir todos os meses ao centro de emprego. O que eu desejo é que haja mais trabalho
para todas as áreas e que os patrões das empresas sejam menos exigentes com os alunos sem experi-
ência, porque se não nos deixam prestar provas sobre o que sabemos fazer, qual será o nosso futuro?
(BEP, balanço integral)
Aprendi coisas sobre a natureza com o meu avô. Também aprendi a roubar com os meus amigos para
ter dinheiro, isto é aprendi a desenrascar-me mais ou menos sozinho; também aprendi a defender-me
na rua porque onde eu moro é muito importante para não voltarmos para casa de meias. Também
aprendi a grafitar. Também aprendi alguma coisa de alvenaria, a fazer tectos com os meus tios mas
tudo o que espero fazer mais tarde é sair desta merda de bairro e abrir uma pequena loja de motas ou
um bar. (BEP, balanço integral)

Quando o balanço é assim construído em torno de uma dominante ele não se apresenta com frequência
58

sob forma de uma enumeração; o texto unifica-se em torno desta dominante.


71
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Eu detesto os professores como G., D. porque eles são maus com a turma. Eu estou numa turma de
loucos e gostaria de mudar de escola ou trabalhar porque tenho a certeza que não vou tirar o CAP. E
agora fico sozinho. (CAP, balanço integral – o aluno escreve o nome dos professores, reduzidos aqui,
como é hábito, a uma inicial.)

Segunda dominante, que já tínhamos encontrado na análise da relação com o tempo: a


energia, a vontade de triunfar, o voluntarismo.

Aprendi muitas coisas em minha casa quando era pequena, com a minha família, aprendi que não se
conseguia nada se não se lutasse e se não se trabalhasse. O importante para mim é concluir os meus
estudos, ter uma boa profissão para poder trabalhar. Senão, serei como certas pessoas que estão na
rua a não fazer nada. Não é culpa deles. Há alguns que se divertem nas aulas e quando tiverem que
passar os exames vão ter medo de não conseguir porque se divertiram o ano todo. Eles não percebem.
Mas eu deixo andar não é o meu problema. Eu conto acabar este ano. Para seguir em frente. (CAP,
balanço integral)
De facto, e felizmente, desde que nasci aprendi muitas coisas e principalmente que quem não ar-
risca não petisca, é preciso lutar na vida profissional e na vida de todos os dias para se ser bem
sucedido, financeiramente, na sua vida familiar, ter uma boa profissão. Os meus pais e o meu irmão
sempre me apoiaram e devo-lhes todas as riquezas do mundo, os verdadeiros amigo(a)s também nos
podem dar muita coisa. O mais importante seria atingir os objectivos fixados, para mim é ter a pro-
fissão que desejo e ser feliz na minha vida sentimental, embora isto pareça um pouco repetitivo nos
adolescentes. Tudo o que espero é ter o meu diploma e poder continuar os estudos para o BTS59, há
pessoas que não sabem estudar que entram com facilidade em BTS, apesar das suas notas sofríveis,
porque não eu e porque não todos nós da turma? (bac pro, balanço integral)

Por vezes, é a própria oposição entre a adversidade e a vontade, a força das coisas e o
poder que o homem tem para as fazer mudar, o bem e o mal, que estruturam o texto.

Em minha casa: o respeito e a boa educação.


No bairro: fazer-se respeitar (fazer com que me respeitem, é claro).
Na escola: melhorar os meus conhecimentos.
Com quem? Isso não é importante porque o principal é que se consiga.
O que é importante em tudo isto é que posso ser eu próprio e também mudar, de qualquer forma
ninguém quer saber, as pessoas agora só vivem para si, é pena, eles nem sequer se apercebem que
podemos precisar deles e eles de nós. Somos egoístas. E o facto de não nos apercebermos sequer que
podemos mudar é auto-destruição. O Apocalipse porque talvez um mundo novo e melhor se construirá
depois. (BEP, balanço integral)

NT: A sigla francesa BTS significa brevet de technicien supérieur que pode ser traduzido por “certifica-
59

do de técnico superior”. É um diploma nacional de ensino superior francês, criado em 1959. Normalmente
prepara-se em dois anos, depois do bac.
72
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Terceira dominante: a relação. Alguns textos são inteiramente centrados nas relações
afectivas e sociais, sem que surja, pelo menos uma vez, a questão da escola e do saber.
Uns evocam múltiplas relações, outros focalizam-se numa só: respeito, conformidade,
amizade, amor, solidariedade... Estas relações são as mesmas mencionadas a propósito das
aprendizagens relacionais e afectivas.
Quarta dominante: eu próprio. O tema aparece sob diversas formas: as minhas rela-
ções com os outros; ser autónomo, fazer por mim, desenrascar-me sozinho; conhecer-me,
aceitar-me, ter confiança em mim. O que está aqui em causa é aquilo que foi analisado sob
o nome de aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal.
A estas quatro dominantes acrescentam-se algumas outras, um pouco menos frequen-
tes e que, de facto, prolongam, modulam e articulam as precedentes:
• A amizade, os amigos. Quando estão no foco do relato, estes últimos são evocados
em termos de solidariedade, ajuda, abertura aos outros (inclusive quando as activi-
dades com os amigos saem do quadro estrito das leis...);
• A vida. Este tema, muito presente nos balanços de saber, constitui por vezes o
tema central – “Desde que nasci que os meus pais me ensinaram a viver. Chegado
a esta altura sou eu que aprendo a viver. Eu vivo face às circunstâncias que a vida
me proporciona. Por isso, não posso explicar o inexplicável” (bac pro, balanço
integral). O tema pode ser mais preciso: trata-se então de compreender a vida, o
mundo, os outros, ou ainda conseguir uma vida bem sucedida, porque só se vive
uma vez.

Estas grandes dominantes e estas subdominantes dão bem conta do conjunto dos ba-
lanços construídos em torno de um tema ou marcados por um tom. Em complemento, é
interessante precisar que alguns temas surgem muito raramente enquanto eixos do texto
(estruturando apesar de tudo um ou alguns textos): a religião, a natureza e ecologia, o
saber, a profissão ou um projecto profissional preciso.
Encontramos assim, na análise das dominantes, os grandes eixos já encontrados ao
analisar a forma dos balanços, nomeadamente a oposição entre adversidade por um lado,
voluntarismo ou grandes sentimentos por outro, oposição que atravessa o próprio eu.
O mundo é o lugar de um combate entre as forças do mal de um lado (a “adversidade”)
e, do outro, os grandes princípios, os grandes sentimentos, a vontade pessoal de triunfar.
O mundo é um conjunto de forças, amigas e inimigas, um lugar dicotómico e ambivalente.
A relação destes jovens com o mundo também é ao mesmo tempo fragmentada e ambiva-
lente. Eles mostrar-se-ão de bom grado taxativos, até mesmo maniqueístas, porque não se
pode ficar indiferente quando o que está em causa são os princípios da vida e da sua vida.
Mas, enquanto jogo de forças, afrontamento de valores, o mundo é duplo, de forma que o
seu discurso é pontuado de restrições (excepções, casos particulares e tudo o que justifica
os seus “apesar de tudo”), que podem, por vezes, oscilar entre os prós e os contras, o bem

73
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

e o mal, a proclamação um pouco ingénua ou o cinismo desiludido, da provocação jocosa


à depressão, e que, com muita frequência, funciona sobre uma pista dupla (em frente e
verso, pela acentuação de posições, ou em equilíbrio, pela procura de equilíbrios e de
complementaridades).
A relação com os outros e a relação consigo também são marcadas pela ambivalên-
cia.

O Amor e a Amizade são para mim as duas coisas mais importantes na minha vida. Amor = Recon-
forto familiar, sentimental. Amizade = Confidência, Amigo, infelizmente existem poucos verdadeiros
amigos, são raros, mas os traidores são muitos. (BEP)

A relação com o outro é o vector de todas as alegrias mas também de todos os


perigos, o outro é recurso face à existência, mas também risco de má influência e
de traição. Por fim, só aquele que sente desconfiança, que é capaz de se desenrascar
sozinho e que quer ser bem sucedido (através da escola ou de outros meios, legais ou
não) está um pouco protegido contra a adversidade. Mas é uma posição instável por-
que estes jovens continuam a acreditar que a ajuda dos outros é necessária. É também
uma posição de grande tensão psicológica e até de sofrimento porque estes jovens, ao
mesmo tempo, valorizam a relação com os outros, onde parecem ir buscar a força e as
alegrias da existência, e devem ser desconfiados e só contar consigo próprios para “se
desenrascarem” na vida. Os balanços muito voluntaristas transmitem o sentimento de
uma energia capaz de mover montanhas, mas também, com frequência, de uma grande
solidão um pouco triste.
Se queremos estudar a questão da identidade dos jovens, compreender em que medida
é que ela é estável ou pelo contrário cambiante segundo as situações e eminentemente
volátil, é preciso sem dúvida abordar o problema a partir dos elementos que acabam de ser
sublinhados. A identidade destes jovens não se define (para eles) enquanto um conjunto de
características estáveis presas à sua pessoa mas através de uma relação com o mundo, com
os outros e consigo próprio – num combate onde estão em jogo os princípios da “vida” e
da “minha vida” e, por acréscimo, uma relação estruturalmente ambivalente. Seria interes-
sante retomar, a partir deste ponto de vista, as questões, as análises e os resultados apresen-
tados por François Dubet em La Galère. Eu propunha, pela minha parte, uma análise em
termos de ambivalência, de conflitos de valores e de interpretações, de contradições, de
desequilíbrios súbitos dos modos de leitura do mundo e das situações – por vezes com um
empenhamento muito “definitivo” sobre uma posição e sobre a posição inversa, segundo
as situações, os protagonistas e os momentos. O discurso dos jovens que leva a concep-
tualizar o inferno em termos de anomia, de desorganização, de raiva... deve certamente
ser levado a sério (encontrámo-lo no que eu apelidei de “adversidade”), mas o discurso
é apenas uma janela para o mundo destes jovens. É possível que o modo de recolha de
dados privilegiado por F. Dubet e a sua equipa (em situação colectiva e nomeadamente

74
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

numa situação de confronto verbal com um adversário ideal-típico destes jovens – polícia,
professor...) tenha dado muito relevo ao discurso sombrio e cínico e abafado o voluntaris-
mo, os bons sentimentos e os grandes princípios, dos quais se fala mais facilmente numa
folha anónima ou numa entrevista frente-a-frente que numa confrontação colectiva com
um adversário simbólico.

75

CAP. 6
RELAÇÃO COM A ESCOLA E
RELAÇÃO COM O SABER NOS
BALANÇOS DE SABER

Que sentido tem para um aluno ir à escola, estudar, aprender e compreender? Estas
questões, no seio das nossas investigações sobre a relação com o saber, podem ser enten-
didas de duas formas (Charlot, 1997). Em primeiro lugar, por sentido pode entender-se
valor, desejo: será que vale a pena, será importante, ir à escola e nela aprender coisas?
Em segundo lugar, por sentido pode entender-se significância (Jacques, 1987): traba-
lhar, aprender, compreender, o que é que isto significa, qual é a natureza da actividade
que se nomeia por estes termos? Abordarei, neste capítulo, estes dois pontos de forma
sucessiva.

1. A relação com a escola: a escola é importante mas aborrecida

Acerca do princípio os alunos não têm nenhuma dúvida: a escola é importante.

Na escola é preciso trabalhar no duro e ir o mais longe possível nos estudos. (BEP)
[Eu devo] instruir-me como deve ser para me tornar uma pessoa séria e ter um trabalho decente no
futuro. (BEP)
Todo o nosso futuro recai sobre o que aprendemos na escola. (bac pro)

A maior parte destes alunos foram orientados para o liceu profissional porque tiveram
dificuldades na escola. No entanto, não vimos da parte deles – em todo o caso não de
forma maciça – aquilo que os sociólogos anglófonos baptizaram de cultura anti-escolar.
Ao contrário, os balanços de saber mostram alunos mobilizados para a escola: ela é para
eles a chave do trabalho futuro, dos tempos que se seguirão, de uma vida normal e ela é
então empossada de um valor. Mas esta mobilização para a escola não garante de todo
uma mobilização na escola, isto é, um empenhamento verdadeiro na actividade escolar e
na apropriação de saberes.
Para que esta mobilização para a escola alimente uma mobilização na escola é preciso que
o próprio saber (a formação, a cultura) surja enquanto chave do futuro desejável antecipado: eu
estudo durante muitos anos, logo adquiro muitos saberes e competências e graças a esses sabe-
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

res e competências terei uma boa profissão60. É, então, o próprio saber que assegura a mediação
entre o presente e o futuro. Essa mediação surge, por vezes, nos balanços.

O que é importante para mim é ter muitos conhecimentos para poder entrar na vida activa e ser bem
sucedido na minha profissão (...) Aguardo por estar na vida activa para ver se o que aprendi me vai
servir e também para ser mais responsável pelos meus actos. (bac pro)

Mas o mais frequente é não encontrarmos esta mediação através do saber. Acontece
mesmo com muita frequência não existir qualquer ligação entre o que aluno retém en-
quanto aprendizagens que mereçam ser citadas no seu relato, e o futuro que o aguarda.
Ele espera ter o diploma que lhe permite ter uma boa profissão mais tarde mas nenhum
saber de tipo escolar ou mesmo profissional lhe parece suficientemente importante para
ser evocado no seu balanço.

Aprendi a fazer amigo(a)s na escola e no bairro travando conhecimentos. Aprendi a viver numa famí-
lia rodeado de um pai, de uma mãe e irmãos e irmãs com todos os meus familiares. O principal para
mim é estar vivo, ter uma namorada, um sítio onde viver, um abrigo. E agora conseguir o meu BEP
para ter uma boa profissão mais tarde (BEP, balanço integral)
Desde que nasci aprendi a ser bem educado, com os professores, tenho um bom entendimento com
a minha família, tenho muitos camaradas noutros sítios e nisto tudo o que é importante, em primeiro
lugar, é que tive a oportunidade de descobrir Deus na minha vida e isso ajuda-me muito, o diploma
também é importante para mim e estou impaciente para o conseguir. (bac pro, balanço integral)

A maior parte das vezes, a mediação através do saber não foi constituída; ela não foi
construída nem na família, nem pela escola. O que surge nos relatos, enquanto mediador
entre o presente e o futuro que se deseja, não é o saber mas os estudos e o diploma: o im-
portante é não chumbar, continuar, ir o mais longe possível e obter um diploma com boas
notas. Tudo acontece como se se tratasse da sobrevivência prolongada no universo escolar
que, enquanto tal, permitiria esperar por uma “boa profissão”, sem que a questão dos sabe-
res adquiridos durante longos anos de estudo estivesse de facto em causa. Está claro que se
trata de uma formulação exagerada: os alunos não são idiotas, eles sabem que para passar
para o ano seguinte ou conseguir o ramo desejado é preciso saber um mínimo de coisas e
trabalhar o mínimo (logo, no nosso vocabulário, significa mobilização). Mas, precisamen-
te, muitos deles consideram que conseguem cumprir esse mínimo exigido: o importante

60
Esta condição é necessária mas não é suficiente: não chega que o aluno esteja mobilizado para a escola,
além disso, é preciso que esta mobilização seja eficaz. E mais, um aluno pode sentir-se mobilizado para a
escola porque aquilo que aprende o interessa (a questão do futuro passa então para segundo plano): é aí
que reside, sem dúvida, a característica do “bom aluno”, que se interessa pelo menos por uma parte do que
aprende; é aí, pela certa, que reside o sonho dos professores... Isto quer dizer que é possível, pelo menos teo-
ricamente, imaginar o caso em que o aluno se mobiliza para um saber ou para uma actividade que o interessa
sem estar a priori mobilizado para a escola. Contudo, ainda fica por perceber o que é um saber interessante...
Cf., sobre esta questão da mobilização, Charlot, Bautier & Rochex, 1992, e Charlot, 1997.
78
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

não é ter adquirido saberes, é passar para o ano seguinte ou conseguir o diploma – e, para
que isto aconteça, adquirir o saber que é necessário para passar ou ter o diploma.
Esta ideia pode ser expressa de uma outra forma. Ou então o aluno considera que foi
aquilo que aprendeu que lhe permitirá mais tarde encontrar e exercer uma “boa profissão”.
Neste caso, o saber é importante, é ele que faz a mediação entre o presente e o futuro, a du-
ração dos estudos e o nível do diploma só estão lá para comprovar que se aprendeu muita
coisa. Ou então o aluno considera que é a duração dos estudos e o nível do diploma que,
embora o penalizem, lhe permitem encontrar uma boa profissão e, logo, fazem a mediação
entre o presente e o futuro, e o saber não é mais do que aquilo que é preciso exibir no
momento dos testes e dos exames. Neste caso, um saber mínimo, aquele que é requerido
pela instituição avaliadora na altura em que ela o requer, é suficiente. No primeiro caso,
é o saber que é importante; no segundo caso são os “estudos” e o diploma. No primeiro
caso, a mobilização nas actividades de aprendizagem escolar será grande; no segundo caso
ela será mínima. No primeiro caso, a relação do aluno com a instituição escolar inclui o
saber como questão central. No segundo caso, a instituição escolar, de alguma forma “sem
objectivo”, surge como uma obrigação social; o aluno tenta diminuir as exigências desta
instituição através da força, do estratagema ou da negociação e a questão relacional está
no seio das suas relações com a escola. A grande maioria dos alunos de liceu profissional
pertencem ao segundo caso.
Nos balanços, esta relação com a escola surge de forma muito explícita. Desta forma,
um aluno de bac pro escreve: “Tudo o que aprendi foi graças aos meus pais. O que apren-
do na escola é para poder entrar na vida activa”. Em suma, ele aprende alguma coisa na
escola, o que não faz de modo algum parte de “tudo o que eu aprendi”, uma espécie de
coisa nenhuma ao mesmo tempo acessório e exigível para ter um trabalho. Mas o texto
mais revelador sobre este ponto é um de um aluno de BEP (já citado):

Aprendi a ler, escrever na escola, nas aulas de Francês, aprende-se muita coisa que nos dá cabo da ca-
beça e que, de facto, não serve estritamente para NADA. Em Matemática aprende-se a contar a partir
de fórmulas difíceis quando se pode calcular de forma mais simples. Em suma, aprendem-se muitas
coisas que não servem para nada e que contam muito e não se aprende muita coisa verdadeiramente
interessante. (balanço integral)

Muitas coisas que não servem para nada, que não são muito interessantes mas que con-
tam muito: este é, efectivamente, o problema com o qual os jovens se vêem confrontados.
Numa investigação precedente (Charlot, Bautier & Rochex, 1992), recolhemos, de igual
modo, num CM1 de La Courneuve um balanço no qual o aluno escrevia: “Talvez passe
para o CM2, depois para o 6e, depois para o 5e, depois para o 4e, depois para o 3e, o bac,
a universidade e o trabalho, tudo isto, tudo eu diria que não gosto da escola mas tudo isto
é graças à escola”. Eu não gosto da escola mas tudo isto é graças à escola: o essencial
está nestas poucas palavras. Graças à escola, terei um trabalho, um futuro, uma vida. Mas,

79
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

no quotidiano, eu não gosto da escola porque não gosto do que lá se passa. A escola faz
sentido para o futuro mas não no quotidiano – em todo o caso a escola oficial, definida
pelo ensino, pelo professor, as lições e os deveres, as avaliações. O que falta à instituição
escolar é um presente. Em princípio, o presente da instituição é o saber que ela transmite
e o desejo por esse saber por parte dos alunos. Mas de facto, para uma grande maioria dos
alunos este saber não tem importância, excepto de um ponto de vista institucional – de
forma que a escola só é apreendida na sua lógica institucional, a lógica dos rituais e das
obrigações que é preciso suportar se se quer aceder à salvação que a instituição promete
(o trabalho, o futuro, a vida).
Esta relação com a escola e o saber surge igualmente através da dificuldade que os alu-
nos sentem em nomear conteúdos de saber nos seus balanços. Alguns só conseguem citar
umas “cenas”, aparentemente inomináveis... Muitos escrevem, sem serem mais precisos:
“na escola aprendo muitas coisas”, “montes de coisas”, “bastantes coisas apesar de tudo”.
Encontram-se também, com alguma frequência, fórmulas onde, de uma forma ou de outra,
o aluno diz ter aprendido... aquilo que é suposto aprender na escola – fórmulas genéricas
e tautológicas que reduzem o saber ao seu estatuto institucional.

Na escola aprendi muitas coisas, sobretudo no que diz respeito ao ensino com diferentes professores.
(BEP).
[Aprendi] na escola a coisa mais importante, é a educação escolar para uma vida futura. (BEP)
É a escola e aprende-se aquilo que devemos aprender. (BEP)
Durante toda a minha escolaridade, os meus mestres e professores ensinaram-me aquilo que é neces-
sário saber se quero prosseguir os meus estudos e poder safar-me na vida activa. (BEP)

São estas as fórmulas que aparecem nos textos e nada mais, para além disto, é dito
sobre as aprendizagens escolares.
Para alguns alunos, os que se agarram e assim obterão um CAP, um BEP, até mesmo
um bac pro, isto é suficiente para alimentar uma mobilização mínima: a escola é importan-
te, aprendem-se “muitas coisas” que permitirão ter um diploma e, logo, uma vida normal.
Mas uma tal mobilização só pode ser considerada como algo de frágil. Só resistem aqueles
que repetem em permanência para si próprios que a escola é importante e que o liceu pro-
fissional lhes dá uma oportunidade para vencer.
Os outros “afundam”, “mergulham”, retomando as palavras deles.
Alguns nunca se refizeram do facto de terem sido orientados para o liceu profissional
e desligaram. Deste liceu nunca esperaram nada ou já não esperam nada: para eles, a es-
perança num diploma e numa vida normal desvaneceu-se, a escola já não é importante, a
não ser como lugar para “loucuras” com os colegas. Desde então, a noção anglófona de
“cultura anti-escolar” torna-se pertinente no espaço francês: estes alunos, que não esperam
mais nada de uma escola que, de uma ponta à outra, não faz outra coisa senão desvalorizá-

80
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

‑los, desvalorizam por sua vez a escola e contrapõem-lhe a “vida a sério” (que inclui com
frequência “negócios obscuros”)61.
Os outros nunca conseguiram sentir qualquer apetência pela escola, o que acontece
desde a mais tenra idade. Para eles, a escola é um lugar vazio. Frequentemente, estes jo-
vens sentem-se responsáveis por esta falta de apetência, ao manifestarem uma boa vontade
escolar um pouco triste e às vezes lancinante.

A escola não é divertida, mas os adultos dizem-nos o contrário, logo eu tento acreditar nisso mas não
consigo. (BEP)

Desde que nasci, eu não queria aprender as coisas que todos os jovens da minha idade deviam saber.
É por isso que chumbei dois anos na primária; eu não queria aprender como os outros, mas a vida ou
o espírito de uma pessoa pode mudar todos os anos. Mas, as ideias que tinha quando era mais novo
estarão sempre arrumadas num canto, mesmo que eu estude um pouco mais nas aulas. Na escola,
ainda assim, eu aprendia alguma coisa mas não o suficiente para ter as notas certas. Quando alguém
tentava ajudar-me a aprender eu esquecia-me de uma parte.
Eu não sei que é que é importante para mim, em tudo isto; talvez, um dia, o saiba.
Por agora, não sei do que estou à espera, talvez um emprego estável mais tarde. (BEP, balanço inte-
gral)

Para mim, a escola é onde aprendi as coisas, a saber contar, a portar-me melhor, respeitar os meus
camaradas, a saber em qual nível estou, a poder ter um BEP, um CAP até um bac.
Até aprendi a ver e conhecer mais gente.
Mas para mim, a escola, tenho muito dificuldade em acompanhar.
Não sei porquê, talvez por causa que eu não sei muito vocabulário. (BEP)

A relação com o saber e com a escola que acabamos de analisar não é específica do
liceu profissional: as nossas investigações anteriores demonstram que ela existe desde o
collège e a escola primária. É o ideal-tipo dos jovens de famílias populares, alunos me-
dianos ou com dificuldades62. Em que é que o facto de se frequentar um liceu profissional
altera a situação?
É preciso notar, em primeiro lugar, que o liceu profissional recebe de forma maciça
alunos com dificuldades oriundos de famílias populares, o que o obriga a ter em conta
esta relação com o saber e a escola. Se a tentar ignorar, se a interpretar enquanto handicap

Regressarei, mais à frente, a esta questão da oposição entre a escola e a “vida a sério”.
61

Mas atenção às generalizações rápidas e abusivas. Também existem nos liceus profissionais alunos
62

para quem o saber é importante, até mesmo “interessante”: “Gosto da escola porque acho isto magnífico,
ensinar aos alunos coisas que eles não sabem” (BEP industrial, R.). Inversamente, alguns “bons alunos” de
collège, inclusive oriundos de famílias favorecidas, estabelecem com algumas disciplinas o tipo de relação
com o saber que acabamos de analisar (sem que isso signifique necessariamente que eles reprovem).
81
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

lamentável dos alunos que ele não tem de levar em consideração, a maioria do seu público
escapar-lhe-á e ele já não poderá trabalhar63.
Mas será o liceu capaz de levar essa relação em consideração? Em princípio, o fac-
to de ser definido enquanto “profissional” que prepara para uma profissão ou para um
conjunto de profissões revaloriza a escola, os estudos e os saberes. O que se estuda no
liceu profissional apoia-se naquilo que é mais importante para estes alunos: a “vida” e
a profissão que essa vida permite. Aliás, esta é a doutrina oficial, não só para os pro-
fessores de liceu profissional mas também, numa grande medida, para os professores
de ensino geral. De facto, os alunos são sensíveis a esta concretização dos estudos e
dos saberes.

Nós aprendemos muitas coisas novas que nos ajudarão nas nossas profissões futuras durante o resto da
nossa escolaridade é por isso que é preciso apesar de tudo ir à escola mesmo sendo aborrecido porque
aprendemos muitas coisas e ajuda-nos na vida como para mim para fazer amigos. (BEP)

De notar o “é por isso”: é a futura profissão que dá (“apesar de tudo”) legitimidade à


escola.

Eu também sei que os estudos que fazemos é para o nosso futuro, isto é, aprende-se aquilo que se fará
no domínio do trabalho e por isso os estudos são para levar a sério. (bac pro)

De notar, desta vez, o “e por isso”: é o laço com o futuro trabalho que imprime um
carácter “sério” aos estudos.
Aparentemente, existem aqui razões para estarmos tranquilos... Mas, de facto, além
das dificuldades muito conhecidas (alunos escolarizados em ramos que rejeitam, laços
que nem sempre são evidentes entre a formação e o próprio exercício da profissão), os
dados recolhidos obrigam a uma interrogação sobre a solidez desta posição de princípio.
Os saberes profissionais não são muito evocados nos balanços de saber: relembremos
que as aprendizagens profissionais só representam 4% das ocorrências, que só 16% dos
alunos as citam uma vez e que na maioria das vezes não se trata de um saber mas de uma
referência vaga à profissão ou a um comportamento. A aprendizagem de uma profissão
na escola pode ser muito valorizada no relato de um aluno sem que cite uma única apren-
dizagem de tipo profissional, mesmo no sentido lato do termo... Na escola aprendem-se
“muitas coisas” e no liceu profissional “muitas coisas novas que nos ajudarão nas nossas
profissões futuras”: pensando bem nisso, as duas fórmulas não são muito diferentes e
não é definitivo que a segunda remeta para uma relação com o saber e a escola mais
mobilizadora.

63
É de notar, porém, que os collèges de zonas de educação prioritárias, e mais geralmente de bairros ditos
problemáticos, tendem a encontrar-se na mesma situação, na medida em que são cada vez menos hetero-
géneos.
82
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

O que é importante para estes jovens, já o vimos, não é tanto o saber ou as actividades
profissionais em si mas mais o facto de ter um “bom” emprego e as condições relacionais
nas quais se trabalha. No fundo a sua posição não é muito diferente da dos alunos do collè-
ge: o importante é ter uma “boa” profissão para levar uma vida “normal”. Encontram-se,
aliás, em dois balanços (alunos de BEP terciário) fórmulas reveladoras: em vez do tradi-
cional “ter um trabalho seguro” estes alunos dizem “ter um ou vários diplomas (se isso me
der a oportunidade) nas mãos e depois encontrar um trabalho” e “ter um bom futuro nas
minhas mãos”. O que é preciso agarrar com as mãos já não é a profissão mas o diploma e
o futuro... Portanto, não é porque é profissional que o liceu pode fazer renascer a mobili-
zação escolar, é enquanto garante de uma nova oportunidade de adquirir “apesar de tudo”
um diploma e ter um futuro. Ser profissional não chega para ter em conta a relação destes
jovens com o saber e a escola, é necessário também antes de mais, e sobretudo, que ele os
volte a inscrever numa dinâmica de sucesso escolar.

2. A escola e “a vida”

É preciso estudar, obter os diplomas e encontrar um trabalho para ter uma vida boa, uma
vida normal. O importante para estes jovens não é o saber mas “a vida”. Na escola, viver
não é aprender coisas mas, antes de mais, ter amigos. Começarei por esta questão da re-
lação com os amigos e depois estenderei a análise à questão mais geral das relações entre
a escola e “a vida”.
Pelo menos num ponto, a escola faz muito sentido para os alunos e, mais ainda, assim
parece, para os alunos que acham a instituição escolar aborrecida: a escola é um espaço
relacional que lhes é precioso. Alguns relatos só falam da escola em termos relacionais,
sem evocar qualquer saber de tipo intelectual e escolar.

Aprendi a boa educação com os meus pais e a minha avó. Aprendi a defender-me no judo. Aprendi no
collège, liceu a ouvir os outros. Aprendi graças à escola a faltar às aulas com os meus amigos, amigas.
O que é importante é aprender o que é a verdade, a honestidade e sobretudo a franqueza. O que é
importante para mim é continuar os estudos até ao fim. Espero ter o meu diploma e a minha profissão
depois. (BEP, balanço integral)

Alguns destes alunos mostram o seu entusiasmo como um verdadeiro hino à escola:
“adoro a escola”, “eu acho que a escola é boa”, “a escola dá muitas coisas à minha vida”
(BEP, Ra., nos três casos – são quase sempre raparigas a fazer tais declarações). “Adoro a
escola” não em termos de saber mas como mundo relacional: “É uma espécie de mundo à
parte porque é muito diferente da nossa vida familiar, para mim a escola é a minha segun-
da família e estou orgulhosa disso”.
Esta pregnância do relacional pode ser interpretada como um desvio: o aluno está
enganado em relação à função da escola, ele não se apercebe da sua especificidade, ele

83
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

familiariza e transforma a instituição em lugar de convívio, que assim se afasta do seu ob-
jectivo. Poderá considerar-se, então, que a pregnância do relacional oculta o saber, afasta
o aluno da actividade intelectual ou, interpretado de outra forma, a atracção relacional da
escola permite, pelo menos, que o aluno suporte uma instituição que para ele não faz sen-
tido em termos de saber. Estas interpretações não são falsas: ao ler estes balanços, tem-se
com frequência a impressão de que o aluno está enganado em relação à instituição. Mas
tais interpretações permanecem muito sumárias. Elas vêem a relação com o outro como
simples e inevitável “divertimento” – no sentido da brincadeira mas também no sentido
pascaliano da operação que afasta o essencial e acalma a angústia. Ora, a aprendizagem da
relação com o outro é também uma forma de cultura.

Também há coisas que eu aprendi na escola como o trabalho de grupo mas também o trabalho pessoal,
há também uma espécie de respeito que regressa, o respeito dos lugares que se ocupa nas salas de aula.
A meu ver, a escola é o meio mais fiável para comunicar, é um ‘sítio’ onde as pessoas se exteriorizam
mais facilmente, mesmo se forem tímidas. (BEP)
Graças à escola, pude ler, escrever e divertir-me com outros amigos. É o mais importante quando se
está na escola, ter muitos amigos, senão sentimo-nos sozinhos toda a nossa vida. (BEP)
Acho que ter amigos é “genial”, tem-se a impressão de estar menos sozinho, diria mesmo que se
tem a impressão de aprender mais com eles que quando se está na escola, bom vão me dizer que
passamos a maior parte do nosso tempo a estudar, mas o pouco tempo que nos resta é largamente
suficiente porque temos a impressão de aprender aí o mais importante. Eu não digo que na escola
não se aprende nada, mas é diferente porque na escola ensinam-nos a nos prepararmos para a vida
activa, para o futuro que aí vem. (...) Quando vou à escola não sinto isso como um calvário mas o
que eu procuro em primeiro lugar é dar sempre o meu melhor naquilo que faço, mas nem sempre
consigo mas tento viver com isso porque eu não conseguiria seguramente se não tivesse à minha
volta tantas pessoas que considero minhas amigas. Porque o mais importante é a amizade porque
é a partir daí que se constrói tudo o resto. (BEP, fragmento de um longo relato de duas páginas e
meia)

Três ideias podem ser retiradas destes fragmentos de balanços.


Graças aos amigos, aprende-se muita coisa: a respeitar os outros, a exteriorizar, a co-
municar – a isto, outros textos acrescentariam a solidariedade, a independência face aos
adultos, uma certa forma de conhecimento de si próprio mas também, não nos esqueça-
mos, as “asneiras”. Neste sentido, a relação com os amigos é formadora.
A relação com os amigos é mais do que formadora, ela é fundadora. Com os amigos
aprende-se o mais importante, a amizade e “é a partir daí que se constrói tudo o resto”. Os
amigos, e de forma mais geral, a relação com o outro é para estes jovens a base da vida,
mais importante ainda que “nos prepararmos para a vida activa, para o futuro que aí vem”.
O segundo fragmento citado contém uma fórmula espantosa: “É o mais importante quan-
do se está na escola, ter muitos amigos senão sentimo-nos sozinhos toda a nossa vida”. É
preciso levar a sério o fim da frase: não se trata unicamente de ter muitos amigos na escola

84
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

para não se sentir sozinho na escola, mas para não se sentir sozinho toda a vida. Para lá
do convívio escolar, é uma relação com a vida, com o mundo que está aqui em causa. Ter
amigos na escola significa construir alguma coisa que perdura para lá da escola, significa
adquirir uma forma de cultura.
Os amigos também podem cumprir uma função de apoio escolar64: “eu não conseguiria
seguramente se não tivesse à minha volta tantas pessoas que considero minhas amigas”.
Aqui, os amigos não só não afastam da escola como dão mais do que uma simples ajuda
instrumental: a sua presença é necessária para que eu possa estudar. Os amigos são a vida,
uma fonte de energia.
Uma leitura negativa dos balanços evidencia a falta de mobilização destes alunos para
os saberes escolares e até mesmo para os saberes profissionais. Mas este é só um lado da
sua relação com o saber e a escola. Uma leitura positiva, na lógica destes alunos, permite
entrever a relação com o outro como uma forma de cultura. A escola é também um espaço
potencial de cultura enquanto espaço relacional – um espaço ignorado pela instituição
escolar, em todo o caso em França e na pedagogia dominante.
A questão da relação com os amigos é um aspecto (essencial) de uma questão mais
vasta: a das relações entre a escola e “a vida”. Sobre este ponto, os alunos divergem
nas suas apreciações mas estão de acordo em relação ao critério de julgamento: a es-
cola é importante ou não, valorizada ou desvalorizada, dependendo de ela ensinar ou
não a vida.
A maioria dos alunos consideram que a escola não ensina a vida ou, de uma forma mais
fraca, existem na vida outras coisas mais importantes do que aquelas que se aprendem na
escola.

É verdade que na escola aprende-se muita coisa mas não se aprende o essencial, não se aprende nada
sobre a vida. (...) Para mim saber alguma coisa ou aprender alguma coisa (sic), se eu o repito a alguém
é porque é com conhecimento de causa é realmente porque passei por isso. (...) Em tudo isto, isto é,
neste mundo em que vivemos o mais importante é ter a minha profissão, isto é à saída da escola ter
qualquer coisa na mão, não ter feito todas estas diligências para nada. Desde os seis anos que estu-
damos. Sim! Mas estudar para alguma coisa válida. O meu objectivo é ter um número máximo de
diplomas para poder trabalhar depois, mas não trabalhar toda a vida, formar uma família e regressar
ao meu país. Mas da escola não espero nada ou de outra coisa ou de alguém. Mas é sempre bom sa-
bermos um pouco mais. (BEP – de notar que a escola é evocada como “diligências”, em suma como
uma espécie de obrigação administrativa...)
A escola, o liceu continuam a ser muito escolares. Isto é, aprendem-se grandes teorias mas que infe-
lizmente não nos servem de nada na vida ou de muito pouco. Não nos deixam decidir o que queremos
realmente. Somos demasiado “apaparicados”, “cercados”. Somos considerados crianças. (BEP)

Função de apoio que alguns professores também sabem cumprir – voltarei a ela quando analisar as
64

entrevistas.
85
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Na escola não aprendi muita coisa a nível social, a única coisa que aprendi foi a nível intelectual
e nada mais, a escola não nos ensina nada sobre o que se passa lá fora, como viver em sociedade.
Tudo o que aprendi foi fora da escola com os meus amigos e a minha família. O que para mim é
importante agora é viver neste mundo impiedoso onde ninguém confia em ninguém. (BEP, balanço
integral)
Claro que para mim o mais importante são os estudos mas os amigos, os pais são uma espécie de es-
cola tão importante do ponto de vista social mas o que me fará ganhar a vida acho que são os estudos
por isso é a isso que me agarro. (BEP)
Na escola ensinaram-me mais a saber as lições do que a aprofundar a minha personalidade. (BEP)

Contudo, alguns alunos defendem o contrário. Uns dão prioridade a argumentos já


evocados a propósito dos amigos: a abertura aos outros, a comunicação. Outros pensam
sobretudo no vocabulário e nas boas maneiras. “Na escola aprendi a maioria das coisas da
vida, as minhas posturas, a falar” (BEP). Outros ainda, ou os mesmos que os anteriores,
esperam da parte da escola efeitos de “distinção”, no sentido a que a ele se refere Bour-
dieu.

Desde que nasci, aprendi a minha língua de origem, tornei-me mais culto, aprendi a conhecer a vida
com os professores na escola, com os pais, a família. Agora, o que é importante é quando me fazem
uma pergunta, na maior parte das vezes, eu não sou um ignorante, eu sei responder a essa pessoa.
Agora o que espero é aprender um pouco mais e entrar na vida activa. (BEP, balanço integral)
O que é importante para mim é ser minimamente culto para não me sentir burro no meio intelectual.
(BEP)
A escola instrui-nos para parecermos menos burros e sabermos responder às pessoas que nos dão a
palavra. (BEP)

Em contraponto: “Eu quero que gostem de mim por aquilo que sou e não pela minha
cultura” (BEP).
Por vezes acontece, muito raramente é certo, que o próprio saber (concebido enquanto
conhecimento no sentido escolar do termo) esteja presente como fonte de vida.

Penso que cada dia que passa é um saber permanente (...) depois quer-se saber sempre mais, interessa-
mo-nos por coisas que nos apaixonam. Eu penso que é importante saber sempre mais para que assim
nos respeitem. A humanidade, ao querer saber mais, moderniza-se, a nossa existência melhora. Sem
saber, sem conhecimento ainda podíamos viver nas cavernas. Hoje, espero da vida mais conhecimento
para melhorar mais e mais a vida de todos os dias. Descobrir antídotos contra as doenças, etc. Vou
tentar aprender sempre mais, não só no liceu mas também à minha volta. Porque saber é compreender
e respeitar. (BEP)

Quando o saber é valorizado desta forma, num discurso com um pouco de argumen-
tação, é precisamente no papel que desempenha na melhoria de vida e no “respeito” que
é importante e não só no acto de compreender. Qualquer que seja a ligação estabelecida

86
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

por estes jovens entre a escola e a vida, o que para eles dá valor à escola e, por vezes, ao
saber é a “vida”.
É errado definir estes jovens de liceu profissional enquanto seres “concretos” ou “prá-
ticos” ou mesmo pensar neles a partir de uma profissão65. Se tivesse que lhes atribuir uma
característica, para além da sua heterogeneidade que é real, diria que para eles o essencial
é a “vida” e que esta última se define antes de mais pela relação com os outros. Existe aqui
um ponto institucional e pedagogicamente importante: estes alunos, longe de estarem fe-
chados no “concreto”, no “prático”, no “utilitário” estão não só acessíveis à cultura como
também são requerentes de uma cultura. Contudo, com uma condição absoluta: que esta
cultura permita compreender melhor a “vida”, a vida em geral e a minha vida, o mundo tal
como é, as relações com os outros, as relações consigo próprio. Atenção: não se trata (em
todo o caso não unicamente) de dar a estes jovens um conhecimento “concreto” do mundo
“familiar”66 que os rodeia – ao fechá-los novamente através deste processo de redução de
ambições, do qual são tantas vezes vítimas. As dúvidas deles sobre a vida, sobre os outros
e sobre eles próprios apresentam uma dimensão realmente filosófica: é o bem e o mal, a
vontade e a impotência do homem, a felicidade e o risco de viver em comunidade que está
aqui em causa e não só a arte e a forma de consultar um anuário, preparar um biberão ou
fazer compras aos mais baixos preços...

3. Aprender, o que é?

É preciso agora esclarecer um ponto cuidadosamente mantido impreciso desde o iní-


cio: o que significa “aprender”, o que significa “saber”? Poder-se-ia pensar que uma
investigação sobre a relação com o saber devia começar por responder a esta questão.
Seria um erro. De facto, proceder assim seria impor logo à primeira uma definição
legítima do saber e da aprendizagem, quando o problema reside precisamente em com-
preender qual é o significado que os alunos conferem a estes termos. Esta é a razão
para termos colocado estes alunos perante uma premissa muito aberta que lhes permite
dizer “eu aprendi” no sentido ou sentidos que a relação com o saber lhes sugere. Esta
é, igualmente, a razão pela qual eu procedi até aqui a um inventário empírico das suas
respostas e procurei antes de mais compreender a lógica deles, entrar na relação que
têm com o mundo.

65
A profissão é sem dúvida importante para eles mas não enquanto tal (salvo excepções, claro). O impor-
tante é o emprego que permite aceder à “verdadeira vida” e o tipo de vida profissional associado a esta ou
àquela profissão.
66
Haveria muito a dizer sobre esta ideologia do “familiar”. Estes jovens conhecem o seu mundo familiar
– e a maior parte dos professores não o conhecem... A pedagogia do familiar que por vezes é recomendada
não consiste, de facto, em dar aos alunos novas pistas de inteligibilidade que lhes permitam compreender
melhor o mundo no qual vivem mas iniciá-los no mundo das classes médias que, justamente, não lhes é
familiar.
87
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Mas é preciso agora passar a uma nova etapa e tomar mais distância face às suas pa-
lavras. As análises precedentes mostraram-nos que os alunos “aprenderam” muitas coisas
– eles dizem-no explicitamente e apresentaram numerosas ocorrências – mas o saber não
é importante para eles, inclusive sob a sua forma de “saber profissional”. Isto coloca um
problema: o que quer dizer “aprender” senão ter uma actividade intelectual que permite
apropriar-se de “saberes”? Esta questão, que nomeamos epistémica, não assenta no méto-
do mais eficaz para aprender. Ela é mais radical e diz respeito à natureza desta actividade
que se nomeia “aprendizagem”, o que é que se aprende quando se aprende?
Para tratar esta questão, num primeiro tempo, voltar-me-ei de novo para os alunos,
cujos balanços fornecem alguns elementos interessantes. Mas será necessário de seguida,
num segundo tempo, começar eu próprio a responder. Serei ajudado pelas questões já en-
contradas e as análises já desenvolvidas mas, desta vez, a questão residirá na proposta de
elementos de análise mais amplos e um modelo de inteligibilidade.

3.1. A resposta dos alunos


Às vezes, acontece que os próprios alunos abordam a questão “o que é aprender?” – ao
nível deles, está claro. Duas importantes respostas irrompem dos balanços de saber: apren-
der é reter o que nos ensinam ou inculcam; aprender é observar e reflectir.
Aprender é reter o que os professores vos ensinam (isto é, deste ponto de vista, expõem
e explicam), vos transmitem. Assim, o que é aprendido são os “saberes”, os “conhecimen-
tos”, as “coisas” – conteúdos de consciência que são transmitidos pela palavra.

O importante é reter o que se aprende nas aulas para poder tirar partido disso na nossa vida profissio-
nal. (BEP)
A escola não me ensinou nada ou muito pouco porque eu esqueci-me de tudo. (BEP)
[Na escola] tira-se um pouco de saber. (BEP)
[Aprendem-se] grandes teorias, [a] adquirir conhecimentos para conseguir os diplomas. (BEP)
No collège fui levado a prosseguir a minha educação com professores que contribuíram para alargar
os meus conhecimentos, quer na teoria ou na prática. (BEP)
Apesar de tudo, os professores aumentaram os meus saberes. (bac pro)

Quando o que é ensinado tem assim um estatuto de objecto intelectual, a aprendizagem


é quase sempre apresentada como transmissão e retenção.
Mas não são só os saberes escolares que são transmitidos e retidos desta forma. Tam-
bém são os princípios e os conselhos – eles também têm forma de enunciados mas reme-
tem para “regras” e não para “coisas”. Para designar esta transmissão de regras, os alunos
usam com frequência o verbo “inculcar” – que surge várias vezes nos balanços, ainda que
pertença a um registo mais elaborado de linguagem. Aprender é, então, reter os princípios
que nos foram inculcados. Contudo, a fórmula empregue quando se trata de regras e prin-
cípios é com frequência menos brusca: pais, professores e amigos advertem, aconselham,
dão lições de moral – o que implica uma certa actividade por parte do aluno para se apro-
88
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

priar do que lhes é aconselhado e deixa em aberto a possibilidade de recusa. Enquanto que
os “saberes” ensinados devem ser retidos, os princípios inculcados exigem um trabalho de
apropriação mais activo.

[O importante é] reter todos os conselhos dos profs. e dos pais. (CAP)


Os meus pais inculcaram-me a boa educação. (BEP)
Essas coisas foram-me inculcadas pelos meus familiares, os meus amigos, os meus professores. (BEP)
Foram os meus pais que me inculcaram todos os princípios da vida. (bac pro)
Claro que os professores nos ensinam todas estas disciplinas mas eles também nos advertem para o
que nos espera na vida activa e as dificuldades, sobretudo neste momento, para encontrar um trabalho
interessante mesmo com bons diplomas. Eles aconselham-nos a estudar sempre mais, ir mais longe
nos nossos estudos. (bac pro)
[Os pais] também nos impõem a moral através de regras mais ou menos chatas, mas que são verda-
deiras. (BEP)

Quando a apropriação se torna dominante em relação à inculcação, o aluno utiliza uma


fórmula paradoxal: ensinaram-me a desenrascar-me sozinho. “Desde que nasci ensina-
ram-me a respeitar os outros, a desenrascar-me na vida sem me apoiar nos outros” (BEP).
“Com os meus amigos do bairro, tudo o que eles me ensinaram foi saber desenrascar-me
sozinho” (BEP). Neste caso, aprender já não é reter um conhecimento ou um princípio
mas ser capaz de dominar uma situação sem ter necessidade de recorrer aos outros. O que
aqui se aprende não goza do mesmo estatuto, advém de uma outra ordem que não a da
“coisa” intelectual, do objecto de discurso.
Resumindo: aprender é reter o que nos foi ensinado ou inculcado. Quando se trata
de saberes escolares, os alunos, na sua grande maioria, ficam-se por aí. A aprendizagem
é, então, entendida como uma transferência de um conteúdo intelectual e linguístico da
consciência do professor para a do aluno; é o professor que faz a transferência, o alu-
no só tem a tarefa de reter o conteúdo transferido, para que este não se esvaneça. Mas
quando se trata de regras de vida, surge a questão da apropriação: o aluno assume ou
não o que lhe foi inculcado, interpreta-o eventualmente, aceita ou não torná-lo seu. Por
um lado, a actividade da aprendizagem já não é exactamente a mesma: o aluno tem um
papel mais activo, para além da simples retenção. Por outro lado, o que foi aprendido
enriquece-se e muda, em parte, de estatuto: é uma regra (logo um conteúdo de consci-
ência) mas também o domínio de uma situação (que está para além de um conteúdo de
consciência).
Uma segunda resposta à pergunta “o que significa aprender?” irrompe dos balanços de
saber: aprender é observar e reflectir.
Foi a própria vida que me ensinou, é uma resposta frequente nos relatos. “Poderia dizer
que todas estas coisas foi a vida que me ensinou. Tudo se aprende com o tempo” (BEP).
“A nossa vida familiar, amorosa, etc., aprende-se vivendo no momento presente a nossa

89
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

vida pessoal” (BEP). Quando a vida me ensina, de facto eu aprendo “sozinho”, pela minha
experiência pessoal.
Mas não se aprende unicamente vivendo. É preciso interessar-se pelo que nos rodeia,
ver, observar, ouvir.

Aprendi a interessar-me por tudo o que me rodeia. (bac pro)


Aprendi essas coisas com os meus pais, os meus amigos, os meus professores e sozinha porque na
vida é preciso ser observador e reflectir bem no que se passa à nossa volta. (BEP)
No meu bairro, não aprendi grande coisa, só era preciso ver para perceber: para ver pessoas sem em-
prego, jovens que passam a vida no alpendre. (BEP)
Eu aprendi a viver num mundo exterior observando os mais velhos do que eu. (BEP)
Pode-se aprender muitas coisas através dos livros, da televisão e também observando a vida dos
outros. (bac pro)

Aprender é observar mas observar não chega, também é preciso “reflectir bem no que se
passa à nossa volta”. Reflecte-se quando surgem problemas, aprendemos a lição dos erros que
se cometeram. Também se reflecte falando, dialogando com os outros. Também se reflecte
por ocasião de rupturas no tempo já citadas (divórcio dos pais, descoberta amorosa...).

Aprendi vivendo, tirando uma lição de cada coisa vivida, os bons momentos, os maus, tudo isso me
permitiu conhecer uma vida sem ambições. (BEP)
Aprendi a não infringir a lei assim como a justiça graças (ou por causa) de uma malfadada história
que me fez reflectir. (BEP)
Tudo o que aprendi aprendi sozinho graças aos problemas familiares com o meu padrasto. (BEP)
Como toda a gente, cometi erros que me fizeram amadurecer, conhecer e identificar a diferença entre
o bem e o mal. (BEP)
Enquanto que na rua, ou então em casa, falamos a maior parte do tempo com pessoas que são activas.
Isto ajuda-nos a gerir melhor as nossas vidas e a forjar o nosso carácter, a ter as nossas próprias ideias,
opiniões. Assim, compreendemos melhor as pessoas à nossa volta. (BEP)

Aprender com a vida, sozinho é observar e reflectir. É relacionar coisas que vimos ou
acontecimentos que vivemos com princípios que permitem interpretá-los. É por isso, ao
mesmo tempo, que relacionar coisas e acontecimentos entre eles é submetê-los a princípios
disponíveis, articular os princípios entre eles. É construir uma rede de factos, de aconteci-
mentos e de princípios que é uma rede de sentido. Ao integrar um facto, um acontecimento
ou um princípio nesta rede podemos compreendê-lo (sentido = significância) e podemos
avaliá-lo do ponto de vista do bem e do mal, do permitido e do proibido (sentido = valor).
Neste trabalho de explicitação da experiência, os alunos podem apoiar-se nos princí-
pios que os adultos lhes inculcam. O processo observar-reflectir cruza-se aqui com o pro-
cesso inculcar-apropriar-se. É exactamente na medida em que os princípios inculcados são
verificados através da experiência que os jovens os assumem e se apropriam deles. Mas,

90
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

inversamente, a sua vida só se torna uma experiência se eles puderem reflectir sobre ela
graças a princípios. A experiência e o princípio constroem-se conjunta e solidariamente,
numa interacção dinâmica, de forma a que o sentido da “minha vida” e o da “vida” tendem
a confundir-se.

Aprendi, através dos meus pais, que a vida nem sempre era fácil e nunca o será e eu vi que na escola
é verdade. (BEP)

O princípio é aqui confirmado pela experiência.

Aprendi muito em minha casa e na rua. Em minha casa, porque os meus pais me explicam a duras
leis da vida, e que com os meus pais eu posso falar de coisas da vida que eu não compreendo; na rua
porque existem coisas que te obrigam a reflectir. (BEP)

Conversar com os pais permite articular as leis da vida (princípios transmitidos primei-
ro) e as coisas da rua (que obrigam a reflectir mas que não se compreendem sem a ajuda
dos princípios).
O processo observar-reflectir (experiência-explicitação) assenta, como ficou claro ao
longo das citações, na vida, nas pessoas, nas relações com os outros e consigo próprio.
Permite criar uma distância em relação às “coisas da vida”, construir referências expres-
sas sob forma de regras e princípios, regular os seus comportamentos nas relações com
os outros e consigo próprio. Em contrapartida, eu não encontrei um relato onde o aluno
evoque este processo no campo dos saberes escolares67 (no entanto, este processo está no
seio daquilo que se chama método experimental). Neste campo, aprender é reter o que é
transmitido, o que o professor explica. Aprender a vida é fazer dela experiência e reflectir
sobre ela. Aprender os saberes veiculados pela escola é ouvir o professor e reter aquilo
que explicou.
A partir desse momento, o que distingue a escola e a “vida” é também a natureza da
actividade que se nomeia por aprendizagem. Aqui não é a cultura nem a vivência que se
opõem, nem sequer dois tipos de conteúdos culturais, mas duas formas da “aprendiza-
gem”: uma pobre e pouco mobilizadora (tal como o aluno a concebe), a outra complexa,
produtora de inteligibilidade (em termos de significância e de valor) e logo mobilizadora.
Relembremo-nos do que escreve um aluno já citado:

É verdade que na escola aprende-se muita coisa mas não se aprende o essencial não se aprende nada
sobre a vida. (...) Para mim saber alguma coisa ou aprender alguma coisa (sic), se eu o repito a alguém
é porque é com conhecimento de causa é realmente porque passei por isso (...) à saída da escola ter
qualquer coisa na mão, não ter feito todas estas diligências para nada. (...) Mas é sempre bom saber-
mos um pouco mais.

Com excepção para o campo profissional: observar e refazer. Mas isto surge nas entrevistas e não nos
67

balanços de saber, onde os saberes profissionais têm muito pouco destaque.


91
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Por um lado, aprender enquanto processo administrativo que, apesar de tudo, é sempre
bom fazer; por outro, falar com conhecimento de causa.
Em contrapartida, a rádio e a televisão assentam num processo análogo àquele que os
alunos valorizam. Estes jovens observam e reflectem, a rádio anuncia os factos e comenta-
os, a televisão mostra e comenta. A rádio e a televisão encarregam-se de seleccionar o que
merece ser observado e propõe uma interpretação. De forma semelhante, estes jovens não
hesitam em colocá-las do lado da “vida”, quando precisamente a maioria deles opõem a
escola e a vida.

Basta ligar o rádio para se ouvir todos os dias informações sobre, por exemplo, o aumento do desem-
prego. (BEP)
A televisão também me ensinou muitas coisas, muito úteis aliás, e contrariamente àquilo que algumas
pessoas pensam, não, a televisão não estupidifica. (bac pro)

É possível que a oposição entre o interesse que a televisão suscita no meio popular
e o desdém que ela engendra em muitos “intelectuais” recupere a oposição entre dois
processos epistémicos: para os primeiros, a televisão é muito instrutiva porque ela
encena a vida e comenta-a; para os segundos, ela não ensina nada às pessoas porque
ela não difunde conteúdos intelectuais elaborados. Quando os professores vêem a
televisão como uma concorrente eles têm, simultaneamente, razão e culpa. Eles têm
razão: a televisão está de acordo com as formas de aprendizagem valorizadas pelos
jovens, o que só lhes dá força. Eles têm culpa: não é a televisão que aprofunda o fos-
so entre estes jovens e a escola, ele existe para lá da televisão, na sua relação com a
“aprendizagem”.
Numa segunda fase, necessito tomar alguma distância em relação aos balanços de sa-
ber – não com o intuito de esquecer a palavra dos alunos mas para propor um modelo de
ordenação que permita situá-la e, logo, compreendê-la melhor.

3.2. Um modelo epistémico


No livro École et Savoir Dans les Banlieues... et Ailleurs (Charlot, Bautier & Rochex,
1992) já tínhamos perguntado: o que significa aprender, qual é a natureza da actividade
que se nomeia desta forma? A partir da análise dos balanços de saber, distinguimos três
processos epistémicos.
Ao primeiro chamámos objectivação-denominação: aprender é apropriar-se de um sa-
ber visto enquanto objecto, sem referência às situações ou às actividades através das quais
este objecto foi constituído. Este processo supõe que o objecto possa ser enunciado: ele só
pode existir pela e na linguagem.
Ao segundo processo chamámos imbricação do eu na situação: aprender é ser capaz
de se safar de qualquer situação – mas o indivíduo não domina verdadeiramente a situação
e permanece preso, num processo de adesão.

92
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Ao terceiro processo chamámos distanciação-regulação: aprender é “reflectir” é “edu-


car-se”, distanciar-se em relação a si próprio, das pessoas, da vida, o que torna possível
uma regulação das relações consigo próprio e com os outros.
Queria corrigir e afinar aqui este modelo, que constitui uma primeira abordagem per-
tinente mas sofre de uma imperfeição68: ele mistura duas questões que convém distinguir.
Por um lado, a questão da natureza da actividade que se nomeia por “aprender”69 e do
estatuto do objecto que é desta forma aprendido – dois pontos que devem ser abordados
conjuntamente. Por outro lado, a questão da distância que se toma face à situação e do
carácter reflexivo da actividade “aprender” (a da imbricação, da distanciação, da reflexivi-
dade). O modelo aqui proposto distingue estas duas questões.
Qual poderá ser a natureza da actividade “aprender” e o estatuto do objecto assim
aprendido?

Em primeiro lugar, aprender é apropriar-se de um saber visto enquanto objecto, sem


referência às situações ou às actividades através das quais este objecto foi constituído –
“marrar”, como dizem com frequência os alunos. O saber ganha então estatuto de objecto,
o que só é possível graças à linguagem e melhor ainda graças à linguagem escrita. Retomo
aqui o essencial do que designei pelo nome de objectivação – denominação.
É possível levar a análise mais longe. Este saber-objecto pode apresentar-se sob diver-
sas formas:
• O conceito – aprendi o que é um triângulo, o complemento directo, a Renascença,
os vulcões...
• A relação (entendida aqui como relação entre dois ou mais termos) – aprendi o Teo-
rema de Pitágoras, as leis da termodinâmica...
• O facto – aprendi que o gelo derrete quando atinge zero graus, que Brasília é a capital
do Brasil, que Napoleão morreu em Santa-Helena...
• A teoria – aprendi a teoria da evolução das espécies, a teoria da reprodução (em So-
ciologia), a teoria da regulação (em Economia)...
• A disciplina – aprendi Matemática, a Psicanálise...

Qualquer que seja o caso, aqui o que está em causa são sempre as relações: um triân-
gulo só se pode conceber como fazendo parte de um conjunto de relações (condensadas
num conceito), um “facto” é também o enunciado de uma relação entre dois termos pelo
menos; é inútil insistir nos outros casos, pois é evidente que se trata de relações. Um
saber-objecto é sempre um conjunto de relações, enunciado sob uma forma ou outra.
Mas de um ponto de vista epistémico, ele apresenta-se como objecto: é um objecto
(intelectual e linguístico) que o sujeito tem à sua frente quando aprende o triângulo, as

68
Comecei a construí-lo no livro Rapport au Savoir: Éléments Pour Une Théorie (Charlot, 1997). Penso
que este modelo proposto aqui representa um passo suplementar.
69
Para evitar esta fórmula um pouco pesada direi doravante: a actividade “aprender”.
93
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

leis da termodinâmica, o facto de Brasília ser a capital do Brasil, a teoria da reprodução


ou a Psicanálise.
Este objecto foi constituído através de uma actividade intelectual mas ele tem a lin-
guagem como modo de ser – ele só existe pela e na linguagem. O problema inteiro re-
side então em saber se o indivíduo, que é suposto aprender, apreende a relação para lá
das palavras. De qualquer forma, aprender é ser capaz de dizer. Mas são possíveis dois
cenários. Ou dizer significa repetir o enunciado (reproduzir uma sequência linguística
mais ou menos longa). Ou dizer significa pensar uma relação, expressa num enunciado
(reproduzir o enunciado e não repeti-lo). No primeiro caso, aprender é definido através
de uma relação enunciado-enunciado (enunciado do aluno-enunciado do professor). No
segundo caso, é definido por uma ligação enunciado-relação (enunciado do aluno-relação
pensada pelo aluno e pelo professor). No primeiro caso, o aluno não se distancia face ao
objecto linguístico (não ouso falar aqui de saber...) produzido pelo professor, no segun-
do, sim. No primeiro caso, encontramos alunos, referenciados por Elisabeth Bautier, que
dizem, na escola primária, que é preciso “ouvir a professora”, no segundo, declaram que
é preciso “ouvir a lição” – diferença muito discriminativa do ponto de vista do sucesso
escolar (Charlot, Bautier & Rochex, 1992). No primeiro caso, o aluno permanece preso
nas palavras e na situação pedagógica e institucional. No segundo, ele distancia-se dela
e constrói, a pouco e pouco e com a ajuda do professor, um universo de saber distinto do
universo da vida quotidiana.
Existe para além disto um terceiro caso: o sujeito interessa-se por saberes-objectos e por
universos de saberes desde que constituídos por uma actividade humana – que é o que faz
a epistemologia (teoria do conhecimento). Neste caso, a sua relação com o saber não é sim-
plesmente distanciada, é reflexiva; já não assenta só sobre o saber-objecto, assenta também
sobre a actividade que o constitui e sobre as relações entre este saber e esta actividade.

Em segundo lugar, aprender significa “fazer”, no sentido mais lato do termo e assim
ser capaz de dominar uma operação ou um conjunto de operações. Esta operação pode as-
sentar num objecto material ou ser uma operação simbólica. Então, o que é aprendido não
é um objecto enunciável (um “saber”) mas um acto ou um conjunto de actos – inscritos no
corpo (operação sobre um objecto material) ou constituindo o sujeito cognitivo (operação
simbólica). O que é aprendido faz-se numa actividade em situação e não pode ser realiza-
do ou até evocado de forma reflexiva sem referência a uma actividade em situação70.
Consideremos três casos.

Se procurarmos uma correspondência com o que eu defendia em 1992, é aqui que se deve situar a im-
70

bricação do Eu na situação. Mas o que eu defendia sofria de várias insuficiências ou erros e de uma grande
imprecisão: não levar em conta as operações simbólicas, não compreender que pode também haver aí
imbricação no saber-objecto, não distinguir claramente entre o que, nas situações, advém da operação e o
que advém do comportamento.
94
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

• Aprendi a subir às árvores, a reparar uma câmara de ar, a andar de bicicleta, a pôr a
mesa, a fazer a minha cama... São operações que remetem para objectos que se utili-
zam ou que se transformam, recaindo sobre o mundo na sua materialidade.
• Aprendi a ler, a escrever, a contar, a somar, a desenhar, a dançar, a cantar... Também
são operações. Elas também implicam um corpo e o mundo na sua materialidade –
como conjunto de traços gráficos, de sons, como gravidade... Mas estas operações
apresentam um carácter específico: a operação material só atinge o seu objectivo se
produzir efeitos que não sejam unicamente materiais mas também simbólicos (no
sentido lato do termo, incluindo os efeitos estéticos).
• Aprendi a estudar, a organizar-me... Mais uma vez, são operações. Mas elas apresen-
tam a particularidade de assentar sobre outras operações. No essencial, elas produzem
uma organização no tempo destas outras operações, uma gestão temporal das situa-
ções. Pode, se quisermos, acrescentar-se estas operações metodológicas às operações
materiais e às operações simbólicas. Mas para não entorpecer o modelo, é mais sen-
sato considerá-las como uma forma particular de operação simbólica, caracterizada
por uma dimensão temporal e, por natureza, reflexiva.

O grau de imbricação, de distanciação e de reflexividade destas operações pode va-


riar.
De um lado, como caso limite, a operação é a simples repetição de um conjunto de ges-
tos71. Este caso é visível quando uma criança imita os gestos da sua mãe, quando rabisca
linhas e pensa que escreveu, quando ele emite uma série de sons e diz que sabe contar72.
Encontramos aqui um caso análogo àquele em que aprender é dizer o enunciado sem
consciência da relação que ele enuncia: aprender é repetir o gesto sem o constituir numa
operação que faça sentido (na utilização de um objecto ou enquanto sentido simbólico). O
sujeito permanece fechado (imbricado) na materialidade da operação sem aceder ao seu
sentido – precisamente como, no caso precedente, permanecia pregado ao enunciado sem
aceder à relação.
Mas a maior parte das operações são objecto de um distanciamento mínimo por parte
de quem opera: ele está presente no que faz e tem consciência disso. Quando este distan-
ciamento cresce, o sujeito regula e depois controla a sua operação: então, ele tem o domí-
nio da situação, ele “aprendeu a...”.
Quando aquele que opera se apercebe de si próprio a operar, e, por assim dizer, a
operação se duplica (uma operação de pensamento assenta sobre a operação que se está
a realizar e sobre aquele que a faz), ela torna-se reflexiva. O professor (ou o cozinheiro

71
Aqui é citada a repetição “ingénua” e não essa forma muito reflexiva de repetição que constitui a mími-
ca.
72
Existe uma dimensão simbólica nestes actos mas ela remete para a identificação com o adulto e não para
a operação em si mesmo.
95
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

famoso de uma emissão de televisão) descreve, explica, comenta aquilo que está a fazer:
o enunciado acompanha o acto.
Podemos transpor um passo suplementar (de forma ainda mais justa, dar um salto) e
transformar a própria operação em saber-objecto. Então, a actividade “aprender” muda de
carácter73. Tanto o nadador salvador que expõe as operações que permitem nadar, como
o professor as que permitem frasear, apresentam a operação sob uma forma linguística
e reflexiva mas permanecem na lógica temporal da operação. Em contrapartida, quando
explicam a “natação” ou a “frase”, eles apresentam um saber-objecto. A Tecnologia é uma
disciplina que apresenta saberes-objectos – numa perspectiva operatória, sem dúvida, mas
do ponto de vista epistémico, aprender a tecnologia é apropriar-se de saberes-objectos e
não ser capaz de controlar uma operação74.

Em terceiro lugar, aprender significa entrar nas formas e nos dispositivos relacionais e
assim ser capaz de dominar os seus comportamentos e formas de subjectividade, nas suas
relações com os outros e consigo próprio. Esta figura da aprendizagem é parente da prece-
dente. Nos dois casos, aprender é passar do não domínio ao domínio – e não apropriar-se
de um saber-objecto, isto é passar da não possessão à possessão. Nos dois casos, trata-se
de aprender a habitar o mundo – enquanto espaço de operações e enquanto espaço de re-
lações. Esta terceira figura da aprendizagem apresenta, por isso, características já referen-
ciadas aquando da análise da segunda. O que é aprendido não tem estatuto de um objecto
enunciável mas de um comportamento mais ou menos regulado e controlado e de formas
da subjectividade. O que é aprendido é feito nas relações contextuais e não pode ser posto
em prática ou mesmo evocado de forma reflexiva sem referência a um comportamento ou
a uma subjectividade em contexto.
Esta figura de aprendizagem remete para uma grande parte das aprendizagens classifi-
cadas empiricamente nas categorias “aprendizagens relacionais e afectivas” e “aprendiza-
gens ligadas ao desenvolvimento pessoal” (mas não a todas). Aquilo que aqui se aprende
são comportamentos ou formas da subjectividade (sentimentos).
• Aprendi a obedecer, a portar-me bem, a ser solidário, a mentir, a desconfiar, a lutar, a
fumar, a não roubar (ou impedir-me de), a ser autónomo, a ser perseverante... Trata-se
de comportamentos, isto é, formas de agir, num contexto, numa relação com o outro
e consigo próprio.

73
Dá-se uma mudança de carácter e não um simples prolongamento reflexivo da actividade. A reflexivi-
dade sobre a actividade permite enunciar os momentos, as fases – então a linguagem segue o movimento
das próprias operações. A constituição da actividade em saber-objecto apresenta-a nas suas constituintes,
nas suas articulações lógicas (quando, por exemplo, se sonha com o discurso que se pode manter para
comparar o bruços e o crawl).
74
Não digo que uma não facilita a outra, digo que existe uma diferença de carácter entre estas duas activi-
dades “aprender”. Para além disso, é de notar que a tecnologia não se constitui apenas pela reflexão sobre
as operações mas também recorre aos saberes científicos (por exemplo, conhecimento da resistência dos
materiais).
96
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

• Aprendi a amizade, o amor, o ódio, o ciúme, a confiança... Trata-se de formas da


subjectividade, de sentimentos. Estes sentimentos não se aprendem no sentido em
que, sem esta aprendizagem, estes sentimentos não se ressentiriam. Mas aprende-se a
identificar e a interpretar o que se ressente e a controlar a expressão destes sentimen-
tos e dos actos que eles induzem.

Comportamentos e formas da subjectividade estão em pé de igualdade, de forma que


nem sempre é fácil distingui-los (“desconfiar” é um comportamento, a “desconfiança”
é um sentimento; “divertir-me” é ao mesmo tempo um comportamento e uma forma de
subjectividade). Mas não é muito importante distingui-los: toda a relação com o outro é
também uma relação consigo (e inversamente), todo o comportamento está ligado a uma
forma de subjectividade (e inversamente).
É difícil imaginar que um comportamento, e sobretudo uma forma de subjectividade,
possa ser simplesmente repetido por um sujeito, sem nenhuma distanciação. Talvez na
aprendizagem de “diz bom dia à senhora”... Parece que esta figura da aprendizagem im-
plica a distanciação e a regulação75: aprender as relações com os outros e consigo próprio
(comportamentos e formas de subjectividade) é ser capaz de encontrar a distância correcta
entre si e os outros, entre si e si, e através da mesma regular a relação e o contexto. Esta
distanciação-regulação faz-se acompanhar com frequência de reflexividade: o sujeito está
empenhado e avalia ou comenta a forma como se comporta ou o que ressente. Esta impor-
tante distanciação-regulação-reflexividade engendra com frequência regras, construídas
através da indução: os amigos é bem bonito mas estão no papo, a confiança é uma coisa
da qual é preciso desconfiar... Mas situamo-nos aqui nas fronteiras entre a terceira e quarta
figura da aprendizagem e, por isso, voltarei em breve a este ponto.
De notar, por fim, que o comportamento e as formas de subjectividade podem também
elas ser transformadas em saberes-objectos através de discursos sábios: já não se aprende
o “amar” ou o “amor” na sua vivência concreta, mas o “amor” objecto do capítulo 2, sec-
ção 3 de um livro de Psicologia, de Sociologia ou de Economia. Mais uma vez convém
não confundir actividades “aprender” diferentes por natureza mesmo quando, aparente-
mente, assentam sobre o tema análogo: podemos estudar a psicanálise na universidade e
nos livros, o que não só não significa que se dispense uma auto-análise mas, além disso,
não impede que nos apaixonemos...
Hesitei muito, e ainda hesito, quanto ao facto de propor uma quarta figura da aprendi-
zagem (confundida com a precedente em 1992 e 1997), mas as análises dos balanços de
saber incitam-me a fazê-lo.

É, sem dúvida, por isto que eu a citava em 1992 sob o nome de distanciação-regulação. Mas também se
75

encontra distanciação e regulação em outras figuras da aprendizagem. Além disso, em 1992 e até mesmo
em 1997, eu confundia esta figura e a seguinte sob o nome de distanciação-regulação.
97
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Em quarto lugar, aprender é observar e reflectir, relacionar factos e princípios e dotar-se


assim de um conjunto de referências que permitem interpretar “a vida” e “a minha vida”, com-
preender “as pessoas” e conhecer-se a si próprio. Qual é o estatuto do que é então aprendido?
• De um certo ponto de vista, trata-se de princípios – inculcados ao indivíduo ou in-
duzidos a partir da experiência. Mas, como já vimos, os princípios só funcionam
enquanto referências desde que encontrem um referente na “vida” (um facto, um
acontecimento, uma experiência vivida).
• De um outro ponto de vista, são os factos, os acontecimentos, as experiências vivi-
das. Mas, como também já vimos, eles próprios só se tornam referências se disserem
respeito a princípios.

Uma referência é pois um facto que se relaciona com um princípio ou um princípio


que se relaciona com um facto. O que se aprende desta forma ganha então estatuto de
enunciado – o aluno sabe que o desemprego ainda aumentou mais (facto) ou que “na vida
é cada um por si e Deus por todos” (princípio). Mas este enunciado apresenta duas carac-
terísticas. Por um lado, ele remete para factos que o indivíduo observou ou que outros,
dignos de fé (os amigos, a televisão) observaram: ele está enraizado numa experiência.
Por outro lado, ele enuncia uma relação (e até mesmo um sistema de relações, já que os
factos e os princípios relacionados entre si são eles próprios relações) mas esta relação
não exprime uma afinidade lógica, ela não especifica as coisas mas sim o que valem, o
que permitem e o que proíbem. Estes enunciados dizem o que está bem e o que está mal,
o que é justo e o que é injusto, o que é permitido e o que é proibido, o que é desejável e
o que é temível...
Por definição, uma tal figura da aprendizagem implica distanciação: esta última não
é uma das modalidades desta forma de aprendizagem, ela é o próprio princípio76. Além
disso, ela faz-se acompanhar com frequência de uma forte reflexividade, que salta à vista
nomeadamente no uso da restrição – o aluno enuncia ou evoca implicitamente um facto,
uma regra, um princípio mas limita o alcance do que acaba de dizer (o que supõe uma
posição reflexiva) através de expressões como “apesar de tudo”77.
Hesitei, já o disse, quanto ao facto de constituir esta forma de aprendizagem numa
quarta figura, distinta da precedente. De facto, ela está com frequência muito ligada à for-
ma distanciada e reflexiva da precedente: o aluno fala de comportamentos e sentimentos
das “pessoas” e dele próprio e, no seu prolongamento, da “vida” e da sua vida. Eu, aliás,
classifiquei, de forma empírica, “conhecer a vida”, “compreender as pessoas” e (conhecer

76
Foi sem dúvida por este motivo que nos textos anteriores eu confundi num mesmo processo, intitulado
distanciação-regulação, a forma analisada anteriormente (ela própria muita marcada pela distanciação) e
esta última.
77
Precisamente quando os professores se queixam da pobreza dos alunos em matéria de argumentação...
Sem dúvida, esta última não é explicitada (o que efectivamente é uma fraqueza), mas se prestássemos
mais atenção a expressões aparentemente tão banais quanto esta aperceber-nos-íamos de que eles não são
“apesar de tudo” desprovidos de capacidades argumentativas.
98
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

e compreender) “aquilo que sou” nas aprendizagens relacionais e afectivas ou ligadas ao


desenvolvimento pessoal. Contudo, parece mais pertinente distinguir aqui duas formas
de aprendizagem. Por um lado, ser capaz de controlar os seus comportamentos e as suas
formas de subjectividade e dotar-se de um sistema de referências que permitam compreen-
der a vida e a “minha vida” não significa aprender exactamente a mesma coisa da mesma
maneira. Por outro lado, esta última figura da aprendizagem não coloca só em jogo regras
construídas pela indução a partir da experiência dos outros e de si próprio: ela também
mobiliza princípios inculcados, “saberes” (sobre a evolução do desemprego, sobre a fome
no mundo, sobre as guerras actuais...) e referências a factos antropológicos maiores (a
morte, a sucessão das gerações...) ou as grandes forças que regem o mundo (o bem, o mal,
o destino, Deus...). Uma actividade de “aprender” tão complexa não pode ser reduzida à
forma reflexiva de assimilação das formas e dispositivos relacionais.
Ainda duas palavras para completar este inventário – sem por isso querer ser exausti-
vo.
• Em primeiro lugar, onde é que se pode situar “eu aprendi a pensar”? Diria que se
trata aqui ou de um equivalente a “reflectir” (quarta figura) ou de um termo genérico
que remete para a distanciação e reflexividade (qualquer que seja a figura da apren-
dizagem);
• Em segundo lugar, qual é a diferença entre um “saber” e um “conhecimento”? Nos
balanços, não existe nada que permita estabelecer uma diferença entre os dois termos
(os alunos utilizam-nos de forma indiferenciada). Mas, talvez, se possa dizer que um
conhecimento é aquilo que é ensinado (qualquer que seja o estatuto) quando se refere
ao sujeito que aprendeu. O “saber” (saber-objecto), na medida em que foi apropriado
por alguém, é também ele um “conhecimento”. Mas nem todo o conhecimento reme-
te para um saber-objecto. Podemos “conhecer a canalização” (domínio de um con-
junto de operações e de situações, enquanto domínio que se refere à pessoa do cana-
lizador), “conhecer os meios desportivos” (domínio de comportamentos e de formas
de subjectividade – os seus e os dos desportistas – sempre enquanto referência àquele
que tem este domínio) e, claro está, “conhecer a vida” (ser dotado deste conjunto de
factos referentes – princípios que permitem dar, ao mesmo tempo, sentido à “vida”
e à “minha vida”). Também se pode ser muito conhecedor de vinhos e mulheres (ou
homens...), o que remete para uma síntese subtil e misteriosa que o indivíduo realizou
entre saberes, competências operatórias, formas de comportamento e princípios de
interpretação relacionados com experiências.

Os saberes, as operações materiais e simbólicas, os comportamentos e as formas de


subjectividade, a “vida”: tudo isto se aprende. É legítimo utilizar o mesmo termo “apren-
dizagem”, ainda que as formas desta actividade sejam tão diferentes: o que é sublinhado
pela unicidade do termo é a própria condição da espécie humana, obrigada a construir-se a

99
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

ela própria enquanto constrói o seu mundo (Charlot, 1997). Em contrapartida, falar de “sa-
ber” em todos estes casos introduz uma grande ambiguidade: mesmo que se acrescentem
adjectivos ou complementos à palavra “saber” (prático, teórico, savoir-faire, etc.), o risco
de esquecer a especificidade epistémica do que é aprendido em cada caso e das actividades
realizadas pela aprendizagem é grande.
O risco é igualmente importante se pensarmos todas as formas da aprendizagem e o
que foi aprendido a partir de uma forma, socialmente valorizada e dominante: a apropria-
ção de saberes-objectos (aos quais, por mim, se deve dar o nome “saberes”). Não será
inocente a nossa necessidade de designar por “saber” a capacidade de realizar certas ope-
rações (“savoir-faire”) e até mesmo a capacidade de entrar em certas formas relacionais
(“saber estar”). Assim, conferimos uma maior dignidade a estas capacidades que foram
efectivamente adquiridas, aprendidas; de facto, elas são submetidas a uma operação de
homogeneização que reforça a posição dominante daqueles que possuem os saberes sem
adjectivos nem complementos e as palavras que os exprimem.

100

CAP. 7
ESTUDOS COMPARATIVOS
Rapazes e raparigas, industriais e terciários, BEP e
baccalauréat profissional, origens sociais

Até agora, os dados recolhidos diziam respeito aos “alunos do liceu profissional” – con-
siderados representativos dos alunos de origem popular. Vamos agora analisar subgrupos:
rapazes e raparigas, jovens escolarizados em ramos industriais ou terciários, alunos de tur-
mas de BEP ou de bac pro, jovens repartidos em função da profissão do chefe de família.
Para compreender bem a exacta amplitude das diferenças que vão ser apresentadas é
preciso prestar atenção a um aspecto metodológico. Se tirarmos conclusões a partir das
percentagens mais elevadas, isto é, dominantes, não encontramos diferenças entre estes
subgrupos: por exemplo, o retrato das raparigas aparece semelhante ao dos rapazes. Mas
se tivermos em conta os resultados totais, surgem diferenças subtis. Assim, rapazes e ra-
parigas alegam os mesmos temas quando falam do que é importante para eles ou do que
esperam do futuro: os estudos, o diploma, o trabalho. Nem os rapazes, nem as raparigas
dão uma importância maior ao saber que, nos dois casos, só é evocado por uma pequena
minoria. Mas o certo é que esta minoria não é igual: as raparigas evocam duas vezes mais
a questão do saber do que os rapazes (17% raparigas, 8,5% rapazes). É preciso memorizar
estes dois resultados: a questão do saber é de menor importância para as raparigas e para
os rapazes; ela é duas vezes mais citada pelas raparigas do que pelos rapazes. Dito de outra
forma, as diferenças entre subgrupos só ajustam os resultados que, nos pontos essenciais,
são os mesmos para todos os subgrupos.

