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Curt Nimuendajú

O alemão que virou índio no Brasil

Salvador Pane Baruja

"Bookmarks" adicionados pela equipe da Biblioteca Digital Curt Nimuendajú:


http://www.etnolinguistica.org/biblio:pane-baruja-2014-curt
Índice
3 Apresentação
4 Agradecimentos
5 Abreviações
6 Biografia resumida

Capítulo 1
7 Mortes e privações no início da vida

Capítulo 2
22 Como Curt Unckel vira Curt Nimuendajú

Capítulo 3
37 As lendas da criação e da destruição do mundo

Capítulo 4
58 No mato, sem dinheiro, sem apoio

Capítulo 5
100 Criativo, autodidata, pioneiro

Capítulo 6
123 Preservar os indígenas e sua cultura

Capítulo 7
148 O retorno à Europa, o nazismo

Capítulo 8
165 O encontro dos mestres

Capítulo 9
189 Os relacionamentos amorosos

Capítulo 10
205 O eterno gringo na pátria de adoção

Capítulo 11
228 As quatro pré-mortes

Capítulo 12
244 Sete lendas sobre a sua morte

Capítulo 13
264 Cosmogonias indígenas adotam Curt Nimuendajú

295 Bibliografia
302 Documento “Algumas considerações sobre o problema do índio no Brazil”
312 Documento “Sugestões para pesquisas etnográficas entre os índios do Brasil”
317 Fontes iconográficas
320 Sobre o autor
3

Apresentação

Ao escrever a biografia de Curt Nimuendajú, deixei de lado o estilo ficcional, ou seja,


o recurso literário que interpreta aquilo que o protagonista poderia ter sentido, vivido,
pensado.
Utilizei exclusivamente documentos existentes e algumas poucas entrevistas por mim
realizadas. A estrutura apresentada, algumas traduções ao português e certas ilações são da
minha autoria.
Escolhi este estilo, mesmo que ela possa eventualmente afastar possíveis leitores,
porque me parece estar mais de acordo com a personalidade do biografado.
A minha intenção é que Curt Nimuendajú e as pessoas incluídas nesta obra dialoguem
entre si. Com a indispensável participação do leitor, que tem a licença poética da recriação
ficcional.

Bochum, maio de 2014


4

Agradecimentos

Após quase 14 anos de dedicação à realização da presente biografia, faço público o


meu agradecimento a
meus filhos Bruno, Bernardo e Paulo,
suas mães, Isabel Cristina, Percília e Sibylle,
meus pais, Antonio e Berta, minha irmã Daisy, minha sobrinha Gilda Aramí,
meus amigos Antonio Augusto e Arnaldo César,
minha amiga Atenéia e
aos funcionários dos museus Nacional, de Berlim, do Índio e de Gotemburgo.
5

Abreviações

Apontamentos Apontamentos sobre os Guarani, Curt Nimuendajú, 1954.


As lendas As lendas da criação e a destruição do mundo como
fundamentos da religião Apapokuva-Guarani.
Conselho de Fiscalização Conselho de Fiscalização das Expedições Artisticas e Cientificas
no Brasil.
CS Cartas do Sertão, Curt Nimuendajú, 2000.
DU Dungs, Günther.
GR Grupioni, Luís Donisete Benzi.
MEB Museu Etnográfico de Berlim-Dahlem, Alemanha
MEG Museu Emilio Goeldi, Belém.
MG Museu de Gotemburgo, Suécia.
MN Museu Nacional, Rio de Janeiro.
MI Museu do Índio, Rio de Janeiro.
SPI Serviço de Proteção ao Índio.
SPILTN Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores
Nacionais.
6