1. Rapazes e raparigas
Os balanços de saber foram redigidos por 282 rapazes e 251 raparigas. Os quadros propos-
tos em anexo permitem comparar as respostas das raparigas e dos rapazes. Para evitar uma
enumeração fastidiosa, farei aqui uma apresentação sintética das principais diferenças78. O
que é que elas nos ensinam sobre a relação com o saber dos rapazes e das raparigas?
As raparigas produzem mais ocorrências do que os rapazes (2 189 ocorrências para 251 raparigas, ou
78

seja, uma média de 8,72; 1 643 ocorrências para 282 rapazes, ou seja uma média de 5,82), de forma que
a percentagem de raparigas que evocam este ou aquele tipo de aprendizagem é quase sempre superior à
dos rapazes – o que torna impossível uma comparação a partir desta percentagem. Por isso, apoiar-me-ei
numa comparação de percentagens de um determinado tipo de aprendizagem em relação ao conjunto das
aprendizagens – método que neutraliza o efeito da maior produtividade das raparigas. Mas uma análise
dos dois tipos de quadros (% de ocorrências e % de alunos) seria interessante: pode dizer-se que uma
aprendizagem é mais evocada pelos rapazes (em referência às percentagens das aprendizagens) quando
precisamente ela é mais citada por uma proporção maior de raparigas que de rapazes (como o comprovam
os quadros de percentagens de alunos).
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

As diferenças entre rapazes e raparigas não residem nas suas relações com as apren-
dizagens intelectuais e escolares, pois são mínimas. Elas surgem na sua relação com o
mundo e com os outros, na sua relação com os lugares de aprendizagem (família, escola
e bairro) e nos recursos de que eles dispõem para se adaptar ao universo escolar e nele ter
bom aproveitamento.
Em primeiro lugar, as raparigas vivem num mundo mais pacificado do que os rapa-
zes e elas desenvolvem nele mais competências relacionais e reflexivas. De facto, elas
evocam com mais frequência as aprendizagens relacionais e afectivas, citam com mais
frequência as relações de harmonia e de solidariedade e “conhecer as pessoas, a vida”
ou “quem sou”. Inversamente, os rapazes mostram-se um pouco mais preocupados em
estar dentro das normas, em aprender a defender-se e a “não... pisar o risco”, em saber
desenrascar-se: eles vivem o mundo de forma mais tensa e parecem ter construído menos
competências relacionais e reflexivas. No nosso livro sobre os collèges (Charlot, Bautier
& Rochex, 1992) eu colocava a hipótese de uma “distanciação-regulação” maior nas
raparigas do que nos rapazes. Os dados recolhidos no liceu profissional reforçam esta
hipótese: as raparigas são mais capazes de se distanciar em relação aos outros, a elas pró-
prias e às situações e, por isso, de regular as suas relações com o mundo, com os outros
e com elas próprias.
Em segundo lugar, nos relatos dos rapazes e das raparigas surgem diferenças muito sensíveis
no que diz respeito aos diversos lugares de aprendizagem. Estas diferenças manifestam-se na
própria natureza das aprendizagens citadas: as raparigas citam mais as tarefas familiares, os
rapazes mais as actividades físicas e desportivas, os tempos livres e as actividades lúdicas, os
savoir-faire específicos. Mas é sobretudo a atribuição de vários tipos de aprendizagem a diferen-
tes lugares que permite perceber estas diferenças entre os rapazes e as raparigas
Os dois principais lugares de referência de aprendizagem para as raparigas são a família
e a escola, para os rapazes a família e o bairro – o que confirma a análise dos agentes de
aprendizagem: familiares e escolares para as raparigas, familiares e juvenis para os rapazes.
Quer se trate de rapazes ou raparigas, é antes de tudo à família que os jovens se
referem para expressarem o que aprenderam desde que nasceram. Mas o desafio da
educação familiar não é o mesmo para os rapazes e para as raparigas. Para os rapazes
mais do que para as raparigas, a família é o lugar onde é preciso aprender a ser bem-
‑educado, a ter autocontrolo, a não transgredir as regras79; mais uma vez a relação deles
com o mundo é mais tensa que a das raparigas. Para as raparigas mais do que para os
rapazes, a família é um lugar de harmonia-solidariedade, onde se aprende a conquistar a

79
Este resultado pode parecer estranho: mais do que as raparigas, são os rapazes que atribuem à família
“eu aprendi a ser bem-educado”, quando intuitivamente pensamos que é sobretudo às raparigas que a
família ensina a boa educação. Para não nos enganarmos na interpretação deste resultado, é preciso ter
em conta que os balaços de saber não nos indicam aquilo que os jovens efectivamente aprenderam mas
aquilo que os jovens dizem ter aprendido. É provável que “ser bem educado” é para as raparigas uma parte
da socialização por impregnação e é tão evidente que não é visto como uma aprendizagem, enquanto que
para os rapazes este dado já não é tão evidente, implica um esforço explícito e por isso é visto como uma
aprendizagem. Relembro que nesta investigação não estamos a estudar as aprendizagens efectivas mas
sim as relações à aprendizagem.
102
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

sua autonomia e a conhecer “quem sou”; de novo, a relação com o mundo é mais calma
e mais reflexiva.
A relação com o bairro é igualmente muito diferente. Para os rapazes mais do que
para as raparigas, no bairro aprendemos a defender-nos e a ser autónomos. Além disso, os
rapazes conferem mais peso ao bairro no que diz respeito ao seu desenvolvimento pessoal
que as raparigas: para eles, o bairro é um lugar importante para aprender quem somos.
Inversamente, para as raparigas mais do que para os rapazes, no bairro aprende-se mais a
ter autocontrolo e a conhecer a vida e as pessoas. Este último ponto é corroborado através
de outra diferença: quando elas evocam as aprendizagens de tipo ideológico ou político,
as raparigas atribuem-nas ao bairro mais do que os rapazes. Os rapazes vivem mais o
bairro no plano do desenvolvimento pessoal, as raparigas vivem-no mais no plano da vida
colectiva. E, aliás, podemos também pensar se esta diferença não se encontra igualmente
presente no mundo dos adultos: o investimento em associações que tentam organizar e
regular a vida do bairro é maior nas mulheres do que nos homens.
E no que à escola diz respeito? Tanto para os rapazes como para as raparigas é um
lugar onde é preciso aprender a ser bem-educado, a estabelecer relações de amizade e de
solidariedade com os outros, a ser autónomo e senhor de si. Mas o peso destas aprendiza-
gens é diferente tanto para as raparigas como para os rapazes. A questão central para os
rapazes diz respeito à conformidade e ao autocontrolo. Para as raparigas, diz respeito à
autonomia e à harmonia-solidariedade; para além disso, a escola também é para elas, de
forma importante, o lugar onde se percebe quem se é.
É interessante confrontar os resultados tendo em conta os lugares de aprendizagem.
Onde é que se aprende a ser autónomo, a desenrascar-se, a ter confiança em si? Onde é
que se aprende quem se é? O peso da família e da escola é neste caso maior nos rapazes, o
do bairro é maior nas raparigas. Dito de outra forma, para as raparigas a afirmação positiva
e reflexiva de si faz-se na família e na escola, para os rapazes no bairro e, inversamente,
para as raparigas o esforço para controlar e reprimir as pulsões desenvolve-se no bairro,
para os rapazes na família e na escola. Para as raparigas e para os rapazes as diferentes
dimensões da construção de si não estão em jogo nos mesmos espaços.
Isto também quer dizer que o lugar da escola no sistema de lugares de aprendizagem
é diferente e, por isso, a relação com a escola também. Tanto para os rapazes como para
as raparigas, existe uma grande continuidade entre a família e a escola mas para as ra-
parigas ela remete mais para um projecto de autonomia e nos rapazes para um combate
contra si. Inversamente, nem para os rapazes, nem para as raparigas a escola surge ao
lado do bairro mas isto apresenta uma significação diferente nos dois sexos. Para os ra-
pazes, a escola não converge para o lugar onde eles têm que se afirmar, para as raparigas
a escola não converge para o lugar onde existe o perigo e a necessidade de um combate
contra si. Mais para as raparigas do que para os rapazes, a escola pertence ao campo
da valorização pessoal e do mundo tranquilo. Para os rapazes, a escola sustem menos

103
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

promessas de valorização pessoal e mais exigências de autocontrolo. Ela é para eles


ainda mais ameaçadora quando a única coisa que vêem na escola é o lado institucional,
ao contrário das raparigas que individualizam mais as suas relações com os agentes de
aprendizagem.
As raparigas dispõem por isso de recursos mais diversos e sólidos para enfrentar a
escola e as suas exigências. Acabámos de ver que as suas competências relacionais, re-
flexivas e reguladoras são maiores e que as convergências entre lugares de aprendizagem
são mais favoráveis ao sucesso escolar para as raparigas do que para os rapazes. Mas as
raparigas ainda beneficiam de outros recursos.
Por um lado, elas citam mais conteúdos escolares que os rapazes e fazem com menos
frequência esses longos inventários de disciplinas escolares que transformam corpos de
saber (Matemática, História, Francês...) em modalidades de funcionamento da institui-
ção80. Dito de outra forma, as raparigas identificam um pouco melhor do que os rapazes
a função específica da escola. Aliás, de maneira geral, as raparigas demonstram nos seus
balanços uma maior clareza na identificação das funções de cada lugar e de cada tipo de
agente de aprendizagem. É provável que isto as ajude a perceber melhor o significado da
escola e a distinguir melhor as formas de actividade e normas de comportamento especí-
ficas da escola.
Por outro lado, a relação com o futuro é mais concreta nas raparigas do que nos rapa-
zes e nas raparigas o laço entre presente e futuro, nomeadamente através do saber, está
melhor assegurado. Elas citam com mais frequência a sua futura família, a realização
pessoal na sua vida, a realização pessoal no trabalho do que os rapazes, que aderem mais
ao presente (no duplo sentido de adesão e aderência). Da mesma maneira, elas falam com
mais frequência do saber em si quando evocam o futuro e associam com mais frequência
os estudos e o diploma ao trabalho. Os rapazes também querem, sem dúvida, estudar, obter
diplomas, ter uma vida bem sucedida, ser alguém, mas, ao ler os seus relatos, tem-se com
frequência a impressão que esta vontade parece suspensa no vazio: os seus motivos são
afirmados de forma menos clara e os laços entre este futuro e o que se passa hoje, nomea-
damente na escola, parecem muito vagos.
Em qualquer parte do mundo as raparigas são melhores alunas que os rapazes. Existe
aqui um problema sociológico por resolver – e é ainda mais preocupante quando ele é ao
mesmo tempo social e universal. Foram avançadas duas explicações. Primeira explicação:
as raparigas, mais dependentes, são mais vigiadas, mantidas dentro de casa e consagram
por isso mais tempo aos seus trabalhos escolares. Segunda explicação, que defende o con-
trário da primeira: porque se exige mais delas, as raparigas são mais autónomas e por isso
mais preparadas para enfrentar as exigências da escola. A pista parece-me boa: qualquer
que seja a explicação, ela reside na vertente da dominação universal vivida pelas mulheres

Residem aqui as únicas diferenças notáveis entre rapazes e raparigas do ponto de vista das aprendiza-
80

gens intelectuais e escolares.


104
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

por causa do género a que pertencem. Mas o debate entre “dependência” e “autonomia”
recai sobre categorias demasiado gerais... É na relação diferencial com o saber e a escola
que é preciso procurar a explicação do melhor aproveitamento escolar das raparigas: elas
desenvolvem competências reflexivas reguladoras que lhes dão trunfos para enfrentar a
escola, elas identificam melhor a função específica dos lugares e dos agentes de apren-
dizagem, elas têm uma relação com o futuro mais concreta e mediatizada, elas podem
apoiar-se nas relações família-escola-“outros lugares” que têm nelas efeitos de reforço
enquanto que nos rapazes estas relações induzem efeitos de dilaceração. O que engendra
a sua situação de dominadas não é só uma dependência ou autonomia mas um sistema
mais complexo de relações com o mundo (e aos lugares que o estruturam), com os outros,
consigo, com o tempo.
É preciso contudo especificar que estas relações não são suficientes para assegurar o
bom aproveitamento escolar (não esquecer que esta análise diferencial assenta sobre rapa-
zes e raparigas em situação de dificuldades escolares): tudo depende do que estas jovens
farão com estas relações na sua história singular e na sua confrontação mais ou menos
eficaz com as actividades escolares.

2. Industriais e terciários: e, uma vez mais, rapazes e raparigas

Os balanços de saber foram recolhidos junto de 222 rapazes escolarizados em ramos in-
dustriais, 18 raparigas também “industriais”, 233 raparigas frequentando ramos terciários
e 60 rapazes também eles “terciários”. Dito de outra forma, existe uma vasta cobertura
entre rapazes e “industriais”, raparigas e “terciários”81.
Não é uma coincidência: os ramos industriais acolhem essencialmente rapazes – há
muito poucas raparigas que se misturam com os rapazes e, por outro lado, existem ramos
industriais mais femininos, em menor número (como os de materiais flexíveis, isto é,
costura); os ramos terciários escolarizam sobretudo raparigas mas também uma minoria
de rapazes a ter em conta. Mais do que tentar equilibrar as quatro categorias (rapazes “in-
dustriais”, raparigas “industriais”, rapazes “terciários”, raparigas “terciários”) preferi tra-
balhar com uma população que reflecte, globalmente, a situação dos efectivos nos liceus
profissionais e corresponde, por isso, à “realidade” institucional e pedagógica.

81
Os “industriais” perfazem 92,5% de rapazes, os “terciários” 79,5% de raparigas; os rapazes são “indus-
triais” em 79% dos casos, as raparigas estão no ramo terciário em 93% dos casos. Em 1996-1997 (França
metropolitana, público + privado), no último ano de BEP ou de CAP em 2 anos, as “áreas pluritecnológi-
cas da produção” perfazem 88,9% de rapazes, as “áreas pluritecnológicas de serviços” 71,9% de rapari-
gas; os rapazes estudam “produção” em 71,3% dos casos, as raparigas estudam “serviços” em 88,2% dos
casos (DEP, 1997). Em relação às percentagens nacionais, a população do inquérito acentua ainda mais o
carácter masculino do ramo industrial e feminino do ramo terciário. Contudo, a diferença entre as percen-
tagens nacionais permanece razoável e a população do inquérito reflecte bem o facto de o ramo terciário
ser mais acessível aos rapazes do que o industrial às raparigas.
105
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Mas, do mesmo modo, encontramo-nos face a uma situação em que a diferença entre
industriais e terciários corre o sério risco de reflectir unicamente a diferença entre rapazes
e raparigas82. Os quadros apresentados em anexo permitem constatar efectivamente que,
entre industriais e terciários, encontramos as diferenças essenciais sublinhadas entre ra-
pazes e raparigas.
Assim, os terciários citam mais as aprendizagens relacionais e afectivas, os conteúdos
de saber, as relações de harmonia, “quem sou”; os industriais enumeram com mais fre-
quência as disciplinas, evocam mais frequentemente a auto defesa, não transgredir, a auto-
nomia. Os terciários citam mais a família enquanto lugar de aprendizagem, os industriais
o bairro; os terciários evocam mais os agentes familiares, os industriais mais os agentes
juvenis. Os terciários são mais precisos no que toca à atribuição das aprendizagens aos
diversos locais. As diferenças entre industriais e terciários no que diz respeito ao que é im-
portante e àquilo que esperam do futuro são muito próximas das diferenças entre rapazes
e raparigas.
Poderia ficar-me por aqui e concluir: não faz sentido comparar industriais e terciários.
Contudo, esta comparação é interessante em dois pontos.
Em primeiro lugar, os terciários são mais normativos que os industriais e esta diferença
excede qualquer constatação entre rapazes e raparigas. Esta conclusão apoia-se em três
indicadores.
1. As ocorrências reagrupadas na categoria “conformidade” (portar-me bem, ouvir e
respeitar os adultos, ser bem educado...). Estas ocorrências representam nos indus-
triais 26% do conjunto das ocorrências ARA-DP e nos terciários 28%. Esta diferen-
ça não se deve às raparigas já que o grupo das raparigas (ind. + terc.) cita com menos
frequência estas ocorrências que o grupo dos rapazes (R. 29%, Ra. 26%). A situação
parece mais clara quando se comparam os quatro grupos: R. ind. (28%), Ra. ind.
(19%), R. terc. (31%), Ra. terc. (27%). Os rapazes são sempre mais normativos que
as raparigas e os terciários sempre mais normativos que os industriais: não se pode
atribuir às raparigas a maior normatividade dos terciários.
2. A subcategoria “aprendizagens normativas” das aprendizagens intelectuais e escola-
res. Ind.: 1% do conjunto das AIE; terc.: 4%; R.; 3%; Ra: 2%; R. ind.: 0%; Ra. ind.:
2%; R. terc.: 10%; Ra. terc.: 2%. As diferenças parecem pouco significativas, com
excepção de um ponto: os rapazes dos ramos terciários manifestam uma normativi-
dade nitidamente mais forte.
3. A subcategoria das aprendizagens profissionais intitulada “comportamentos neces-
sários para exercer a profissão citada”. Ind.: 3% do conjunto das APro; terc.: 22%;
R.: 12%; Ra.: 19%; R. ind.: 4%; Ra.: 0%; R. terc.: 25%; Ra. terc.: 22%. Os rapazes e

Podemos apresentar a hipótese inversa: a diferença entre rapazes e raparigas reflecte, de facto, a diferen-
82

ça entre industriais e terciários. Porém, parece mais razoável (tendo em conta o peso social dos dois tipos
de variáveis), e mais em conformidade com os dados, que a diferença essencial seja aquela que distingue
os sexos.
106
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

as raparigas de ramo terciário parecem nitidamente mais normativos na sua relação


com o trabalho do que os rapazes e as raparigas de ramos industriais.

De notar que, dos quatro grupos de alunos, os rapazes de ramos terciários são os mais
normativos.
Em segundo lugar, a diferença entre rapazes e raparigas é menor no ramo terciário
que no ramo industrial. Em vários itens, e mais particularmente para os que se classificam
nas aprendizagens relacionais e afectivas, as percentagens de rapazes de ramo terciário
tendem a aproximar-se do grupo das raparigas (industriais mais terciários83). O fenómeno
simétrico não se verifica: as percentagens de raparigas industriais não tende a dirigir-se
para o grupo dos rapazes.
Como é que se podem justificar estes dois pontos? Proponho, de forma hipotética, a
seguinte interpretação.
As raparigas, como já vimos, dispõem de recursos que lhes permitem adaptar-se me-
lhor às exigências da escola; elas têm nomeadamente competências relacionais e reflexivas
que facilitam a regulação das suas relações com os professores (por outro lado, fazem-se
notar na sua individualidade mais do que os rapazes). De maneira geral, é de esperar que
o ambiente nas turmas de raparigas (industriais ou terciários) seja mais calmo do que nas
turmas de rapazes: as raparigas portam-se melhor que os rapazes, ouvem e respeitam mais
os professores – ou, para ser mais exacto, são capazes, com maior frequência, de dar uma
aparência de conformidade.
Acerca deste efeito de socialização acrescentam-se outros três efeitos:
• Por um lado, um efeito de selecção-orientação. As profissões do terciário implicam
competências de distanciação, de regulação, de aparente normatividade: num escri-
tório, num balcão de serviços, numa loja é preciso saber comportar-se, respeitar os
chefes, os colegas, os clientes... As raparigas que manifestam estas competências
sentem mais apetência para estas profissões e são com mais frequência orientadas
pelos professores para este ramo (sem que, note-se, estas competências sejam expli-
citamente avaliadas nos boletins escolares...).
• Por outro lado, um efeito de interacção: os alunos regulam o seu comportamento pelo
dos outros (que, devido à selecção-orientação, tem a ver com eles), o que tende a
reforçar as características e os comportamentos ligados à sua socialização.
• Por fim, um efeito de formação: o tipo de saber transmitido e a especial atenção que
os professores dão aos comportamentos e às competências relacionais (que sabem ser
essenciais no ramo terciário) também acentuam os efeitos da socialização.

O que confirma (se necessário fosse...) que as diferenças entre rapazes e raparigas não são diferenças
83

por natureza mas diferenças na relação com o saber e a vida, isto é uma construção social (uma construção
social numa história singular).
107
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

E em relação aos rapazes? Portar-se bem, obedecer, respeitar as normas não é, como
já vimos, um efeito “evidente” da socialização masculina e exige um esforço particu-
lar da parte dos rapazes, para quem esta normatividade surge como uma aprendizagem.
Também não é de espantar que, quando conseguem fazer esta aprendizagem, eles tendem
a ser sobrenormativos e, nos balanços de saber, são ainda mais normativos que as rapa-
rigas de ramo terciário. Como é que conseguem chegar a este ponto? Para eles, o efeito
da selecção-orientação também tem importância: não é qualquer rapaz que tem vontade
de ser contabilista e sobretudo vendedor ou secretário, profissões que nas representações
sociais são mais femininos; para além disso, é possível que os comportamentos dos alunos
pesem nas decisões dos professores de orientação para este ramo (mas este dado ainda está
por verificar). Por outro lado, tanto para os rapazes como para as raparigas, os efeitos de
interacção e de formação são importantes.
A situação das raparigas no ramo industrial não é simétrica à dos rapazes no ramo
terciário. Certamente, algumas raparigas, por causa da sua história singular e atípica, es-
colhem profissões e, logo, turmas onde os homens predominam de forma nítida. Mas a
maioria das raparigas de ramo industrial estão escolarizadas em turmas em que as rapari-
gas constituem a esmagadora maioria, para se prepararem para profissões cuja representa-
ção está ligada ao universo feminino (sendo aqui o exemplo as secções de costura): nestas
turmas não existem efeitos de interacção e de formação que teriam tendência a atirar estas
raparigas para um perfil socialmente mais “masculino”.
A investigação não fornece dados que permitam compreender o que se passa nestas
turmas de raparigas de ramo industrial: o seu perfil mantém-se vago. Esta falta de nitidez
deve-se com certeza ao facto de só terem sido recolhidos 18 relatos de raparigas de ramo
industrial (das quais 2 em turmas que acolhem maioritariamente rapazes). Mas este vácuo
também se pode ficar a dever ao carácter de alguma forma híbrido deste grupo: escolariza
“raparigas” em ramos “industriais”; ora, as representações sociais associadas à feminilida-
de e à actividade industrial não convergem muito. É provável que a ligação destas jovens
com a escola e com o que lá se passa seja o resultado de um compromisso; as entrevistas
realizadas nas secções de costura mostram aliás, de forma interessante, que no futuro as
raparigas não querem ser operárias mas sonham ser estilistas ou donas de uma “pequena
loja de roupa”.
Em contrapartida, a investigação permite perceber melhor porque é que o ensino nos
ramos terciários é geralmente mais fácil do que o dos ramos industriais. O perfil das ra-
parigas de ramo terciário é o mesmo que foi traçado ao comparar o total das raparigas e
o total dos rapazes – uma vez que as raparigas da nossa população estão escolarizadas
em 93% nos ramos terciários. Ora, estas raparigas, como já vimos, apresentam recursos,
socialmente construídos, para enfrentar a escola e as suas exigências. Quanto aos rapazes
de ramo terciário (que dizem respeito a 20,5% dos nossos balanços de ramo terciário),
tendem a aproximar-se das raparigas de ramo terciário e até manifestam uma sobrenor-

108
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

matividade em relação a estas últimas. Os professores de turmas do ramo terciário podem


apoiar-se nesta normatividade e, de forma mais abrangente, nas competências relacionais
reguladoras das raparigas, na sua grande preocupação em viver num mundo tranquilo, no
seu interesse por tudo aquilo que, na profissão, advém dos comportamentos, na sua vonta-
de em ser autónomas e ser bem sucedidas na vida e no trabalho, na sua relação com uma
escola que se identifica melhor nas suas especificidades.
Por fim, a investigação permite perceber melhor porque é que as turmas de rapazes de
ramo industrial são particularmente difíceis – como tão bem sabem os professores visa-
dos84. O perfil dos rapazes, como já vimos, fornece muito menos apoio aos professores que
o das raparigas. Ainda assim, este perfil foi suavizado pelo facto de no grupo de rapazes
que foi analisado haver 21% no ramo terciário (cujas características tendem a aproximar-
se das raparigas). O estudo do grupo dos rapazes de ramo industrial evidencia uma relação
com o saber e com a escola ainda mais problemática para os professores.
Os rapazes de ramo industrial têm dificuldade em identificar a escola como lugar de
saberes e de actividades intelectuais. Para eles, a escola é um lugar onde se aprende a ler e
a escrever, e uma série de disciplinas que se limitam a enumerar e “o que devemos apren-
der na escola”. Eles não vêem muito a escola em termos de conteúdos e de actividades
específicas. É para estes jovens que a questão do sentido da escola, e particularmente do
que lá se aprende, se coloca com a maior acuidade possível. Além disso, eles não são nada
normativos nas suas relações com a instituição e com os professores.
Curiosamente, são estes os jovens, dentro dos quatro grupos, que produzem o maior
número de ocorrências classificadas nas “aprendizagens intelectuais e escolares”. Mas
trata-se maioritariamente de aprendizagens básicas (ler, escrever, contar), expressões ge-
néricas e tautológicas e enumeração de disciplinas. Os rapazes de ramo industrial são os
que enumeram maior número de disciplinas, que falam com menos frequência em “pen-
sar” e são os menos normativos (0%...) nas suas relações com a escola.
A relação com a escola não se reconstrói em torno de saberes profissionais – com ex-
cepção de uma minoria que tende a ser precisa, até mesmo prolixa em relação à questão.
Para a maioria destes jovens, o liceu profissional é um lugar cuja frequência permite con-
seguir mais tarde uma profissão, que se espera que seja boa, sem que esta profissão seja
apreendida de forma muito precisa em termos de saberes profissionais. Dos quatro grupos,
estes são os que, nos seus relatos, surgem menos centrados no campo profissional e, desse
ponto de vista85, mais flutuantes.
Os rapazes de ramo industrial constituem o grupo que menos refere aprendizagens pro-
fissionais. Para além disso, quando as evocam, são eles que, com mais frequência, falam

84
Contudo, numa investigação ainda mais minuciosa, conviria ter também em conta a especialidade in-
dustrial ensinada: existem diferenças entre, por exemplo, as turmas ORSF (operadores-reguladores em
sistemas de fabricação) e as turmas de electrotecnia.
85
Neste ponto, estamos muito longe do que Claude Grignon descreveu em tempos na obra L’Ordre des Cho-
ses.
109
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

em termos de “boa profissão” ou de conexão profissão-futuro-sucesso (44% das APro) ou


ainda em encontrar um emprego, uma profissão (8% das APro).
Esta incerteza na relação com o saber, inclusive profissional, não é compensada atra-
vés de um domínio do ponto de vista relacional. O mundo deles é muito tenso (é preciso
aprender a defender-se, a desenrascar-se, a enfrentar a questão da transgressão) e as suas
competências relacionais reflexivas e reguladoras são menores que nos outros grupos.
Os rapazes de ramo industrial são aqueles que menos referem aprendizagens relacio-
nais e afectivas, menos ocorrências “harmonia”, menos ocorrências “conhecer a vida e
as pessoas” e (em igualdade com os rapazes de ramo terciário) menos ocorrências “quem
sou”. Em contrapartida, são os que mais evocam a questão da transgressão e a necessidade
de aprender a desenrascar-se e ser autónomos.
Em suma, estes alunos aspiram conseguir ter acesso a uma boa profissão no futuro,
mas de forma vaga, sem referências, seja no campo do saber e da actividade intelectual,
seja no do trabalho. Eles vivem num mundo tenso, numa espécie de lógica de sobrevivên-
cia no presente, com um fraco domínio do campo relacional e pessoal. O essencial da sua
lógica no campo das aprendizagens parece ter sido consagrado a esta sobrevivência no
presente num mundo perigoso, onde é preciso aprender a desenrascar-se e a afirmar-se.
A escola não está no centro do seu universo de aprendizagem: são eles que dizem não ter
aprendido nada na escola, são eles que menos reconhecem agentes escolares (15%) e mais
agentes juvenis (22%). Para aprender conta-se mais com os amigos do que com a escola e
os professores – já que, em primeiro lugar, o que é importante aprender é conseguir safar-
se sem muitos danos num mundo difícil.
Estas turmas apresentam, então, especiais dificuldades para os professores, que aí en-
contram poucos pontos de apoio. Contudo, é preciso não esquecer que não se trata aqui
de características naturais, nem de características que não estão relacionadas com o que
os alunos viveram na escola (em fases anteriores da sua escolaridade ou actualmente). A
relação destes jovens com o saber exprime o mundo no qual vivem, incluindo a escola.
Este dado não é natural, nem socialmente constrangedor e irreversível; é um conjunto de
relações com o mundo, com os outros e consigo próprio que pode sempre ser alterado – e
por vezes inverter-se em conversões escolares reais.

3. Alunos de BEP e alunos de baccalauréat profissional

Foram recolhidos 42 balanços no 3e technologique86, 24 em turmas de CAP, 329 em tur-


mas de BEP e 138 em turmas de baccalauréat profissional (bac pro87).

86
NT: Ano de adaptação que conduz os alunos para o BEP ou o CAP nos liceus profissionais. Cf., em
anexo, o organograma do sistema educativo francês.
87
Os balanços de BEP foram redigidos por um número superior de rapazes e de alunos de ramo industrial
(194 R., 135 Ra.; 181 ind., 148 terc.) e os relatórios de bac pro foram maioritariamente redigidos por rapa-
rigas de ramo terciário (40 R., 98 Ra.; 23 ind., 115 terc.). Levei este dado em conta nas interpretações. Por
110
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Centrar-nos-emos na comparação entre as turmas de BEP e bac pro. Por um lado, o


número de balanços recolhidos no 3e technologique (42) e sobretudo na turma de CAP
(24) é fraco: depois da repartição das ocorrências em categorias e subcategorias, a análise
assenta sobre algumas unidades e torna-se assim impossível. Por outro lado, é sobretudo
a comparação entre turmas de BEP e de bac pro que é interessante. De facto, os alunos
de bac pro são na sua grande maioria alunos de BEP com bom aproveitamento escolar88:
a comparação destes dois níveis permite assim tentar identificar processos, formas de re-
lação com o saber e a escola, características de alunos que foram bem sucedidos na sua
escolaridade em liceu profissional.
A comparação não demonstra diferenças sensíveis entre alunos de BEP e de bac pro
do ponto de vista das aprendizagens intelectuais e escolares. Sem dúvida, os alunos de
bac pro citam com menos frequência ler-escrever-contar, mas eles permanecem numa
grande incerteza, como fica provado pela frequência das ocorrências tautológicas ou pela
enumeração de disciplinas. Estes alunos não evocam mais conteúdos de saber que os de
BEP – antes pelo contrário. Não é pois na sua relação com o saber, no significado estrito
do termo, isto é, conteúdos ou formas de actividades intelectuais, que se deve procurar
as razões pelas quais os alunos de bac pro atingiram este nível de escolaridade89.
Será que a diferença entre estes alunos reside na sua relação com as aprendizagens
profissionais? Em relação a este ponto constatam-se efectivamente diferenças sensíveis
mas elas dizem respeito a uma minoria de alunos.
Por um lado, quanto mais se avança no nível de escolarização mais são evocadas as
ocorrências profissionais, tanto nos rapazes como nas raparigas. Os alunos de 3e tech-
nologique citam muito pouco ocorrências profissionais (1% de ocorrências, produzidas
por 5% de alunos) – o que é aliás normal já que as turmas tecnológicas não são turmas
“profissionais”. Os alunos de BEP evocam-nas um pouco mais (3% de ocorrências, 14%
de alunos) e os de bac pro mais ainda (7% de ocorrências, 26% de alunos). Além disso, o
peso das aprendizagens profissionais entre as aprendizagens referentes à escola é maior

um lado, verifiquei os resultados grupo a grupo. Por outro lado, não quis explorar as respostas a algumas
questões (sobre os agentes de aprendizagem, sobre as expectativas e em parte sobre os lugares de aprendi-
zagem) porque levar em consideração o sexo ou o ramo de ensino conduzia a comparações entre números
muito fracos para serem significativos. Por fim, a população de inquérito não comporta raparigas de ramo
industrial escolarizadas em turmas de bac pro, de forma que não é possível comparar turmas de BEP e de
bac pro no que diz respeito às raparigas de ramo industrial.
88
No fundo, a situação é um pouco mais complexa. Por um lado, alguns alunos de bac pro podem vir do
segundo ciclo técnico, até mesmo geral, sem terem passado por uma turma de BEP; mas estão em menor
número. Por outro lado, os alunos que têm melhor aproveitamento em BEP podem também entrar no
Première d’adaptation (segundo ciclo técnico); contudo, os estabelecimentos que dispõem de ramos de
bac pro recusam por vezes perder estes bons alunos de BEP e orientam-nos mais para um bac pro; eu não
disponho de elementos que permitam saber se o mesmo se passa nos dois LP onde foram recolhidos os
balanços.
89
Que fique bem claro que para passar de BEP para o bac pro é preciso estudar. Mas não é numa relação
com o saber como esta que se encontram as razões que levaram estes alunos de bac pro a estudar quando
estavam numa turma de BEP.
111
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

nas turmas de bac pro do que nas de BEP, quer se trate de turmas de ramos industriais,
quer de terciários (13% em BEP ind., 27% em bac pro ind., 8% em BEP terc., 17% em
bac pro terc.).
Por outro lado, a relação com a profissão é menos vaga em bac pro do que em BEP,
quer se trate de rapazes ou raparigas. Os alunos de BEP agarram-se com mais frequência
à ideia de encontrar um emprego e ter um bom futuro. No ramo industrial, uma minoria
de alunos de bac pro (10 a 20% segundo o indicador escolhido) evocam saberes profissio-
nais. No ramo terciário, alguns alunos de bac pro evocam comportamentos e actividades
profissionais; contudo, mais uma vez, trata-se de uma minoria.
A diferença entre BEP e bac pro neste ponto é pois real: os alunos de bac pro evo-
cam mais aprendizagens profissionais e fazem-no de uma maneira mais precisa. Mas não
esqueçamos, no entanto, que esta diferença só diz respeito a uma minoria de alunos: só
26% dos alunos de bac pro citam pelos menos uma aprendizagem de tipo profissional (no
sentido muito lato do termo...) no seu relato.
É nas aprendizagens relacionais, afectivas e ligadas ao desenvolvimento pessoal
(ARA-DP) que se manifestam as principais diferenças entre alunos de BEP e de bac pro.
Em primeiro lugar, no sector industrial, o mundo dos alunos de 3e technologique é par-
ticularmente tenso: as relações de conflito (aprendi a lutar, a defender-me, a desconfiar...) e
a questão da transgressão (aprendi a não fazer asneiras, a não roubar...) representam por si
só 42% das ocorrências ARA-DP. A tensão permanece, embora um pouco menos, em BEP
industrial: conflito e transgressão constituem 20% destas ocorrências. A tensão acalma
mais em bac pro: a percentagem desce para os 14%.
Paralelamente, existem três tipos de aprendizagens relacionais e pessoais que são cita-
das com mais frequência nas turmas de bac pro do que em turmas de BEP e, mais ainda,
do que em turmas de 3e technologique.
Em primeiro lugar, a confiança em si, a autonomia, a capacidade para se desenvenci-
lhar. Os rapazes dos ramos industriais e as raparigas dos ramos terciários90, em bac pro,
citam com muito mais frequência esta aprendizagem em comparação com os alunos do
BEP e do 3e technologique. Relembremos que são estes dois grupos que servem de refe-
rência nos liceus profissionais, sendo as turmas industriais maioritariamente constituídas
por rapazes e as turmas terciárias por raparigas91.
Autonomia (em relação com o total das ocorrências ARA-DP):
• Rapazes de ramo industrial – 3T: 6%; BEP: 12%; BPro: 34%;
• Raparigas de ramo terciário – 3T: 7%; BEP: 7%; BPro: 11%;
• Todos os alunos (R. e Ra., ind. e terc.) – BEP: 8%; BPro: 13%. Item sobre o qual se
constata a maior diferença entre BEP e BPro (no campo das ARA-DP).
90
Não é possível proceder à comparação para as raparigas de ramo industrial já que não recolhi relatos de
raparigas escolarizadas em turmas de bac pro de ramo industrial.
91
NT: O texto regista o adjectivo industrielles para esta segunda categoria de turmas, o que é com toda a
probabilidade um lapso. Toda a lógica vai no sentido de que o autor quereria dizer tertiaires.
112
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Em segundo lugar, os rapazes do ramo terciário evocam com mais frequência ocorrên-
cias que remetem para o voluntarismo (ultrapassar as dificuldades, controlar-me, ser mais
maduro...):
• 3T: 5% (ARA-DP); BEP: 3%; BPro: 13%.

Em terceiro lugar, os rapazes de ramo terciário, mais uma vez, citam com mais fre-
quência as ocorrências que exprimem uma reflexividade face à existência (conhecer a
vida, as pessoas):
• 3T: 3%; BEP: 12%; BPro: 18%.

O facto de ser o mesmo grupo, o dos rapazes de ramo terciário, que evoca mais estes
dois últimos tipos de aprendizagem incita a que os associemos. Além disso, é de relembrar
que tínhamos constatado que estes rapazes de ramo terciário manifestam uma normativi-
dade maior do que a dos outros grupos. Pode parecer que são os rapazes que, ao reflectir
sobre a vida e sobre o seu futuro, se mobilizam de forma voluntarista para os estudos, ao
ponto de se tornarem um pouco sobrenormativos. Mas, estes rapazes não produzem mais
ocorrências “autonomia” do que os seus colegas de 3e technologique ou de BEP; pode co-
locar-se a hipótese (mas não passa de uma hipótese) de que o seu voluntarismo normativo
não os incita a valorizar a aprendizagem da autonomia. Inversamente, os rapazes de ramo
industrial e as raparigas de ramo terciário de turmas de bac evocam mais a autonomia sem
citar com frequência aprendizagens que remetem para o voluntarismo ou para “conhecer
a vida, as pessoas”. Eis os dois tipos de diferenças entre alunos de 3e technologique ou de
BEP e de alunos de bac pro.
As percentagens permitem constatar estas diferenças, mas deixam em aberto a sua
interpretação.
Podemos pensar que os alunos “evoluíram” entre a turma de 3e technologique, a turma
de BEP ou a de bac pro; os nossos dados não nos permitem afirmar isto porque não foi
feito nenhum estudo de “coorte”92 mas eles também não interditam a que se coloque esta
hipótese. Por exemplo, defenderemos, então, que se estes alunos passaram de BEP para
bac pro é simplesmente porque trabalharam mais e melhor e que foi esse bom aproveita-
mento que lhes permitiu serem mais autónomos ou mais voluntariosos (“evoluir”). Mas
porque é que eles trabalharam mais e melhor? Ao responder a esta pergunta corre-se o
sério risco de reintroduzir o desejo de autonomia e de voluntarismo como explicações para
o bom aproveitamento dos alunos.
Pode imaginar-se igualmente que são os alunos que apresentam uma ou outra destas
características (ou as duas) que passam no BEP e que são encaminhados para um bac pro
– porque eles têm melhores resultados e talvez também porque os professores se aperce-
bem destas características e pensam que elas lhes permitirão conseguir um diploma em
bac pro.
92
Fazer um estudo de “coorte” significaria seguir os mesmos alunos do 3e technologique ao bac.
113
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Também se pode imaginar que estas características se desenvolvem no decorrer dos


próprios estudos numa turma de bac pro: os professores de bac pro têm como claro objec-
tivo desenvolver a autonomia dos alunos, mobilizá-los muito na perspectiva de concluir o
diploma e o ensino desenvolvido no bac pro de ramo terciário ajuda, sem dúvida, muito a
“conhecer as pessoas e a vida”. Mas esta terceira interpretação depara-se com o facto de
os alunos de bac pro (inclusive rapazes e raparigas escolarizados na mesma turma de bac
pro de ramo terciário) não apresentarem as mesmas características.
A segunda interpretação parece-me a mais pertinente: são estas mesmas característi-
cas, isto é, formas de relação com o mundo, consigo, com os outros, com a existência, com
o trabalho, com o tempo... que permitem perceber porque é que estes alunos obtiveram
o diploma de BEP e passaram para o bac pro. Que fique aqui bem claro que as relações
com o mundo, consigo, com os outros... só são fontes de bom aproveitamento se induzi-
rem a um trabalho efectivo – e eficaz. É a relação com o mundo, consigo, com os outros
que torna possível a mobilização do sujeito para um trabalho; é o contexto (as práticas do
estabelecimento e dos professores, as interacções na turma...) que torna esta mobilização
efectiva; é a forma que ela toma numa actividade intelectual que a torna mais ou menos
eficaz. É o trabalho efectivo e eficaz que gera o sucesso.
Apesar disso, as duas outras interpretações não se devem pôr de parte, elas completam
a precedente: o bom aproveitamento faz aumentar a autoconfiança, estimula o voluntaris-
mo, faz “evoluir”; o ensino contribui para a construção da relação com o mundo, com os
outros e consigo próprio.
No fim desta análise, existem dois pontos que merecem ser reiterados.
Em primeiro lugar, as diferenças entre alunos de BEP e de bac pro não têm uma liga-
ção directa com os conteúdos e actividades escolares93, com excepção para uma minoria
que parece encontrar na representação do seu futuro profissional motivo suficiente para
conseguir um bom aproveitamento.
Em segundo lugar, nem todos os alunos de bac pro são motivados para ter um bom
aproveitamento escolar pelos mesmos processos: alguns são remobilizados através dos sa-
beres profissionais, outros através do interesse pelas actividades ou pelos comportamentos
profissionais, outros através do desejo de escapar à dependência acedendo à autonomia e à
autoconfiança, outros ainda pelo voluntarismo que parece associado a uma reflexão sobre
a existência. Não existe só uma boa razão para deixar de ser um “mau aluno” mas todo um
conjunto de processos que se articulam em configurações variáveis.
De notar, por fim, que não basta deixar de ser um aluno com dificuldades escolares
para começar a valorizar a escola. Existe uma diferença interessante entre os alunos de
ramos industriais e terciários de bac pro. A análise da atribuição das aprendizagens aos
diversos lugares fornece os seguintes resultados:
93
O que não quer dizer que o “escolar” (práticas, programas...) não tenha importância: a relação com o
mundo, com os outros e consigo só leva a um bom aproveitamento através de uma mobilização efectiva e
eficaz sobre o trabalho.
114
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

• BEP de ramo industrial – Família: 35%; Bairro: 22%; Escola: 34%; Outros lugares: 8%;
• Bac pro de ramo industrial – Família: 29%; Bairro: 35%; Escola: 31%; Outros luga-
res: 6%;
• BEP de ramo terciário – Família: 41%; Bairro: 21%; Escola: 33%; Outros lugares:
6%;
• Bac Pro de ramo terciário – Família: 40%; Bairro: 16%; Escola: 38%; Outros luga-
res: 6%.

Nos alunos de ramos terciários, o peso do bairro enquanto lugar de aprendizagem


diminui e o da escola aumenta. O processo é inverso nos alunos de ramos industriais:
ultrapassar o insucesso escolar não reconciliou os jovens escolarizados nas turmas de bac
pro de ramo industrial com a escola. Compreende-se que estas turmas sejam difíceis para
os professores – no entanto, muito menos que as de BEP. Compreende-se também que as
turmas de bac do ramo terciário sejam mais calmas que as outras turmas do liceu profis-
sional – o que não quer dizer que sejam sempre pacíficas...

4. Comparação segundo a categoria socioprofissional dos pais

Não são necessários longos cálculos nem sábias comparações para se chegar à conclu-
são de que os liceus profissionais são maioritariamente frequentados por jovens de meios
populares. Contudo, uma comparação de jovens escolarizados em liceu profissional, mas
oriundos de diversas categorias socioprofissionais (CSP) é interessante. Uma compara-
ção desta natureza permite nomeadamente começar a explorar a questão do “insucesso
paradoxal”. Desde há alguns anos, a Sociologia interessa-se pelo aproveitamento escolar
paradoxal (isto é, estatisticamente inesperado) dos jovens oriundos de meios populares;
até à data, não se deu muita importância à questão inversa: o insucesso escolar, também
ele paradoxal, de crianças de famílias favorecidas. Ora, encontramos filhos de quadros
superiores em liceus profissionais; não há dúvida de que são uma minoria, mas o seu caso
é interessante. Quem são estes jovens, do ponto de vista da relação com o saber e com a
escola? Nos seus balanços, são eles diferentes dos outros alunos de liceu profissional?
Uma análise desta natureza supõe que se conheça a profissão do chefe de família e,
logo, que os relatos não sejam estritamente anónimos (o que entra em contradição com
a necessidade de o jovem se exprimir com toda a liberdade). Conseguimos resolver esta
dificuldade num dos liceus profissionais, graças a uma situação favorável94. Trabalharei,
pois, aqui com os dados recolhidos num só liceu profissional, ou seja 357 relatos (15
dos quais se ignora a CSP do chefe de família): 54% redigidos por rapazes e 46% por

94
Cf. cap. 1: em Persan-Beaumont, Frédéric Ronsmans-Davray, que dispunha de confiança por parte dos
alunos e que recolheu os balanços, tinha primeiramente dado um número a cada folha distribuída e podia
assim (ele e só ele) identificar os autores dos balanços.
115
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

raparigas, 44% nos ramos industriais e 56% de ramos terciários95. Estes balanços foram
recolhidos em 24 turmas: 2 de CAP (dos quais um terciário), 18 de BEP (dos quais 10
terciários), 4 de bac pro (todos terciários). O que está aqui em causa é uma análise uni-
camente exploratória, com um tratamento ligeiro e, por isso, eu lidarei com percentagens
de alunos por categorias ou subcategorias de aprendizagens e não com percentagens de
ocorrências96.
Do ponto de vista da CSP do chefe de família, a população estudada compõe-se da
seguinte forma.

Quadro 5 – CSP do chefe de família (Persan-Beaumont)


% da CSP nos
Efectivos
balanços
Quadros superiores 28 7,8%
Profissões intermédias 66 18,5%
Artesãos/comerciantes 32 9,0%
Empregados por conta de outrem 78 21,8%
Operários qualificados 47 13,2%
Operários especializados 24 6,7%
Desempregados 49 13,7%
Outros 18 5,0%
Não respondeu 15 5,2%
Todos os alunos 357 100%

Encontraremos em anexo (Quadro A25) os principais resultados para o total das CSP.
Afim de facilitar o raciocínio, o Quadro 6 (mais abaixo) retoma os resultados para os
quadros superiores e os operários, que se comparam tradicionalmente (sem distinção entre
operários especializados (OE) e qualificados (OQ), contrariamente ao Quadro A25).

Quadro 6 – Filhos de quadros superiores e operários


% CSP nos
Efectivos % AIE % ARA % DP % Apro
relatos
Quadros superiores 28 7,8% 71% 82% 36% 18%
Operários 71 19,9% 58% 75% 38% 21%
Todos os alunos 357 100% 58% 72% 36% 17%

95
Esta população não é completamente equilibrada no que diz respeito ao sexo e tipo de ramo de ensino.
A análise levou isso em conta.
96
O tratamento dos dados por CSP foi inteiramento realizado por Saeed Paivandi, actualmente maître de
conferences em Ciências da Educação na Université Paris 8: reagrupamento das profissões por CSP (mais
exactamente por PCS – profissões e categorias sociais – de acordo com a nomenclatura pelo INSEE após
1989, mas eu prefiro manter a expressão categoria socioprofissional, mais difundida), construção das
tabelas, cálculo das percentagens. A análise e a interpretação dos dados foram realizadas por B. Charlot.
116
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

O perfil geral dos filhos dos quadros superiores é o mesmo do dos filhos dos operários:
uns e outros citam em primeiro lugar as aprendizagens relacionais e afectivas (ARA),
completadas por aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal (DP); as aprendiza-
gens profissionais (Apro) não estão no centro do universo nem de uns, nem de outros.
Contudo, a partir desta semelhança geral surgem diferenças que é necessário observar de
mais perto.
Em primeiro lugar, as aprendizagens relacionais e afectivas ou ligadas ao desenvol-
vimento pessoal (ARA-DP) não se repartem exactamente da mesma forma nos filhos de
quadros superiores e nos dos operários.

Quadro 7 – ARA-DP: filhos de quadros superiores e de operários


Quadros
OE (n=24) OQ (n=47)
superiores (n=28) % Quadros % OE % OQ
efectivos efectivos
efectivos

Conformidade 13 16 23 46,4% 66,7% 48,9%


Harmonia 14 10 19 50% 41,7% 40,4%
Conflito 2 3 5 7,1% 12,5% 10,6%
Transgressão 2 5 5 7,1% 20,8% 10,6%
Conhecer a vida 8 3 11 28,6% 12,5% 23,4%
Auto-confiança, auto- 6 4 10 21,4% 16,7% 21,3%
nomia
Ultrapassar dificul-
5 3 11 17,9% 12,5% 23,4%
dades
1 1 4 3,6% 4,2% 8,5%
Quem sou
0 1 2 0 4,2% 4,2%
Divertir-se

Nota: o quadro lê-se da seguinte forma: em 28 filhos de quadros superiores, 13 (ou seja, 46,4%) produzem (pelo
menos) uma ocorrência que remete para a ideia de conformidade.

Independentemente da categoria socioprofissional do chefe de família, estes jovens


evocam sobretudo as aprendizagens reagrupadas na “conformidade” (portar-se bem, obe-
decer, respeitar...) e “harmonia” (vida em comum, solidariedade...). Contudo, na origem
desta característica comum surgem algumas diferenças.
Os filhos de quadros superiores dão mais importância à harmonia, bem como a conhe-
cer a vida e as pessoas. Em contrapartida, eles são menos confrontados com a necessidade
de se defenderem e de “não” (transgredir). O seu mundo parece menos tenso que o dos
outros alunos de liceu profissional.
Os filhos dos operários especializados evocam muito mais que os outros a questão da
conformidade e a da transgressão. Eles vivem numa tensão ainda maior quando não pare-
cem ser dotados dos instrumentos necessários para a enfrentar: falam muito menos que os
outros em ter aprendido a conhecer a vida e as pessoas e em ultrapassar as dificuldades.

117
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Os filhos de operários qualificados vivem num mundo intermédio entre o dos filhos de
quadros superiores e o dos filhos de operários especializados. A sua principal característica
é a demonstração simultânea de voluntarismo (ultrapassar as dificuldades, autonomia) e de
reflexividade (conhecer a vida e o quem sou).

Quadro 8 – AIE: filhos de quadros superiores e de operários


Quadros superiores OE (n=24) OQ (n=47)
(n=28) efectivos efectivos efectivos
Ler/escrever/contar (aprendizagens escolares básicas) 8 7 11
Expressões tautológicas e genéricas 10 5 17
Enumeração de disciplinas 2 2 1
Evocação de um conteúdo 4 3 1
Evocação de uma capacidade 3 1 2
Aprendizagens metodológicas 1 0 5
Aprendizagens normativas 0 0 1
Pensar... 0 2 3
Todas as AIE (%) 71,4% 58,3% 57,4%
Nota: o quadro lê-se da seguinte forma: em 28 filhos de quadros superiores, 8 produzem (pelo menos) uma
ocorrência de tipo “ler/escrever/contar”. Tendo em conta a ordem de grandeza dos números, eu não proponho
percentagens (com excepção para o item “todas as AIE”, que indica a percentagem dos jovens que citam pelo
menos uma AIE – qualquer que ela seja).

Em segundo lugar, um conjunto de traços comuns e de diferenças surge de igual forma


quando se analisam as aprendizagens intelectuais e escolares (AIE).
Os filhos de quadros superiores evocam mais as aprendizagens intelectuais e escolares,
como indicam as percentagens de alunos que citam pelo menos uma aprendizagem deste
tipo. Mas é preciso evitar tirar conclusões demasiado rápidas de que eles estão mais mobi-
lizados para estas aprendizagens. De facto, a análise pormenorizada mostra que, qualquer
que seja a origem social, os alunos de liceu profissional citam pouco os con-teúdos de sa-
ber e as actividades intelectuais; para eles, na escola é importante aprender a ler/escrever/
contar e... aprender o que é importante aprender na escola. Então, os filhos dos quadros
superiores são tão vagos sobre a questão das aprendizagens intelectuais e escolares quanto
os outros alunos, no entanto apresentam uma característica: mais dos que os outros, eles
sabem que é preciso aprender “coisas” no domínio intelectual e escolar – ou, em todo o
caso, que se deve falar sobre isso quando vos é pedido para escrever um balanço...
De notar, por fim, que estes alunos, quer sejam filhos de quadros superiores ou de
operários, não evocam muito as aprendizagens profissionais mas os filhos de operários
especializados evocam-nas em maior escala: 18% dos filhos de quadros superiores citam
pelo menos uma aprendizagem deste tipo, 19% dos filhos de operários qualificados, 25%
dos filhos de operários especializados.

118
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Depois da análise dos resultados parece pertinente considerar uma outra categoria so-
cioprofissional, da qual se fala menos mas que é interessante do ponto de vista da relação
com o saber e com a escola: a dos filhos de artesãos ou comerciantes. São estes jovens,
mais do que os dos operários, que constituem o pólo oposto ao dos filhos de quadros su-
periores.
De uma forma geral, eles evocam menos aprendizagens nos seus balanços do que os
outros jovens (cf., em anexo, o Quadro A25). Como se eles sentissem mais reticências em
relação às instruções que lhes são apresentadas. O facto de estes jovens serem ainda mais
vagos do que os outros quando evocam as aprendizagens intelectuais e escolares incita
a pensar que as reticências deles não assentam só sobre as instruções, mas também, de
forma mais ampla, sobre a escola e os saberes que ela transmite.
A análise dos relatos dos filhos de artesãos e comerciantes faz surgir duas outras di-
ferenças em relação aos outros alunos. Em primeiro lugar, eles evocam as aprendizagens
profissionais em maior escala (11 em 32, ou seja, 34%). Em segundo lugar, eles dão mais
importância que os outros à questão da autonomia/autoconfiança: 9 alunos em 32 citam-na
(ou seja, 28%), contra 6 filhos de quadros superiores em 28 (21%), 4 filhos de operários
especializados em 24 (17%) e 10 filhos de operários qualificados em 47 (21%). Reticên-
cias face à escola, maior centralização nas aprendizagens profissionais, maior valorização
da autonomia: estes alunos carregam a marca do seu meio. Mas atenção, para não se con-
fundir a análise das diferenças com a ideia predeterminada pelo meio: apesar de tudo, só
34% dos filhos de artesãos ou de comerciantes evocam pelo menos uma aprendizagem de
tipo profissional e só 28% dentre eles citam uma aprendizagem que remete para a questão
da autonomia.
Esta poderia ser a conclusão geral desta análise segundo a categoria socioprofissional
do chefe de família: na origem de retratos que se assemelham ressaltam diferenças que se
percebem quando as relacionamos com o “meio” do aluno. Dito de outra forma, o meio
tem um certo efeito mas também não é determinante – aliás, se assim fosse não encontra-
ríamos filhos de quadros superiores no liceu profissional...
Relembremos os principais resultados desta análise.
Os alunos de liceu profissional, qualquer que seja a categoria socioprofissional do che-
fe de família, apresentam um perfil comum. O seu universo de aprendizagem é centrado
no relacional – nas aprendizagens afectivas e relacionais, completadas pelas aprendiza-
gens ligadas ao desenvolvimento pessoal. Relacionar-se com os outros, conhecer a vida e
as pessoas, ser capaz de se desenrascar face às dificuldades da vida: eis o que é importante
para estes jovens. Eles também têm em comum o facto de não terem vindo para o liceu
profissional por interesse pelas aprendizagens profissionais (salvo excepção, claro está)
e sentirem uma grande incógnita face às aprendizagens intelectuais e escolares. Dito de
outra forma, a análise levada a cabo no conjunto dos balanços de saber acaba por se revelar
válida qualquer que seja a categoria socioprofissional de origem dos alunos.

119
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Isto quer dizer, nomeadamente, que os filhos de quadros superiores escolarizados no


liceu profissional também mantêm este tipo de relação com o saber e com a escola. Eu
colocaria de boa vontade a hipótese de que é esta centralização na relação e na “vida” e
esta incógnita face aos conteúdos e às actividades escolares, isto é a sua relação com o
saber, que os conduziu ao liceu profissional. Mas não nos deixemos enganar pelo verbo
“conduzir”: não existe aqui nenhuma fatalidade, estes alunos não nasceram assim, eles
construíram-se assim ao longo de uma história singular. Esta relação com o saber é atípica
no seu meio e é a análise da sua situação familiar singular, os acontecimentos da sua vida
e a forma como se construíram enquanto sujeitos que permitiria compreender porquê e
como é que eles construíram esta relação com o saber, atípica no seu meio.
Quaisquer que sejam os seus pontos em comum com os outros alunos, os filhos de
quadros superiores carregam a marca do seu meio97 em dois pontos. Por um lado, o seu
universo relacional é menos tenso que o dos outros alunos: eles procuram mais relações
harmoniosas e submetem-se menos à necessidade de se envolverem em relações con-
flituosas e à tentação da transgressão. Dito de outra forma, a sua energia pessoal não se
investe (e eventualmente não se esgota...) numa lógica de sobrevivência. Por outro lado,
estes jovens, mais do que os outros, sabem que as aprendizagens intelectuais e escolares
são importantes, que é preciso “aprender coisas”; mas estas coisas mantêm-se exteriores a
eles, elas não fazem sentido suficiente para que eles as evoquem de forma um pouco mais
precisa. Um mundo menos tenso, uma maior valorização de princípio das aprendizagens
intelectuais e escolares: podemos pensar que a disponibilidade destes alunos para fazer
parte das lógicas escolares é maior que a dos outros e que existe aqui um duplo ponto de
apoio que pode potenciar uma remobilização para a escola e seus saberes.
Os filhos de comerciantes e de artesãos também carregam a marca do seu meio: são
eles que parecem atribuir mais importância às aprendizagens profissionais e à conquista
da autonomia. Os filhos de operários especializados, mais que todos os outros (mas menos
que os precedentes), são os que mais evocam as aprendizagens profissionais. Parece que
para estes dois grupos, mais do que para os outros, a remobilização escolar pode apoiar-se
no conteúdo profissional das aprendizagens. Mas é preciso não esquecer que, apesar deste
facto, também eles estão centrados, em primeiro lugar, nas aprendizagens relacionais:
mais que os outros, os filhos de comerciantes aspiram à autonomia, mais que os outros,
os filhos de operários especializados são confrontados com a questão da conformidade e
da transgressão.
De notar, por fim, que a relação com o saber dos filhos de operários qualificados é com
frequência mais próxima da dos filhos de quadros superiores que da dos filhos de artesãos,
comerciantes ou de operários especializados: é no seu voluntarismo e na sua reflexividade
face à vida e em quem são que pode apoiar-se uma remobilização escolar, mais do que
no carácter profissional do ensino. Tradicionalmente, o liceu profissional era o lugar de
97
Para ser mais rigoroso, não foi demonstrado que as diferenças constatadas são uma “marca do seu
meio”. Eu interpreto-as assim, em referência ao que se sabe de forma exterior sobre este meio.
120
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

acesso para a qualificação operária e, por isso, era valorizada pelo menos por uma fracção
do grupo dos operários qualificados – a outra fracção valorizava mais a aprendizagem “no
local”. Os filhos dos operários qualificados parecem funcionar hoje em dia numa lógica
de nível mais do que numa lógica do ofício e é nos filhos de comerciantes, de artesãos e
de operários especializados que se podem encontrar vestígios da definição do liceu profis-
sional através do ofício.

121

CAP. 8
COMO É QUE UM ALUNO
CHEGA AO LICEU
PROFISSIONAL?

Os capítulos precedentes analisaram os processos de construção, de organização, de cate-


gorização do mundo postos em prática pelos alunos de liceu profissional. No capítulo que
agora começa, e nos seguintes, interessa-nos o aluno enquanto sujeito singular e vamos
tentar compreender como é que este sujeito interpreta o que viveu, o que vive e o que irá
viver. Tratar-se-á, então, do sujeito enquanto unidade psíquica singular, original, reflexi-
va, um ser de desejo que mantém relações com os outros, envolvido no tempo, agindo no
mundo e sobre o mundo. Apesar disso, este sujeito não é uma misteriosa entidade, fechada
de forma muito profunda numa insondável intimidade. Ele pode ser analisado enquanto
conjunto de processos que ele realiza nas suas relações com o mundo, com os outros e
consigo próprio (Charlot, 1997). São estes processos, na forma como são induzidos pela
orientação no liceu profissional, ou indutores desta orientação, que eu tentarei identificar,
explicitar, conceptualizar neste capítulo e nos seguintes.
Comecemos pelo início: como é que um aluno chega ao liceu profissional98?
Alguns alunos quiseram de facto ir para o liceu profissional – pelo menos apresentam-se
assim. Outros nunca “entraram” verdadeiramente na escola, reprovaram desde sempre e o
LP é para eles a conclusão lógica de uma história escolar que sempre foi de sofrimento. Mas
a maioria dos alunos de liceu profissional advém de um terceiro caso: para eles, a orienta-
ção no liceu profissional é o derradeiro momento de uma queda, que pode tomar diversas
formas (deriva lenta, série de acidentes, acontecimento traumatizante...). É daqui que é
preciso partir para compreender a relação com o LP, o que lá se passa e o que lá se ensina.

1. Os que quiseram verdadeiramente ir para o liceu profissional

São raros, mas existem: alguns alunos quiseram verdadeiramente ir para o liceu profissio-
nal e escolheram verdadeiramente a especialidade que estudam actualmente.
Alguns inscrevem-se numa linhagem familiar. Como, por exemplo, Jérôme, escolari-
zado em BEP2 padaria: “O meu pai tem uma padaria/pastelaria e eu gostava de seguir as

Este era o título de um dos primeiros artigos consagrados à relação com a escola dos jovens do liceu
98

profissional: Jean Binon e Françoise Oeuvrard (1998).


A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

sua pisadas”, “sempre quis ser padeiro” (E5999). O pai encoraja este projecto: “O meu pai,
sim, gostava muito que eu tivesse a mesma profissão que ele”. Jérôme faz os seus estágios
na padaria do seu pai. O irmão mais novo, que tem 13 anos e frequenta o 6e, também quer
ser padeiro ou pasteleiro. Da mesma forma, Jean-Pierre, que frequenta o BEP1 ORSF
(operador regulador de sistemas de fabricação) tem um pai que é torneiro mecânico e um
tio torneiro. “Quase toda a minha família trabalha nesta área; por isso eu sabia que ia fazer
isto.” “Eu estou aqui porque eu queria fazer isto. Eu queria ser torneiro mecânico, já estive
numa empresa, já vi como é o trabalho. Bem, agradou-me. Escolhi quando acabei o 3e
technologique” (E25).
Ainda é possível encontrar alguns jovens deste género nos liceus profissionais, mas
são raros. Como diz Jean-Pierre: “Eu sou talvez o único da minha turma a ter escolhido
ORSF”. Além disso, esta “escolha” implica ambiguidade. O Jérôme quer ser padeiro como
o seu pai mas a sua mãe preferia que ele tivesse o diploma do liceu geral; a sua relação
muito negativa com a escola, vivida numa renúncia constante, faz pender a balança para
o lado do pai: “Eu nunca gostei da escola... nem sequer do jardim-de-infância. (...) Era
chato, aborrecia-me. Era sempre preciso acordar cedo, e então não tinha direito a ver
televisão, nem de sair para brincar com os meus amigos”. Da mesma forma, Jean-Pierre
“escolheu” ser torneiro mecânico, mas depois de ter chumbado o CE1 e ter frequentado o
4e technologique, porque tinha resultados muito maus nos 6e e 5e. A “escolha” de exercer a
profissão do pai não deve ser considerada evidente: hoje em dia, não se herda a profissão
do pai, decide-se ter a mesma profissão, decisão essa que se inscreve numa história pes-
soal, familiar e social.
Outros “escolhem” o liceu profissional não para prolongar uma história familiar mas
sim porque querem aprender um ofício – é o próprio facto de aprender uma profissão que
parece aqui ser decisivo, mais do que a natureza dessa profissão. É interessante destacar os
argumentos que eles dão porque permitem compreender melhor o que significa, para um
jovem que escolheu o liceu profissional, “ter vontade de aprender um ofício”.
Sonia frequenta o 2º ano de bac pro informática, opção secretariado. Ela tinha sido
aceite no liceu geral, “à justa”, mas ela escolheu preparar um BEP de secretariado, ape-
sar da pressão dos pais, dos professores e da orientadora. “No fim do 3e queriam que eu
passasse para o Seconde, eu não quis, porque eu queria... eu queria aprender um ofício...
por isso, ah, e por outro lado era o secretariado o que me agradava mais...” (E114). Sonia
adianta uma série de argumentos.
Em primeiro lugar, trata-se de aprender um ofício para poder trabalhar. “Fui eu que
escolhi e eu não queria ir para o Seconde e isso era claro, eu queria aprender um ofício, era
isso que me interessava porque enfim as disciplinas gerais são boas, são interessantes mas
(...) não davam muito para trabalhar, por isso eu preferia aprender um ofício”. “No fim de

99
E59 significa entrevista nº 59. Uma indicação desta natureza, que será dada sistematicamente, permite
reportar-se a uma lista de entrevistas, em anexo. BEP2 significa 2º ano de preparação para o BEP.
124
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

contas, era isso que eu esperava do BEP, aprender um ofício, poder praticar um pouco, ter
um pouco de experiência”.
Mas as próprias características do trabalho intervêm na escolha de Sonia. Duas carac-
terísticas do trabalho de secretariado parecem essenciais. Em primeiro lugar “eu queria
aprender qualquer coisa que fizesse sentido para mim”, “eu gostava de tudo o que tinha a
ver com organização, papéis, coisas assim”, “é necessário ser preciso, bom... zeloso, é pre-
ciso entregar um trabalho impecável, é preciso saber gerir o tempo (...) saber organizar”.
Em segundo lugar, Sonia aprecia “os contactos com a clientela” e, de uma maneira geral,
o contacto humano: “Estamos perante pessoas que não conhecemos, há sempre pessoas
novas a chegar, que não conhecemos, não são os nossos professores, nem os nossos ca-
maradas, logo é preciso adaptar-se a cada nova pessoa, adaptar-se aos colegas, bem ah, e
conhecer um pouco o nível hierárquico”.
A Sonia não se arrepende da sua escolha mas, se passar o seu bac pro, quer mudar de
ramo para ser “educadora especializada na reinserção”: “É o contacto humano, o contacto
com as pessoas, como temos em secretariado o contacto com a clientela (...) eu sei que
gosto do contacto humano, falar, ver muita gente e, depois, é verdade que na área do se-
cretariado isso, por vezes, faz falta”. Além disso, ela poderá reinvestir aí o que aprendeu:
o Direito, a Economia, bem como fazer relatórios, gerir o seu tempo, ser zelosa. E depois,
“se eu falhar este concurso terei sempre uma profissão garantida, de que gosto, pois, ah,
eu poderia praticar o secretariado de qualquer forma”.
“Escolher” entrar no liceu profissional quando podia aceder ao liceu geral, significava
para Sonia decidir preparar desde logo a sua entrada no mundo do trabalho, mas também
inscrever-se numa forma de relação com o mundo e com os outros. Ser secretária signifi-
ca, ao mesmo tempo, e sem dúvida num equilíbrio subtil, viver num mundo transparente,
organizado (estar bem consigo próprio) e reencontrar em permanência pessoas novas, às
quais nos devemos adaptar. Significa de uma certa forma ocupar uma posição segura a
partir da qual se pode partir à aventura de novos encontros. Trata-se de facto de uma re-
lação consigo próprio, com o mundo e com os outros, relação essa que para Sonia define
a profissão de secretária mas também a de educadora especializada na reinserção. Aquilo
que os jovens escolhem quando decidem entrar voluntariamente no liceu profissional não
é o ofício em si, é, de forma mais profunda, um certo tipo de relação com o mundo.
Kamel, que frequenta o segundo ano de bac pro em produção de materiais flexíveis (ou
seja, na realidade, costura...) também escolheu enveredar pelo liceu profissional quando
tinha sido admitido no liceu geral. “Foi uma decisão pessoal” (E107). Em contrapartida,
ele não tinha escolhido estudar costura: ele queria preparar um BEP informática e conta-
bilidade... Os argumentos por ele avançados completam os de Sonia.
Tal como para a Sonia, trata-se em primeiro lugar de aprender um ofício. “Eu acha-
va o ensino clássico muito vago, o profissional interessava-me muito mais, assentava
sobre alguma coisa, numa profissão que gostaríamos de ter ou noutra coisa”. “Eu fiz um

125
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

BEP porque tinha vontade de aprender um ofício, qualquer coisa de concreto.” Mas,
tanto para o Kamel como para a Sonia, este factor não é suficiente: ele desenvolve um
grande trabalho de interpretação que lhe permite valorizar a costura e encontrar aí o
seu lugar.
Em primeiro lugar, a costura é uma coisa que se aprende, uma coisa que exige saber
e savoir-faire: “Alguém que não consegue identificar o algodão, não pode ir muito longe
na costura, não pode aprofundar”. “É isso que significa aprender um ofício, é saber fazer,
eu quando comecei o BEP não sabia nada, não sabia utilizar uma máquina”. Mas também
é preciso perceber a relação entre a teoria e a prática: “A prática entra melhor nas nossas
cabeças”, mas “se só praticas, não saberás gerir uma teoria”.
Em segundo lugar, a costura é moderna e, ponto essencial, hoje em dia é tão masculina
quanto feminina: “Eles até nos ensinam a mecânica da máquina, como funciona e são
máquinas modernas, industriais, agora já não é só para as raparigas”.
Em terceiro lugar, a costura é uma actividade socialmente importante e uma activida-
de criadora. O único grande desgosto de Kamel, o seu único e verdadeiro desgosto, é ter
nascido demasiado tarde, numa época em que já tudo foi inventado na área da costura. “A
costura desempenha um papel na nossa sociedade, ela faz parte de um conjunto de profis-
sões, ela é necessária, nós precisamos de roupas. Mas nós temos tudo, por isso para nós...
Eles já inventaram tudo, gostaria de ter inventado alguma coisa, é um bocado aborrecido.
Deveria ter vivido antes, há um ou dois séculos”. Ele teria gostado de “inventar, criar al-
guma coisa, pelo menos ser conhecido na minha área, nesta profissão, para as pessoas se
lembrarem de mim. Mas agora é impossível”.
Em quarto lugar, à falta de deixar um nome na história da costura, Kamel poderá pelo
menos ser alguém ao ser bem sucedido profissionalmente. “Bem, na verdade, eu gostaria
de dirigir uma empresa (...) abrir uma empresa até mesmo aqui ou em última instância na
Argélia.” “Daqui a 10 anos gostaria de viver na Argélia, já ter a minha própria empresa
e contactar os professores aqui para lhes mostrar que triunfei. (...) E que aquilo que eles
fazem serviu para alguma coisa!” Na Argélia ou na França, ele está indeciso, o que ele
estuda permite-lhe gerir psicologicamente o seu estatuto incerto de filho de imigrante que
deve tornar válido o seu sucesso ao mesmo tempo em França (pelos seus professores) e na
Argélia (onde moram as suas duas irmãs).
Permanece, contudo, o problema da imagem do LP, que desconstrói permanentemente
o sistema de validação do liceu profissional que estes jovens constroem. Na última pergun-
ta da entrevista, que o convida a dizer qual foi a pergunta que lhes esquecemos de colocar,
Kamel responde: “O que eu gostava de dizer, eu penso que para o ensino profissional eles
enviam mais, eu diria, os falhados, e é uma pena porque eles não têm vontade de estudar
aqui, e isso prejudica os outros (...) estas pessoas dão uma má imagem do liceu profissio-
nal”.

126
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Para o Kamel, mais do que para a Sonia, é a imagem de si próprio que figura no centro
da configuração interpretativa que o aluno construiu e o problema do futuro é central. Mas
trata-se, nos dois casos, de operar uma valorização da profissão que está em preparação,
dos estudos que a ela conduzem, do lugar que se vai ocupar na sociedade. Nestes casos, é
muito claro que a tentativa tecnicista de tentar que os alunos construam um “projecto pro-
fissional”, baseado nalgumas informações dadas pelos orientadores, é bastante irrisório: o
que está aqui em causa é a construção de um mundo, no qual cada um se projecta.
Estes alunos, que afirmam ter querido entrar no liceu profissional, quiseram-no de
facto? Algumas indicações dão lugar a dúvidas: dificuldades escolares anteriores, afec-
tação a uma outra especialidade profissional diferente da que tinham escolhido... Por um
lado, alguns destes alunos tinham sido aceites no liceu geral, e decidiram na realidade ir
para o LP. Mas podemos contrapor a isto o facto de existirem outros alunos que dizem ter
escolhido o LP, quando preferiam o liceu geral porque pensavam que neste último iriam
chumbar! De facto, a questão de saber se estes alunos escolheram verdadeiramente ir
para o LP está, sem dúvida, mal colocada. Na sua ficha de desejos, pode saber-se se um
aluno pediu para ir para um LP. Pode saber-se se, a uma certa altura, ele decidiu pedir um
LP e porquê. Mas saber se ele queria verdadeiramente o que pediu é um problema muito
mais complexo, que remete para a construção do sujeito, do desejo, do inconsciente... O
importante é que os alunos que afirmam ter querido esta orientação para o LP resolveram
o problema no qual embatem os outros: para eles, o liceu profissional pode ser um objecto
de desejo. Este desejo constrói-se em torno do desejo de “aprender um ofício”. Este último
apoia-se em diversos elementos e processos – que nem sempre estão todos presentes no
mesmo sujeito:
• uma eventual referência familiar;
• as características da profissão: é mais concreta e mais precisa que o trabalho escolar,
este dado permite outros contactos humanos...;
• a convicção de que um ofício se aprende, exige saber e savoir-faire;
• a valorização social desse ofício: socialmente importante, criador, moderno...;
• a possibilidade de uma valorização pessoal através desse ofício – no próprio exercí-
cio da profissão ou em termos de futuro profissional.

No entanto, esta figura da satisfação não está completamente fechada sobre ela própria:
em contraponto, a “escumalha” que frequenta o LP fragiliza a imagem do LP enquanto
objecto de desejo.

2. Os que nunca “entraram” verdadeiramente na escola

Ao ouvir alguns jovens, tem-se a sensação de que eles nunca se inscreveram numa lógica
escolar que, de uma certa forma, eles nunca entraram na escola. Eles próprios também

127
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

dizem por vezes ter realmente querido ir para o liceu profissional mas trata-se para eles de
um mal menor mas não é por isso que o LP se torna num objecto ou lugar de desejo.

Eu desde pequeno que queria ir para um LP. Estás a ver, eu não me imagino a trabalhar num escritório
(...), não me vejo a trabalhar na área da contabilidade, por exemplo. (...) Para já, sou um tipo que não
gosta muito da escola, então, um ciclo longo não é para mim. Eu gostaria que só houvesse aulas de
oficinas, por isso a escola não me interessa, tento acabar o mais depressa possível mas as aulas não
me interessam. Bem, eu venho à escola, bem, frequento as aulas de Desenho, eu não vou desenhar,
ora essa, eu não sou um artista (...) E a Matemática, não me imagino na vida a dizer ao meu filho: ora
bem, co-seno, a², tangente em relação a quê... (R., BEP1, mecânica automóvel, E51)

Dois exemplos permitiram levar mais longe a análise, a de um aluno que ainda não
frequenta um LP e a de um jovem que já abandonou o LP. Yoan, 16 anos, está no 3e te-
chnologique, num collège; os seus pais são porteiros num bairro social (E137). Malis, 20
anos, desempregado, fez um ano de BEP de electrotecnia, abandonou o liceu e vive uma
fase difícil desde há três anos (E152).
Yoan nunca conseguiu ter uma boa relação com os seus professores e compara-os a
políticos e polícias. Na escola ele vive uma experiência de dominação, de atentado à sua
dignidade, de humilhação.

Sinto-me desconfortável numa escola, sobretudo frente a um professor. Detesto os professores e tam-
bém não gosto muito da escola, mas como sou obrigado a ir...
Tenho medo dos profs (...) Bem, é quando penso nalguma coisa, não posso responder porque é preciso
ter respeito. Eles tiram o máximo proveito disso. Dizem que somos mongolóides, que temos que ir ao
psicólogo... coisas assim... Somos obrigados a ficar calados, não podemos replicar, porque senão, é a
exclusão ou duas horas de castigo (...) Eles não nos insultam de forma vulgar, mas percebemos que
somos estúpidos... sem pronunciar as palavras eles insultam-nos. Eu não gosto disso num prof. Eles
pensam que têm o poder. Vamos à escola, temos que estar sentados, temos que estar calados, temos
que estudar, temos que ouvir.
Eu nunca tive um bom relacionamento com os profs., desde a escola primária eu nunca consegui...
Já troquei insultos com professores e tudo... por isso não consigo... não sei, não gosto deles... É um
bocado como a polícia... Não gosto deles... Não quer dizer que os deteste.
Não sei porquê, são homens como outros quaisquer (...) Não gosto dos professores, nem do director.

Por detrás desta dificuldade relacional e institucional, denota-se uma dificuldade cog-
nitiva e epistémica: Yoan também não encaixa nas lógicas de aprendizagem da escola100.

Eu, pessoalmente, não percebo as lições. (...) Há cinco anos que vou à escola e nunca percebi nada e as
lições, mesmo quando estudo, simplesmente copio-as e nunca chego a compreender e não sei porquê
(...) recopio-as estupidamente e se fazem perguntas eu não saberei responder porque não percebi...

No capítulo 12, retomarei o exemplo de Yoan para tratar a questão epistémica.


100

128
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Simplesmente, vou dizer o que ouvi... É por isso que não presto atenção nas aulas, porque não percebo
nada, então não serve de nada ouvir e recitar o que ouvimos.

Ao contrário doutros alunos, Yoan não encontra recursos no bairro, nem no grupo de
amigos para suportar estas humilhações. Ele está duplamente bloqueado: ele sente-se en-
carcerado num bairro, mas, enquanto filho de porteiro, ele passa por um privilegiado aos
olhos daqueles com quem está encarcerado.

Em frente a um professor não consigo falar normalmente… Visto que venho de um bairro social, X...,
não consigo... ao nível do vocabulário eu falo mal… Obrigatoriamente, a partir do momento em que ele
me repreende... eu tento... acalmo-me e não ligo... Em frente a um professor não consigo... estar à frente
dele e falar-lhe de forma correcta... Eu vou mandá-lo dar uma volta e etc. [P.: Com quem compararias os
professores?] A um político... não sei porquê mas eles são... Não que sejam parecidos fisicamente mas
têm as mesmas manobras... Não sei explicar... Querem mandar em tudo.
Quando se é filho de porteiro, toda a gente sabe: és filho de ricos, és isto e aquilo. Não és igual aos
outros, quando somos todos iguais (...) Então começa a chantagem.

Yoan também não pode encontrar recursos na imagem que faz de si próprio: directamente
(aos seus próprios olhos) e indirectamente (aos olhos dos seus pais), Yoan não vale muito.

Mas para mim, a escola significa... eu não tenho o meu lugar na escola... Não consigo estudar... Faço
asneiras e brinco com os meus colegas, então ir à escola não serve para nada...
[Os meus pais?] Bom, eles começam a estar fartos... Chego a casa com zeros e eles borrifam-se com-
pletamente... Pronto... eu ponho-me no lugar dos pais que têm filhos que não fazem nada durante o
ano, que não estudam, é verdade que deve ser difícil.

Por fim, Yoan não encontra um ponto de apoio no futuro. Ele não vislumbra o seu
futuro. Pior: ele imagina-se mal, não se vê.

Francamente, daqui a dez anos, acho que vou estar desempregado... Francamente, da forma como
estou encaminhado... ou tenho a que me agarrar ou então é preciso que haja um clique, mas... (...)
Francamente, daqui a dez anos, não me imagino... Mas não numa boa vida com uma boa profissão...
género fato e gravata num escritório... Imagino-me mais desempregado... Francamente imagino-me
desempregado... Desempregado ou com uma profissão com o ordenado mínimo... Mas não me imagi-
no... Não... Não sei, agora não sei responder.

Relembremo-nos de Kamel, que escolheu o LP, que tem pena de ter nascido demasiado
tarde para inventar o que quer que seja na área da costura, e que fala assim do seu futuro:
“Daqui a 10 anos gostaria de viver na Argélia, já ter a minha própria empresa e contactar
os professores aqui para lhes mostrar que triunfei”. Kamel espera “ser alguém”, para reto-
mar uma expressão utilizada pelos próprios alunos. O Yoan não se imagina no futuro, acha
que será desempregado, não se vê; no futuro, o Yoan não é ninguém.

129
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Ser alguém, não ser ninguém: eis finalmente o desafio, a base do problema. Só se
pode entrar na escola se nela encontrarmos um lugar, que permite ser alguém: um lugar
enquanto sujeito epistémico, um lugar nas relações com os outros, um lugar aos olhos dos
professores, dos pais, dos colegas, um lugar para o futuro, um lugar que se interioriza, na
nossa cabeça. À falta de um lugar desta natureza, não se é ninguém e há poucas hipóteses
de nos tornarmos alguém (a menos que “haja um clique”). Para o sujeito (porque é de um
sujeito que vive assim como não sendo ninguém que se trata e não de uma ausência de
sujeito101) resta a experiência da dominação, da humilhação, resta o sofrimento e eventu-
almente a droga, a violência.
Pode tratar-se de uma tal situação fazendo o Yoan construir um projecto profissional? Se
ele pudesse construir um projecto assim, sem que esse projecto fosse artificial, sem dúvida;
mas para chegar a esse ponto, seria preciso que ele pudesse vivenciar outra vez um desejo
de si próprio, o que supõe tornar-se objecto de desejo dos outros; seria, ainda necessário
que se sentisse capaz de aprender e que o pudesse reconhecer numa experiência efectiva de
aprendizagem. Mas se Yoan retomasse assim, outra vez, as redes de desejo e se começasse
a perceber o que desde há cinco anos não percebe, seria ainda necessário construir-lhe um
projecto profissional...? O que o Yoan precisa não é de um projecto profissional é de um
projecto para si próprio, de um projecto de vida. E de professores que lhe permitam (em to-
dos os sentidos do termo, incluindo ao mesmo tempo condições de trabalho e competências
de formadores) perceber estas lições que desde há cinco anos ele não percebe.
Malis, 20 anos, preparou um BEP de electrotecnia. Abandonou o LP há três anos,
passou um BAFA102 (“não vale nada o BAFA”), trabalhou durante uma semana como em-
pregado de armazém na EDF103 (“era super duro, super chato, estava farto”) e trabalhou
um bocado como distribuidor de pizas (mal pago, demitiu-se). No momento da entrevista
está desempregado. Parece que nunca se inscreveu nas lógicas escolares.
A escola não é a “sua cena”. Certamente, é um bom sítio para fazer “asneiras” com os
colegas, mas é também o lugar da humilhação.

Eu gostava da escola porque não existia mais nada e ainda por cima estavam lá todos os colegas. (...)
Os colegas da turma armavam-se em idiotas, era engraçado.
Estava farto, eu não queria estudar muito, nunca foi a minha cena.

Ele evoca um professor primário que o pendurava no cabide quando fazia asneiras.

Ele humilhava-me assim (...) Fugia do meu pai, não queria falar com ele, por isso, ainda humilhava
o meu pai; então, ele enervou-se e deu-lhe um pontapé. Depois, apresentou queixa e o meu pai teve
que pagar uma multa.

101
Cf., em relação às minhas discordâncias com F. Dubet sobre este ponto, Charlot (1997).
102
Brevet d’aptitude aux fonctions d’animateur. NT: Em português, “Certificado de aptidão para as fun-
ções de animador”.
103
NT: A sigla EDF significa Electricidade de França.
130
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Quando o professor me dizia “cala-te”, ficava com raiva, já nem sequer pensava mais na aula. É como
se ele tivesse quebrado o meu ritmo. Eu gostava de mascar pastilha elástica e pensar ao mesmo tempo.
Ele ralhava-me por tudo e por nada, tu não estás bem na tua cabeça, enervavas-te, já nem sequer pen-
savas nas aulas, estavas enervado, depois começavas a responder, depois eles dizem-te, sim, asneira,
depois é sempre a mesma coisa, estás lixado, claro.

O liceu profissional não lhe permite que se reconstrua.


É um mundo demasiado masculino. É um mundo com alunos estranhos.

Havia uma coisa que não gostava nada. É que não havia raparigas na turma. Isso era, era isso que era
chato.
Estás sempre a ver gajos esquisitos, ainda por cima parvos. Dizem coisas estúpidas. Passei-me, com
estes gajos esquisitos, estranhos. Não tinha nada a ver com eles. Acho que vinham do CAP, eles es-
tavam muito motivados (...), já tinham algumas noções das disciplinas, enervavam-me. (...) Eles nem
sequer falavam connosco.

É um mundo que proporciona um ensino que “cansou” Malis.

Eu participava, ia às aulas, podia fazer tudo. Podia ter notas médias. Podia fazer tudo. Ora, os que não
falavam, que eram sérios, foram longe, enquanto eu me cansei rápido. É estranho.
[Em Electrónica] devíamos aprender todas as semanas mais 10 fórmulas. Depois comecei a aprender a
primeira, segunda, terceira, depois falhas uma ou duas, depois estás lixado. (...) Eu perdi, os outros estavam
mais longe, eu não era o único, éramos vários nesta situação. Por isso tentávamos copiar a cada situação
(...) Eu não tinha vontade, não estava motivado.

Tanto Malis, como Yoan, não encontram nem em si próprios, nem na sua família os
recursos, a exigência, a imagem de si que lhes permitiriam ultrapassar o obstáculo.

Cada vez que tenho uma coisa na cabeça vou em frente. Encontro obstáculos e não consigo ultrapassá-
‑los, por isso paro e retomo outro caminho.
Quero ir sempre rápido, é um defeito meu, quero tudo rápido. (...) Era sempre isso que lixava tudo, o
que quer que fosse. Quero avançar rápido e não há nada.
Não consigo mudar. Há muito tempo que sou assim. Não se muda por causa de uma coisa aborrecida
(o LP), uma coisa que antes achava banal, e que agora não acho, não se muda.
Nunca ninguém me disse: não saias, faz os trabalhos de casa. Nunca me disseram isso. Era eu que
tinha que gerir isto sozinho e não consegui porque não adivinhava o que estava à minha frente. Não
sabia.

Terá Malis um futuro? Ele ainda não saiu do plano imaginário: vai tentar ser professor
de Educação Física, nadador salvador, instrutor de windsurf (“Quero ganhar dinheiro, que-
ro viver bem a vida, não como os cromos.”). No entanto, Malis mudou – mas demasiado
tarde, pois o sistema educativo não consegue recuperar estes jovens, amadurecidos por
uma vida de sarilhos.

131
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Já não me portaria da mesma forma. Não sei porquê, agora estou mais motivado. Percebi algumas coi-
sas. Não sei o quê mas percebi. Como eu dizia: as pessoas sérias conseguiram-no (o BEP) eu falava,
não consegui (...) O BEP não é assim tão fácil. É preciso ser sério, se não esquece (...) É preciso ter a
motivação de ser sério, se tu não tens isso é melhor parar e voltar para a casa.

Para os jovens como Malis ou Yoan, o LP não é um objecto de desejo. Eles integram
uma figura ideal-típica cujos principais elementos são os seguintes:
• Logo à primeira, desde a primária (e talvez desde a educação infantil), estes jovens
não se inscrevem nas lógicas escolares, quer sejam as do saber ou as da instituição;
num certo sentido, eles “nunca entram na escola”.
• No seio da sua experiência, encontramos com frequência a humilhação – que provoca
sofrimento, revolta, sem dúvida a violência, e que esmaga o desejo (o desejo de saber,
o desejo da escola).
• Estes alunos falam desta humilhação em termos de relação com os professores – e os
pormenores que dão permitem pensar que não existe aqui um simples discurso de ví-
tima e que eles foram efectivamente humilhados por práticas docentes na melhor das
hipóteses descabidas e na pior deontologicamente inaceitáveis, até mesmo ilegais.
• Esta humilhação estende-se para lá da pessoa do aluno: na família, no bairro, no
grupo “étnico”.
• Mas esta experiência apresentada pelos alunos como relacional e institucional com-
porta igualmente uma dimensão epistémica: os alunos não compreendem as lições,
perdem o pé; a partir daí, eles “cansam-se”, já não ouvem, falam com os colegas... e
expõem-se assim aos reparos humilhantes do professor.
• Estes alunos não encontram nem em si próprios, nem na sua família os recursos
(em termos de imagem de si e de exigências) que lhes permitiriam sair desta situ-
ação. Eles vivem de tal forma que são incapazes de mudar de conduta – e logo de
transformar a situação. Eles não recebem (ou já não recebem) incentivos por parte
da família.
• Estes alunos não se projectam no futuro. Ou permanecem no plano imaginário do
sucesso mágico ou de uma actividade profissional que tende a confundir-se com um
divertimento. Ou então só se imaginam desempregados. No fim do percurso escolar
não há nada, nem ninguém.
• Esta experiência de dominação, humilhação, de encerramento de possibilidades é
também a de um mundo opaco e estranho: “não sei porquê”, “é estranho”, repetem
estes alunos aquando das entrevistas.

No entanto, esta figura também não está fechada sobre si própria. “Francamente, da
forma como estou encaminhado... ou então tenho que me agarrar ou então é preciso que
haja um clique”, diz Yoan. “Já não me portaria da mesma forma. Não sei porquê, agora
estou mais motivado”, declara Malis. Por mais dominado que esteja, um sujeito é sempre

132
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

um sujeito: ele sabe que um clique é sempre possível, que nunca nada está perdido.
Esta incerteza de si está no cerne da terceira figura: para a maioria dos alunos, a orien-
tação num liceu profissional não estava inscrita numa trajectória previsível – nem desejo
(primeira figura), nem “destino” (segunda figura) – foi no fim de uma história que eles
aterraram, dolorosamente, no liceu profissional.

3. A história de uma queda

A orientação no liceu profissional significa o resultado (por vezes provisório) de uma


trajectória escolar. Por trajectória, eu entendo a sucessão de pontos que definem as des-
locações de um aluno num espaço escolar. Esta trajectória é objecto de um trabalho de
interpretação: a história de um aluno é a sua trajectória em termos de sentido, quando é
interpretada por alguém104, quando cada dimensão do tempo (passado, presente, futuro)
é analisada à luz das outras duas. Isto significa que uma história não se constrói de uma
vez para sempre: o que os alunos dizem da sua história escolar, e muito particularmente
da sua orientação, pode variar – e varia – ao longo do tempo. A questão da orientação dos
alunos está longe (muito longe) de se esgotar quando se analisa para que turmas, secções
ou ramos foram eles dirigidos – embora perguntemos por acréscimo se eles “escolheram”
esta orientação. A orientação é inseparável de uma história e esta história é trabalhada e
retrabalhada por múltiplos processos, mais ou menos articulados, aliás, uns nos outros.
Comecemos pelo que diz Farida, aluna de Première d’adaptation (médico-social), cuja
reflexão não podia ser mais pertinente.

Tinha-se a impressão que tínhamos sido todos agrupados, todos seguido o mesmo percurso, de facto.
Na turma toda a gente tinha problemas, éramos todos filhos de pais divorciados. Estávamos todos
juntos e está bom de ver que as pessoas que vêm para o BEP é porque já tiveram problemas antes.
Mas não devia ser assim, estar no BEP, não devia ser assim. (...) Eu não sei, mas foi obrigatório que
no passado tivesse acontecido uma pequena coisa que desencadeou alguma coisa. Sim, e acredito
que vamos encontrar no futuro todas as pessoas que frequentaram o BEP, que num momento da sua
vida alguma coisa caiu por terra e foi isso que deu origem ao insucesso escolar e o BEP, justamente,
permite-nos recomeçar uma outra vida e é isso, é mesmo uma grande oportunidade, amadurecer e ter
uma visão da vida. (E143)

Mas, estar no BEP, não devia ser assim e aconteceu uma pequena coisa que desenca-
deou alguma coisa. Muito provavelmente, Farida tem razão mas o problema é que esta
pequena coisa só desencadeia alguma coisa numa determinada configuração (nem todos

Que pode não ser o próprio sujeito. Ninguém tem o monopólio da interpretação da sua própria história
104

– embora seja deontológica e cientificamente necessário ouvir o que o próprio sujeito tem a dizer da sua
história.
133
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

os divórcios levam as crianças ao LP) e que esta pequena coisa nem sempre é de fácil
identificação, inclusive pelo próprio aluno.
A partir das entrevistas feitas aos alunos podem construir-se três figuras, que descre-
vem bastante bem as trajectórias105. Há aqueles que derivam, mais ou menos cedo, em
direcção a um LP. Há aqueles que são vítimas de um acontecimento que os desestabiliza.
Há aqueles que primeiro passaram por outras vias (secção de educação especializada, se-
gundo ciclo geral ou tecnológico, estágio ou trabalho assalariado) e que vão parar ao liceu
profissional depois de uma reorientação. Um aluno pode, aliás, advir das três figuras; por
exemplo, “perder o pé” no 6e, começar a andar à deriva, desligar-se totalmente da escola
depois do divórcio dos pais, abandonar a escola e fazer trabalhos menores durante um
anos, depois reinscrever-se no liceu profissional. Falamos aqui de figuras (ideal-típicas)
definidas por processos (deriva, ruptura, reorientação) e não de categorias de alunos cons-
truídas por divisão de uma população em tipos.

3.1. À deriva
Primeira figura: os alunos que andam à deriva.
Alguns “perdem o pé” a partir da escola primária, ou começam a reprovar e o mais fre-
quente é que reprovem também no collège. Uns, como já vimos, nunca entram nas lógicas
da escola mas outros começaram por gostar da escola.

Eu, eu sou um campeão da escola: duas vezes o CE2, duas vezes o 5e e uma vez o 3e. Depois, fui ex-
pulso, demasiado bom [risos]. Disseram-me “Tu podes fazer um BEP”. De qualquer forma, a escola
dá-me seca (...) Se ainda frequento a escola é porque não tenho escolha, senão é certo e sabido que não
estaria nunca no BEP. (R., BEP1, pintura para construção civil, E55)
Quando era pequeno, tinha muita vontade de entrar para a escola, era uma coisa que sempre me agra-
dou ir à escola e chegou a uma certa idade... [risos] arrependi-me, arrependi-me de ter ido. (R., BEP1,
madeiras e materiais associados, E54)

Alguns alunos não tinham problemas na primária, eles tinham entrado nas lógicas da
escola, muitas vezes gostavam da escola, por vezes até eram vistos como bons alunos.
Depois, eles desligam, reprovam ou são orientados para o 4e technologique e finalmente
acabam no BEP.

A primária tudo bem, correu muito bem. (...) Era uma boa aluna, quando cheguei ao collège, foi-se,
afundei-me, não era isso (...) quando estava no 6e não estudava grande coisa mas era média [Ela chum-
bou o 4e e passou para um BEP e prepara um bac pro comércio e serviços]. (Ra., bac pro 2 comércio
e serviços, E10 bis)

A estas acrescentam-se as duas figuras já analisadas: a do aluno que afirma ter querido ir para o LP e a
105

do aluno que nunca “entrou” na escola. Esclareço também que quando uso uma palavra como “deriva”, eu
não faço um julgamento pessoal a propósito dos liceus profissionais mas falo sobre eles a partir do ponto
de vista da maioria dos alunos.
134
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Sim, a primária correu bem, reprovei na CM1, depois passei para a CM2, CM2 6e, 6e tudo bem, 5e foi
à rasca, ainda assim passei para o 4e, tive dificuldades mas eles passaram toda a gente para o 3e, então
3e, na adolescência não estudei muito, tive problemas por isso não fui à escola durante um mês, faltei
às aulas e tudo... (Ra., BEP2 materiais flexíveis, E1)

Porque desistem eles no collège? As diferenças entre a escola primária e o collège,


nomeadamente a passagem de um só professor a uma pluralidade de professores, de uma
só sala de aulas a uma pluralidade de salas, desempenham um papel importante nesta
desistência – e por isso é interessante prestar-lhe atenção. Contudo, o problema essencial
não é este. Quando se lhes pergunta o que aconteceu, os alunos que desistiram desta forma
no collège avançam dois argumentos basilares: “não me interessava”; “preferia divertir-
‑me com os amigos”. Então, dá-se uma primeira desistência, que os leva a uma queda
em espiral: as más notas que obtêm acentuam a rejeição pela escola, os conflitos com os
professores e os pais tornam os amigos ainda mais necessários. Eu cito-os aqui de forma
prolongada já que este ponto é essencial.

Chegado ao 3e já não ia à escola, borrifava-me para tudo e depois, depois um namorado para aqui, um
namorado para ali, só se pensa nos amigos e afundei-me completamente. (...) Eu estudava bem, mas
não me interessava. (...) Eu trazia livros e lia, estava nas aulas de Matemática mas não queria saber
da Matemática, lia o livro e depois, bom, os amigos, as amigas, sair, passear, só pensava nisso. (...)
E depois, eu quando tenho más notas, quando penso num mau resultado, digo-me a mim própria que
não tenho vontade de ir à escola para ter mais más notas, não tenho vontade e no 3e foi isso, eu via
que não estudava e decidi não ir mais e depois tinha uma amiga, levava-a a Paris, e depois quando
não se sai muito, na escola desforramo-nos porque os meus pais não me deixavam sair, eu queria
sair. (...) Sim, porque no fim do 3e não estava a correr bem, afundamo-nos por causa de problemas,
não queremos estudar mais, não nos interessamos mais, não conseguimos fazer o 2nde, não temos
vontade de reprovar, voltar a fazer o 3e não nos interessa, por isso a escolha é entre o 2nde e reprovar
e refazer o 2nde ou frequentar um primeiro ano de BEP, é mais interessante, é melhor. (Ra., BEP2
materiais flexíveis, E1)
Na escola primária, eu estudava mais ou menos e depois o 6e aborreceu-me de tal forma que abandonei
completamente. (...) É preguiça, não fazia nada. (...) Bem, eu estudava as disciplinas que eu gostava,
mas no resto não estudava praticamente nada. (R., BEP1 contabilidade, E83)
Eu faltava às aulas, respondia mal aos professores, discutia. Por isso eles aconselharam uma orienta-
ção no 4e technologique. (...) Foram os meus anos rebeldes e... para mim, isso não me servia de nada
para o que eu fazia (...) para mim isso não servia para nada logo não me interessava. Mandava umas
bocas aos professores: não serve de nada. Por isso, os professores expulsavam-me e por isso havia
sempre altercações entre mim e os profs. (R., BEP2, carpintaria, E52)
Eu não era um grande, grande, grande estudioso, era preguiçoso, por isso a escola era desinteressante.
(...) Ainda era muito ingénuo e miúdo. (...) Em relação às pessoas que eu conhecia e com quem andava,
eu não via nenhum interesse em ir à escola. (...) O ambiente era horrível na turma (...) havia pessoas
que estavam sempre a armar confusão, pessoas que não tinham vontade de estudar e que chateavam os
outros. (...) Eu deixava-me levar facilmente, era muito influenciável. (R., BEP2 contabilidade, E93)

135
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

[No 4e] já não me interessava, preferia andar na paródia com os colegas e os rapazes [risos]. E depois
como tinha más notas os meus pais ralhavam-me, depois como o ambiente em minha casa não era
bom preferia andar na rua do que levar broncas, então já não tinha tempo para fazer os meus trabalhos
de casa, então levava broncas porque tinha más notas, então andava por aí. Estás a ver, tornou-se um
círculo vicioso. (Ra., BEP1 secretariado – boa aluna na primária, foi encorajada no 5e, desistiu no 4e,
reprovou no 3e e no 2nde, E94)
Quando estava no collège, borrifava-me um bocado para a escola. Queria tentar trabalhar. Queria
experimentar outra coisa. (...) Estava farto de estar sempre na escola. Queria experimentar outra
coisa. Ver como era a vida (...) Achava que ia trabalhar, ganhar dinheiro, pensava que conseguia di-
nheiro assim. Achava que não era preciso trabalhar. E depois agora apercebo-me melhor... (...) Eu o
que queria era aprender um ofício. Vejo os meus colegas, sim, eles trabalham, eles ganham dinheiro,
tudo, ele compra isto, compra aquilo. Eles não me dizem que para ter o mínimo necessário é preciso
trabalhar como um cão. (R., BEP2 manutenção de sistemas mecânicos de produção, E22)

As explicações que dá Agnés, 21 anos, desempregada, que passou por CFA106 bijutaria-
‑venda e depois fez um ano de BEP de contabilidade, demonstram bem como é que a
adolescência, os amigos, as diferenças institucionais entre a primária e collège conjugam
os seus efeitos (E155).

Levas-te mais a sério porque estás no 6e. (...) Ao nível do comportamento tudo muda (...) Fazes coisas
que nunca farias na primária, estás a ver. (...) Mudas, estás a ver?! (...) Chegas ao 6e: vou-me armar em
esperta (…) Começas a fumar os primeiros cigarros, cheia de cenas! (...) Também conheces pessoas
que nunca viste. (...) Chegas ao 6e, por exemplo tens 10 profs., levantas a voz a um prof., não é isso
que te vai lixar o resto do ano. (...) És tu que tens que mudar as aulas, transferir-te: encontras amigos,
chegas tarde às aulas.

Às vezes, os pais destes alunos percebem que os seus filhos se estão a afundar, ten-
tam reagir, parar o processo. Na maioria das vezes, eles servem-se das possibilidades de
passagem entre o ensino público e o ensino privado – e vice-versa. Como por exemplo,
Christelle, depois de ter reprovado no 3e foi orientada para um BEP. A sua mãe não queria
ouvir falar de uma orientação desta natureza. Ela inscreveu Christelle no 2nde, numa escola
privada (que custava cerca de 450 euros por mês). Christelle vai para o 2nde mas sem ter
de facto o nível de conhecimentos; além disso, os custos da escola pesam em demasia no
orçamento familiar. Christelle volta para o ensino público, no primeiro ano de BEP, ramo
sanitário e social. “A minha mãe tinha uma imagem muito negativa do BEP, mas ela agora
vê que eu estou fascinada, que me sinto bem, estás a ver, e que consigo perceber a matéria”
(E178).
A mãe de Christelle é assistente comercial e o seu padrasto é médico: eles têm os
meios, em todos os sentidos do termo, para ziguezaguear entre o ensino privado e público.

NT: A sigla CFA significa Centre de formation d’apprentis, que pode ser traduzido por “Centro de
106

Formação de Aprendizes”.
136
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Há outros pais que não têm estes meios e que estão reduzidos à pressão que exercem sobre
os professores. É o caso da mãe de Fatima (BEP2 secretariado, E96).

Todos os anos passava à justa. A minha mãe ia ver os meus profs. e o director porque não queria que
eu reprovasse. Ela prometia-lhes que eu ia fazer melhor no ano seguinte. (...) Quando eu era pequena
gostava disso, de não ter que chumbar. Mas, na verdade, a minha mãe envergonhava-me e é um boca-
do por causa dela que eu não fui bem sucedida. Mas como nas vizinhas dos bairros ninguém chumbou,
a minha mãe não queria que eu fosse a excepção à regra. (...) Acho que se tivesse chumbado talvez
tivesse conseguido evoluir, mas estava habituada a ter a minha mãe atrás de mim, a proteger-me. (...)
E se o meu irmão mais novo não conseguiu foi porque a minha mãe o defendia e lhe dava sempre
razão quando fazia asneiras. E ela contava aos outros que os profs. não gostavam do filho dela, é por
isso que ele reage assim. [A sua mãe escondeu de toda a gente que Fatima tinha sido orientada para o
BEP] talvez tivesse vergonha no fundo de si própria. [O irmão mais velho parou de estudar depois de
um BEP em contabilidade mal sucedido, o irmão mais novo abandonou a escola no fim do 3e. Os pais
perderam o controlo dos seus filhos:] Eles foram obrigados a deixá-los andar se não os meus irmãos
saíam de casa e isso a minha mãe não suportaria. Hoje ela está arrependida.

No seio desta deriva, em todo o caso na que acontece aquando da adolescência, en-
contramos uma espécie de luta de influência entre a escola e os amigos. Por um lado, a
escola, para estes jovens, não é interessante, quando precisamente os amigos, sobretudo
na adolescência, são apaixonantes. Por outro lado, a escola devora tempo e com frequên-
cia é necessário escolher consagrar-se ou à escola ou aos amigos: ouvir o professor ou
delirar um pouco com os amigos, ficar fechado a fazer os trabalhos de casa e as lições ou
sair com os amigos. O sucesso escolar exige sacrifícios e renúncias, até mesmo sacrificar
amigos, tão importantes. Além disso, alguns alunos resistem às exigências escolares, por
inércia, “delírio” ou revolta; é preciso então escolher a sua facção: a escola ou os amigos.
O “marrão” é aquele que escolhe a escola, em troca dos amigos; é o “colaboracionista”
face aos resistentes.
A deriva, iniciada mais ou menos cedo, é a trajectória mais frequente que conduz ao
liceu profissional. Mas também sucede que um aluno que, em princípio, não estava no
caminho do LP vá lá parar depois de um acidente de percurso, de um acontecimento que
o destabiliza – ou que um determinado acidente acelere um primeiro desvio escolar. Esta
figura tem o nome de ruptura.

3.2. A ruptura
A ruptura encontrada com mais frequência aquando das entrevistas é a que é provocada
pelo divórcio. Mas também acontece que uma simples mudança de casa, pela perda de
referências e a mudança de universo, mude o curso de uma história escolar. Mas atenção
às generalizações: nem todo o divórcio e mudança de casa levam a uma orientação para o
LP... Tudo depende do significado que o acontecimento assume para o aluno e a configu-
ração mais global na qual ele se produz. Assim, o divórcio dos pais destabilizou comple-

137
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

tamente Isabelle, que vai reprovar no 3e, embora os pais já tivessem intercedido para que
ela passasse para o 4e.

E depois no 3e foi uma catástrofe. Os meus pais divorciaram-se e o meu pai saiu de casa. De facto,
agora com a distância eu tenho consciência, eu passei-me da cabeça. Não fiz nada durante o ano e por
fim reprovei. O meu segundo 3e não melhorou e fui orientada para o BEP, onde estou agora. (Isabelle,
BEP2 secretariado, E99)
Do meu CP até ao CE2 era uma das melhores da turma e, hã, depois, bem, os meus pais divorciaram-
‑se e hã... desde essa altura que divago na escola e hã... francamente, agora detesto a escola. (Ra., 4e
technologique, E131)

A imigração do aluno, nascido e por vezes escolarizado no estrangeiro, e ainda mais as


idas e voltas entre França e o país de origem, também provocam rupturas, com frequência
profundas, na história escolar dos alunos. A história escolar dos jovens nascidos em Fran-
ça, de pais imigrantes, que depois retornam ao país dos pais e acabam os estudos lá, é com
frequência muito violenta.
Claudy era um bom aluno no Haiti até ao CM2; quando chega a França é colocado no
CE2 porque tem dificuldades em se exprimir em francês; em seguida será orientado para
o CPPN107, depois para o 4e e 3e technologique e hoje em dia, com 20 anos, frequenta o 2º
ano de BEP ramo mecânica; ele queria preparar um bac pro (E47).
Sabri, 19 anos, frequenta o primeiro ano de BEP marcenaria (E53). Nasceu nas Arden-
nes , onde começou a sua escolaridade – reprova no CE2. Quando está no CM1 os seus
108

pais decidem partir para a Argélia. Sabri tem que aprender a língua árabe, bem como o
cabila. Ele faz grande parte da sua escolaridade na Argélia, em turmas bilingues, depois
árabes, onde tem que enfrentar o seu estatuto de imigrante (no outro sentido...). “Todos os
filhos de França, vínhamos de todo o lado, encontrámo-nos lá e por isso estávamos entre
nós, falávamos francês e tudo. (...) Não temos a mesma mentalidade, chamávamos-lhes
arabistas [risos], não nos considerávamos árabes, ou não sei...” Estes jovens argelinos
vindos de França são acusados de serem “perturbadores”. “Disseram-nos: ‘Se não estão
contentes aqui podem sempre voltar para o outro lado do Mediterrâneo’ (...) é como aqui,
não mudou muito [risos].” Ele vai para o liceu, onde a arabização o perturba. Depois os
seus pais regressam a França, onde, apenas com base num teste de Francês, é inscrito no
Seconde e não no Première. “Fiquei frustrado (...), não estudei nada, de nada (...) não me
preocupei, nada. Estava sempre na brincadeira”. O professor de Ciências da Natureza
repreende-o: “Em França, não é assim” (e logo um professor oriundo das Antilhas, repre-
ende Sabri, “não francês”). A conselheira de orientação aconselha Sabri a “orientar-se”.
Ele começa um BEP electrónica, abandona, anda perdido durante um mês e é inscrito

107
NT: A sigla CPPN significa classe pré-professionnelle de niveau, que pode ser traduzido por “turma
pré-profissional de nível”. Trata-se de uma classe do terceiro ciclo que acolhe os alunos com muitas difi-
culdades.
108
NT: Região no nordeste francês.
138
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

depois pela irmã, ao longo do ano, em marcenaria. A opção agrada-lhe e ele quer preparar
um bac pro.
A história escolar de Latifa (19 anos, BEP2, materiais flexíveis, E8) é igualmente do-
lorosa. Ela faz em França o CP (onde reprova) e o CE1 (onde ainda sente dificuldades).
Então, o pai parte para a Tunísia, onde ela tem que aprender a língua árabe e voltar a
fazer o CP e o CE1; além disso ela conclui ainda o CE2 e o CM1. Ela é mais velha que os
outros mas “estava-me a borrifar (...) porque sou a melhor da turma, estudava durante as
aulas e não tinha nenhum problema”. Má aluna em França, Latifa é uma aluna brilhante
na Tunísia; orgulho supremo: às vezes dá as aulas em vez do professor. Então, o seu pai
regressa a França, onde ela recomeça no CM2. “Quando eu regressei foi a altura pior, foi
mesmo horrível (...) tinha problemas, era mesmo má (...) era a mais velha da turma e ainda
por cima, a cada trimestre de avaliação era a pior aluna. (...) E então fiquei furiosa porque
ainda por cima era a maior, tinha vergonha e não gosto de ser humilhada pelos outros.”
Latifa resume muito bem a sua situação. “Eu era muito infeliz porque lá eu era a melhor
da turma e quando volto, bum, de um momento para o outro era a pior.” Latifa passa para
o CPPN, depois para o 4e technologique secretariado; o pai dela exige-lhe que em vez de
secretariado se inscreva em costura, ramo mais adequado para uma rapariga... Depois do
3e technologique, ela frequenta o BEP.
Atenção, mais uma vez, para não generalizar rápida e abusivamente, sob forma de
destino, aquilo que constitui apenas um processo articulado com outros processos: Dalila,
argelina, chegou a França com 9 anos, só reprovou uma vez (o seu segundo ano de BEP
contabilidade, depois de chumbar no exame) e frequenta o primeiro ano de bac pro con-
tabilidade (E109).

3.3. A reorientação
Nem todos os alunos são orientados para o liceu profissional à saída do 3e (ou do 5e para
aqueles que seguiram um 4e seguido de 3e technologique em LP).
Alguns alunos vêm de uma secção de educação especializada (SES) e preparam um
CAP e depois eventualmente um BEP, até mesmo um bac pro. É o caso de Pierre, 20 anos,
passou por uma SES, depois por um CIPPA (ciclo de inserção profissional por alternân-
cia), depois faz um CAP de bate-chapas (em três anos) que complementa actualmente
com um CAP pintura automóvel; em seguida ele quer preparar um BEP, depois trabalhar
(E124). Para estes alunos, o LP representa uma promoção escolar, uma proeza muitas
vezes obtida com grande esforço.
Outros alunos, em maior escala, passaram por um Seconde geral ou tecnológico, por
vezes até por um Première, antes de serem orientados, com base nas dificuldades escola-
res, para um BEP (por vezes para um BEP que se completa num ano, turma especialmente
concebida para este tipo de trajectória). A orientação para o liceu profissional é para eles
ainda mais traumatizante do que para aqueles que foram orientados no fim do 3e: eles têm
que fazer o luto das suas ambições e são confrontados com uma imagem do liceu pro-
139
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

fissional e dos seus alunos que muitas vezes era recorrente quando eram alunos do liceu
geral ou técnico. Para alguns, a ferida narcisista permanece aberta. Outros, pelo contrário,
passam a ver (para sua grande surpresa...) o LP como um lugar de desenvolvimento: eles,
que desde há muito vivem a escola com dificuldades e angústia, descobrem de repente o
prazer de se ser bom aluno (o que acontece com frequência, pelo menos nas disciplinas
gerais onde o seu nível é superior ao dos alunos orientados para o LP no fim do 3e). O caso
destes alunos demonstra bem como o mesmo processo pode ter significados diferentes
segundo a configuração na qual funciona. De facto, ter muito boas notas no LP tanto pode
desencadear uma desvalorização do LP e por isso, indirectamente, de si próprio (este liceu
não vale mesmo nada, e a prova é que acho tudo fácil; ando no liceu de falhados) como
uma valorização de si próprio e, indirectamente, do liceu (não sou assim tão burro; este
liceu profissional realiza-me). Para além disso, a reconstrução da imagem de si pode tam-
bém passar pelo processo inverso: a descoberta (na maior parte das vezes através do liceu
profissional) de que o LP não é assim tão fácil (logo, contrariamente ao que se diz, não é
um liceu para gente falhada).
Sylvie era uma boa aluna na escola primária, recebeu incentivos no 5e, desinteressou-
‑se no 4e (“já não me interessava”, “não fiz mais nada”), reprovou o seu 3e e Seconde e
está escolarizada no BEP1 secretariado na altura da entrevista. Sylvie é a aluna típica que
passa pelo Seconde e que vive a sua reorientação para o LP com amargura e sofrimento:
ela aborrece-se no LP e, ao mesmo tempo, desvaloriza o ofício que está a aprender, o liceu
profissional e o ensino que lá se recebe.

[O secretariado:] Uma profissão sobretudo para mulheres, onde há muita coscuvilhice, muito repetiti-
va: telefone, dactilografia, marcação de reuniões... e cai-se muito rápido na mesma coisa, nos mesmos
mexericos.
[O liceu profissional:] Hum, não me agrada, aborreço-me, tenho a impressão de regredir. A Mate-
mática, por exemplo, é francamente mais fácil em relação ao Seconde, não há ecologia, não há uma
segunda língua, há montes de coisas que já não estudo e que afinal me agradavam. (...) O que estuda-
mos agora é ainda menos interessante. (...) Sim, pois, para secretariado eu estudei porque não sabia
nada, mas para as outras disciplinas não vale a pena, é mais fácil que no Seconde. (...) Não há um
computador por aluno, então passamos muito tempo à espera que o outro acabe, temos programas de
tratamento de texto ultrapassados, estás a ver. (E94)

Para Faïda, pelo contrário, o LP é um alívio. Ela teve problemas a partir do 4e (por
causa da separação dos seus pais, diz ela), reprovou o Seconde e depois foi orientada para
uma turma que prepara para um BEP de contabilidade num ano. Para ela “foi duro” acabar
aqui e ainda hoje ela acredita que mesmo que consiga entrar na Première d’adaptation “é
como se tivesse chumbado três vezes o meu Seconde (...) vai ser difícil interiorizar”. Mas
ela diz igualmente: “Este ano é a primeira vez que me sinto bem numa turma”.

140
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

No início foi difícil admitir que o liceu geral acabou e que ia para o liceu profissional, foi difícil ter
consciência que fui parar lá, disse para mim própria que já não tinha remédio. (...) Afinal vou ter uma
formação, um diploma, se conseguir passar, e não vejo porque deveria ter vergonha. Mas foi muito
difícil sair do geral e vir parar aqui. (...) Quando cheguei pensei que ia ser fácil (...) afinal não é fácil
mas eu prefiro que seja assim, trabalha-se para obter notas razoáveis. (...) Percebi que no liceu pro-
fissional aprende-se muitas coisas (...) Tenho consciência que tenho que estudar muito. (…) [Além
disso, se ela entrar a seguir na Première d’adaptation ela não perdeu totalmente o seu tempo.] Em
contabilidade estamos mais à frente que no 1º G, que estão no início da contabilidade, como no 1º
ano de BEP. (E181)

Para outros alunos, a reorientação não remete para uma passagem pela SES ou pelo
liceu geral e técnico mas uma passagem pela via profissional, seja como aprendiz, seja
como trabalhador (em “trabalhos menores” sem qualificação).
A Sandra queria ser cabeleireira. “Sou vaidosa, gosto de me pentear, pôr rolos e isso
tudo e então depois fui orientada para este campo.” Durante sete meses ela fez estágios de
cabeleireiro, passando de um patrão para outro, depois pediu que a voltassem a inscrever
no LP.

Ser cabeleireira é uma profissão de cão, obedecer, obedecer, ficar em pé de manhã à noite, fazer horas
extraordinárias, é um inferno. [P.: Não era assim que julgavas que era antes de começares?] É isso
mesmo, eu não pensava que fosse assim e depois antes de poder cortar o cabelo é preciso esperar
muito, apesar de tudo. (...) Enfim, a mim calharam-me uns patrões que não eram assim tão simpáticos,
clientes que contavam tudo sobre as suas vidas mesmo quando não tínhamos vontade de ouvir, e há
outros que não têm assim muito vontade de dar à língua, é isso, há uns que nunca ficam satisfeitos, eis
o resultado! É assim. (BEP2 materiais flexíveis, E1)

Mourad é expulso da sua escola por causa de roubo no 4e, vai para outra escola, depois
começa um CAP de carpintaria (num CFA), abandona-o ao fim de 15 dias e pede para
voltar à escola (que tem que o aceitar pois tem menos de 16 anos). Na altura da entrevista,
ele está escolarizado no 1º ano de BEP vendas.

O mundo do trabalho é muito difícil. Ia para as obras, como se fosse um trolha, era muito difícil, acor-
dar às 5h para chegar ao estaleiro às 8h, chegar tarde a casa. Durante uma semana era sempre a mesma
coisa, já estava farto. Estava contente de voltar à escola (...) Os horários são melhores na escola. Ainda
por cima, nas obras não conhecia ninguém enquanto na escola tinha os meus colegas. (...) Voltei a
apreciar a escola. Percebi que estava lá para construir alguma coisa boa. Não posso fazer asneiras.
Aprendi a lição, mas as notas não estavam à altura. Eu tinha lacunas porque não fiz um trimestre de
3e. (...) Não consegui recuperar mas este ano está a correr melhor. (E56)

Depois do 5e, Frédéric desistiu dos estudos durante dois anos, antes de ser escolarizado
no LP. Obteve um CAP, frequenta o segundo ano de BEP ORSF (operador regulador de
sistemas de fabricação) e tem em mente um bac profissional; tem 21 anos. “Andava na
141
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

rua, tinha problemas, depois estive no CIO109, contei a minha história, tudo isso, e eles
colocaram-me aqui em X... em Mecânica.”

Fui eu que quis voltar à escola, acho que me fez ver que a escola é importante. Foi a rua que me fez
ver isto. Não existe ninguém para te ajudar, só há a escola. Na rua, eu tinha amigos, divertíamo-nos
bastante, e tudo, fazíamos asneiras e foi aí, quando eu tive esses problemas, dei por mim sozinho,
sem ninguém e sem fazer nada, a fumar, as pessoas não fazem nada, fecham-se, já não conhecem o
ambiente da escola, do trabalho, ficam assim, eles já nem sequer procuram trabalho (...) Eu necessi-
tava de um pouco de segurança da escola e de me convencer que era o momento para conseguir um
CAP, para fazer alguma coisa, para ter um diploma, que talvez mais tarde me dará frutos. Percebi que
para responder a um anúncio de emprego tenho que ter um diploma. Eu não tinha nada de nada, isso
preocupava-me um bocado. Por isso para ter um diploma tenho que aprender coisas, é na escola que
posso aprender. (E35)

Derivas, rupturas, reorientações, períodos de aprendizagem ou de trabalho. De acres-


centar que estes jovens passam por vezes do sector industrial ao sector terciário e vice-
versa. Sylvain frequenta o BEP2 electrotécnico depois de ter feito um ano de Contabili-
dade (E38). Madjid passou por um Seconde opção económica e social e actualmente está
em BEP electrotécnico de um ano e a seguir quer fazer um bac pro e um BTS de vendas
(E39). Waïba frequentou um ano de BEP contabilidade, está no BEP1 sanitário e social e
quer fazer uma Première d’adaptation, passar o bac e uma licenciatura para ser educadora
de infância.
Tudo isto, por vezes acumulado, produz trajectórias por vezes complexas, até mesmo
aberrantes. Fabrice reprovou o seu 3e e depois um Seconde engenharia civil (F4), depois
uma Première mecânica (F1); a seguir fez trabalhos menores na construção, depois uma
turma de BEP restauração (em alternância), depois o seu serviço militar e na altura da
entrevista, ele está no primeiro ano de bac pro manutenção de sistemas mecânicos auto-
máticos; ele queria ser motorista de autocarros; tem 20 anos (E4). Hakim reprovou duas
vezes o seu 5e, preparou durante dois anos um CAP de mecânica (sem o conseguir) depois,
outra vez durante dois anos, um BEP de contabilidade (que também não conseguiu mas
obteve o CAP) e está no segundo ano de CAP electrotécnico (E194). Dito de outra forma,
é o sexto ano que ele está escolarizado numa turma de CAP ou de BEP! Tem 20 anos e
queria fazer a seguir um BEP de electrotecnia (ou seja oito anos para obter um BEP – se
ele o conseguir...) e um bac pro. Alguns alunos evocam os seus chumbos e os seus zigue-
zagues com uma espantosa serenidade. Desta forma, Christophe 20 anos, que reprovou
o CM2 e um segundo ano de BEP contabilidade e que está no primeiro ano de bac pro
vendas-representação, diz: “Acho que tive um bom percurso escolar. Espero continuar. Só

NT: A sigla CIO significa Centre d’information et orientation, em português “Centro de Informação e
109

Orientação”.
142
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

me falta um ano, espero que corra bem até ao próximo ano. Como correu bem durante a
minha vida até agora” (E190).
Qualquer que seja a sua trajectória – deriva, ruptura, reorientação – estes jovens dei-
xam com frequência transparecer uma mistura de amargura e motivação. Nalguns, é o
ressentimento, até a rebelião, que domina mas isso não significa que não haja fontes de
mobilização. Noutros, as novas perspectivas que a escolarização no liceu profissional re-
velam dão um novo fôlego ao aluno, sem que no entanto os sofrimentos de um passado
ainda próximo sejam esquecidos. Veremos em breve como é que os alunos reagem à orien-
tação no liceu profissional. Mas primeiro é preciso que nos debrucemos um pouco sobre a
forma como é tomada esta decisão de orientação.

4. A orientação no LP: uma violência, uma ofensa

Para alguns alunos, a orientação no liceu profissional não é uma surpresa: sempre quise-
ram ir para o liceu profissional ou, pelo contrário, estão em xeque desde a escola primária.
Mas estes casos são minoritários. Apesar de tudo, muitos alunos mantêm, até ao fim, a
esperança de entrar no liceu geral ou tecnológico. Outros escolhem eles próprios uma
orientação no LP sem nenhuma vontade de o frequentar, muito simplesmente porque não
têm outra solução. Outros ainda, como vimos, são reorientados para o LP depois de uma
passagem pelo ensino geral ou técnico. Para todos estes alunos, a orientação no liceu pro-
fissional é vivida como uma violência e provoca uma ferida narcisista.
Esta ferida pode ser profunda e manter-se em carne viva até mesmo quando o aluno se
está a “safar” numa turma de bac pro.

O conselheiro de orientação vigarista, ele baralha mais do que te informa. O BEP, encontrei-o sozinho.
(...) Eu não sei, somos mal informados, eu não sabia que a electrotecnia era isto. Ninguém me propôs
nada. Eu vi os BEP num ano, não queria de dois anos. (R., BEP 1 ano electrotecnia; o aluno frequentou
o Seconde, E39)
De qualquer forma eles não me deram escolha, agora para mim é tarde demais (...) eles não me deixa-
ram escolher. (…) Estou sempre desanimado. (R., bac pro 2 mecânica automóvel, E16)
Os profs. são uns cabrões! Por trás daquelas posturas muito importantes eles são racistas. Eles querem
sempre que sejam os árabes ou os estrangeiros a serem orientados para lá. De qualquer forma, os pais
são imigrantes. Os profs. são mesmo fachos, todos os franceses passaram e eles propõem o BEP aos
pretos e aos árabes. (...) Levas a tua mãe para falar com o prof., ele enrola-a, mais uma árabe que é
enganada. (Ra., bac pro 1 contabilidade, E109)
É verdade que no 3e eu não era uma grande aluna. (...) Até eu sabia que não ia para o Seconde.
Dizia a mim própria: “Vou para o BEP”. O problema era qual BEP escolher, eu não conhecia, ainda
por cima, eles assustavam-nos. (...) Diziam-nos, os profs. (...) que a escola era obrigatória até aos
16 anos, eles podiam, podiam-te, sabes, que a direcção de turma, se decidissem que aos 16 anos,
humm... expulsavam-te se nenhum BEP te escolhesse, estás a perceber? Eles faziam chantagem (...)
Até o BEP era um privilégio (...) eram eles que decidiam: ou o BEP ou a rua. Por isso fui ter com a

143
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

orientadora, ela disse-nos: “Bom, ouçam lá, um ramo BEP secretariado, bom, pode-se... Vou tentar
arranjar as coisas de forma a que ela tenha um lugar no BEP”. Estás a perceber? É do género: bem,
bem, depois agradecem-me quando ela conseguir o lugar, ok? E, por isso, tenho muitas amigas
nesta situação. (...) E, por isso, no fim do ano escrevias as tuas escolhas e recebi o resultado de que
afinal ia para BEP secretariado. Eu não sabia sequer o que era o BEP secretariado! O que é que ia
para lá fazer? (...) Estava contente, estás a ver, não fui expulsa. “Onde? Ah, está bem! O liceu lixo
e estás contente, fixe! (...) Afinal, eles estavam a gozar contigo. Foram maus contigo, colocaram-te
num beco sem saída”. É assim, era tudo chantagem. (...) Bem, os meus pais, o meu pai no início
queria que eu fizesse o Seconde, mas visto que os profs o manipularam, à minha mãe também, do
género: pois, o Seconde é impossível, já o BEP, ou vai ou racha. Por isso, no fim de contas, é o BEP.
(Ra., bac pro 2 secretariado, E120).

Estes alunos estão zangados com os professores, com os conselheiros de orientação (e


de que maneira...) e, de uma forma mais vaga, com “eles”. Claro que é necessário ouvir e
ler o que eles dizem distinguindo o que é amargura e o que é reinterpretação de vítima. É
preciso não esquecer que os conselheiros de orientação, psicólogos e com mais frequência
os que participam de uma forma ou de outra na orientação dos alunos, são apanhados pelas
contradições institucionais e sociais de que eles próprios são vítimas. Apesar de tudo, os
alunos descrevem os comportamentos, os argumentos, as práticas que não foram inventadas
por eles e que constituem problemas.
Por vezes, os alunos são vítimas da ignorância daqueles que os orientam.

[A conselheira de orientação] eu fui vê-la duas vezes, e hum... não serve para nada porque ela própria
está mal informada. Enfim, foi o que senti (...) quando eu fui ter com a conselheira de orientação ela
não me explicou nada, ela falou-me de um BEP secretariado e que há secretariado e comunicação, ora
isso não me acrescentou nada. De facto, hum... fui-me informar com as minhas colegas e foram elas
que na realidade me explicaram que não havia só Secretariado, havia outras coisas. Havia Contabi-
lidade, Matemática, enfim, tudo (...) Acho que é uma vantagem (...) Para dizer a verdade, nós temos
mais hipóteses de continuar depois. (Ra. BEP1, secretariado, E185)

Com frequência, eles são vítimas da rotina, da falta de imaginação.

O maior problema da educação é a orientação (...) Os conselheiros não são competentes (...) No dia em
que tínhamos que preencher o dossier, tinha três escolhas, estava hesitante e acho que o professor me
disse: “Despacha-te”, então eu tive que escrever rápido a primeira coisa que me apareceu e coloquei
vendas em primeiro (...) Diz-se que na orientação eles levam tudo em conta, eles fazem as aprecia-
ções, eu não acredito, parece-me que eles pegam na primeira palavra que vêem e já está! (R., BEP2
mecânica automóvel, E50 – frequentou um BEP de vendas; ele quer trabalhar num centro de estudos
de mecânica, que já queria desde o 3e...)

Isabelle, 19 anos, quer desde há muito ser fotógrafa. Hoje em dia prepara um CAP de
fotografia numa escola privada (no 2º ano). Ela teve muita dificuldade em encontrar esta

144
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

escola; a escola (pública) não ajudou em nada. No 4e,

Já tinha tido reuniões com os conselheiros de orientação e eles disseram-me “ah, sim, não, fotografia não,
é muito fechado, é melhor escolheres o ramo sanitário”. [Felizmente os pais apoiaram-na] porque de outra
forma ia parar ao sanitário e social que não me diz nada. (…) O que eles querem é pôr-te a andar e mandar-te
para onde eles querem, na medida do possível. (E126)

No fim do 3e propõem-lhe dactilografia, contabilidade e sanitário e social. Ela informa-


‑se pelos seus próprios meios e encontra a sua escola na feira do estudante.
Béatrice tem 26 anos, um CAP de estenografia-dactilografia (mas reprovou o BEP)
e desde há dois anos e meio trabalha na organização de feiras profissionais. Em criança
queria ser arqueóloga. Um dia, quando frequentava o CM1, contou à professora, que lhe
pediu uma definição de arqueólogo:

“Mas tu não queres ser arqueóloga, queres ser etnóloga! Vais copiar dez vezes a definição de arqueó-
logo!” Ela matou-me. Sim, a sério, ela desfez o meu sonho. Não, foi muito duro! Visto que eu nem
sequer conhecia a palavra... Percebes era assim: como é que queres que faça qualquer coisa quando
nem sabia o que era... [Bem, mais tarde, a Béatrice foi ter com o conselheiro de orientação acom-
panhada da mãe:] E foi assim “com as notas que ela tem, o que é que ela quer fazer?” Ele pegou no
seu livro [pausa, cabeça apoiada nas mãos e cotovelos na mesa, despreocupadamente ela imita-o a
virar as páginas]. “Tenho costura... secretariado”. Mas em nenhum momento diz “Bom, talvez tenha
alguma coisa em decoração ou outra coisa que te agrade... agradar-te-ia se...?” Não, de maneira
nenhuma, não tinhas escolha, tinhas que escolher o que ele tinha. Ainda por cima não interessava se
havia lugares, ou não, se eras suficientemente boa aluna. É nisto que eu os responsabilizo, é que em
nenhum momento eles falam realmente sobre aquilo que tens vontade de fazer. Nunca... (...) Isto é
que é triste ao nível da orientação: é que são eles que te orientam, não és tu que te orientas porque
não tens escolha. Mesmo que tenhas, não és suficientemente boa aluna, logo és obrigada a fazer isto.
Desde o início que eles sabem que não és boa aluna e desde o ínicio que sabem onde te vão colocar.
(E156)

Por vezes, os alunos são vítimas de pressões, de manipulações, até mesmo de desinfor-
mação. Sandra, que queria ser cabeleireira e que penou de patrão em patrão, explica:

Eu não tinha mais nada, não sabia o que fazer, frequentava um CIO, eles disseram-me que sobravam 14
lugares em materiais flexíveis, bem a mim não me interessava, eu queria ir para secretariado, vendas,
já não havia lugares pois era muito solicitado, depois por causa do meu comportamento e tudo isso
disseram-me que era melhor despachar-me, daí materiais flexíveis, avança-se e tudo por isso orientei-me
aqui, bem, não é por isso que me agrada, depois pronto. (BEP2 materiais flexíveis, E1)
Como é que eu cheguei aqui? No 3e eu queria estudar secretariado-contabilidade e depois o meu di-
rector disse-me que não havia saída depois, então disse-me que a costura era uma boa opção, eu disse
que não gostava mas disse-lhe que ainda assim ia experimentar e por isso experimentei e gostei desde
o primeiro dia. (Ra., BEP2 materiais flexíveis, E2)

145
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

O reitor do liceu onde Frédèric reprovou na Première F3110:

Ele disse-me: “Se queres agradar àqueles que te são queridos ao escolher esta via, sabes o que é que
tens que fazer (...)”. Ele disse-me: “Anda ao meu gabinete e vamos conversar” e ele escolheu esta
via, disse-me: “Em relação ao que tens é melhor que vás para ali (...)”. O problema é que existia a
mecânica e as oficinas e era aí que eu era o melhor e a Matemática nem por isso, enfim nas disciplinas
gerais também não, por isso eu escolhi esta via. (R., bac pro 1 manutenção de sistemas mecânicos
automatizados, E7)

Uma grande maioria dos alunos escolarizados no LP viveu a orientação como uma vio-
lência, como uma ferida narcisista. A questão importante reside em saber como é que eles
vão tratar esta ferida, como é que eles vão assumir esta orientação, o que é que eles vão
fazer. Em contrapartida, a pergunta clássica “Eles escolheram ou não a sua orientação?”
não é muito pertinente. Voltemos a ler o que diz Frédèric, na primeira citação: ele declara
ao mesmo tempo “ele escolheu esta via” e “eu escolhi esta via”. Esta ambiguidade não
tem nada de especial. Frédèric é muito representativo neste ponto. Os alunos mantêm dis-
cursos perfeitamente contraditórios sobre a questão da “escolha” do liceu profissional111.
Poderiam alinhar-se aqui dezenas de citações. Eis algumas.

Como não tinha a média necessária para ir para o Seconde, não tinha muitas escolhas, tive que esco-
lher ACC. (R., BEP2 ACC – isto é, contabilidade, E3)
Fui apanhada de surpresa, não vi as coisas acontecerem. Não digo que não tenha merecido, mas não
me apercebi. (...) Sabia que existia o liceu e o LP pois havia um LP a 200 metros do collège mas nunca
tinha ouvido falar do BEP. (...) Aconteceu por acaso. Não era muito boa aluna, logo não tinha muita
escolha, e de facto eu escolhi o que me propuseram. (...) Talvez vá ter a mesma profissão que a minha
mãe, é uma coincidência. (Ra., BEP2 secretariado, mãe secretária trilingue, E99)
[No fim do 3e] propuseram-me um BEP, ou era o BEP ou a repetição do ano escolar, por isso fiz o
BEP (...) Não estava muito bem informada mas eu queria alguma coisa, uma área profissional que
tenha saída; achei que a opção vendas teria sempre saídas, por isso era melhor escolher vendas (...) Eu
escolhi. (Ra., bac pro 2 comércio e serviços, E10)
Não era possível que eu fosse para um liceu normal, então escolhi o liceu profissional, escolhi tratar
das crianças. [Mas não há vagas no BEP sanitário e social] então vi-me obrigada a orientar-me por
outra via e escolhi secretariado. (Ra., bac pro 2 informática, opção secretariado, E9)
Escolhi entrar no BEP. Não fui bem eu que escolhi, aconselharam-me, foi o conselheiro que me
aconselhou para fazer o BEP (...) eu queria estudar mas não tinha muitas opções, por causa das notas

110
NT: Uma vez que não existe uma expressão equivalente em português optou-se por manter a expressão
original. A Première F3 foi substituída, no sistema de ensino francês, pelo bac STI (Sciences et technolo-
gies industrielles). Este diploma em Ciências e Tecnologias Industriais destina-se sobretudo a alunos que
se interessem pelo fabrico, concepção, organização e gestão de projectos industriais. O bac STI propõe
sete especialidades à escolha dentro da Engenharia Industrial.
111
De notar que na maior parte das vezes é espontâneo e não em resposta a uma pergunta do investigador
que o jovem diz ao mesmo tempo “eu escolhi” e “eu não tinha escolha” – inclusive em duas frases suces-
sivas ou muito próximas.
146
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

(...) No entanto a partir do BEP habituei-me. Bom, ajudaram-se a escolher, os conselheiros, eu escolhi
tendo em conta o meu nível. (...) E não digo que isto me desagrade, mas não sei, se tivesse estudado
mais na escola talvez me pudesse ter orientado. (R., bac pro 2 mecânica automóvel, E17)
Eu não me arrependo, na altura era a única solução. É o destino, como se costuma dizer (...) Bom,
mas se pudesse voltar atrás... é difícil fazer julgamentos agora, porque agora que sei o que é eu teria
escolhido carpintaria na mesma, mas se eu não conhecesse, acho que a carpintaria é um trabalho ma-
nual, que desgasta, tanto se pode trabalhar num estaleiro como numa oficina, é preciso carregar pesos,
nem sempre se está limpo e tudo isso... Teria então escolhido ser médico porque é uma profissão mais
repousante onde não existe o esforço físico. (R., bac pro 1 carpintaria, E105)

Eu escolhi/não tive escolha/não podia escolher outra coisa/escolhi o que propuseram/


não fui eu que escolhi. Eu não escolhi verdadeiramente mas adaptei-me e se tivesse que o
voltar a fazer, agora sei de que se trata e escolheria isto. Ao ouvir os alunos, torna-se claro
que a problemática da orientação “escolhida” ou “não escolhida” é muito pouco pertinen-
te. Certamente que alguns, não muitos, escolheram de facto exercer a profissão do seu
pai ou dirigir-se para uma formação profissional – no entanto, fica por perceber porquê, e
inclusive quando é que o aluno reproduz a profissão do seu pai. Mas a maioria dos alunos
decidiram, aceitaram, escreveram, assinalaram (eles dizem “escolheram”) o que lhes foi
aconselhado decidir ou o que lhes parecia a única decisão possível tendo em conta o seu
nível escolar: uma “escolha” de tal natureza é evidentemente uma pseudo-escolha. A ver-
dadeira “escolha” far-se-á mais tarde: alguns não conseguem habituar-se, outros adaptam-
se, alguns começam a gostar de uma orientação que não queriam e reinscrevem-se num
percurso de sucesso escolar. Mas mais uma vez, a noção de escolha não é assim tão perti-
nente. Significa uma reestruturação da situação que se produz, e com ela uma reestrutura-
ção da relação com a escola e com o saber e, mais globalmente ainda, uma reestruturação
do sujeito. A questão importante não é então saber se os alunos “escolheram” ou não a sua
orientação: é fácil verificar que a esmagadora maioria destes alunos não teria decidido esta
orientação se tivessem podido escolher face a um universo de possibilidades muito vasto.
A questão importante passa por compreender o que é que o aluno faz com esta orientação
que não desejou: qual é o trabalho psíquico que ele produz, quais são as representações
em que se apoia, como é que ele reconstrói a sua relação com o mundo, com os outros,
consigo próprio e, indissociavelmente, a sua relação com o liceu profissional e com os
estudos? O que é importante é a forma como o aluno se apropria (ou não) do liceu profis-
sional e consegue (ou não) reinscrever-se numa figura social a seus olhos aceitável. São
estas questões que desempenharão um papel central no próximo capítulo.

147

CAP. 9
REINVENTAR UM FUTURO

Existem muitas formas de ser aluno de liceu profissional. A análise das entrevistas per-
mite identificar três figuras – isto é, três conjuntos de processos, de atitudes, de modos
de interpretação que constituem configurações de sentido e de práticas. A primeira figura
é a do ressentimento, que pode adquirir diversas formas: recusa, revolta, cinismo… A
segunda figura é a da prática: o liceu profissional faz sentido enquanto lugar de uma
prática e ainda mais como lugar complementar da empresa. A terceira figura é a da
alternativa institucional: o liceu profissional constitui uma outra forma, muitas vezes
preferível, de conseguir o diploma. A segunda e a terceira figuras, frequentemente arti-
culadas uma na outra, permitem reinventar um futuro e, desta forma, constituem fontes
de remobilização escolar.
Estas figuras são construídas a partir dos dados recolhidos nas entrevistas. Elas são o
resultado de uma modelização e constituem aquilo que se designa por ideal-tipos. Elas
permitem compreender melhor o que os alunos dizem sobre o liceu profissional e produ-
zem por isso inteligibilidade sobre as situações “concretas”, os alunos “concretos”112. Mas
o que é aqui proposto não é uma categorização dos alunos em tipos. Sem dúvida que o que
diz um determinado aluno singular torna-se inteligível em referência a uma determinada
figura mais do que a uma outra mas o que estaria aqui em causa seria unicamente uma
dominante e a análise de um caso singular ganha com frequência o facto de levar também
em conta as outras figuras.
A trajectória seguida para se ser aluno de liceu profissional, que foi analisada no ca-
pítulo precedente, está evidentemente ligada à forma de apropriação do liceu profissio-
nal. Aqueles que sempre quiseram ir para o liceu profissional advêm da segunda figura,
enriquecida pela terceira. Aqueles que nunca entraram nas lógicas escolares advêm com
frequência de uma forma da primeira figura mas podem por vezes inscrever-se na segunda.
Aqueles para quem o LP é a conclusão de uma história incerta fazem um grande trabalho
de interpretação para dar um sentido ao que lhes está a acontecer e podem inscrever-se
numa das três figuras (ou numa forma híbrida).

112
Mantenho o termo “concreto” para ser legível para a maior parte das pessoas mas este termo não tem
qualquer pertinência científica. Seria mais rigoroso falar aqui de situações e de alunos tidos em conta,
simultaneamente, pela sua singularidade, pela sua história e pelo seu contexto.
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

1. A figura do ressentimento: negação, revolta, cinismo…

Alguns alunos recusam-se a assumir uma orientação no liceu profissional que para eles
é insuportável. Esta orientação foi-lhes imposta, eles não a queriam e continuam a não
aceitá-la. Eles desenvolvem um discurso de desvalorização sistemática de tudo aquilo que
se relaciona com o liceu profissional. Tudo o que lhes acontece alimenta o seu ressenti-
mento, por vezes atinge mesmo laivos de caricatura, como no exemplo que se segue (R.,
BEP1 sanitário e social, único rapaz da turma).

Os profs., antes de me mandarem para aqui, não me disseram que era preciso aprender todas estas
coisas, ainda por cima a maior parte delas não serve para nada. Minha senhora, imagina-me a tratar de
bebés durante todo o dia? Eu queria trabalhar num hospital com velhos. Ainda por cima nesta turma
só há raparigas, então eu aborreço-me, ainda por cima são chatas, ah, não, minha senhora, esta turma
é um inferno (…) Ainda por cima no estágio deste ano, colocaram-me numa creche que é muito longe
de minha casa, não sei como é que hei-de ir para lá. Ainda por cima, nem sequer nos disseram o horá-
rio do primeiro dia, nem sequer sei quando tenho que estar lá [Sugere-se que veja no contrato de está-
gio ou telefone] Primeiro, nem sequer tive acesso ao contrato. Sim, ok, a prof. responsável entregou-o
ontem, mas não percebo nada, de qualquer forma eu não queria fazer este estágio (…) E depois nem
sequer nos pagam. Eu, no Verão passado, trabalhei para um chefe e fui pago, então não serve nada
fazer um estágio quando nem sequer somos pagos. [Ele era vendedor de sandes] Era porreiro e não
era preciso aprender montes de coisas. (E68)

Acumulando os argumentos usados pelos alunos, pode assim constituir-se uma confi-
guração do ressentimento e da recusa. Os principais elementos são os seguintes – sabendo
que se trata de uma configuração ideal-típica e que é raro que um aluno use todos estes
argumentos.

• Não queria ir para o liceu profissional, não queria fazer este ramo, e continuo a não
querer.

Eu não queria frequentar o liceu profissional. Foram eles que me inscreveram no LP (…) eu não
concordei, foi a escola que decidiu, eu não pude dizer nada, não pude falar com eles sobre o assunto
(…) Não gosto. Não me sinto bem aqui (…) Aborreço-me. É fácil. Eu não aprendo nada. Tenho boas
notas, nem sequer sei porquê. Pelo menos os meus pais ficam contentes, pensam que eu estudo. Eu só
faço o mínimo necessário para não ter problemas com os profs. (E48)

• O ofício que estou a estudar não me interessa, não tem nada a ver comigo e não faço
intenções de o exercer.

Nem sequer me interessa, a mecânica não é para mim. (E16)


[O secretariado é] uma profissão sobretudo para as mulheres, onde existe muita coscuvilhice, muito
repetitivo (…). (E94)

150
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

• O liceu profissional não é um verdadeiro liceu, não é um liceu normal, mais parece
um jardim-escola.

O LP, para mim, não é normal desde logo a partir do momento em que quando se é fraco se é enviado
para o LP, significa que já não é um liceu normal (…) Eles querem dizer pro, mas pro significa para
eles PPN113. (E16)
[Este liceu] é ZEP na sua máxima força (…) há sempre montes de pretos, de árabes (…) Todos os
anos eles mudam o nome dele para que haja gente a inscrever-se (…) oh, não é um liceu é um jardim-
‑escola114. (E39)
O LP parece uma escola de recuperação. Parecemos diferentes, à parte (…) Às vezes fazemos coisas que
não servem para nada como se tivessem que nos manter ocupados para não apanharmos seca. (E48)

Se o liceu não é normal, é porque acolhe alunos que também não são normais. Às ve-
zes aquele que fala responsabiliza os outros alunos de serem fracos e de o fazerem perder
tempo. Mas é sobretudo o tema da escumalha que é destacado. Desde logo, ser escola-
rizado no liceu profissional é ser assimilado aos fracos e à escumalha e deparar-se desta
forma, relativamente à família, aos amigos e às “pessoas”, numa situação humilhante.
Esta situação, contudo, é ambígua: o aluno que vive a sua escolarização no LP como uma
humilhação pode no entanto apreciar o ambiente da turma – embora proteste porque este
ambiente não lhe permite aprender.

É incrível, percebo agora porque não seguimos o nosso programa, porque não temos todos o mesmo
nível, o que faz com que se ocupem dos mais fracos, para que atinjam o nível, é difícil. (…) Ainda
por cima o LP com toda a escumalha que existe…é flagrante. Na minha opinião, todos aqueles que
chumbaram no 3e, vão todos para o LP (…) Para já eu sinto-o como uma humilhação, no final de
contas, um LP. (E16)
Eu acho que as minhas irmãs me tomam por parvo. Eu não sou, posso dizê-lo [risos]. Não sei, quando
dizes que frequentas um BEP, as pessoas não falam contigo da mesma forma do que quando dizes que
frequentas… eu não sei, elas não te vêem da mesma forma. Quase que te tomam por um gagá [gesto,
risos]. (…) Na turma o ambiente é demais. Já nem sequer somos chamados pelo director de turma,
temos cadastro nas nossas fichas, é uma barbaridade, um massacre. (…) O director, vem todos os
dias, o reitor da escola quase que expulsou a turma inteira. (…) Não, o ambiente, não... às vezes estás
contente, estás nas aulas, divertes-te. (E39 – ele tem três irmãs, uma das quais frequenta a faculdade
de Direito.)

• As aulas de ensino geral são uma treta – o que confirma que os alunos são fracos ou
que, em todo o caso, os tomam “por parvos”. As aulas de ensino profissional são as únicas
113
O aluno alude às CPPN (classes pré-profissionais de nível), turmas de deportação implantadas nos
collèges que a pouco e pouco foram sendo suprimidas nos anos 1980 mas que permanecem como símbolo
do insucesso escolar.
114
O liceu mudou efectivamente de nome depois de uma fusão entre um liceu industrial e um liceu ter-
ciário situados na mesma zona geográfica; a princípio teve um nome duplo (o dos dois LP precedentes),
depois um novo nome. O aluno interpreta aqui estas mudanças de nome como uma tentativa de camufla-
gem que visa abusar melhor dos alunos orientados para o LP.
151
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

que agradam a estes alunos, que por vezes consideram que “é difícil”. Mas como eles re-
cusam a perspectiva de exercer o ofício que lhes é ensinado, estas aulas não lhes permitem
reconstruir: no máximo concordam com um esforço mínimo que lhes permitirá não repro-
var nestas disciplinas (reprovar numa turma de burros, isso seria o cúmulo…).

O Francês é uma treta, eles ensinam-nos a ler, eles tomam as pessoas por parvas. (…) Voltamos à
escola primária (…) Estudamos Inglês, mas é uma treta. Good morning e os dias da semana. Temos
laboratórios e tudo. É assim o BEP, nas disciplinas gerais, é uma treta. É uma decepção. Se eu te mos-
trasse um tema de História, ias gozar comigo. (…) Não, onde é difícil é em Electrotecnia. (E39)
É uma treta! Em Francês, em Inglês, o nível é mesmo fraco. (E109)

• Não há material decente no LP.

Não há um computador por aluno, então passamos metade da aula à espera que o outro acabe, temos
programas de tratamento de texto velhos, ultrapassados, estás a ver. (E94)

• Para além disso, com a minha idade, preciso de ganhar dinheiro.

Ainda por cima, aos 20 anos não ganhamos dinheiro, também é preciso que se diga, torna-se difícil
aos 20 anos, temos necessidades, estamos a começar. (E16)

Encontramos, assim, nos liceus profissionais alunos mergulhados num descontenta-


mento que pode tomar a dimensão de um ressentimento universal. Só lhes agrada o ensino
profissional e os estágios – que no entanto são muito criticados.
A partir deste ressentimento desenvolvem-se atitudes e condutas muito diversificadas:
negação, revolta, cinismo…
Alguns alunos vivem o LP como uma negação: para eles, estão lá por engano, eles
não têm nada a ver com o ensino profissional e a única coisa que o LP lhes pode dar é…
o ensino geral.
Por exemplo, Jacky, escolarizado no primeiro ano de BEP ORSF depois de ter estado
dois anos no Seconde (onde, segundo ele, reprovou porque estava centrado no basquete),
quer ser professor primário no Senegal.

[Operador-regulador de sistemas fabris?] Eu não sabia o que era, não tenho muita apetência para as
coisas manuais (…) Não é a cena que eu quero fazer mas não tive alternativa. Faço os meus dois anos
e tentarei regressar ao ensino normal. Agora que comecei… (…) Eu farei um exame de entrada para
ser professor primário, por isso isto vai acabar. Regressarei ao liceu até ao último ano. Regressarei,
não tenho dúvidas. Estou sempre a estudar o ensino geral (…) Sou o melhor aluno da turma, sou o
primeiro. Não é de facto o meu ramo mas como estou aqui sou obrigado a estudar (…) não sou nada
manual mas enfim… (E28)

Desenvolver um projecto que advém do ensino geral e não do ensino profissional é


uma forma radical de negar a sua pertença no liceu profissional. Outros processos podem
152
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

articular-se com este último. Jacky repete várias vezes que não é manual – a sua “nature-
za” não é a mesma que supõe uma orientação num ramo industrial do LP. Lamia (BEP2
secretariado) acrescenta a um projecto que advém do ensino geral uma crítica a propósito
do nível insuficiente do LP (por meias-palavras: insuficiente em relação ao seu nível) e
um discurso muito conformista em relação à juventude actual que lhe permite demarcar-se
radicalmente dos jovens sobre os quais fala.

Não é uma profissão que eu queira seguir, o secretariado não me seduz nada (…). O meu sonho é ser
um dia professora de espanhol. Eu quero ser professora de espanhol desde os meus 13 anos, é a única
coisa que quero fazer, é o meu objectivo. (…) Não imaginava nada que esta escola fosse assim. Não
estou nada satisfeita de ter escolhido esta escola, depois de ter percebido como é que as coisas funcio-
nam (…) Este liceu tem um nível mau (…) A direcção da escola não sabe lidar com os alunos. Pronto
(…) De qualquer forma, não me agrada esta escola, é a percentagem de aprovações que não é sufi-
ciente. Sobretudo com a delinquência que reina neste liceu e os alunos que só vêm para tirar partido
do aquecimento. (...) Eu não acho normal bater num professor e também acho que alguns professores
deviam saber fazer-se respeitar, há demasiados alunos que já não têm qualquer respeito pelos adultos
(…). É a família que está em causa e o facto de os jovens estarem com frequência fora, fora em vez de
estarem em casa e também a influência da televisão, uma vez que a televisão cativa muito os jovens.
E ao fim e ao cabo algumas famílias já não sabem como lidar com os seus filhos. (E95)

O processo pelo qual Lamia se situa acima do liceu profissional ao responsabilizar


este último pelo seu nível insuficiente é particularmente interessante. Encontrámos este
processo noutros jovens. Os alunos que reprovam responsabilizam o liceu por ter um
nível fraco, mesmo quando se poderia pensar que são precisamente alunos como estes
que reduzem o nível do estabelecimento e que eles são por isso os últimos a poder respon-
sabilizar o LP pelo seu nível. Mas esta não é de forma alguma a lógica destes alunos: se
eles reprovam, se eles chumbam no exame, é por causa do estabelecimento, cuja “percen-
tagem de aprovações (…) não é suficiente”. Tudo isto acontece como se a percentagem de
aprovações fosse uma característica do estabelecimento independentemente do trabalho
dos alunos (como se não tivessem nada a ver com isso…). Desde logo, o aluno que tem
o azar de ser orientado para um estabelecimento com fraca percentagem de aprovações
é uma vítima: é por causa disto que ele reprova no exame. Esta posição é lógica, mas na
lógica do aluno, está claro, diferente da da instituição: tem a obrigação de me ensinar, se
eu reprovo é porque não me ensinam, se o liceu não me ensina é porque não desempenhou
bem a sua função ou porque não tem um nível bom. Conjugam-se aqui um processo de
vitimização (ver-se como vítima), uma grande causalidade externa (eu não sou responsá-
vel pelo que me acontece, isso é fruto de coincidência, do azar ou de má vontade) e um
processo epistémico (aprender é ser objecto de uma acção mais ou menos eficaz por parte
dos professores e da escola).
A negação pode crescer ao ponto de levar o aluno a ignorar qualquer princípio de
realidade e, apesar de tudo, afundar-se num imaginário de êxito: o tempo cuidará de tudo,
153
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

de maneira quase mágica. O caso mais interessante é o de Fatima, que está a repetir um
segundo ano de BEP. A sua mãe escondeu de toda a gente que ela tinha sido orientada para
um BEP, “talvez porque tivesse vergonha no seu íntimo”. Aparentemente, Fatima assume
esta orientação: “Não, não tenho vergonha, afinal é uma escola como as outras. E até acho
que é melhor (…) Especializamo-nos numa área e formamo-nos num ramo específico.
Quando os outros entram no Seconde geral e não aprendem nada”. Mas efectivamente,
Fatima desviou o objecto de negação: é o futuro, a própria realidade.

Os profs. são os mesmos do ano passado, as aulas são iguais, por isso aborreço-me, já não ouço, não
faço outra coisa a não ser conversar com as minhas colegas. [P.: E estás à espera de conseguir o teu
BEP desta forma?] Mas só estamos no inicio do ano e quando chegar o dia do exame vou estudar
como uma maluca. [P.: Mas não é preciso estudar durante todo o ano?] Não, não serve de nada porque
daqui até ao fim do ano já me esqueci de tudo. [P.: E as disciplinas que exigem um estudo contínuo,
como a dactilografia?] Sim, mas eu estudei durante dois anos, então… [P.: Então e as más notas, as
avaliações na tua caderneta que te causarão dificuldades para encontrar trabalho?] Eu explicar-lhes-ei
que mudei. Até lá terei outros exames mais importantes que o BEP.
Até eu obter os meus diplomas o desemprego vai baixar. [P.: És uma pessoa optimista, sem dúvida.]
Pois é, eu sou muito optimista, estou convencida que não é preciso pensar em todo o mal que existe, é
preciso pensar que é uma pequena crise, que as coisas mudarão para melhor. É só preciso tempo.
Eu quero ser secretária da direcção. (…) Trabalharei numa grande empresa e serei o braço direito do
meu chefe e dirigirei uma equipa de secretárias (…) Darei todo o trabalho aos outros (…) Estarei a
vigiá-los (…) Chegarei de manhã por volta das 10h, tomarei um café, verei se tenho mensagens, reu-
nirei com o meu chefe, depois a seguir darei trabalho às secretárias. [P.: Não tens a impressão de estar
a representar um papel num filme? (…) Parto do princípio de que já tenhas feito estágios, como é que
correu?] Eh, bom, arrumei os dossiers, fiz fotocópias (…) estás a ver, pequenas coisas chatas. (E96)

Ainda mais frequente que a negação, o ressentimento contra o liceu profissional en-
gendra a revolta e um discurso anti-escola. É aqui que reside no sistema escolar francês o
equivalente daquilo que a sociologia anglófona estudou sob o nome “cultura anti-escolar”
(anti-school culture). O discurso anti-escola pode revestir-se de várias tonalidades, das
quais veremos alguns exemplos.
Pode ser o exemplo de um perturbador orgulhoso de o ser e bastante alegre, como
Ludovic, 16 anos, escolarizado no 3e technologique contabilidade-secretariado, num liceu
profissional. Rebelde e orgulhoso de o ser, Ludovic pensa contudo que se vai safar, no dia
em que decidir “empenhar-se”. O tipo de relação com o liceu profissional e com o futuro
está presente noutros rebeldes – como se a sua energia os levasse ao ressentimento e pu-
desse, num dado momento, ser construtiva.

Todas as turmas que eu frequentei eram consideradas as mais difíceis. (...) Na minha turma eles
tomam-me um pouco como um exemplo a seguir, embora seja o mais novo. Tenho uma espécie de
influência na turma, nem sequer é voluntário (…) Houve profs. que me disseram: “Felizmente que não
há três alunos como tu, porque seria impossível, não conseguíamos”. Por minha causa houve muitas

154
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

turmas que se revoltaram. Eu revoltei-me contra muitas coisas e toda a gente me seguiu. Sou conside-
rado um revolucionário no liceu. Mesmo as turmas de bac, eles têm 20 anos, eles seguem-me quando
eu faço uma revolução, quando faço uma petição, eles estão todos do meu lado. É também por causa
disso que o director tem dificuldade em lidar comigo.
Eu não estudo, não entrego nenhum trabalho de casa. Não sou eu que os faço. Quando tenho trabalhos
entrego-os a outra pessoa. Na escola nunca fiz um trabalho em casa, do 6e ao 3e. Uma vez que me dava
bem com as raparigas eram elas que os faziam (…) Aliás, tenho a minha caderneta comigo, posso-te
mostrar: “Nenhum trabalho de casa”. Nunca fiz um trabalho em minha casa.
Já fui várias vezes para a esquadra (…). Por isso conheço um pouco o meio, conheço bem os bófias.
Apesar de me terem prendido… Bem, para mim, é um bófia, é um cabrão, mas quando os vejo na vida
de todos os dias, é um amigo meu, eu conheço-o, aperto-lhe a mão (…) Prefiro ser um cabrão e ganhar
a vida do que ser um vagabundo e simpático. [Ludovic gostava de ser motard; neste sentido a passagem
pela esquadra por causa de pequena delinquência pode ser reinterpretada por ele como uma espécie de
estágio pré-profissional…]
Há uns que têm 18 anos, até há uma miúda grávida, estás a ver é…é um liceu que francamente eu
considero como o lixo do 93, porque de facto é grave (…) Na minha cabeça, digo para mim próprio,
espero até estar numa boa orientação e aí vou-me empenhar. Agora não me apetece preocupar. Eu
sei que consigo sem me preocupar (…) Bem este ano não me preocupo porque saberei empenhar-me
quando for preciso, saberei onde está o limite (…) Eu quero que eles se surpreendam, que vejam que
não sou estúpido, que se pode confiar em mim. (E138)

A revolta também pode transformar-se em anti-conformismo: “No fundo, eu acho que


não sou burra. Mas não tenho vontade de ser inteligente como deve ser!” (Béatrice, 26
anos, CAP de estenografia-dactilografia, assalariada, E156)
A revolta também se pode exprimir pela recusa de ceder face às exigências abusivas
da instituição e dos professores. É o caso de Martine, escolarizada numa turma de BEP
contabilidade (ACC) de um ano.
No fim do 3e, ela recusou uma orientação no liceu profissional.

Para mim estava fora de questão fazer um BEP porque eu gostava da escola, gostava do ensino geral
e tudo. (…) Não, não vou, eu não sou burra, não vou para lá, só os burros é que vão, os estúpidos e
depois não leva a lado nenhum. (…) Põe-nos logo um rótulo na testa e nunca mais se pode tirar.

Mas a Martine não suporta o funcionamento monárquico da escola.

Eu nunca me senti bem (…) Era muito formal, existiam muitos estereótipos: da escola, do aluno, do
professor. Tudo era hierarquia (…) Fazia-me lembrar uma soberania absoluta, percebe. E nós, nós
éramos os súbditos (…) Não que eu seja rebelde mas não gosto quando me impõem uma coisa sem
qualquer explicação e para qual não encontro justificação. [Depois de dois anos no Seconde e um ano
no Première, foi ela própria que pediu uma orientação para o BEP.] Bom, não serve de nada lutar
contra moinhos de vento. Não vai mudar. Prefiro mudar de rumo do que me sujeitar, ainda por cima
não estou nada desiludida, antes pelo contrário.

155
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

O LP é uma escola sem a arbitrariedade e as “peneiras” que Martine encontrou no


collège ou no liceu geral.

É um pouco mais fraternal, há mais relações humanas (…) Somos menos anónimos, somos menos
prof./aluno (…) Sentimo-nos melhor, sentimo-nos menos ridículos, menos subjugados a uma autori-
dade como esta, que não sabemos de onde vem… (…) Temos o direito de sermos nós próprios, temos
o direito de dizer o que pensamos, de descrever da forma que quisermos, percebe o que quero dizer!
É verdade que sob este ponto de vista, isto restitui um pouco de confiança em nós próprios, podemos
dizer: “caramba, de facto nós não somos burros, uma vez que nos mantemos como somos e temos
ainda assim o direito de frequentar a escola”. É verdade que é muito importante.

No LP também é preciso baixar a cabeça, mas é, em última análise, em relação às exi-


gências profissionais e não à arbitrariedade dos professores.

É só uma questão de rigor, só isso. Mas, de facto é verdade que não aprendemos grande coisa. Sim!
A nos curvarmos perante a exigência profissional. Mas aí sabemos porque é que nos curvamos, é essa
a diferença. É que no liceu geral curvamo-nos mas não sabemos porquê. E aqui sabemos que é para
depois agradar ao chefe. Se somos assim, se fazemos essas coisas é porque o chefe mandará. Não é
porque alguém… não é arbitrário. [No ensino profissional] sinto que é mais difícil porque temos que
nos conter mais. (…) Lá é assim e não há espaço para ser de outra forma! [No ensino geral] havia
muitos discursos sobre o saber, muita conversa de explicações. Aqui é conciso e ponto final (…) Não
existem essas peneiras todas à volta, não existem falsas aparências ligadas à escolaridade das pessoas
e de facto não tem que ser assim, por fim apercebemo-nos disso aqui. (…) [Mais tarde, claro está,
Martine gostaria de trabalhar por conta própria] Não me imagino a trabalhar toda a minha vida para
outras pessoas, dependente de outra pessoa. (E91)

O exemplo de Martine é interessante por mais do que uma razão.


Em primeiro lugar, ela não rejeita a autoridade (“não é que eu seja rebelde”, ela
rejeita o que é imposto sem explicação e aceita curvar-se “perante o profissional”, isto
é, onde para ela a exigência é legítima115. A escola tem tendência para considerar que
alguns alunos são rebeldes por natureza – e ela emprega com frequência a palavra “tem-
peramental”, que pode significar tudo, pois não quer dizer nada. De facto, o próprio
funcionamento da escola e as práticas de alguns professores contribuem para a origem
de alunos rebeldes116.
Em segundo lugar, a relação de Martine com a escola e com os estudos está em vias
de se reestruturar: enquanto a escola era para ela sinónimo de arbitrariedade e de anoni-
mato, o liceu profissional apresenta uma racionalidade – e isto acontece por causa das
próprias exigências de que é portador. Se a escola se torna para ela suportável, até mesmo

115
Aqui é assim e não de uma outra forma, não estão em causa peneiras inúteis e falsas aparências mas aquilo
que o chefe exigirá – visto como um ser legítimo, sem que ela questione minimamente esta legitimidade…
116
Adopto aqui uma forma branda desta afirmação… Aliás, não nos esqueçamos que a rebelião pode ser
um acto de alta estima, até mesmo heróico.
156
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

apetecível, não é porque ela tivesse aí finalmente encontrado um ensino concreto que
corresponde à sua personalidade ou porque os seus estudos se inscrevem doravante num
projecto profissional. Sem dúvida que a natureza e a finalidade do ensino concedido são
importantes: “É conciso e ponto final (…) Não existem essas peneiras todas à volta”. Mas
estas características do ensino profissional só fazem sentido quando se referem ao proble-
ma fundamental de Martine: curvar-se perante a força das coisas e não perante a vontade
dos homens, como diria Rousseau.
O exemplo de Martine demonstra bem que a reestruturação da relação com a escola e
com os estudos passa por uma reestruturação da relação com o mundo, com os outros e
consigo próprio; é no âmbito desta ampla reestruturação que a natureza e a finalidade par-
ticulares dos estudos concedidos no liceu profissional podem induzir a efeitos específicos.
Se esta reestruturação não tiver lugar, o liceu profissional pode muito bem ver negada a
sua especificidade pelos alunos que neste liceu só valorizam o ensino geral…
Em terceiro lugar, finalmente, mesmo os alunos que, como Martine, estão em vias de
deixar a revolta e reconstruir uma relação positiva com os estudos sentem ainda a ferida
narcisista provocada pela orientação, permanentemente reactivada pelo olhar do outro.

Mas também existe esse lado de que quando voltamos para a rua ou quando falamos com antigos
colegas de turma, há sempre esse olhar ensino geral/BEP. (…) Enfim, já não somos iguais, percebe o
que quero dizer? Existe uma escala e nós não estamos no nível mais alto… É preciso o saber. Tudo
depende da sua escala de valores.

O ressentimento gera a negação, a revolta, mas também, por vezes, o cinismo. Desta
feita, Dominique (BEP2 ORSF) explica que na vida, o importante é “ser cínico”.

[P.: O que aprendes achas que te será útil?] Sim, acho que sim. Para já, aprende-se… aqui as coisas
acontecem como na nossa relação com o chefe, aprendemos para já a ser bem visto, é preciso ser
cínico, não são só as notas que contam. (…) No início fazia o que me diziam, ter as melhores notas
possíveis estudando o menos possível. [Depois começou a dar-se com um colega que conhece bem as
máquinas de controlo numérico:] É sempre a mesma coisa, é preciso ser cínico, é preciso que o prof.
acredite que, mesmo que façamos o mínimo possível, é preciso dar-lhe a ideia de que queremos mais,
percebe o que quero dizer. (…) Eu consigo o diploma sem utilizar o controlo numérico. [Na altura
dos testes] respondo o que sei e copio do colega do lado, de toda a gente, há sempre uma resposta que
está certa117. (E27)

Assim é a figura do ressentimento e assim são as suas formas: a negação e a fuga no


imaginário, a revolta mais ou menos activa, o cinismo mais ou menos delinquente.
Contudo, são raros os alunos que se fecham numa posição de resignação amarga, de
rebelião intransigente, de fuga em direcção a outros universos (de sonho, de ganza, de di-

117
“Há sempre uma resposta que está certa”: a fórmula deixa transparecer que o importante é escrever a
resposta correcta e não faz mal se ela se misturar com respostas erradas.
157
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

nheiro fácil). As entrevistas confirmam aquilo que ficou estabelecido ao estudar os balan-
ços de saber: é um erro analisar estes jovens apenas do ponto de vista da adversidade e do
martírio, eles são também portadores de energia, de esperanças, de sonhos, de conformis-
mo, de normas (inclusive moralizadoras assumidas e sexistas…). Por mais amargos que
sejam, os alunos que provêm da figura do ressentimento são raramente esmagados pelo
peso do destino, ou mergulham totalmente no imaginário ou ficam completamente presos
a uma lógica delinquente. A maioria continua a inventar para si um futuro e guardam
uma pequena porta aberta para o futuro escolar. Alguns falam sobre a sua recusa e a sua
revolta para esta orientação mas declaram igualmente que estão a conseguir ter êxito no
liceu profissional – o que para eles é uma prova suplementar que a sua orientação foi um
erro: eles são demasiado bons alunos para estarem no LP… Outros continuam a protestar
contra uma orientação injusta mas constatam, com mais ou menos surpresa, que afinal
estão satisfeitos por frequentarem o LP: “porque eu vim aqui parar por engano e depois
gostei” (R., BEP2 mecânica, E47). Estes revoltados tentam apesar de tudo reinventar um
futuro – e por isso provêm, por um lado, das duas figuras que vou analisar em seguida.
Reinventar um futuro, é precisamente esse o objectivo do trabalho de reestruturação da
situação que origina, com mais ou menos persistência e voluntarismo, uma grande parte
dos alunos de liceu profissional. Certamente, também eles sentem amargura, até mesmo
ressentimento, face à sua orientação. Mas esta não é a figura dominante que leva à sua
compreensão. É preciso antes de mais dar a maior importância à análise do trabalho de
reinterpretação que torna o liceu profissional suportável, até mesmo apetecível. Alguns
alunos valorizam muito a dimensão profissional do LP. Outros encaram antes de mais o
LP como uma segunda oportunidade, um meandro para, apesar de tudo, alcançar os seus
estudos. Muitos, aliás, provêm destas duas figuras, que, ainda que distintas, se articulam
com frequência uma na outra. Iremos agora estudá-las sucessivamente.

2. A figura da prática

Alguns alunos levam muito a sério o adjectivo profissional: é naquilo que toca a refe-
rência à prática, à experiência, aos estágios, à empresa, que eles dão um sentido à sua
frequência no LP118. Esta forte referência àquilo que eles designam com frequência por
“a prática” é ambivalente: ela induz simultaneamente à valorização do liceu profissional
(que conduz ao trabalho) e à sua desvalorização (pois é menos “profissional” que a pró-
pria empresa). Distinguir com muita clareza a escola e a empresa e valorizar a segunda
em detrimento da primeira permite ao aluno relativizar as suas dificuldades escolares e
inscrever-se numa lógica nova, que anuncia o adjectivo “profissional” interligado com
a palavra liceu. Mas ainda é preciso que a escola não tenha perdido todo o valor nesta

A sua interpretação acerca do liceu profissional vai ao encontro dos alunos que sempre quiseram fre-
118

quentá-lo, mas é mais complexa e menos pacífica já que se trata de uma reinterpretação que se sucede a
uma orientação não desejada.
158
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

lógica nova, o que supõe que o liceu se articule de alguma forma com a empresa. Se
tivéssemos que reconstruir o raciocínio tipo desta figura, ele seria o seguinte: a empresa
e a escola são dois mundos muito diferentes; a empresa é prioritária; o liceu profissional
ainda assim é útil.
Esta figura é marcada por uma grande tensão. Não é uma tensão entre dois pólos: não
existe nenhuma dúvida sobre o valor comparado entre a escola e a empresa, é evidente que
esta última é importante. A tensão deve-se ao facto de o liceu profissional, que é vivido
enquanto escola, só fazer sentido em referência a uma empresa, cuja lógica é radicalmente
diferente da da escola. Os alunos que reconstroem um futuro reconfigurando o mundo
segundo as modalidades aqui analisadas são confrontados com esta tensão. Uns afirmam,
por vezes de forma brutal, a diferença dos dois mundos. Outros tentam articulá-los, em
teoria e na prática.
Interessamo-nos, sucessivamente, pelo discurso que opõe a escola e a empresa, pelos
processos que permitem aos alunos articular o LP e a empresa e finalmente, seguindo esta
lógica, por esse momento-chave que é o estágio.

2.1. A escola e o trabalho, duas coisas completamente diferentes


Comecemos pela afirmação, muitas vezes radical, sobre a diferença entre a escola e a
empresa. Os principais argumentos, que funcionam muitas vezes sob forma de discursos
cumulativos, são os seguintes:

• A teoria que se aprende na escola não é necessária na empresa. Esta última funciona
numa lógica da experiência, da rotina e não numa lógica do saber.

[A teoria] não nos serve para nada na empresa. Se uma 605 soluça, eles sabem porquê. Eles já a re-
pararam, já trabalharam nisso. Eles não passam como nós por sistemas. Penso que depois de algum
tempo, depois de alguma experiência já não é preciso olhar para o sistema, torna-se uma rotina, já
não se olha para o sistema. [Aliás, aqueles que reparam a 605 reparam sempre este modelo; os outros
reparam a 305] (R., bac pro mecânica automóvel, E14)

• De qualquer forma, mesmo quando poderíamos pôr em prática o que aprendemos na


escola, não temos tempo. Este argumento é muito recorrente no discurso dos alunos que
provêm desta figura.