Biografia resumida
1840 Nasce Julius Unckel, pai de Curt, em Urach, Alemanha.
1853 Nasce Marie Hermann, mãe de Curt, em Gotta, Alemanha.
1877 Julius e Marie, viúva com uma filha, Olga, casam em 17/09.
1883 Nasce Curt Unckel em 17/04 em Iena. É batizado em 05/06.
Pai morre, talvez em Moscou. Mãe fica viúva pela segunda vez.
1884 Mãe morre em 12/12, em Iena. Curt e Olga moram com a avó, em Iena.
1885 Morre a avó. A tia materna retorna de São Petersburgo e assume a educação de
Curt e Olga.
1899 Curt conclui o segundo grau e ingressa na empresa Carl Zeiss, em Iena.
1903 Em 14/5, pede demissão da Zeiss e embarca para o Brasil.
1905 Ajudante de cozinheiro da expedição da Comissão Geográfica e Geológica de
SP ao oeste do Estado. Conhece os Guarani e Kaingang.
1906 Já um ano morando com os Apapokuva-Guarani, é batizado com o nome de
Nimuendajú.
1909 Ingressa no Museu Paulista como pesquisador indígena.
1910 Demite-se do Museu Paulista e ingressa no SPI.
Assina pela primeira vez com o nome de Curt Nimuendajú.
1911 Volta à sua aldeia Apapokuva-Guarani.
1912 Cria reserva para várias tribos Guarani em Avaré (SP) e participa de uma
migração de índios em busca da Terra sem Mal.
1914 Publica sua primeira obra “Die Sagen von der Erschaffung und Vernichtung
der Welt als Grundlagen der Religion der Apapokuva-Guarani”, na revista
Zeitschrift für Ethnologie, na Alemanha.
Muda-se para Belém.
1915 É demitido do SPI enquanto lidera a “pacificação” dos Urubu.
1920 É contratado pelo Museu Emílio Goeldi, em Belém.
1921 Reingressa no SPI.
1922 Adota a nacionalidade brasileira, sob nome de Curt Nimuendajú.
Casa-se com Jovelina do Nascimento, 19 anos mais nova do que ele.
1923 É demitido do SPI.
1926 Publica “Die Palikur – Indianer und ihre Nachbarn”, na Suécia.
1928 Batizado pelos Apinajé como Tamgaa-ti, nome de uma estrela, e, pelos Canela,
com o nome de Kukaipó, um cacique falecido.
1931 Em Iena, morre a tia Berta, que o educou na adolescência.
1933 Registra no SPI seu manifesto “Algumas considerações sobre o problema do
índio no Brasil”, favorável à autonomia indígena.
1934 Única visita à sua cidade natal, Iena, durante viagem à Suécia.
1937 Primeira publicação em inglês, em co-autoria com Robert Lowie: “The dual
organisations of the Ramkokamekra (Canella) of Northern Brazil”, em
American Anthropologist, nos Estados Unidos.
1939 Sai “The Apinayé”, pela Catholic University of America, Eua.
1942 É preso, suspeito de ser espião nazista no Alto Solimões. Sem acusação formal,
é liberado.
1943 Quase cego, é desaconselhado pelos médicos a voltar ao sertão.
1945 Morre numa aldeia ticuna, em São Paulo do Olivença, Alto Solimões.
1952 É publicada a obra “The Tucuna”, em American Archeology and Ethnology,
nos Estados Unidos.
1959 Morre a irmã Olga.
1972 Morre a esposa Jovelina
1 - Mortes e privações no início da vida
Curt Unckel nasceu em 17 de abril de 1883 na cidade alemã de Iena. Pouco se sabe sobre a
infância e a adolescência de Curt Unckel. Mesmo num país que cultiva a tradição de preservar
livros, documentos e imagens como a Alemanha, as poucas informações existentes sobre esse
marcante período de sua vida são fragmentárias e, em parte, contraditórias.

Foto da casa na rua Wagnergasse 31, onde Curt Unckel nasceu em 1883.