Acho que existe um desfasamento entre a empresa e nós. Quando chegamos à empresa eles dizem-
‑nos: “O que é que eles aprendem na escola?” Dizem que é preciso trabalhar mais rápido (…) No
estágio ele dizia-me: “É preciso trabalhar mais rápido”. Ele explicou-me quanto custava uma peça, as
perdas que não podiam acontecer. Por exemplo, havia um máximo de peças que deviam ser feitas e
quantas podíamos falhar. (R., BEP2 ORSF119, E35)

119
ORSF: “operador regulador de sistemas de fabricação”.
159
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Somos demasiado escolares. Durante os meus estágios fiz-me acompanhar da minha caderneta de
técnica (folhas de diagnóstico) e o meu orientador dizia-me: “Mas as coisas não são assim, não temos
tempo, vais perder uma hora do teu trabalho”, etc. Somos demasiado escolares. Aprende-se dema-
siado a ser escolar. É preciso fazer isto, é preciso fazer aquilo, mas quando estamos na empresa é
completamente diferente porque, bem, temos objectivos e se não os atingimos durante o dia estamos
lixados. Lixados não… mas… quero dizer… não atingimos o objectivo dado pela empresa. (R., bac
pro 2 MSMA120, E189)
[No estágio] aprende-se mais rapidamente (…) As coisas entram melhor e depois também não
podemos aplicar sempre a teoria na prática. Como por exemplo, eles dizem-nos para fazer uma
determinada coisa numa determinada ordem, mas, bem, em princípio, não fazemos nada a mesma
coisa porque não temos tempo, senão demorávamos uma hora só num quarto. (Ra., BEP2 sanitário
e social, E71)

• Ainda por cima, na escola “as máquinas são muito antigas, não tem nada a ver com
as empresas” (R., BEP2 ORSF, E35).

• A esta argumentação geral sobre as relações entre teoria e prática acresce por vezes
uma argumentação ligada mais especificamente ao próprio aluno. Torna-se então claro de
que se trata na realidade de uma relação entre a teoria, a prática e eu.

A nós, o que nos interessa são sobretudo os estágios. Só nos estágios é que aprendemos alguma coisa
(…) Eu tenho a impressão de que se aprende muito mais no local do que sentado numa cadeira a ouvir.
(…) Eu não fui feita para ir à escola, acho eu. Não é que esteja a perder tempo, é claro que aprendo
muitas coisas mas… não tenho paciência… de ficar todo o dia sentada a ouvir, ouvir, ouvir. (Ra.,
BEP2 sanitário e social, E71)

• A argumentação atinge um patamar superior quando já não se fala da profissão em


termos de saber mas em termos de qualidades pessoais e de relações interpessoais. Esta
desvalorização dos saberes em benefício de qualidades pessoais e de competências rela-
cionais desencadeia a valorização dos estágios em detrimento da escola.

[P.: Para ti, que tipo de saberes são necessários para se ser paramédico?] Hum. Saberes ou qualidades?
Porque acho que é preciso mais qualidades, penso eu. Porque é preciso ser paciente, autónomo…
E… bem, é preciso saber respeitar as regras (…) Mas sabemos muito bem que não temos tempo (…)
E… em relação ao saber… não, não muito penso eu, porque isso aprende-se no BEP, porque pode
começar-se a partir do 3e como em todos os BEP. Mas é claro que as vagas são restritas, não há muitas
vagas em BEP sanitário e social. [De notar que o facto de “isso se aprender no BEP” é considerado
como uma prova de que “isso” não pressupõe muito saber.] (E71)
É completamente diferente trabalhar no domínio do trabalho e trabalhar na escola. É completamente
diferente. [P.: Qual é a diferença?] Na escola temos testes, trabalhos específicos, tudo isso, enquanto
numa empresa temos que assumir responsabilidades, temos que prestar atenção ao que fazemos, de-
vemos prestar muito mais atenção à organização mais do que na escola, para já, hum… a honestidade

MSMA: “manutenção de sistemas mecânicos automatizados”.


120

160
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

no trabalho bem como a eficácia, saber comunicar bem, ter contacto com a clientela, tudo isso conta.
Enquanto na escola, bom, contactamos com pessoas mas, bem, é diferente em comparação com uma
empresa. (Ra., bac pro 2 secretariado, E202)

• Por fim, o último argumento anotado: numa fase em que o desemprego aumenta, é
preciso estar muito atento àquilo que as empresas exigem. Frédéric, que andou dois anos
na rua antes de reatar os estudos, é muito explícito em relação a este ponto.

Para já, já não se está motivado porque não se sabe em que é isso vai dar (…) Porque não estou certo
onde é ele me vai levar, este trabalho. Não sei em que é que me vai servir. Porque para já é visível que
o desemprego existe, vejo que as empresas pedem mais conhecimentos para contratar e aí não tenho
a impressão de evoluir, não em direcção ao que as empresas exigem. (…) Era necessário actualizar
a escola, restabelecer as coisas como deve ser, restabelecer uma boa posição em relação ao que as
empresas exigem. (R., BEP2 ORSF, E35)

Se os saberes, o material, as normas e as relações de trabalho são completamente di-


ferentes na empresa e no LP, de que serve frequentar o LP? Quando a referência à prática
é assim tão grande ela oculta o sentido, a especificidade, o interesse de uma escolarização
no LP, esta referência permite ao aluno reinventar um futuro mas ela não lhe permite re-
construir uma relação positiva com o que se aprende na escola. Então, qual é o papel do
LP? Os estágios, que permitem adquirir a experiência e conhecer a empresa. O diploma
de tipo profissional, que atesta o contacto com a prática e permite desta forma entrar mais
facilmente no mercado de trabalho. Dito de outra forma, o papel do LP é aquele que não
lhe pertence (os estágios) e aquilo que nele significa instituição (o diploma) mas o LP
enquanto lugar de formação desapareceu. As citações de alguns alunos, que têm tendência
para deslegitimar o saber ensinado no LP, vão nesse sentido.

Até agora não aprendi nada [no LP]. Bem, tirando as aulas e tudo isso. (Ra., BEP1 hotelaria, E172)
Apercebi-me que quando se está na vida profissional se esquece tudo aquilo que se aprendeu na esco-
la. Foi a coisa que me chocou com mais frequência. (R., bac pro 2 MSMA, E103)
[P.: Existem coisas que aprendeste aqui que te foram úteis durante o estágio?] Não, acho que não.
[P.: É preocupante…] Quer dizer não, não é preocupante, quer dizer, existem coisas, disciplinas
que me serão úteis na minha profissão, mas quando estou debaixo do elevador e quando ele sobe
ao colocar os ímanes no cabo do ascensor, isso não aprendemos necessariamente. (R., bac pro 1
MSMA, E7)
Acho que tendo um bac profissional existem mais hipóteses de encontrar trabalho do que com um bac
geral. Porque enfim… profissional significa ter experiências no domínio do trabalho. (Ra., bac pro 2
secretariado, E202)

Contudo, esta é uma forma radical da figura da prática. A forma que se verifica com
mais frequência é um meio-termo: a empresa permanece uma referência mas o liceu arti-
cula-se de alguma forma com a empresa.

161
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

2.2. Aprender no liceu, aprender na empresa, duas realidades inseparáveis


Em primeiro lugar, esta é uma questão de princípio. Os alunos resolvem o problema da ar-
ticulação entre dois mundos heterogéneos ao afirmar um princípio de complementaridade.
Eis uma formulação particularmente explícita:

A escola permite-nos fazer estágios em empresas, mas os estágios nas empresas também nos ajudam
depois na escola. (…) [A escola] permite compreender melhor aquilo que fiz antes na empresa (…)
Enfim, eu acho que um não existe sem o outro e é isso que é interessante. (Ra., bac pro 2 secretariado,
E114)

De que forma é que os estágios ajudam em relação à escola e de que forma é que
a escola permite compreender aquilo que se executa na empresa? Os alunos empregam
dois modelos (implícitos): o da aplicação da teoria à prática e o das “bases”, citado com
frequência. Estes modelos são muito misteriosos mas permitem que os alunos formulem o
princípio de uma utilidade do LP.
Eis dois exemplos de utilização de um modelo de aplicação. Eles demonstram bem a
tensão que os alunos têm de gerir: não é nas aulas que se aprende mas aquilo que aprendo
na escola “tem que me servir obrigatoriamente para alguma coisa” – de outra forma por-
que é que mo ensinariam e como é que eu poderia suportar o facto de aprender?

A prática é necessária, a prática é muito importante, na realidade é aí que se aprende de facto, não é
nas aulas que se aprende realmente. [Mas o LP] é necessário, claro. [Por exemplo, antes de começar
um estágio em perfumaria aprendem-se todas as especificidades dos cremes de tratamento] tentei
lembrar-me delas para conseguir explicá-las aos clientes durante o estágio, é claro. (Ra., bac pro 2
comércio e serviços, E10)
[Aquilo que aprendo na escola] tem que servir para alguma coisa porque o que eu aprendo na escola
é para praticar no estágio. (…) Na escola aprendemos as coisas para o futuro, para uma profissão e
fora disso aprende-se tudo o resto. (…) [A escola] é um investimento. Eu vejo as coisas assim. Para
ter uma boa profissão que me agrade (…) [O LP] é necessário para o futuro. Há dias em que é chato.
Mas há os estágios, isso significa o presente futuro. Percebemos o que vamos fazer depois, é bom.
(R., BEP1 vendas, E65)

Eis agora exemplos da argumentação no que diz respeito às “bases”. O princípio é


claro: “É numa empresa que se aprende uma profissão mas é na escola que se aprendem
as bases” (Ra., BEP2 contabilidade, E80). Estas bases permitem entrar no mundo do
trabalho: percebe-se do que se trata, não se está totalmente perdido, há lugar para a
adaptação. Elas asseguram uma adaptabilidade mais vasta: elas permitem enfrentar si-
tuações novas, trabalhar em empresas diferentes e até mesmo exercer várias profissões.
Alguns alunos vão ainda mais longe, eles reportam-se à função primeira destas bases,
a que lhes permite assegurar as suas outras funções: as bases permitem compreender
o que se faz.

162
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Aprender uma profissão significa aprender as bases. Mas uma profissão não se aprende nas salas de
aula, é sempre com a experiência. É quando se entra no mundo profissional que se aprende. Mas nós
aqui aprendemos as bases para não ficarmos desorientados quando entrarmos no mundo do trabalho.
[A escola é importante] porque nos dá toda a teoria que nos permite perceber as coisas. E depois acho
muito bem, porque saber fazer alguma coisa mas não perceber o princípio é chato. (R., bac pro 2
MSMA, E101)
Quando formos para a empresa enquanto agentes de manutenção já teremos as bases (…) Conseguirei
encontrar a avaria, em qualquer fábrica, porque eu aprendi aqui com as bases, com tudo. (R., bac pro
1 MSMA, E6)
De facto, não é o ofício que eu aprendo, é mais… aqui é mais as bases gerais que me darão entrada em
vários ofícios (…) Diria que não nos ensinam um ofício, dão-nos… inculcam-nos lógicas e dados… bases
de dados que mais tarde darão origem a um futuro ofício. (R., BEP1 electrotecnia, E44)

Esta noção de base é importante. Na nossa investigação no collège e na escola pri-


mária, reparámos que os alunos com bom aproveitamento falam de “bases” com muito
mais frequência do que os alunos com dificuldades escolares: os primeiros inscrevem-se
num processo de aprendizagem progressivo (aprende-se um pouco mais todos os dias)
enquanto os outros têm tendência para funcionar numa lógica binária (sabe-se ou não se
sabe, não existe nada de permeio) (Charlot, Bautier & Rochex, 1992). Encontramos aqui
esta noção de base, sob uma outra forma: no LP aprendemos as bases do ofício. A noção
de base permite articular um princípio de heterogeneidade e um princípio de continuidade.
Um princípio de heterogeneidade: não se aprende realmente o ofício quando se aprendem
as bases. Um princípio de continuidade: aprender um ofício significa ainda assim, em
primeiro lugar, aprender as bases. Para lá da diferença radical entre as aulas e a prática,
o mundo da escola e o da empresa, existe uma continuidade; portanto, a legitimidade da
empresa reporta-se ao LP.
A própria natureza do ensino concedido no liceu profissional permite que os alunos ex-
perimentem esta continuidade entre o liceu e a empresa. A vertente profissional, seja na
empresa ou no liceu, é “concreta”, enquanto a escola que conheceram antes, o ensino geral,
pertence ao campo da linguagem, das palavras, dos cadernos. Esta oposição assume uma for-
ma radical para alguns alunos de ramos industriais mas também existe no ramo terciário.

[A carpintaria] é a sério, é concreta, isso motiva-me mais (…) não é só à base de cadernos de aponta-
mentos. (R., BEP1 madeiras e materiais associados, E54)
Fazemos mais coisas para além de escrever (…) Aprendemos a ligar redes por cabo, ligar fios (…)
e depois temos a satisfação de ver as coisas funcionar! De ter feito finalmente alguma coisa! (…) É
muito mais concreto que uma folha de papel. (R., BEP2 electricidade, E58)
No liceu profissional aprende-se mais a prática, enquanto no liceu normal as aulas continuam, conti-
nuam, continuam. (Ra., BEP2 sanitário e social, E67)
É mais concreto. É verdade que antes tínhamos um bocado a impressão de não aprender nada. Aqui é
mais claro, vemos imediatamente o que aprendemos ou não, pelo menos quase sempre. E além disso

163
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

aprende-se coisas relacionadas a um ofício. Concretiza-se alguma coisa, mesmo se eu não chegar ao
fim, mas em princípio consegui. (Ra., BEP2 secretariado, E99)

Portanto, o liceu profissional, já é “profissional”. A fronteira entre os dois mundos já


não passa pela escola (como o LP) e a empresa, mas pelo ensino geral (onde quer que seja)
e o “profissional” (empresa e ensino profissional no LP). O princípio de continuidade entre
a empresa e o liceu profissional (pelo menos em alguns dos seus momentos e ramos) é
portanto “verificado” na experiência.

É um bocado mais difícil no geral porque eles exigem mais trabalho de casa. Bem mas… nas aulas
acho que o meio profissional é mais difícil e cansativo. E… mais responsabilidades e, mais… não sei,
eu acho que é mais agradável no meio profissional. (Ra., BEP1 sanitário e social, E70)

A continuidade entre o LP e a empresa pode também ser posta à prova nas formas
de pré-socialização profissional – onde a especialidade a permitir. Esta pré-socialização
passa com frequência pelos hábitos e as ferramentas. O jovem sente-se observado en-
quanto profissional (com um orgulho que é claramente mais forte do que a vergonha que
ele experimenta ao se distinguir desta forma dos outros). Ele próprio começa a ver-se
enquanto profissional, e a dizer “nós” quando fala de um grupo que é simultaneamente o
dos colegas de turma e aquele que representa a corporação na qual ele já entrou de forma
subjectiva.

Eu senti uma agradável surpresa quando comprei a minha mala com todas as ferramentas de óptica. É
bastante cara… tive que a pagar. Mas são as minhas ferramentas. (R., BEP1 óptica, E61)
[No LP] Somos tratados como burgueses… As roupas são diferentes… Em hotelaria nós fomos obri-
gados a ser assim, fato e gravata. (R., BEP1 hotelaria, E73)
Eu já me sinto um contabilista [risos] Ponho o meu fatinho e tudo e tenho um estágio no fim do ano,
pelos vistos é preciso usar um fato e tudo. Oh, é horrível! (R., bac pro 1 contabilidade, E118)
Gerir a empresa, o director gere a empresa, nós gerimos a contabilidade. É graças à contabilidade
que uma empresa pode crescer. (Ra., BEP2 contabilidade, E80). [Nós gerimos: o aluno antecipa a sua
pertença profissional desde a escola.]

Imaginar-se a partir do liceu profissional como membro da profissão induz geralmente


para uma mobilização escolar mas também pode acontecer que este processo provoque
resistências.

É o protótipo de secretária que tenho dificuldade em suportar e toda a imagem em torno disso. Não
preciso de vos fazer um desenho. (Ra., BEP2 secretariado, E99)

O que está em jogo na figura da prática não é só um tipo de actividade mas também
um “espírito”, uma “mentalidade”, uma forma de relação com o mundo, com os outros e
consigo próprio.
164
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

2.3. A construção da experiência: os estágios


Os estágios são citados com frequência pelos alunos. Estes jovens, como sabemos, inter-
pretam o mundo articulando princípios e experiências (as suas ou de pessoas próximas
com as quais têm confiança); ora, é essencialmente através dos estágios que vivem a expe-
riência da “prática” em tamanho real e a sério – embora alguns tenham vivido um período
de actividade profissional.
Nos estágios, os alunos são confrontados com a questão do saber e da formação
num universo radicalmente diferente daquele que conheciam até aqui, o universo esco-
lar. De facto, trata-se de um mundo muito diferente e não apenas no que toca a outras
modalidades de formação. Trata-se de um mundo mais complexo e mais contraditório,
onde não há espaço para reflectir usando a simples referência à “prática” por oposição à
“teoria”. Esta passagem da entrevista de Sandra (BEP2 materiais flexíveis), na qual são
abordados os principais temas, demonstra bem a complexidade da relação destes jovens
com o estágio:

S: O ano passado fiz um estágio.


Q: Como é que correu?
S: Correu bem e também aprendi muita coisa que não tinha percebido aqui e que aprendi lá.
Q: E o facto de teres feito um estágio dá-te mais ou menos vontade de depois voltar à escola?
S: A mim dá-me vontade de voltar, porque no final de contas estão cá as minhas amigas, tudo isso e
depois gosto dos profs., tenho uma boa relação com eles e depois é porreiro, por isso tenho vontade
de voltar.
Q: Quer dizer que quando o estágio acabar e voltares à escola provavelmente vais estar contente?
S: Sim, porque também há a questão dos horários, quando estagias é como se trabalhasses na vida
activa, não é a mesma coisa. Mas fui bem recebida por isso também foi importante.
Q: As relações são importantes para ti?
S: Sim, elas eram duas e comigo éramos três, por isso era porreiro.
(…)
S: Sim, varrer um bocado e depois isto e aquilo, vê lá isto, tem pó e depois é sempre assim e depois
aí, aí é realmente uma questão de educação quando um cliente chega, é preciso sempre ser educado,
é preciso ouvi-los e eles dizem “o meu marido isto, o meu marido aquilo”, eles contam a vida toda,
mesmo que não os queiramos ouvir, “sim, Senhora, sim, Senhora”, na realidade neste caso somos as
patetas, sim isto, sim aquilo. (E1)

Retomemos os temas principais.


Em primeiro lugar, um estágio tem que ser um estágio…
Existem contudo algumas excepções, aliás interessantes. Alguns alunos pensam no
estágio como trabalho e não como formação: “Vês-te no lugar dos trabalhadores… e fazes
as coisas como se trabalhasses. Fazer um estágio é isso” (R., BEP1 electrotecnia, E43).
Esta confusão dos lugares e das funções coloca problemas. Em investigações anteriores,
a nossa equipa mostrou que a não-distinção das funções da escola e da família provoca

165
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

uma grande confusão na cabeça da criança e contribui para a origem do insucesso escolar
(Charlot, Bautier & Rochex, 1992; Rochex, 1995; Bernardin, 1997). Aqui, voltamos a en-
contrar esta indistinção, desta vez entre a escola e o mundo do trabalho. A confusão pode
ir longe: ao ponto de se considerar que a diferença entre a escola e o mundo do trabalho é
só uma questão de idade.

Para mim ter uma profissão é como se isso substituísse a escola, é-se adulto. (…) Quando somos
adultos a profissão substitui a escola quando somos adolescentes, quando somos jovens. Pelo menos
sabemos onde vamos. Se de manhã nos levantamos às 6 horas da madrugada para ir trabalhar, vou
trabalhar, pego nas minhas coisas, como alguém que vai à escola. Às 8 horas pego nas minhas coisas e
depois vou para a escola. Só muda uma palavra, de resto é a mesma coisa. Aprendemos outras coisas
mas se pensarmos bem é a mesma coisa. (R., BEP1 ORSF, E32)

Esta não é, contudo, a posição da grande maioria dos jovens, que exigem antes que
um estágio seja um momento de formação e por isso que aí se aprendam coisas. É para
eles muito importante, eles insistem muito nesta questão. Eles suportam, até um certo
limite, que lhes peçam para fazer tarefas não qualificadas, que os explorem ou que os
tratem como “patetas”, mas com a expressa condição de aprender coisas. Esta insistên-
cia é lógica: estes jovens pensam que é antes de mais pela prática, na empresa, logo no
estágio, que se aprende e eles não aceitam serem privados desta rara ocasião de aprender
realmente. O facto de terem aprendido ou não coisas é o seu primeiro critério de avalia-
ção de um estágio.

No meu primeiro estágio, eles tomaram-me um bocado por alguém que estava ali unicamente
para varrer, para fazer trabalhos menores, na realidade (…) O segundo estágio correu muito bem,
aprendi muitas coisas, correu muito bem entre os operários e eu, o patrão e eu. (R., BEP2 carpin-
taria, E52)
Os estágios são porreiros porque se aprende directamente no terreno mas o problema é que por vezes
eles tomam-nos um bocado por criados. Então, no fim de contas não se memorizou muitas coisas.
(Ra., BEP2 secretariado, E99)
Sim, eu fiz um estágio mas era um estágio verdadeiramente asqueroso [que abandonou após duas
semanas]. Para mim um estágio é para aprender coisas (…) para nos ensinar, onde existe alguém que
nos vai ensinar a fazer uma operação ou uma coisa assim e eles não nos ensinaram nada, nada de nada.
(Ra., BEP2 materiais flexíveis, E8)
Havia várias intervenções, eles diziam sempre como se devia fazer, diziam o que era preciso fazer,
gostei desse estágio, o ambiente era bom, tinha coisas para aprender e gostava disso, tinha um ar por-
reiro. [Um outro estágio] Não é uma história agradável ou desagradável, só que não aprendi muitas
coisas, por isso não serve de muito. (R., bac pro 1 MSMA, E6)
[O importante num estágio:] Para já saber integrar-se na empresa, saber pôr bem na prática o que se
aprendeu nas aulas e usá-lo bem no local do estágio mas, às vezes, não tem nada a ver com o que
se aprende (…) por isso era preciso que me ensinassem, que me ensinassem a fazer. (Ra., bac pro 2
secretariado, E39)
166
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Estes jovens gostam de aprender, pedem para aprender… embora não gostem de apren-
der o que se aprende na escola, da forma como se aprende. Terá este desejo, e frequentemen-
te este prazer de aprender no estágio, repercussões no que se passa em seguida no LP? Não
existe nenhum automatismo em relação a este ponto, que depende muito da interpretação
das relações entre teoria e prática. Não voltarei a analisar esta questão. Mas é interessante
identificar os dois extremos: num extremo, o estágio pode reprimir o desejo de aprender; no
outro extremo, ele pode convencer o jovem de que a teoria e o LP são importantes.

É o computador que faz tudo e nós enquanto contabilistas não fazemos praticamente nada. Os conta-
bilistas não fazem praticamente nada. Eles só fazem fichas. (R., BEP2 contabilidade, E93)
O que fiz no meu estágio provou-me que o que fazíamos no liceu era mais difícil do que na empresa.
(…) A escola torna-nos mais exigentes, prepara-nos, apesar de tudo! (Ra., BEP2 secretariado, E97)
[Sandrine, depois de ter frequentado uma turma de BEP estuda hoje em dia no último ano do ensino
técnico (STT)121 e tem uma colega que frequenta o BEP e que trabalha] E ela já me disse que o que se
estudava no BEP era complicado em relação à vida activa. Disseram-me que era mais simples. (…) Na
realidade os professores… ela deu-me a entender que eles complicavam tudo. (E148)
Foram os estágios que me incitaram realmente a continuar o bac pro. Foi de facto isso que me fez
gostar de contabilidade. (R., bac pro 2 contabilidade, E115)
Cada vez que fazia alguma coisa eles perguntavam-me primeiro se eu sabia a teoria, foi assim, deu-me
jeito (…) A teoria significa saber, se nos derem um sistema, saber como é que funciona, não basta sa-
ber trocar uma peça mas é perceber qual é a função dela. Para mim, é compreender antes de mais. (…)
Não é que seja melhor do que a escola, mas acho que só podemos aprender no local. (…) A teoria não
se aprende na empresa. O chefe explicou-me que se eu quisesse aprender no local a mudar o óleo e as
pastilhas dos travões isso não iria mudar nada. São necessárias pessoas assim mas as coisas evoluem,
agora temos que aprender a fazer uma injecção. (R., bac pro 2 mecânica automóvel, E12)

Aprender: este é o primeiro critério de validade de um estágio. Mas o estágio não é


unicamente a ocasião de aprendizagens de tipo técnico; significa também a inserção num
mundo muito diferente do da escola. Os jovens citam aqui vários critérios: “o ambiente”
(as relações com os colegas, os chefes, por vezes os clientes), a intensidade da actividade,
o equipamento do local de trabalho, os horários, os transportes, o bairro no qual se situa
a empresa…

(…) e para já a patroa, os profs. reconheceram-no, era lunática. Tratava-me com frequência por minha
pequerrucha e outras vezes dizia não deites os fios para o chão, quando toda a gente os deita para o
chão, eu tinha por hábito deitar os fios para o chão, ela diz-me para não os deitar para o chão, para
apanhar os fios, ora eu, como tenho uma personalidade bastante difícil, disse-lhe “minha Senhora,
tenho muita pena mas não estou aqui para apanhar fios do chão, estou aqui para aprender”. E depois
pedia-me para aspirar, coisas assim e eu não aceitei, telefonei à minha prof. e disse-lhe que não estava
a gostar, queria voltar à escola. (…) A oficina não era um espaço agradável, era muito pequena, nem

121
NT: A sigla francesa STT significa Sciences technologiques tertiaires que se poderia traduzir por “ci-
ências tecnológicas terciárias”.
167
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

tínhamos espaço para nos sentar, à parte disso a loja era bonita, eu gostei quando lá entrei. (Ra., BEP2
materiais flexíveis, E2)
O Carrefour ensinou-nos muitas coisas e era interessante, mas ao mesmo tempo era difícil (…) para
já os horários, começa-se cedo, por causa da manutenção, era preciso esvaziar as caixas, era duro mas
interessante, isto é o tempo parecia passar mais depressa. [Nas lojas pequenas] o tempo não é igual,
demora muito mais a passar. (Ra., bac pro 2 comércio e serviços, E10)
[Os estágios] Em que é que me foram úteis? Bem, para conhecer como é o trabalho na vida, e também
foi útil para eu ver as pessoas de outra forma, porque quando se trabalha, quando se arrumam as pra-
teleiras, bem olhamos para eles de outra maneira, hum, eles são agressivos, não sabia que seria assim,
mas aprende-se muito coisa e sobretudo estamos no terreno. (Ra., bac pro 2 comércio e serviços, E112)

Por fim, existe um ponto que os jovens evocam quase sistematicamente quando falam
do seu regresso à escola no final do estágio: o estatuto que a empresa atribui ao jovem,
comparado com o que é o seu estatuto escolar. Um estágio positivo é também aquele que
trata o aluno como um adulto, que lhe confia algumas responsabilidades. A contrario, e
em primeiro lugar, é contra a infantilização permanente, da qual são vítimas na escola,
que estes jovens protestam – mas o facto de reencontrarem os amigos e amigas ajuda a
suportar este regresso a um universo infantilizante…

Era porreiro porque eu sentia-me, não sei como explicar, não me sentia liceal. Porque enquanto aluna
de liceu tenho a impressão de ser uma menina, enfim é assim que o vejo. Sentia-me uma pessoa res-
ponsável que ia trabalhar e depois de o estágio acabar dizia para mim própria “oh, não vou regressar
à escola, o intervalo das 10h” [suspiro]. Na escola, cada um faz o que quer, eu vinha quando me ape-
tecia, podia acordar de manhã, olhar para o despertador, oh, volto a dormir… No trabalho podes fazer
isso uma vez mas não fazes duas porque tens responsabilidades e se não fores o trabalho não avança,
é uma responsabilidade que se deve assumir, cada um dono de si próprio, eu prefiro. (Ra., bac pro 2
secretariado, E5)
[No LP] aprendemos muitas coisas, mas tomam-nos por crianças (…) A partir do momento em que
toca a campainha temos que nos pôr em fila como no collège. Enquanto no estágio chegamos a horas,
apesar de tudo, e falam connosco como adultos. Por isso nós mudamos. (Ra., BEP1 vendas, E64)

O que é posto à prova num estágio não é só a validade dos saberes aprendidos no liceu
profissional; é, mais profundamente, a capacidade de o aluno para existir e até mesmo
safar-se com brio, no mundo do trabalho, no mundo dos adultos.

Somos deixados na boca do lobo, cabe-nos a nós desenrascar. (R., bac pro 2 MSMA, E101)
Os estágios não me agradam muito porque ainda não me sinto muito apto para entrar na vida activa.
(…) Acho que ainda estou bem na escola, estou bem em minha casa, os meus pais ainda me podem
sustentar. (Ra., bac pro 2 secretariado, E119)

A análise do discurso que os alunos fazem a propósito dos estágios confirma o que a
análise do discurso sobre a prática já apresentava. O desafio do liceu profissional não é só

168
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

de ordem epistémica, cognitiva, didáctica: como é que se pode voltar a dar um sentido ao
próprio acto de aprender? O desafio é mais vasto: o que está em causa é a reestruturação
da relação com o mundo, com os outros e consigo próprio. É através desta reestruturação
que se torna possível uma remobilização escolar do aluno.
O que acaba de ser analisado sob o nome de “figura da prática” contribui fortemente
para uma reestruturação desta natureza: dar sentido à prática, valorizá-la, é também dar
sentido à sua presença no liceu profissional. Contudo, esta figura permanece frágil pois é
paradoxal e ambivalente: o que dá sentido ao liceu profissional é o que se vive fora dele,
na empresa. Em contrapartida, esta figura da prática pode apoiar-se numa lógica de nível:
neste ramo, posso ambicionar ascender.

3. A lógica de nível

Pode acontecer que a figura da prática tome a forma da figura do ofício. Alguns jovens
provêm claramente de uma figura desta natureza. Para eles, o que conta é a actividade que
vão exercer mais do que o seu nível numa escala de profissões. Sem dúvida não recusa-
riam uma promoção nessa profissão mas o que querem é permanecer nela. Jérôme quer ser
padeiro, Jean-Pierre torneiro mecânico, Isabelle fotógrafa, Franck descobriu as máquinas
de controlo numérico e é isso em primeiro lugar que lhes interessa. Quando Franck, que
contudo não “escolheu” a sua orientação, compara o BEP e o bac pro é antes de mais em
referência à actividade profissional122.

Eu tinha escolhido electrotecnia. Não fui aceite. Vim para aqui (…) No início estava um bocado
desiludido, depois comecei a observar, a ver tudo o que se podia fazer para trabalhar o aço, bem isso
agradou-me, agora que trabalho com o controlo numérico ainda me agrada mais e tenho vontade de
continuar (…) Já não me arrependo de nada. (…) Se temos um BEP, e nos contratam, vamos trabalhar
com máquinas normais com as manivelas. Se quisermos trabalhar com os controlos numéricos é ape-
sar de tudo mais interessante. (R., BEP2 ORSF, E24)

Contudo, na maioria das vezes esta figura do ofício assenta numa lógica de nível: o
aluno quer “ascender”, duma forma ou doutra. A partir de então, a comparação entre o
BEP, o bac pro, eventualmente o BTS remete para uma hierarquia que não é simplesmente
a mesma das competências profissionais. Eis aqui exemplos de alunos que provêm inega-
velmente da figura do ofício mas que também pensam na lógica de nível.

O que mais gosto na vida é da carpintaria (…) Construir móveis é fascinante. Ver uma grande tábua
à sua frente e, depois do trabalho, um móvel magnífico. É bonito ver a progressão de uma coisa em
estado bruto… É incrível. Quando se constroem objectos é muito valorizador. (…) Eu espero trabalhar
com gabinetes de arquitectura e design mas não me posso iludir muito, primeiro é preciso começar

Embora a diferença entre as máquinas de manivela e as máquinas de controlo numérico também remeta
122

provavelmente, na sua mente, para uma diferença hierárquica.


169
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

discretamente na empresa, mas temos mais hipóteses de subir na empresa com um BTS do que com
um BEP. (R., bac pro 1 carpintaria, E105)
Informei-me bastante, e depois fiz testes para descobrir um pouco as minhas qualidades, a minha
personalidade, fiz isto tudo no computador, no CIO. E então, o resultado deu que eu era bastante
técnico, era bastante manual e hum… eu também sou inteligente mas enfim… neste momento estou
mais virado para a minha vertente manual que intelectual. Mas não tenho vontade de ser pedreiro toda
a vida, estás a ver. Gostava, por exemplo, de enquadrar pessoas. Ser mestre-de-obras, no fundo. (R.,
BEP2 paredes mestras, E56)
Penso em grande, gostava de ter um negócio como cozinheiro. (…) Tenho tudo o que é preciso para
gerir uma empresa (…) E seria o dono (…) A minha mulher podia servir às mesas, e ser chefe de sala
e eu estaria na cozinha. [Ele também tenciona ser bombeiro ou entrar na marinha] o meu trabalho ser-
‑me-á útil (R., BEP1 hotelaria, E73)
[O chefe de oficina] É ele que supervisiona as operações e é ele que vai decidir o que é preciso fazer.
O mecânico é que vai arranjar, é ele que vai mudar as peças. O chefe de oficina só vai ver o problema
quando o mecânico não o souber resolver. Talvez seja mais monótono ser mecânico, é sempre a mes-
ma coisa, sempre as mesmas avarias. [P.: Porque é que estudas até ao bac pro então?] Para ter mais
diplomas e ser mais qualificado em vez de ser um simples mecânico, para subir mais rápido, talvez ser
chefe de oficina com mais facilidade. Quanto mais diplomas tivermos, mais podemos progredir (…)
estar na mó de cima, ganhar mais dinheiro, sendo apenas mecânico não se ganha muito dinheiro. O
salário e o facto de fazer outras coisas apesar de tudo, um simples mecânico não pode arranjar todos
os carros e os chefes de oficina estão lá para isso, eles conhecem mais coisas. Eles estudaram mais,
seguramente. Eles têm mais diplomas e podem fazer estágios graças à empresa. [Depois do bac pro]
vou continuar, o BTS. Sempre para conseguir mais. E para ter um trabalho. Neste momento, quanto
mais diplomas tivermos, mais emprego teremos, apesar de tudo. Neste momento, é difícil encontrar
trabalho (…) O desemprego não tem piada, ser desempregado… Penso um bocado nisso, apesar de
tudo é uma motivação para tentar ter um diploma, cada vez mais diplomas para tentar não cair no
desemprego. (R., bac pro 2 mecânico auto E13)123.
(…) Com o bac podemos subir mais na vida, ser chefe de secção ou ainda mais alto [P.: É puramente
uma questão hierárquica?] Não, é que quando frequentamos o BEP aprendemos a trabalhar com as
máquinas, a arranjá-las e isso tudo e no bac nós (o aluno expressa hesitação), sabemos que com o
bac vamos liderar, afinal é o que os profs. nos dizem, eles ensinam-nos a teoria quando no BEP é a
prática que conta. [P.: Então quem tem o bac chefia?] Sim, quer dizer ele chefia, ele poderá não chefiar
imediatamente, conseguirá, se se desenrascar. (R., bac pro 1 MSMA, E6)
Eles disseram-me contratamos-te, se acabares o bac pro aceitamos-te para caixa; depois de um ano como
caixa, prossegues os estudos para gestor; depois de ser gestor durante quatro ou cinco anos, és promovido
porque nos bancos eles ganham sempre pontos quando vendem um produto, como uma conta, bem eu
também poderia ser director. (R., BEP2 contabilidade, E3)

Em todos estes casos permanece a lógica do trabalho, embora esta última seja forte-
mente articulada com uma lógica de nível. O aluno espera “subir” seja ao longo de anos
de trabalho, seja graças aos estudos que aumentam as suas competências: a referência à

De notar que o desemprego é usado aqui como argumento para prosseguir os estudos e não para os
123

interromper.
170
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

especificidade de um trabalho ou de um campo profissional subsiste. Mas esta referência


também pode esbater-se, até mesmo desaparecer em benefício de uma lógica onde a noção
de nível é claramente dominante, inclusive a única vigente. Esta norma pode traduzir-se
de várias formas.

• Primeiro processo: o aluno só retém do trabalho as suas formas elevadas ou de pres-


tígio marginal, ou então resvala deste ofício para outro conexo, que na sua opinião é mais
apetecível.
Desta forma, é muito raro que uma rapariga escolarizada no BEP materiais flexíveis se
apresente enquanto futura costureira – o que será provavelmente, se tiver a sorte de encon-
trar um trabalho, a menos que ela trabalhe num outro sector. Sandra (E1), que já foi por
nós citada, aproxima-se do ideal-tipo: “Sempre me vaticinaram que seria patroa mais cedo
ou mais tarde, ah sim, porque eu não vou passar a minha vida agarrada a uma máquina”.
Depois do BEP materiais flexíveis e de um bac pro comércio-serviços ela será estilista
(de preferência na alta-costura) ou dona de uma pequena loja de roupa (eventualmente
em Inglaterra). Virginie (E2), que frequenta a mesma turma que Sandra, também quer ser
designer de moda, ou trabalhar no corte e costura, mas não numa oficina: “Trabalhar nas
máquinas durante todo o dia não me agrada nada”. Virginie tem uma lógica própria: quan-
do fez o seu estágio queria fazer corte e costura. Ora, colocaram-na a fazer acabamentos à
mão e a passar a ferro (ela diz que não tem jeito nenhum para coser à mão124), depois nas
oficinas (que ela não gosta). “Eu disse: já que é assim eu vou cortar os modelos na escola”
– e abandonou o estágio. O caso de Virginie chama a atenção para um fenómeno interes-
sante: a função do estágio é ambígua pois não é a mesma numa lógica de trabalho e numa
lógica de nível. Para o chefe, e sem dúvida para o professor, o estágio abrange a profissão
no seu todo, inclusive as tarefas pouco qualificadas (que tradicionalmente são vistas como
primeiro escalão da profissão, o que incita a confiá-las aos estagiários). Mas os alunos,
eles, estão interessados no trabalho que eles efectivamente “escolheram” dentro da vasta
oferta de profissões ligadas à sua condição social; ora, estas profissões são preferencial-
mente de alto nível (o corte, no caso de Virginie). Eles aceitam geralmente começar um
estágio pelas tarefas pouco qualificadas, mas têm pressa de chegar a um posto de trabalho
que corresponda à sua escolha – e consideram-se enganados se não acederem a ela durante
o estágio. A fazer fé no que Sylvia diz, os professores previnem os alunos, de forma que…
Sylvia desistiu de ser designer de moda e contentar-se-á em dirigir a empresa:

O meu 2º sonho era ser designer de moda, também caiu por terra, por isso agora é dirigir uma empresa
[P.: Porque é que caiu por terra?] Bem, os profs. preveniram-nos para não fazermos muitos filmes, não

Existe aparentemente um paradoxo na recusa em trabalhar nas máquinas o dia todo quando se detesta,
124

como é o caso de Virginie, a costura manual. Mas só é um paradoxo se se raciocinar em termos de acti-
vidades de ofício. De facto, aquilo que Virginie recusa não são as máquinas, é a oficina – não a oficina
enquanto lugar técnico mas a oficina enquanto lugar social.
171
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

é porque fazemos um bac materiais flexíveis que vamos trabalhar na Chanel. É difícil! (Ra., bac pro
2 produção materiais flexíveis, E108)

Os alunos de materiais flexíveis não são os únicos a reinventar o futuro desta forma.
Stéphane quer ter uma loja sua (BEP2 vendas, E63), Naïma que ser recepcionista num
grande hotel, talvez na Holanda (BEP1 hotelaria, E172), Fathia quer ser documentalista
e “sobretudo não continuar a contabilidade” (BEP2 contabilidade, E188), Zahoua tem na
mira um lugar de assistente de direcção (BEP2 secretariado, E205).

• Segundo processo: o trabalho não está completamente posto de lado, mas o aluno
gostaria de o exercer na polícia, na GNR ou no exército, nomeadamente para beneficiar da
segurança do emprego. Este caso é muito frequente.

Pesquisei muito. Então, dado que sou muito hábil a nível manual, escolhi este ramo. (…) O que eu
queria fazer depois era mudar completamente de especialidade. Queria entrar na polícia ou na GNR
(…) Digamos que agora com o desemprego, tento encontrar um emprego sem problemas. (R., bac pro
2 manutenção de sistemas mecânicos automatizados, E102)

• Terceiro processo: o aluno já não faz referência ao trabalho mas apenas ao nível
hierárquico.

[P.: E em que profissão é que estás a pensar?] Muitas coisas, para já eu gostava de ser directora de
qualquer coisa, mas antes de mais tenho que aprender, tenho que aprender muito. [P.: Porquê directo-
ra?] O que eu queria, mas neste momento sou estudante, vou aprender primeiro, mas a minha intenção
é criar um projecto que queria instalar em África, no Congo. (Ra., bac pro 2 secretariado, E5)
Depois do BEP tenho vontade de continuar, tentar obter um bac pro. Bem, sim, temos mais oportuni-
dades de encontrar trabalho (…) Para já, na sociedade temos um nível mais alto. Ganha-se mais. Com
um BEP, ganha-se 8 000 – 9 000. Com um bac pro, pode ganhar-se 11 000 – 12 000. Ainda por cima
corres menos riscos. (R., BEP2 manutenção de sistemas mecânicos de produção, E20)

• Quarto processo: o aluno parece renunciar à ambição de subir na vida, mas de facto
descobre-se ao longo da entrevista que esta ambição foi simplesmente transferida para
uma outra actividade além da profissional.

(…) Conheço um bocado a empresa, subir pela antiguidade é para pessoas que já estão bem colocadas,
se eu for promovido talvez seja para chefe de obra, talvez e ainda assim não sei. [P.: Para ti é importan-
te ser promovido?] Não, não é necessariamente importante. [P.: O que é que é importante na tua vida
profissional?] Trabalhar no que gosto, bom ambiente no trabalho, um bom ambiente. (…) Imagino-me
professor num clube de futebol para jovens e seguramente um dos membros da federação de futebol.
(R., bac pro 1 MSMA, E7)

• Finalmente, último processo detectado e que funciona de alguma forma como uma
contraprova: pode aprender-se alguma coisa de que se gosta mas recusar esta orientação
(e logo este ofício) porque nos faz sentir “diminuídos”:
172
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Quando era pequeno, ia a casa do meu primo que arranjava carros ao sábado, quando não trabalhava na
empresa. Talvez me tenha vindo daí a ideia de escolher mecânica, observava, assimilava às vezes ajudava-
‑o (…) Eu gostava de improvisar e tudo, mas nunca diria que seria essa a minha profissão mais tarde, nun-
ca imaginava. E não digo que não goste, mas não sei, se tivesse estudado mais na escola talvez pudesse
ter-me orientado melhor. (…) Para já quando digo que frequento o LP, pensava que os outros me tomavam
por um zero à esquerda, um atrasado e isso bloqueava-me. (R., bac pro 2 mecânica automóvel, E17)

As entrevistas não deixam margem para dúvidas: a grande maioria destes jovens fun-
ciona inegavelmente numa lógica “vertical”, a de um eixo alto-baixo. Acontece aliás que
sejam eles próprios a explicar esta lógica.

O chefe estudou, tem várias formações. Ele é superior aos outros. O operário, ele permanece operário
porque não quer subir na vida. Não se deve ficar num nível demasiado baixo. O salário também sobe
e desce. (Ra., bac pro 1 mecânica automóvel, E18)
Gostava de ser chefe de oficina numa garagem e depois chefe de oficina hum… especialista. Gostava
de subir a pouco e pouco ao topo da hierarquia. (R., BEP1 carroçaria E49)
Bom, eu analisei os prós e os contras e se é para ser secretária mais vale ser secretária de topo, mas
isso é outra história, para chegar lá acima é preciso ter estado em baixo e apesar de tudo entre os dois
existe um longo percurso (…). (Ra., bac pro 2 serviço secretariado, E5)
Eu escolhi tendo em conta o meu nível. Existiam várias possibilidades: mecânica, bate-chapas, cozi-
nha, tudo aquilo que está no fundo da tabela. (…) Na minha opinião existem dois níveis: aqueles que
estão no fundo da tabela, a mecânica e tudo isso e, em cima, sempre na orientação BEP, no topo da
tabela posso considerar a contabilidade, as cenas comerciais desse género. (…) Eu não digo que estou
totalmente no fundo da tabela, ainda há mais fundo, por exemplo aqueles que chegaram ao 3e e não
tiveram esta oportunidade de seguir para o BEP e que foram directamente para um mecânico trabalhar
como aprendizes. (R., bac pro 2 mecânica automóvel, E17)

Era a referência ao trabalho que estruturava, até há bem pouco tempo, a relação que os
jovens de centros de ensino técnico tinham com os estudos (Grignon, 1971) – ao trabalho
entendido como conjunto de actividades postas em prática por um grupo humano, cujos
membros são solidários e produzem marcas de pertença. Esta referência não desapareceu
completamente, alguns estão orgulhosos por se tornarem padeiro, oculista, contabilista…
mas o que estrutura doravante a relação destes jovens com os estudos refere-se mais ao ní-
vel do que ao ofício. Sem dúvida, a ambição de “subir” sempre existiu no seio das classes
populares; além disso, ela ganhava com frequência a mesma forma aqui encontrada: ser
chefe de equipa, estabelecer-se por sua conta, aceder a um estatuto protegido ao entrar na
polícia ou na GNR. Mas esta ambição exprime-se doravante com uma frequência e uma
força espantosas: ao ouvir estes jovens, permanece a sensação que “subir” é essencial para
se poder dizer que se tem realmente êxito na vida.
O facto de estes jovens funcionarem numa lógica de nível é um dado essencial para os
liceus profissionais e para aqueles que lá trabalham. Isso significa que a grande referência

173
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

ao ofício, aos seus saberes, às suas actividades, aos seus modos de ser, a tudo aquilo em
que o liceu profissional se apoiava recentemente para sustentar e, por vezes, fazer nascer
a mobilização escolar dos alunos já não funciona. A simples referência à “prática”, ao
“concreto” não é suficiente para reconstruir uma relação suportável, até mesmo uma rela-
ção de desejo pelos estudos. Certamente, estes jovens gostam de aprender coisas precisas,
verificáveis, que não se reduzem (para eles) a palavras. Mas é preciso que isso lhes permita
encontrar um trabalho e até mesmo “subir”. Para ser eficaz para lá de um pequeno número
de alunos, a figura da prática deve hoje em dia articular-se com a lógica de nível.
Nesta lógica, o que confere uma especificidade ao liceu profissional não é simples-
mente o facto de ser profissional, é também, e sobretudo, o facto de oferecer uma segunda
oportunidade aos alunos com dificuldades no collège, de constituir um desvio que permite,
através de uma via um pouco mais longa que a via geral e tecnológica, aceder ao bac e a
estudos ulteriores. Articulada desta forma na lógica de nível, a prática ganha outro signifi-
cado: ela induz a um tipo de ensino no qual o aluno tem muito mais hipóteses de ser bem
sucedido – logo de continuar os estudos, obter os diplomas, de “subir”.

4. O liceu profissional como segunda oportunidade e atalho

Ir para o LP “é como se fosse um mundo novo, como se tivesse mudado de casa para um
outro bairro, é como se tivesse mudado de bairro” (R., BEP2 contabilidade, E3). Mas exis-
tem duas formas de considerar esta entrada num mundo novo.
Pode ser vivida como uma expulsão: o LP é o estabelecimento que acolhe aqueles que
foram excluídos da entrada no Seconde, isto é da via “normal” para “subir na vida”. É esta
versão negativa do LP que tem a maioria dos alunos aquando da orientação. Mas os alunos
compreendem a seguir que podem voltar ao ensino tecnológico através de uma Première
d’adaptation ou continuar até ao bac pro – e, nos dois casos, esperar uma entrada no BTS,
até mesmo na universidade. Dito de outra forma, o LP não constitui um impasse, ele pode
constituir um atalho que permite alcançar alguns daqueles que entraram no liceu geral e
tecnológico.
Esta possibilidade oferecida pelo LP permite limitar o impacto de uma orientação
negativa mas não anula por isso os efeitos de uma orientação desta natureza: a ferida
fecha-se mas a cicatriz permanece. O atalho em si também é objecto de dois tipos de
leitura, conforme predomina o traumatismo da orientação ou a nova esperança de êxito
– duas leituras por vezes associadas num mesmo discurso, se bem que sejam em parte
contraditórias.
Para alguns alunos, este atalho é tempo perdido, um caminho mais longo que lhes foi
imposto por causa de um erro ou de uma injustiça de orientação. Esta concepção de atalho
é pouco frequente, mas interessante enquanto modo de interpretação; ela está presente
nos alunos que praticam a negação ou que são dominados pela revolta. A amargura destes

174
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

alunos é tão grande que quando recuperam a esperança numa escolarização “normal”, por
vezes não é ao LP que eles atribuem os méritos mas a si próprios: o facto de serem bons
alunos é uma prova suplementar de que não tinham nada que estar no LP e que a orienta-
ção a que foram submetidos era errónea e injusta.
Uns vivem este atalho na lógica da negação: não existe uma diferença de fundo entre
o liceu geral e o liceu profissional. Para Waïba, que frequenta o 1º ano de BEP sanitário e
social e quer ser educadora de infância, “é quase a mesma coisa” (E69). Para Sophie, que
também frequenta o BEP1 sanitário e social, a turma de BEP é como um Seconde SMS
(médico-social) de apoio – o tal Seconde SMS que ela tanto sonhou fazer (E179).

[O liceu profissional e o liceu geral] são quase a mesma coisa. Porque nós passamos por um BEP e
se estudarmos bem temos a possibilidade de alcançar o liceu normal. [O LP] é só uma passagem, que
permite alcançar o bac. (E69)

Ela queixa-se de que não existem disciplinas gerais suficientes no liceu profissional.

[P.: E a turma de BEP em relação a um Seconde médico-social?] É a mesma coisa, é um Seconde em


dois anos na verdade, fazes a mesma coisa mas em dois anos e ainda por cima estudas de forma mais
aprofundada visto que tens mais tempo e que na verdade é mais fácil para perceber porque voltas aos
temas com frequência. (Ra., BEP1 sanitário e social, E179)

Outros assumem a diferença entre liceu geral e LP e vivem o LP como um parêntesis.


Eles não negam aprender algumas coisas mas estas últimas não tem qualquer ligação com
o que querem fazer, de forma que o LP é um atalho que não lhes acrescenta nada – a não
ser a possibilidade, se eles o conseguirem, de reencontrar o curso dos seus estudos “nor-
mais”: como o afirma Sonia, que desde a sua orientação sente uma raiva que ainda não se
apaziguou, “estou à espera para estudar” (E120).

Não é a cena que quero fazer mas não tenho escolha. Fiz os meus dois anos e tentarei regressar para
a opção normal. Agora que já comecei… [Quer ser professor primário no Senegal.] (R., BEP1 ORSF,
E28)
A pouco e pouco dei-me conta que me enganaram, porque há outros ramos mais interessantes do que o
que faço. Por isso digo para mim própria: não é grave, continua, depois há o bac, porque eu não quero
ser secretária. Depois do bac, isso vai-me permitir ir para a faculdade, é o que eu quero. (…) O BEP é
temporário, é do género: não penses nisso, continua mesmo que seja um inferno, não é grave, continua
e isso permitir-te-á fazer outra coisa (…) Estou temporariamente à espera, à espera do fim do ano para
passar o bac, estou à espera para estudar. (Ra., bac pro 2 secretariado, E120)

Se alguns alunos lastimam o atalho que lhes foi imposto, outros pensam nele como uma
segunda oportunidade. Eles são sensíveis à especificidade dos conteúdos e das modalidades
de formação no LP: o facto de o liceu ser profissional, de propor professores de um tipo
diferente, de comportar sequências práticas aumenta ao mesmo tempo as oportunidades
175
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

de aí obter um diploma e as oportunidades de mais tarde encontrar um trabalho. Para estes


alunos, o atalho pelo LP não significa tempo perdido. Por fim, eles consideram que o LP
constitui uma via mais rápida para aceder a um ofício porque eles têm aí mais hipótese de
êxito do que no ensino geral; o facto de alguns dos seus camaradas terem “perdido” um ano,
ou até mais, no liceu geral e tecnológico antes de terem sido reorientados no LP conforta-os
ao pensar que tomaram o caminho mais rápido ao entrar no LP no fim do 3e.

Se tu fores um bom aluno no 3e terciário, serás um mau aluno no 3e geral. Se fores para o Seconde,
vais perder uma orientação, vais perder um ano, vais regressar ao BEP. E até vai precisar de chumbar
um ano para retomar o nível de estudos. Então para isso mais vale perder um ano para ir para o BEP e
depois ir para o Première. Pelo menos terás um BEP e se no Première vires que não encarreiras, bom
pelo menos terás o BEP. (R., 3e technologique terciário no LP, E138)
[O BEP] é uma escolha, penso, e vejo que não me arrependo de não ter entrado no Seconde porque
conheço pessoas que tinham mais meios do que eu e que estão a afundar-se agora, então eu prefiro
sair daqui com um diploma e regressar com mais capacidades para o geral. [Tem em vista uma Pre-
mière d’adaptation – mas está preocupada porque não aprendeu uma segunda língua.] (Ra., BEP1
secretariado, E98)
[O LP] é directo, é mais directo. Não é preciso fazer 40 000 anos de estudos (…) Frequenta-se um
ramo em particular e concentramo-nos nisso. (…) É uma escola que ensina directamente um ofício, é
só (…) O LP é um outro circuito, menos longo, mais rápido, com um diploma no fim que te permite
trabalhar (…) O LP, em suma, é uma saída mais rápida no mercado de trabalho com um diploma segu-
ro. (…) Para mim, é simples e não complico muito a minha vida! Definitivamente, foi mais prudente
para mim ter escolhido isto. Pronto! (R., bac pro 1 vendas, E110)
Existe uma grande diferença. Porque ganho tempo estando no LP porque desde o primeiro ano de
BEP eu aprendo um ofício, eu sei, tenho uma ideia da mecânica. Enquanto no ensino geral, depois do
Seconde, Première, Terminale, tu passas o teu bac e a seguir ainda tens que perder tempo. (R., BEP2
mecânica, E47)

Estes alunos citam frequentemente com emoção esta segunda oportunidade, esta pos-
sibilidade de partir do zero, este “clique”, este “trampolim”. É ao LP que eles atribuem
o mérito do seu novo êxito, que os deslumbra mais ou menos. No entanto, eles não são
estranhos ao processo em curso: eles explicam, sob uma forma ou outra, que o liceu pro-
fissional os transformou a nível pessoal.

Para mim o BEP era uma segunda oportunidade. Eles abriram as portas às pessoas que não queriam
fazer estudos extensos. (Ra., acaba de sair de uma turma de BEP de secretariado, com o diploma, e
está à procura de um emprego, E163)
Quando cheguei aqui apercebi-me que, de facto, podia recomeçar tudo do zero, podia recomeçar
tudo seguramente desde o 4e porque era bastante fácil e disse para mim própria que não ia desper-
diçar mais uma vez outra ocasião, por isso a Matemática era preciso que eu recuperasse e depois
como vi que era bastante fácil decidi que ia recomeçar. (Ra., BEP2 materiais flexíveis, E2)

176
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

[No collège] Era um calvário para ir à escola. Era chato. Queria mudar! E no LP mudou tudo para
mim, é um começo a partir do zero, e visto que temos uma formação que dá origem a um ofício…
(R., BEP1 hotelaria, E73)
Foi ao chegar ao BEP que tive um clique. Para conseguir o que queremos é preciso estudar e compor-
tar-se bem. Penso que isto me fez bem (…) Apercebi-me de muitas coisas, tornei-me mais adulto. (R.,
BEP2 contabilidade, E92)
Até ao 5e era uma idiota (…) francamente estava-me a borrifar. Fui colocada no 4e e 3e technologique
e, não sei, houve um clique e isso deu-me vontade de estudar, de fazer alguma coisa com o meu futu-
ro. (…) Deu-me um clique porque achei que era fácil e os outros não conseguiam. E foi isso que fez
disparar o clique. (Ra., BEP2 electrónica, E167)
O secretariado é, como se diz, um trampolim, um trampolim para fazer outra coisa. E depois como eu
tenho boas notas é mais motivador. (Ra., BEP1 secretariado, E185)
[O BEP] era um trampolim para o bac e o bac um trampolim para um BTS. E o BTS, acho que vou
ficar por aqui. (Ra., bac pro 2 comércio e serviços em CFA125, E191)
[O LP] Sobretudo porque era a minha última oportunidade e eu consegui. Tinha 50% de hipóteses de
ter o meu BEP e consegui apesar de tudo. Para mim, a minha vida começa agora. É como se tivesse o
certificado das escolas que fiz e agora é realmente um recomeço ao nível do trabalho. (Ra., Première
d’adaptation médico-social, E144)

Os alunos que vivem o liceu profissional como uma segunda oportunidade encontram-
‑se presos numa espiral da remobilização. Eis dois exemplos.

Graças à contabilidade saí da minha hibernação e comecei mesmo a dedicar-me a isso, agradou-me
mesmo desde o início. Antes estava adormecido, não avançava, deixava-me ir, borrifava-me. Desde
que estudo contabilidade sinto-me reviver. Mesmo na minha vida isto traz-me muita coisa, é uma
satisfação estudar bem. Sempre fui encorajado ou felicitado com uma nota muito positiva para o BTS,
por isso, isto motivou-me finalmente. (…) Comecei a ter Direito, Economia, Gestão e também me
agradou. [Mesmo nas disciplinas como o Francês, a Matemática, a História e Geografia] também sinto
que aprendo. Talvez seja porque a contabilidade me agrada e tudo o que a rodeia também. Não tenho
que me forçar para estudar (…) Tudo me agrada este ano, gosto de tudo. (R., bac pro 2 contabilidade,
E201)
No início do BEP, eu comecei a ter boas notas, bem é fácil, era fácil (…) Por isso agora, vou, enfim
ia, porque eu tinha boas notas, estás a ver, percebo o que diz o prof. e depois o ambiente também
era bom no LP onde estudei. Há mais rebeus, renois126, estás a ver, sentimo-nos bem, a maioria
eram árabes, alguns franceses, etc., eles salvam a honra, mas à parte disso o ambiente era super
porreiro entre nós. Não sei, havia (silêncio) também uma solidariedade (…) E depois, bem também
há as aulas, tinha boas notas, existia uma motivação à partida. E depois, bem a coisa complica-se,
quanto mais se aprende mais aumenta o nível, mais oscilas entre altos e baixos, mas em geral era
estável. E depois também era muito importante, embora o BEP não tenha nenhum valor. Porque,

125
NT: A sigla francesa CFA significa Centre de formation d’apprentis, que se pode traduzir por “Centro
de Formação de Aprendizes”.
126
Em verlan (língua “ao contrário” muito usada pelos jovens dos subúrbios) rebeu significa beur (tam-
bém ele oriundo, pelo verlan, de “árabe”) e renois significa noir – negro.
177
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

bem, eu sabia que quando vais trabalhar com um BEP, isso não vale nada, talvez no imediato
encontres trabalho, mas é trabalho temporário (…), por isso para mim só me interessava o bac
para me safar, então para ir para o bac era outra etapa (…) Como estou no bac, acho o programa
interessante, o programa de bac é muito interessante, no bac profissional secretariado (…) Além
disso tomei-me de amores pelos computadores, os programas, estás a ver, tudo o que tem a ver
com informática. E também pelo Francês, eu…, eu adoro os livros, discutir com os profs. (Sonia,
bac pro 2 secretariado, E120)

Esta configuração da mobilização escolar no liceu profissional articula vários proces-


sos. Os principais são os seguintes – é preciso relembrar que uma configuração desta natu-
reza é ideal-típica e que por isso é raro encontrar todos os elementos num só aluno:

• No seio da configuração, encontra-se o sentimento de êxito, materializado através


de boas notas e de boas avaliações. Aqui reside uma experiência muito recente para estes
alunos e eles falam dela com emoção, onde ainda se nota estupefacção, até mesmo des-
lumbramento. Os pais ficam com frequência tão estupefactos quanto os próprios alunos e
esta satisfação dos pais reforça ainda mais o processo. Desta forma, o que permanece no
seio do processo é uma revalorização radical da imagem de si.

Há muito tempo que não sabia o que era ter boas notas. (…) E quando se é bem sucedido ficamos
contentes, não sei, sentimo-nos super bem. O facto de saber que consegui um diploma, pude experi-
mentar o que era ter êxito. (Ra., Première d’adaptation SMS, E143 – ela frequentou um BEP sanitário
e social)
As aulas de disciplina geral são menos difíceis, o nível é menos elevado, então estamos super moti-
vados quando temos uma super nota a Matemática. Dizemo-nos para nós próprios: não acredito, é a
primeira vez que me acontece. Então, não paramos de estudá-la, ficamos orgulhosos e acreditamos
que já não somos uns imbecis. (R., BEP2 contabilidade, E92)
[Virginie fala sobre a sua mãe] Ela estava-me sempre a dizer que era má a costura e tudo isso e depois
quando ela viu a minha primeira caderneta ela achava que não era realmente a minha [sorriso] (…)
Estava contente por lhe mostrar porque na verdade era a única caderneta que tive na vida com boas
avaliações, por isso quando lhe mostrei fiquei contente. (Ra., BEP2 materiais flexíveis, E2)

Esta revalorização da imagem de si transforma radicalmente a relação consigo próprio


e com os outros.

Estou bastante orgulhoso porque provei a mim próprio, e às outras pessoas que me viam como um
aluno perturbador e sem nenhum futuro, que era capaz de brilhar e de conseguir o que queria (…)
Enquanto correr bem não me farto. Não, se desse cabo da cabeça e se não percebesse nada, sim tinha-
‑me fartado, mas está a correr bem, eu compreendo as matérias e gosto disso, por isso não, não estou
farto. (R., bac pro 2 climatização e frio, E104)
Agora estamos numa fase intermédia que nos permite arrancar outra vez (…) Temos direito de ser
como somos, de dizer o que pensamos, de descrever da maneira que quisermos, percebem o que quero

178
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

dizer! É verdade que isto nos restitui um bocado de confiança em nós, para dizer: “caramba, afinal não
somos imbecis, porque mesmo sendo como somos, temos, apesar de tudo, o direito de vir à escola”. É
verdade que é muito importante. (Ra., BEP de um ano contabilidade, E91)

• A mobilização apoia-se com frequência na lógica da prática, até mesmo do trabalho,


que já analisámos: o aluno tem consciência que o seu êxito está ligado a uma mudança
dos conteúdos, dos métodos, até mesmo da natureza do ensino que ele recebe. Contudo,
o êxito, e a remobilização que ele induz, não diz apenas respeito ao ensino profissional
mas também ao ensino geral. Existe aqui um ponto essencial do ponto de vista teórico
e prático: a revalorização da imagem de si realiza-se também no campo onde os alunos
antes estavam em xeque e não apenas num outro domínio. Não se trata de impulsionar um
aluno a estudar alvenaria ou cozinha quando este está em xeque a Francês e Matemática
e explicar-lhes que eles serão capazes de ser bem sucedidos em algum lado… As citações
anteriores apresentam este processo de contágio do êxito: os alunos têm boas notas nas
disciplinas “teóricas”, novas para eles (Direito, Gestão…) ou antigas (Matemática, Histó-
ria e Geografia…). Até pode acontecer que seja o êxito nas disciplinas gerais a produzir o
efeito, aparentemente mais forte, de reconstrução de si.

É uma questão de trabalho, não uma questão de inteligência [P.: De certeza?] Sim, claro que sim,
porque é que eu não tinha boas notas a Matemática quando eu queria realmente perceber e agora
percebo? Quer dizer que eu não era burra no 3e, porque é que seria burra no 3e e seria inteligente aqui?
Não, é porque aqui estudei, faço os meus trabalhos de casa, estudo as lições, peço ao professor que
me explique duas, três vezes e percebo. Antes não perguntava nada, borrifava-me para tudo. (Sandra,
BEP2 materiais flexíveis, E1)

• O conjunto destes processos induz a uma revalorização da imagem do liceu profis-


sional. Há uma ideia que regressa com frequência: no liceu profissional também é preciso
aprender e não é tão fácil como se pensa – com a consequência, implícita ou explícita,
que os alunos não são assim tão burros como se diz. A comparação entre o liceu profis-
sional e o liceu geral e técnico contribui para revalorizar a imagem do LP, mas a partir de
raciocínios contraditórios! Para uns, o LP é igual até mesmo superior ao liceu geral: é tão
difícil, embora não o seja pelas mesmas razões. Para outros, pelo contrário, o LP é mais
fácil, logo as hipóteses de êxito são aí mais elevadas. Em ambos os casos, se bem que por
razões diferentes, o LP surge como algo mais do que um lugar onde os “burros” vivem
um impasse. Surgem dois pontos cruciais nesta comparação: o liceu profissional oferece
melhores hipóteses de se ser bem sucedido e melhores hipóteses de mais tarde encontrar
um trabalho.
Sobre a dificuldade do LP, surgem quase todas as fórmulas possíveis: é mais difícil;
não é difícil; é menos difícil; não é mais fácil; é a mesma coisa; é totalmente diferente; é
difícil quer seja no geral ou no profissional. De qualquer forma, um LP não é aquilo que
se pensa e não é para os burros…
179
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Nós temos mais exames para chegar ao bac: CAP, BEP, bac pro. Demora muito mais tempo para nós.
Há muitos que desistem. Há muitos que mudam. Eu fiz dois, BEP. (R., bac pro 1 electrónica, E100)
Para já estava à espera que fosse mais difícil porque quando eu cheguei ao 1º ano não me pareceu nada
difícil. Para mim era muito simples: tudo o que aprendi o ano passado tive a impressão de já saber (…)
Agora é um bocado mais difícil. Mas não é difícil memorizar, na verdade é lógico, basta perceber a
lógica. (R., BEP2 vendas, E63)
Temos o mesmo nível que toda a gente. Não é mais fácil, não pensem (…) Acho que é muito menos
difícil (…) Bem, mas acho que existe a mesma dose de dificuldade porque é preciso dedicação, por
exemplo, nós temos contabilidade e eles têm Matemática e hum…é parecido, se não seguirmos a
matéria afundamo-nos como eles, é a mesma coisa. Por isso de facto é a mesma coisa, cada um tem as
suas dificuldades. (Ra., BEP1 secretariado, E185)
É totalmente diferente. Não se pode dizer que um liceu geral é mais difícil. É mais difícil em relação
ao Francês e isso tudo, mas eles não têm tudo o que nós temos que fazer, na regulação das máquinas e
isso tudo, eles não têm a vertente manual que também é muito difícil para nós. (R., BEP2 carpintaria,
E52)

Qualquer que seja a dificuldade comparada do profissional e do geral uma coisa é


certa: no liceu profissional existem mais hipóteses de se ser bem sucedido do que no liceu
geral e, ao sair, mais hipóteses de encontrar trabalho.

Estou mesmo contente de estar no liceu profissional, de continuar este ramo, mesmo que por vezes te-
nhamos arrependimentos, penso que temos mais hipóteses de ser bem sucedidos, basta querer. Temos
muito mais hipóteses de êxito nos liceus profissionais, enquanto nos outros é muito mais teórico, mais
trabalho intensivo. É muito mais difícil. (R., bac pro 1 MSMA, E103)
No mercado de trabalho, um bac não vale nada, não lhes serve para nada, enquanto com um bac pro
ou um BEP pode-se trabalhar (…) Não se deve acreditar nas pessoas que dizem que os ramos pro são
para os burros e tudo isso. Eu vejo os meus amigos, eles têm o bac e há uma que trabalha no Mono-
prix127 de Quatre Chemins. Eu estou contente de ter feito isto. (R., bac pro 2 contabilidade, E201)
Quando cheguei senti que era um liceu como outro qualquer, uma etapa no liceu profissional, acho
que é como no liceu C., acho que isso de liceu profissional ou liceu normal não existe, não há dife-
rença (…) Bem, o C. é um bocado mais difícil que o liceu profissional, é muito mais difícil, mas na
totalidade existem as mesmas disciplinas, o que quer dizer que no liceu profissional temos talvez mais
hipóteses de ter um trabalho importante do que no liceu normal (…). (R., bac pro 1 MSMA, E7)

• As relações com os professores (a que regressaremos) contribuem para alimentar esta


dinâmica positiva: eles explicam melhor do que no collège, eles estão mais preocupados
com o facto de toda a gente perceber. As relações com os camaradas (a que também re-
gressaremos) são mais ambíguas: embora alguns elogiem uma maior solidariedade em
relação ao collège, até mesmo uma maior homogeneidade étnica, outros queixam-se que
o comportamento ou o nível dos seus camaradas os prejudica nos estudos, o que os faz

127
NT: O Monoprix é uma cadeia de supermercados francesa.
180
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

atrasarem-se no programa e desta forma arriscarem desperdiçar as suas novas oportuni-


dades de êxito.
Em suma, estes alunos, (re) mobilizados para os estudos, afirmam com frequência
estar felizes no liceu profissional.

No início não gostava muito. Agora começo a conhecer. Quando se conhece, gosta-se. (R., BEP2
ORSF, E26)
Por fim estou feliz por estar aqui. Escolhi bem as minhas cenas (…) De qualquer forma eu não su-
portaria o ritmo do Seconde. Enfim, sou bastante preguiçoso mesmo assim [risos]. Disseram-me que
quando estás no Seconde tens que ficar todas as noites 4-5 horas a estudar e eu não consigo. (R., BEP2
electrónica, E45)
Eu gosto disto e ainda por cima corre bem (…) E eu continuo a evoluir. Não estou bloqueada e tenho
bons resultados, é isso que é importante. Ainda por cima no mercado de trabalho eu terei um diploma
que significa alguma coisa (…) Adoro o que faço, é isso. (Ra., bac pro 2 contabilidade, E116)

Existe pois uma dinâmica de mobilização no liceu profissional. Mas atenção ao efeito
happy end… Depois da deriva e da queda estudámos a (re) mobilização, o que confere a
esta análise uma pequena aparência de “paixão e redenção do aluno de LP”… É preciso
por isso relembrar três pontos.
Em primeiro lugar, é preciso não esquecer que esta figura da mobilização é uma figura
ideal-típica: ela é aqui apresentada na sua pureza e na sua completude de modelo mas
nos jovens singulares ela é realizada de forma desigual, com frequência, incompleta e
contraditória. Como todos os ideal-tipos, esta figura da mobilização é um instrumento
conceptual para analisar histórias e situações singulares, mas a análise de casos singula-
res continua por fazer: um caso singular nunca é a aplicação pura ou a concretização de
um modelo.
Em segundo lugar, a dinâmica da mobilização nem sempre funciona. Alguns alunos
permanecem fechados na amargura e na raiva e não se mobilizam minimamente. Outros
mobilizam-se para uma formação prática e profissional mas não para o liceu profissional
em si. Outros ainda tentam mobilizar-se mas esta mobilização fracassa. Sem esquecer
aqueles que estão mobilizados para outras coisas: em sonhos de proezas desportivas ou
musicais, nas actividades marginais legais ou ilegais, num grande amor, na procura da
dose de droga diária…

Em todo o caso eles não me deram a oportunidade, agora é demasiado tarde para mim. (R., bac pro 2
mecânica automóvel, E16)
Disse para mim próprio que ia ser diferente mas afinal é a mesma coisa (…) Achava que o ramo das
vendas me ia interessar a sério, quando me apercebi que não me interessava já estava aqui, tinha que
ficar, obrigado a ficar até ao fim. Foi exactamente por isso que não acabei, porque no final de contas
percebi que estava a perder tempo para nada. Não ia mais longe, não servia de nada. (R., 25 anos,
abandonou um BEP vendas há quatro anos, trabalha em animação, E153)

181
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Em terceiro lugar, a ferida narcisista da orientação no liceu profissional permanece,


mesmo nos alunos que estão muito mobilizados para o LP e afirmam nele ser felizes. Exis-
te aqui um fenómeno bastante espectacular e quase unânime: quando se pergunta a estes
jovens se eles desejam que os seus irmãos e irmãs, e sobretudo os seus filhos, vão para
o liceu profissional a resposta é claramente negativa. O exemplo que se segue, escolhido
entre dezenas de outros, tem interesse pois mostra o aluno preso a contradições que muitos
deles devem enfrentar: o LP é muito bom e não é para burros mas não gostaria que os meus
filhos o frequentassem…

[P.: Gostarias que eles fossem para o LP?] É esse o problema, de facto é esse o problema. [P.: Qual
problema?] É esse o problema, apesar de ter feito o LP temos sempre a impressão que o liceu… É
isso, era preciso eliminar a imagem. Até nós, só de pensar que os nossos filhos vão andar no LP, vamos
hum… vamos estar preocupados (…) Porque é preciso que se diga, encontram-se pessoas que apesar
de tudo passaram por muito más situações. É preciso pensar nisso, ou o jovem e adolescente se safa
e não se vai perder ou seja vai ter um objectivo, a motivação como eu tive e vai conseguir. Pronto, é
isto. Por isso vai ser preocupante. [P.: Então é por isso que não queres que os teus filhos frequentem
o LP?] De facto não gostaria. Acho que não gostaria. Mas se for a única solução, sou obrigada a gos-
tar, mas tenho que ter a certeza que o BEP não os leva ao desemprego. (Ra., Première d’adaptation
médico-social, E143)

Porque é que alguns alunos se mobilizam para o liceu profissional e outros não? Além
do seu interesse prático, esta questão apresenta um interesse teórico: embora a população
dos LP seja mais heterogénea do que se pensa, ela mantém-se massivamente constituída
por jovens de meios populares e é por isso difícil “explicar”128 as diferenças de sucesso
no LP através da origem social. De forma mais geral, não faz sentido procurar a causa
desta diferença de mobilização. Esta última constitui o efeito de um conjunto de processos
articulados uns nos outros – que se pressupõem, que se induzem, que se apoiam uns nos
outros e que por vezes, em parte, se contradizem. Mas tornou-se evidente, ao longo deste
capítulo, que estes processos se articulam em figuras que definem a relação de um sujeito
com o mundo, com os outros e consigo próprio. A questão crucial é saber se a entrada do
aluno no liceu profissional, que constitui quase sempre uma ruptura, e que ainda por cima
é uma ruptura dolorosa, vai ou não induzir uma dinâmica, uma nova mobilização para os
estudos, uma reestruturação da relação do aluno com o saber, a escola, e por isso também
uma reestruturação da sua relação com o mundo, os outros, consigo próprio. O desafio
está na reposição do movimento do sujeito, a sua reposição de desejo, a sua reposição no
futuro.

Além disso, a origem social nunca poderá explicar as diferenças de sucesso escolar. As estatísticas
128

indicam que estas diferenças estão ligadas de alguma forma à origem social mas as estatísticas, por si só,
nunca explicam nada. A explicação ainda está por dar; ela pressupõe que se possa modelar a produção do
fenómeno.
182
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Neste sentido, aqueles que procuram a solução num “projecto” estão simultaneamen-
te errados e com razão. Estão errados quando se trata, como é frequente, de fazer girar
uma máquina cega que impõe129 aos jovens que redijam um projecto. É ridículo pensar
que estes jovens vão mobilizar-se para uma formação porque os obrigaram a produzir
um “projecto profissional”. Contudo, o desafio é efectivamente projectar-se no futuro;
mobilizar-se significa unir as suas forças, fazer uso de si para avançar (Charlot, 1997).
Mas trata-se de se projectar com toda a força de um desejo, de um desejo de si, um ser
psicológica e socialmente desejável. Se se quer falar dos alunos de liceu profissional em
termos de “escolha” e de “projecto” só pode ser em termos de escolhas de si, de projecto
de vida.
Mais uma vez, a palavra dos alunos é preciosa para construir a problemática do pro-
jecto130.
Alguns alunos têm claramente a consciência que são os professores que necessitam
que os alunos formulem projectos profissionais.

Lembro-me no 3e quando os professores queriam que apresentasse um projecto. Eu entreguei uma


cena que era uma treta. Não se escolhe uma cena assim rápido, tem que vir de nós. Não se telecoman-
da. Mas, enfim, eles estavam contentes. Era um bocado um teste, então eu fiz, e para aqueles que têm
de facto um é porreiro. Para os outros como eu, hum bem eles ficam mais descansados. E depois há
muitos que não queriam estar aqui. (Isabelle, BEP2 secretariado, E99)

Um aluno pode estar muito satisfeito de frequentar o LP sem por esse facto ter um
projecto – ou um projecto que corresponda à formação recebida no LP.

Gosto do que fazemos em costura… usar a máquina e tudo. (…) Acho que este liceu é muito bom,
eu gosto dele (…) Estou muito contente de estar aqui (…) Sinto-me bem aqui. (…) Mas o que é que
queres descobrir na costura? Nada, hum, não há nada. [Quer ser caixa de supermercado.] (Ra., BEP1
costura, E62 – ela frequentou uma SES131)

Inversamente, um aluno pode ser movido por um projecto de longa data, claramente
afirmado, que a instituição escolar recusa conhecer. Assim, Amar, 19 anos, filho de co-
zinheiro, também quer mais do que tudo ser cozinheiro: a instituição escolar obriga-o a
passar um CAP “construção metálica” (onde já reprovou três vezes) para ter uma pequena
oportunidade de entrar a seguir na turma de BEP cozinha. É a instituição que impõe aqui
uma lógica de nível a um jovem que tem um projecto tão forte e que pensa numa lógica de

129
Esta imposição assume na maioria das vezes uma forma “suave”, mas trata-se de qualquer forma de
uma imposição.
130
Bem entendido, mais uma vez, ninguém é transparente a si próprio, e é o investigador quem constrói a
problemática a partir da palavra dos alunos.
131
NT: A sigla francesa SES significa Section d’éducation spécialisée. Trata-se de uma classe que acolhe
alunos com grandes dificuldades escolares, inclusive alunos com supostos problemas mentais.
183
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

ofício: ele sai da SES e a instituição obriga-o a adquirir um nível CAP para poder entrar no
BEP (nem que seja um nível CAP construção metálica para entrar no BEP cozinha…).

Eu escolhi a construção metálica porque não tinha o nível para a cozinha (…) Ah, eu não tive escolha,
disseram-me: é isto ou a rua. Eu não queria ficar de fora, escolhi isto. Depois disseram-me: se con-
seguires o teu CAP, propunham-me preparar o BEP, de cozinha, então eu tentei conseguir para fazer
outra orientação (…) Agrada-me estudar cozinha, hum… servir refeições aos outros. Ainda por cima
conhece-se muitas pessoas. (…) Gosto de conhecer pessoas que vêm de outros países. Permite-me
aprender uma outra língua. (E125)

Enfim, os jovens sabem que um verdadeiro projecto é um projecto de vida, um projecto


seu. Às vezes, eles falam dele muito bem – inclusive mesmo quando, como Mohamed, não
conseguiram mobilizar-se no LP.

Um projecto é… como uma cena que explode. Quer dizer, começa assim. É um sinal que faz com
que se tenha vontade de realizar alguma coisa muito forte. E depois só se tem um objectivo, é que se
realize. Então tentamos tudo para o realizar. (Isabelle, BEP2 secretariado, E99)
Acho que não podemos estudar sem ter um objectivo. Senão, para onde vamos? Não se sabe! Se não
temos objectivos a vida não faz sentido, é sempre preciso ter um objectivo. (R., bac pro 2 contabili-
dade, E201)
[P.: O que é que é importante?] Fazer algo que está em ti, que te agrada, que faz sentido. É isso. Eu
nunca decidi o que queria fazer (…) Continuo a interrogar-me até hoje (…) Eu sou um extraterrestre.
(Mohamed abandonou um BEP2 vendas há quatro anos e trabalha na área da animação – E153)

Quem sou eu, para onde vou, o que é que quero? Frequentemente, são estas as pergun-
tas que o aluno, subitamente, se coloca – de forma mais ou menos explícita. Ele coloca-as
fazendo referência à sua história, por vezes à sua origem, à sua família, aos seus amigos,
mas também em referência aos estudos e ao liceu profissional: o que é que sou capaz de
aprender, o que é que quero aprender, o que é que me interessa? A resposta à questão
básica (o que faço aqui no liceu profissional?) apresenta uma dimensão identitária e uma
dimensão epistémica. Estas duas dimensões nunca podem ser completamente dissociadas
uma da outra, mas pode colocar-se o problema da relação com o saber a partir de uma
abordagem mais identitária ou de uma abordagem mais epistémica. É o que vamos fazer
nos capítulos seguintes.

184

CAP. 10
TORNAR-SE ALGUÉM

Quem sou eu, eu que frequento um liceu profissional, que tenho que obter os diplomas e
aprender coisas? Quem sou eu no campo do saber e da escola?
Os jovens escolarizados no liceu profissional são indivíduos dominados, a diversos
títulos. Eles sofreram e sofrem os efeitos do esmagamento simbólico que, cumulativa-
mente, significam que eles não têm valor, que não são nada, nem ninguém. Mas qualquer
ser humano, por mais dominado que seja, permanece um sujeito. Ora, o sujeito é desejo
e esse desejo, embora vise o objecto ou o outro, ainda é um desejo de si (Charlot, 1997).
Estes jovens podem certamente resignar-se à força das coisas e lidar da melhor forma que
conseguem (violência, raiva, droga…) com o insuportável sofrimento psíquico depois de
se admitir que não se é ninguém. Mas esta demissão de si não pode ser adquirida de uma
vez para sempre, ela deve estar em constante reprodução: a subjectividade é inalienável, o
desejo de ser alguém nunca pode esmorecer completamente e o famoso “clique”, do qual
os jovens falam com frequência, continua a ser possível.
A dominação por um lado, o desejo por outro: dois processos, duas forças antago-
nistas que elaboram a história dos sujeitos – e originam, ao longo dos tempos, histórias
singulares132. O saber, de forma mais geral a “aprendizagem”, podem ser instrumentos de
dominação, podem ser também instrumentos de desejo – até mesmo objectos de desejo,
mas reside aí um outro problema, sobre o qual me debruçarei num capítulo ulterior.

1. Samira: quando noutro lugar as coisas não são como se pensa…

A construção de si, entre dominação e desejo, ou mais precisamente na dominação e no


desejo, é um assunto eminentemente singular. Já encontrámos, ao longo das citações, vá-
rios casos que testemunham a dominação sentida por estes jovens, a sua consciência dos
factos e por vezes a articulação dos processos de dominação e de desejo. Relembremo-
‑nos de Yoan, filho de porteiro no bairro social, que “não se imagina” no futuro. Ou ainda
de Majis, pendurado no cabide pelo seu professor, que ainda por cima humilha o seu pai.
Ou Sabri, imigrante em França e imigrante na Argélia e que, independentemente do lado
do Mediterrâneo onde se encontra, se não estiver satisfeito, é convidado a voltar para a
outra margem. Ou esta aluna que explica: “Levas a tua mãe para falar com o prof., ele

Aliás, isto também é verdade para os dominantes (e os seus filhos) e não só para os dominados.
132
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

enrola-a, mais uma árabe que é enganada”. Contudo, esta é uma história que constitui o
sujeito enquanto ser singular e começarei por isso por apresentar, sem grande pormenores,
uma história que demonstra em que medida é que a articulação dos processos de domina-
ção e da dinâmica do desejo contribuem para dar uma forma à relação com o saber e com
a escola.
Samira, 19 anos, frequenta o segundo ano de BEP indústrias químicas (E60). Boa
aluna na escola primária e no 6e e 5e, ela decai no 4e e reprova no 3e. Mas ela frequenta a
melhor escola da cidade, alcunhada de “escola dos betos”, e é aceite no Seconde no Liceu
Paul Éluard de Saint-Denis. Mas, paralelamente, ela é seleccionada pelo concurso da Es-
cola Nacional de Química (CENC), em Paris. “Estava tão contente, era a ENC, com uma
grande reputação. Era… estava mesmo contente e ainda por cima vinda dos subúrbios…
para mim era… tu sabes, faz muito bem poder dizer: ando numa escola em Paris.”
Ela faz o seu Seconde na ENC, é boa a Química, mas, segundo ela, tem problemas
de disciplina. Ela é então reorientada para o BEP, num liceu parisiense, onde se encontra
actualmente e é boa aluna.