Sua cidade natal suportou dois regimes totalitários no século 20. O primeiro foi o
nazismo (1933-1945), que levou a Alemanha e outros países do mundo, inclusive o Brasil, à
Segunda Guerra Mundial. Ao longo de sete anos de combates em vários países, durante os
quais milhões de pessoas morreram, incontáveis bibliotecas e arquivos foram saqueados na
Alemanha.
Parte dos documentos salvos foi confiscada pelas tropas soviéticas, norte-americanas,
francesas e inglesas que ocuparam a Alemanha derrotada. O regime socialista implantado pela
União Soviética na Alemanha Oriental (1945-1989) foi a segunda catástrofe que engoliu
documentos e silenciou pessoas que poderiam fornecer informações sobre Curt Unckel.
Encravada no minúsculo ducado da Turíngia, uma das muitas unidades da monarquia
que existiu até 1918, Iena é um centenário centro universitário. Aqui floresceu o chamado
8

idealismo alemão do século 18 até meados do 19, uma resposta ao racionalismo e iluminismo
dos séculos anteriores.
A arte não se coloca mais a serviço da educação do homem, mas busca a auto-
expressão. Seu objetivo é a elevação do ser criativo ao plano universal e a poetização da vida
pela união do espírito e da natureza, do passado e do presente. Este movimento teve três
centros diferentes: Berlim, Heilderberg e Iena.1
Neste período de mais de cem anos, Jena abrigou escritores e filósofos como Georg
Friedrich Philipp Freiherr von Hardenberg (conhecido como Novalis), Friedrich Hölderlin e
Johann Gottlieb Fichte. A menos de 20 quilômetros de distância, na cidade de Weimar,
residiram Johann Wolfgang Goethe e Friedrich von Schiller. Na segunda metade do século
19, o filósofo Friedrich Schelling pregou em Iena a unidade da ciência, que seria “a
representação do ideal no [mundo] real”. Apoiado no conceito da “polaridade” da filosofia da
natureza de Schelling e na idéia de uma “força natural” de Novalis, o farmacêutico Johann
Wilhelm Ritter detecta, no seu laboratório em Iena, a existência de raios ultravioletas.2
Até hoje não se sabe o que transforma uma cidade comum num centro de irradiação
cultural, como era Iena antes do nascimento de Curt Unckel. Nem mesmo o cientista e
naturalista viajante Alexander von Humboldt desvenda este mistério. Após sua famosa
expedição por rios amazônicos e vales andinos no início do século 19, ele confidenciou à
escritora alemã Caroline von Wolzogen que o “poderoso ambiente de Iena agiu em mim”,
mas sem aprofundar o tema.3
Quando Curt Unckel nasce em 1883, a época de ouro de sua cidade natal constitui
apenas uma lembrança distante. Os poucos dados conhecidos indicam que o pai chamava-se
Julius Friedrich Gottlieb Unckel e a mãe, Marie Unckel. Eles casaram em 17 de setembro de
1880 em Iena, segundo o primeiro biógrafo alemão, Fritz Cappeller.
A mãe de Curt casara-se anteriormente com um cidadão alemão de sobrenome
Ludwig, originário da cidade russa de São Petersburgo, filho de um sapateiro da faustuosa
corte do tzar. O casal Ludwig (com uma filha, Olga Ludwig) viveu em Stuttgart, onde o
marido morreu e a viúva conheceu quem seria o futuro pai de Curt.4
Segundo Cappeller, depois do casamento realizado em 1880, Julius Unckel viaja à
Rússia para trazer a herança deixada pelo primeiro marido de sua esposa. Julius, contudo,

1
Deutsche Literaturgeschichte. Von den Anfängen bis zur Gegenwart. 2008, oitava edição. Stuttgart e Weimar,
Verlag J.B. Metzler p. 182-186.
2
Hübel, Horst in Pleticha, Heinrich, Deutschland, 1815-71, Deutsche Geschichte, Lexikothek Verlag, Gütersloh,
1998. Vol 5, p. 150, minha tradução.
3
Humboldt, Alexander von, carta a Caroline von Wolzogen, de 14/05/1806, cf. Frank Lindner, Curt Unckel-
Nimuendajú, Jenas großer Indianerforscher, Jenaische Blätter, Nr. 5, Quartus-Verlag, Jena 1996, p. 12.
4
Cappeller, Fritz, Der größte Indianerforscher aller Zeiten, edição do autor, Bad Salzungen, 1962, p. 11.
9

morre num hotel de Moscou, em 1883 ou 1884. Assim, Marie Unckel fica viúva pela segunda
vez em menos de quatro anos. Agora com dois filhos pequenos: Curt, com menos de um ano
de idade, e Olga, com pouco mais de seis.
Em busca de apoio familiar, Marie Unckel muda-se com os filhos para a casa da avó
materna de Curt, Louise Weber, também em Iena. No dia 12 de dezembro de 1884, Marie
Unckel morre de tuberculose, possível causa mortis de seus dois maridos.5
Esta é a versão apresentada por Cappeller e repetida por outros biógrafos.

Aos dois anos, órfão de pai e mãe

No arquivo do Museu Nacional, existe uma carta de Olga Richter, nome de casada da irmã de
Curt, endereçada ao irmão em 1934. Ela traz informações que contradizem em pontos básicos
a biografia apresentada por Cappeller.

A irmã Olga diz que o pai de Curt “perdeu o seu dinheiro e de nossa mãe”na Rússia.

Assim, os pais de Curt casaram em 1877, antes de Olga nascer, pois o seu pai morrera
nesse mesmo ano. Enquanto a pequena Olga ficava na casa da avó em Iena, o casal mudou-se
para Moscou, onde o pai de Curt “tinha negócios e era respeitado como empresário”. Porém,

5
Ibid. “Um destino comum de muitas famílias” na época, opina Cappeller. O médico Fritz Cappeller, historiador
autodidata de uma cidadezinha próxima a Jena, entrevistou em 1960 amigos e companheiros de escola de Curt
Unckel, bem como a sua única sobrinha, Irmgard Müller, filha de Olga.
10

“(...) numa jogada especulativa mal sucedida, o seu pai perdeu o seu dinheiro e o de nossa
mãe. Por isso, ela voltou a Iena”, conta Olga.6
A informação de que Julius Unckel perdera especulando o dinheiro do casal e que
depois a mãe voltara sozinha a Iena poderia significar que o pai de Curt se suicidou, prática
relativamente comum entre empresários mal sucedidos na Europa daquela época. Pelas datas
apresentadas por Olga, a mãe Marie Unckel teria voltado grávida de Moscou – e talvez já
viúva.
As duas versões coincidem em três pontos: que Curt Unckel não chega a conhecer seu
pai; que ele tinha negócios em Moscou; e que, com menos de dois anos de idade, Curt fica
também órfão de mãe.
Assim, Curt Unckel não conhece as alegrias e os dissabores de uma família estruturada
em torno do pai e da mãe. Cappeller acredita que essa situação teria influenciado sua decisão
de abandonar o seu país de nascimento: “Do ponto de vista psicológico, provavelmente a
ausência de uma verdadeiro lar com ambos os pais, de um ‘ninho quentinho’, e o fato dele,
órfão, não ter conhecido um parente sequer com o sobrenome Unckel, que nem mesmo a irmã
[de Curt] do lado materno tinha, devem tê-lo levado a viajar tão longe”.7
É difícil afirmar que essa relação causa-efeito realmente aconteceu desta forma.
Contudo, possíveis sinais da ausência do convívio com seus pais estão presentes em inúmeras
situações de sua vida adulta. O caso mais claro é quando, ao estudar várias tribos do grupo
linguístico Jê no chamado Brasil Central, Curt simplesmente não consegue abordar o tema da
estrutura familiar. É como se para ele a família não existisse, como se a vida nela fosse
substituída por vivências em outras instituições sociais.
Este complexo panorama familiar já está consolidado antes de Curt completar seu
segundo ano de vida. Companhia inseparável na infância é a irmã Olga, de oito anos. Já
adulta, ela conta ao irmão um episódio da infância que dá pistas sobre as relações entre
ambos:

Certa vez, você fez uma pirueta na mesa onde trocavam sua fralda. Você foi parar de
cabeça atrás do sofá e, depois de dar uma cambalhota, chegou ao chão. A sua inteligência
parece não ter sofrido grandes danos detectáveis no futuro. Mas eu era sempre advertida para
cuidar de você e para que o neném não fizesse mais “piruetas”.8

6
Richter, Iena, 24/11/1934, MN, minha tradução.
7
Cappeller, p. 15.
8
Iena, 24/11/1934, MN.
11

Com a morte da mãe, a avó materna, Louise Weber, assume a educação das duas
crianças. Nem mesmo Cappeller dá pistas sobre a situação econômica ou social da nova
família de Curt Unckel.
Não se sabe até que ponto partilham da miséria generalizada que caracteriza o auge da
industrialização do “Reich” alemão, quando a jornada média de trabalho diário dura 11 horas,
crianças em idade escolar e mulheres ajudam a aumentar a renda familiar. Cerca de 70 por
cento das crianças morrem antes de atingir os 15 anos de idade.9
Ao mesmo tempo, a mobilidade social é quase nula: quem nasce elite continua elite
até a morte, especialmente burocratas, empresários, militares e diplomatas.10 Mas certamente
que a família de Curt Unckel vive um ambiente de rejeição ou no mínimo de incômodo na
conservadora sociedade alemã da época.
Afinal, é uma inusitada constelação familiar: a avó, de mais de cinquenta anos,
provavelmente sem renda própria ou trabalho qualificado, mora com duas crianças órfãs.
Além disso, soma-se o fato de que Luise Weber tinha sobrenome diferente de seu marido,
Karl Hermann. Isto sugere que os avôs de Curt Unckel possivelmente não eram casados.
Em consequência, a sua mãe talvez nasceu fora do matrimônio, embora levasse o
sobrenome do pai. Tudo isso representa um escândalo na sociedade alemã do final do século
19. É significativo que Cappeller apenas cita o nome do avô materno de Curt e de sua cidade
de origem. Nenhuma palavra quanto à posição social de Karl Herrmann.
Quanto a Louise Weber, Cappeller informa que era filha de um artista gráfico da
famosa editora Perthes, da cidade de Gotha.
Outro biógrafo alemão, Georg Menchén, afirma que o ambiente artístico da livraria
teria influenciado a tendência intelectual de Curt Unckel, no mínimo quanto ao gosto pela
Geografia. A Perthes publica neste final de século uma revista de renome internacional, cujo
nome em português é “Informações a respeito de novas e importantes pesquisas de todas as
áreas da Geografia”.11

9
Engelmann, Berndt, Wir, die Untertanen, ein Deutsches Anti-Geschichtsbuch, C. Bertelsmann Verlag, 1974,
Munique. p. 409.
10
Schwind, Margarete, in Pleticha, Heinrich, Deutschland, 1815-1918, Deutsche Geschichte, Lexikothek Verlag,
Gütersloh, 1998, Vol. 5, p. 252.
11
Menchén, Georg, Nimuendajú, Bruder der Indianer, Brockhaus Verlag, Dresden, 1979, p. 24, minha
tradução. O livro foi lançado em 1979, durante a ditadura socialista na República Democrática Alemã, quando só
se publicava o que os dirigentes do partido autorizavam. O Estado espionava os próprios cidadãos, especialmente
jornalistas como Ménchen. Sua filha, Kathrin Ménchen, contou-me que, após a morte do seu pai, ela decidiu
pesquisar nos arquivos do Gauckbehörde (órgão criado em 1991 para investigar os crimes, em especial de
espionagem, na RDA). Lá descobriu que a última mulher de seu pai e também secretária particular, Heidi
Schwarz, era espiã do Stasi (órgão de repressão política). Kathrin resolveu informar Bodo Bake, o diretor de
redação do jornal onde Menchén trabalhara toda sua vida. Para sua surpresa, Bake confessou que ele também
espionara o pai de Kathrin. Entrevista com Kathrin Ménchen, 06/ e 07/02/2006.
12