Fui orientada para o BEP, foi completamente degradante. Passar de um Seconde para um BEP para
mim era vergonhoso. (…) Ainda por cima no BEP estuda-se química industrial, é para quem usa fato-
‑macaco. Para mim o fato-macaco é ainda mais degradante do que qualquer outra coisa, pelo menos
era no início. E no final de contas, não, pelo contrário, não me arrependo nada de ter passado por
isto.

Ao passar de uma escola de Seine-Saint Denis para uma prestigiada escola parisiense,
Samira transpõe a fronteira de classe que sonhava atravessar mas a experiência é para ela
insuportável. O seu grande, e ao que parece constante, desejo é deixar o subúrbio.

Não quero, é horrível o que eu vou dizer, não quero ter a mesma vida que os meus pais. Não quero,
não quero viver num bairro social, estou farta. Não quero, passei toda a minha vida no bairro. E não
quero que os meus filhos vivam num bairro social. Não quero que vivam o mesmo que eu e o mes-
mo que os meus irmãos. Não quero, porque eu talvez me tenha safado mais ou menos mas talvez os
meus filhos não se safem (…) Todas as asneiras que aprendes é na escola que as aprendes. E eu não
quero, evidentemente, que eles frequentem uma escola de subúrbio, eu não quero que eles cresçam
num bairro social. Para isso é preciso que eu saia daqui, e para sair é preciso apesar de tudo ter um
determinado salário.
Já viste o estado em que está o liceu ou o collège! Não é nada, não há nada e nós… não nada, nada
de nada. Tenho impressão que tudo se faz para os bons liceus, os liceus parisienses, digo os liceus
parisienses mas não é nada assim. Como te dizia há bocado, em alguns bairros, os XVIII, XX133, eu
ponho-os no mesmo saco que o subúrbio, é exactamente a mesma coisa (…) Tens apesar de tudo mais
vontade de estudar numa escola que é limpa, que é bem cuidada.

NT: A aluna faz referência aos arrondissements (arrabaldes) de Paris que ficam no limite periférico da
133

cidade.
186
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Se existem delinquentes, é o Estado que os cria, eles não fazem nada para que seja de outra forma. Por-
que um jovem… repara, um jovem que tem problemas sociais, que não pode receber uma determinada
educação dos seus pais – acontece e acontece talvez com muita frequência – se a escola por seu lado
não proporciona uma educação digna, como é que queres que esta criança tenha educação? É isso, é
uma criança que vai cair completamente na delinquência se não tiver uma determinada personalidade…
E eu penso que a escola, sobretudo no subúrbio, desempenha um papel importante, muito importante e
nós não nos apoiamos o suficiente na escola, não há nada que esteja construído nesse campo.
Eu sou muito ambiciosa, tenho determinadas ideias, tenho vontade de determinadas coisas. A primeira
vontade é sair, sair do subúrbio. Gostaria de sair daqui, apesar de ter crescido aqui, em relação à minha
vida futura, a dos meus filhos, gostaria de sair. Pessoalmente, eu penso que o meu sucesso escolar
representa a única forma de me safar (…) de me safar, de… de todo este inferno, é… é… hoje em dia,
se não tiveres diplomas, encontrar trabalho não é fácil. Por isso, a única forma é, é… quando moras
nos subúrbios, bem eu sou uma rapariga, por isso não é a mesma coisa… Para os rapazes, ou é a escola
ou vendes, vendes ponto final e pessoalmente eu prefiro a escola a qualquer outra coisa.

Para Samira, o bairro, e de forma mais global o subúrbio, é o símbolo em si mesmo da


dominação e da degradação e a escola de subúrbio está associada a este universo da degra-
dação. Por um lado, numa escola de subúrbio não há nada (porque não se é ninguém). O
que diminui duplamente as hipóteses de êxito: as condições de trabalho não são boas; tem-
‑se menos vontade de estudar numa escola que não é cuidada. Por outro lado, as asneiras,
é na escola que se aprendem.
Com quem podemos contar para sair deste universo da dominação e da degradação?
Com a escola e unicamente com a escola! Por um lado, a escola, “sobretudo no subúrbio”,
desempenha um papel importante. A escola de subúrbio, que aliás ela descreve, é classi-
ficada como tábua de salvação… Por outro lado, é preciso ter boas notas nesta escola de
subúrbio se se quer que os seus filhos não frequentem uma escola de subúrbio. Para viver
normalmente é preciso um salário, logo um emprego, logo um diploma: logo, o sucesso
escolar “é a única forma de se safar”. Para uma rapariga em todo o caso, já que para um
rapaz existe outra opção: “vender” (droga, claro está).
É bem visível, aqui, o quanto a escola é detestável enquanto escola “de subúrbio” –
parte de um universo degradado que contribui para a reprodução da degradação (como
diria Samira, se ela fosse socióloga…) – e o quanto é respeitável, apetecível e desejada
enquanto única hipótese de escapar a este universo degradado. Ela é simultaneamente de-
testável e apetecível. O que fará pender a balança para um lado e para o outro? As práticas
da instituição, dos professores e dos próprios alunos – e os efeitos destas práticas. Para al-
guns alunos, a escola tornou-se sinónimo de fracasso, de desprezo, até mesmo de racismo,
ela simboliza o auge da degradação: esta atinge a instituição, que oferece a única hipótese
de escapar à degradação. A escola é então o alvo da chacota, da provocação, da violência.
Os alunos que sentem que têm de se desenrascar são mais ambivalentes. Por um lado,
eles endereçam à escola elogios por vezes ditirâmbicos. Por outro lado, eles criticam-na,

187
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

como o faz Samira, porque ela falha no que toca a salvar a maioria dos jovens. (“Não nos
apoiamos o suficiente na escola, não há nada que esteja construído nesse campo”), antes
pelo contrário, porque ela acolhe a “escumalha” (que coloca em perigo o êxito daqueles
que trabalham e que mancha a reputação do liceu profissional). Muitos collèges e liceus
profissionais, particularmente “nos subúrbios”, e alguns liceus gerais e tecnológicos, vi-
vem assim “no fio da navalha”, objecto de hostilidade e de chacota para alguns, objecto de
esperança para outros, objecto simultaneamente de hostilidade e esperança para muitos. O
destino efectivo destes estabelecimentos depende da sua capacidade em não reproduzir no
campo da escola, no campo da turma, no campo das aprendizagens, os comportamentos de
dominação desdenhosos que vitimizam os jovens no campo social mais vasto.
Nas próprias ambivalências do seu discurso sobre a escola, Samira representa muito
bem os alunos de liceu profissional. Mas além disso ela passou por uma experiência que
poucos alunos viveram: aquilo que os alunos devem poder fazer mais tarde se tudo correr
bem, ela fê-lo sozinha: ao saltar, de alguma forma, uma geração, ela deixou “a escola de
subúrbio” para entrar numa prestigiada escola parisiense. Para já, na sua mente, ela já não
morava totalmente no seu bairro (onde vivia “como um fantasma”). Ela acreditou que
tinha ultrapassado a fronteira ao entrar na ENC, mas ela encontrou aí a dominação, social
e étnica. Embora a escola de subúrbio seja ambivalente, a escola parisiense também o é: é
a escola dos outros, desejável para mim tal como sou mas que me rejeita precisamente na
medida em que eu não faço parte dos outros.

No meu bairro, fui alcunhada de fantasma… Há pessoas, francamente, que moram no bairro que nem
sequer sabem que eu moro no bairro (…) Andei lá na escola, por isso conheço muita gente (…) mas
não procuro conhecer outras pessoas, procuro outras coisas, estou farta (…) Eu gostaria que os meus
filhos crescessem numa cidade pequena.
No Seconde tive que fazer muito esforço, era horrível, já nem respirava, tinha a impressão, sabes
havia fins-de-semana em que o trabalho que tinhas para fazer era tanto que passavas o fim-de-semana
a estudar era… era horrível. E eu não estava habituada (…) Eu que vinha de uma escola de subúrbio,
quando cheguei levei um estalo. Mas hum... a maioria dos alunos da minha turma eram alunos saídos
de escolas privadas (…) Não conhecia metade do programa, nunca tinha visto. Havia muita coisa que
tinha em atraso.
[Se tivesse ido para o Paul Éluard (liceu de Saint-Denis) as coisas tinham sido de outra forma] No
Paul Éluard não sou rotulada, estou no meu meio, sinto-me bem no meio de toda a gente. Não sou um
alvo como era na ENC. Na ENC era hum… era, eu passava, era, reparavam logo em mim. Há muito
poucos estrangeiros na ENC (…) No máximo devem ser uns vinte.

Samira passou pela experiência brutal de ver que a dominação não é uma questão
de território mas também, e em primeiro lugar, uma questão de desigualdade social e
de discriminação étnica. Ela viveu-a directamente, enquanto sujeito, no mais profun-
do do seu ser: “já nem respirava”, “levei um estalo”. A dominação, a desigualdade, a
discriminação imprimem as suas marcas sobre os sujeitos e deixam sinais – e esses
188
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

sinais deixados pelos processos sociais podem ser lidos pelo psicólogo mas também
pelo sociólogo.
Samira poderia ter desistido por causa deste revés. E quase desistiu: “Para mim, o
BEP era completamente degradante, passar de um Seconde para um BEP para mim era
vergonhoso”. Samira vai “desenrascar-se” de outra forma, e isso não passa pela fuga
para os bairros bons: mas sim pela mobilização para obter o seu BEP e continuar os
estudos. Ela apropria-se das razões para estudar na escola, que já não estão ligadas, ou
já não estão só ligadas, aos pais e às relações com os professores, mas assentam numa
inquietude de si e do seu futuro – mais do que em “um projecto” no sentido estrito do
termo.

Agora, cheguei a uma outra fase. Acho que pessoalmente eu estudo mais para mim própria. Embora
com alguns professores não seja assim, tento contudo fazer o esforço e estudar para mim própria. (…)
Agora tenho uma motivação pessoal, uma motivação para me desenrascar. Eu estudo, mas estudo
para mim (…). E estas motivações pessoais passam por ter os meus diplomas, conseguir o meu bac,
conseguir o máximo que posso obter. E agora é pessoal, ao chegar a uma determinada idade tomas
consciência de certas coisas. Começou durante o bac, comecei a ver as coisas de outra forma, a saber
realmente o que queria e que talvez fosse necessário parar de estudar só porque os profs. mandavam,
embora não seja fácil.

Segundo um processo já sublinhado no capítulo anterior, Samira reapropria-se igual-


mente das falhas da sua história passada e coloca-as ao serviço da sua história presente
e futura: “Sou uma excelente aluna. (…) Por ter frequentado o Seconde tenho um nível
acima”.
De notar na história de Samira algumas referências e processos identitários: o “fato de
macaco” degradante, o facto de uma “miúda” só ir à escola como forma de se desenrascar,
a identificação de si enquanto estrangeira, o desejo de sair do bairro para se safar e de
se safar para sair do bairro, a importância atribuída à educação dos seus futuros filhos…
Também é visível em que medida funcionam as referências identitárias numa história, sem
que nunca se possa conferir-lhes um significado automático. A identidade é um conjunto
de características ligadas a uma posição, a uma pertença e por isso também é o conjunto
das relações que definem esta posição, esta pertença. Mas quando se conhece uma posição
ou uma pertença não quer dizer que se conheça o sujeito que ocupa esta posição ou que
pertence a esse grupo (Charlot, 1997). Fica por saber o que ele faz do traço identitário que
assim lhe é proposto: apropriar-se dele, assumi-lo, rejeitá-lo, enganar-se sobre ele… Os
jovens dos liceus profissionais carregam marcas identitárias que, em termos de probabili-
dade, não facilitam muito o seu êxito na escola; mas na história de um sujeito o resultado
destas marcas pode inverter-se e elas podem tornar-se fonte de mobilização escolar. É a
esta questão da dominação e à forma como o sujeito lida com ela a que nos vamos agora
agarrar.

189
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

2. As formas da dominação – e a sua ambivalência

Sobre este ponto, os dados recolhidos confirmam a tese sustentada por François Dubet
em La Galère: os jovens referem-se à dominação que vivem não como um estatuto de
operário mas como pertença a um bairro134. Acontece, sem dúvida, que o discurso vai de
encontro à questão laboral. Pode mesmo acontecer que a pertença à classe operária seja
um princípio de estruturação do mundo e dos saberes: “Não aprendes a ser pintor da cons-
trução civil ou cabeleireira num liceu normal e não estudas filosofia no LP. Mas, enfim, a
filosofia não serve de muito na vida, fico mais descansado. Eles são uns intelectuais, nós
somos operários acho que é evidente” (R., BEP1 pintura construção civil, E55). Mas, para
além desta citação, a referência a uma classe operária é rara, ela funciona mais como prin-
cípio de reconhecimento de um lugar sobre um eixo vertical (o operário está em baixo) do
que como identificação de saberes, de valores ou de um destino colectivo135. “Operário”
não remete para traços identitários desejáveis, que poderiam sustentar uma mobilização
escolar, mas para um lugar social desvalorizado – de forma que a mobilização escolar só
se pode apoiar naquilo que permite escapar a esse estatuto de operário (“subir”). Por vezes
ouvem-se mesmo declarações completamente violentas:

Eu prefiro o lugar de chefe. Para já temos uma situação melhor e, como é que me posso explicar?
Temos mais responsabilidades que um gajo que trabalha nas obras. Ter responsabilidades é melhor
do que estar sob as ordens de alguém. Talvez tenhamos problemas mas acho que é melhor ter res-
ponsabilidades (…) É assim que se aprende. Quanto mais coisas tivermos à nossa responsabilidade,
quanto mais estaleiros tivermos, mais tentamos trabalhar para poder melhorar ainda mais os dossiers.
Procura-se sempre melhorar. Ao operário é-lhe dito para fazer uma coisa e ele faz, ponto final. En-
quanto o chefe ainda vai tentar melhorar (…) Uma empresa é como se fosse a nossa segunda casa, isto
é, vive-se em família, como se de uma grande família se tratasse. Se há um que não está de acordo é
mau para toda a empresa. Tem que se contentar com o que tem agora. (R., BEP2 ORSU, E33)

Para estes jovens, a dominação social não é simbolizada pela classe operária mas pelo
bairro.

[Enquanto que o collège era no bairro, o LP é mais distante.] Aqui fugimos um bocadinho, é verdade,
deixas a realidade do subúrbio da droga [risos], da droga, da delinquência, dos bófias e tudo isso, dos
controlos de identidade. Aqui descobre-se um novo mundo e tentamos integrar-nos a pouco e pouco
[risos] (…) Ganhar um pouco de terreno para conhecer as pessoas, para conhecer os alunos, os cama-
radas e tudo isso. Porque até aos 14 anos, até mesmo 16, estávamos sempre com as mesmas pessoas,
os vizinhos, os gajos do bairro [risos], os gajos do bairro e isso tudo e é só. Aqui comecei a conhecer
outras pessoas. (R., bac pro 1 informática contabilidade, E118)

134
O que não significa por isso (bem pelo contrário) que eles funcionem doravante numa lógica horizontal
e já não numa lógica vertical. Eles querem “subir”.
135
Aliás, o aluno que acaba de ser citado quer ser… professor de karaté.
190
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

[Naoëlle queria ser modelo, ela fez castings, mas será que se consegue ser modelo quando se mora
num bairro social?] Acha que a Cindy Crawford vem de um bairro social? A maioria das modelos
vêm de, de… Já conheceu alguma modelo que tivesse vindo de um bairro social?... Nunca. (Ra., 4e
technologique costura, E131)

A dominação advém do facto de se estar preso ao bairro, encerrado com o Mesmo, um


Mesmo que os afunda e contagia e que confere reputação ao bairro. Contudo, o processo
pode inverter-se: quando se anda na escola com uma grande maioria de jovens oriundos
de bairros sociais, os professores explicam melhor.

Não há problema, se não percebeste qualquer coisa podes voltar atrás, coisas assim, ele voltará a
explicar-te (…) São sobretudo os profs. que estão há mais tempo nos liceus profissionais que conhe-
cem a situação porque eles tiveram muitos alunos vindos dos subúrbios e dos bairros, por isso são
mais pacientes. (R., 3T, E139)

Depois do sentimento de pertença ao bairro social, é o seu estatuto de imigrantes e de filhos


de imigrantes que faz com que estes jovens sejam objecto de dominação. Poderia alinhar aqui
páginas de testemunhos sobre o racismo vivido por estes jovens no dia-a-dia no universo esco-
lar. Limitemo-nos a algumas citações, que fazem surgir os principais processos.
Em primeiro lugar existe o racismo dos alunos e dos professores, dos quais estes jo-
vens foram vítimas por vezes muito cedo:

Na escola primária as coisas correram mal (…) Porque, na realidade, a prof. era racista. Bem, ela não
gostava de mim e ela também não gostava do meu colega preferido, um pobre negro e era assim: ela
batia-nos, ela punha-nos contra a parede todos os dias. (Ra., 3e technologique, de origem portuguesa,
E200)

Mas no liceu profissional, as coisas correm um pouco melhor do que antes: enquanto
Karine, congolesa, era a única negra da sua turma de 6e em Lille, hoje em dia na sua turma
actual ela está completamente dentro da norma:

A adaptação ao liceu correu bem porque, para já, na turma, os negros, estou contente porque somos
seis e damo-nos bem e com os professores também. (bac pro 2 informática secretariado, E121)

Em seguida coloca-se o problema dos estágios. A Sandrine não fez um estágio na


turma de BEP:

desde o início que nos disseram que… que não haveria estágio porque tiveram muitos problemas com
as empresas que, na realidade, aceitavam os alunos mas depois de os seleccionarem (…) Do género,
eles aceitam um aluno… sim… bem… em função da sua cor, da sua raça.

Malika desistiu de ser cabeleireira no dia em que o patrão exigiu que ela alterasse o
seu nome para Sophie.
191
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Quando me apresentei para a entrevista, hum, o olhar frio, eles não estavam à espera de ver uma arge-
lina e senti-me mesmo subestimada e disse a mim mesma que o lugar não era para mim. Eu vi-os todos
vestidos de branco, loiros, hum, e eu tinha a pele mate, era morena, por isso aquilo não era para mim.
Lembro-me de ter ido a outra entrevista e disseram-me: sim, eu aceito-a mas para isso tem que mudar
o nome para Sophie. Ofendeu-me tanto, fui-me embora e disse a mim mesma: nunca mais, tenho que
desistir de ser cabeleireira. Foi o que, de facto, me amargurou no mundo do cabeleireiro. (…) Para
mim era um insulto ter de me chamar Sophie. (Ra., acaba de concluir um BEP2 secretariado, E163)

Estes jovens que se deparam com o racismo quando procuram uma oportunidade de
estágio ou de aprendizagem são muito pessimistas em relação às suas hipóteses de encon-
trar um emprego, mesmo que consigam acabar os estudos e obter o diploma. Eles têm a
sensação que a principal qualificação para aceder ao emprego, antes do diploma, reside na
nacionalidade – e a nacionalidade, eles sabem-no bem, tem mais a ver com a cor da pele
do que com o bilhete de identidade. A partir de então, de que serve estudar quando se tem
a pele escura ou negra? Este processo foi identificado por John Ogbu sob o nome de job
ceiling (o tecto para o emprego) nas suas investigações sobre os jovens negros america-
nos: para quê estudar, já que de qualquer forma, quando se é negro, se está privado dos
benefícios sociais do êxito escolar (Ogbu, 1974)?

Então aí, no trabalho, ainda foi mais difícil, sobretudo para mim que nasci na Argélia. Para já o que
eles querem é que sejas francês, é a primeira coisa que eles perguntam. (R., BEP2 manutenção de
sistemas mecânicos de produção, E20)
[Os estudos, o LP?] Espero que me traga alguma coisa, mas sinceramente sou muito pessimista, acho
que não… Para uma vaga de contabilista, uma cena assim, acredito apesar de tudo, estás a ver, acredi-
to mas, hum, acho que não é… Porque estás a ver, eu chamo-me Mohamed, percebes, Mohamed é o
nome mais comum (…) Eu não tenho direito a deixar crescer a barba, já viste isto, é incrível. (R., bac
pro 1 informática contabilidade, E118)

O racismo que grassa nos estabelecimentos escolares não significa apenas uma inter-
pretação errónea das dificuldades escolares de alguns jovens (interpretação em termos
étnicos) significa também uma das causas destas dificuldades: ele torna a mobilização
escolar dos jovens mais difícil, ao complicar as suas relações com os professores e ao di-
minuir as suas esperanças de ver um bom aproveitamento escolar recompensado por “uma
boa profissão”. Contudo, mais uma vez seria um erro deixar-se levar por um raciocínio
automático. Aqui, também acontece que os processos de dominação que, em princípio,
contribuem para criar o fracasso funcionem para alguns indivíduos como causas de mo-
bilização. A dominação, a partir do momento em que não é só uma relação de força bruta,
origina os seus efeitos através da forma como o indivíduo a compreende e a elabora – atra-
vés da forma como ele se apropria de uma relação social conferindo-lhe um significado
pessoal. Existem respostas activas face à dominação que induzem à mobilização para a
escola e na escola.

192
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Eu sou de qualquer modo obrigado a ir às aulas porque para os pobres dos brancos é difícil encontrar
trabalho, então para nós, gente de cor, é ainda mais difícil. (R., BEP1 electrotecnia, E40)
Eu acho que, precisamente, é preciso mostrar às pessoas que somos melhores que os outros porque
para já não estamos no nosso país, por isso é preciso fazer ver às pessoas que não somos estúpidos,
que podemos ir longe (…) Eu sou crente, eu agora sou praticante, de qualquer maneira são as minhas
raízes, não se podem renegar, é assim. Então, tenho a sorte de querer desenrascar-me. (R., BEP2 me-
cânica automóvel, E50)
Como o meu nome indica eu não sou francês e diz-se “os árabes, delinquentes, preguiçosos e todo o
blá, blá, blá” e eu quero transmitir uma outra imagem de marca. (R., bac pro 1 carpintaria, E105)

Para além do bairro social, do estatuto de imigrante, o sexo, e em particular o facto de


se ser uma rapariga, constitui igualmente uma referência identitária importante na relação
destes jovens com o saber, com a escola, com o liceu profissional.
Em primeiro lugar, coloca-se a questão de saber se uma rapariga vai trabalhar ou se
será dona de casa. É evidente, para a imensa maioria destas liceais, que o estatuto de dona
de casa com filhos, e geralmente o de uma mulher dependente, está associado ao insucesso
escolar. Num plano consciente, esta ideia arrasta inegavelmente a mobilização; mas pode
acontecer que por vezes seja o contrário no plano inconsciente.

[Virginie] Para já acho que por parte do liceu aquelas que não querem fazer nada deviam ser
expulsas porque somos nós que sofremos, e eu vejo as coisas assim, somos nós que sofremos
as consequências. [P.: E o que é que elas vão fazer?] [Sandra]. Donas de casa. (BEP2 materiais
flexíveis, E2)
E se eu não conseguir o BEP este ano eu não sei o que será de mim, os meus pais vão de certeza
querer casar-me (…) Eu quero recuperar e assegurar o meu futuro profissional. Enquanto se me
casar vou ficar em casa a educar os meus filhos e a chorar o meu destino. (Ra., BEP2 secretariado,
E96)
Eu não me quero casar quero desenrascar-me sozinha (…) Eu, mesmo que esteja com um tipo quero
ser independente a nível financeiro, evita problemas estás a ver (…) É como o meu pai, estás a ver, ele
grita com a minha mãe quando ela lhe pede dinheiro para as compras, estás a ver, e isso enerva-me, é
por isso que é muito importante acabar a escola. (Ra., BEP2 contabilidade, E188)

Em seguida, coloca-se o problema da escolha da especialidade. Existem especiali-


dades e profissões rotuladas como masculinas e outras como femininas. Como é que se
lida com este facto quando se é uma adolescente ou uma jovem adulta levada a escolher
este ou aquele ramo de um LP? A questão do significado e do valor da feminilidade
encontra-se aqui em discussão. Há umas que rejubilam por serem desta forma um pouco
mais mulheres e outras que o lastimam. Também há aquelas, nomeadamente de origem
imigrante, que devem negociar com os seus pais um ofício feminino decente. Alguns
pais são apologistas da aprendizagem da costura; as suas filhas não vão na conversa,
elas sabem que isso significa um plano para as casar e não para as deixar aceder a um

193
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

emprego. Muitos pais preferem que as filhas sejam enfermeiras em vez de cabeleireiras
ou até secretárias.

Em hotelaria, eles prestam muita atenção (…) Para começar as calças de ganga são proibidas no LP,
somos obrigadas a ser um pouco mais femininas. (BEP1, E172)
[No 4º ano] Já não me interessava, preferia divertir-me com os colegas e os rapazes [risos]. [O secre-
tariado] É essencialmente uma profissão para mulheres, onde existe muita coscuvilhice, é bastante
repetitivo: telefone, dactilografia, marcar reuniões… e rapidamente é sempre o mesmo rame-rame, os
mesmos mexericos. (BEP1, E194)
Eu escolhi a secção de secretariado, fui eu que escolhi! (…) Os meus pais disseram-me: de preferência
enfermeira, educadora, auxiliar de enfermagem, mas eu pensei para mim mesma: não, não vou por aí
[riso vigoroso], não tenho vontade nenhuma! Debrucei-me para o outro lado (…) Eu gosto dos núme-
ros, eu queria ser secretária ou qualquer coisa do género. (BEP2, E97)

Por vezes, uma rapariga escolhe uma secção “masculina” (aqui parece legítimo falar
de escolha.) Muitas destas jovens raparigas têm a intenção de exercer uma profissão de
nuance “feminina” no sector profissional “masculino” que escolheram. “O bac pro não é
para arranjar carros, é para trabalhar na recepção. Eles disseram-me que era para informar
os clientes” (Ra., bac pro 1 mecânica automóvel, E18). Mas paralelamente a estas jovens
que assumem um compromisso pela força das coisas e dos estereótipos existem nas sec-
ções “de rapazes” feministas militantes. Também aqui, a dominação passa a ser uma causa
de mobilização e de sucesso escolar: estas raparigas não podem dar-se ao luxo de falhar
porque assim permitiriam que os outros pensassem que uma rapariga não consegue ser
bem sucedida numa secção de rapazes. Fixemo-nos um pouco no caso de Barbara, aluna
de 2º ano de BEP electrónica (E167). Na sua família, Barbara é muito próxima do seu pai,
enquanto o seu irmão é próximo da mãe. Ela gosta das actividades “de rapaz” – aliás, ela
jogou futebol num clube.

A minha mãe deixa-me arranjar tudo o que eu quiser em casa. Eu e o meu pai fazemos montes de coi-
sas. [Já quando era pequena ela desmontava o seu walkman] queria saber o que é que havia lá dentro
(…) [a diferença é que agora ela consegue voltar a montá-lo…] Sinto-me melhor com os rapazes do
que com as raparigas (…) No subúrbio, mais vale estar com amigos rapazes do que com raparigas
(…) Isto também me transmite uma segurança. Se houver um problema eles estão sempre lá para me
proteger (…) Gosto mais das conversas dos rapazes do que as das raparigas.

A Barbara tem uma concepção enérgica do seu papel de rapariga numa turma de rapa-
zes, ela defende activamente a ideia de que uma rapariga não é inferior a um rapaz. Aliás,
ela é delegada de turma, quando precisamente é a única rapariga desta turma.

Há muita gente que diz “Oh, uma rapariga, o que é que ela está aqui a fazer?” e eu detesto isso e
por isso mandou-os à merda [risos] (…) Eu respondo-lhes “Nunca viste? Por quem te tomas? Não é
porque sou uma rapariga que sou inferior e por aí fora” (…) [Delegada de turma?] Para já, isso serviu
194
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

para que me respeitassem, para que deixassem de me ver como uma merda [risos] em relação aos
rapazes. Aqui, nos subúrbios, é muito útil. As colegas são inferiores e se há um problema cabe sempre
às raparigas ir mediar as coisas com os profs., coisas assim, todas as sacanices [P.: E tu não o fazes?]
Não, eu ralho com eles, faço como eles (…) Eu cresci com rapazes, isso ensinou-me a falar, a não ter
medo deles.

A Barbara também prossegue a sua luta na vida privada. Não só é muito prudente do
ponto de vista namorado (“Eu não quero depender de ninguém, quero depender de mim
própria, eu não quero estar com alguém que se acha superior a mim”), mas além disso
ela deu-se conta, durante o 3e technologique, que já não pensava nos estudos mas só no seu
namorado e decidiu que, agora, os namorados só “durante as férias, fora do período es-
colar”. Ela dá prioridade absoluta aos estudos: “Estudo mais para mostrar que estou aqui,
que existo, que não é pelo facto de ser uma rapariga que não sou capaz de fazer isto e eles
perceberam”. Estudar mais na escola porque se está escolarizado numa secção de rapazes
mas também, como explica Nivette, porque é ainda mais difícil encontrar trabalho num
sector masculino quando se é mulher: “O trabalho significa ter um salário, trabalha-se
para não se estar desempregado (…) eu sou uma mulher, é ainda mais difícil” (bac pro 1
mecânica automóvel, E18).
A dominação pode também desencadear, por reacção, a fantasia, o desejo, a vontade
(dependendo do indivíduo) de exercer uma profissão de autoridade, essencialmente na
polícia ou no exército (e nos rapazes, na GNR). Não só se assegura, desta forma, um em-
prego estável mas, para além disso, pode-se dar ordens. É válido para os rapazes e para as
raparigas mas para estas últimas significa vingarem-se não só de uma dominação social
e por vezes “étnica” mas também de uma dominação sexual. Na condição de terem de
arriscar, o que não é assim tão fácil.

Para já eu queria enveredar pelo exército, enviei uma carta e depois enviaram-me uma carta para eu
me apresentar e depois não tive coragem de falar disso com o meu pai (…) [P.: Porquê o exército?]
Porque é uma profissão de homem e eu gosto quando as mulheres tentam chegar ao mesmo nível que
os homens, gosto, também existe a polícia, inspector de polícia interessa-me muito. [P.: Pelas mesmas
razões?] Sim, e depois porque apesar de tudo eles mandam nos polícias, eles andam por todo o lado,
têm direitos, têm prioridades, é assim “eu sou da polícia, tu estás calado”, é porreiro, eu gosto. (San-
dra, BEP2 materiais flexíveis, E1)

Finalmente, a pertença sexual inscreve-se no quotidiano da turma, no quotidiano das


relações com os outros alunos e com os professores, no próprio quotidiano das reacções
em relação ao ensino que se recebe.

Para começar somos uma turma de raparigas e é difícil porque não nos damos bem (…) Bem, é preciso
que se diga que o prof. tem vergonha porque somos uma turma de raparigas, 35 raparigas e um rapaz.
O prof. tem vergonha, sente-se embaraçado de dar aulas a uma turma de raparigas. Toda a gente diz

195
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

isso e vê-se, não é só comigo, quando uma rapariga lhe coloca uma pergunta, não sei, ele fica emba-
raçado. Quando é o rapaz, ele fica hum… (Ra., BEP2 sanitário e social, E204)
O ambiente da turma impede-me de estudar (…). Há uma boa dezena de raparigas que na realidade
provocam um estardalhaço. São só raparigas já que os rapazes quase nunca estão lá, estão sempre a
faltar. (Ra., BEP1 vendas, E173)
Eu gosto de Economia Familiar e Social, interessa-me, trata sobretudo da mulher, isso agrada-me
muito e aprendi montes de coisas (…) como é que se pode engravidar, o que é que não se pode tomar,
que uma mulher grávida não deve usar saltos altos porque não é bom para a coluna vertebral. (Ra.,
BEP2 materiais flexíveis, E8)

Estamos perante um sujeito sexuado que frequenta a escola, que tem uma relação com
o saber e com a aprendizagem.
A pertença ao bairro, a origem imigrante, o sexo: são estes os três principais mar-
cadores identitários da relação com o saber que emergem da análise das entrevistas;
são estas também as três causas identitárias da dominação. Acrescenta-se aí uma quarta
causa, que não é de natureza identitária (embora pese mais ou menos sobre os indiví-
duos segundo a sua identidade): a “crise”, vertente “desemprego” e vertente “moder-
nização”.
A opinião corrente (a dos jornalistas, mas também a de muitos professores) é que o
desemprego é fonte de desmobilização escolar e logo de insucesso. Os dados recolhidos
levam a moderar e complexificar esta ideia sumária: o desemprego é simultaneamente
fonte de desmobilização e de mobilização e esta última parece mais forte do que a primei-
ra. O raciocínio geral, do qual encontraremos uma ilustração nas citações que se seguem,
pode ser resumido desta forma. Primeira proposta: de que serve estudar na escola, se de
qualquer forma, hoje em dia, mesmo com um BEP (ou com um bac) não se encontra
trabalho? Segunda proposta, que de uma vez só retira consequências da precedente e a
contradiz: então preciso no mínimo de um bac (ou de um BTS). Proposta complementar
à precedente: de qualquer forma, como não há trabalho lá fora, mais vale ficar o maior
tempo possível na escola.

Com um diploma temos dificilmente trabalho, mas sem ele nem vale a pena. (…) Tenho tanto medo do
desemprego, sobretudo porque a minha mãe já esteve desempregada, que me contento com qualquer
coisa. (Ra., BEP2 secretariado, E99)
Depois deste bac pro poderei chegar mais longe (…) Há alguns que têm medo, eles dizem que se
depois disto tudo ficar no desemprego terei lutado para nada. (…) Eles fizeram o melhor que conse-
guiram para não conseguir nada. (…) Mais vale não pensar (…). É melhor não pensar em nada porque
vejo todos os efeitos que isso tem: o stress. (R., BEP1 ORSF, E32)
Digo para mim próprio que se calhar estou a estudar para ficar desempregado, para não ter emprego
numa empresa, visto que há cada vez mais empresas que fecham. (…) e depois por outro lado penso
que se tenho os diplomas as empresas irão seleccionar-me e que, no final de contas, me servirá para
alguma coisa. (Ra., BEP1 contabilidade, E186)

196
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

[Depois do bac pro] continuo, o BTS. Sempre para ter mais. E para poder trabalhar. Neste momento
quanto mais diplomas tivermos mais trabalho encontraremos, apesar de tudo. Neste momento é difícil
encontrar trabalho, a crise (…) O desemprego não é agradável, estar no desemprego… Penso um
bocado nisso. Motiva-me um bocado para tentar ter um diploma, cada vez mais diplomas para tentar
não ficar desempregado. (R., bac pro 2 mecânica automóvel, E13)
Eu não vou encontrar trabalho, então se é para fazer formações de treta, trabalhar um mês ou dois aqui
e ali, é melhor ficar mais tempo na escola do que andar aí perdida. (Ra., BEP2 contabilidade, E75)

Não é só o desemprego que coloca problemas aos jovens, é também a modernização


dos meios de produção e de gestão. Alguns entoam um verdadeiro hino à modernização,
outros apresentam discursos que se podem qualificar como depressivos. A diferença está
relacionada, em parte, com o ofício que se estuda: a modernização ameaça aquele que ado-
ra fazer uns biscates num carro mas serve mais os interesses daquele que se especializa em
manutenção de sistemas. Contudo, o sector profissional não explica tudo: pode preferir-se
ser ajustador ou pelo contrário operador regulador de sistemas de fabricação (ORSF), tudo
depende da relação que se tem com as máquinas de controlo numérico. Eis aqui, sob forma
de citações, os principais argumentos, antagonistas, que estes jovens antecipam.

Para já para o operário é mais simples, digamos que não tem que estar constantemente na máquina,
sujam-se menos as mãos, é melhor, é preciso ser moderno (…) É muito mais rápido, faz-se muito mais
peças. É um bocado menos cansativo, a partir do momento em que o programa está feito depois é só
debitar. Só é preciso vigiar a máquina, mudar o bocado de sucata, é tudo (…). [P.: E o desemprego?]
(…) Quando me dizem que a culpa é das máquinas rio-me um bocado porque a máquina não nasceu
sozinha. (R., BEP2 ORSF E24)
[Com os controlos numéricos] as peças são mais bem-feitas (…) cansamo-nos menos.(…) Mas é me-
lhor trabalhar com as máquinas tradicionais (…). Somos nós próprios que fazemos as peças. Tiramos
as medidas, procuramos bem, fazemos muitas coisas, enquanto as modernas é o computador que faz,
escrevemos o programa, transmitimos à máquina (…). Já fiz mas não percebo nada, neste momento
é difícil. Tenho dificuldade em fazer (…). Vou aprender no final do ano, saberei fazer (…) Talvez
depois, quando tiver mais experiência, eu trabalharei com a máquina. (R., BEP2 ORSF, E31)
BEP contabilidade, porque não? Mas é preciso que nos sejam dadas razões para nos interessarmos
pela contabilidade (…). Em linhas gerais, trata-se de contas e relatórios. Com a modernização,
brevemente, já não vamos precisar de contabilistas já que haverá computadores que serão capazes
de fazer tudo (…). Tendo em conta o progresso da tecnologia e tudo o que está previsto inventarem,
estou bastante céptico no que diz respeito à evolução da contabilidade. (R., BEP1 contabilidade,
E81)

O desafio destes debates técnico-económicos é importante: será que vale a pena apren-
der isto ou não? Mas o que está também em causa é a própria identidade e o valor daquele
que aprende. De um lado, aqueles que se sentem desapossados quando é a máquina que
faz tudo, quando já não têm nada para fazer, quando no fundo já ninguém precisa deles,

197
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

quando mais uma vez não são ninguém. Do outro, aqueles que estão orgulhosos de serem
limpos, eficazes, ou mais ainda, evoluídos:

É uma profissão sempre em plena evolução. Também reside aqui um pouco da dificuldade da
nossa profissão. Acho que é muito bom. Quer dizer que não somos idiotas. É preciso estar seguro
de si para assumir isto tudo. (R., bac pro 2 manutenção de sistemas mecânicos automatizados,
E101)

O debate não é novo: ele já opunha, no início do século, os operários hábeis de mãos e
o metalúrgico, essa personagem que acabava de surgir em cena (Charlot & Figeat, 1985)
– e o que já estava em discussão era a dignidade do trabalhador.
A máquina é um dos objectos que articulam a questão da dominação e do saber. Um
outro objecto deste tipo surge com muita regularidade nas entrevistas destes jovens: a
linguagem. Poderia resumir-se a posição, aparentemente paradoxal, destes jovens pela
seguinte fórmula: eles adoram falar mas detestam as palavras. Entre amigos, dizem mui-
tas coisas sem saber do que se fala. Inversamente, o professor fala muito, e com muito
cuidado, mas não diz grande coisa. As duas citações seguintes exprimem bem as posições
antagonistas.

[Com] a minha melhor amiga (…) tudo o que fazemos, fazemos juntos (…) Conversamos. Já não
temos nada para dizer um ao outro mas estamos sempre a conversar. Nem sabemos de quê… deixamo-
‑nos ir assim… Contamos tudo um ao outro, é fantástico. (R., BEP2 vendas, E63)
Não é que a escola não seja importante, mas cansa-me (…). Eu estou mais cansado quando vou à escola
do que quando estou no estágio (…). O que mais me cansa e aborrece na escola é quando o prof. fala,
ele fala e não diz nada, é uma inactividade completa na aula (…) irrita-me tanto, se quiseres, ver alguém
dizer-te palavras [risos] que nunca ouviste na vida. (R., bac pro 2 carpintaria, E106)

Há muito tempo que se sabe que, para compreender como acontece o insucesso es-
colar, é preciso interessar-se de perto pela questão da linguagem. Há já algum tempo que
se sabe que estes jovens, em dificuldades com a língua quando estão na escola, gostam
de falar e brincar com a língua entre eles (Labov, 1978). Os dados recolhidos confirmam
que estes jovens adoram falar, inclusive de coisas sérias, quando falar significa uma troca
com os outros, sobre o mundo, segundo o processo experiência-explicitação analisado
anteriormente.

Bem, as mentalidades, não sei, eu diria que somos… hum… estamos mais crescidos, sim, um pouco
mais crescidos apesar de tudo (…). Falamos de forma muito mais séria do que no collège ou do que
no liceu geral eu acho [risinho] (…) Falamos muito mais da vida do que hum… sempre dos estudos,
estudos, estudos (…). Quando há cenas económicas, falamos disso tudo, por exemplo, houve agora
uma greve, o CIP136, falámos disso tudo, tentámos perceber em que é isso nos podia afectar, conversa-
mos sobre isso. (Ra., bac pro 2 informática secretariado, E121)

CIP: “contrato de inserção profissional”.


136

198
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Em contrapartida, os jovens de liceu profissional e, de forma mais geral, os jovens de


meios populares, têm horror à linguagem que funciona num processo de objectivação-
‑denominação. Para estes jovens a linguagem é apetecível quando permite trocar, com o
outro, experiências, emoções, comentários sobre o mundo e torna-se insuportável quando
esse mesmo mundo passa a ser só linguagem. Ora, o que a escola propõe, o que figura
no seio do seu funcionamento, o que constitui uma parte essencial da sua especificidade
é reproduzir o mundo através de palavras e introduzir os alunos em universos constituí-
dos por palavras. Existem aqui duas ligações ao mundo, à linguagem, aos outros, a si, ao
saber, à aprendizagem, amplamente antagonistas. Aqui, não está apenas em causa duas
experiências culturais diferentes, mas sim relações com o mundo que se constroem nas
relações sociais de dominação. A escola é um espaço onde, de forma surda, se afrontam
relações diferentes com a linguagem. Os jovens apercebem-se desse facto e por vezes até
o explicitam.

[A prof. de Secretariado] Ela quer sempre usar grandes palavras, isto é as palavras mais difíceis e até eu,
que não me desenrasco mal, às vezes não percebo o que ela diz. (…) Ela tem uma linguagem demasiado
elevada, sim, é isso! Bem, mas talvez tenha sido educada desta forma, num meio privilegiado e talvez
sempre tenha falado assim. Por isso, acho que ela não quer perder o hábito de falar assim. (Ra., bac pro
2 informática secretariado, E202)
Na realidade, o LP, o liceu é só paleio. Para começar, os profs. têm dificuldades em dar as aulas,
então o que eles querem é que te cales e escrevas qualquer coisa no teste. (R., bac pro 1 informática
contabilidade, E118)

De uma certa forma, a sala de aula é um espaço de afrontamento implícito para o


domínio da linguagem – e a definição da prática legítima da linguagem. De um lado, o
professor que fala, fala, fala… do outro, os alunos que tagarelam (no paleio), envolvidos
noutras práticas linguísticas e noutras relações com a linguagem (Bautier, 1995). O pro-
blema é que, para lá dos processos de dominação social e institucional que estruturam este
afrontamento, aprender a descrever o mundo por palavras é também uma competência
essencial, inclusive para quem quer lutar contra a dominação e mudar o mundo. É bem
possível (mas não passa de uma hipótese) que por causa desta ambivalência de um uso
escolar da linguagem que, simultaneamente, exprime uma relação de dominação social e
visa dotar os dominados de armas de luta, as generosas intenções dos professores relativa-
mente ao povo se transformem no pesadelo de uma escola que contribui para reproduzir a
desigualdade e a dominação.
Por fim, o que é que acontece a estes dominados escolares, fruto de dominantes sociais,
que são os filhos de meios favorecidos escolarizados nos liceus profissionais? Para muitos
deles, o principal problema a resolver reside nos seus pais, que lidam muito mal com esta
orientação e responsabilizam-nos por ela – voltarei a falar do assunto quando abordar a re-
lação com os pais. Se eles se encontram nos liceus profissionais é porque, com frequência,

199
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

não se apropriaram dos valores do seu meio social e eles conseguem por isso encontrar
compromissos com os valores dos seus camaradas. Alguns, contudo, aderem plenamente
às normas de socialização familiar. Segundo parece muitos estão escolarizados em estabe-
lecimentos privados mas também acontece que alguns se afundem num inferno que para
eles constitui o liceu profissional.
Eis um exemplo. Maryline tem 16 anos, o seu pai é engenheiro de produtos farma-
cêuticos e a sua mãe secretária numa firma clínica. Ela fez o 6e (que reprovou) e o 5e
numa escola privada – que não a aceitou no fim do 5e. Em seguida, ela continuou o 4e,
depois um 3e technologique numa outra escola privada, depois seguiu-se um ano de BEP
secretariado num LP público e, aquando da entrevista, ela é aluna do 1º ano de BEP
sanitário e social (E207). As relações entre Maryline e os seus camaradas constituem
uma boa análise em relação ao olhar que os filhos de dominados e dominantes têm uns
sobre os outros137.
Para Maryline, a diferença social tem um nome: Fatoumata, uma rapariga da sua turma
com a qual não se dá nada bem. Esta diferença é em primeiro lugar corporal, física, de
indumentária.

Para começar, segundo parece, eu tenho uma cara de menina, não lhe agrada a forma como me vis-
to, eu acho que elas se vestem como a ralé – mas estou-me a borrifar, a vida é delas. Para mim elas
vestem-se como a ralé, eu não me imagino vestir-me assim [P.: Para ti o que significa a ralé?] No sen-
tido realmente pejorativo significa as raparigas que andam à porrada, as pessoas que andam à porrada,
tanto raparigas como rapazes. Que roubam, que não respeitam nada, que criticam toda a gente, que na
verdade não respeitam, não têm respeito nem pela amizade, nem pelas pessoas que as rodeiam, elas
são insolentes – é isso, sem grandes pormenores é isso (…). Ela [Fatoumata] diz que eu tenho uma
cara de mosquinha morta, que tenho uma maneira esquisita de me vestir, tenho uma cara de menina
(…). Elas só usam sapatilhas, eu detesto sapatilhas, isto é, tenho a impressão de ser ainda mais nova
do que o normal e não sei, gosto de me maquilhar, de ter roupas bonitas, lenços, tudo o que torna uma
indumentária bonita, elas, elas são… parece que não querem saber. Elas só usam t-shirts compridas,
calções, elas nunca estão bem vestidas, vestidas de forma asseada.

Para lá da aparência física – mas sempre relacionado com o corpo... –, a fronteira


passa por entre as raparigas que andam à porrada (característica maior da “ralé”) e pelas
que gerem o conflito pela linguagem. É a linguagem, mais uma vez, que encontramos aqui
como prática de diferenciação.

Ainda por cima eu sempre vivi numa vivenda, por isso nunca saía, logo aprender a desenrascar‑me
sozinha, não. Porque eu estava sempre em minha casa, eu não tinha necessidade de me defender
quando me agrediam na rua, dado que quase nunca me agrediram. Ela, ela sempre viveu em bairros
sociais e sai até às 23h. O facto de se morar em bairros cria outros laços, aprendem-se outras coisas e
aprende-se a andar à porrada, logo pode comparar-se facilmente uma pessoa que mora numa vivenda

Voltarei ao caso de Maryline no capítulo seguinte, para abordar as relações com os seus pais.
137

200
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

e uma pessoa que mora num bairro (…). Eu não sei andar à porrada, nunca aprendi… hum… defendo-
‑me verbalmente hum… verbalmente, para eles isso não existe. Acho, acho que eles viram tanta coisa
que isto vem directamente, não passaram por uma fase em que insultaram as pessoas, isto vem-lhes
directamente com os punhos, não há tempo para explicar nada, eu não digo nada, não quero que me
batam.

“Eu não digo nada”: paradoxalmente, é o aluno que domina a linguagem que tem
de se calar… Mas o paradoxo é apenas aparente: é através da linguagem (e de maneira
geral, através de um sistema de sinais, inclusive corporais) que Maryline domina os seus
camaradas, que respondem a esta dominação com murros (no domínio em que são eles
que dominam) e por isso ela tem de se calar para evitar que lhe batam. Trata-se mesmo
de uma relação de forças e nesta relação a Maryline é obrigada a pensar pela lógica do
adversário.

Ela, ela pode dar-se ao luxo que não gostem dela porque ela conhece montes de pessoas, porque ela
sabe defender-se, eu não me posso dar ao luxo de não gostarem de mim, se não gostam de mim corro
o risco de que me batam e eu não quero nada que me batam e depois elas vão transformar a minha
vida num inferno.

O que aqui está em jogo não é unicamente uma relação pessoal entre Maryline e
Fatoumata, é também um afrontamento entre dois mundos, duas lógicas, dois tipos de
relação com o mundo, com os outros, consigo próprio. O desafio reside no domínio do
corpo (andar à porrada ou maquilhar-se?), reside no corpo enquanto sistema de signos
(ser parecido com a ralé ou com uma mosquinha morta?), reside no domínio da lingua-
gem (o paleio ou as grandes palavras?) – e através de tudo isto, reside no domínio do
outro, de si e do mundo no qual se vive. Estes desafios estruturam em profundidade a
relação com a aprendizagem. Maryline sabe disso: “Nos bairros sociais aprende-se coisas
diferentes” do que nas vivendas. Ela também sabe que o problema não tem a ver com
a inteligência. Evocando o seu ano de BEP secretariado, ela explica o seguinte: “Era a
melhor aluna, como eram todos burros eu safava-me. Eles eram interessantes quando se
falava com eles mas não eram pessoas que tinham boas notas na turma, a meu ver eram
inteligentes mas não queriam estudar”. Eles são inteligentes, têm coisas interessantes
a dizer (e logo não são deficientes linguísticos), mas não querem. Não querem ouvir o
professor quando este fala, fala, fala, eles não querem estudar: eles não querem entrar
em práticas linguísticas e em formas de actividade intelectual que não dominam, que os
dominam, que os desvalorizam, que lhes impõem uma imagem negativa de si próprios.
Quando a dominação sufoca o desejo de si, só resta mudar as regras do jogo: abandonar
o mundo da linguagem civilizada, onde se é sempre perdedor, e impor a lógica da força
corporal, da violência que pelo contrário assusta os professores e as mosquinhas mortas.
A não ser que a escola os ajude a entrar nestas práticas linguísticas e nestas formas de

201
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

actividade intelectual, a dominá-las a pouco e pouco, fazendo com que elas deixem de
ser sinónimos de dominação.

3. Ser eu próprio, ser alguém

Estes jovens têm com frequência uma forte consciência da dominação, das desigualdades,
das diferenças sociais. É altamente provável que Fatoumata diga que Maryline vem de
outro lugar, como a própria Maryline tem consciência disso. Relembremos Samira, que
afirma que para um tipo que mora no subúrbio as coisas se resumem à escola ou a “ven-
der”. Relembremos igualmente a afirmação triste de que não se pode ser modelo quando
se é oriundo de um bairro social. Relembremos os professores acusados de orientar siste-
maticamente os árabes e os negros para o liceu profissional ou a professora de secretariado
suspeita de só conseguir falar através de chavões porque foi educada assim. E cautela com
o professor que fala mal de Chanteloup-les-Vignes:

Ele não é de Chanteloup mas sim de Conflans138, então ele insultou Chanteloup, disse: “Chanteloup é
um galinheiro”. Depois pediu desculpa junto do orientador mas não a nós, então os alunos não tolera-
ram e ainda fizeram mais merda. (Ra., BEP2 secretariado, E97)

Estes jovens têm uma consciência sociopolítica, contrariamente ao que muitas vezes
se pensa. Mas esta consciência é constituída por experiências e máximas reguladoras,
segundo o processo já analisado, e não por discursos especificamente políticos. Para eles,
“a política” são palavras, pronunciadas por gentes de fora. Eles não estão à espera (salvo
excepção, é claro) da libertação através da política ou da militância. Na melhor das hipóte-
ses, eles acham que a política é impotente; na pior (mais frequente) eles desprezam-na. Por
exemplo, Gérard é no mínimo céptico em relação às competências e à vontade de reforma
dos políticos. Ele tem um bac profissional “estruturas metálicas”, mas só conseguiu traba-
lho como empregado de armazém numa empresa de trabalho temporário (E159): “Perdi
dois anos da minha vida para ser pago como um gajo que fez o BEP. De que é que serve?
Eu gostaria de perguntar ao gajo que pariu isto”. Ele acha que em França o sistema escolar
deve ser mudado para não impor todas as disciplinas a toda a gente mas não conta com os
políticos para realizarem esta reforma:

Já foi proposto por alguns ministros mas enfim não foi aceite porque… para já só há velhos botas-de-
‑elástico. Se ainda houvesse ministros um bocado jovens, mas é só velhos botas-de-elástico, o que é
que se lhes pode dizer, há 70 anos que estão lá hum… eles não têm vontade de mudar.

NT: Tanto Chanteloup-les-Vignes como Conflans situam-se nos subúrbios de Paris. Ambas pertencem
138

ao departamento de Yvelines, mas Conflans é um município cujos habitantes pertencem à classe média,
enquanto que Chanteloup é um município com muitas “cités”, isto é, bairros pobres.
202
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Confrontados com a dominação mas impulsionados, como qualquer indivíduo, por um


desejo de si, estes jovens oscilam entre reconhecer a força das coisas e conseguirem os
meios para se tornarem alguém.
Com muita frequência, no meio de uma resposta a uma pergunta, é visível o sentimen-
to quando se deparam com a força das coisas: “é assim” (fórmula mais frequente); “é a
vida”, “é o destino”. A vida “é complicada, é difícil. Não tenho sorte, não sei, há aqueles
que têm sorte e há aqueles que não têm” (Ra., bac pro 1 mecânica automóvel, E19). Mas,
como vimos ao analisar os balanços de saber e como fica aqui confirmado, estas fórmulas
remetem para uma consciência viva da adversidade mais do que para um fatalismo real: o
mesmo jovem que diz “é assim” pode dar mostras de voluntarismo real noutro momento
do seu discurso139. Eis alguns exemplos.

A sociedade é assim. Se toda a gente tivesse trabalho seria bom, mas é assim. (R., BEP1 ORSF, E28)
[Contudo, ele quer ser professor primário no Senegal e afirma] Eu regressarei ao liceu até conseguir o
bac. Para isso regressarei. Não tenho dúvidas.
É a vida, é assim, é a sociedade que é assim. (R., BEP2 ORSF, E33) [Mas ele também diz] Seis anos
de estudos, é para ter uma vida mais interessante. (…) Para já sentimo-nos melhor connosco (…) [P.:
Sentimo-nos melhor connosco, significa o quê?] Estar contente por termos vingado na vida, ter um
objectivo e conseguir alcançá-lo, é isso.
Não me arrependo, era a única solução na altura. É o destino, como se diz. (R., bac pro 1 carpintaria,
E105) [Mas a mesma pessoa afirma] O meu grande projecto é levar as máquinas e o savoir-faire para
Marrocos e trabalhar claro está com a França.
É a vida. A vida é assim e não se pode mudá-la. (R., 4T, E197) [Mas a mesma pessoa diz] É assim, se
tiver vontade eu faço-o, se não tiver vontade não faço. Agora este ano está a correr bem.
Temos que nos contentar com aquilo que temos, acho que mesmo sem diploma podemos desenrascar-
‑nos mais ou menos. (…) Sabemos que é assim, é assim, não se deve complicar, é assim, são estes os
princípios e devemos agir em função deles, podemos ser questionados sobre isto, isto e isto, temos que
os aprender todos. (Ra., bac pro 2 informática secretariado, E5) [Mas a mesma pessoa diz] Se tivésse-
mos tido uma boa base acho que poderíamos mais ou menos avançar sem problemas, teríamos sempre
uma solução é claro (…) é por minha conta e risco (…) Assumo as minhas responsabilidades.

Embora alguns jovens pareçam ter sido laminados pela vida, ou estar completamente
“perdidos”140, a maioria deles conserva a esperança e, por vezes, o objectivo de “ser al-
guém”: “Embora não seja aquilo que queria, é preciso que eu continue, para conseguir
ser alguém” (Soubraka, R., BEP2 ORSF, E26). Um projecto, estes jovens têm um, e até
apresenta uma profundidade de campo: no mínimo ter uma vida normal e se possível ser
alguém. Não é o tipo de projecto que alguns tecno-pedagogos gostariam que construíssem

139
É preciso então tratar com prudência a diferença entre “causalidade externa” e “causalidade interna”, po-
dendo o mesmo jovem ser, segundo os momentos e os sujeitos, por vezes “externo” e por vezes “interno”.
140
Mas mesmo eles, como vimos, evocam ainda a eventualidade de um “clique”.
203
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

mas aqui reside, sem dúvida, uma base mais sólida para reflectir com eles sobre o que
significa aprender, a partir de uma reflexão sobre o que significa viver.
De todas as entrevistas, a de Soubraka é a mais explícita sobre este ponto. Soubraka,
17 anos, chegou com 5 anos de idade vindo do Senegal; ele tem 5 irmãos e uma irmã e é
o mais velho; o seu pai é chefe de plataforma numa empresa.

Se escolhemos estar aqui, embora não tenhamos escolhido realmente, é preciso continuar, é preciso
tentar vir a ser alguma coisa (…) Ser alguém, alguém (…) Se eu continuar os meus estudos, no fim
serei talvez engenheiro, para mim serei alguma coisa porque terei continuado a minha formação,
terei chegado a alguma coisa (…) [P.: O que é que significa ser alguém? Com este ofício tu não és
alguém?] De momento, não (…) Para vir a ser alguém de… não sei, alguém com reputação, mas não
sei como lhe explicar… por exemplo, numa empresa, trabalhar, trabalhar e no fim conseguir subir os
escalões. Só o trabalho não é suficiente, somos fracos. Para já, é quando conseguimos trabalho que
nos tornamos alguém, aí sim podemos tomar-nos por alguém. [P.: O que é que significa conseguir
trabalho?] É quando somos contratados e que… não só quando somos contratados, por exemplo se
somos contratados e sabemos que trabalharemos sempre nesta empresa, poderemos dizer que somos
alguém. Aí podemo-nos levar em consideração. Se não tivermos trabalho… eu neste momento não me
levo em consideração, porque continuo a depender dos meus pais, não me posso ter em consideração,
continuam a ser eles que me sustentam (…). Aqui preparo-me para ser alguém. Se não se aprender,
nunca se valerá nada. (E26)

Para se vir a ser alguma coisa, alguém, alguém que se pode levar em consideração
é preciso aprender. Quando um aluno tem este tipo de relação com a aprendizagem ele
não necessita de motivação externa, ele é movido por um motor interno. Para se vir a ser
alguém, é preciso conseguir um trabalho – e, assim, não estar mais a cargo dos seus pais,
poder desenrascar-se sozinho, não ser apenas “filho de” mas poder existir por si mesmo
e ser um dia “pai (ou mãe) de”. Para se vir a ser alguém, alguém ainda melhor, é preciso
estar seguro de manter o seu trabalho e até mesmo subir os escalões. Encontramos aqui a
lógica de nível, já identificada no capítulo anterior: formar-se, ter um trabalho, isto permi-
te ascender. Mas esta lógica de nível é também uma lógica de subjectivização: o sujeito
muda de estatuto assim que acede a um emprego, a um emprego estável, a um escalão
hierárquico superior. Não se trata apenas de salário e de hierarquia (embora também esteja
em causa e seja tão importante) mas também de existência, de dignidade reconhecida pelo
outro (ser reputado) e por si próprio (levar-se em consideração). O desafio da formação
é então o de se ser si próprio, de vir a ser. O motor da mobilização é o desejo de si – sem
esquecer que este si, como já vimos nos capítulos precedentes, não é uma mónada isolada
mas um sujeito envolvido em redes sócio-afectivas. O motor da mobilização para aprender
é o desejo de si envolvido nas redes de desejo tecidas com a família, os amigos, por vezes
alguns professores, muitas vezes a antecipação dos seus futuros filhos. Os alunos que che-
gam ao liceu profissional trazem uma ferida narcísica, é este desejo de si que foi destruído
pelo insucesso ou humilhação. A reconstrução de uma relação mobilizadora com o saber

204
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

supõe a reconstrução do desejo de si – uma reconstrução no campo do saber. Ela realiza-se


através do trabalho de reinterpretação da sua presença no liceu profissional, que foi ana-
lisada no capítulo anterior. Ela termina quando o aluno se inscreve numa espiral de êxito
(boas notas, incentivos, confiança em si, vontade de voltar a ter êxito…). Ela completa-se
quando um aluno consegue dizer, sem dúvida com uma pitada de humor mas também com
orgulho, que se tornou “muito inteligente”, “super inteligente”, “excelente aluno”.
Soubraka é quem melhor explica esta ideia de que é essencial vir a ser alguém. Mas
encontramos ideias semelhantes em várias outras entrevistas.

Desde que era pequena que me dizem que sou burra, que nunca iria ter uma profissão, estavam sempre
a diminuir-me e na minha cabeça era sempre tudo negativo, negativo. (Ra., BEP1 secretariado, E90)
Encontrar um trabalho para ter motivação, para ter coisas, para fazer coisas, para ser alguém, para se
afirmar. (R., BEP2 ORSF, E35)
[O trabalho] serve para… dizer que servimos para alguma coisa. Na vida nós servimos para alguma
coisa. (R., BEP1 ORSF, E32)
O meu primeiro prazer é a carpintaria (…). É bonito ver a progressão de um estado bruto… é uma
cena colossal. Quando fazemos objectos é gratificante (R., bac pro 1 carpintaria, E105)
Estou bastante orgulhoso de mim porque provei a mim mesmo e às outras pessoas que me viam como
um aluno perturbador e sem nenhum futuro que era capaz de brilhar e de conseguir o que queria. (R.,
bac pro 2 energética, E104)

Ser alguma coisa, ser alguém, servir para alguma coisa, valorizar-se através do que se
faz: eis, em simultâneo, o objectivo dos estudantes e o seu motor. Mas atenção: não se trata
de uma poção mágica para resolver todos os problemas da escola.
Por um lado, podemos ser alguém de uma outra forma que não passa pela escola: ao
ser um perturbador de serviço do liceu, ao vir a ser uma estrela de futebol, do karaté ou do
rap, ao ser alguém que se imagina, etc.

Por minha causa, há muitas turmas que se revoltaram. Eu revoltei-me com montes de coisas e toda a
gente me seguiu. Eu sou considerado um revolucionário no liceu. (R., 3T contabilidade-secretariado,
E138)
Eu gosto de inventar histórias. (…) Ser modelo é ser outra mulher. (…) Permite mudar, mudar tudo, é
óptimo. (…) Eu sou mais tímida e reservada mas quando se é modelo tem que se falar e mexer. (…)
Muda-se de mundo, de personalidade, já não somos nós próprios. (Ra., bac pro 2 informática secreta-
riado, E9 – ela é efectivamente modelo, ao mesmo tempo que estuda no liceu)
Mas há uma profissão que gostava de ter, mas mesmo desde pequeno, é ser actor cómico. Eu adoro
isso, adoro o teatro (…). Gosto de vestir a pele dos outros. Eu estou bem comigo próprio mas gosto
de mudar de identidade. [Ele vai com frequência ao teatro mas não frequenta nenhum curso de teatro.]
(R., 3T, E135)

Por outro lado, para ser alguém é preciso não só aprender mas também realizar um
trabalho sobre si – evoluir, amadurecer, “crescer”, “tornar-se mais adulto”.
205
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Eu sei que amadureci em dois anos, eu mudei completamente (…) E depois não sei, cresce-se, apren-
de-se montes de coisas, vê-se a vida de outra maneira. É verdade que em dois anos dei um salto, não
sei. (Ra., Première d’adaptation depois de ter frequentado um BEP sanitário e social, E145)
[P.: Para que é que serve a escola?] Ainda não sei. Enfim, sim, serve para evoluir (…) crescer! (Ra.,
BEP1 vendas, E64)

Ora, este trabalho sobre si não é fácil e por vezes falha – relembremos Mohamed que
diz: “continuo a interrogar-me até hoje (…). Eu sou um extraterrestre” (E153). Para se ser
alguém, é preciso inclusivamente renunciar a ser um outro – e a fantasia daqueles que eu
poderia ter sido continua a assombrar a minha vida. Para se ser alguém, é preciso sacrificar
coisas importantes: alguns amigos, uma certa forma de juventude.

É o melhor a fazer agora, sacrificar a juventude em nome dos estudos e ser bem sucedido. [P.: Sacrifi-
car?] Não, mais tarde poderemos aproveitar. (R., BEP2 ORSF, E33)
No CM2 eu era boa aluna. No 6e eu fui, como é que hei-de dizer, levada pelas colegas. Elas encora-
javam-me a fazer parvoíces, asneiras e no 5e foi a mesma coisa (…). Para seres aceite num grupo é
preciso fazer asneiras (…). No 4e comecei... apercebi-me que não me servia de nada de… que o meu
futuro só dependia de mim… não dos colegas e comecei a estudar (…) Eu não tenho muitos amigos
porque eles querem que eu seja como eles. Prefiro pensar pela minha cabeça. (Ra., 3T, E133)

O aproveitamento escolar exige o sacrifício dos amigos, produz uma espécie de soli-
dão e, em último caso, transforma-os no “beto” sempre com o nariz nos livros.

Em comparação com os outros, considero-me uma boa aluna. [P.: O que significa para ti ser bom
aluno?] É alguém que tem uma boa média, entre outros. É o betinho da turma, para mim um bom
aluno, porque ser bom aluno não tem só a ver com o nível de trabalho, é também ao nível do com-
portamento. Enquanto eu, apesar de tudo, não gosto de estar quieta nas aulas. (Ra., BEP1 sanitário e
social, E179)
Eu vejo a minha prima, ela está o tempo todo com os livros, estudar, estudar (Ra., parou de estudar
depois de ter chumbado o BEP de contabilidade no ano anterior, E162)

Quando se é um adolescente de meio popular para quem a vida se centra nas relações
com os outros, e nomeadamente com os amigos, onde é que se pode ir buscar forças
que permitam mobilizar-se para a escola e na escola, em detrimento dos amigos e até da
própria juventude? Por um lado, podemos encontrá-las nas relações com os adultos, em
primeiro lugar os pais, e por outro lado no que acontece na sala de aula, onde, por vezes,
professores “interessantes” dão aulas “interessantes”. É a estes dois temas que serão con-
sagrados os dois capítulos seguintes.

206

CAP. 11
OS PAIS E A FAMÍLIA

Tornamo-nos alguém através das relações que mantemos com os outros. Esses outros são
fontes e objectos de desejos, eles definem normas, instauram limites, atribuem missões, de
modo que o saber e a aprendizagem se tornam suportes de pedidos, exigências, pressões,
funcionam como presentes, sinais de pertença, de reconhecimento, etc. Concretamente,
esses outros, são os pais, os irmãos e irmãs, os amigos, os namorados, os professores, os
vizinhos, etc. e até mesmo esses outros virtuais que serão os futuros filhos. Mas é antes de
mais na família que o indivíduo se constrói e aprende a desejar; e é a família que pode ser
colocada em correlação estatística com o nível de aproveitamento escolar. É preciso, pois,
analisar com mais pormenor o que se passou e o que se passa nas famílias dos alunos de
liceu profissional – pelo menos, o que os alunos entendem e dizem a esse respeito.
Aqui, mais ainda do que em outros capítulos, será necessário desconstruir e construir
em simultâneo. Falar dos pais e da família dos alunos com dificuldades escolares significa,
na realidade, instalar-se no seio de uma ilusão dos professores e, mais amplamente, das
classes médias: os pais demitiram-se e os professores são vítimas desta demissão. Apesar
dos desmentidos constantes e firmes dos investigadores, muitos professores continuam
a desfiar esta cantilena. Portanto, não é inútil repeti-lo mais uma vez: os pais não se de-
mitiram, simplesmente por vezes sentem-se ultrapassados pelos seus filhos (assim como
acontece com os professores em relação aos seus alunos). Até se poderia tentar inverter a
acusação: os professores renunciaram à tentativa de que alguns alunos fossem bem sucedi-
dos e os pais são vítimas desta renúncia, o que faz com que alguns alunos sejam ingover-
náveis. Mas este argumento seria tão falso e injusto quanto o precedente: quer se sustente
uma tese ou o seu contrário, o erro está em não se ver para lá do homogéneo, como se
as situações, os jovens, os pais ou os professores proviessem sempre de um tipo único.
Hoje em dia, produzir saber nos subúrbios e nas suas famílias populares significa recusar
o homogéneo e trabalhar para introduzir intelectualmente o heterogéneo – e desta mesma
forma acabar com o cerco do racismo, do desprezo e, inversamente, da vitimização, que
prospera no pensamento homogéneo.
Os processos familiares que contribuem para estruturar a relação dos jovens de liceus
profissionais com o saber e a aprendizagem não são infinitos, pode levantar-se um inven-
tário relativamente completo, embora ele não seja exaustivo. Mas estes processos são
variados, por vezes contraditórios; além disso, quando se fez o inventário dos processos
ainda não se sabia a forma de os articular entre si em histórias singulares. Depois de um
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

inventário dos principais processos referenciados através das entrevistas, apresentarei en-
tão algumas histórias particulares.

1. Os processos

A profissão dos pais não é muito relevante no discurso destes jovens e quando é, há lugar
para todos os pontos de vista: quero ter a mesma profissão do meu pai, não quero de forma
alguma ter a mesma profissão do meu pai, pode parecer que sigo o mesmo percurso mas não
é a mesma coisa, vou ter a mesma profissão que a minha mãe mas é uma coincidência.

O meu pai tem uma padaria-pastelaria e quero seguir os seus passos. (R., BEP-CAP padaria, E59)
[Os meus pais diziam-me:] Se falhasse nos estudos, ia trabalhar com o meu pai, o que significava um
regime militar [o pai tem uma pequena empresa de electricidade] (R., BEP2 carpintaria, E52). [Con-
tudo, explica igualmente] O meu avô trabalhou muito na carpintaria, por isso ele falou-me muito bem
deste ofício. [A influência familiar parece ter saltado uma geração.]
O meu pai tinha uma profissão manual mas não era semelhante à minha (…) O que ele fazia, digamos
puxar uma cena, transportá-la, é sempre a mesma coisa. No meu caso não é sempre a mesma coisa,
pode ser uma avaria de electricidade, eu, pelo contrário, preciso de pensar, é preciso encontrar a avaria
e tudo isso, tentar arranjar. (R., BEP2 manutenção de sistemas mecânicos de produção, E20; o pai
trabalhava na linha de montagem numa fábrica de automóveis)
Talvez venha a ter o mesmo trabalho que a minha mãe, é coincidência [mãe secretária trilingue]. (Ra.,
BEP2 secretariado, E99)

É evidente que é pouco provável, psicológica e sociologicamente, ser só uma coin-


cidência o facto de se exercer a mesma profissão que a sua mãe. Parece pelo contrário,
inclusive na negação, que a profissão dos pais é uma referência (positiva ou negativa) na
construção do indivíduo. Mas o que tem significado para estes jovens não é tanto a profis-
são enquanto conjunto de actividades específicas e de valores partilhados mas a profissão
enquanto modo e nível de vida. Uma vez mais, é a questão da vida e a lógica de nível, mais
do que as da profissão, que são centrais no discurso dos jovens. Dois temas, estreitamente
ligados, dominam este discurso: eu não quero ter a mesma vida que os meus pais, eu quero
que os meus pais se orgulhem de mim.
Eu não quero ter a mesma vida que os meus pais. O que significa: não viver num bairro
social, não deixar que o trabalho me desgaste, não ficar trancado/a em casa.

Não quero, é horrível o que eu vou dizer, não quero ter a mesma vida que os meus pais. Não quero, não
quero viver num bairro social, estou farta. (Samira, BEP2 indústrias químicas, E60)
[O meu pai] teve uma vida desgastante. (Ra., BEP1 sanitário e social, E69)
[O trabalho do meu pai] é mesmo um trabalho de cão. Não é um trabalho com futuro, não é interes-
sante. Teve crises de epilepsia. Não seguirei os seus passos, não tenho vontade de trabalhar com ele.
(R., BEP2 manutenção de sistemas mecânicos de produção, E20)

208
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Eu o que quero é trabalhar, não fazer como a minha mãe e ficar em casa, hum… nem pensar… É
por isso que quero acabar os meus estudos, para mais tarde poder trabalhar e ser independente, não
depender do meu marido ou outra coisa qualquer hum… É principalmente por esta razão. (Ra., BEP1
secretariado, E185)

Felizmente, tenho mais oportunidades do que os meus pais, a vida é menos difícil do
que antigamente, além disso posso ir à escola para ter os diplomas. Em contrapartida, nós
temos que lidar com o desemprego, coisa que os nossos pais não conheceram.

[P.: Os teus pais estão orgulhosos de ti?] Claro, têm razões para isso. Eu sou oriundo dos subúrbios e não
andei na rua, para já isso deixa-os muito contentes. Quando sair com um diploma nas mãos, isso vai dar-
lhes muito prazer. [O pai] Ele trabalhava na Citröen. Nunca falei sobre o trabalho com ele. Tenho mais sorte
do que ele. Eles cansavam-se mais antes. Agora temos ferramentas para fazer isto, eles não tinham. (R., bac
pro 2 mecânica automóvel, E12)
[Os meus pais diziam-me] Olha, nós não tivemos a sorte de ir à escola, vocês têm a sorte de ir à escola,
estudem para conseguirem alguma coisa mais tarde. (Ra., BEP1 secretariado, E79)
Eu não comparo as gerações. Os pais começaram mais cedo. Quando o meu pai chegou aqui havia mais
trabalho. Digo-me a mim próprio: eles têm a vida mais facilitada, mas é verdade que antes a integração
era difícil, nós tivemos muito mais coisas em comparação com eles, fomos mimados, mas em relação
ao trabalho isso revolta-me um bocado. (R., bac pro 2 mecânica automóvel, E16)

É preciso tirar proveito da escola, é preciso ir mais longe do que os meus pais. Aliás,
eles querem o mesmo, eles incentivam-me a estudar, a continuar, a conseguir os diplomas.

Eu ando na escola para ter um trabalho (…) Se adquirirmos diplomas, graças a esses diplomas po-
demos ingressar numa empresa que nos dará formação. Aliás, se eu vou à escola é para chegar mais
longe do que os meus pais.141 (R., BEP2 electrotecnia, E41)
[O meu pai] disse-me que era difícil, ele espera que eu consiga melhor (…) Ele não sabe ler, nem es-
crever, ele só sabe fazer a sua profissão, (…) talvez ele queira que eu faça uma coisa mais interessante,
(…) eu uso a cabeça, não as mãos. (R., BEP1 ORSF, E32; o pai era cortador, agora está reformado)
[Os meus pais disseram-me] Mesmo que não sejas bom aluno, não sais da escola sem diploma, está
fora de questão. (R., CAP3 construção metálica, E125)

Os jovens compreendem esta exigência parental, eles até a compreendem em profundi-


dade, o que ela significa para lá das palavras ditas: faz melhor do que eu, sê bem sucedido
lá onde eu não fui e dá desta forma um significado aos sacrifícios que tive que fazer, dá
um significado à minha imigração, prova que eu tinha razão ao deixar o país, mostra que
a nossa família vale mais do que aquilo que nos foi imposto. Ser bem sucedido na escola,

141
De notar o raciocínio, interessante e significativo da lógica de nível: eu vou à escola para ter diplomas
e ir o mais longe possível e se conseguir conquistarei o direito de (começar a) formar-me na empresa – a
escola não forma, ela constitui uma obrigação que tem de ser satisfeita para se ter o direito à formação,
noutro lugar.
209
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

é ser bem sucedido na vida, é encher os seus pais de orgulho e ficar orgulhoso por isso;
fracassar significa a vergonha, para eles e para mim. O desafio do sucesso escolar, também
significa o meu valor aos olhos dos meus pais – e como poderei eu estar seguro do meu
valor se não o leio nos olhos dos meus pais, e como poderei eu estar seguro de ser alguém
se nunca cumpri a missão familiar que me foi designada?

Sabes, em geral queremos ser bem sucedidos para os nossos pais, tu queres que eles sejam orgulhosos
de ti e não que digam: é um grande preguiçoso, ele não faz nada, não quer fazer nada da vida. (R.,
BEP2 mecânica automóvel, E51)
Eu tinha um objectivo: o de estudar bem na escola, apesar das más notas, para que os meus pais ficassem
orgulhosos de mim, e também para que não me chateassem. (R., BEP1 contabilidade, E81)
Para já, os meus pais não estudaram muito (…). Eles teriam gostado tanto de também terem um bac.
(R., bac pro informática contabilidade, E115)
O meu pai é operário da construção civil há 20 anos. Ele chegou a França em 1967, sem nada nos
bolsos e agora é um homem sábio e respeitado. É verdade que não é rico mas trabalhou como um
cão para nos poder educar convenientemente e é por isso que tenho um bocado de vergonha de ter
fracassado na escola. Pelo menos por ele eu deveria ter feito um esforço, mas agora é demasiado tarde.
Mas, mais tarde, eu vou conseguir e assim ele será realmente orgulhoso de mim, ainda por cima sou
o mais velho da família, normalmente, devo dar o exemplo. (R., desempregado, E158; tem 22 anos,
é de origem marroquina, passou por uma preparação do BEP de carpintaria depois por um BEP de
contabilidade e não tem diploma).
[P.: Porque é que estudas?] Porque amadureci, simplesmente… E depois, em parte, a minha motivação
é o meu pai… tenho vontade de lhe dar uma alegria e a mim também porque gosto de aprender…
tenho prazer em ser bem sucedida, é uma satisfação pessoal. Também tenho necessidade de saber e
perceber, perceber para mim é uma necessidade. (Ra., BEP2 secretariado, E98)

É inegável que os pais de meio popular apelam aos seus filhos com uma forte exigência
de sucesso escolar e que esta última é entendida e assumida pelos jovens. Esta exigência
não constitui a única fonte de mobilização escolar (cf. acima: eu estudo para dar uma
alegria ao meu pai, porque tenho vontade de ser bem sucedida, porque tenho necessidade
de perceber). Mas ela contribui muito para definir um ideal do eu e desta forma dar um
conteúdo a esse “alguém” que se quer ser.
Nesse sentido, a história escolar de um aluno inscreve-se na história mais ampla de
uma família, de uma linhagem (Charlot, Bautier & Rochex, 1992; Rochex, 1995). Esta
história, como se sabe, é a de uma geração, e frequentemente de duas gerações, que pre-
cedem o aluno, mas ela é também a antecipação da geração que se segue, da qual se sabe
menos. Aqui as entrevistas corroboram os balanços de saber: os futuros filhos fazem parte
do universo de saber destes jovens. Estes alunos ainda não deixaram o universo escolar
e alguns deles já anunciam o discurso aos filhos, semelhante ao dos seus próprios pais:
estuda na escola para teres uma vida melhor do que a minha.

Imagine daqui a 20 anos quando tiver um filho que virá ter comigo para que eu lhe explique um tra-

210
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

balho de casa qualquer. Eu vou ficar bloqueado. Claro que se ele vier ter comigo com um problema
mecânico será um prazer ajudá-lo, mas acho que antes de ter um carro, ele tem um caminho a per-
correr, tem que estudar, por isso seria melhor poder ajudá-lo durante a sua juventude. (R., bac pro 2
mecânica automóvel, E17)
[A Economia] Já fiz, é interessante e pode ser útil para os meus filhos mais tarde, para lhes explicar,
ensinar-lhes coisas, se eu me lembrar das aulas que tive. (R., BEP2 ORSF, E31)
Bem, para começar gostava que eles estudassem, enfim que fossem estudos longos, em compa-
ração aos que eu fiz. Eu não quero estudar mais do que isto, o que quero é parar e encontrar um
trabalho. Para os meus filhos talvez seja o contrário, é o que eu desejo. (Ra., BEP2 sanitário e
social, E67)

Os dados recolhidos contradizem fortemente as ideias preconcebidas sobre a relação


das famílias populares e dos seus filhos com os estudos. Ambicionar, graças à escola,
uma vida melhor para agradar e orgulhar os seus pais, pensar no futuro escolar dos seus
filhos, mesmo antes de terem nascido, significará tudo isto “desistir”, não dar importância
à escola, ter perspectivas temporais reduzidas e um fraco nível de aspiração? Estes jovens
inscrevem a sua vida no tempo e desenvolvem nela aspirações. Mas este é o tempo frágil
e ameaçado dos dominados, ainda mais dominados pela crise do desemprego – e devem,
depois de cada contrariedade, reconstruir novas aspirações e reinventar um futuro. O tem-
po destes jovens não é o tempo instrumental de um projecto planificado – porque para se
instrumentalizar o tempo é preciso dominar as relações sociais.
Os pais exigem aos seus filhos que sejam bem sucedidos na escola e estes últimos
ficam orgulhosos quando conseguem satisfazer esta exigência: eis o processo mais impor-
tante. No entanto, este processo não funciona em todas as histórias escolares. Além disso,
por vezes existem outros processos que se articulam sobre ele e contrariam os efeitos.
Em primeiro lugar, sucede que os pais se oponham à continuação dos estudos dos
filhos. Também acontece que o aluno não sinta por parte dos pais uma exigência ou
que esta exigência se faça acompanhar, contraditoriamente, de palavras desmobiliza-
doras.
Os pais de Augusto, de origem portuguesa, queriam que o filho fosse advogado ou en-
genheiro e não achavam que o liceu profissional fosse uma boa alternativa. Foi necessária
a intervenção dos professores para que ele pudesse continuar a estudar depois do CAP e
do BEP e estava fora de questão que ele continuasse os seus estudos depois de concluir o
seu bac profissional:

É por isso que eu tenho que parar este ano porque eles não concordam que eu continue. É uma espécie
de vingança da parte deles porque frequento o bac pro (…) eles achavam que estava a estudar para
nada, uma perda de tempo (…) E eles disseram-me que se eu prosseguisse para o BTS me punham na
rua (…) Mas existem outros meios, os cursos por correspondência ou os nocturnos. Vou-me informar
e vou tentar fazê-los. (bac pro 2 MSMA, E101)

211
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Mais tarde, Augusto gostaria que os seus filhos fossem… para o liceu geral para serem
advogados. Ele não conseguiu responder à ambição dos seus pais, mas retoma-a para os
seus próprios filhos.

[A minha orientação no LP?] Bem, os meus pais estavam muito contentes porque não ia passar a
minha vida a perseverar nos meus estudos, era preciso que eu arranjasse trabalho e quanto a isso eles
não se opuseram. (Ra., BEP1 secretariado, E90)
Quando eu dizia à minha mãe que queria ser médico, ela dizia-me: é preciso estudar durante muito
tempo, é preciso aprender muitas coisas na vida. Não é que ela me desencorajasse mas era preciso que
eu tivesse consciência do que estava a dizer. (R., 3T, E135)

Em segundo lugar, a exigência dos pais por vezes é tão grande que provoca no jovem
um stress paralisante. Também acontece, como vimos, que os pais exerçam fortes pressões
no momento da orientação. Acontece mesmo que a exigência dos pais provoca na verdade
um verdadeiro logro na vida do filho.

E depois os meus pais sempre me ajudaram demasiado, o que fez com que eu sempre estivesse habitu-
ado a ser ajudado e hum… consequentemente não fui habituado a desenvencilhar-me sozinho e talvez
seja por isso que eu falhei um bocadinho. Mas bem, agora tenho consciência disso e cabe-me a mim
seguir o meu caminho. (R., BEP2 paredes mestras, E56)
[P.: Na tua opinião, porque é que nunca foste uma aluna excelente na escola? É por causa de ti ou da
escola?”] Na realidade, é porque quando era mais nova o meu pai me queria ajudar, e depois como ele
não era paciente quando eu não percebia à primeira, dava-me um estalo, então por isso eu falhei e criei
um bloqueio em relação à escola. [P.: Achas que é por causa disso?] Penso que sim, porque ele nunca
me ligou muito, com excepção da escola. (Ra., BEP2 secretariado, E180)
[A minha mãe] estava sempre atrás de mim, anda, vai fazer os deveres, vai fazer isto, vai fazer aquilo
e pronto stressava-me e porque andava sempre atrás de mim eu não fazia nada do que me dizia, não
fazia. Janine vai fazer isto, sim eu dizia-lhe sim, dizia sim mas não fazia, era só para a chatear mas
de facto era a mim própria que estava a prejudicar, a prova é que existem algumas disciplinas em
que não tive boas notas. E depois quando estava na Martinica as relações entre mim e a minha mãe
eram muito tensas, aconteceu depois da morte do meu pai, eles tinham muitos problemas entre si
e como eu sou muito parecida com o meu pai, então isso reflectia-se. (Ra., bac pro 2 informática
secretariado, E9)

Angélique fez um ano de secretariado, depois passou para o ramo de sanitário e social.
A mãe, caixa de supermercado, que pertencia a uma família de nove filhos e foi obrigada
a abandonar cedo a escola, teve com certeza peso nesta reorientação…

A minha mãe gosta muito do ramo clínico, era o que ela queria ter feito mas não conseguiu porque
antes era difícil e por isso comprou uma colecção de livros, há imensos em casa (…) Ela está contente
que eu o faça porque é uma profissão que lhe agrada muito (…) Por vezes, dou-lhe umas pequenas
aulas, falo-lhe das coisas que são interessantes [à mãe e à sua irmã mais velha, que trabalha em gra-

212
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

vura]. [Quanto ao secretariado] ela dizia que não era uma boa profissão e que eu iria fracassar: então
forçosamente parei. (Ra., BEP1 sanitário e social, E177)

Por fim, acontece com muita frequência que os pais fazem aos filhos exigências con-
traditórias.

O meu pai também andou no LP. Ele fez o ensino técnico, sabe de que se trata (…) Ele está contente
que eu esteja num LP. Não lamenta que eu não faça o ensino secundário (…) Ele sabe muito bem
que concluiu o ensino técnico e foi bem sucedido. Ele conquistou uma situação que lhe permite viver
convenientemente (…) Pode afirmar que não é porque eu não faço o liceu normal que não conse-
guirei. [A minha mãe] preferia o Seconde, Première e Terminale, mas se eu for bombeiro ela ficará
contente na mesma. Ela prefere que eu faça uma coisa que me agrade do que me aborreça na escola.
(R., BEP2 electrotecnia, E37)

A história escolar destes jovens é inteligível, inclusive nos seus enraizamentos familia-
res, na medida em que é estruturada por processos que se encontram nas diferentes histó-
rias. Mas estes processos combinam-se entre si com múltiplas configurações e exercem os
seus efeitos sobre o indivíduo, por definição singular. Mas não se podem tirar conclusões
sobre a identificação destes processos através de uma determinada história singular. Os
processos familiares não são os mesmos e não funcionam da mesma forma em Neuilly e
em Saint-Denis – de forma que a sociologia pode produzir, sobre os alunos destes conce-
lhos, enunciados comparativos, de valor probabilista. Por esse facto, as histórias singulares
de dois jovens de Saint-Denis não são as mesmas, inclusive na mesma família – de forma
que não temos o direito de nos servir da Sociologia para categorizar jovens singulares.
O funcionamento dos processos familiares que contribuem para a produção de histó-
rias escolares é ainda mais complexo quando os pais não são os únicos membros da famí-
lia, nem os mais influentes em matéria de aproveitamento escolar. Já sublinhámos, numa
investigação anterior, que frequentemente era a irmã mais velha a personagem central em
matéria escolar (Charlot, Bautier & Rochex, 1992). Também notamos que a reputação
demoníaca deixada no estabelecimento pelo irmão mais velho ou, pelo contrário, felizes
reencontros com uma prima matriculada na mesma turma podem deixar uma marca na his-
tória escolar de um aluno. Não voltarei a estes casos, que se encontram na história escolar
dos alunos de liceu profissional.
Proponho, contudo, algumas citações que mostram que, também aqui, é necessário
desconfiar de ideias preconcebidas. Comecemos por este bonito caso da aluna que quase
desistiu porque a sua mãe se preocupava demasiado com ela e que conseguiu dar a volta
graças… à sua irmã mais nova e a um apartamento demasiado pequeno! Dedico este caso
a todos os obstinados dos “pais que se demitem”, dos alunos que estão em xeque por causa
de lares demasiado pequenos e outros adeptos do pensamento automático.

213
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Sandrine, 19 anos, tem um BEP secretariado e está, no momento da entrevista, no últi-


mo ano STT142. Ela partilha um quarto com a sua irmã de 13 anos que está no 4e.

A uma dada altura, já não me lembro se foi no collège, (a minha mãe) andava de tal maneira atrás de
mim que já não podia mais. O que fez com que isso me tenha desmotivado (…) O que fez com que eu
tenha tido vontade de desistir para ela parar (…) Mas num certo sentido, eu estudei um bocado para
lhe mostrar que era capaz (…) Na realidade, foi sobretudo a minha irmã que fez com que eu continu-
asse os estudos. Como ela é uma pessoa muito interessada, eu disse a mim própria… que deveria fazer
um esforço. Ela dedica-se muito aos deveres (…) O que faz com que, na realidade, em relação a antes,
eu não possa deixar de estudar para ouvir música porque me arrisco a perturbá-la. O que faz com que,
quando ela estuda, eu seja obrigada a estudar. [Além disso, a mãe compara-a à irmã] Isso também faz
com que eu tenha vontade de provar que sou capaz de estudar. (E148)

Os irmãos, as irmãs, primos e outros membros da família que são bons alunos ou aca-
baram os estudos servem com frequência de modelo mas eles também podem servir de
contra-modelo: eu não me vou moer o juízo como eles, sobretudo se de qualquer forma
não me serve de nada, mais vale vender de porta em porta como o meu primo.

Sim, sim, ela estava sempre com a cabeça enfiada nos livros a dizer “amanhã tenho um exame disto,
isto e isto. Tenho que ler um livro”. E eu pensava: oh… bem é melhor não continuares Isabelle [risos]
(Ra., CAP2 fotografia, E126 – a irmã estudou Direito na universidade)
[Béatrice, 26 anos, tem um CAP de estenografia-dactilografia e trabalha. Ela cita a sua avó que era
contabilista e andava sempre angustiada] Ela ficava doente. E acho que foi a partir dessa altura que eu
pensei: “nunca tenhas responsabilidades!” Quero dormir descansada. (E156)
[A irmã de Noëlle estudou Letras na universidade durante três anos, não encontrou trabalho, é caixa de
supermercado e cabeleireira] Francamente, é para isso que se estuda… (4T costura, E131)

O indivíduo alimenta-se do seu tecido familiar e não é por isso surpreendente que as
exigências e os modelos da família contribuem fortemente para estruturar a relação dos
indivíduos com o saber e a escola. Mas não esqueçamos a relação inversa – “o que a escola
faz às famílias”, recuperando a feliz expressão de Philippe Perrenoud (1994). A orientação
no liceu profissional, sentida por algumas famílias como uma vergonha, pode perturbar
profundamente as relações familiares.

Com a minha mãe tudo bem, com o meu pai mal chegava a casa e começava logo a dizer que era um
falhado, ele não digeriu. [A minha irmã mais velha que está no último ano do liceu] Ela sabe muito
bem que eu não sou burro mas para ela são todos umas nódoas, uns preguiçosos, aqueles que não têm
vontade de fazer nada, e no entanto a minha irmã sabe como sou e o meu pai também. (R., BEP de um
ano contabilidade, E182). O pai, militar, queria que ele fosse para Saint-Cyr ou para o Politécnico143.

NT: A sigla francesa STT significa Sciences technologiques tertiaires: “ciências tecnológicas terciárias”.
142

NT: Saint-Cyr é uma das escolas militares mais prestigiadas em França, bem como a École polytechni-
143

que, uma instituição de referência com mais de 200 anos de história.


214
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Eu não queria vir para aqui. Queria fazer o bac, como as minhas irmãs. (…) Ainda por cima quando
me chateio com a minha irmã Nadia ela não para de dizer que sou burra porque estou a fazer um
BEP. (Ra., BEP2 contabilidade, E188 – uma irmã prepara um mestrado em Psicologia, a outra, uma
licenciatura em Inglês)

O aluno que frequenta um BEP tem que afrontar a decepção que provoca nos seus pais
e os sarcasmos dos irmãos e irmãs que foram bem sucedidos. Embora a mãe se enterneça
com facilidade (o argumento é sempre o mesmo: a partir do momento em que eu sou feliz,
ela fica contente), o desprezo do pai é duradouro e por vezes irredutível. O aluno tem que
encontrar um meio para negociar a paz e a sua plena reintegração na família, o que exige
por vezes (nomeadamente nas famílias “favorecidas”) várias semanas, até mesmo vários
meses. Quando se constrói esta configuração de sucesso que foi analisada no capítulo
precedente, ela provoca geralmente uma reabilitação do aluno: ele tem boas notas e boas
apreciações na caderneta (o que para os pais também constitui uma novidade…), parece
contente por ir à escola, amadurece, as perspectivas de trabalho surgem, em suma a angús-
tia parental diminui e a ferida narcisista dos pais cicatriza-se, bem como a do aluno.

2. Algumas histórias

Se queremos perceber o que está em jogo nas famílias através da escola, é preciso que nos de-
brucemos sobre a singularidade das histórias e das configurações familiares. Este facto exigiria
muito mais páginas do que aquelas que posso consagrar aqui a esta questão, mas quero, pelo
menos, apresentar muito sucintamente algumas configurações particularmente significativas.
Comecemos pela suposta demissão dos pais. As famílias africanas, nomeadamente
magrebinas, são as primeiras a serem alvo desta acusação. Ora, quando o pai, pelo menos
quando tem poucas qualificações, ou até é analfabeto, tem dificuldades em decifrar as
lógicas escolares não quer dizer que se demita. Além disso, mesmo quando não está muito
presente do ponto vista escolar, ele pode ser substituído por outro membro da família –
geralmente a mãe, o irmão ou a irmã mais velha.

2.1. Fatima: a minha mãe ia falar com os meus professores e prometia-lhes que eu
faria melhor no ano seguinte
Fatima tem 19 anos e repete o segundo ano de BEP secretariado depois de ter reprovado
no exame do ano passado (E96). Nós já nos cruzámos com ela várias vezes ao longo das
citações: é ela que teme que os seus pais a casem se ela reprovar outra vez no BEP, é tam-
bém ela que mergulha profundamente no universo imaginário (“Quero ser secretária de
direcção e serei o braço direito do meu chefe”).

Talvez seja de família (…) O meu pai e a minha mãe mal sabem ler, na Argélia quase não foram à
escola, resultado – o meu pai limpa os comboios e a minha mãe não trabalha. Quanto ao meu irmão

215
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

mais velho, ele é pior que eu, quando chumbou no seu BEP/contabilidade ele abandonou a escola e o
meu irmão mais novo parou de estudar no 3e. (…) Eu, embora não goste da escola, continuo a estudar
porque tenho que acabar o meu BEP. Apesar de tudo penso no meu futuro. (…) E se eu não conseguir
o BEP este ano, não sei o que me vai acontecer – os meus pais vão com toda a certeza casar-me (…)
[P.: Como é que os teus pais reagem em relação aos teus irmãos?] Muito mal, mas já não podem fazer
nada. Eles são obrigados a deixá-los andar, caso contrário os meus irmãos saem de casa e a minha
mãe não suportaria tal coisa. E hoje em dia ela está arrependida (…) Eu passei todos os anos à justa.
A minha mãe ia falar com os meus profs. e o meu director porque não queria que eu chumbasse. Ela
prometia-lhes que eu faria melhor no ano seguinte (…) Quando era mais nova nunca chumbei. Mas
na realidade tinha vergonha da minha mãe e se eu não sou boa aluna é um bocado por causa dela. Mas
como nas vizinhas do bairro ninguém chumbou, a minha mãe não queria que nós fossemos a excepção
à regra (…) Acho que se tivesse chumbado talvez me conseguisse safar, mas estava habituada a ter a
minha mãe atrás de mim. (…) E se o meu irmão mais novo não conseguiu foi porque a minha mãe o
defendia e lhe dava razão em todas as asneiras que fazia. E ela contava aos outros que os profs. não
gostavam do filho dela, é por isso que ele reage assim.

Este exemplo é interessante, não só porque é bastante representativo de um certo tipo


de famílias magrebinas, com as quais os professores têm problemas, mas também porque
ele nos recorda alguns factos sociológicos maiores.
Em primeiro lugar, nas famílias populares (e muito particularmente no Magrebe e no
perímetro do Mediterrâneo) a educação dos filhos provém mais das mulheres do que dos
homens. Não que estes últimos estejam fora do jogo: o seu peso simbólico é importante.
Mas é, precisamente, porque o seu peso simbólico é importante que os homens são dis-
cretos, eles não tem a seu cargo as tarefas diárias da educação, eles intervêm em último
recurso, quando a mãe já não consegue esconder o que se passa ou quando a face pública
e oficial da família é solicitada, nomeadamente em casos de convocatória por parte da ins-
tituição, como a escola ou a polícia. Os professores surpreendem-se com frequência com
o comportamento destes pais, que oscila entre o conflito com a instituição e o correctivo
ao filho, administrado publicamente. É lógico: o pai é neste caso o representante oficial da
família, ele deve assumir o conflito que lhe mereceu a convocatória, situando-se do lado
do filho ou do lado da escola e deve assumi-lo de uma forma simbolicamente demons-
trativa. E se não se tratasse de assumir um conflito em nome da família então porque o
convocariam? É preciso acabar com a polarização do debate sobre os homens (demissão
dos pais, irmãos mais velhos um tanto ou quanto lendários…) e interessar-se também, e
em primeiro lugar, pelas mães e irmãs mais velhas, a quem é incumbida a responsabilidade
diária efectiva da educação dos seus filhos.
Em segundo lugar, estas mães são protectoras, super-protectoras, (a vida é difícil, o
mundo envolvente é perigoso) e elas ainda o são mais com os seus rapazes. A sua primeira
reacção é dar razão ao filho – o que quer dizer acusar os professores ou encontrar circuns-
tâncias atenuantes para o filho ou, com frequência, as duas coisas. Não é a demissão dos
pais que deve ser temida, é a super-protecção das mães!
216
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Em terceiro lugar, nos debates esquece-se com frequência uma personagem que, con-
tudo, é importante: a vizinha. A vida de uma família popular é submetida ao comentário
constante de um coro regulador, o das vizinhas. São elas que estabelecem, sancionam, di-
fundem a reputação de uma família, ora, o mau aproveitamento escolar põe em causa esta
reputação. Vai-se à escola não só com a sua família mas também com os seus vizinhos…
Voltemos a ouvir Fatima e este espantoso pedaço de frase: “como nas vizinhas do bairro
ninguém chumbou”. Quando um filho reprova, é a sua mãe que reprova, publicamente, no
palco do bairro social. Aliás, a mãe de Fatima não contou a ninguém que a sua filha tinha
sido orientada para o BEP – “talvez porque no fundo dela própria tivesse vergonha”.
Em quarto lugar, e por último, quando a situação resvala, quando os rapazes se trans-
viam, os pais não se demitem: eles sentem-se impotentes e sofrem. O que podem eles
fazer? Nada, “caso contrário, os meus irmãos saem de casa e a minha mãe não suportaria
tal coisa”. Estes pais precisam de ser ajudados e não culpabilizados. Mas não é fácil ajudá-
‑los porque eles atiram logo a responsabilidade da situação para a escola e os professores.
O que é sem dúvida injusto mas não é totalmente falso: a escola e os professores têm uma
parte de responsabilidade nesta situação – a sua parte, nem mais, nem menos, esta parte da
qual eles próprios, por sua vez, tentam livrar-se evocando a demissão dos pais.

2.2. Mourad e Mohamed, alunos de liceu profissional e chefes intelectuais da família


No entanto, nem todas as famílias magrebinas funcionam no mesmo modelo. Eis um outro
caso: um caso onde é o próprio aluno, o filho mais velho da família (ou daqueles que ainda
vivem com os pais) que assume a função simbólica de referência em matéria escolar. Eis
dois exemplos.
Mourad tem 19 anos e prepara um BEP/mecânica automóvel (E50). Já é nosso conhe-
cido: é ele que pensa que “é preciso mostrar às pessoas que somos melhores que os outros,
porque não estamos no nosso país” e que, para isso, encontrou ajuda na sua religião.
Mourad tem um projecto: continuar a sua família, na realidade reconstrui-la, e ter filhos
que não sejam filhos do bairro e que levem uma vida normal – em suma, filhos que “sejam
como toda a gente, médicos ou advogados”.

Eu não quero morar num bairro social, prefiro ter uma casa. É preciso começar a trabalhar para a com-
prar e o melhor é que tenha muito dinheiro depressa e bem, comprarei a casa e depois tenho filhos. De
acordo com as circunstâncias, os meus filhos não vão nascer num bairro social, eh! (…) Eu não quero
que eles façam como eu. Eu quero que eles sejam como toda a gente, médicos ou advogados. Ora,
isso não vai acontecer se viverem no bairro e se se derem com as pessoas da rua. Ah, se eu pudesse,
inscrevia-os numa escola privada. (…) Eu acho, da forma que está a juventude, que ela começa a
ser corrompida muito cedo, a próxima geração vai ser pior, então mais vale afastar as crianças para
seguirem um bom caminho. Eu antes não era bom aluno (…) O meu objectivo é ter filhos e conseguir
que sejam bem sucedidos, por isso o resto, em último caso, estou-me nas tintas, bem porque o meu
pai morreu quando eu tinha oito anos, hum… o meu irmão foi-se embora, as minhas irmãs também,
por isso armei-me um bocado em parvo e tenho vontade de reproduzir a família, fazer alguma coisa
217
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

apesar de tudo, porque na minha família somos bastante orgulhosos. Já que agora toda a gente se foi
embora, eu tenho vontade de continuar. É por isso que não me meti nas asneiras da droga e isso tudo,
estou-me nas tintas (…).

Mohamed, 19 anos, está no primeiro ano de bac profissional contabilidade (E118). De ori-
gem marroquina, ele chegou a França com 10 anos. Tem dois irmãos e quatro irmãs, é o mais ve-
lho de todos. O pai é camionista e a mãe dona de casa e frequenta um curso de alfabetização.

O meu pai dá muito valor aos estudos porque ele não estudou. E ele não quer que nós trabalhemos,
que tenhamos como ele um trabalho difícil. Por isso, sempre me incentivou a estudar, isto é, nunca me
disse: “não vais mais à escola, vais trabalhar”. Mas, por um lado, sinto que ele não se interessa muito
por aquilo que estudo. Isto é, para ele significa “estudar, vai lá, estuda mas não me fales nisso porque
ainda és muito jovem, tens que…”, eu tenho 19 anos e quanto mais avançar mais ele se interessará
por aquilo que faço. Isto é, agora ele não quer saber, ele sabe que quando se estuda se tem 24-25 anos,
por isso ele mostrará interesse daqui a alguns anos. (…) Agora está-se nas tintas só se interessa pela
caderneta (…).
A minha mãe está contente, ela está muito contente porque os filhos dos vizinhos não fazem nada de
nada. Ela está satisfeita porque o seu filho vai à escola e não anda por aí a fazer asneiras. Por isso ela
está satisfeita, ela não sabe o que estou a estudar, ela não sabe em que ramo me aventurei, ela não sabe
nada, nada de nada. Sim, eles nunca foram falar com os profs., não sei... se eles fossem falar com os
profs. talvez percebessem melhor (…) [A mãe dele começa a alfabetizar-se] Tem categoria, ela tem
um caderno de deveres e estuda à noite e tudo. [risos] Meu Deus, está-me sempre a fazer perguntas
“como é que se escreve isto?” Ela repete a pronunciação, eu ensino-lhe e tudo. Sabes, quando estou
a ver televisão, ela diz “ensina-me isto e aquilo”. Algumas vezes ajudo-a, ela escreve a lápis e eu
corrijo os erros. Ela aprende a escrever a morada, a data de nascimento dela, a profissão. Ela aprende
a escrever muitas coisas (…).
Existe outra coisa que é muito importante para mim, é o facto de ser o filho mais velho da família (…)
Tenho que dar o exemplo (…) Eles vão tomar-me como exemplo, eles não têm o pai como modelo
mas sim o irmão mais velho, eu. Quer dizer que se eu fizer asneiras o meu irmão mais novo também
vai fazer a seguir. Ainda não acabou, se eu conseguir entrar na faculdade e estudar eles também te-
rão mais hipóteses de estudar (…) Isso é explicado, tu sabes, pela Sociologia, na rubrica da família,
a família [risos]. E então, o filho mais velho ou a filha mais velha, é dito que as crianças têm mais
tendência a seguir o exemplo do irmão mais velho do que o dos pais (…) Lá em casa existe uma at-
mosfera propícia aos estudos. Francamente, gosto desta atmosfera. Em minha casa, temos um quarto
que só tem secretárias, estás a ver é óptimo. Assim, ajudo o outro irmão que tem oito anos e está na
escola primária.

É bem visível, no caso de Mohamed, como é que se constrói a configuração familiar


singular a partir de um conjunto de processos articulados.
O pai incentiva… mas não se interessa pelo que estuda Mohamed. No fundo “ele está-
‑se nas tintas” e a mãe “não sabe nada”. Verifica-se neste caso a situação ambígua e difícil
do trânsfuga (Ernault, 1974; Terrail, 1990). Ele responde à exigência familiar e sente-se

218
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

orgulhoso por isso, mas responde num domínio onde, precisamente, a sua família não
tem competências; de forma que são os sinais exteriores que manifestam o êxito (“ele
interessa-se pela caderneta”), sem que o filho possa partilhar o mundo no qual entra com
aqueles que dão tanta importância ao facto de ele entrar. O orgulho faz-se acompanhar de
sofrimento e da procura de um verdadeiro reconhecimento… que corre o risco de nunca
acontecer (o meu pai “mostrará interesse daqui a alguns anos”…). A lógica dos jovens de
famílias populares consiste em estudar “para passar” (Charlot, Bautier & Rochex, 1992).
Nós vemos aqui que esta lógica também se enraíza numa exigência familiar que significa
simultaneamente o valor do sucesso escolar e a falta de interesse em relação àquilo que se
aprende na escola144.
O filho mais velho ultrapassa o pai. Este facto é debatido em termos de posição legí-
tima (“eles não têm o pai como modelo, mas sim o irmão mais velho, eu”), mas trata-se
também de ocupar o lugar vago de chefe intelectual da família. Lugar esse, que Mohamed
também ocupa em relação à sua mãe que está a aprender e ler e escrever – a relação de
cumplicidade escolar entre a mãe e os seus filhos ganha aqui uma nova forma (ela inverte-
‑se) e conforta evidentemente “a atmosfera estudos”, da qual fala Mohamed.
Tudo acontece, é claro, sob o olhar dos vizinhos – a mãe “está muito contente porque
os filhos dos vizinhos não fazem nada de nada”. A Sociologia dá o seu aval e, se necessá-
rio, legitima ainda mais a posição do filho mais velho Mohamed. Este último, é verdade,
fica um bocado embaraçado por invocar tais argumentos… – “Isso é explicado, tu sabes,
pela Sociologia, na rubrica da família, a família (risos)”145.

2.3. Fabrice: se pudesse escolher, escolhia a vida do meu pai com o cérebro do meu irmão
O Fabrice (E4) multiplicou-se em tentativas escolares e extra-escolares (Seconde enge-
nharia civil, Première F1 mecânica, BEP restauração em alternância com pequenos tra-
balhos na construção civil). No momento em que é entrevistado, ele acaba de terminar o
seu serviço militar e de entrar no 1º ano de bac pro manutenção de sistemas mecânicos
automatizados (MSMA). Ele tem 20 anos, um irmão mais velho de 22 anos (no IUT146
Informática) e uma irmã de 16 anos (no Seconde), ambos bons alunos. O seu pai, de ori-
gem portuguesa, é electricista numa grande empresa de aeronáutica; a sua mãe (da Ilha da
Reunião) toma conta de crianças.

144
Salvo excepções, é claro – há sempre excepções. De relembrar a aluna do ramo sanitário e social que
repete as lições para a mãe e a irmã. Por outro lado, é conhecido que os militantes (seja do que forem) se
interessam pelo saber enquanto sentido e enquanto arma e transmitem com frequência este interesse aos
seus filhos (Laurens, 1992).
145
Mohamed usa aqui aquilo que aprendeu para dar sentido à sua vida – e não é pouco, são os intelectuais
do liceu geral que fazem isso mais do que os alunos de LP, mas quando é uma estudante a entrevistá-lo
pode ousar (de forma um bocado embaraçada, apesar de tudo…). O facto de a estudante, que faz esta
entrevista (Saliha Yanouri), ser ela própria jovem, estudante e de origem magrebina estabelece uma cum-
plicidade sem dúvida importante para o sucesso da entrevista.
146
NT: A sigla francesa IUT significa Institut universitaire de technologie: “Instituto Universitário de
Tecnologia”.
219
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

“O que eu queria era agradar aos meus pais”, diz Fabrice. Mas como é que se pode
agradar aos pais quando, para lá de um aparente consenso familiar sobre a importância da
escola, o pai e a mãe exprimem, na realidade, exigências contraditórias?
É a mãe que apresenta legitimidade no que diz respeito à escola: ela estudou, o que não
é o caso do pai, ela ajuda os seus filhos com os deveres, ela “está presente, incita, incita”,
enquanto o pai “não se mete muito”. Além disso, a mãe sacrificou-se pela educação dos
seus filhos, o que lhe confere, pelo menos psicologicamente, um direito sobre os estudos
dos filhos – “A minha mãe estudou e se não foi trabalhar foi por nossa causa, para que
tivéssemos uma boa educação”. Ela não hesita em fazer uso deste direito: quando Fabrice
reprovou no 3e, a sua mãe, para o castigar, proibiu-o de jogar futebol (que era para ele,
ainda é, o maior prazer da sua vida)147.
A posição desta mãe é clara: ela quer que os seus filhos concluam o bac. O Fabrice as-
sume este desejo mas não é capaz de o satisfazer. Ele tenta desesperadamente salvar a sua
própria imagem: “Não é para me gabar mas, se quiser, não me subestimam”. Ele age com
base numa grande causalidade externa; para explicar os seus fracassos, ele dispõe sempre
de uma causa alheia à sua vontade: “tive amigdalite”, “o percurso demorava mais de uma
hora e meia”, “é preciso ter cunhas”. O Fabrice partilha com a mãe o desprezo pelo ensino
profissional: “Eu quando estava no ensino geral não tinha noção do BEP, CAP, tudo o que
fosse bac profissional, na minha opinião não era para mim, não achava que fosse uma boa
solução”. O problema é que, depois de ter reprovado no 3e, Fabrice vê-se orientado, quer
queira quer não, para os ramos tecnológicos ou profissionais. A sua mãe, aliás, não se priva
de lhe relembrar as suas aspirações (as dela) desvanecidas: “Aliás, a minha mãe diz-me
de vez em quando, rimo-nos disso, ‘querias ser médico, já viste no que te transformaste?’
[risos] (…) É para rir, não é por mal”.
O pai de Fabrice aparenta sempre ser o tipo de marido que aprova as escolhas da sua
mulher: “na vida e na escola sim, o meu pai avisou-me várias vezes, ‘tens que estudar para
seres bem sucedido’. Sim, mas…”.
O pai de Fabrice teve uma vida interessante, que fascina o seu filho e ele conta-lha de
bom grado. Como o leva com ele no fim-de-semana quando vai vender carros. Ele sabe
muitas coisas, este pai, e ensina-as a Fabrice. O problema é que estas coisas nada têm a ver
com o sucesso escolar, sobre o qual, em princípio, recai a exigência do pai.

[Vender automóveis durante o fim-de-semana] agrada-lhe, foi assim que eu aprendi a conversar, a
me integrar, acho que foi por isso e também a ouvi-lo, eu dou muita importância ao que o meu pai
me diz porque eu gostava de ter tido a vida que ele teve, no entanto é um mero operário, mas gosto
muito da vida dele. (…) Para já, quando ele era mais novo era um líder, ele era bem constituído.
(…) Nunca ninguém lhe partiu a cara (…) e depois não sei, cada vez que diz alguma coisa, o que

Temos aqui um novo exemplo que explica porque é que para muitos alunos a escola representa um
147

sacrifício, uma renúncia àquilo que para eles é essencial.


220
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

me irrita é que tem sempre razão [tanto em relação às raparigas com quem namoro, como para as
motas, os carros].

De forma declarada, o pai de Fabrice exige-lhe que estude na escola. Mas na realida-
de ele não pára de lhe dizer, para lá do discurso explícito, que o que importa na vida são
outras coisas. E não perde uma oportunidade para o desencaminhar para fora da escola.
“O meu pai aquilo que vê é que tem dois homens em casa, há um que estudou, tudo bem,
e há outro, eu, que não está nada bem, eu posso ser útil e posso trabalhar, posso aprender
montes de coisas e ainda estou aí, na escola.” O Fabrice sente-se prisioneiro da ambigui-
dade do seu pai, bloqueado entre um discurso oficial e uma mensagem implícita. E ele
reproduz esta ambiguidade: enquanto o seu comportamento obedece às normas efectivas
do pai, o seu discurso confere ao pai uma exigência de sucesso escolar que na realidade
pertence à mãe.

Para lhe agradar também gostava de ter sido bom aluno. [P.: Para lhe agradar sobretudo?] [silêncio]
Por mim também, mas acho que em primeiro lugar seria para lhe agradar, talvez seja estúpido porque
ele sempre me disse para estudar para mim e não para os outros mas acho que era para lhe agradar. [P.:
E à tua mãe?] Também, eu falo do meu pai, o meu pai é mais importante do que a minha mãe, mas é
pelos dois, mas para mim isso é discutível.

O Fabrice também tem um irmão, que é muito importante na sua história, e uma
irmã.
Com a irmã “a relação é conflituosa”. Mas o seu papel é claro: ele protege-a, vigia-a
e até a denuncia ao pai quando a vê com um rapaz – contudo não quer que o tomem por
um “machista”.
Com o seu irmão, em contrapartida, dá-se bem. Este irmão tem um bac, ele é aquilo
que a mãe gostaria que Fabrice também fosse. Mas, na verdade, o Fabrice não gostaria de
ser como o irmão (ser o que a sua mãe queria que ele fosse).

O meu irmão é muito mais culto do que eu, ele tem o bac e eu não tenho nada disso [mas quando ele
compra alguma coisa, paga-a enquanto o meu pai e eu regateamos o preço;] o meu irmão, se quiserem,
ele é inteligente mas não tem o lado prático, (…) eu acho que, em último caso, ele é ingénuo, inteli-
gente mas ingénuo. (…) Eu sempre achei que devia ser o mais velho da casa (…) fui eu o primeiro a
ter uma namorada, o primeiro a andar à porrada, fui eu que fiz em primeiro tudo aquilo que ele devia
ter feito. [P.: Gostarias de ter sido o filho mais velho?] Sim, mas não gostava de ser como ele, a vida
dele é muito monótona, eu gosto de acção. Se quiserem, se eu pudesse escolher, escolhia a vida do
meu pai com o cérebro do meu irmão.

A vida do meu pai com o cérebro do meu irmão… É um pouco surpreendente porque,
se se acreditar naquilo que acaba de explicar, o cérebro do seu irmão não é o instrumento
ideal para viver a vida do seu pai. Mas a coerência reside noutro ponto: esta fórmula asse-
gura uma síntese entre o desejo e o dever, a vida do pai e as exigências da mãe.
221
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

O Fabrice não imagina a sua vida daqui a 10 anos (apesar da minha insistência…).
Preso num double bind familiar paralisante148, é-lhe impossível projectar a sua imagem no
futuro porque lhe é impossível construir uma imagem de si reconciliada. Até lhe é impos-
sível saber o que vale realmente.

De uma maneira geral, os tipos que estão aqui também não são tipos muito espertos. [P.: Achas que
são menos inteligentes do que noutros sítios?] Eu não digo que não sejam inteligentes, acho que são
menos cultos talvez. Se eu disser que eles são menos inteligentes vão pensar que eles são estúpidos,
eles não são estúpidos, eu vejo ao meu redor, não são assim tão estúpidos e eu também acho que não
sou assim tão estúpido.

Como é que se pode estudar na escola para se ser alguém quando não se conhece o
verdadeiro rosto desse alguém? O caminho que a sua mãe lhe propõe conduz ao rosto do
seu irmão e a essa vida que não quer. Mas o caminho que o seu pai simboliza conduz hoje
em dia a posições inferiores: o Fabrice desistiu do bac restauração porque não suportava
servir jovens da idade dele; ele faz um estágio com o seu irmão mas viu-se “no meio dos
caixotes” enquanto o seu irmão estava “no escritório dos chefes”. Também não quer isto.
O Fabrice não é “assim tão estúpido”. O que é estúpido é ser obrigado a estudar na es-
cola para vir a ser chefe: o que se aprende na escola não tem legitimidade por si própria,
nem legitimidade enquanto saber necessário para exercer a profissão. O problema é que
na sociedade actual não são aqueles que namoram, que sabem andar à porrada e que são
capazes de regatear que são chefes mas aqueles que têm o bac.

[O meu irmão] por ter o bac é mais bem visto mas ele próprio já me disse que tudo o que aprendeu no
collège já não lhe é útil, não é importante para trabalhar. Mas eu, tudo o que era História, as línguas,
Inglês, Francês, tudo o que era redacção, isso tudo, era razoável mas sempre achei isso estúpido,
nunca gostei disso, não me interessava nada e ao meu pai também não e ele [o irmão] era bom a Ma-
temática e a Física por isso conseguiu encontrar um rumo. [Num estágio feito em conjunto na Seïta149]
a mim puseram logo no meio dos caixotes com os gajos e ele foi imediatamente para o escritório dos
chefes porque tinha o bac e ele próprio me disse que o que fazia era muito básico.

O que falta a Fabrice é um projecto. Mas não um projecto profissional: um projecto


de vida, um projecto de si. O que supõe que, de qualquer forma, no plano explícito ou
implícito, ele ponha fim aos desejos contraditórios que o seu pai e a sua mãe depositaram
sobre ele. Sendo bem claro que o desejo não assumido não se esvanecerá da sua vida; ele
permanecerá em segundo plano, fantasma daquele que poderia ter sido, pronto a ganhar
vida se se apresentarem novas circunstâncias.

Isto, é entre duas injunções contraditórias, sendo cada uma delas legítima.
148

A Seïta é a Société d’exploitation industrielle des tabacs et des allumettes, a fábrica de produção de
149

tabaco e fósforos mais importante de França.


222
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

2.4. Maryline: não estudar era a minha forma de revolta


Não existem mais histórias-tipo de crianças de famílias favorecidas que tenham acabado
no liceu profissional do que histórias-tipo de alunos de origem magrebina. Mas nos casos
de alunos “favorecidos” escolarizados no LP encontram-se com alguma frequência dois
processos. O primeiro processo: desde muito cedo que o pai exerce uma grande pressão
escolar sobre o seu filho; este último, que sente que não desperta mais nenhum interesse
a não ser escolar, usa o insucesso escolar para, simultaneamente, resistir, vingar-se e sub-
meter o pai a uma chantagem afectiva mais ou menos consciente. Segundo processo: o
pai, que teve uma vida bem sucedida sem no entanto ter feito grandes estudos, investe na
escolaridade do seu filho, que… prefere imitar o que o pai fez (mas numa outra área) mais
do que ser bem sucedido graças à escola. Os dois processos podem aliás articular-se um
no outro: o pai, self made man, exerce uma pressão devastadora sobre o seu filho desde a
escola primária150. Acabamos de analisar, com o Fabrice, um caso de desfasamento entre
o discurso explícito do pai e a sua mensagem implícita e, embora não se tratasse de uma
família favorecida, não é indispensável voltar a este caso. Concentrar-me-ei então aqui no
primeiro processo.
Já conhecemos a Maryline, “a mosquinha morta”, da qual analisámos as difíceis rela-
ções com Fatoumata, “a ralé”. Ela tem 16 anos e está inscrita no 1º ano de BEP sanitário e
social depois de ter passado por dificuldades escolares desde o 6e e ter feito um BEP secre-
tariado (E207). O seu pai é engenheiro de produtos farmacêuticos e a sua mãe secretária
numa clínica. Ela tem uma irmã mais velha, que termina um DESS151. A chave da história
escolar de Maryline reside na identificação com a mãe e na resistência, por via da escola,
à opressão que o pai provoca em toda a família.

[Na escola primária] não gostava de ir à escola, não gostava de estar separada da minha mãe, queria
ficar sempre ao pé dela. (…) A minha mãe não diz nada porque tem medo do meu pai, o meu pai é
que manda em tudo (…). O meu pai é muito rígido, não podemos sair, a maquilhagem é dispensável;
quando chego a casa ao fim da tarde, sou obrigada a desmaquilhar-me antes de ele chegar. A minha
mãe pelo contrário não diz nada, ela acha que eu fico bonita maquilhada, ela gosta quando eu uso saia,
enquanto o meu pai gostaria mais que eu me vestisse como as outras com umas grandes sapatilhas,
os calções, ele diz que eu me visto como uma velha idiota [risos] [P.: Porquê uma velha idiota?] Acho
que na cabeça dele uma jovem não usa maquilhagem, ela deve estar-se nas tintas para a aparência.
A minha mãe e eu levamos muito tempo a arranjar-nos. Para ele escolher as roupas é estúpido, acha
que é uma perda de tempo, que eu me devia concentrar mais nos estudos antes de ir para a escola em
vez de perder tempo com tudo isto. É uma educação muito firme (…) O facto de ter ido parar ao liceu
150
Eu falo do “pai” porque nas entrevistas de que disponho trata-se do pai e não da mãe. Eu sei que as
mães também podem ser stressantes e limitadoras. Eu creio contudo que não se trata tanto de uma coinci-
dência o facto de as entrevistas colocarem em cena o pai e não a mãe, mas trata-se mais de uma questão
da diferença, na sociedade actual, entre relações maternal e paternal e entre investimentos no sucesso
escolar.
151
NT: A sigla francesa DESS significa diplôme d’études supérieures spécialisées: “diploma de estudos
superiores especializados”. Trata-se de um diploma equivalente a um mestrado profissional.
223
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

provou bem que isso não serviu de nada, ele foi demasiado rígido e eu quebrei, ele foi rígido com
a minha irmã e funcionou, mas comigo não (…) A minha irmã tem uma personalidade tramada mas
ainda assim ela tinha medo dele porque ele dava-lhe uns grandes murros quando estava enervado, por
isso ela não dizia nada e estudava. Para mim, não estudar era a minha forma de revolta, se quiseres,
e, pronto, não fiz nada, disparatei. Não devia, a prova é que continuo a ter a mesma educação e olha
onde estou.
Gostaria que o meu pai tivesse confiado mais em mim, me desse mais liberdade (…) Não tenho
qualquer relação com o meu pai, quase nunca falamos um com o outro, falamos para dizer coisas sem
nenhum interesse. Sim, houve coisas marcantes quando era pequena, eu tinha necessidade de afecto,
ele tinha tendência para ser violento quando eu tinha más notas ou quando falava mal, quando dava
erros nas frases. Tinha necessidade de afecto, ele dava o inverso daquilo que precisava. Uma coisa é
certa, quando tiver filhos não os farei sofrer e não lhes vou bater a não ser que se droguem.

Existe nesta família uma luta surda entre o pai e a mãe em relação à apropriação-
‑captação das suas filhas e o sucesso escolar delas é um trunfo central nesta luta.
O pai ganhou a luta com a irmã mais velha: ela inclinou-se perante a sua vontade,
acabou o liceu, teve uma nota excelente no bac. Maryline, em contrapartida, resiste ao pai,
recusa ter medo ao ponto de ceder e identifica-se com a mãe. Ela tem plena consciência de
que a sua recusa em estudar é uma forma de se revoltar contra o pai: de protestar contra o
facto de ele não lhe dar o afecto de que precisa, de fazer pressão para que ele mude a sua
forma de a educar, provavelmente também de se vingar dos murros que recebe.
As relações entre estas quatro personagens são mais complexas do que parecem ao
primeiro olhar.
A irmã não se inclina só por medo do pai, na realidade ela identifica-se com ele: “Ela
tem o mesmo feitio que o meu pai, na verdade, quando não consegue explicar-me alguma
coisa enerva-se”.
A mãe não é tão submissa ao pai quanto parece. Ela perdeu a luta com a sua primeira
filha mas ela luta contra o pai, de forma surda, através da resistência da sua segunda filha.
Assim, ela encoraja de uma forma mais do que implícita a Maryline a maquilhar-se, contra
a opinião do pai que acha que é tempo perdido e manias de “velha idiota” (é simpático em
relação à mãe…).
Maryline, sem dúvida nenhuma, identifica-se com a mãe: ela estava sempre com ela
quando era pequena, e, tal como ela, gosta de se vestir bem, de se maquilhar. Mas, obser-
vando com mais pormenor, a Maryline também tem traços do seu pai. Em primeiro lugar,
a resistência: a irmã talvez tenha o mau feitio do pai, mas é Maryline que afirma a sua
vontade – como o seu pai, enquanto a irmã cede, como a mãe. Em seguida, a Maryline
abandonou a preparação de um BEP de secretariado, profissão da sua mãe, para entrar no
BEP sanitário e social, sector onde o seu pai trabalha. Mais uma vez, ela é completamente
consciente: “A minha mãe ficou desiludida, ela queria que eu fizesse secretariado, o meu
pai ficou contente”. Finalmente, ela começa a adoptar as normas escolares do seu pai:

224
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

“O meu pai sempre me disse que abaixo de 15 era mau, antes não acreditava nele, agora
quando me dão uma nota inferior a 15…”. No entanto, o pai não ganhou completamente.
Maryline é agora uma aluna melhor mas será que vai fazer o mesmo que a sua prima que
“lutou” para passar do BEP para o ensino geral? “Não teria coragem, gosto demasiado da
vida”, responde Maryline – que nos confirma mais uma vez que para os alunos de LP só
se pode ser bom aluno no ensino geral se se renunciar à vida.
Também não nos devemos esquecer das outras personagens virtuais desta história, in-
troduzidas espontaneamente no discurso por Maryline: os seus futuros filhos. O que é uma
boa educação? “A pergunta é difícil. Saber falar com o seu filho, permanecer calma, ser
indulgente, ensinar-lhe as boas maneiras, incutir-lhe gosto pelos estudos, o que não é ne-
cessariamente fácil, é por isso que não quero ficar em Seine-Saint-Denis, quando crescer,
acabou-se a Seine-Saint-Denis.” Ensinar-lhe as boas maneiras (as da mãe) mas incutir-lhe
gosto pelos estudos (partilhar o desejo do seu pai): a síntese está feita.
Por fim, é interessante notar que as relações de Maryline com Fatoumata e as outras
da “ralé” cruzam-se com as relações que mantém com o seu pai. Não só porque o seu pai
é indirectamente responsável (segundo ela) pelo facto de ela estar no LP e ter de afrontar
Fatoumata mas também em pontos mais precisos. Por exemplo, o pai gostaria que ela se
vestisse “com grande sapatilhas e calções”, isto é, na realidade como as raparigas do bair-
ro. Ao fazer frente a Fatoumata é, mais uma vez, o seu pai que está a enfrentar. De forma
mais prudente: “Não tenho vontade de me deixar agredir” pelos outros alunos – já levei
murros suficientes do meu pai, poderia acrescentar-se. Neste ponto, a Maryline aproxima-
se finalmente da postura da sua mãe.
Bem, dir-se-ia talvez que se pode concluir que se os filhos de famílias favorecidas vão
parar ao LP é por causa daquilo que se passa na família. Não, não é necessariamente por
“causa de”. Sem dúvida, todos estes processos familiares que analisámos contribuem po-
derosamente para estruturar uma história escolar como a de Maryline. Contudo, mesmo
neste caso, a família não determina sozinha o insucesso escolar: o que teria acontecido
se a Maryline gostasse da escola, se a tivessem feito gostar do que lá acontecia, do que a
escola lhe oferecia? Será que a escola teria sido um terreno de afrontamento com o pai?
E aliás, teria havido afrontamento, ou pelo contrário construção de uma relação afectiva
mais profunda a partir da cumplicidade escolar entre o pai e a filha? Não são só as rela-
ções familiares que influenciam a história escolar, é também, inversamente, o que se pas-
sa na escola que contribui para a construção do indivíduo e das suas relações familiares.

225

CAP. 12
A SALA DE AULA

A escola no dia-a-dia é, em primeiro lugar e antes de qualquer outra coisa, a sala de aula
– o centro do reactor escolar, o lugar onde se arquitectam as dificuldades dos alunos e
onde elas se devem resolver para que se possa construir uma relação positiva com o liceu
profissional.
A sala de aula é o saber – ou, de forma mais ampla, a “aprendizagem”. O mínimo
que se pode dizer é que algumas das afirmações destes jovens surpreendem: a poesia, é
para aqueles que querem ser poetas no futuro e a história fala de coisas que eu não posso
comprovar uma vez que não estava lá. No LP até existem alunos que não suportam as
oficinas.

Nas aulas aprendem-se muitas coisas e há algumas coisas que nunca iremos fazer, por isso não per-
cebo porque é que as aprendemos, não serve de nada. [P.: Não são interessantes por si só?] Não é
interessante para quem já sabe o que quer fazer depois e estudar isto que não tem nada a ver é uma
estupidez. [P.: E a poesia?] Só é útil para quem quiser ser poeta. (R., bac pro 1 MSMA, E6)
Não gosto de História porque fala do passado, por isso não me interessa muito visto que eu não tinha
nascido e porque não sei se é de facto verdade ou não. (Ra., BEP1 contabilidade, E186).
A mim o que me desmoraliza é a oficina, não gosto. Por mim não iria à oficina, passaria o tempo todo
na escola. (R., CAP3 construção metálica, E125; este é o aluno, já nosso conhecido, que na realidade
queria ser cozinheiro)

A sala de aula é o saber mas também os professores. Em relação a estes professores, os


alunos emitem julgamentos que vão da raiva pura e simples à total aprovação.
Há elogios sem reservas e outros que se fazem acompanhar de uma restrição mortal.

Os meus profs. são simpáticos. Se temos um problema eles ajudam-nos, se não percebemos alguma
coisa vamos ter com eles fora das aulas e eles explicam-nos. (Ra., BEP2 contabilidade, E87)
De uma forma geral são porreiros, salvo quando um aluno tem dificuldades, ele é posto de lado e só
ensinam os bons. (R., BEP2 electrotécnica, E36)

Existem alunos que consideram que os professores são uns cães racistas (E109) e ou-
tros que são mais cuidadosos na condenação, ou mais ambivalentes.

Há profs. com os quais se pode conversar e há outros que não vale a pena, mais vale conversar com
uma vaca (…) Todos os dias dou uma olhadela no quadro dos professores ausentes. Eles são feitos de
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

betão armado e quanto menos gostamos deles, menos eles ficam doentes com frequência (…) Há uns
que são porreiros e outros que são maus, como no collège (…), às vezes temos mesmo a impressão de
não estar numa sala de aula. (Ra., BEP2 secretariado, E99)

Finalmente, a sala de aula são os colegas. Mas atenção, não se deve confundir o colega
de turma com o verdadeiro amigo, o do bairro social. Longe de ser o lugar da solidarie-
dade exclusiva juvenil face à instituição escolar (também é, pelo menos em determinados
momentos), a sala de aula é perpassada por várias rupturas, fontes de conflitos entre os
alunos.
A sala de aula-saber, a sala de aula-professores, a sala de aula-colegas: dissociáveis em
relação à análise, estas três dimensões estão estreitamente ligadas nos factos. Começarei
por isso por evocar dois casos onde esses laços surgem de forma evidente, depois retoma-
rei a análise ponto por ponto.

1. Sébastien: eu não presto atenção porque já percebi. Yoan: eu não presto atenção
porque não percebo

Sébastien, escolarizado no 4e technologique industrial num liceu profissional, está muito


próximo do ideal-tipo do aluno para quem só existe tarefas e não saber. Para ele, com-
preender é saber executar os exercícios solicitados. De igual forma, a partir do momento
que se percebe o que é preciso fazer não é necessário “dar-se cabo da cabeça para ir mais
longe”.

[No 6e] Tive uma súbita vontade de trabalhar, e estudar era mais difícil. [P.: Para ti o que é que signi-
fica aprender?] É difícil. É ler durante horas, tentar memorizar, tarefa muito difícil. À parte disso tudo
bem. Mas quando memorizo, memorizo (…) A partir do momento em que entra na cabeça, aí percebo
bem. [P.: Então que é que significa compreender?] Significa saber fazer, saber responder às perguntas
e exercícios exigidos (…) Porque é preciso saber fazer, é preciso aprender e depois para trabalhar é
preciso ter diplomas e estes diplomas não se obtêm da forma como queremos, não fazendo nada (…)
Eu ouço o que os professores dizem mas como durante as aulas eu estou armado em mariola (…)
Converso com os colegas, depois rimo-nos, às vezes vemos bandas desenhadas, é raro, depois rimo-
-nos, dizemos parvoíces. [P.: Mas porque é que não estão atentos?] Porque achamos que já percebe-
mos o que ele quer explicar e quando já percebemos divertimo-nos e quando não percebemos aí es-
tamos atentos (…). [P.: E não tens vontade de tentar perceber um pouco mais?] Não, quando percebo
alguma coisa não tenho vontade de compreender mais. Percebi aquilo que era suposto perceber e é só.
Não estou para me chatear mais. (E197)

Aprender significa ler durante horas, para memorizar, para saber fazer os exercí-
cios e responder às perguntas, o que permitirá obter os diplomas e um trabalho: tudo
acontece como se Sébastien não conhecesse outra coisa para lá da tarefa, da actividade
exterior, sem que vá um pouco mais além nesta tarefa a nível intelectual. Sébastien em-

228
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

prega a palavra compreender e é difícil pensar que este termo não implique um mínimo
de actividade intelectual “interior”. Contudo, é sempre em referência a uma actividade
descrita pelas suas características exteriores que Sébastien fala de trabalho escolar. Estar
atento,

é ouvir o prof., olhar para ele, ver as explicações que este dá, tirar apontamentos, colocar dúvidas.
[Reflectir significa] pensar naquilo que é preciso fazer. [O Inglês] é uma aula de repetição (…) apren-
de-se qualquer coisa na segunda-feira, na terça-feira é posta em prática, quarta-feira não há aula, na
quinta-feira faz-se exercícios e na sexta-feira faz-se um teste; para saber se se aprendeu a matéria.
[Um exercício correcto a Matemática] é fazer um traço com uma régua, destacar os resultados a cores,
sublinhar o número e a página do exercício, ter o seu caderno e livro. [Ele explica igualmente] No
collège e no liceu colocam-nos muitas perguntas e é preciso responder rápido e bem, mesmo que não
esteja correcto não faz mal, mas mais vale que estejam correctas.

A partir deste momento, não é surpreendente que os saberes ensinados na escola não
pareçam, ao olhos de Sébastien, ser dotados de um estatuto especial. “As bases”, isto
é, o Inglês, o Francês e a Matemática, “são as disciplinas essenciais da vida”. Inversa-
mente, o que se aprende na escola pode aprender-se em outro lugar, embora demore
mais tempo: “Se não formos à escola podemos aprender na mesma mas demorará mais
tempo”.
O Sébastien parece estar bloqueado numa lógica da tarefa e das explicações necessá-
rias para realizar esta tarefa, como se no horizonte do acto de aprendizagem não houvesse
objecto de saber. O caso de Yoan, do qual agora vou falar, é mais complexo: ele sente que
“compreender” é uma actividade de uma natureza específica mas esta actividade passa-lhe
ao lado. Nem Sébastien, nem Yoan compreendem mas o Sébastien acredita ter percebido
o que devia compreender (e por isso não presta atenção), enquanto Yoan pensa que de
qualquer forma não compreenderá (e por isso não presta atenção).
Nós já conhecemos o Yoan (E137). Ele tem 16 anos, é filho de porteiros de um bairro
social e está matriculado no 3e technologique152. Ele “tem medo dos profs.”, déspotas que
ele compara aos políticos e aos polícias: “eles acham-se superiores”, “eles querem saber
tudo”. É evidente que Yoan tem um problema relacional com os professores mas não se
pode perceber o problema, nem tratá-lo se não se analisar a dimensão epistémica. Em pri-
meiro lugar, é a situação escolar enquanto situação de aprendizagem que não faz sentido
para Yoan – e, ao que parece, nunca fez.

Na escola, num certo sentido, divertimo-nos e aprendemos (…) Levanto-me de manhã, estou bastante
bem-disposto por encontrar todos os colegas (…) O que me irrita é estudar, não gosto [P.: O que é que
quer dizer para ti estudar?] Não é o facto de ir à escola, tirar apontamentos e voltar para casa ao fim

152
O Yoan frequenta o 3e technologique num collège, mas eu recordo aqui o seu caso porque ele demons-
tra bem quais são as dificuldades epistémicas em que esbarram os alunos que frequentam, ou frequentarão
em breve, no LP.
229
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

da tarde, é ir às aulas, prestar atenção. Quando chegamos a casa, memorizar o que nos foi ensinado. É
isso o mais difícil… memorizar. Mas para mim, estudar quer dizer aprender as lições, ter boas notas.
Aprender não é tudo, é preciso aprender e depois compreender ao mesmo tempo e eu não consigo
fazer as duas coisas ao mesmo tempo, não consigo (…) Na escola, eu não presto muita atenção,
divirto-me nas aulas com os colegas, conversamos e tudo… (…) Quando abro os meus cadernos
tenho de estudar as lições e isso é raro… E depois se tiver estudado uma lição não sou capaz de a
compreender porque não a segui com atenção, porque não ouvi o que era necessário fazer. Tenho que
fazer um exercício, eu faço-o mas não o compreendo e no dia do teste eu vou simplesmente copiar e
não consigo ter boas notas por causa disso. Se eu prestasse atenção não iria compreender, por isso não
sei… não consigo (…) Porque eu sou assim em frente à prof., por isso calo-me, mas há sempre colegas
que falam e colocam dúvidas, então de repente deixas de ouvir, prestas atenção ao colega que está a
falar e depois ouço a prof., depois não percebo tudo o que ela nos explicou. Prestei atenção, memorizei
um determinado nome mas não compreendi exactamente o que isso quer dizer… Eu pessoalmente não
compreendo a matéria (…) há cinco anos que ando no collège e nunca percebi nada e as lições mesmo
que as aprenda, simplesmente as transcreva, não consigo perceber e não sei porquê (…) transcrevo-
‑as simplesmente e se me pedirem para explicar eu não saberei dizer nada porque eu não percebi…
Vou dizer muito simplesmente o que ouvi… É por isso que não presto atenção nas aulas, porque não
percebo nada, então não serve de nada ouvir e recitar o que se ouviu.

Tentemos reconstituir o processo de aprendizagem como o Yoan o concebe (implicita-


mente). Para ele, o que significa aprender? Em primeiro lugar, ouvir o professor. Depois,
copiar a lição (e sem dúvida tirar apontamentos) para guardar uma prova do que foi dito
pelo professor. Por fim, memorizar (apropriar-se das palavras da professora através da
prova escrita que ela deixou). Em seguida, poder-se-á desta forma repetir (oralmente ou
por escrito) e assim ter uma boa nota. Em suma, aprender é reconstituir o que foi dito,
passando pelo escrito, de forma simples ou dupla (tirar apontamentos, teste). Mas se não
se percebeu o que foi ensinado, esta reconstituição cai por terra face ao mínimo pedido de
explanação.
Este processo, no Yoan, encontra vários obstáculos.
Em primeiro lugar, é preciso prestar atenção. Não é fácil já que este acto supõe não rir,
nem conversar com os colegas – logo sacrificar, pelo menos parcial e temporariamente,
os colegas.
Em segundo lugar, mesmo se se prestar atenção isso não é suficiente: também é preciso
compreender. Ora, parece que para Yoan compreender exige que se oiça tudo, que se siga o
professor passo a passo. Além disso, mesmo que se preste a atenção a tudo não quer dizer
obrigatoriamente que se compreenda.
Em terceiro lugar, é preciso memorizar, o que é difícil. Mas isso ainda não é suficiente:
é preciso ser capaz de explicar o que se reteve, o que se torna impossível quando não se
compreendeu.
Alguns destes obstáculos podem ser ultrapassados: o Yoan poderia, com um esforço e
mesmo não sendo fácil, reconstituir o enunciado do professor (ouvir-memorizar-repetir).
230
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Em contrapartida, ele não consegue explicar por palavras suas o que o professor explicou,
porque não percebeu153. A partir de então de que serve prestar atenção se a instituição não
fica satisfeita com o facto de o aluno repetir e se ela exige que ele tenha compreendido e
volte a explicar?
Este impasse epistémico origina evidentemente efeitos relacionais. Os colegas estão
ainda mais no centro deste universo escolar quando, neste universo, são a única fonte de
satisfação possível – mas então torna-se ainda mais difícil prestar atenção ao que diz o
professor. Por outro lado, estão reunidas todas as condições para um afrontamento entre o
Yoan e os professores.
Observemos a situação à luz da lógica de Yoan. Se o Yoan não percebe, o professor
está lá apesar de tudo para alguma coisa – se ele explicasse melhor talvez o Yoan perce-
besse quando prestasse atenção. Contudo, o Yoan está atormentado com uma dúvida sobre
o seu próprio valor: não consigo, não sei porquê. Esta misteriosa impotência para perceber
é para Yoan uma fonte de sofrimento. Ora, ela é lhe atirada à cara consecutivamente pelos
professores (“eles dizem-nos que somos mongolóides, que temos que ir ao psicólogo”), o
que alimenta e aviva o sofrimento e constitui igualmente uma insuportável pretensão dos
professores ao negar qualquer responsabilidade nas dificuldades escolares de Yoan e ao
apresentarem-se a si próprios como se estivessem acima do lote comum. Os professores,
os polícias, os políticos: três espécies de indivíduos que querem saber tudo, que não res-
peitam nada, que se afirmam acima dos outros através da força ou da manipulação.
Observemos agora a situação à luz da lógica dos professores: Yoan não presta
atenção nas aulas, não faz os seus trabalhos de casa, se ele não consegue é eviden-
temente da sua responsabilidade e o professor tem legitimidade total para lhe fazer
críticas. Mas porque é que Yoan prestaria atenção nas aulas se de qualquer forma ele
não percebe e como é que ele poderia fazer os exercícios se a lição não está transcrita
– e embora a lição esteja transcrita ele não sabe o que é preciso fazer e não consegue
compreender? Etc.
Como é que se pode sair deste círculo vicioso? Melhorando as relações entre o Yoan
e os professores através de uma melhor gestão do plano “afectivo”? Mas não é o afectivo
que aqui está em causa, embora a situação gere evidentemente efeitos de ordem afectiva.
Existe aqui um conjunto de relações – com os amigos, os professores, consigo próprio
– a funcionar num sistema de sacrifícios e compensações que está encravado. Este sis-
tema para Yoan só gera sofrimento e humilhação, nunca prazer. Reparar este sistema
não passa por mandar o Yoan ao psicólogo (pelo menos não passa só por aí), não passa
por reunir informações sobre a vida pessoal de Yoan e a sua família (os profs. são como
os políticos, querem saber tudo154), passa em primeiro lugar e antes de qualquer coisa
153
Remeto aqui, e de maneira geral para todo este capítulo, para a secção do capítulo VI onde apresentei
um “modelo epistémico”.
154
“Eles querem saber tudo… Não se pode esconder nada (…) Se temos problemas, com a família, eles
querem saber tudo quando precisamente é algo pessoal e eles vão contar a toda a gente… Não podemos…
Toda a gente fica a saber na escola.”
231
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

por tentar com que Yoan penetre nesta actividade intelectual complexa que se chama
“compreender”.
O Yoan e o Sébastien confrontam-se com uma dificuldade epistémica, presente em
muitos alunos de liceu profissional. Eles podem, fazendo um grande esforço, memorizar
o que o professor explica. Mas a instituição escolar exige mais, ela exige que o aluno
compreenda. Ora, compreender é uma actividade que para eles é bastante misteriosa. Uma
coisa é certa: “compreender”, tem uma ligação com “ser capaz de responder às perguntas
que vos são colocadas e fazer os exercícios exigidos”. Alguns (como Sébastien) parecem
considerar que “ser capaz de responder” e “compreender” é exactamente a mesma coisa.
Outros (como Yoan) pressentem que “compreender” é outra coisa, que permite responder,
mas eles não conseguem concretizá-la, nem sequer saber bem do que se trata.
Esta dificuldade epistémica tem efeitos no campo do saber mas também no campo das
relações: o aluno não presta atenção (porque acha que já percebeu ou está de qualquer
forma incapaz de perceber), diverte-se com os seus camaradas, entra em conflito com os
professores. No horizonte da sala de aula enquanto espaço social encontra-se a questão do
saber – problema esquecido com frequência pela Sociologia da Educação.
Vamos agora explorar esta lógica da turma, indissociavelmente epistémica, relacional
e identitária.

2. Os colegas

Os jovens de liceu profissional, como sabemos, conferem uma grande importância à vida
relacional. Por isso estaríamos à espera de encontrar um grupo/classe muito unido, sólido
face à instituição escolar e aos professores. De facto, não é nada assim: no seu discurso, a
turma surge como um grupo social de fraca coerência.
Em primeiro lugar, há colegas e colegas – para ser ainda mais exacto, colegas de tur-
ma, amigos (os do bairro) e verdadeiros amigos (subgrupo do precedente). Por exemplo,
as “asneiras” que se fazem com uns e com outros não são as mesmas: com os colegas de
turma, deliram e riem-se; mais grave (eventualmente) é com os amigos.

Na realidade, nem todas são minhas amigas, são raparigas que também estão na mesma turma que eu.
(Ra., BEP1 contabilidade, E74)
São sobretudo colegas de escola e depois, fora dela, praticamente não nos conhecemos. (Ra., bac pro
2 vendas, comércio, serviços, E112)
Os amigos não é nas aulas que eu os encontro. São pessoas que estão na minha turma, não são amigos.
Os amigos são aqueles que tenho fora da escola. Mesmo assim, é porreiro, divertimo-nos. (R., BEP2
electrotecnia, E38)
Não procuro muito fazer amizades com os colegas daqui, para mim não passam de colegas de turma.
Não, não saio com eles, não é o meu meio. Tenho amigos de infância, estou sempre com eles. Com
estes não partilho muito as mesmas ideias, com os do bairro temos uma maneira de pensar comum,

232
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

gostaríamos todos de conseguir a mesma coisa, pensamos: merda, não vamos ficar aqui a vida toda,
temos que ir embora daqui. (R., bac pro 2 mecânica automóvel, E16)
Há o colega, o amigo e o verdadeiro amigo. O colega é aquele com quem nos rimos na aula e na escola
e depois acabou-se. O colega amigo é aquele com quem nos rimos na escola, com quem nos diverti-
mos depois quando dormimos em casa uns dos outros, saímos com as amigas, os amigos, assim são os
amigos. E verdadeiro amigo é aquele com quem podemos sempre contar em qualquer circunstância.
(R., bac pro 1 MSMA, E7)

Alguns alunos destacam a solidariedade com os colegas de turma. Outros, em contra-


partida, insistem nos fenómenos dos clãs – frequentemente descritos pelo facto de terem
uma base “étnica” (no sentido muito lato do termo).

Estamos sempre a ajudar-nos uns aos outros. Às vezes somos 3 ou 4 e explicamos as dúvidas uns aos
outros. Se não temos a certeza perguntamos ao prof. (Ra., BEP2 contabilidade, E80)
Entre colegas de turma somos muito solidários, ajudamo-nos mutuamente. (R., bac pro 2 energética,
E104)
Durante estes dois anos, os dois anos do bac, ajudámo-nos uns aos outros. (Ra., bac pro 2 informática
secretariado, E119)
[No BEP] Era mais olho por olho, dente por dente, cada um no seu canto ou então em grupos. (R., bac
pro 2 informática contabilidade, E115)
Ao nível da turma existem pequenos grupos separados quando… há a facção dos franceses e a facção
dos argelinos/marroquinos (…) eu estou sozinha, prefiro assim. (Ra., BEP1 secretariado, E79 – fran-
cesa nascida em França e origem argelina)
Na minha turma, somos bastante solidários… quer dizer não somos solidários a 100% mas apesar
de tudo há mais de metade que é solidária. [P.: E a outra metade?] Não, nem por isso, digamos que
formam um grupo à parte, estão no canto deles! Na verdade, eles preferem ficar entre eles e não vêm
ter connosco. [P.: Porquê?] Não sei porquê, mas o ano passado não era assim como este ano, existe
um ressentimento negativo entre as alunas, talvez seja porque são de nacionalidade estrangeira ou
então é porque não vêm com muita frequência à escola. Por isso já não têm qualquer classificação
e por isso nunca terão o bac, logo talvez seja por isso que não se interessam pela escola, pelos estu-
dos. Talvez seja por isso. (Ra., bac pro 2 informática secretariado, E202)

A principal linha de fractura entre os alunos é evocada na última citação: de um lado


estão os alunos que estudam para fazer alguma coisa da sua vida, do outro, aqueles que
não fazem nada e que vão ter uma vida difícil. A coexistência é muito difícil porque os
segundos, cujo absentismo abranda o ritmo do professor que tenta terminar o programa do
exame, atentam contra as hipóteses de sucesso dos primeiros. Mas também se pode ver a
situação a partir do outro ponto de vista: existem os “betos”, que “têm a mania”, e os que,
ao contrário, são fixes, gostam de rir, em suma que têm uma boa mentalidade. Eis algumas
citações, escolhidas entre vários fragmentos de entrevista que evocam este problema.

[Se estamos atrasados no programa é] por culpa dos que faltam porque é preciso esperar por eles
(…) Hás uns que só dizem parvoíces nas aulas para tentar passar o tempo. Ok, tudo bem, eu às vezes

233
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

também não tenho muita vontade de estudar mas isso toda a gente, no entanto há alguns que têm
capacidades e não querem (…) Não há tempo a perder, eu não tenho vontade de ficar mais um ano no
BEP, no ano que vem. (Ra., BEP2 materiais flexíveis, E2)
Há três quartos da turma que não estão nada interessados no que fazemos nas aulas, e depois os
profs. param para os repreender (…) Eles armam confusão, estás a ver, e depois por causa deles
eu não consigo estar concentrada a ouvir o prof., estás a ver. (Ra., BEP2 contabilidade, E188)
O que me desagrada aqui é sobretudo as raparigas. Elas já andaram à porrada por parvoíces, por
causa de gajos, pá! Todos os dias há zaragatas, insultos, as gajas são lixadas aqui. Não gosto delas,
irritam-me, elas são violentas (…) Eu não me misturo com elas, mas sei que elas me olham com
caras de má, quero lá saber que não gostem de mim (…). [P.: Porque é que elas olham para ti com
caras de má?] Porque eu sou uma aluna aplicada! Eu não estou aqui para me divertir, eu levo isto a
sério. Elas, elas vêem-se gregas, elas estão-se a borrifar, então… Para elas, eu sou demasiado séria,
dizem que eu tenho a mania que sou boa. De qualquer modo, elas podem dizer o que quiserem, eu
penso no meu futuro. Elas vão ser umas escravas e é bem feito. (Ra., bac pro 2 materiais flexíveis,
E108)
Só nos vemos durante as aulas, eles são demasiado reservados, não temos a mesma, como é que hei-de
explicar, a mesma mentalidade (…) Quando não se tem a mesma mentalidade é difícil fazer amigos,
eles são muito reservados, só dão importância à escola, só vêm aqui para estudar, eles não se dão a
conhecer (…) Como se diz, eles têm uma dupla face, não podemos prever o que vão fazer. [Os que
têm uma boa mentalidade] riem-se, são alegres, eles estudam, aproveitam a vida, a juventude. (R.,
BEP2 contabilidade, E3)

Como explica bem a Sophie, para ser bom aluno (como ela), é preciso ser “o betinho
da turma (…) porque ser bom aluno não passa só pelo nível de trabalho, mas também pelo
nível de comportamento” (Ra., BEP1 sanitário e social, E179). É preciso escolher: ou
divertir-se com os colegas ou prestar atenção ao professor. Não existe outra opção, ainda
por cima quando para grande parte destes alunos a única maneira de aprender é ouvindo o
professor. A partir desse momento, as relações serão inevitavelmente tensas entre aqueles
que escolheram os colegas e aqueles que os sacrificaram em nome do sucesso escolar. Se
queremos compreender as relações entre os alunos não nos podemos agarrar unicamente
a uma análise das interacções relacionais, também é preciso analisar a sua relação com o
saber, tanto na sua dimensão identitária (quem sou eu, e em que facção me inscrevo) como
na sua dimensão epistémica (aprender é uma actividade de que natureza?). O mesmo se
passa, como vamos ver, nas relações com os professores.

3. Os professores

Os alunos têm muito a dizer sobre os seus professores e foi muito difícil fazer uma triagem
entre as centenas de citações possíveis… Eu adoptarei aqui o modo de construção do mun-
do que tem o aval dos alunos (retirar lições das experiências ou ilustrar uma regra através
de um caso) e articularei deste modo retratos e princípios.

234
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Encontramos evidentemente nestas entrevistas, como em qualquer história escolar, re-


tratos, mais ou menos surpreendentes, de professores um pouco atípicos (pelo menos é de
se esperar…): o professor vestido de qualquer maneira e que chega sempre quinze minutos
atrasado (E45); o que é parecido com o Malcom X, que se veste como ele, “e nos cha-
ma nabos e animais” e traidores quando falamos sobre isso no conselho de turma (E65);
aquela que “quando já não aguenta mais, se fecha num armário” (E97); “a prof. muito
anarquista que nos ensinava, por assim dizer, as doenças sexualmente transmissíveis, ela
estava obcecada com a sida” (E120); a que “vem de mini-saia para as aulas e é insultada
por toda a gente (…) ela tem uma vozinha” (E167). Enfim, como diz um aluno, “estou-te a
dizer: é cada um!” Para lá destes casos anedóticos, os alunos levantam problemas de fundo
quando falam dos seus professores.
Eles impõem uma primeira regra, sem a qual nem sequer se poderia admitir ser profes-
sor: assegurar a ordem na sala de aula. Os alunos admiram o professor severo, um pouco
autoritário, até mesmo cruel. Eles queixam-se ou desprezam e destroem de qualquer for-
ma, o professor demasiado simpático ou aquele que, ao recusar assumir o seu papel, se
comporta como os próprios alunos.

Na sala de aula o ambiente é pesado. Já nem sequer falo das reuniões da direcção de turma, nós temos
cadastros em vez de dossiers, é uma matança (…) Há profs., tu sabes, como a minha prof. de Matemá-
tica, ela é má mas nós gostamos, aprendemos com ela. Sabes, ela é autoritária. Sabes, o prof. a quem
ameaçaram, é um tipo engraçado, diz asneiras e isso tudo. Sabes, ele quer armar-se em simpático, ele
goza, ele brinca e tudo (…) Tem que ser, se o prof. começa a dar-te graxa, se ele começa… não sei, se
te dá um bocado de liberdade, mas a culpa não é nossa, queremos tudo, não deixamos passar nada. Ele
deixa-nos apalpar terreno e nós queremos tudo, sem piedade. Não sei, quando não sabes exercer a tua
autoridade não deves ser professor. (R., BEP2 electrotecnia, E39)
Com o prof. de Contabilidade, mesmo quando já estou farto de o ouvir, eu nunca me porto mal porque
ele é muito nervoso. Nas suas aulas ouvem-se as moscas a voar, ele sabe fazer-se respeitar. É normal, é
um árabe como eu! [risos] Agora a sério, as suas aulas são interessantes e ele explica bem, não é muito
chato, o que é bom. (R., BEP1 contabilidade, E81)

Podemos evidentemente interpretar estas relações em termos socioculturais: para es-


tes filhos de meios populares, a vida é difícil e os fracos que se lixem; além disso, os
pais destes jovens são oriundos de culturas onde a autoridade conta muito e impõe res-
peito. Não existem razões para afastar estas interpretações mas elas não são suficientes.
Também é preciso ter em conta o significado epistémico da situação: para estes alunos,
aprender significa prestar atenção ao que diz o professor, memorizar o que ele disse, fazer
o que ele pediu. “É difícil, muito difícil”, acrescentam eles com frequência e têm razão:
para eles não só não é “interessante” (salvo excepções, voltaremos a este tema) como,
para além disso, têm que evitar divertir-se com os colegas. Uma situação de aprendi-
zagem desta natureza não apresenta aqui e agora um significado positivo, isto é, não é
incentivada por um desejo que pode ser saciado pela situação em si mesma, pela activi-
235
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

dade que é realizada – como é o caso quando se aprende qualquer coisa interessante. O
significado positivo da situação, o desejo saciado é distante: ter uma boa vida, logo um
trabalho, logo um diploma. Não existe actividade sem um móbil, não existe móbil sem
desejo e toda actividade é por isso incentivada por algum desejo. Para estes jovens, o de-
sejo que sustenta a actividade “estudar na escola” é grande mas ele remete para um futuro
distante e incerto: ter uma vida normal, uma bela vida. Portanto, para ouvir o professor
é preciso uma grande força de vontade (“é muito difícil”). Se o próprio professor não é
capaz de resistir aos colegas que querem gozar e de instaurar as condições mínimas de
comunicação não é possível ouvir e reter, logo aprender. A autoridade do professor sobre
a turma é indispensável quando “aprender” remete menos para uma actividade intelectual
pessoal do que para uma espécie de transfusão do professor para o aluno. Ela é dupla-
mente indispensável: porque prestar atenção não é muito interessante e é necessário que
alguém vos obrigue a isso; porque prestar atenção não é possível se os outros perturbam
demasiado a turma.
Temos a ordem, então, como pré-requisito. Mas ouvir só é eficaz se o professor expli-
car bem. Encontramos nos liceus profissionais a mesma definição que nos collèges: o bom
professor é, antes de mais, aquele que explica bem. Explicar significa repetir, até que toda
a gente tenha percebido, o número de vezes que for preciso, cem vezes se for caso disso, e
– é claro – o professor deve variar os modos de explicação. Aliás, para os alunos, um bom
orientador de estágio nas empresas também deveria reagir assim. Estes alunos são comple-
tamente abusivos (do ponto de vista professoral…): eles até esperam de um bom professor
que ele explique depois da aula o que eles não ouviram durante! É para eles essencial que
o professor explique bem e volte a explicar se for necessário: “Nós precisamos dos profs.,
são eles que nos ajudam a compreender” (E44). É a explicação do professor que cria saber
no aluno (na condição de este último ouvir o que ele diz); portanto, se o professor não
explica bem, o aluno reprova.
Existem professores que de facto explicam e voltam a explicar bem. Existem mesmo
alguns que chegam ao ponto de serem maçadores – mas geralmente os alunos aceitam
muito bem essas explicações, que para eles são supérfluas, porque pelo menos esses pro-
fessores ensinam todos os alunos e não só alguns.

[O professor de Contabilidade] ele é muito simpático, muito calmo e quando nós não percebemos al-
guma coisa podemos perguntar-lhe dez vezes ou mesmo cem que ele nunca se vai enervar, vai explicar
sempre. Há alunos que não param de falar durante a aula e que vêm ter com ele no fim e ele explica a
matéria e não diz “bem vocês estiveram a conversar durante a aula”, não, ele explica, ele não se pre-
cipita, é muito simpático, também há uma prof. de Secretariado, é a nossa prof. principal, ela é muito
simpática, nunca temos problemas com eles (…) ela não se enerva, ela espera que nos acalmemos e
quando já estamos calmos, aí ela começa a dar a aula. (Ra., bac pro 2 secretariado, E9)
[O melhor professor é o de Electrotecnia] Gosto dele, da sua forma de dar as aulas, ainda por cima
este professor explica bem. Se não percebes, existem vários métodos de ensino, há várias formas de

236
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

explicar (…) Deve haver 60% de profs. assim, que gostam dos alunos, que lhes dão atenção (…) Os
outros, só pensam no seu salário e é tudo. Não se pode criticá-los por isso, note-se. (R., BEP2 elec-
trotecnia, E45)
Eu pessoalmente, tenho uma prof. de secretariado que é fantástica, que nos ensina, que nos ensina
bem, ela explica-nos, ela explica-nos de tal forma que… se não percebemos, ela explica-nos. Sabes,
em comparação com os outros profs. quando lhes dizemos que não percebemos eles não querem, eles
não querem repetir… enquanto a minha prof. de Secretariado, se não percebemos, ela vai explicar-nos,
sim. (Ra., BEP1 secretariado, E79)
Eu acho que a minha prof. de Secretariado explica bem, ela está sempre a repetir até que todos os
alunos tenham percebido, e está sempre a fazer isso, sempre, sempre. (Ra., bac pro 2 informática
secretariado, E202)

Ao contrário dos professores que explicam e voltam a explicar, existem outras figuras
professorais – que são mais umas quantas razões para o insucesso dos alunos. Ao ouvir
os estudantes, não existem, claro, mil maneiras de se ser um bom professor, mas existem
talvez mil maneiras de se ser um mau professor…
Há o professor que grita quando se lhe pede que explique. Também há o professor que
aceita voltar a explicar mas que não sabe fazê-lo: repete a mesma explicação – e o aluno
continua sem perceber.

[Há professores] que a partir do momento que lhes colocamos uma dúvida começam logo a gritar,
enervam-se. (Ra., BEP1 vendas, E64)
Temos um prof., M.X., que quando não percebemos, ele não gosta muito de repetir as coisas,
eu não gosto muito da sua maneira de agir, ele exalta-se facilmente (…) Eu trabalho bastante
bem nas máquinas. Precisamente porque eu trabalho bastante bem é que cada vez que faço uma
asneira ele me fuzila, ele bombardeia-me e eu não gosto muito. (R., BEP1 ORSF, E25)
[O professor de Matemática] Quando eu não percebo ele volta a explicar-me, mas geralmente da
mesma forma que eu não percebi, por isso não dá. (R., BEP1 ORSF, E29)

Existe outra forma de não explicar aos alunos: fazer-lhes um discurso que os afoga
numa enchente de palavras – ou, uma forma mais subtil, inundá-los de fotocópias para
eles inassimiláveis. Os alunos queixam-se muito, com um tom de resignação desen-
corajada, destes professores que falam, falam, falam, enquanto eles alunos escrevem,
escrevem, escrevem. Estas entrevistas convenceram-me pessoal e definitivamente que
explicar alguma coisa e “dar uma aula” são duas actividades pedagógicas não só dife-
rentes mas também, com muita frequência, opostas. Explicar significa fazer perceber,
ajudar o aluno a aceder a um saber: a actividade é regulada em referência ao aluno e
não só ao saber (mas também ao saber, claro está, não se trata de falar de uma coisa
qualquer). Dar aulas é emitir um discurso cuja referência é a coerência do discurso
e não a compreensão do aluno. Explica-se sempre alguma coisa a alguém, enquanto
a aula pode não ser dirigida a ninguém. É claro (e felizmente…), muitos professores

237
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

têm a preocupação de explicar o conteúdo das aulas: a sua actividade comporta uma
parte de interactividade (verbal ou não) com os alunos, o que permite organizar a aula,
regressar a este ou àquele ponto, etc., em função da compreensão dos alunos. Contudo,
o que dizem os alunos leva-nos a pensar que alguns professores – sem dúvida menos
numerosos no LP do que no collège – dão aulas sem ter a preocupação de explicar aos
alunos. O fracasso de uma tal prática profissional está assegurado: para estes alunos,
aprender é memorizar o que se percebeu daquilo que o professor explicou, sem que uma
actividade autónoma de reconstrução do discurso permita “tapar os buracos”, produzir
a compreensão a posteriori. Se o professor não explica, o aluno não pode compreender,
o professor não foi útil, ele só veio para falar e “só pensa no seu salário”. Um aluno até
antecipa uma definição simples e directa do valor profissional do professor: o bom prof.
explica, o mau escreve no quadro.

[O prof. de História] Ele fala, fala, fala, ele não pára, por isso nós não ousamos interrompê-lo. Preferi-
mos deixá-lo continuar a dar as aulas e depois pronto. Hum… ele dá-nos toneladas de fotocópias, nem
sequer sabemos o que fazer com elas. Por isso, pronto (…) Parece que não está preocupado connosco,
ele dá a aula e pronto. Se tu percebeste, percebeste, se não percebeste, o problema é teu. (R., BEP2
electrotecnia, E45)
A prof. de Inglês fala sozinha durante 20 minutos, depois faz-nos perguntas sem se preocupar com o
facto de não termos percebido o que ela disse (…) Eu reparei que só lhe interessa dar a aula para nos
poder fazer testes surpresa na aula seguinte. Tenho impressão que lhe dá prazer dar-nos más notas.
(R., BEP1 contabilidade, E81)
Eu tive profs. que falavam, falavam e que para irem do A ao B tinham que ir até ao Z. O que eu que-
ro dizer é que eles não vão directos ao essencial, é muita conversa e depois no fim não percebeste
nada, quando ainda por cima é muito simples. Enquanto eu tive outros profs. que eram claros, eles
explicavam muito bem e as coisas corriam bem. Não basta só ter bons conhecimentos é preciso saber
transmiti-los aos alunos. Para mim é isso um bom professor, alguém que explica de forma clara, com
palavras claras e não difíceis. (R., bac pro 2 energética, climatização e frio, E104)
Tive uma professora de Francês o ano passado, Francês e História, ela era extraordinária (…)
Quando saíamos da aula dela sabíamos que tínhamos aprendido alguma coisa, ela falava, ela dava
exemplos, ela fazia-nos participar nas suas aulas e isso é importante porque não é interessante vir
para as aulas e escrever, escrever, escrever, passamos o nosso tempo a escrever e depois não me-
morizamos nada, não serve de nada. (Ra., bac pro 2 informática secretariado, E5)
Então, um bom prof., é um prof. hum… que explica… que nos explica… quando não compreendemos
nada ele está ao nosso lado… É isso um bom prof. [P.: E um mau professor?] É um prof. que escreve
no quadro, que nos diz o que temos de fazer e quando não percebemos fica calado, está-se nas tintas.
(R., BEP1 electrotecnia, E43)

O professor deve instaurar a ordem na sala de aula, explicar e voltar a explicar. Ele
deve também, fundamentalmente, estar ao lado do aluno, encorajá-lo, acreditar que ele
pode conseguir: “Um bom prof. é alguém que dá atenção a toda a gente, que não toma

238
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

partido nem pelos bons, nem pelos maus alunos, que gosta de explicar, por exemplo du-
rante uma hora, a dois ou três alunos o que está bem e o que está mal” (E7); “Os profs. são
próximos dos alunos e isso é bom; eles farão tudo para nos ajudar” (E177). Professores
assim, a acreditar nos alunos, encontram-se com mais frequência no liceu profissional do
que no collège.

[No collège, os professores ficam] irritados quando lhes colocamos duas ou três vezes a mesma ques-
tão (…), parece que a sua única preocupação é acabar o programa no fim do ano e marcar no livro de
ponto o que aprendemos durante o dia. Eu tinha a impressão que eles não se preocupavam com o facto
de termos percebido ou não. (R., BEP1 contabilidade, E81)
Eu acho que os profs. daqui estão mais próximos de nós (…) Eu quando estava no collège, os profs.
hum… bem, era bom dia e adeus. Aqui, não é assim, eles explicam melhor (…), eles não hesitam em
recomeçar. Um prof. não é isso, não pode dizer, vamos admitir, “tu não percebeste nada, bem, desenras-
ca-te”. No collège tinha impressão que as coisas eram assim. (R., CAP3 fabrico de espelhos, E123)
Prefiro os professores do liceu profissional. Temos mais contacto com os profs. Sinto-me melhor aqui,
eles são mais simpáticos. Quando há um aluno que não percebe a matéria eles dedicam-se a explicar
ao aluno (…) Sentimo-nos mais perto deles. (R., BEP2 vendas, E63)

Explicar, encorajar, ou ainda, segundo uma fórmula empregue com frequência por estes
jovens, “estar próximo” dos alunos: existe aqui um ponto muito importante que, mais uma
vez, longe de ser puramente relacional, remete para a questão epistémica. Para aprender,
é preciso querer, querer verdadeiramente. É necessário que o aluno queira porque ouvir e
memorizar o que dizem os professores é difícil. Mas também é necessário que o professor
queira: que queira explicar, sem se enervar, até que todos tenham percebido, que queira, de
facto, que todos sejam bons alunos. Para estes alunos, o sucesso escolar, inclusive no LP,
passa muito mais por querer muito do que por poder – ou mais exactamente ele exige que
se consiga querer. A situação ideal é aquela em que a vontade do aluno é confortada pela
vontade de toda a turma e que é posta em prática pela vontade do professor. Inversamente,
se o aluno reprova é porque “não estudou”, porque se deixou levar pelos colegas. Porque
não quis ele estudar? Porque ninguém soube, ou quis, “ensiná-lo”, como dizem os alunos.
Em última análise, se o aluno reprova é da sua responsabilidade (ele não estudou) mas
também é da responsabilidade da escola e dos professores (porque não o fizeram estudar,
não explicaram bem, não o ensinaram).
Existem professores que sabem encorajar, amparar a vontade do aluno na sua própria
vontade. No outro extremo, encontramos outra vez várias figuras: o professor que agride
os alunos, que goza com eles, que humilha uma turma ao compará-la com outra; o profes-
sor que tenta reprimir os alunos com fatalidades; o professor que desiste e se recusa a fazer
com que os alunos estudem.

A Desenho, temos um prof. fantástico (…) Ele explica-nos muito as coisas, está sempre ao nosso
lado, ele apoia-nos e hum… sobretudo ele dá as notas em função do nosso esforço. Há alguns alunos

239
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

que têm muitas dificuldades e ele ainda assim encoraja-os um pouco. É um prof. bastante pedagogo,
ele sabe despertar o nosso interesse e quer que avancemos, quer transmitir-nos essa vontade, ele quer
que nos apaixonemos por alguma coisa. E isso para um prof. é fantástico. (R., BEP2 paredes mestras,
E56)
Logo que entrava na sala de aula, ela falava disto com tanto amor, tanta dedicação, ela vivia-o, e ao
mesmo tempo era muito severa, atenção! (Ra., BEP1 de 1 ano contabilidade, E91). [Ela cita esta
professora de História do collège que lhe transmitiu a paixão por esta disciplina, que antes a aluna
detestava.]
A prof. de Desenho é tão insuportável porque à mínima coisa ela começa a atacar-nos, basta dizer
“bom dia” e já está, é um chorrilho, e ela agride-nos e tudo. (Ra., bac pro 2 informática secretariado,
E9)
Não consigo suportar o meu professor de Matemática (…), ele está sempre a gozar com os outros,
quero dizer, hum… ele chama-nos nomes e então não me agrada (…) Se ele falar comigo normal-
mente eu falo com ele normalmente, se ele falar de forma mal-educada eu vou falar da mesma forma.
Pronto. (Ra., BEP2 sanitário e social, E67)
[Depois de ter deixado o seu exame de BEP em branco e de ter reprovado] Os meus profs., de qualquer
forma, diziam-me “tu, Janine, nunca vais conseguir o diploma” (…) e os meus profs. não paravam
de repetir “não vais conseguir, não vais conseguir, não vais conseguir”. (Ra., bac pro 2 informática
secretariado, E9)
[O professor de Oficina] Ele não quer que nós cheguemos ao CAP! (…) Ele já nos disse… “tu
não vais conseguir o teu CAP porque hum”… (…) A mim, ele não mo disse, ele disse-o a alguns
alunos da turma. Eu digo-lhe “Senhor professor, não devia dizer isso aos alunos”. Porque, quer
dizer, quando ouves uma coisa semelhante, não consegues continuar a estudar bem! Dizer uma
coisa deste género! Isso não se diz! Um bom prof. não deve dizer isto, não é? Ele deve encorajar
o aluno a fazer sempre melhor. (R., CAP2 instalações sanitárias, canalização, E193)
Às vezes, no ensino técnico, os profs. estão exasperados por causa dos alunos, eles estão fartos de
ensinar. Às vezes param a meio da aula e dizem: façam o que quiserem, vocês é que sabem. Às vezes
até param dez minutos depois da aula ter começado. (R., BEP2 electrotecnia, E37)
Para o Sr. A. as coisas estão sempre bem, pá. Quando nos dá exercícios para fazer, se não fizermos
não é grave. Para ele, estudarmos ou não é problema nosso, logo se não o fizermos, é-lhe indiferente.
(R., BEP2 electrotecnia, E38)

Estes alunos, mais do que outros, precisam de se apoiar nos professores e que estes os
incentivem. Não porque têm mais carências afectivas do que os outros jovens: estes jo-
vens, na maioria dos casos, têm pais que gostam deles, eles gostam dos pais e não sentem
qualquer espécie de vontade de os substituir pelos professores!155 Não só porque estes jo-
vens necessitam de referências identitárias “sábias” que não encontram com frequência no
seu meio – embora desta vez seja verdade. Mas também, e antes de mais, porque estes jo-

A ideia de que estes jovens sofrem de carências afectivas – o que leva a supor que os seus pais não
155

gostam suficientemente deles ou não sabem gostar – representa o cúmulo da arrogância, da prosápia e da
incompreensão, da qual as classes médias (inclusive as generosas e dedicadas) dão mostras face às classes
populares.
240
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

vens, como qualquer ser humano, só podem aprender se movidos pelo desejo. Que desejo
é este? Pode ser o de um saber, interessante, até mesmo apaixonante; mas é quase sempre
através da paixão do professor que este desejo do saber chega ao aluno. É frequente que
o desejo de aprender seja na realidade este desejo de si que eu analisei como desejo de
“ser alguém”. Mas este desejo de si supõe que o próprio possa ser objecto de desejo para
o outro. Para aprender, é preciso ter vontade de se ser alguém; para ter vontade de se ser
alguém é preciso gostar-se de si próprio; para se gostar de si próprio, é preciso ser amado,
ser objecto de desejo.
O que os alunos mais encontraram até aqui na sua história escolar foram as críticas,
o desprezo. Para se reconstruírem, eles precisam de professores que lhes expliquem
e voltem a explicar (o que, em si, é já uma prova de que consideram que o aluno
pode perceber), que acreditem neles e que queiram que eles sejam bons alunos. Estes
alunos precisam de um certo tipo de contacto com o professor para aprender (estar
“próximos”), de uma certa forma de comunicação. Existe aqui um pedido expresso,
inegável, um processo que se mostra eficaz. Com muita frequência, interpreta-se este
pedido em termos de carência afectiva. É muito mais correcto falar de amparo do que
de afectividade: como, por exemplo, quando um aluno aprende ajudado por um adulto
porque ainda não é capaz de o fazer sozinho (no que Vygotsky chama a zona de desen-
volvimento próximo), por vezes ele quer aprender quando é amparado por um desejo
adulto sem ser capaz de o ambicionar sozinho – “Para já um bom prof. é alguém… que,
digamos, alguém que transmite o gosto, que tem esta capacidade, e friso esta capacida-
de, de proporcionar ao outro a vontade de fazer alguma coisa” (Ra., BEP1 de um ano
contabilidade, E91).
Esta relação entre o aluno e o professor é particular, ela não provém do registo fami-
liar; ser próximo de um professor não é a mesma coisa do que ser próximo dos seus pais.
Ser próximo passa em primeiro lugar por falar uns com os outros. Os alunos rejeitam
terminantemente o professor “que fala, fala, fala” mas esperam pelo professor que fala
com eles. Existe aqui um desafio no uso da linguagem: de um lado, as palavras difíceis
que cortam qualquer tipo de comunicação (o professor não fala com ninguém, ele dá a sua
aula), do outro, as palavras claras que explicam e a linguagem que estabelece uma comu-
nicação entre humanos. Do que é que se fala quando se fala desta forma? Antes de mais,
da vida, isto é, sobre aquilo que interessa a estes jovens. Os alunos requerem uma palavra
adulta e uma troca sobre o sentido da vida e das coisas. Mas falar, é também, por vezes,
simplesmente ter o direito à palavra, ter o direito de discordar com professor e dizê-lo156.
À linguagem que não diz nada a ninguém e coloca o aluno numa situação de dominado,
estes jovens contrapõem a palavra que liga dois seres humanos, mesmo que possa ser

156
Relembremos este aluno, já citado (E159), que “prefere estar no trabalho que na escola” porque lá tens
a liberdade de pensar e de te exprimir.
241
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

conflitual. Este adjectivo “humano” está presente em várias entrevistas e remete mais para
uma relação antropológica do que para uma relação “afectiva”.

Aqui não, é um bocado mais fraternal, as relações são mais humanas (…) Somos menos anónimos,
é menos prof./aluno (…) sentimo-nos melhor, sentimo-nos menos ridículos, menos humilhados por
uma autoridade assim, que nem sequer se sabe de onde vem. (Ra., BEP de um ano, contabilidade,
E91)
Eles são muito humanos, nós podemos ser sinceros com eles, eles são abertos… podemos falar-lhes de
tudo, de tudo, e eles falam-nos da sua vida pessoal (…) e já nos tratam como adultos. [Em comparação
com o collège] os profs. consideram-nos mais como humanos. [No Seconde] as minhas outras colegas
dizem que os professores são menos humanos. (…) O medo do prof. já não existe. [Da mesma forma,
quando ela não compreende, ela tem coragem de perguntar ao professor, o que antes não acontecia.]
Aqui o prof. convida-nos a ir falar com ele para lhe dizermos realmente o que se passa hum… e ele
vai repetir uma, duas, três, quatro, até cinco vezes... até tu perceberes, porque para ele é realmente
importante que um aluno consiga ter boas notas e existe uma cumplicidade entre o prof. e o aluno que
não existia antes. (Ra., BEP1 sanitário e social, E70)
[Um bom prof.] fomenta o nosso interesse, ensina-nos cenas sem ser aborrecido (…) É também al-
guém que fala connosco, que não nos ignora. Estás a ver, é alguém que fica a conversar connosco
mesmo depois de acabar a aula. (R., BEP2 padaria, E59)
[Um professor fora de série] dá atenção aos alunos (…) é bom falar, somos humanos (…) quando
temos problemas falamos com os nossos professores sobretudo quando sabemos que o prof. é muito
atencioso connosco, que ele nos compreende, eu acho que não se trata apenas de ensinar aos alunos
o ofício ou a Matemática, o Francês, o Inglês trata-se também de lhes ensinar a vida activa, falar-lhes
um pouco da vida, acho que não há mal nenhum nisso (…) acho que é bom haver contacto entre pro-
fessores e alunos. (Ra., BEP2 materiais flexíveis, E8)

A relação instaurada desta forma é uma relação pedagógica, diferente de uma relação
familiar. Trata-se de aprender, mesmo quando os alunos evocam a vida, para lá das disci-
plinas escolares. E é no campo do saber que esta relação tem consequências: por um lado,
não ter medo de pedir explicações suplementares e, por outro, o aluno é considerado um
ser humano, capaz de perceber se lhe for explicado outra vez, e merece que percam um
pouco de tempo com ele nesta tarefa. Trata-se finalmente de uma experiência antropoló-
gica, que se experiencia na relação assim tecida: pela sua condição, o filho do homem está
condenado a aprender com as gerações anteriores para viver – está condenado e tem a
sorte de poder fazê-lo (Charlot, 1997). O que se vive nesta experiência, de ambos os lados,
é que o aluno, apesar dos seus insucessos, é um ser humano e, enquanto tal, é educável. O
que se traduz pela confiança e cumplicidade – a cumplicidade da espécie e a cumplicidade
de dois indivíduos que colaboram na mesma tarefa, o sucesso escolar do aluno. É na base
desta relação antropo-pedagógica – irredutível a uma simples relação “afectiva” – que o
apoio é possível: o aluno, de alguma forma, entra na mente do professor que explica bem
e é impulsionado pelo desejo deste último que quer que ele seja bem sucedido.

242
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

Também não é surpreendente que os alunos evoquem não só a proximidade com o bom
professor, mas também, com a mesma frequência, a necessidade de um respeito recíproco
– que permite manter as distâncias. A relação com o outro, este outro que como eu é um
ser humano, implica um regulamento da distância. O outro é uma outra forma singular
deste ser humano que sou e por isso somos próximos. Tão próximos que existe um risco
de rivalidade, de devoração recíproca (Girard, 1982; Martinez, 1996) e por isso cada um
deve “respeitar o outro”.

É verdade que os alunos devem ter respeito pelos professores, mas os professores também devem ter
respeito pelos alunos. (R., 4T, E130)
Temos todos a mesma opinião sobre os professores e a mesma luta: quando digo luta não estou a falar
de guerra contra os profs. mas falo do facto de eles evitarem tomar-nos por parvos, para isso tentamos
estabelecer o respeito entre eles e nós, porque um prof. tem direitos sobre ti. Por isso é preciso fazer-
‑lhe ver que ele não passa de um prof. e, apesar de saber coisas que nós não sabemos, isso não lhe dá o
direito de se achar superior a nós, nem de achar que é nosso pai. (R., BEP1 contabilidade, E81)

Esta relação não é um duelo, existe uma mediação entre o aluno e o professor: a
relação tece-se a partir de uma exigência, aprender, e em torno de um objecto, o saber.
Alguns alunos, quer seja no collège ou no liceu profissional, só conseguem entrar no
campo do saber quando impulsionados pelo desejo do outro – com toda a ambiguidade
que esta expressão carrega: o desejo que o outro sente por este saber, o desejo que cada
um pode ter em ser o outro… Mas a relação permanece pedagógica, ternária: aluno,
professor, saber.
Quer seja no collège ou no liceu profissional, encontramos com frequência estes
alunos que “gostam” de uma disciplina porque “gostam” do professor que a lecciona –
mas não se deve abusar deste termo “gostar”, trata-se de algo diferente de uma simples
relação afectiva. Encontramos também, mas muito mais raramente, alunos que viveram
a experiência inversa: o seu laço com a disciplina foi quebrado, pelo menos proviso-
riamente, pela forma como o professor ensina. A relação com a disciplina é também
uma relação com os outros (àqueles que ensina) e uma relação consigo mesmo (eu que
a aprendo).

Por exemplo, antes, eu não gostava de biologia e agora ele fez-me gostar da disciplina. É um professor
que te ensina a gostar da matéria. (Ra., BEP1 sanitário e social, E179)
Se fazemos os outros gostar da nossa paixão, porque acho que é apaixonante ser professor, então
se ele partilha connosco a sua paixão nós podemos partilhá-la com os profs. (R., bac pro 1 MSMA,
E7)
[Ela teve problemas a Matemática no 4e] O prof. era muito frio, muito severo, muito rigoroso, bem,
rigoroso talvez seja normal, mas tinha um aspecto muito frio (…) não havia contacto humano e
isso… e no entanto eu gostava de Matemática, mas só o facto de o professor ser frio afastou-me um
pouco da disciplina, não da matéria porque era uma disciplina que eu gostava muito mas deixei de

243
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

estudar tanto… já não estava tão interessada como antes. (Ra., bac pro 2 informática secretariado,
E114)
É nas disciplinas dos bons profs. que eu sou bom aluno e sou mau aluno nas disciplinas dos maus
profs., são disciplinas que não me interessam (…) Eles reagem de forma negativa em relação a mim
porque são disciplinas que não me interessam, disciplinas que não tenho vontade de aprender, quando
normalmente devia ter (…) Eles não conseguem fazer com que eu goste da matéria, é mais isso, eles
não me dão vontade de aprender e de compreender. (R., BEP1 electrotecnia, E44)
É verdade que uma aula passa mais rápido quando a relação com o prof. é boa. É uma disciplina que
nem sequer é preciso estudar em casa, assimila-se 80% na aula. Quando as aulas são boas não tens que
estudar quase nada em casa. (Ra., BEP2 indústrias químicas, E60)
Quando uma prof. é simpática dá vontade de aprender com ela. (Ra., BEP1, secretariado, E79)
Quando não gosto de um professor, prefiro perguntar os resultados aos outros do que fazê-los eu (…)
Embora eu estude para mim se eu não gostar do prof. não tenho vontade de me chatear a estudar. (Ra.,
bac pro 2 informática secretariado, E122)

Na realidade, a situação ideal é quando posso aprender uma disciplina “interessante”


com um professor “interessante”. Resta saber o que significa exactamente “aprender” e
“interessante”… É a estas questões que será consagrado o fim do capítulo, mas gostava
ainda de me deter um instante sobre um último ponto que diz respeito aos professores:
fazendo fé nos próprios alunos, nem sempre é fácil ser professor, sobretudo nos subúrbios
e no LP. Alguns dizem-no claramente: “Eu não aguentaria aturar os alunos!” (E199). Por
outro lado, a propósito dos seus professores, estes alunos dão de caras com esta questão
que os atormenta quando pensam neles próprios: é porque somos maus que estamos num
LP, no subúrbio? Eles respondem negativamente no que toca aos seus professores e a si
próprios, mas eles ficam apesar de tudo na dúvida…

[Nos collèges de subúrbio] tenho a impressão que os profs. são profs. que… ninguém sabe onde os co-
locar, então são colocados nestas escolas. Quando não é isso, pelo contrário são necessárias pessoas que
tenham realmente formação (…) A maioria dos professores, é preciso ser realista, não querem dar aulas
nos subúrbios, dá muito mais trabalho, é difícil, dás de caras com montes de alunos que têm montes de
problemas. E depois, em geral, o salário é o mesmo, então mais vale ter a facilidade. Num certo sentido,
eu compreendo-os, e é pena… Mas no subúrbio é raro ter professores que estejam motivados para o seu
trabalho. Eles estão todos desencorajados, baixam os braços, não aguentam mais. Também é verdade
que eles estão completamente desorientados. Quando tens professores que são oriundos dos subúrbios é
completamente diferente. Eu tenho profs. que vêm dos subúrbios, eu tinha uma prof. de Educação Física
que até era do bairro em frente ao meu. Ah, e com ela havia um contacto, era completamente diferente
com ela, era uma prof. muito próxima de nós, mas que guardava sempre um determinado respeito, por-
que acho importante que haja respeito (…) Se não consegues fazer-te respeitar a tua aula não corre bem,
até podes dar as aulas bem que não adianta. (Ra., BEP2 indústrias químicas, E60)
Tens a impressão que eles sabem menos que os profs. de liceu geral, é verdade que tens a im-
pressão que eles sabem menos mas na realidade eles sabem tanto como os outros. [P.: Porquê
esta impressão?] Porque é um BEP, como toda a gente diz: um BEP é para quem não faz nada,

244
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

para quem não estuda, para quem não quer estudar, não são bons em nada, e com os profs. é a
mesma coisa, são metidos no mesmo saco, é igual. (Ra., BEP1 sanitário social, E179)
Mas há muito poucos professores competentes, talvez competentes não seja a palavra mas que tenham
essa vontade de ensinar há muito poucos porque, hoje em dia, os alunos são muito difíceis e há cada
vez menos profs. competentes. (Ra., bac pro 2 informática secretariado, E5)

Para enfrentar uma situação desta natureza, vale mais ser um professor mais velho,
calejado, ou pelo contrário um professor mais jovem, mais próximo dos alunos pelo factor
idade? Os alunos dividem-se.

[Os profs. mais velhos] São profs., estás a ver, que têm consideração por ti, não és desvalorizado,
ganhas mais confiança e estudas mais. Sim, é claro, a motivação, a palavra-chave é motivação. Como
é que eles te motivam de forma a participares nas aulas, a maneira de trabalhar, de apresentar as aulas.
[Os profs. mais jovens] Eles dão as aulas de forma tradicional, chegam, dão a sua aula e depois adeus.
(Ra., BEP2 indústrias químicas, E60)
[Os profs. mais velhos] Antes de nós, eles tiveram alunos que eram mais respeitadores, não armavam
confusão. Enquanto os mais jovens sabem lidar com os alunos. Era preciso mudar de profs. Os novos
professores têm mais energia, têm mais vontade que sejamos bons alunos, são mais aliciantes. (R.,
bac pro 1 electrotecnia, E100)

Embora as opiniões se dividam, o critério é o mesmo: o importante é que o prof. seja


“aliciante”. Resta saber o que isto quer dizer exactamente…

4. O que significa aprender na escola?

Nós já nos deparámos com a pergunta “o que significa aprender?” ao analisar os balanços
de saber: aprender é memorizar o que os professores ensinam; aprender, na vida, significa
observar e reflectir. A análise das entrevistas confirma estas conclusões e permite ir mais
longe no que diz respeito a “aprender na escola”.
Aprender é enfiar coisas na cabeça: o modelo básico destes jovens é um modelo apa-
nhar-armazenar. Para aprender é preciso em primeiro lugar ouvir, eventualmente olhar,
em seguida memorizar. Este modelo de referência por vezes é explícito: eu sou muito
receptivo, o meu cérebro é como uma cassete.

Francamente, eu não tenho dificuldades em aprender, sou muito receptivo, nem sequer estudo as ma-
térias, basta-me ouvir. (R., bac pro 1 contabilidade, E118)
Nunca estudei os apontamentos, aprendo nas aulas (…) Hoje em dia grava-se o que se diz e fica guardado
numa cassete. Comigo passa-se o mesmo, só que a minha cassete é o meu cérebro. O professor só precisa
de me explicar uma vez ou duas e fica gravado. (R., bac pro 2 energética climatização e frio, E104)

Qualquer que seja a situação, aprender é gravar as coisas na cabeça: quer seja Matemá-
tica ou Oficinas: “a forma de aprender é a mesma, uma vez que se tem as coisas na cabeça,
245
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

ficam lá” (E6). Contudo, é mais ou menos fácil apanhar e armazenar, isto é, gravar o que
se ouve ou vê e memorizá-lo. Como explica Frédéric que prepara um bac pro manutenção
de sistemas mecânicos automatizados, existem disciplinas puzzle e disciplinas scrabble.

Em História, por exemplo, há as datas, os lugares onde se situam as coisas, os nomes, coisas assim.
Por exemplo, em Mecânica aprendemos o nome das peças e, por exemplo, a forma de as remover e
retirar. Digamos que se pudesse fazer uma comparação isto seria um pouco como um puzzle e a Histó-
ria/Geografia um bocado como um scrabble (…) Por exemplo, em História lemos uma lição num livro
e depois o prof. comenta, enquanto em Mecânica aprendemos a matéria e aplicamo-la directamente na
máquina ou noutra coisa. Não tem nada a ver (…) Em História é sobretudo a memória que funciona
e em Mecânica basta-me passar os olhos pela lição, eu lembro-me das coisas essenciais e depois no
dia seguinte, por exemplo, para um teste as coisas são logo feitas directamente na oficina. (R., bac pro
2 MSMA, E102)

As peças do scrabble só podem juntar-se através de uma lógica: a das letras, do código
linguístico. As peças do puzzle podem ser reunidas com o apoio a duas lógicas: a do dese-
nho (isto é, mais uma vez, de um sistema de signos) e a da forma das peças.
Uma disciplina scrabble é uma disciplina encerrada sobre ela própria, no seu código,
é uma disciplina que não se pode apoiar num referente exterior à própria disciplina; é
uma disciplina que designa, que comenta, que só coloca em prática objectos linguísticos
(livro, apontamentos), de forma que o aluno é completamente dependente do professor, é
uma disciplina onde é preciso memorizar objectos linguísticos157. Para os alunos de liceu
profissional, o símbolo da disciplina scrabble é a História – que eles citam com frequência
espontaneamente, e negativamente, nas suas entrevistas. O tal professor “que fala, fala,
fala” ao mesmo tempo que nós “escrevemos, escrevemos, escrevemos” é, com frequência,
o professor de História.

Se quiseres, para mim, História/Geografia é uma das disciplinas mais chatas: é uma disciplina que,
mesmo que estejas com atenção nas aulas, é preciso estudar e eu não gosto de estudar. Se quiseres, eu
gosto de Matemática, quando prestas atenção nas aulas percebes imediatamente (…) Física se olhares
com atenção para o quadro percebes, não precisas de estudar os apontamentos. A História/Geografia
é uma disciplina chata porque és obrigado a estudar e há muita coisa para estudar. (R., 3T terciário,
E138)

A Matemática e a Física, para este aluno (porque uma disciplina não é sempre classifi-
cada da mesma forma por todos), a Mecânica para o Frédéric, a Contabilidade para outros,
são disciplinas puzzle. Uma disciplina puzzle é uma disciplina que não está encerrada na
linguagem. Certamente, a linguagem tem aí a sua importância (em Mecânica aprende-se

É evidente que escrevo isto de um ponto de vista epistémico (qual é o significado desta disciplina para
157

os alunos?) e não de um ponto de vista epistemológico (que remete para o modo de constituição e funcio-
namento desta disciplina).
246
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

o nome das peças, diz Frédéric) mas esta linguagem tem um referente externo, ele remete
para uma actividade que não é puramente linguística: desmontar e voltar a montar peças
de mecânica, em geral perceber as relações, perceber as lógicas do contexto. Uma disci-
plina puzzle tem um objecto de pensamento para lá da linguagem, de forma que o aluno
pode compreender sem estar completamente dependente desse especialista das palavras
que é professor e pode memorizar apoiando-se na lógica da situação, logo com um esforço
de memorização menor do que numa disciplina scrabble.
Em Mecânica, para retomar o exemplo de Frédéric, pode juntar-se peças, como num
puzzle, e esta é a actividade essencial, embora também seja necessário aprender os no-
mes destas peças. Em História, não se sai da linguagem, juntam-se as próprias palavras
e não as peças que elas designam, joga-se ao scrabble. Em História é preciso ouvir o
professor e memorizar. Em Mecânica também, é preciso ouvir (ou ver) e memorizar,
mas o aluno pode realizar uma outra forma de domínio intelectual sobre a situação: ele
pode desmontar e voltar a montar, “na sua cabeça” ou na oficina. Dito de outra forma,
em Mecânica existe uma lógica, que se analisa, enquanto que em História não se faz
outra coisa para além de aprender de cor “as datas, os lugares onde se situam as coisas,
os nomes, coisas assim”158. Em Mecânica, em Contabilidade, para alguns em Matemáti-
ca, em Física, “percebe-se a matéria” porque há coisas para perceber; mas em História/
Geografia não existe nada para perceber, “é uma disciplina chata porque és obrigado a
estudar e há muita coisa para estudar”.
Os alunos repartem assim as disciplinas em dois blocos que não correspondem à ca-
tegorização institucional ou ideológico-fantasmática das disciplinas leccionadas no liceu
profissional. Institucionalmente, existem as disciplinas gerais, que cultivam, e as discipli-
nas profissionais, que formam. Esta repartição divide muito amplamente a categorização
ideológico-fantasmática entre disciplinas “abstractas” e disciplinas “concretas” ou “práti-
cas”. Mas o que nos ensina o discurso dos alunos é uma realidade diferente. Em primeiro
lugar, uma disciplina não é classificável “por si só” nesta ou naquela categoria mas em
referência à relação de um aluno a esta disciplina: desta forma, segundo os alunos, a Mate-
mática pode ser etiquetada de puzzle ou scrabble. Em segundo lugar, esta classificação não
corresponde exactamente à divisão institucional entre disciplinas gerais e profissionais: a
História e a Física, ambas “gerais”, podem ser categorizadas de forma diferente por um
aluno; contudo, o ensino profissional advém quase sempre do puzzle. Em terceiro lugar, a
categorização feita pelos alunos confirma o que as análises mais sapientes já estabelece-
ram: as categorias “abstracto” e “concreto” não têm aqui qualquer pertinência. Em Me-
cânica, Frédéric analisa, abstrai, entrega-se a uma formação geral; em História depara-se
com o que para ele é facto concreto que não está inscrito numa rede de sentido (isto é, do
âmbito do “concreto”…). Da mesma maneira, Jérôme “cultiva-se em padaria” em vez de

Para evitar qualquer tipo de ambiguidade, repito que o que aqui está em análise é a relação dos alunos
158

com a disciplina e não a natureza desta disciplina em si.


247
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

“saber quem foi o cunhado de Napoleão ou de aprender fórmulas matemáticas” (E59). É a


técnica que cultiva, é aí que é preciso pensar, é aí que se estuda a sério, enquanto o Fran-
cês, a História, todas as disciplinas gerais, embora se possa gostar, não são mais do que
palavras sem grandes consequências e onde não existe muita necessidade de pensar, basta
memorizar. Desta forma, alguns alunos causam uma verdadeira inversão de legitimidade
cultural.

Nas aulas de História/Geografia, eu aprendo porque gosto, mas nas disciplinas gerais é preciso estu-
dar, estudar ou também fazer com que a memória trabalhe. Mas nas disciplinas técnicas não pode ser
assim. Nas disciplinas técnicas, o que temos de fazer, por exemplo, desmontar, é preciso apesar de
tudo pensar, ser lúcido em relação ao que vamos fazer. E depois, mesmo Francês, exigem-nos sempre
trabalhos de casa, dissertações, é preciso escrever no papel. Nas técnicas escrevemos no papel mas é
em relação a um objectivo. Enquanto em História também escrevemos, existe um objectivo mas não
passa de uma coisa global, não passa… é vago, a História é vaga, não é muito precisa. Nas técnicas
aprendemos a fazer alguma coisa, mesmo sem estar à espera. É isso que… sabemos o que temos de
fazer. (R, bac pro 2 MSMA, E189)

Independentemente do aluno e da disciplina por ele evocada, de qualquer forma “é


preciso memorizar” – estamos perante o modelo de armazenamento. O problema é que
“o cérebro não pode reter tudo”. Então, existem duas possibilidades. Em primeiro lugar, a
disciplina é lógica, como a Contabilidade: é fácil, o professor explica e “entra directamen-
te na cabeça”; e se apesar de tudo é um bocado difícil a entrar, repetem-se os exercícios e,
se for caso disso, “reflecte-se um pouco mais e encontra-se sempre a solução”. Segunda
possibilidade: datas e cenas matemáticas a fazer cinquenta vezes por dia. Então, repete-se,
repete-se, até se saber de cor e salteado… ou então pensa-se que não vale a pena e que as
bases adquiridas no collège são suficientes.

[Em algumas disciplinas] quando o prof. dava a aula entrava directamente na cabeça, não precisava
de ler um livro, estudar a lição. E em outras disciplinas era preciso estudar, eu não estudava… Era
preguiça, sem dúvida. (R., BEP2 ORSF, E27)
Eu gosto de Matemática mas não gosto muito de cenas complicadas. Em Contabilidade é um bocado
clássico, pensa-se um bocadinho e encontra-se sempre a solução. É isso, é por isso que eu gosto de
Contabilidade. É preciso pensar um bocadinho e encontras sempre a solução, sempre. Mas as de raiz,
aprender as propriedades, ver cinquenta vezes por dia, o cérebro não pode reter tudo, existe um limite.
Enfim, aquilo que é importante aprender são as bases. Mas continuo sem perceber de que é que serve
a Matemática no BEP. Já aprendi no collège, é suficiente. (R., BEP 1 contabilidade, E208)
A Contabilidade tem a ver com lógica, não precisas de estudar (…) Fazemos exercícios e de tanto
fazer os exercícios, como são sempre os mesmos, acaba por entrar na cabeça, não precisas de estudar
(…) Os profs. explicam-te o exercício e entra directamente na cabeça. (Ra., 21 anos – fez um CAP e
abandonou os estudos depois de ter reprovado o BEP de contabilidade no ano anterior, E162)
[A mesma entrevistada] Em História, por exemplo, explicam-te o que se passou em determinado
ano mas é preciso que isso te entre na cabeça. Enfim, se há várias datas, vários acontecimentos que

248
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

aconteceram em determinada data, eu sou obrigada a memorizá-los, quer dizer, de os aprender de cor.
[P.: E então quando não percebes como é que fazes?] Bem, estudo mecanicamente (…). [P.: Como é
que estudas de cor?] Bem, olho para a frase, repito-a várias vezes na minha cabeça e depois já está,
tem que entrar. (E162)

Se a diferença essencial entre disciplinas é que umas são “lógicas” e as outras não, e se
as disciplinas lógicas são mais fáceis de aprender que as outras, é evidente que é importan-
te compreender qual é o significado de lógica para os alunos. Porque é que a Contabilidade
ou a Mecânica são quase sempre consideradas como lógicas pelos alunos quando precisa-
mente o seu julgamento sobre a Matemática está dividido e quando eles geralmente falam
de História e Francês como disciplinas à base de palavras e não de lógica?
Alguns alunos não levantam problemas, nomeadamente no 3e technologique e nas tur-
mas de CAP. Eles pensam tal como Sébastien: para aprender basta estar atento ao profes-
sor e fazer como ele faz; ter percebido, é saber como fazer.

Perceber, é hum… Por exemplo, o prof. de Oficina dá-nos uma cena para fazer e não percebemos
como se faz e hum… saber como se faz, saber como se realiza. (R., CAP2 instalações sanitárias
canalização, E193)
[Aprender um ofício] É mostrar como se faz, as cenas que se têm de fazer, logo as manipulações e isso
tudo, quer dizer, não aprender completamente mas uma boa parte, a partir do que o prof. mostra e nos
manda fazer depois (…) E também há as aulas teóricas que depois pomos em prática. (R., 3T, E139)

Mas a maioria dos alunos, a começar no BEP e ainda mais nas turmas de preparação do
bac profissional, sabe que não é suficiente fazer como o professor faz159. Também é preciso
perceber o funcionamento da máquina, do dispositivo, do sistema.

Para arranjar o motor de um carro, para já é preciso perceber de carros, de mecânica, perceber bem
como é que funciona. Se não sabemos estamos a zero. Para saber, é com o ouvido, observando bem.
Ter atenção ao que fazemos. Às vezes, é isto ou aquilo. Eu aprendi o básico da Electricidade. O pri-
meiro ano é fundamentalmente teórico. Para arranjar alguma coisa, é preciso saber as bases. (R., BEP2
manutenção de sistemas mecânicos de produção, E22)
Podemos levar a cabo a Mecânica com alguns anos de aprendizagem, nem é preciso ir ao liceu, basta
observar, ir ao mecânico, trabalhar com ele para ver como ele faz mas aí não há suficiente… não digo
imaginação, mas compreensão, ele tem de fazer o que dizemos para fazer. Ora, quem tem uma for-
mação profissional, sabe como isto funciona, por isso se houver uma complicação ele consegue mais
facilmente arranjar a avaria. (R., bac pro 2 mecânica automóvel, E17)

159
Contudo, até em turmas de bac pro se encontram declarações que tendem a estabelecer uma equiva-
lência entre “ter percebido” e “saber fazer”: “[P.: “Na oficina, perceber significa pôr a funcionar?”] “Sim·.
[P.: “Em Matemática ou em Francês como é que se sabe que se percebeu a matéria?”] “Quando o prof.
corrige, quando se tem uma boa nota, se fazemos como ele faz, pensamos ‘está bom, já percebi’” (R., bac
pro 1 MSMA, E7).
249
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Sem dúvida, pode aprender-se vendo, ouvindo, memorizando. Mas este processo apre-
senta três fraquezas. Em primeiro lugar, há coisas que não se podem aprender desta forma:
a Electricidade, por exemplo. Em segundo lugar, se houver uma complicação não sabe-
remos resolvê-la. Em terceiro lugar, e em grande parte como consequência: ao proceder
desta forma, não existe nenhuma possibilidade de ascensão na profissão. Por isso, também
é necessário conhecer o sistema. Para ser mais preciso, também é necessário conhecer a
sua lógica de funcionamento: não é o sistema enquanto objecto material/intelectual que
interessa ao aluno (salvo excepção) mas o funcionamento do sistema, a sequência organi-
zada de actos produzidos ou requeridos pelo dispositivo que materializa esse sistema. Esta
diferença é importante: a lógica dos alunos é uma lógica sequencial de actos num contex-
to. Não é a organização lógica do objecto que interessa ao aluno mas saber “como isso
funciona”, “o que é que se passa a seguir”, “o que é que preciso fazer depois” – e porquê.
O que interessa aos alunos é a lógica da acção, não é a lógica da estrutura.
Esta diferença é essencial. Por um lado, porque ela define o que talvez haja de co-
mum nas diferentes formações profissionais concedidas nos LP, quer sejam industriais
ou terciárias. Por outro lado, porque ela permite determinar definitivamente a questão
da categorização destes alunos como “práticas” ou “concretas”: é certo que estes alunos
funcionam numa lógica da acção, é um erro confundir esta lógica com uma outra de trans-
formação material das coisas160. Esta lógica de acção está presente na Contabilidade, na
Matemática… Em contrapartida, os alunos encontram-na raramente em História, Francês,
nas línguas, nessas disciplinas onde só se acumulam palavras e onde não existe, para eles,
uma lógica sequencial – o que apesar de tudo é paradoxal no que diz respeito à História e
leva-nos a questionar a forma como é ensinada…

Eu consigo decifrar a Matemática, como é que posso explicar, eu encontro o meu caminho, ao contrário
de alguns (…) Por exemplo, num problema de Matemática, se houver um erro eu consigo resolvê‑lo,
eu consigo encontrar a solução indo ao início do problema. Ao contrário de alguns, que perante um erro
continuam à procura porque não reflectem o suficiente (…) Face a um problema, então por exemplo,
tenho um problema, começo a resolvê-lo e encontro um erro ou não encontro os mesmos resultados nos
balanços por exemplo, volto ao ponto de partida, palavra a palavra e anoto tudo numa folha de rascunho
(…) É como se me orientasse por um mapa na rua. Em Contabilidade, eles dão-nos um problema, que
está na primeira folha, se conseguirmos fazer a primeira folha, conseguimos fazer tudo o resto porque
há uma lógica, se não percebermos a primeira folha é melhor desistir. (R., BEP2 contabilidade, E3)

Aprender é ir de uma ponta à outra, seguir um caminho e, se nos perdermos, ser ca-
pazes de o reencontrar voltando atrás: existe aqui uma lógica sequencial, que só funciona
onde o sequencial é possível. Não se trata de entrar num sistema de saber, mas num ca-
minho, num modo de proceder, num método, no sentido etimológico do termo. Isto quer
Cf. a segunda figura epistémica apresentada no modelo proposto no capítulo 6: aprender é ser capaz
160

de dominar uma operação ou um conjunto de operações, quer estas últimas assentem sobre um objecto
material ou sobre operações simbólicas.
250
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

dizer, nomeadamente, que compreender um sistema significa, para estes alunos, saber por
onde entrar, por onde ir, por onde sair. Repito, não se trata (embora também se possa tra-
tar) de acções “concretas” mas de um modo de raciocínio. Para que se perceba bem, darei
de novo um exemplo na área (indubitavelmente “abstracta”…) da Matemática:

Havia coisas da Matemática que eu não percebia nada, nem sequer sabia por onde entrar ou sair; bem
quanto ao sistema, tudo bem, eu percebo um bocadinho. (Ra., BEP2 materiais flexíveis, E8)

Esta ideia da lógica sequencial é aliás explanada numa entrevista, realizada com um
fiel de armazém em trabalho temporário, de 23 anos, que reprovou no BEP de contabilida-
de cinco anos antes e é muito crítico em relação ao ensino profissional.

Na realidade, aquilo a que chamamos prática é a prática em relação a alguma coisa estabelecida, onde
já não há nada a fazer, depois do início ser feito é só uma sequência (…) A nível profissional acho
que não me fornece qualquer conhecimento, fornece algum tipo de método de trabalho mas é só, não
te dará mais nada, ensina-te simplesmente a reproduzir, por exemplo, o que um contabilista faz todos
os dias, tornas-te uma máquina, simplesmente isso (…) É aprender a repetir uma determinada opera-
ção do princípio até ao fim (…) fazer as coisas cronologicamente, ter uma certa organização no teu
trabalho, mas, quer dizer... acho que não é forçoso ir à escola para o aprender (…) Penso que é mais
importante ser culto e instruído do que saber dados contabilísticos. (E157)

Esta apreciação é demasiado severa: ter aprendido uma disciplina numa lógica de ac-
ção sequencial não significa unicamente ser capaz de a repetir de forma simples, significa
ser capaz de adaptar uma operação ou uma sequência operativa a variações de situações
ou de contexto. Contudo, é verdade que esta lógica da acção tem limites, simultaneamente
epistémicos e relacionais.
Comecemos pelos limites epistémicos. Os que deles melhor falam são os alunos orien-
tados na Première d’adaptation. Conseguiram ingressar aqui porque foram bons alunos no
LP, mas descobrem agora exigências muito diferentes daquelas que são necessárias para
ser bom aluno no LP.

[A Première d’adaptation] Ensina-nos a estudar ainda mais, muito mais, e ainda a saber ser lógico e
tentar que não recorramos a saber as coisas de cor, temos sempre tendência a aprender as coisas de cor
e nem sempre é útil. É estúpido voltar a cuspir sem perceber, eu percebia o que cuspia e isso ajudava-
‑me mas ao mesmo tempo talvez não me ajudasse, temos dificuldade a construir. E é um bocado o
problema de toda a turma (…) Tenho sempre problemas na construção. É assim. Tenho impressão que
a língua francesa resulta do próprio ser humano, é verdade que é sempre preciso ler mas, não sei como
é que hei-de explicar, acho que não é fácil para toda a gente, acho que há pessoas que têm facilidade
em exprimir-se, o estilo. Tenho a impressão que há alguns que já nasceram assim, têm um dom. (Ra.,
Première d’adaptation ciências médico-sociais, E143)
As aulas são relativamente difíceis em comparação com o BEP porque aqui é outra coisa, é um
método de trabalho, são as análises, em comparação com o BEP onde só é preciso estudar e depois

251
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

recitar de uma vez e tínhamos 18 e pronto. Mas aqui é preciso comentar, analisar, fazer experiências
e depois hum, inferir tudo o que se faz, hum, é preciso adaptar-se (…) Eu ainda tenho dificuldades
a Francês (…) e francamente é um problema. Foi por causa do Francês que fui parar ao LP, não
conseguia distinguir as dissertações, era uma confusão na minha cabeça. Para encontrar as melhores
ideias, os argumentos e isso tudo, é mesmo um calvário. É como a Biologia, é a disciplina principal,
também é preciso analisar e escrever, é preciso fazer as introduções, cenas assim e é sempre por
causa do Francês, bloqueio completamente. (Ra., Première d’adaptation ciências médico-sociais,
E144)

Se se “volta a cuspir sem perceber”, sem entrar na lógica do que se memorizou, corre-
‑se o risco de reprovar no BEP. Se se “percebe o que cospe”, passa-se no BEP e talvez se
entre na Première d’adaptation. Mas para passar na Première d’adaptation, é preciso ser
capaz de “construir”, “analisar”, “inferir”, “argumentar”. É preciso passar de uma lógica
de actos sequenciais a uma lógica argumentativa, de uma lógica centrada no funciona-
mento de um sistema a uma lógica centrada sobre o sistema enquanto tal, na sua estru-
tura. Trata-se de passar de uma figura epistémica onde aprender significa dominar uma
sequência de operações a uma outra figura, onde aprender significa apropriar-se de um
saber constituído enquanto objecto, ser capaz de analisar as articulações de um sistema
ou de um discurso. Encarados desta forma, um saber, um sistema, um discurso só existem
através de enunciados. Os alunos sentem que existe aqui um problema de linguagem. Mas
contrariamente àquilo que pensam, não se trata (em todo o caso, não exclusivamente) de
“facilidade em se exprimir e de estilo”. Trata-se de realizar actos linguísticos num univer-
so de palavras – inclusive numa disciplina como a Biologia. Trata-se de perceber que as
disciplinas scrabble também colocam problemas de junção (de puzzle) que não são uni-
camente problemas de palavras, e que para ser bom aluno nas disciplinas puzzle também
é preciso dominar o scrabble. Em suma, trata-se de ultrapassar esta diferença para com-
preender que as palavras também são pedaços de realidade, que falar também significa
agir, e que se pode desmontar/voltar a montar (analisar) os objectos intelectuais. Trata-se
de aprender a fazer o que os alunos não sabiam fazer no collège e que não aprenderam a
fazer no liceu profissional.
Para além dos seus limites epistémicos, a lógica da acção sequencial provoca no aluno
uma grande dependência em relação ao professor. Sem dúvida, ele é ainda mais dependen-
te nas disciplinas scrabble: quando não existe nenhuma lógica, quando aprender significa
memorizar os factos concretos que o professor apresentou na sua aula (datas, fórmulas),
a dependência do aluno é enorme. Mas embora esta dependência se atenue nas discipli-
nas puzzle (porque existe uma lógica), ela continua a ser grande (porque esta lógica é
sequencial). Porque existe uma lógica, o aluno pode reflectir e desta forma compreender e
memorizar mais facilmente o que explica o professor. Mas esta lógica é sequencial, ora é
muito difícil compreender uma sequência de acções a partir de material de consulta; para
compreender realmente, é preciso que alguém faça à nossa frente, ao mesmo tempo que

252
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

explica (inclusive quando esse fazer remete para operações simbólicas, como em Conta-
bilidade).

Na Première d’adaptation como é que estudámos? Era com base em material de consulta. A menos
que se queira moer o juízo, não é com material de consulta que alguém, que quer aprender, vai tentar
compreender. (R., BEP2 manutenção de sistemas mecânicos de produção, E20)

Uma relação desta natureza com o saber restitui ao professor o grosso da responsabili-
dade do sucesso ou do insucesso escolar da aprendizagem.
Em primeiro lugar, é o professor que é intelectualmente activo na aprendizagem: os
profs. “explicam-te e entra-te directamente na cabeça”. O papel do aluno é ouvir (o que
supõe que ele esteja presente e que não esteja a divertir-se demasiado com os colegas) e
ou memorizar (disciplina scrabble) ou seguir o professor passo a passo para saber “por
onde entrar e por onde sair” (disciplina puzzle). Percebe-se assim porque é que o bom
professor é, antes de mais, alguém que impõe a ordem na sala de aula (sem ordem não é
possível ouvir de forma eficaz) e que explica e volta a explicar (é o processo que permite
fazer com que o saber entre directamente na cabeça do aluno). É o professor que me
ensina (e não eu que aprendo graças ao professor): esta ideia ressurge com frequência
nas entrevistas, sob uma forma ou outra. Às citações precedentes, acrescentamos esta,
que se poderia resumir desta forma: no estágio, quem trabalha sou eu, na escola é o
professor.

Quando os profs. não me agarram não consigo estudar, não me interessa (…) Como sou bastante
preguiçosa preciso que me motivem. [P.: Passa-se a mesma coisa numa empresa, com o chefe ou o
orientador?] Não, não (…) porque aí é diferente, deram-me um trabalho para fazer e sou eu que o faço,
enquanto na escola é hum… na escola são eles que me ensinam, são eles que me dizem, são eles que
me dão as aulas e se eu acho que o prof. não o faz bem, podia ser de outra forma, se ele não é suficien-
temente simpático, não consigo estudar. (Ra., bac pro 2 informática contabilidade, E113)

Alguns alunos levam a sua lógica até às últimas consequências: uma vez que na escola
é o professor que trabalha, “as notas irão reflectir o nível do professor, se ele é bom ou
mau” (R., bac pro 2 MSMA, E103). Se o problema da relação professor/alunos é ainda
mais importante no meio popular do que noutros meios é, antes de mais, por razões epis-
témicas (porque cabe ao professor fazer com que o saber entre directamente na cabeça do
aluno161) e não por razões “afectivas” (porque os professores deveriam compensar uma
carência afectiva na relação entre esses alunos e os seus pais).
Outra consequência de uma relação desta natureza com o saber: não vale a pena
fazer os trabalhos de casa. Esta ideia está presente em variadíssimas entrevistas. É o
professor que me ensina, a mim cabe-me ouvir e compreender as suas explicações.

Que fique bem claro que se trata aqui de uma formulação extrema, ideal-típica.
161

253
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Ninguém pode apreender sozinho, a partir de material de consulta – “a menos que


se queira moer o juízo”. A partir de então, ou eu percebi e não serve de nada fazer os
trabalhos de casa ou não percebi e isso também não serve de nada porque não consigo
perceber sozinho. Claro que ainda falta “estudar” no sentido de fazer um esforço para
memorizar. Mas se é lógico, se eu percebi, isto entra directamente na cabeça e não pre-
ciso de fazer este esforço. Este último só é necessário quando é “chato” e na realidade
inútil – como a História. Mas não me vou “moer o juízo” por isso. Por isso, de qualquer
maneira, não faço os meus trabalhos de casa – nunca ou muito raramente, em todo o
caso não regularmente. Claro está, o aluno está radiante por chegar a esta conclusão…
Mas seria um erro pensar que esta atitude não passa de má-fé. É uma utilização abusiva
de uma lógica epistemológica desenvolvida de boa fé e que excede em muito o proble-
ma dos trabalhos de casa.

Não há disciplinas difíceis, é preciso ouvir. Eu reparei que todas as vezes que ouço percebo, mas se
não ouço, estou perdido (…) Quando tenho um teste às vezes abro o meu caderno e depois fecho-o
logo (…) Eu não estudo. Se percebi, está bom. Se não percebi, não serve de nada estudar uma aula que
não percebi (…) Estudar é antes de mais compreender. Se não se percebe não serve de nada estudar.
[Apesar de tudo, o aluno reconhece] Neste momento, ando um bocado preguiçoso, só faço o mínimo
necessário, não me ralo muito. (R., BEP2 electrotecnia, E38)
Um bom professor é alguém que nos consegue explicar, que nos faz perceber as coisas… Eu acho que
se alguém não percebe as explicações do prof. também não vai perceber quando estudar em casa, ou
percebeu agora ou o prof. consegue explicar-lhe de modo a que perceba ou nunca perceberá (…) Eu
não me considero um excelente aluno, mas percebo as coisas logo à primeira. Eu, ou percebo logo as
coisas ou nunca vou perceber, por isso os trabalhos de casa são um complemento, um complemento
parcial, nunca integral. (R., BEP1 electrotecnia, E44)
A partir do momento que percebi a matéria não vale a pena estudar em casa. Quanto menos estudo,
melhores notas tenho. Aliás, mesmo quando não percebo, não estudo em casa porque me enerva. (R.,
BEP2 mecânico/técnico de montagem, E46)

Enerva-me, mói-me o juízo: são estas expressões que preenchem o discurso dos alunos
sobre a escola. Mas este discurso não exprime só o enfastiamento, também exprime o in-
teresse, até a paixão: o adjectivo “interessante”, utilizado espontaneamente pelos alunos,
ressurge regularmente no decorrer das entrevistas. Gostaria de terminar as análises deste
livro por este adjectivo. Porque ele formula de forma muito directa a questão da relação
com o saber e porque se trata de uma questão essencial para quem ensina.

5. O que é uma aula “interessante”?

É muito difícil saber porque é que uma aula ou um professor são interessantes para um
aluno. No seu uso mais frequente, o adjectivo interessante remete para uma experiência
básica difícil de explicar: “Bem, eu gosto, pá” (E2).

254
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

O Francês não me interessa. Tenho dificuldade em explicar porquê. Quando não gostamos é com toda
a nossa alma, não passa. Eu sei o que é, é por isso que eu digo que não gosto. (R., bac pro 2 mecânica
automóvel, E11)
[P.: Sabes do que não gostas nas disciplinas que não te agradam?] Sim, o prof. e a disciplina. É só,
não há mais nada que me desagrade. E o que fazemos na aula também. (R., bac pro 1 vendas repre-
sentação, E190)
[Na formação geral] existem aulas que me agradam, que me motivam a ir. (R., CAP3 construção
metálica, E125)

Quando se tenta ir mais longe, fica-se imediatamente preso numa conversa circular: “É
interessante porque eu gosto”, diz o aluno, mas se lhe perguntarmos porque é que gosta ele
responde com frequência “porque é interessante”.
Comecemos, então, pelo mais fácil: a lista daquilo que os alunos consideram interessante.
É interessante, até mesmo apaixonante, o que se aprende por si próprio, porque se
deseja, sem nenhuma obrigação.

[P.: Para ti o que significa aprender?] Aprender coisas ou estudar a matéria? (…) Estuda-se a matéria
para, por exemplo, ter boas notas e, por exemplo, para no fim do ano ter o diploma. Aprender coisas
que te fascinam, por exemplo, vês um livro na Fnac, e pensas “isto pode ser interessante”, compras
e lês, aprendes coisas por ti, porque te pode ajudar, trazer-te algo mais (…) Podes aprender tudo o
que quiseres a escolha é tua. No LP, aprender significa ter uma boa caderneta de avaliação, se tens
uma boa caderneta, consegues o bac, se não tens uma boa caderneta, uma má caderneta repleta de
más notas, estás lixado! Depois és tu que escolhes, com base nos teus desejos, o que queres estudar, o
que queres saber, em relação às outras pessoas. Se estás a conversar, eles falam e conversam contigo
e tu pensas: “sim, de que é que estão a falar, não estou ao corrente do assunto!” (Sonia, bac pro 2
secretariado, E120)

Por vezes, na escola aprendem-se coisas interessantes.

Eu gosto da Economia Familiar e Social, acho interessante, trata sobretudo da mulher, gosto muito
e aprendi montes de coisas (…) como se pode engravidar, o que não se deve tomar, que uma mulher
grávida não deve calçar sapatos de salto alto porque não é bom para a coluna vertebral. (Ra., BEP2
materiais flexíveis, E8)

É interessante uma aula que ensina coisas sobre a vida. Voltamos a encontrar aqui o
processo “explicitação da experiência através de princípios e ilustração de princípios atra-
vés da experiência” que analisei extensamente nos capítulos precedentes. O que é interes-
sante para os jovens de meio popular é em primeiro lugar aquilo que ensina coisas sobre a
vida e as pessoas – e logo, indissociavelmente, sobre a minha vida e sobre mim próprio.
Por outro lado, alguns alunos acham interessante tudo aquilo que é novo. E não se deve
subestimar esta ideia: já no collège, os alunos queixavam-se muito da grande monotonia
da escola (“é sempre a mesma coisa”, “não muda”) (Charlot, Bautier & Rochex, 1992).

255
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

É preciso o mínimo de conhecimento, ainda por cima gosto de coisas novas, tenho uma grande curio-
sidade pela vida. (Ra., BEP2 contabilidade, E78)
Sim, quando se trata de uma coisa que eu conheço, isso interessa-me [P.: Por exemplo?] Agora o
que estamos a fazer, eu não sabia é por isso que vos disse que o interesse vem à medida que vamos
aprendendo; acho interessante: a história do abade Pierre162, trabalhar com computadores… (R., BEP2
ORSF, E33)
[O desenho técnico] era completamente novo, no início era interessante mas depois de tanto desenhar,
explicar era um bocadinho cansativo (…) É interessante quando não se conhece por isso é interessante
(…) não é interessante quando já se fez várias vezes (…) torna-se um bocado cansativo, agora já não
acho que seja uma disciplina interessante. (R., bac pro 1 MSMA, E7)

É interessante o que ajuda a compreender a vida, é interessante o que é novo. Pode


acrescentar-se, em referência às análises precedentes, que as disciplinas puzzle, es-
truturadas por uma lógica, são mais interessantes que as disciplinas scrabble, que só
debitam palavras. O horror absoluto acontece quando é preciso escrever e depois me-
morizar páginas e páginas de palavras que apenas dizem respeito a acontecimentos ou
fórmulas.
Para lá desta lista, tentemos perceber porque é que é interessante. Que experiência é
esta que vive o aluno e que faz com que ele diga que ela é interessante?
A ideia essencial reside no desejo. Voltemos ao que diz a Sonia: aprender coisas que
te interessam, “és tu que escolhes, com base nos teus desejos, o que queres estudar, o que
queres saber”. De uma forma ou de outra, é interessante aquilo que fomenta o desejo ou
o origina. Uma aula só é interessante quando é ou se torna objecto de desejo do aluno. A
partir deste momento, é compreensível que o aluno ande às voltas com “gosto porque é
interessante” e “é interessante porque gosto”: são duas formas de exprimir uma mesma
relação, seja a partir do objecto desejado (interessante) seja a partir do sujeito desejoso
(que “gosta”).
Quando uma coisa é interessante, quando é objecto de desejo, quando o aluno gosta
(três fórmulas diferentes que remetem para a mesma relação), o aluno mobiliza-se, investe
e “percebe facilmente”.

Desde que goste, gosto de aprender (…) Quando vou às aulas de Física tento perceber mas não consi-
go e desisto imediatamente porque não gosto (…) Quando se gosta de uma disciplina compreendemo-
‑la facilmente, quando não se gosta temos dificuldade em perceber e ficamos bloqueados. (Ra., BEP2
materiais flexíveis, E2)

No pólo oposto, quando um aluno não gosta “é muito mais difícil” aprender (E9). Esta
relação parece clara e lógica: a mobilização do aluno para uma coisa de que gosta facilita

NT: Figura muito popular em França, fundador da comunidade de “Emaús”, dedicou grande parte da
162

sua vida aos mais desfavorecidos. O “padre dos pobres”, como ficou conhecido, morreu a 22 de Janeiro de
2007 aos 94 anos.
256
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

a aprendizagem. O problema é que também aqui se está preso a uma conversa circular:
para alguns alunos, é preciso gostar para perceber, para outros é preciso perceber para
gostar. As relações entre “gostar” e “aprender” também não são simples: é preciso gostar
para aprender, e se não gostamos de uma disciplina mas precisarmos mesmo de a aprender,
podemos aprender a gostar…

Eu quando não percebo não gosto, eu não percebo Matemática e não gosto (…) Eu não me interessava
pelo Inglês antes de chegar aqui porque não percebia e quando cheguei aqui comecei a perceber e
agora adoro (…) Só quando percebo é que me interesso, quando não percebo não me aplico, eu não
compreendo, eu não compreendo, como a Matemática, por exemplo, quando não compreendo não
vale a pena insistir. (Ra., BEP2 materiais flexíveis, E1)
Interessa-me mais ou menos, não é uma cena que gostasse de fazer absolutamente, mas bem… também
é preciso aprender a gostar, nem sempre se sabe aquilo de que se gosta. (R., bac pro 1 MSMA, E4)
Comecei a gostar de Matemática (…) porque trata-se de calcular o IVA, saber chegar a um resultado,
por isso sou obrigada a gostar e este ano a minha média é boa, enquanto no collège variava entre 10 e
5. [P.: Obrigada a gostar?] Porque trata-se de uma coisa que me vai ser útil mais tarde, penso que sim,
por isso digo-me a mim própria: “Janine, tens que te aplicar!”, pronto. [P.: Consegues aplicar-te sem
gostar?] Sim, mas se me aplico sem gostar, vou fazê-lo de qualquer maneira e arrisco-me a esquecer
amanhã, enquanto se me aplicar a gostar da cena vou aprendê-la, vou fixar e não a vou esquecer. (…)
Sem isso, se eu me convencer que amanhã poderei precisar disso, sim mas não gosto, vou pensar bem,
“vou adiar, vou aprender depois” será sempre assim, nunca vou conseguir aprender, então assim sou
obrigada a voltar ao assunto e a dizer a mim mesma: “mas, sim, afinal gostas, gostas, gostas”. (…)
Convenço-me de que é preciso gostar. [P.: E acabas por gostar realmente?] A gostar realmente não
sei, às vezes até detesto, mas fora isso, sim, aplico-me para gostar e ter boas notas. (Ra., bac pro 2
informática secretariado, E9)
Eu decidi, embora saiba que não gosto da língua, precisava de fazer de conta que gostava e agora
bem… eu gosto bastante do Inglês, pá! (Ra., bac pro 2 informática secretariado, E202)

Analisei durante horas os fragmentos de entrevistas que incidiam sobre estas questões,
procurando uma lógica que articulasse de forma clara causas e efeitos. Cheguei à conclu-
são que é impossível descobrir ou construir uma lógica simples. Não só “é interessante”
remete para uma configuração de processos articulados, como, além disso, estamos aqui
em presença de um sistema de equivalências causais: a presença de um elemento tende
a produzir os seus equivalentes e assim reciprocamente. Uma disciplina é interessante
porque:
• eu gosto;
• eu percebo, eu aprendo facilmente;
• eu tenho boas notas;
• eu aplico-me, estou dentro, a disciplina é absorvente;
• o professor explica bem, a matéria entra-me directamente na cabeça;
• o professor consegue que eu me aplique, partilha comigo a sua paixão;

257
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

• a disciplina tem utilidade no futuro.

Este sistema de equivalências é muito importante, prática e teoricamente. Por, no mí-


nimo, três razões.
Em primeiro lugar, “interessante” não é uma característica do objecto mas remete para
uma relação entre um objecto e um sujeito: nenhuma disciplina é interessante enquanto
tal, qualquer disciplina pode ser interessante.
Em segundo lugar, para que uma disciplina seja ou se torne interessante, não é neces-
sário que exista no sujeito um desejo prévio directamente ligado ao conteúdo ou ao uso
desta disciplina. Dito de outra forma, o desejo por uma disciplina (o facto de se gostar
dela) pode ser uma consequência do facto de a disciplina se ter tornado interessante (e não
uma causa).
Em terceiro lugar, uma disciplina pode tornar-se interessante porque o aluno começa a
compreender, a ter boas notas, com tudo o que isso implica (uma reputação a manter, uma
nova oportunidade de êxito na vida…). Aliás, a configuração “disciplina interessante”
confirma amplamente a configuração da remobilização escolar estabelecida no capítulo
precedente.
Existe aqui um ponto particularmente importante. Não se pode alegar o facto de que
“nem toda a gente se pode interessar por tudo” ou de que “isto não interessa aos alunos”
para baixar os braços e deixar de ensinar certas coisas a certos alunos. O interesse do aluno
não é sempre, necessária e inelutavelmente, uma condição de possibilidade do acto peda-
gógico; ele também pode ser um resultado do ensino recebido.

[P.: Interessante significa…?] Significa que estamos por dentro, dentro da aula, dentro do desenho.
Um desenho interessante será imaginar-se por instantes o que se vai fazer, mostram-no uma vez,
recolhem-no e pode-se reproduzi-lo. (R., bac pro 1 MSMA, E7)
A Contabilidade interessa-me, mas às vezes eu fico à nora e já não dá, deixo de me interessar (…)
Quando os profs. não me dizem nada, não consigo estudar, não me interessa. (Ra., bac pro 2 informá-
tica contabilidade, E113)
Uma disciplina interessante é quando um prof., se por exemplo o aluno não percebeu, o prof. deve
fazê-lo perceber automaticamente de qualquer forma, é a partir daí que uma disciplina se pode tornar
interessante. Se ele não percebeu ele deve voltar a explicar de outra forma, com outro exemplo o
prof. não deve desistir e o aluno também não. [P.: Uma disciplina interessante é uma disciplina que
assimilas?] Sim, pela qual me interesso profundamente. [P.: E tu és interessado porque percebes ou
tu percebes porque és interessado, qual é o sentido em que funciona?] Interessa-me e eu percebo.
[P.: Mas então porque é que te interessa?] As disciplinas que me ajudam no meu futuro. (R., BEP2
contabilidade, E3)
[A Matemática] começo a gostar mais do que gostava porque comecei a interessar-me, a dedicar-me
cada vez mais, porque tenho boas notas, porque vejo todas as possibilidades que ela oferece. Por
exemplo, em Matemática fazemos gráficos, parábolas, começamos por observar e eu sei que no bac
pro ainda vamos ter mais coisas do género, não é desinteressante. (R., BEP2 ORSF, E24)

258
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

[Fez um ano de BEP secretariado.] Não me agradava, por isso fui para o ramo sanitário. Há muitos
trabalhos de casa, é horrível o trabalho que nos dão. Mas eu gosto, até faço pesquisas em minha casa.
[P.: O que é que te agrada?] As aulas, para começar, são excepcionais e é interessante porque eles
explicam-nos bem (…) Eles ensinam-nos muitas coisas. (…) É interessante. (…) Mas as disciplinas
que implicam muito estudo, eu que não gostava de estudar e agora gosto de estudar porque são disci-
plinas… porreiras! [Até mesmo a Matemática…] (Ra., BEP1 sanitário e social, E177)

É interessante aquilo que suscita interesse. Ora, o que é que é susceptível de captar o
interesse do sujeito?
“A vida”. É interessante aquilo que permite compreender melhor o mundo, a vida, as
pessoas – e a minha vida.
O outro – naquilo em que é simultaneamente outro e igual a mim. É interessante o pro-
fessor que se move por uma paixão pela sua disciplina e a comunica a muitos dos seus alu-
nos. É interessante o professor que fala com os alunos, que está próximo deles, por quem
se tem respeito, com quem a relação pedagógica se vive como relação antropológica – por
isso torna-se interessante o que ensina um professor interessante. Também é interessante
aquilo que permite entrar em determinadas relações com os outros, e nomeadamente ter
com eles conversas nas quais não me sinto ultrapassado (nos vários sentidos do termo).
Ele próprio. É interessante aquilo que para o sujeito constitui desafio e êxito, aquilo
que lhe permite sentir-se bem consigo próprio, aquilo que lhe transmite segurança contra
as angústias do insucesso escolar, da impotência, do abandono… É interessante aquilo que
“agarra” o sujeito que “compreende” e “aprende”. É interessante aquilo que lhe abre um
universo de possibilidades e lhe permite projectar-se no futuro. Em suma, é interessante
para um sujeito aquilo que lhe permite ser alguém e tornar-se alguém.

259
CONCLUSÃO

Qual é a relação com a escola, com o saber e, de forma mais global, com a aprendizagem
de um jovem de meio popular, em França, nos dias de hoje? Que significado tem para ele
aprender e saber? Que importância tem, para ele, ir à escola e nela estudar – ou não? Estas
questões, centrais nas investigações da equipa ESCOL, foram estudadas aqui em referên-
cia aos jovens escolarizados no liceu profissional.
Estes jovens fazem parte de uma população sem dúvida heterogénea mas pertencem
em maior escala às camadas populares – o que, hoje em dia, também significa que são
filhos de pais imigrantes ou de origem estrangeira. Eles enfrentaram dificuldades na sua
escolaridade anterior e, muitas vezes, ainda enfrentam. Além disso, os jovens em questão
neste livro estão escolarizados em estabelecimentos “difíceis” de “subúrbio”. Podem por
isso ser considerados jovens de camadas populares em situação escolar e social difícil163.

1. Os processos de construção e de organização do mundo

A análise dos balanços de saber permitiu apreender os processos de construção, de organi-


zação, de categorização do mundo postos em prática por estes jovens.
A que conclusões chegámos?
1. O significado específico de uma escolaridade no ensino secundário continua a ser
muito vago para estes alunos. Eles não valorizam os saberes “escolares” (o que era de
prever) mas eles também não se mobilizam muito para os saberes profissionais (o que já
é mais surpreendente). Para eles, o LP não faz muito sentido nem enquanto L (liceu), nem
enquanto P (profissional). Os professores não se podem apoiar na “natureza” específica de
alguns saberes ou de algumas actividades (ditas “profissionais”) para voltar a mobilizar
os alunos (com excepção para alguns, muito minoritários). Não são estes saberes em si
(“técnicos”, “concretos”) que permitem a alguns destes jovens reconstruir uma relação
positiva com os estudos. Não se trata de aprender os saberes e os savoir-faire específicos
que permitem exercer uma actividade profissional. O problema reside antes de mais na
obtenção de diplomas que proporcionarão uma oportunidade de encontrar um emprego
(se possível “bom”) e por isso levar uma vida normal (se possível “bela”), onde a felici-
dade familiar ocupe uma lugar central. Estes jovens não vêem a vida a curto prazo, eles
inscrevem-se no longo prazo da vida “normal”, o seu “projecto” central é aceder a uma

No entanto, os jovens que já não frequentam a escola enfrentam uma situação ainda mais difícil.
163
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

vida normal. Contudo, o termo projecto assenta mal na relação destes jovens com o futuro.
Eles planeiam pouco porque estão expostos à instabilidade e às rupturas – e a esse grande
obstáculo de nome desemprego, uma proibição real do acesso à normalidade. A sua rela-
ção com o tempo não é uma relação estratégica, é uma relação de luta ou ao contrário de
abandono. Tratar este problema pondo em prática uma maquinaria que tem como função
fazer com que estes jovens “elaborem um projecto” é passar ao lado do essencial: a relação
destes jovens com o tempo – e as formas temporais nas quais estão efectivamente presas
as vidas dos dominados.
2. O universo destes jovens centra-se, do ponto de vista da “aprendizagem”, nas apren-
dizagens relacionais, afectivas, ligadas ao desenvolvimento pessoal. Estas aprendizagens
absorvem uma grande parte da sua energia – elas são muito importantes porque no seu
universo difícil está em jogo a sobrevivência afectiva, relacional, social do sujeito.
Estes jovens centram-se na vida, no mundo, nos outros mais do que em si próprios.
Eles não parecem empenhados em construir um Eu reflexivo de grande afirmação. Ou
seja: a identidade destes jovens (para eles) não se define através de um conjunto de catego-
rias estáveis próprias da pessoa mas através de uma relação com o mundo, com os outros,
consigo próprio, num combate que põe em jogo os princípios da “vida” e da “minha vida”.
Esta relação com o mundo, com os outros, consigo próprio também é estruturalmente am-
bivalente; então, a relação com o outro é o vector de todas as felicidades mas também de
todos os perigos, e de mim próprio posso esperar o melhor e o pior.
Por isso, não se deve tirar conclusões precipitadas sobre a labilidade do eu em relação
à alienação do sujeito: o sujeito não se coloca aqui enquanto unidade reflexiva, ele vive
como se fosse a causa e o alvo virtuais de forças antagonistas. Se nos interrogarmos sobre
a coerência do sujeito, não é a unidade do discurso sobre si que deve interessar aqui mas
sim um conjunto de relações, uma configuração dinâmica de forças antagonistas que man-
tém uma coesão suficiente para que o sujeito não enlouqueça164. Da mesma maneira, não
se deve conceptualizar demasiado rápido o discurso destes jovens em termos de anomia,
de desorganização, de raiva. A relação de adversidade com o mundo, que F. Dubet tão
bem descreveu, marca a experiência destes jovens mas não passa de uma vertente da sua
relação com o mundo: também existe a energia, a vontade de ter êxito, o voluntarismo, os
grandes sentimentos, os grandes princípios, o moralismo. Os balanços de saber não per-
mitem tanto tirar conclusões sobre o afundamento do indivíduo, fragmentado, alienado,
completamente preso em dinâmicas de galère165, mas mais sobre um indivíduo atravessa-
do hoje por grandes contradições cuja natureza em si mesma lhe escapa, pelo menos par-
cialmente. Ao modelo da sociedade pós-industrial – a da galère – que sucedeu à sociedade
industrial – a da luta de classes –, eu estaria tentado a opor um momento do capitalismo,
onde doravante a luta social destroça o próprio sujeito.

Ou caia na droga, no suicídio…


164

165
Em francês, galère é uma palavra da gíria, usada para falar dos problemas, dificuldades e empecilhos
que existem na vida das pessoas, nomeadamente na dos jovens.
262
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

O facto de as aprendizagens relacionais mais citadas pertencerem ao campo da con-


formidade e da harmonia166 também convida à prudência face às interpretações em termos
de anomia: estes jovens ainda têm algum respeito pela lei e não estão totalmente perdidos
num mundo anómico.
Os balanços de saber também recomendam que se tomem algumas reservas em relação
à representação das famílias populares (e imigrantes) veiculada pela classe média. Para
estes jovens, a família não representa um deserto cultural: é ela a mais referida quando
são questionados sobre as coisas que aprenderam desde que nasceram. A família também
não é o espaço da “demissão dos pais”: ela é para os jovens o lugar-chave onde aprendem
a comportar-se bem, a serem autónomos e darem provas de voluntarismo. Aliás, estes jo-
vens não vivem com a família uma relação de conflito (salvo excepções, é claro). De notar
que as características da família estabelecidas a partir dos balanços de saber (a família
enquanto lugar de sentido para o jovem) são as características de famílias populares mais
do que características “de origem”.
A escola é bem aceite na sua especificidade enquanto lugar de saber, mas o que ela
ensina é muito distante daquilo que é importante para estes jovens: não ensina muito a
conhecer a vida e a compreender as pessoas.
Aliás, a julgar pelos balanços de saber, a escola/instituição tem poucos efeitos de so-
cialização explícita (embora a escola/bastidores, a dos colegas, desempenhe um papel
importante na socialização). É particularmente interessante notar que esta escola que se
queixa do laxismo dos pais só parece ter um papel completamente secundário na apren-
dizagem das normas. Em contrapartida, a escola parece ter uma participação significativa
no trabalho reflexivo do adolescente sobre si próprio – mas este trabalho não é muito
valorizado por estes jovens.
Por fim, a escola surge nos balanços de saber como sendo pouco individualizada, mui-
to menos que a família. Ela actua enquanto instituição. Esta ausência de laços singulares
entre o aluno e aqueles que o formam contribui, sem dúvida, para tornar a escola difícil de
suportar aos olhos destes jovens, para quem a relação figura no centro do seu universo.
3. A relação destes jovens com o mundo não é uma relação erudita, nem uma relação
anómica relativa a um mundo sem referências. O mundo tem uma lógica mas esta lógica
incide numa implicação pessoal e de proximidade relacional e não numa ordem “objec-
tiva”. A organização do mundo faz-se em torno de pólos de sentido: eu, a minha família,
os meus amigos, a minha vida, os meus futuros filhos…, o bem e o mal, a confiança e a
desconfiança. O próprio aluno está muito presente nos seus balanços de saber mas mais
como protagonista e comentador do mundo do que como autor reflexivo de um texto.
Há duas operações de organização do mundo que merecem uma atenção particular.

Relembro que isto não significa que todos estes jovens tenham aprendido a “comportar-se bem” e a de-
166

senvolver relações harmoniosas com os outros… Mas de qualquer forma, a valorização destes comporta-
mentos, inclusive pela preocupação de serem julgados como sendo parte “da norma”, é muito significativa
em relação a esta questão da anomia e da relação com a lei.
263
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

Em primeiro lugar, a articulação de grandes princípios e de uma experiência pessoal: são


induzidas regras a partir da experiência pessoal e são mobilizados princípios para dar sentido
a esta experiência (ou à experiência relatada por uma pessoa credível). Regras indutivas e
princípios gerais, assim tão próximos, falam simultaneamente sobre a vida e a minha vida.
É esta convergência entre a experiência pessoal e o discurso generalizante que constitui o
critério de verdade. A generalização não passa por abandonar o ponto de vista pessoal mas
por alargar o campo de pessoas cujo ponto de vista é tido em consideração. Existe aqui um
processo cognitivo mas ele não constrói um objecto, ele constrói um ponto de vista colectivo
sobre o mundo, a vida, as pessoas – e o discurso que o expressa. Existe aqui cultura, mas “da
vida”, isto é da relação, da acção e da interacção num quotidiano onde se debate a questão
do sentido e do valor mais do que a cultura da natureza “objectiva” das coisas – e onde este
debate também significa um posicionamento singular num pensamento colectivo.
Há uma segunda operação de organização do mundo que merece atenção: a oposição,
a partir da qual o mundo é polarizado, dicotómico. Para estes jovens, o mundo não é um
espectáculo, o objecto dado ao olhar, à análise, à teoria. É o lugar de um combate entre
as forças que me puxam para cima e aquelas que me afundam, entre o bem e o mal. É um
lugar muito polarizado, organizado em sistemas de oposições, de compromissos, de equi-
líbrios instáveis – que é preciso compreender, conhecer, aprender.
É um lugar que se desenvolve em torno de um ponto de referência absoluta: eu, os
meus, as pessoas próximas, os amigos.
Portanto, “aprender” é para eles, fundamentalmente, aprender “a vida” – e a escola só
faz sentido quando surge ligada à vida de uma forma ou doutra (a escola dos colegas, a
escola dos diplomas, a escola que ensina coisas que são úteis fora da escola, por vezes a
escola que permite compreender a vida e as pessoas). Estes alunos aprenderam muita coisa
desde que nasceram, aprenderam “a vida” mas aprender a vida não é igual à aprendizagem
que se faz na escola. O que distingue a escola e “a vida” é também a natureza desta activi-
dade que se chama aprender. Na escola, aprender significa ouvir o professor e memorizar o
que ele explica – por vezes olhar para ele e memorizar o que ele mostrou. Aprender através
da vida, na vida, a vida é fazer dela experiência, observá-la e reflectir. É relacionar uma
experiência, um princípio, construir uma rede de factos, acontecimentos, de regras e de
princípios que constitui uma rede de sentido. Este processo observar/reflectir, experiência/
explicitação assenta sobre a vida, as pessoas, as relações com os outros e consigo próprio
e é tão axiológico quanto analítico.
4. Estes processos de construção, organização, categorização do mundo são realizados
tanto por rapazes como por raparigas, por jovens de secções industriais como por secções
terciárias, por alunos de CAP ou BEP como por alunos de bac profissional. Contudo, na
base destes traços comuns é possível identificar diferenças entre os grupos.
Estas diferenças referem-se à relação com o mundo (mais ou menos tensa), à relação
com o futuro (que implica mais ou menos a aquisição de saberes), à identificação das fun-

264
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

ções específicas da escola e, em geral, aos diferentes lugares da aprendizagem, às diferen-


tes dimensões da construção de si (normatividade, autonomia, voluntarismo, reflexivida-
de…) e aos espaços onde se desenvolve esta construção de si. No essencial, as diferenças
não se situam ao nível das aprendizagens intelectuais e escolares mas na relação com o
mundo, com os outros e consigo próprio167.
Deste modo, para as raparigas a afirmação positiva e reflexiva de si realiza-se na famí-
lia e na escola, para os rapazes é o bairro que desempenha esse papel; inversamente, para
as raparigas, o esforço para controlar e reprimir pulsões desenvolve-se no bairro, para os
rapazes a família e a escola desempenham esse papel. Para as raparigas mais do que rapa-
zes, a escola pertence ao campo da valorização pessoal e do mundo apaziguado. Para os
rapazes, a escola traz menos promessas de valorização pessoal e mais exigências ao nível
do auto-controlo.
Mais uma vez, as razões que levaram estes alunos de bac profissional a atingir este
nível de escolaridade não se devem procurar na relação com os conteúdos e actividades
escolares – salvo para uma minoria, que evoca os saberes profissionais de forma mais
frequente e precisa. É antes de mais, e mais uma vez, na relação com o mundo, com os
outros e consigo próprio que surgem as diferenças entre alunos de BEP e de bac pro. Estes
últimos vivem num mundo menos tenso e ou manifestam mais confiança em si e auto-
nomia (rapazes de ramo industrial e raparigas de ramo terciário) ou mais voluntarismo e
reflexividade (rapazes de ramo terciário).
A comparação entre alunos do ponto de vista da categoria socioprofissional dos pais
(CSP), esboçada a título preliminar, mostra que são os mesmos processos que estruturam
a relação com o saber e a escola, independentemente da CSP dos alunos. Isto também é
verdade para alguns filhos de quadros superiores: as relações com o saber e a escola dos
jovens de famílias favorecidas escolarizados no LP são, por razões ligadas à história pes-
soal destes jovens, estruturadas através de processos que se verificam com mais frequência
em jovens de famílias populares do que em jovens de famílias favorecidas.
A análise assentou em seguida nestas histórias pessoais, singulares.

2. A escolaridade enquanto história singular

De que forma é que os alunos de liceu profissional dão sentido ao que viveram, ao que vi-
vem e ao que vão viver? As entrevistas permitiram analisar estes alunos enquanto sujeitos
implicados numa história.
O que é que ficámos a saber? Os processos analisados estão muito ligados à história
dos indivíduos e eu limitar-me-ei aqui a alguns resultados, simultaneamente importantes e
de fácil compreensão fora do contexto.

Sendo bem claro que as aprendizagens escolares contribuem para a construção destas relações diferen-
167

tes com o mundo, com os outros e consigo próprio.


265
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

1. A pergunta “os alunos escolheram a sua orientação?” é uma pergunta mal formulada
quando o que está em causa é o liceu profissional.
Por mais estranho que possa parecer, não é antes de ser orientado para o liceu profis-
sional que o aluno é confrontado com a escolha, mas depois.
Se os jovens pudessem escolher haveria muito poucos alunos nos LP. Encontraríamos
aí alguns jovens que querem prolongar uma história familiar (do género padeiro filho de
padeiro) e alguns que desejam aprender um ofício o mais cedo possível. Encontraríamos
também jovens em xeque desde a escola primária, que nunca “entraram” verdadeiramente
na escola e para quem o LP é uma espécie de resultado lógico. Mas a grande maioria dos
alunos de LP estaria noutros sítios. Eles nunca quiseram frequentar o LP, onde aprendem
um ofício que não é “ofício ideal”, evocado por eles no collège. Eles entraram no liceu
profissional por acidente e este último ganha forma de uma deriva, de uma ruptura ou de
uma reorientação. Sem dúvida, na maioria dos casos eles aceitaram, assinalaram (eles di-
zem “escolheram”) o liceu profissional quando preencheram uma folha com os seus dese-
jos mas tratou-se de uma pseudo-escolha: eles cederam às pressões da instituição escolar
e tomaram a única decisão possível tendo em conta o seu nível. Se pudessem voltar atrás,
se pudessem recomeçar a sua história escolar, não estariam certamente no LP – e todos
eles, mesmo aqueles que têm boas notas, desejam que os seus futuros filhos não sejam
obrigados a passar pelo mesmo.
Então, a verdadeira questão não é saber se eles escolheram ou não a sua orientação:
salvo as excepções, eles não tinham escolha. O que é importante é saber o que vão fazer
com ela. De que forma a assumem? Será que aceitam ou não transformar-se, na sua cabeça
e aos olhos dos outros, “liceais de liceu profissional”? A orientação no LP provoca uma
ferida narcisista que muitas vezes é profunda, em carne viva. De que forma cuidam desta
ferida narcisista? Que tipo de trabalho de interpretação fazem eles para conferir significa-
do ao que vivem e reconstruir uma imagem de si próprio aceitável?
Alguns afundam-se no ressentimento, acompanhado de negação (“eu estou aqui por
engano”, “não tenho nada a ver com o ensino profissional”), de revolta (mais ou menos
alegre ou amarga), ou de cinismo (o importante na vida é “ser esperto”). Contudo, raros
são os alunos que cerram todas as saídas escolares. Por mais amargos que sejam, a maioria
dos alunos de liceu profissional continuam a inventar um futuro para si. “Embora não seja
aquilo que queria, é preciso continuar, para conseguir ser alguém”. Este é o ponto central:
será que ainda se pode ambicionar, quando se é aluno de liceu profissional, ter “uma vida
normal” e até mesmo “ser alguém”? Será que só se pode ser alguém através da escola – ou
então do negócio ilegal, do rap ou do futebol? É só quando o aluno consegue reinventar
um futuro, e um futuro que passa pela escola é que o liceu profissional se torna para ele
suportável, até mesmo desejável. A construção de um “projecto profissional” não é evi-
dentemente suficiente para reinventar um futuro – embora possa contribuir. O que estes
jovens necessitam não é um projecto profissional é um projecto seu, um projecto de vida.

266
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

A história destes jovens pode ser analisada com frequência através de jogos da domi-
nação e do desejo: quando se nasce numa família popular, como é que se pode ser alguém
e quem é este “alguém”? O que se passa na família, ao mesmo tempo zona de impacto
da dominação social e lugar de construção e de estruturação do desejo, é evidentemente
essencial, bem como o que se passa no bairro. No entanto, não é na família nem no bairro
que o futuro escolar do jovem está em jogo: é em primeiro lugar na escola. Para se projec-
tar no futuro, para reencontrar o papel do sonho e a força do desejo, é preciso sentir que
o liceu profissional abre uma porta para o futuro – um futuro que exige diplomas, logo
boas notas, logo um ensino eficaz. O que estes alunos precisam é de um projecto seu, um
projecto de vida… e de professores que, por último, consigam explicar-lhes o que fazem
ali, o que lhes ensinam.
2. Hoje em dia, a lógica dominante nos liceus profissionais já não é uma lógica do tra-
balho (e ainda menos a da classe operária) é uma lógica de nível. Isto quer dizer nomeada-
mente que quando o liceu profissional volta a mobilizar alguns jovens para a escola, é me-
nos enquanto lugar da “prática” e mais como uma nova oportunidade de aceder, apesar de
tudo, a um diploma – e logo a uma vida normal e talvez a um estatuto social invejável.
A referência à prática é ambígua. Ou se insiste no facto de a escola e o trabalho serem
duas coisas completamente diferentes; mas se se levar esta lógica ao extremo, corre-se o
risco de deslegitimar o próprio LP porque este último continua a ser uma escola. Ou então,
insiste-se na complementaridade entre o liceu profissional e a empresa, arrastando o liceu
para o lado da prática, mas isto acarreta outras dificuldades. Em primeiro lugar, o aluno
critica o LP por não ser suficientemente profissional. Em segundo lugar, constrói desta
forma uma relação com o liceu profissional que condena à partida o ensino geral que aí é
facultado. Em terceiro lugar, hoje em dia, mais de metade dos alunos de BEP continuam
os estudos no bac (tecnológico ou profissional) e não é muito inteligente arrastar o LP
para a prática quando os alunos necessitam de um nível de formação geral decente para
continuar os seus estudos.
Os próprios jovens debatem-se com esta ambiguidade. Por um lado, eles gostam de
aprender coisas precisas, aferíveis, que não se reduzem (para eles) à linguagem, às pala-
vras, aos apontamentos. Mas, no entanto, a forte referência ao trabalho, aos seus saberes,
às suas actividades, não é suficiente para fazer nascer e sustentar a mobilização escolar dos
alunos. Estes jovens acham que para ser realmente bem sucedido na vida é preciso “su-
bir”, acontecimento que permite “ser alguém”. Eles só investem com força no LP quando
o começam a ver como um lugar que propõe uma outra forma de conseguir o bac, que
oferece uma segunda oportunidade, que constitui um atalho para acabar, apesar de tudo,
os estudos.
A lógica aqui já não é a do ofício mas a do nível. Hoje em dia, para ser eficaz, para
além de uma minoria de alunos, a figura da prática deve articular-se na lógica de nível.
Assim, ela ganha um outro significado: o facto de o liceu ser profissional, de facultar um

267
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

ensino de tipo diferente (sem todas as “peneiras” do collège), de compreender sequências


práticas, aumenta as oportunidades de nele alcançar um diploma, de mais tarde encontrar
um trabalho e logo ter uma vida bem sucedida.
Quando a lógica do ofício se articula numa lógica de nível, o próprio ofício é redefini-
do: com frequência, o aluno só retém formas prestigiosas ou marginais. Com o seu BEP
materiais flexíveis, a aluna não será operária no ramo da costura mas estilista ou dona de
uma pequena loja de roupa em Londres; com o seu BEP administração comercial e conta-
bilidade, o aluno será contabilista mas nos bombeiros, na polícia ou no exército…
3. A relação que os alunos mantêm com o saber condu-los a operar uma verdadeira
reviravolta de legitimidade cultural: o ensino profissional obriga a reflectir, enquanto o
ensino geral, muitas vezes, não é mais do que palavras a memorizar.
Para os alunos, estudar168 é, fundamentalmente, enfiar coisas na cabeça: ouvir, olhar
eventualmente, memorizar em seguida. O problema é que “o cérebro não pode reter tudo”.
Então, existem duas possibilidades. Ou se está perante uma disciplina puzzle: existe uma
lógica, se a compreendermos será fácil ouvir e memorizar. Ou então trata-se de uma disci-
plina scrabble, à base de palavras, onde não há, em último caso, nada para perceber e onde
é preciso fazer um enorme esforço de memorização.
Esta categorização derruba as legitimidades culturais dominantes na instituição: em
Mecânica existe uma lógica, pode-se pensar, analisar (“abstrair”…), enquanto “saber
quem foi o cunhado de Napoleão ou aprender fórmulas matemáticas” significa ser con-
frontado com enunciados sem lógica, com factos concretos que não estão inscritos numa
rede de sentido (isto é, do âmbito do “concreto”…). Nas disciplinas técnicas e profissio-
nais é preciso reflectir, é uma coisa séria, enquanto as disciplinas gerais, embora se possa
gostar delas, não são mais do que palavras sem grandes consequências e onde não se trata
realmente de reflectir, basta memorizar.
4. A relação entre os alunos de meio popular e os seus professores não é de tipo “afec-
tivo”, contrariamente àquilo que pensam muitos professores. Ela associa uma grande de-
pendência epistémica (é o professor que é activo no acto de aprendizagem, de forma que o
sucesso ou o insucesso escolar depende do professor) e uma grande exigência em termos
de relações singulares entre seres humanos. Se fosse preciso qualificar esta relação, eu
caracterizá-la-ia de antropológica, ou melhor, antropo-pedagógica, mais do que afectiva.
Para os alunos de liceu profissional, e de forma mais geral, de meio popular, o bom
professor deve impor a ordem na sala de aula, explicar e voltar a explicar. Ele também
deve, fundamentalmente, estar ao lado do aluno, encorajá-lo, acreditar que ele pode ser
bem sucedido, “ser próximo”. Os professores dos bairros populares (no collège ou liceu)
entrevêem estas exigências mas eles vêem-nas como carências afectivas: os alunos de
meios populares teriam, mais do que outros, carências afectivas não satisfeitas na sua
família e canalizariam essas carências para os professores. A priori, eu desconfio de uma

Que se deve distinguir de “aprender coisas” ou aprender “a vida” – que supõe, como já vimos, que se
168

observe e reflicta, que se articule experiência e princípios.


268
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

interpretação desta natureza, que coopera na desvalorização das famílias populares (que
nem sequer são capazes de amar os seus filhos…) por parte da classe média. Ao cabo desta
investigação, diria que esta interpretação é abusiva, no mínimo, por duas razões.
Em primeiro lugar, para os jovens de meio popular aprender é, fundamentalmente,
memorizar o que o professor explica. É difícil, muito difícil, é preciso realmente querer, é
preciso ser constantemente ajudado e encorajado pelo professor. É indispensável que este
último explique bem e volte a explicar, que compreenda o aluno, isto é, compreenda que é
normal o aluno não perceber, e que deve explicar-lhe outra vez. A proximidade professor/
alunos é uma exigência epistémica.
Em segundo lugar, esta proximidade é uma exigência antropológica. O que os jovens
exigem não é amor, no sentido familiar do termo (“afectividade”), é o reconhecimento do
seu estatuto de ser humano (e os direitos que lhes estão associados, em primeiro lugar o
respeito). Eles exigem uma palavra adulta, um intercâmbio sobre o sentido da vida e das
coisas, o direito a exprimir a sua opinião, alguma cumplicidade no trabalho. Mais do que
uma relação afectiva, é uma relação antropológica (ou, se não nos importarmos com o jar-
gão, antropo-pedagógica) que está aqui em causa: cumplicidade de espécie entre o adulto
e o jovem, o primeiro estando persuadido da educabilidade do segundo e apoiando-o nesta
empreitada que consiste em apropriar-se de património humano.
5. A situação ideal é quando o aluno aprende uma disciplina “interessante” com um
professor “interessante”. Não é fácil perceber o que para eles significa “interessante” por-
que a conversa sobre este ponto é circular:
“É interessante porque gosto;
• Porque é que gostas?
• Porque é interessante!”

“É interessante” remete na realidade para uma configuração de processos articulados,


que funciona como um sistema de equivalências causais – entendendo-se por isto um
sistema em que a presença de um elemento tende a produzir os seus equivalentes e assim
reciprocamente. Uma disciplina é interessante porque:
• eu gosto;
• eu percebo, eu aprendo facilmente; eu tenho boas notas;
• eu aplico-me, estou por dentro, a disciplina é absorvente; às vezes, é o professor que
consegue que eu me aplique, partilha comigo a sua paixão
• o professor explica bem, a matéria entra-me directamente na cabeça, eu percebo;
• a disciplina tem utilidade no futuro.

É uma configuração de desejo, de sentido, de prazer que remete para o adjectivo “inte-
ressante”. Uma disciplina “interessante” é uma disciplina que reencontra ou provoca um
desejo e que, por isso, gera prazer e sentido. Uma disciplina interessante volta a mobilizar
o aluno mas, reciprocamente, uma remobilização do aluno (que, por exemplo, faz esforços
269
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

numa disciplina porque precisa dela para um exame), permite-lhe compreender e ter boas
notas, produz desta forma sentido e prazer e com frequência torna a disciplina interessante
aos olhos do aluno.
Pode dizer-se que um aluno entrou de facto na escola quando ele, desta forma, re-
encontra o saber e lhe confere sentido e prazer. Antes de 1933, em França, os alunos de
origem popular não tinham acesso ao ensino secundário, demasiado dispendioso para as
famílias. Entre 1933 e o fim dos anos 1950, poucos foram os alunos de famílias populares
que entraram no ensino secundário porque o exame de entrada no 6e, prova de selecção
precoce, servia de obstáculo. Desde o início dos anos 60 no collège, e o fim dos anos 1980
no liceu, as portas do ensino secundário parecem escancaradas para os jovens de meios
populares. Mas grande parte deles nunca entra no universo cognitivo e simbólico da esco-
la. Não basta abrir as portas da instituição, também é preciso entregar as chaves aos jovens
de meios populares.

3. Sobre a relação com o saber dos jovens de meios populares – e sobre a forma como
olham para eles

Os jovens de quem este livro fala pertencem, sem dúvida alguma, a meios populares. Con-
tudo, isto significa que os processos identificados e analisados se verificam nos alunos des-
tes meios mas não significa, no entanto, que sejam características destes meios. Também
se poderia defender que estes processos caracterizam todos os jovens desta faixa etária, ou
todos os liceais, e não são específicos dos jovens de famílias populares.
Eu analisei também entrevistas realizadas a jovens escolarizados em liceus gerais e
tecnológicos – e apurei que os processos identificados nos jovens de liceus profissionais
não se verificavam em todos os jovens, nem em todos os liceus169. Além disso, hoje posso
apoiar-me na investigação conduzida por Élisabeth Bautier e Jean-Yves Rochex sobre a
relação com o saber dos jovens de liceus gerais e tecnológicos – investigação apresentada
num livro que é publicado no momento em que escrevo esta conclusão (Bautier & Rochex,
1998).
É. Bautier e J.-Y. Rochex colocam em evidência processos fundamentalmente diferen-
tes nos “herdeiros” das famílias favorecidas e nos “novos liceais” das famílias populares.
Eu terei em consideração aqui dois grandes tipos de diferenças170.
Em primeiro lugar, tal como os alunos de collège das zonas de educação prioritárias,
muitos dos “novos liceais” identificam o trabalho intelectual e a realização de tarefas da-

169
Eu não quis introduzir esta dimensão comparativa neste livro, por um lado para não alongar ainda mais
o texto, por outro lado porque a investigação de É. Bautier e J.-Y. Rochex é mais completa e sistemática
do que as minhas investigações complementares.
170
O livro é demasiado rico para ser resumido rapidamente e o que digo aqui não esgota evidentemente
o seu conteúdo. A minha intenção não é resumir o livro mas sim assinalar as convergências de fundo e as
diferenças de abordagem em relação ao meu.
270
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

das pelos professores. Dito de outra forma, para eles estudar significa fazer o que lhes é
pedido. As disciplinas escolares são vistas como uma justaposição heteróclita de tarefas
fragmentadas, de rotinas, de exercícios parcelares, de exigências formais. Inversamente,
para os bons alunos, para além das tarefas e exercícios justapostos existem as disciplinas,
que significam construções de saberes específicos. Para eles, o trabalho intelectual não
se reduz à realização de uma tarefa, é uma construção que permite questionar o mundo,
pensá-lo de outra forma que não o da experiência quotidiana.
Para os alunos com dificuldades escolares, as palavras, os discursos, os textos des-
crevem o mundo, reproduzem o real “tal como é”. As palavras não têm importância per
si, são apenas veículos do real. Então, é preciso usar as palavras mais simples possíveis
e lamentar o facto de “o prof. dar muita importância às palavras”. Pelo contrário, para os
bons alunos a linguagem não é um simples instrumento, é uma ferramenta do raciocínio.
A linguagem não descreve o mundo, ela constrói-o – logo, as palavras são importantes e
nem sempre podem ser as palavras do dia-a-dia.
Estes resultados de investigação convergem com os que foram apresentados no livro
que aqui se termina: quando se pensa, nomeadamente, no modelo ouvir – memorizar, no
professor que explica tão bem que as coisas entram directamente na cabeça, nas discipli-
nas scrabble que não são mais do que palavras, nestes professores que falam, falam, falam
enquanto os alunos escrevem, escrevem, escrevem. A relação com o saber dos liceais de
meios populares com dificuldades escolares é a mesma, quer estejam escolarizados nos
liceus gerais, tecnológicos ou profissionais. Contudo, ela surge sob uma forma ainda mais
radical (mais “dura” e mais “pura”) nos liceus profissionais. Provavelmente, existe aqui
uma combinação entre um efeito de selecção (para o LP são enviados os alunos mais
arredados da lógica da instituição escolar), um efeito de interacção (entre os alunos que
alimentam a mesma relação com o saber, o que tende a reforçar em cada um deles a legi-
timidade desta relação) e um efeito de formação (é verdade que no liceu profissional se se
ouvir bem o que o professor explica de forma correcta, existem grandes probabilidades de
se ter boas notas – enquanto no liceu geral e tecnológico esta postura não é suficiente).
Em segundo lugar, as diferenças entre liceais também assentam na relação com o mun-
do, os outros e consigo próprio.
Os bons alunos, analisados por É. Bautier e J.-Y. Rochex, realizam negociações consi-
go próprios que permitem articular as diferentes posturas do indivíduo: o “para mim” da
experiência vivida e dos preceitos morais que sustentam a sua apreensão imediata, o “eu”
que analisa, comenta, argumenta. Estes alunos também são capazes de pôr a circular, entre
os domínios escolares e não escolares, os conhecimentos e as disposições adquiridas.
Inversamente, os alunos com dificuldades escolares não dissociam claramente o “eu” e
o “para mim”. Nos seus textos, o sujeito “é mais um para mim, um eu que figura em todas
as acções, experiências, afectos, do que um eu que se elabora, construído na reflexividade
e numa temporalidade diferente da acção” (Bautier & Rochex, 1998). Nos textos escritos

271
A RELAÇÃO COM O SABER NOS MEIOS POPULARES

por estes jovens existe uma sucessão de asserções e enunciados “indiscutíveis”, que falam
sobre a “verdade das coisas”. Os argumentos avançados são na realidade a reprodução
dos valores fundamentais e “evidentes” do grupo. “Não existe nenhuma possibilidade de
argumentação face à evidência dos valores que respondem a todos os problemas da vida”.
O enunciado-tipo é “um enunciado injuntivo-normativo (é preciso realizar uma norma)
que apresenta um estereótipo, em geral moral, que representa os valores do grupo que não
são debatidos, nem interrogados”. Não existe um sujeito de enunciação, “é o grupo que é
sujeito desses enunciados”. Por outro lado, embora o texto seja abundante em enunciados
gerais, não existe contudo “um trabalho cognitivo de abstracção a partir de um caso parti-
cular, de uma experiência” (Bautier & Rochex, 1998).
Mais uma vez, é inútil insistir na convergência, muito clara, entre os resultados des-
ta investigação e os da investigação nos liceus profissionais. Nós vimos, nos capítulos
precedentes, que os jovens de liceus profissionais organizam o mundo em torno de pólos
de sentido (eu, a minha família, os meus amigos…) e dividem-no a partir de grandes
princípios (o bem e o mal…). Também vimos que estes jovens estão mais presentes nos
seus textos como sujeitos portadores e depositários de experiências e como comentadores
morais do mundo do que como sujeitos epistémicos que organizam o mundo em torno de
argumentos cuidadosamente ponderados e organizados. Em suma, o que nós analisámos a
partir da palavra dos alunos de liceus profissionais é de facto a relação com o saber própria
dos jovens de meios populares.
Contudo, poder-se-á talvez notar que a maneira de olhar para a relação dos jovens com
o saber, com o mundo e com a vida não é idêntica nas duas investigações171. Pegarei em
três pontos para confirmar e simultaneamente assinalar diferenças nas análises propostas
por É. Bautier e J.-Y. Rochex.
Em primeiro lugar, é verdade que não se verifica nestes jovens “um trabalho cognitivo
de abstracção a partir de um caso particular”. Contudo, estes jovens não estão encerrados
no domínio do particular; na sua lógica, como tentei mostrar, a generalização não passa
por abandonar o ponto de vista pessoal mas por estender o campo de pessoas cujo ponto
de vista é levado em consideração.
Em segundo lugar, é verdade que, para estes jovens, não existe uma construção de um
ponto de vista de sujeito enunciador. Contudo, existe um trabalho de construção de um
ponto de vista, mas trata-se do ponto de vista do grupo (que pode ser grupo etário, grupo
social, grupo “étnico” ou qualquer outro grupo de pertença).
Em terceiro lugar, é verdade que estes jovens produzem enunciados de grande evi-
dência não questionada, conformistas, normativos, injuntivos. Contudo, não se trata de
estereótipos, mas sim de processos específicos de elaboração cultural: articulação entre
Relembro que É. Bautier e J.-Y. Rochex pertencem, tal como eu, à equipa ESCOL. Não é de espantar
171

que, para lá de convergências profundas, existam divergências no seio de uma equipa de investigação,
inclusive em pontos importantes: a vida e o pensamento, inclusive numa equipa de investigação, implicam
contradições e debates. É quando toda a gente numa equipa está de acordo que começa a haver lugar para
inquietações.
272
UMA INVESTIGAÇÃO NOS LICEUS PROFISSIONAIS DE SUBÚRBIO

a minha experiência e a daqueles que, de alguma forma, me são próximos; convergência


de regras indutivas e de princípios gerais; construção correlativa do sentido da vida e do
sentido da minha vida. Aqui, existe cultura, mas “da vida”, isto é da relação, da acção e
da interacção num quotidiano onde se debate a questão do sentido e do valor e onde a
resposta é colectiva.
É verdade que os jovens de meios populares têm uma relação limitada com a lingua-
gem e o saber que lhes permitiria ter boas notas e aceder a algumas formas de compre-
ensão do mundo e deles próprios. É completamente legítimo sublinhar estas limitações e,
quando se é actor social, tentar colmatá-las.
Mas o investigador deve ter cuidado para não se encerrar numa leitura negativa da
realidade social.
Uma leitura “positiva”172 da experiência dos jovens de meios populares permite com-
preender que estes jovens, para sobreviver no mundo dominado que é o seu, tiveram que
aprender muitas coisas (dominar as formas de actividade, entrar em dispositivos relacio-
nais…). Eles realizam processos que são completamente pertinentes, racionais e eficazes
para interpretar o mundo em que vivem e para nele sobreviver. Eles não encontraram
estes processos nos seus berços, eles tiveram que aprendê-los, apropriá-los, construí-los
– embora não tenham a consciência reflexiva de o ter feito, nem sequer de dominar tais
processos.
Uma leitura “positiva” da experiência escolar destes jovens também permite não os
encerrar numa representação de indivíduos alienados e de os ver também como sujeitos,
confrontados com os grandes desafios da existência (a vida e a morte, o bem e o mal, a
amizade e o ódio, as relações entre as gerações, etc.) e lutando com as contradições, com
as quais precisam de aprender a viver.
Existem várias modalidades de “aprendizagem”, que não se podem limitar exclusiva-
mente ao saber escolar, e várias formas de subjectividade, cujo modelo não é necessaria-
mente o sujeito epistémico reflexivo com grandes competências cognitivo/linguísticas…
Sem dúvida, nem tudo tem o mesmo valor e sabemos que “o direito à diferença” oculta
com frequência a preservação das desigualdades. Mas falar da legitimidade e impor a
norma advém de um debate social e étnico e não de um debate científico. Ao investigador,
cabe explorar e analisar as formas heterogéneas da aprendizagem e da subjectividade,
sem hierarquizar essas normas. Caso contrário, ele corre o risco de apresentar o seu clone
fantasmático como o verdadeiro sujeito, detentor do verdadeiro saber…

172
Sobre esta questão epistemológica e metodológica, cf. Charlot, 1997.
273
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276
ANEXOS
ANEXOS

GRELHA DE ESCRUTÍNIO DOS BALANÇOS DE SABER

Códigos Nome Conteúdo


11 Saberes e savoir- andar, comer, falar, vestir-me, pentear-me, apertar os atacadores, saber ver
‑faire básicos as horas, ser limpo, cuspir…
12 Tarefas familiares cozinhar, lavar a loiça, limpar a casa, ir às compras, passar a ferro, arrumar
o meu quarto, a minha cama, etc., tomar conta das crianças, dos bebés…
13 Savoir-faire coser, tricotar, fazer bricolage, andar de mota, conduzir um carro, reparar
específicos as bicicletas, uma mota, actividades correntes (comprar pão, apanhar o
metro), o nome das ruas, orientar-me, etc., tratar dos animais, ajudar no
trabalho agrícola, etc. actividades de dimensão instrumental (escrever à
máquina, fotografar, fazer betão armado, etc.), assobiar, fazer o nó de uma
gravata, maquilhar-se, etc.
14 Lazer, actividades férias, viagem, campismo, brincar, divertir-me, andar de patins, de bicicle-
lúdicas ta, de skate, jogar pingue-pongue, subir às árvores, etc., jogar futebol (no
bairro, com os amigos), televisão, informática (na óptica do lazer)
15,1 Actividades físicas, desporto, futebol, natação, etc.
desportivas
15,2 Actividades dança, música, cantar, instrumento, desenho, pintura…
artísticas
16 Actividades
intelectuais e
“escolares” (AIE)
161 • Aprendizagens ler, escrever, contar
escolares básicas
162 • Expressões genéri- o saber, coisas interessantes, o que é preciso saber, o programa, as aulas, as
cas e tautológicas disciplinas da escola, muitas coisas, tudo o que é preciso estudar, poucas
coisas, tudo o que sei… os estudos, a educação, a cultura, a cultura geral.
163 • Disciplinas
escolares
- 163,1 - simplesmente Francês, Matemática, História… (as disciplinas enquanto etiquetas institu-
referidas cionais)
- 163,2 - evocação de um ortografia, gramática, as línguas estrangeiras, o corpo humano, os comple-
conteúdo mentos de objecto directo, as fracções… (tudo aquilo que exprime, pelo
menos um mínimo, de conteúdo de saber)
- 163,3 - evocação de uma exprimir-me, falar bem, exprimir-me em francês, falar em verlan…
capacidade
164 • Aprendizagens
metodológicas
164,1 estudar as lições, os deveres, corrigir, rever, organizar-me, estudar sozi-
nho…
164,2 aprendi a perceber, a estudar, a conhecer, a instruir-me, a trabalhar (quando
a palavra é empregada só)
165 • Aprendizagens trabalhar bem, estudar bem, ouvir os professores, levantar a mão…
normativas
166 • Pensar compreender, ter uma opinião, ser crítico, imaginar, reflectir, ter um pensa-
mento lógico
17 Política, sociedade, o que se passa no mundo, evocação de princípios ou de acontecimentos so-
ideologia, religião ciais, políticos, evocação do racismo, evocação do estatuto dos jovens, reli-
gião, do ambiente (e tudo aquilo que evoca uma reivindicação nestas áreas)
18 NADA não aprendi nada

279
ANEXOS

19 Expressões tautoló- muitas coisas, a educação


gicas (extra AIE)
101 Aprendizagens
relacionais e
afectivas (ARA)
101,1 • Conformidade comportar-me bem, ter boas relações, as boas maneiras, portar-se de forma
adequada, respeitar os pais, os profs., os adultos, obedecer, ouvir os pais
101,2 • Relações de vida em comum, solidariedade, amigos, amizades, amor, sexualidade, confian-
harmonia ça, franqueza… conhecer pessoas e sítios novos, ser útil, ajudar, comunicar
101,3 • Relações de defender-me, andar à luta, fazer com que os outros me respeitem, insultar,
conflito rejeição, raiva, ciúme, desconfiança, mentira…
101,4 • Conhecer as aprendi o que é a vida, as coisas da vida, a viver, a conhecer (compreender)
pessoas, a vida as pessoas, a vida, o que é importante na vida
101,5 • Outros
101,6 • Transgressão fazer asneiras, parvoíces, roubar, enganar, a grosseria, as más maneiras, os
palavrões, aprendi a não (quando eles remetem para a transgressão, a deso-
bediência, etc; contudo, alguns “a não…” podem ser classificados noutras
categorias, quando o seu significado dominante não é o da transgressão;
por exemplo, “a não ser racista” está classificado no 17)
102 Desenvolvimento
pessoal (DP)
102,1 • Confiança em si, confiança em si, desenrascar-se, ser autónomo, responsável, estar sozinho,
autonomia a solidão, ter a minha liberdade, adaptar-me
102,2 • Ultrapassar as ultrapassar as dificuldades, querer, autocontrolar-me, ser calmo, a paciên-
dificuldades cia, ser mais maduro, decidir, nunca perder a esperança, conseguir, atingir
um objectivo, trabalhar muito, trabalhar para conseguir, progredir… (tudo
aquilo que carrega a marca de algum voluntarismo)
102,3 • Quem sou quem sou, a minha personalidade
102,4 • Divertir-me, viver divertir-me, viver bem, rir, fazer a festa, sair (quando a ocorrência remete
bem, rir para uma libertação de tipo explosivo; caso contrário, “sair” ou “divertir-
me” muito estão sobretudo classificados no 14) a alegria de viver, os praze-
res da juventude.
102,5 • Outros
103 Aprendizagens
profissionais (APro)
103,1 impreciso
103,2 um bom trabalho, ou com uma ligação trabalho/futuro/sucesso ou com um
comentário
103,3 trabalho preciso, mencionado
103,4 actividades do trabalho evocadas
103,5 estudos (ou diploma) necessários para exercer/conhecer o trabalho evocados
103,6 saberes necessários para exercer o trabalho mencionado
103,7 comportamentos necessários para exercer o trabalho mencionado, aprender
a vida na empresa, o mundo do trabalho, a vida activa
103,8 procurar um emprego, encontrar um trabalho
104 Outros

280
ANEXOS

QUADROS

Quadro A1 – % ocorrências
Código Total R. Ra. Ind. Terc. 3T CAP BEP Bac pro
11 6% 6% 5% 8% 5% 6% 2% 7% 3%
12 3% 1% 5% 2% 4% 5% 0% 2% 5%
13 2% 3% 0% 3% 1% 5% 0% 2% 0%
14 3% 4% 2% 4% 3% 3% 3% 4% 2%
15,1 2% 4% 0% 3% 2% 5% 4% 2% 0%
15,2 0% 0% 0% 1% 0% 2% 0% 0% 0%
16 24% 25% 23% 25% 23% 24% 27% 24% 23%
17 2% 3% 2% 2% 3% 2% 3% 3% 2%
18 0% 0% 0% 1% 0% 0% 2% 0% 0%
19 3% 4% 3% 4% 3% 0% 6% 3% 4%
101 38% 35% 41% 33% 41% 38% 34% 39% 37%
102 10% 10% 11% 10% 10% 7% 15% 10% 12%
103 4% 2% 5% 3% 4% 0% 4% 3% 7%
104 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 1%
Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
Nº oc. 3832 1643 2189 1449 2383 480 131 2295 926

Quadro A2 – % alunos
Código Total R. Ra. Ind. Terc. 3T CAP BEP Bac pro
11 20% 19% 20% 22% 17% 40% 8% 21% 11%
12 11% 5% 19% 5% 16% 21% 0% 8% 18%
13 8% 11% 4% 11% 5% 26% 0% 8% 4%
14 17% 18% 16% 18% 16% 29% 17% 17% 13%
15,1 10% 13% 6% 11% 9% 33% 17% 9% 4%
15,2 5% 4% 6% 6% 4% 10% 4% 5% 3%
16 63% 57% 71% 58% 68% 79% 67% 62% 61%
17 12% 10% 14% 9% 14% 17% 17% 12% 9%
18 6% 5% 6% 7% 5% 7% 13% 5% 5%
19 19% 18% 20% 19% 18% 10% 29% 18% 21%
101 74% 67% 82% 67% 80% 76% 54% 78% 68%
102 40% 35% 47% 37% 43% 33% 46% 40% 41%
103 16% 10% 24% 12% 20% 5% 17% 14% 26%
104 5% 6% 4% 5% 5% 5% 4% 4% 7%
Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
Nº alunos 533 282 251 240 293 42 24 329 138

281
ANEXOS

Quadro A3 – ARA-DP. % ocorrências


Código Total R. Ra. Ind. Terc. BEP Bac pro
101 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
101,1 35% 37% 33% 34% 35% 33% 33%
101,2 28% 24% 31% 24% 31% 29% 33%
101,3 10% 11% 9% 11% 9% 8% 10%
101,4 15% 13% 17% 16% 15% 18% 12%
101,6 12% 14% 11% 15% 11% 12% 12%
Nº oc.
1458 568 890 480 978 886 344
ARA
102 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
102,1 45% 47% 43% 48% 42% 41% 50%
102,2 31% 32% 30% 30% 31% 32% 29%
102,3 15% 10% 20% 11% 18% 16% 17%
102,4 9% 12% 7% 10% 9% 10% 3%
Nº oc. DP 394 164 230 149 245 228 115
101,1 27% 29% 26% 26% 28% 26% 25%
101,2 22% 19% 25% 18% 25% 23% 25%
101,3 8% 9% 7% 9% 7% 6% 8%
101,4 12% 10% 13% 12% 12% 15% 9%
101,6 10% 11% 9% 12% 9% 10% 9%
102,1 10% 11% 9% 11% 9% 8% 13%
102,2 7% 7% 6% 7% 6% 7% 7%
102,3 3% 2% 4% 3% 4% 3% 4%
102,4 2% 3% 1% 2% 2% 2% 0%
101+102 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%

Quadro A4 – ARA-DP. % alunos


Código Total R. Ra. Ind. Terc. BEP Bac pro
101 74% 67% 82% 67% 80% 78% 68%
101,1 48% 40% 56% 37% 57% 47% 43%
101,2 42% 33% 52% 33% 50% 45% 38%
101,3 17% 18% 17% 16% 18% 15% 17%
101,4 27% 18% 36% 18% 34% 30% 23%
101,6 20% 20% 20% 21% 19% 20% 16%

102 40% 35% 47% 37% 43% 40% 41%


102,1 24% 21% 27% 21% 26% 21% 28%
102,2 16% 15% 18% 14% 18% 16% 18%
102,3 10% 5% 14% 7% 12% 10% 11%
102,4 5% 4% 5% 4% 5% 5% 2%

282
ANEXOS

Quadro A5 – AIE. % ocorrências


Código Total R. Ra. Ind. Terc. BEP Bac pro
16 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
161 43% 42% 44% 43% 43% 41% 44%
162 19% 18% 20% 20% 19% 20% 23%
163 24% 27% 21% 25% 22% 24% 23%
164 6% 6% 6% 6% 6% 6% 6%
165 2% 3% 2% 1% 4% 2% 0%
166 6% 4% 7% 6% 6% 8% 3%
Nº oc. AIE 902 406 496 362 540 541 213
163 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
163,1 31% 37% 25% 42% 23% 33% 50%
163,2 34% 31% 38% 23% 43% 36% 21%
163,3 34% 33% 36% 34% 34% 32% 29%
Nº oc. 163 212 110 102 92 120 129 48

Quadro A6 – AIE. % alunos


Código Total R. Ra. Ind. Terc. BEP Bac pro
16 63% 57% 71% 58% 68% 62% 61%
161 32% 27% 37% 30% 33% 31% 27%
162 29% 22% 36% 25% 32% 28% 36%
163 20% 17% 22% 18% 21% 19% 17%
164 9% 8% 10% 8% 10% 8% 9%
165 3% 2% 4% 0% 5% 2% 0%
166 7% 5% 9% 6% 8% 9% 4%

163 20% 17% 22% 18% 21% 19% 17%


163,1 5% 5% 4% 5% 4% 5% 6%
163,2 8% 7% 10% 6% 10% 8% 7%
163,3 12% 11% 13% 11% 12% 10% 9%

Quadro A7 – APro. % ocorrências


Código Total R. Ra. Ind. Terc. BEP Bac pro
103 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
103,1 8% 7% 8% 8% 8% 6% 6%
103,2 25% 34% 21% 33% 21% 27% 19%
103,3 6% 7% 6% 8% 6% 10% 3%
103,4 6% 0% 8% 0% 8% 0% 13%
103,5 15% 10% 18% 10% 17% 14% 19%
103,6 20% 24% 19% 31% 17% 24% 19%
103,7 17% 12% 19% 3% 22% 14% 22%
103,8 3% 5% 2% 8% 0% 4% 0%
Nº oc. APro 142 41 101 39 103 70 64

283
ANEXOS

Quadro A8 – APro. % alunos


Código Total R. Ra. Ind. Terc. BEP Bac pro
103 16% 10% 24% 12% 20% 14% 26%
103,1 2% 1% 3% 1% 3% 1% 3%
103,2 6% 5% 8% 5% 7% 6% 9%
103,3 2% 1% 2% 1% 2% 2% 1%
103,4 0% 0% 1% 0% 1% 0% 2%
103,5 3% 1% 4% 1% 4% 2% 4%
103,6 3% 1% 4% 3% 3% 2% 5%
103,7 4% 1% 7% 0% 6% 2% 9%
103,8 0% 0% 0% 1% 0% 0% 0%

Quadro A9 – Os lugares de aprendizagem: onde foram realizados


os diferentes tipos de aprendizagem
Total – NE Família/pais Bairro/amigos Escola/profs. Outros
11 100% 92% 1% 5% 2%
12 100% 92% 2% 3% 3%
13 100% 30% 40% 12% 18%
14 100% 20% 64% 6% 9%
15,1 100% 15% 49% 5% 31%
15,2 100% 35% 4% 48% 13%
16 100% 11% 2% 84% 3%
17 100% 38% 16% 25% 22%
18 100% 13% 50% 30% 7%
19 100% 49% 25% 8% 19%
101 100% 48% 30% 15% 7%
102 100% 45% 23% 23% 10%
103 100% 3% 2% 83% 13%
104 100% 28% 20% 44% 8%
Total 100% 38% 20% 35% 7%
Nº oc. 3933-822 1182 622 1079 228
NE: não especificado.
O número de ocorrências é ligeiramente superior àquele que é indicado no Quadro A1,
porque quando uma aprendizagem é atribuída a dois lugares ela é contada duas vezes.

284
ANEXOS

Quadro A10 – Os lugares da aprendizagem: que tipos de aprendizagens


foram realizados em cada lugar
Total Não especificado Família/pais Bairro/amigos Escola/profs.
11 6% 7% 13% 0% 0%
12 3% 1% 9% 0% 0%
13 2% 2% 1% 4% 0%
14 3% 3% 2% 11% 0%
15,1 2% 4% 0% 4% 0%
15,2 0% 2% 0% 0% 1%
16 24% 19% 7% 3% 60%
17 2% 3% 2% 2% 2%
18 0% 0% 0% 2% 0%
19 3% 6% 3% 3% 0%
101 38% 37% 48% 58% 16%
102 10% 13% 12% 11% 6%
103 4% 2% 0% 0% 10%
104 0% 1% 0% 0% 1%
Total 100% 100% 100% 100% 100%

Quadro A11 – Lugares das aprendizagens relacionais, afectivas e pessoais:


onde foram realizados os diferentes tipos de aprendizagem
Total Família/pais Bairro/amigos Escola/profs. Outros
101 100% 48% 30% 15% 7%
101,1 100% 78% 7% 12% 3%
101,2 100% 33% 37% 23% 7%
101,3 100% 24% 55% 15% 6%
101,4 100% 35% 34% 15% 17%
101,6 100% 28% 59% 9% 4%
102 100% 45% 23% 23% 10%
102,1 100% 46% 28% 17% 9%
102,2 100% 52% 13% 31% 5%
102,3 100% 39% 17% 33% 11%
102,4 100% 29% 39% 7% 25%

285
ANEXOS

Quadro A12 – Lugares das aprendizagens relacionais, afectivas e pessoais:


que tipos de aprendizagens foram realizados em cada lugar
Total – NE Não especificado Família/pais Bairro/amigos Escola/profs.
101 100% 100% 100% 100% 100%
101,1 35% 27% 59% 8% 28%
101,2 28% 33% 19% 33% 41%
101,3 10% 9% 5% 17% 10%
101,4 15% 22% 10% 15% 14%
101,6 12% 9% 8% 26% 8%

102 100% 100% 100% 100% 100%


102,1 45% 46% 45% 54% 32%
102,2 31% 29% 36% 18% 43%
102,3 15% 18% 13% 12% 22%
102,4 9% 8% 6% 16% 3%
NE: Não especificado

Quadro A13 – Comparação rapazes-raparigas: os lugares da aprendizagem:


onde foram realizados os diferentes tipos de aprendizagem
Total – NE Família/pais Bairro/amigos Escola/profs. Outros
R. Ra. R. Ra. R. Ra. R. Ra. R. Ra.
11 100% 100% 91% 93% 3% 0% 4% 6% 3% 1%
12 100% 100% 100% 91% 0% 2% 0% 3% 0% 4%
13 100% 100% 32% 25% 39% 44% 10% 19% 20% 13%
14 100% 100% 20% 21% 64% 66% 7% 4% 10% 9%
15,1 100% 100% 7% 42% 53% 33% 2% 17% 37% 8%
15,2 100% 100% 33% 36% 11% 0% 44% 50% 11% 14%
16 100% 100% 15% 8% 4% 1% 80% 87% 2% 4%
17 100% 100% 33% 43% 6% 26% 30% 20% 30% 11%
18 100% 100% 0% 24% 31% 65% 62% 6% 8% 6%
19 100% 100% 49% 49% 19% 30% 8% 7% 24% 14%
101 100% 100% 44% 50% 33% 29% 14% 15% 9% 5%
102 100% 100% 34% 52% 39% 13% 14% 28% 13% 7%
103 100% 100% 3% 3% 0% 2% 81% 83% 16% 12%
104 100% 100% 35% 13% 29% 0% 29% 75% 6% 13%
Total 100% 100% 34% 40% 24% 17% 32% 36% 9% 6%
1676- 2249-
Nº oc. 434 747 299 321 407 671 118 108
418 202
NE: Não especificado

286
ANEXOS

Quadro A14 – Comparação rapazes-raparigas: os lugares de aprendizagem:


que tipos de aprendizagem foram realizados em cada lugar
Total Não especificado Família/pais Bairro/amigos Escola/profs. Outros
R. Ra. R. Ra. R. Ra. R. Ra. R. Ra. R. Ra.
11 6% 5% 6% 7% 16% 11% 1% 0% 1% 1% 2% 1%
12 1% 5% 0% 2% 4% 12% 0% 1% 0% 0% 0% 4%
13 4% 1% 4% 0% 3% 1% 5% 2% 1% 0% 7% 2%
14 5% 2% 4% 2% 3% 1% 13% 10% 1% 0% 5% 4%
15,1 4% 1% 5% 2% 1% 1% 8% 1% 0% 0% 14% 1%
15,2 1% 1% 2% 2% 1% 1% 0% 0% 1% 1% 1% 2%
16 25% 23% 21% 17% 11% 5% 4% 2% 64% 58% 5% 16%
17 3% 2% 3% 4% 3% 2% 1% 3% 2% 1% 8% 4%
18 1% 1% 0% 0% 0% 1% 1% 3% 2% 0% 1% 1%
19 4% 3% 5% 6% 4% 3% 2% 4% 1% 0% 8% 6%
101 34% 40% 33% 41% 44% 50% 48% 66% 15% 17% 32% 37%
102 10% 11% 12% 13% 9% 13% 15% 7% 4% 8% 13% 13%
103 2% 5% 2% 2% 0% 0% 0% 1% 6% 12% 4% 10%
104 1% 1% 1% 1% 1% 0% 2% 0% 1% 1% 1% 1%
Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%

Quadro A15 – Comparação rapazes-raparigas: aprendizagens relacionais, afectivas e


pessoais. Os lugares de aprendizagem: onde foram realizadas as aprendizagens deste tipo
Total – NE Família/Pais Bairro/amigos Escola/profs. Outros
R. Ra. R. Ra. R. Ra. R. Ra. R. Ra.
101 100% 100% 44% 50% 33% 29% 14% 15% 9% 6%
101,1 100% 100% 73% 82% 8% 6% 15% 9% 4% 3%
101,2 100% 100% 24% 37% 46% 33% 16% 26% 13% 5%
101,3 100% 100% 16% 30% 61% 50% 16% 14% 6% 6%
101,4 100% 100% 38% 33% 29% 36% 15% 15% 17% 17%
101,6 100% 100% 25% 30% 57% 58% 7% 10% 10% 2%
Nº oc. 576-140 908-163 192 375 144 213 62 115 38 42
102 100% 100% 34% 52% 39% 13% 14% 28% 13% 7%
102,1 100% 100% 28% 58% 51% 13% 6% 24% 15% 5%
102,2 100% 100% 45% 56% 15% 11% 33% 29% 8% 4%
102,3 100% 100% 17% 43% 83% 8% 0% 38% 0% 13%
102,4 100% 100% 33% 23% 40% 38% 0% 15% 27% 23%
Nº oc. 165-51 241-54 39 97 44 24 16 52 15 14
NE: Não especificado

287
ANEXOS

Quadro A16 – Comparação rapazes-raparigas: aprendizagens relacionais, afectivas e


pessoais. Os lugares da aprendizagem: que tipos de aprendizagem foram realizados em cada lugar

Não Bairro/ami-
Total Família/pais Escola/profs. Outros
especificado gos
R. Ra. R. Ra. R. Ra. R. Ra. R. Ra. R. Ra.
101 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
101,1 37% 32% 31% 23% 64% 56% 10% 8% 40% 21% 16% 17%
101,2 24% 31% 29% 36% 13% 22% 32% 34% 26% 50% 34% 26%
101,3 11% 8% 11% 7% 4% 5% 21% 15% 13% 8% 8% 10%
101,4 13% 17% 15% 28% 10% 10% 10% 18% 13% 14% 24% 43%
101,6 15% 11% 13% 6% 9% 7% 27% 25% 8% 8% 18% 5%

102 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
102,1 48% 42% 51% 41% 38% 47% 61% 42% 19% 37% 53% 29%
102,2 31% 31% 22% 35% 46% 32% 14% 25% 81% 31% 20% 14%
102,3 9% 21% 18% 19% 3% 18% 11% 13% 0% 29% 0% 36%
102,4 12% 7% 10% 6% 13% 3% 14% 21% 0% 4% 27% 21%

Quadro A17 – Comparação BEP-Bac pro. Os lugares da aprendizagem:


onde foram realizados os diferentes tipos de aprendizagem
Total – NE Família/pais Bairro/amigos Escola/profs. Outros
Bac Bac Bac
BEP Bac pro BEP BEP Bac pro BEP BEP
pro pro pro
11 100% 100% 92% 93% 2% 0% 5% 7% 1% 0%
12 100% 100% 96% 97% 2% 3% 2% 0% 0% 0%
13 100% 100% 42% 17% 39% 33% 3% 17% 17% 33%
14 100% 100% 25% 0% 62% 90% 7% 5% 6% 5%
15,1 100% 100% 18% 13% 57% 38% 4% 13% 21% 38%
15,2 100% 100% 30% 40% 0% 0% 70% 40% 0% 20%
16 100% 100% 13% 6% 2% 1% 81% 91% 3% 2%
17 100% 100% 20% 75% 23% 0% 30% 13% 27% 13%
18 100% 100% 22% 0% 44% 100% 33% 0% 0% 0%
19 100% 100% 42% 71% 31% 10% 9% 5% 18% 14%
101 100% 100% 47% 55% 32% 26% 15% 13% 7% 5%
102 100% 100% 41% 48% 25% 22% 25% 22% 10% 7%
103 100% 100% 4% 3% 0% 3% 85% 78% 11% 16%
104 100% 100% 38% 11% 31% 0% 23% 78% 8% 11%
Total 100% 100% 38% 39% 21% 17% 34% 38% 7% 6%
Nº oc. 2367-608 942-142 670 314 378 135 592 302 119 49
NE: Não especificado

288
ANEXOS

Quadro A18 – Comparação BEP-Bac pro. Os lugares da aprendizagem: que tipos de


aprendizagem foram realizados em cada lugar

Não especifi-
Total Família/pais Bairro/amigos Escola/profs. Outros
cado

Bac Bac Bac Bac Bac Bac


BEP BEP BEP BEP BEP BEP
pro pro pro pro pro pro

11 7% 3% 8% 3% 16% 8% 1% 0% 1% 1% 1% 0%
12 2% 4% 1% 3% 8% 12% 0% 1% 0% 0% 0% 0%
13 2% 1% 1% 1% 2% 0% 4% 1% 0% 0% 5% 4%
14 4% 2% 3% 1% 3% 0% 11% 14% 1% 0% 3% 2%
15,1 2% 1% 3% 0% 1% 0% 4% 2% 0% 0% 5% 6%
15,2 1% 1% 2% 0% 0% 1% 0% 0% 1% 1% 0% 2%
16 23% 23% 19% 20% 9% 4% 3% 1% 60% 58% 13% 8%
17 3% 2% 3% 2% 1% 4% 3% 0% 2% 1% 10% 4%
18 1% 1% 0% 1% 1% 0% 2% 4% 1% 0% 0% 0%
19 3% 4% 5% 11% 3% 5% 4% 1% 1% 0% 7% 6%
101 38% 37% 40% 32% 46% 53% 57% 59% 17% 13% 37% 33%
102 10% 12% 12% 22% 10% 13% 11% 14% 7% 6% 13% 12%
103 3%% 7% 2% 2% 0% 1% 0% 1% 8% 17% 5% 20%
104 1% 1% 1% 1% 1% 0% 1% 0% 1% 2% 1% 2%
Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%

Quadro A19 – Comparação BEP-Bac pro: aprendizagens relacionais, afectivas e pessoais.


Os lugares de aprendizagem: onde foram realizadas as aprendizagens deste tipo
Total – NE Família/pais Bairro/amigos Escola/profs. Outros
Bac Bac
BEP Bac pro BEP BEP BEP Bac pro BEP Bac pro
pro pro

101 100% 100% 47% 55% 32% 26% 15% 13% 7% 5%


101,1 100% 100% 78% 86% 6% 5% 13% 7% 3% 2%
101,2 100% 100% 27% 45% 45% 25% 23% 25% 5% 5%
101,3 100% 100% 30% 36% 48% 48% 14% 9% 9% 6%
101,4 100% 100% 37% 38% 35% 31% 12% 7% 16% 24%
101,6 100% 100% 26% 26% 60% 63% 6% 11% 7% 0%
Nº oc. 910-242 343-45 311 164 215 78 98 40 44 16
102 100% 100% 41% 48% 25% 22% 25% 22% 10% 7%
102,1 100% 100% 43% 48% 30% 31% 15% 19% 12% 2%
102,2 100% 100% 45% 54% 16% 12% 38% 23% 2% 12%
102,3 100% 100% 34% 54% 17% 0% 38% 31% 10% 15%
102,4 100% 100% 27% 0% 47% 75% 0% 25% 27% 0%
Nº oc. 238-71 116-31 68 41 41 19 42 19 16 6
NE: Não especificado

289
ANEXOS

Quadro A20 – Comparação BEP-Bac pro: aprendizagens relacionais, afectivas e pessoais.


Os lugares de aprendizagem: que tipos de aprendizagem foram realizados em cada lugar
Não especifi-
Total Família/pais Bairro/amigos Escola/profs. Outros
cado

Bac Bac Bac Bac Bac Bac


BEP BEP BEP BEP BEP BEP
pro pro pro pro pro pro

101 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
101,1 33% 33% 27% 27% 58% 54% 7% 6% 31% 18% 14% 13%
101,2 29% 33% 32% 38% 16% 26% 38% 31% 43% 60% 20% 31%
101,3 8% 10% 10% 4% 4% 7% 10% 21% 6% 8% 9% 13%
101,4 19% 11% 23% 20% 14% 7% 19% 12% 14% 5% 41% 44%
101,6 13% 13% 8% 11% 8% 6% 27% 31% 6% 10% 16% 0%

102 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
102,1 41% 50% 42% 52% 43% 49% 49% 68% 24% 42% 50% 17%
102,2 32% 29% 30% 26% 37% 34% 22% 16% 50% 32% 6% 50%
102,3 17% 17% 17% 23% 15% 17% 12% 0% 26% 21% 19% 33%
102,4 10% 3% 11% 0% 6% 0% 17% 16% 0% 5% 25% 0%

Quadro A21 – Agentes de aprendizagem: os tipos de agentes citados*

Bac
Todos R. Ra. Ind. Terc. BEP
pro
Família/pais 54% 53% 55% 54% 55% 53% 51%
Escola/profs. 23% 20% 25% 21% 24% 22% 29%
Bairro/amigos 23% 27% 20% 25% 22% 25% 20%
Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%
Nº de oc. 659 290 369 256 403 433 156
* O número total de ocorrências é de 789. Aqui, não são tidas em conta:
1. os “outros lugares” (3)
2. as “outras pessoas” citadas de forma genérica e vaga (20 “meio envolvente/pessoas próximas”; 12 “gente/pesso-
as”; 8 “adultos/pessoas de idade madura”; 3 “outros”);
3. as “outras pessoas” citadas de forma genérica e precisa (5 “vizinhos”; 2 “polícia/GNR”; 2 “outros”);
4. as “outras pessoas” citadas de forma individualizada (15 – cf. Quadro A23);
5. “sozinho” (35);
6. “outros” (25, das quais 10 TV e 3 estágios).

290
ANEXOS

Quadro A22 – Agentes de aprendizagem: a forma como são citados


% Todos R. Ra. Ind. Terc. BEP Bac pro
Família (lugar) 11% 14% 9% 15% 9% 14% 5%
Pais (genérico) 60% 61% 59% 58% 62% 59% 71%
Determinada pessoa 29% 25% 32% 28% 30% 27% 24%
(individualizada)
Total família/pais 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%

Escola (lugar) 33% 43% 26% 41% 28% 36% 24%


Profs. (genérico) 60% 53% 65% 50% 66% 56% 70%
Determinado prof. 7% 3% 9% 9% 5% 7% 7%
(individualizado)
Total escola/profs. 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%

Bairro (lugar) 1% 0% 3% 0% 2% 1% 3%
Colegas/amigos 96% 97% 95% 97% 95% 96% 97%
(genérico)
Determinado colega 3% 3% 3% 3% 2% 3% 0%
(individualizado)
Total bairro/amigos 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%

Quadro A23 – Agentes de aprendizagem (pormenor):


as pessoas citadas de forma individualizada
Bac
Todos R. Ra. Ind. Terc. BEP
pro*

Total 133 53 80 54 79 78 28
– pai 21 13 8 11 10 14 2
– mãe 38 10 28 10 28 18 12
– madrasta 1 0 1 0 1 1 0
– irmão 17 6 11 5 12 9 3
– irmã 17 5 12 7 10 12 2
– avô 2 2 0 1 1 2 0
– avó 4 1 3 2 2 3 0
– tia 1 0 1 0 1 1 0
– tio 2 1 1 1 1 2 0
– primo 1 1 0 1 0 0 0
Subtotal família 104 39 65 38 66 62 19
– amigo(a) 4 2 2 2 2 3 0
– namorado(a) 7 6 1 6 1 3 2
– prof. (escola) 10 2 8 5 5 7 3
– prof. (associações) 3 3 0 2 1 2 0
– pessoa/profissão 2 0 2 0 2 0 2
– Deus 2 1 1 1 1 0 2
– ama 1 0 1 0 1 1 0
* O total “BEP+Bac pro” não é igual ao total “Todos”, porque não são aqui apresentados os 3T e os CAP.

291
ANEXOS

QUADRO A24 – O que é importante (P2)? O que espero do futuro (P3)?


(% de alunos)
Todos R. R. Ind. Terc. 3T CAP BEP BPro
Nº de alunos 533 282 251 240 293 42 24 329 138
Não respostas (NR)
NR P2 e NR P3 15% 17% 12% 17% 13% 7% 13% 16% 15%
NR P2 e resposta P3 20% 22% 17% 24% 16% 14% 17% 24% 12%
NR P3 e resposta P2 14% 11% 18% 11% 17% 7% 17% 12% 21%
P3: não sei 1% 1% 0% 1% 1% 0% 4% 0% 1%
Tudo/nada/resposta vaga
Tudo 8% 6% 11% 5% 11% 14% 4% 8% 9%
Nada 2% 2% 1% 3% 1% 0% 4% 2% 2%
Vaga 5% 6% 3% 6% 4% 7% 4% 5% 4%
“Ser-me útil” 5% 3% 6% 3% 6% 7% 0% 3% 7%
Estudos ou escola ou diploma 42% 47% 37% 45% 40% 50% 63% 42% 37%
Saber
Saber mais/aprender mais 10% 7% 12% 7% 12% 10% 4% 8% 14%
Cultura 0% 0% 1% 0% 1% 0% 0% 0% 0%
Descobrir coisas (n=2) 0% 0% 0% 0% 0% 2% 0% 0% 0%
Reflectir 0% 0% 1% 0% 0% 0% 0% 0% 0%
Ler-escrever 1% 0% 2% 0% 2% 5% 4% 1% 0%
Trabalho ou ofício ou emprego 42% 35% 50% 34% 49% 52% 33% 42% 42%
O futuro, um bom futuro 4% 3% 5% 3% 5% 2% 0% 5% 4%
Dinheiro 2% 3% 1% 3% 2% 7% 0% 1% 4%
Família
Família actual 7% 6% 8% 6% 8% 10% 17% 5% 9%
Família futura 13% 11% 16% 12% 15% 14% 4% 14% 13%
A vida
Boa vida (bela, feliz, normal…) 10% 9% 12% 9% 11% 14% 4% 10% 10%
Melhorar a minha vida 3% 0% 5% 1% 4% 7% 4% 2% 4%
Triunfar na vida 2% 2% 2% 3% 2% 0% 8% 2% 3%
Fazer, construir ou gerir a minha vida 1% 1% 2% 0% 2% 0% 0% 1% 2%
Evoca a morte 0% 0% 0% 0% 0% 2% 0% 0% 0%
Ser bem sucedido 15% 11% 20% 12% 18% 17% 13% 14% 17%
Ser reconhecido, ser alguém 0% 1% 0% 2% 0% 2% 0% 0% 0%
Não ter dificuldades 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0%
Adulto/autonomia
Adulto/maioridade/autoconfiança 2% 2% 2% 2% 3% 10% 0% 2% 0%
Autonomia/desenrascar-me 8% 7% 8% 7% 8% 7% 0% 7% 9%
O dia-a-dia
O dia-a-dia (sem pormenor) 0% 0% 1% 0% 1% 0% 4% 0% 0%
Divertir-me/aproveitar a vida, a mi- 2% 2% 1% 2% 2% 0% 0% 2% 1%
nha juventude
Férias/fins-de-semana 1% 2% 0% 2% 0% 0% 4% 1% 0%
Satisfação pela sua situação, pelo 3% 2% 4% 3% 3% 2% 0% 3% 4%
que ele é
Insatisfação pessoal (n=2) 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 1%
Temas sociopolíticos 5% 1% 8% 1% 7% 14% 4% 3% 6%

292
ANEXOS

Temas relacionais e afectivos


Amor 5% 3% 7% 3% 6% 10% 4% 4% 7%
Amizade 5% 4% 6% 5% 5% 5% 13% 4% 5%
Sociabilidade 3% 2% 4% 3% 4% 5% 0% 4% 1%
Solidariedade 3% 2% 5% 0% 5% 0% 0% 4% 4%
Respeitar 3% 2% 4% 2% 4% 5% 4% 4% 1%
Ser respeitado 1% 0% 2% 2% 0% 0% 4% 2% 0%
Educação 2% 0% 4% 0% 3% 0% 0% 2% 4%
Ser bem-educado/cortesia 0% 0% 1% 0% 1% 5% 0% 0% 0%
Confiar (n=2) 0% 0% 0% 0% 0% 2% 0% 0% 0%
A desconfiança 0% 1% 0% 1% 0% 2% 0% 0% 0%
Defender-me 0% 0% 0% 0% 1% 5% 4% 0% 0%
Não transgredir 0% 0% 2% 0% 2% 0% 0% 0% 1%
Temas desenvolvimento pessoal
Compreender/aprender a vida 2% 1% 3% 2% 2% 2% 0% 2% 3%
Conhecer-me, imagem de mim 2% 2% 2% 0% 3% 7% 0% 2% 2%
Avançar/o meu aperfeiçoamento/evoluir 2% 1% 3% 0% 3% 0% 0% 1% 4%
Ter um objectivo 0% 1% 0% 0% 1% 0% 0% 0% 1%
Sentir-me bem na minha pele 0% 0% 0% 0% 1% 0% 0% 0% 2%
Outros temas
O bairro (n=2) 0% 0% 0% 0% 0% 2% 0% 0% 0%
Deixar o bairro (n=2) 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0%
Desporto 2% 3% 0% 3% 1% 12% 4% 1% 0%
A minha carta de condução 1% 2% 0% 2% 0% 0% 4% 1% 0%
Viajar 0% 1% 0% 1% 0% 0% 4% 0% 0%
Voltar ao meu país 1% 2% 0% 3% 0% 2% 4% 1% 0%
Alistar-se (exército, marinha) 0% 1% 0% 1% 0% 5% 4% 0% 0%
Serviço militar 0% 1% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 1%
Inclassificáveis 5% 5% 4% 5% 4% 10% 4% 5% 4%
Alguns itens pouco citados, mas que nós indicamos por nos parecerem significativos, aparecem com 0% (percentagem inferior
a 0,5%). Por isso, especificamos o número de alunos (n) que os citam.

Quadro A25 – Aprendizagens citadas segundo a CSP do chefe de família (% de alunos)


% da CSP
Efectivos AIE ARA DP Apro
nos balanços
Quadros 28 7,8% 71% 82% 36% 18%
Prof. intermédias 66 18,5% 54% 67% 35% 15%
Artesãos-comerciantes 32 9,0% 50% 66% 34% 34%
Empregados 78 21,8% 63% 76% 33% 9%
Operários qualificados 47 13,2% 57% 68% 40% 19%
Operários especializados 24 6,7% 58% 88% 33% 25%
Desempregados 49 13,7% 47% 67% 41% 12%
Outros 18 5,0% 72% 83% 28% 22%
Não respostas 15 5,2% 73% 60% 40% 13%
Todos os alunos 357 100% 58% 72% 36% 17%

293
ANEXOS

GUIÃO DE ENTREVISTA173

– Primeira pergunta. Podes contar-me como tem sido a escola para ti desde que começaste a ir à escola? (de que
turma se lembra, de que professores, o que viveu. Explorar a história escolar; ver se os alunos têm uma “teoria”
sobre as suas dificuldades escolares).
– A forma como o aluno chegou ao liceu profissional. A escolha da especialidade: porquê esta e não outra? Como
é que isso aconteceu: quem o informou, aconselhou, empurrou…? O que é que ele pensou do processo? O que
é que pensa actualmente? E se pudesse voltar atrás? Quando era pequeno, o que gostava de ser quando fosse
grande?
– Balanço do tempo que ele passou no LP. Aprendeu muitas coisas desde que frequenta o LP? O que é que isso
lhe trouxe? Será que isso corresponde ao que ele estava à espera? Teve surpresas, boas ou não? Finalmente, o
que é que o leva a vir aqui todas as manhãs?
– Como é uma semana no LP? Como é que se vive essa experiência? Como são as relações com os professores,
com os colegas? Em relação ao collège, quais são as diferenças? Mais fácil, mais difícil, mais agradável, mais
desagradável? Será que ele pensa que é muito diferente do liceu geral?
– Os seus pais estão contentes por ele frequentar o LP? Explorar a vertente familiar da sua história; a profissão
dos pais, o conhecimento que tem e o que pensa em relação ao assunto; as identificações e as rejeições; analisar
como foi a história escolar dos irmãos e irmãs do entrevistado.
– Sobre o conhecimento da actividade profissional. Será que ela é dada a conhecer através da actividade em si, na
sua especificidade, ou através do estatuto social da actividade? Que tipos de saber e savoir-faire são necessários
para exercer esta actividade (específicas ou gerais)? De que forma fala o aluno delas: com que precisão, sob que
forma, com que tecnicidade…?
– Sobre a forma de adquirir esses saberes e savoir-faire, dentro e fora da escola. Será que um ofício se pode
aprender na escola? “Aprender um ofício”, o que é que isso quer dizer exactamente? Significa aprender o quê?
De que forma se deve proceder? No LP, como se deve proceder para aprender um ofício? Em que medida é que
isso é diferente de aprender Matemática, Francês ou História e Geografia? O que é mais fácil? O estágio, no caso
de ter feito um.
– O que é que vai acontecer depois (o BEP, o bac pro…)? Como é que ele vê o seu futuro, a sua vida, a evolução
das profissões, da sua profissão? Se tiver filhos como é que gostaria que fosse o seu futuro escolar? Gostaria que
eles frequentassem o LP?
– Pergunta no fim da entrevista. O que é que ainda não perguntei e lhe parece importante para compreender o
que significa estudar no LP?
Uma outra pergunta, que não foi prevista inicialmente sob esta forma, foi introduzida no guião depois da primeira
entrevista: o que significa uma disciplina ou um professor “interessante”? Há a acrescentar a isto, como é óbvio,
todas as questões ligadas à dinâmica própria de uma entrevista com um indivíduo singular.

Relembro que um guião de entrevista não é um questionário transmitido oralmente, mas a estrutura ge-
173

ral de um intercâmbio cuja dinâmica é regida mais pelas respostas do entrevistado do que pelas perguntas
do entrevistador.
295
ANEXOS

LISTA DE ENTREVISTAS E DOS SEUS AUTORES

Nº de entrevista. Nome (alterado). Lugar (LP ou domicílio). Sexo. Industrial ou terciário. Turma. Especialidade.
Idade. Autor da entrevista. Nem todas as entrevistas (nomeadamente as realizadas pelos estudantes) comportam
todas as precisões. As entrevistas não estão organizadas por uma ordem descritiva (e correspondem na realidade
a etapas de trabalho). Foram “anuladas” as entrevistas que, após análise, pareceram ter uma validade científica
duvidosa – bem como as realizadas com alunos do ensino geral.

E1. Sandra. Saint-Denis. Ra. Ind. BEP2 materiais flexíveis. 18. B. Charlot.
E2. Virginie. Saint-Denis. Ra. Ind. BEP2 materiais flexíveis. 18. B. Charlot.
E3. Hicham. Saint-Denis. R. Terc. BEP2 ACC. 18. B. Charlot.
E4. Fabrice. Saint-Denis. R. Ind. Bac pro 1 manutenção SMA. 20. B. Charlot.
E5. Albertine. Saint-Denis. Ra. Terc. Bac pro 2 informática-secretariado. 22. B. Charlot.
E6. David. Saint-Denis. R. Ind. Bac pro 1 manutenção SMA. 19. B. Charlot.
E7. Frédéric. Saint-Denis. R. Ind. Bac pro 1 manutenção SMA. 20. B. Charlot.
E8. Latifa. Saint-Denis. Ra. Ind. BEP2 materiais flexíveis. 18. B. Charlot.
E9. Janine. Saint-Denis. Ra. Terc. Bac pro 2 secretariado. 21. B. Charlot.
E10. Samira. Saint-Denis. Ra. Terc. Bac pro 2 comércio e serviços. 20. B. Charlot.
E10 bis. Salima. Saint-Denis. Ra. Terc. Bac pro 2 comércio e serviços. 21. B. Charlot.
E11. David. Aubervilliers. R. Ind. Bac pro 2 mecânica automóvel. 20. André Korzec.
E12. Ahmed. Aubervilliers. R. Ind. Bac pro 2 mecânica automóvel. 18. André Korzec.
E13. Gérald. Aubervilliers. R. Ind. Bac pro 2 mecânica automóvel. 19. André Korzec.
E14. Mohamed. Aubervilliers. R. Ind. Bac pro 2 mecânica automóvel. 22. André Korzec.
E15. Claude. Aubervilliers. R. Ind. Bac pro 1 mecânica automóvel. 21. André Korzec.
E16. Karim. Aubervilliers. R. Ind. Bac pro 2 mecânica automóvel. 20. André Korzec.
E17. Robert. Aubervilliers. R. Ind. Bac pro 2 mecânica automóvel. 20. André Korzec.
E18. Nivette. Aubervilliers. Ra. Ind. Bac pro 1 mecânica automóvel. 20. André Korzec.
E19. Marie-Chantal. Ra. Ind. Bac pro 1 mecânica automóvel. 18. André Korzec.
E20. Amar. Saint-Denis. R. Ind. BEP2 manutenção SMP. 19. André Korzec.
E21. Jean. Saint-Denis. R. Ind. BEP1 manutenção SMP. 16. André Korzec.
E22. Marc. Saint-Denis. R. Ind. BEP2 manutenção SMP. 20. André Korzec.
E23. Djiga. Aubervilliers. Ra. Ind. 3T. 17. André Korzec.
E24. Franck. Aubervilliers. R. Ind. BEP1 ORSF. 18. André Korzec.
E25. Jean-Pierre. Aubervilliers. R. Ind. BEP1 ORSF. 17. André Korzec.
E26. Soubraka. Aubervilliers. R. Ind. BEP1 ORSF. 17. André Korzec.
E27. Dominique. Aubervilliers. R. Ind. BEP2 ORSF. 18. André Korzec.
E28. Jacky. Aubervilliers. R. Ind. BEP1 ORSF. 19. André Korzec.
E29. Stéphane. Aubervilliers. R. Ind. BEP2 ORSF. 18. André Korzec.
E30. Marc. Aubervilliers. R. Ind. BEP1 ORSF 17. André Korzec.
E31. Tony. Aubervilliers. R. Ind. BEP1 ORSF 17. André Korzec.
E32. Mohamed. Aubervilliers. R. Ind. BEP2 ORSF. 17. André Korzec.

297
ANEXOS

E33. Gérard. Aubervilliers. R. Ind. BEP1 ORSF. 18. André Korzec.


E34. Jean-Jacques. Aubervilliers. R. Ind. BEP2 ORSF. 20. André Korzec.
E35. Frédéric. Aubervilliers. R. Ind. BEP2 ORSF. 21. André Korzec.
E36. Cyril. Versalhes. R. Ind. BEP2 electrotecnia. 18. Laetitia Chazal.
E37. Grégory. Sarcelles. R. Ind. BEP2 electrotecnia. Martine Cilia.
E38. Sylvain. Cachan. R. Ind. BEP2 electrotecnia. 18. Constance Pédurand.
E39. Madjid. Saint-Denis. R. Ind. BEP2 electrotecnia. 18. Saliha Yanouri.
E40. Thierry. Cachan. R. Ind. BEP2 electrotecnia. 19. Marilyn Genoud.
E41. Jimmy. Cachan. R. Ind. BEP2 electrotecnia. 15. Constance Pédurand.
E42. Thierry. Cachan. R. Ind. BEP2 electrotecnia. 19. Constance Pédurand.
E43. Rachid. R. Ind. BEP1 electrotecnia. 20. Sophie Lenaers.
E44. Youssef. R. Ind. BEP1 electrotecnia. 20. Sophie Lenaers.
E45. Malik. Sarcelles. R. Ind. BEP2 electrotecnia. 17. Anne-Lise Cohen.
E46. Jean-Pierre. Les Mureaux. R. Ind. BEP2 mecânico técnico de montagem.18. Laetitia Chazal.
E47. Claudy. Paris 18. R. Ind. BEP2 mecânica. 20. Marilyn Genoud.
E48. Didier. Nantes. R. Ind. BEP2 moldador. 17. Emmanuelle Poupas.
E49. Philippe. Villeneuve la Garenne. R. Ind. BEP1 carroçaria. 19. Marie-Hélène Logeais.
E50. Morad. Villeneuve la Garenne. R. Ind. BEP mecânica automóvel. 19. Valérie Vigon.
E51. Nabil. Villeneuve la Garenne. R. Ind. BEP mecânica automóvel. 18. Valérie Vigon.
E52. Guillaume. Paris 15. R. Ind. BEP2 carpintaria. 17. Sylvie Melhorado.
E53. Sabri. Saint-Denis. R. Ind. BEP1 marcenaria. 19. Imed Midouni.
E54. Lahoucine. Saint-Denis. R. Ind. BEP1 madeiras e materiais associados. 18. Imed Midouni.
E55. Rui. Bagnolet. R. Ind. BEP1 pintura para construção civil. Christophe Mazet.
E56. Marc-Antoine. Provins. R. Ind. BEP2 paredes mestras. 19. Bénédicte Foret.
E57. Fabien. Provins. R. Ind. BEP2 paredes mestras. 17. Bénédicte Foret.
E58. Matthieu. Rueil Malmaison. R. Ind. BEP2 electricidade. 19. Anne Voirin.
E59. Jérôme. Poissy. R. Ind. BEP2 padaria. 17. Emmanuelle Poupas.
E60. Samira. Paris 13. Ra. Ind. BEP2 química. 19. Saliha Yanouri.
E61. Cedric. Bobigny. R. Ind. BEP1 óptica. 17. Danièle Guérin.
E62. Faïza. Saint-Denis. Ra. Ind. BEP1 costura. 18. Isabelle Forestal.
E63. Stéphane. Meaux. R. Terc. BEP2 vendas. 17. Cécile Cahen.
E64. Audrey. Garges les Gonesse. Ra. Terc. BEP1 vendas. 17. Chantal Guillaume.
E65. Mourad. Garges les Gonesse. R. Terc. BEP1 vendas. 16. Chantal Guillaume.
E66. Kamel. Kremlin-Bicêtre. R. Terc. BEP2 vendas. 17. Dominique Sitot.
E67. X. Bondy. Ra. Terc. BEP2 sanitário e social. 20. Chantal Haubout.
E68. Bassanfa. Saint-Ouen. R. Terc. BEP1 sanitário e social. 16, maliano. Murielle Rault.
E69. Waïba. Ile Saint-Denis. Ra. Terc. BEP1 sanitário e social. 18. Missade Ouarti.
E70. Sandra. Mantes la Jolie. Ra. Terc. BEP1 sanitário e social. 16. Nathalie Granet.
E71. Sophie. Mantes la Jolie. Ra. Terc. BEP2 sanitário e social. 18. Nathalie Granet.
E72. Caroline. Poissy. Ra. Terc. BEP2 sanitário e social. 17. Emmanuelle Poupas.
E73. Yann. Dugny. R. Terc. BEP1 hotelaria. 16. Danièle Guérin.

298
ANEXOS

E74. Fariza. La Courneuve. Ra. Terc. BEP1 contabilidade. Christine Lebel.


E75. Sarah. Provins. Ra. Terc. BEP2 ACC – contabilidade. 18. Sandrine Offner.
E76. Fabien. Provins. R. Terc. BEP2 ACC – contabilidade. 17. Sandrine Offner.
E77. Nathalie. Provins. Ra. Terc. BEP2 ACC – contabilidade. 18. Sandrine Offner.
E78. Stella. Provins. Ra. Terc. BEP2 ACC – contabilidade. 19. Sandrine Offner.
E79. Fatiha. Bondy. Ra. Terc. BEP1 CAS – secretariado. 18. Martine Carn.
E80. Z. Paris 9. Ra. Terc. BEP2 contabilidade. 19. Hélène Machado.
E81. Djamel. Goussainville. R. Terc. BEP1 contabilidade. 17. Aissatou Gueye.
E82. T. Bobigny. Ra. Terc. BEP2 CAS – secretariado. Joël Pagard.
E83. Christophe. Paris. R. Terc. BEP1 contabilidade. 17. Ariane Butel.
E84. Gaëlle. Saint-Denis. Ra. Terc. BEP2 CAS – secretariado. 19. Ariane Butel.
E85. Nathalie. Livry-Gargan. Ra. Terc. BEP2 contabilidade. 18. Aulfa Bernaoui.
E86. Makan. Île Saint-Denis. R. Terc. BEP1 contabilidade. 17. Missade Ouarti.
E87. Sandra. Saint-Denis. Ra. Terc. BEP2 contabilidade. 17. Isabelle Louis.
E88. R. Ra. Terc. BEP2 contabilidade. 18. Colette Chalier.
E89. N. Ra. Terc. BEP1 contabilidade. 16. Colette Chalier.
E90. E. Ra. Terc. BEP1 CAS secretariado. 17. Martine Havez.
E91. L. Bobigny. Ra. Terc. BEP1 de um ano CAS – secretariado. 19. Martine Havez.
E92. Laurent. Aulnay sous Bois. R. Terc. BEP2 contabilidade. Céline Waty.
E93. Michel. Paris 15. R. Terc. BEP2 contabilidade. 18. Sylvie Melhorado.
E94. S. Pointoise. Ra. Terc. BEP1 secretariado. 18. Emmanuelle Poupas.
E95. Lamia. Aubervilliers. Ra. Terc. BEP2 secretariado. 20. Marie-Claire Gustarimac.
E96. Fatima. Bondy. Ra. Terc. BEP2 secretariado. 19. Aulfa Bernaoui.
E97. Aïcha. Argenteuil. Ra. Terc. BEP2 secretariado. 19. Jean-Claude André.
E98. Akouavi. Villeneuve la Garenne. Ra. Terc. BEP1 secretariado. 17. Jean-Claude André.
E99. Isabelle. Clichy. Ra. Terc. BEP 2 secretariado. 18. Christophe Mazet.
E100. Christophe. Choisy le Roi. R. Ind. Bac pro 1 electrotecnia. 23. Carine Deroncle.
E101. Augusto. Paris 20. R. Ind. Bac pro 2. MSMA. 23. Claire Godard.
E102. Frédéric. Paris 20. R. Ind. Bac pro 2. MSMA. Claire Godard.
E103. Sürrya. Paris 20. R. Ind. Bac pro 2. MSMA. 21. Claire Godard.
E104. L. Largny sur Automne. R. Ind. Bac pro 2 energética climatização e frio. 21. Isabelle Laranjeira.
E105. Mohamed. Villiers le Bel. R. Ind. Bac pro 1 carpintaria. 20. Sandrine Offner.
E106. Marc. Saint-Denis. R. Ind. Bac pro 2 carpintaria. 20. Marie-Josèphe Meloute.
E107. Kamel. Noisy le Sec. R. Ind. Bac pro 2 produção materiais flexíveis. 19. Monique de Martinho.
E108. Sylvia. Noisy le Sec. Ra. Ind. Bac pro 2 produção materiais flexíveis. 20. Monique de Martinho.
E109. Dalila. Aubervilliers. Ra. Terc. Bac pro 1 vendas e representação. 21. Nacira Aït-Abdelassam.
E110. Mohamed. Aubervilliers. R. Terc. Bac pro 1 vendas. 20. Nacira Aït-Abdelassam.
E111. Nora. Goussainville. Ra. Terc. Bac pro 1 vendas. 18. Samia Hemia.
E112. Rachel. Aulnay sous Bois. Ra. Terc. Bac pro 2 comércio e serviços. 20. Maurice Moskawitz.
E113. Isabelle. Aulnay sous Bois. Ra. Terc. Bac pro 2 informática contabilidade. 20. Maurice Moskawitz.
E114. Sonia. Aulnay sous Bois. Ra. Terc. Bac pro 2 informática contabilidade. 20. Maurice Moskawitz.

299
ANEXOS

E115. Éric. Aulnay sous Bois. R. Terc. Bac pro 2 contabilidade. 20. Maurice Moskawitz.
E116. Fatima. Ra. Terc. Bac pro contabilidade. 20. Fatima Becharef.
E117. Anulada.
E118. Mohamed. Saint-Denis. R. Terc. Bac pro 1 contabilidade. 19. Saliha Yanouri.
E119. Laurence. Breuil le Vert. Ra. Terc. Bac pro 2 secretariado. 20. Didier Marseille.
E120. Sonia. Franconville. Ra. Terc. Bac pro 2 secretariado. 21. Saliha Yanouri.
E121. Karine. Saint-Denis. Ra. Terc. Bac pro 2 secretariado. 19. Isabelle Forestal.
E122. Fanny. Villiers le Bel. Ra. Terc. Bac pro 2 informática secretariado. 21. Sandrine Boudjema.
E123. Enrique. Paris 5. R. Ind. CAP3 fabrico de espelhos. 19. Cathie Gilis.
E124. Pierre. Garges les Gonesse. R. Ind. CAP3 pintura. 20. Stéphanie Guilato.
E125. Y. Goussainville. R. Ind. CAP3 construção metálica. 19. Pascal Gérin-Roze.
E126. Isabelle. Choisy. Ra. Ind. CAP2 fotografia. 19. Anne Voirin.
E127. Sophie. Vitry sur Seine. Ra. Terc. 4e technologique. 15. Alexandra Clua.
E128. David. Vitry sur Seine. R. Terc. 4e technologique. 15. Alexandra Clua.
E129. Youssef. Épinay sur Seine. R. 4e technologique. 15. Marthe Flambant-Serine.
E130. H. Stains. R. Ind. 4e technologique. 15. Jöel Pagard.
E131. Naoëlle. Saint-Denis. Ra. Ind. 4e technologique – costura. Isabelle Forestal.
E132. Jelloul. Île Saint-Denis. R. 4e technologique. 15. Bénédicte Foret.
E133. Ayele. Aubervilliers. Ra. Ind. 3e technologique. 16. Agnès Bothorel.
E134. Sébastien. Aubervilliers. R. Ind. 3e technologique. 16. Agnès Bothorel.
E135. Yghal. Vitry sur Seine. R. Terc. 3e technologique. 17. Alexandra Clua.
E136. Adeline. Viry-Chatillon. Ra. Terc. 3e technologique. 17. Nathalie Peureux.
E137. Yoan. Viry-Chatillon. R. Terc. 3e technologique. 16. Nathalie Peureux.
E138. Ludovic. Saint-Denis. R. Terc. 3e technologique. 16. Bénédicte Foret.
E139. Sylvain. Poissy. R. 3e technologique. 16. Anne Augustin.
E140, E141, E142. Ensino geral.
E143. Farida. Paris 18. Ra. Terc. Première d’adaptation SMS – médico-social. 18. Christine Boulanger.
E144. Martine. Paris 18. Ra. Terc. Première d’adaptation SMS – médico-social. 18. Christine Boulanger.
E145. Sophie. Paris 18. Ra. Terc. Première d’adaptacion SMS – médico-social. 18. Christine Boulanger.
E146. V. Fosses. Ra. Terc. Terminale STT – ex G1. 21, frequentou um BEP. Christelle Montagnac.
E147. Caroline. Ra. Terc. Terminale STT – ex G1. 19, frequentou um BEP ACC. Jocelyne Larnicol-Herman.
E148. Sandrine. Ra. Terc. Terminale STT – ex G1. 19, tem um BEP secretariado. Jocelyne Larnicol-Herman.
E149. Frédéric. Clichy la Garenne. R. Terc. Terminale BTS. 21, tem um BEP, génio da culinária. Pierre Varney.
E150. Bragash. Clichy la Garenne. R. Terc. Terminale BTS hotelaria. 21, tem um BEP hotelaria. Pierre Varney.
E151. Stéphane. R. Terc. BTS 1 contabilidade. 21, frequentou um BEP ACC. Anne Augustin.
E152. Malis. Île Saint-Denis. R. Ind. Desempregado. 20, abandonou o LP depois de BEP1 há 3 anos. Missade
Ouarti.
E153. Mohamed. Île Saint-Denis. R. Terc. 25, trabalha em animação social, abandonou um BEP2 vendas há 4
anos. Missade Ouarti.
E154. Serge. R. Ind. 26, trabalha, obteve um BEP de electromecânica aos 18 anos. Caroline Hubert.
E155. Agnès. Ra. Terc. 21, um ano de BEP contabilidade e abandonou os estudos há 3 anos, desempregada.
Caroline Hubert.

300
ANEXOS

E156. Béatrice. Herblay. Ra. Terc. 26, trabalha, CAP de secretariado, reprovou no BEP. Caroline Hubert.
E157. C. R. Terc. 23, reprovou num BEP de contabilidade há 5 anos, trabalho temporário como fiel de armazém.
Rachel Campini.
E158. Farid. Saint-Denis. R. Terc. 22, frequentou um BEP contabilidade, desempregado. Fairouz Oumladhand.
E159. Gérard. Aulnay sous Bois. R. Bac pro. 25, trabalho temporário (empregado de armazém). Cynthia
Huyghe.
E160. Sylvie. Paris 19. Ra. Terc. 22, frequentou um BEP contabilidade, tarefeira nas cantinas. Carine Do.
E161. Patrick. R. Ind. 26. BEP mecânica depois Première d’adaptation. Claire Godard.
E162. Sophie. Montereau. Ra. Terc. 21, reprovou num BEP contabilidade, desempregada. Séverine Liévin.
E163. Malika. Drancy. Ra. Terc. 21, acaba de concluir o BEP secretariado, desempregada. Noara Ould-Abdes-
slam.
E164. Hugo. Paris 15. R. Ind. BEP1 electrotecnia. 17. Samir Chabane.
E165. Khaled Paris 15. R. Ind. BEP1 electrotecnia. 17. Samir Chabane.
E166. Anulada.
E167. Céline. Aulnay sous Bois. Ra. Ind. BEP2 electrotecnia. Barbara Alix e Halima Ezzouaoui.
E168, E169, E170. Anuladas.
E171. Frédéric. Sucy en Brie. R. Terc. BEP1 cozinha. Kadidiatou Bah.
E172. Naïma. Dugny. Ra. Terc. BEP1 hotelaria. 18. Catherine Faujour.
E173. Joëlle. Garges les Gonesse. Ra. Terc. BEP2 vendas. 16. Kelly Page.
E174. Anulada.
E175. Elikia. Boulogne-Billancourt. Ra. Ter. BEP2 sanitário e social. 17. Nadia Lounda.
E176. Salima. Saint-Ouen. Ra. Terc. 2º ano de bac tecnológico ciências médico-sociais. 22. Nicole Fene.
E177. Angélique. Drancy. Ra. Terc. BEP1 sanitário e social. 18. Catherine Faujour.
E178. Pauline. Subúrbio Este de Paris. Ra. Terc. BEP1 sanitário e social. 18. Christelle Montagnac.
E179. Sophie. Arnouville les Gonesse. Ra. Terc. BEP1 sanitário e social. 17. Sandrine Lepinois.
E180. Isabelle. Fosses. Ra. Terc. BEP2 secretariado. 19. Sandrine Lepinois.
E181. Sandrine. Seine Saint-Denis. Ra. Terc. BEP de um ano contabilidade. Martine Berrebi-Yaghoutil Zadeh.
E182. Martine. Seine Saint-Denis. Ra. Terc. BEP de um ano contabilidade. 18. Martine Berrebi-Yaghoutil Za-
deh.
E183, E184. Anuladas.
E185. Farida. Ra. Terc. BEP1 secretariado. 17. Anne Garguet.
E186. Véronique. Ra. Terc. BEP contabilidade. 20. Anne Garguet.
E187. X. Chantilly. Ra. Terc. BEP1 contabilidade. 17. Betty Beurton-Dubois d’Enghien.
E188. Fathia. Bethoncourt (Doubs). Ra. Terc. BEP2 contabilidade. 18. Farida Harik.
E189. Lionel. Arnouville les Gonesse. R. Ind. Bac pro 2 MSMA. 20. Claire Godard.
E190. Christophe. Seine et Marne. R. Terc. Bac pro 1 vendas representação. 19. Virginie Bercovici.
E191. Céline. Rosny sous Bois. Ra. Terc. Bac pro 2 comércio e serviços. 21. Virginie Le Roux.
E192. Nathalie. Ra. Terc. Bac pro 1 contabilidade. 19. Stéphanie Guibilato.
E193. Daniel. R. Ind. CAP2 instalações sanitárias (canalização). Kadidiatou Bah.
E194. Hakim. R. Ind. CAP2 electrotecnia. 20. Saliha Yanouri.
E195. Anulada.
E196. François. Aubervilliers. R. Ind. CAP electricidade (menção complementar). 17. Hélène Machado.
301
ANEXOS

E197. Alain. Tournan en Brie. R. Ind. 4º tecnológico industrial. 16. Sabrina Puntel.
E198. Anulada.
E199. Lionel. R. Ind. BEP1 mecânica. 16. Christine Teixeira.
E200. Nathalie. Ra. Ind. 3e technologique terciário. 17. Christine Teixeira.
E201. Mario. Aubervilliers. R. Terc. Bac pro 2 contabilidade. 20. Pascal Prager.
E202. Nathalie. Villiers le Bel. Ra. Terc. Bac pro 2 secretariado. 21. Sandrine Boudjema.
E203. Brahim. Chanteloup les Vignes. R. Terc. Bac pro 2 vendas. 20. Jean-Claude André.
E204. Stéphanie. Creil. Ra. Terc. BEP2 sanitário e social. 16. Christine Peltyn.
E205. Zahoua. Aubervilliers. Ra. Terc. BEP2 CAS – secretariado. 19. Marie-Claire Gustarimac.
E206. Xavier. Aubervilliers. R. Ind. Bac pro 2 manutenção automóvel. 22. Marie-Claire Gustarimac.
E207. Maryline. Blanc Mesnil. Ra. Terc. BEP1 sanitário e social. 16. Gilberte Laval.
E208. Patrick. Tournan en Brie. BEP1 contabilidade. 17. Sabrina Puntel.
E209, E210, E211, E212, E213, E214, E215, E216. Ensino geral.
E217. Alex. Drancy. R. Terc. CAP2 contabilidade. 18. Martine Hoogstoel.
E218. Fred. Puteaux. R. Ind. BEP1 manutenção. 17. Christine Moreiras.
E219. B. Arnouville les Gonesse. R. Terc. BEP2 contabilidade. 18. Stéphanie Ravaux.
E220. Nathalie. Villiers le Bel. Ra. 3e technologique terciário. 14. Michèle Bellaich.
E221. Stéphane. Villiers le Bel. R. 3e technologique terciário. 14. Michèle Bellaich.
E222. Germain. Conflans Sainte-Honorine. R. Ind. Bac pro 1 automatização industrial. 19. Yann Cousin.
E223. Éric. Conflans Saint-Honorine. R. Ind. Bac pro 1 automatização industrial. 20. Yann Cousin.
E224. Grégory. Paris 18. R. Terc. BEP1 hotelaria. Stéphanie Van de Wiele.
E225. Laetitia. Sarcelles. Ra. Terc. BEP2 bio-serviço. 18. Stéphanie Van de Wiele.
E226. Christine. Eaubonne. Ra. Terc. BEP1 secretariado. 16. Laetitia Sattonnay.
E227. Cécile. Ra. Terc. BEP1 contabilidade. 18. Nicolas Chantôme.

302
ANEXOS

O ENSINO EM FRANÇA

Figura A1 – Organograma do sistema educativo em França – ensino não superior


(2007-2008) (adaptado de www.onisep.fr)

303

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