Filhos fora do casamento constituem um estigma para todos os envolvidos nessa


época: “Muitas mães solteiras e moças que engravidavam faziam de tudo para evitar para si e
para a criança o desprezo social e as penosas condições de vida que teriam pela frente”,
afirma a historiadora Beuys.12 Fechar-se em copas, evitar qualquer contato com os vizinhos
além de um gentil porém distante cumprimento, não discutir em público são as manobras
defensivas aceitas pela sociedade. Confundir-se no grupo é mais uma maneira de se proteger.
Na Alemanha de fins do século 19, o controle social dificulta o desenvolvimento pessoal.
Algumas pessoas buscam outro caminho: mudar de país, adotar mais de um cultura.

A segunda mãe adotiva em 11 anos

Em 1895, o ambiente familiar de Curt sofre mais uma transformação radical. Morre a avó
Luise Weber. É a tia materna Berta Weber, irmã de Marie Unckel, quem assume o papel de
mãe e dona de casa. Professora primária em São Petersburgo, ela retorna à Alemanha e vai
morar com seus sobrinhos Curt e Olga na pequena casa número 24 da rua Luther, em Iena,
conforme Cappeller.13
É assim que Curt Unckel com menos de 13 anos passa a viver com sua segunda mãe
adotiva. Do ponto de vista psicológico, talvez menos traumático do que ser encerrado num
dos tenebrosos orfanatos da época, onde a carência do contato familiar multiplicava o peso da
disciplina social prussiana.
Mesmo que a avó e a tia maternas lhe tenham brindado calor humano, Curt Unckel
cresce sem conhecer seus pais. Sem a íntima satisfação de partilhar a alegria de um dia, sem a
tristeza de um outro dia. Não tem nem uma coisa nem a outra diretamente dos pais. Apenas a
ausência do vínculo familiar básico que os pais oferecem aos filhos. Possivelmente essa
carência se espelha em inúmeros aspectos de sua vida adulta. Por exemplo, ao considerar sua
esposa Jovelina apenas uma dedicada e solícita empregada.
Na mesma época da morte da avó materna, um professor de sobrenome Paul recebe a
tutela legal de Curt Unckel. Ele dá aulas na instituição pedagógica Karl Stoy, onde Curt, aos
16 anos, conclui o ciclo básico escolar. Não achei registros da passagem de Curt pel colégio
Karl Stoy. A instituição foi inaugurada em 1883 como internato. O complexo incluía também
área de esportes, sala de trabalhos manuais, hortas, refeitório e dormitório já nos limites
urbanos de Iena, perto da estrada usada por Napoleão em 1812 para invadir a Rússia.

12
Beuys, Barbara, Familienleben in Deutschland, Neue Bilder aus der deutschen Vergangenheit, Rowohlt, 1980,
p. 402, minha tradução.
13
Cappeller, p. 12. Eu não achei uma única menção de Curt à tia Berta Weber, que morreu em 1931.
13

Em 1892, foi inaugurado um novo, imponente prédio na rua Humboldt, no centro de


Iena. Não se sabe se Curt Unckel frequentou a escola na cidade ou o internato dos arredores.14

Postal de um prédio do colégio onde Curt estudou até completar o ciclo escolar básico da época.

O ambiente no internato se assemelhava mais a um quartel do que a uma instituição


pedagógica, conforme um dos poucos relatos conhecidos. Os rapazes tinham “banho de
esponja duas vezes por semana, banho completo cada quatro a seis semanas. Dormia-se em
colchões recheados com palha ou crina de cavalo, almofadas de pelo de cavalo e, no inverno,
cobertor de lã. No inverno, a temperatura mínima nos dormitórios era de sete graus. Evitava-
se ao máximo respirar muito o ar frio, mas também não devia se enfiar a cabeça sob o
cobertor, como recomendava um folheto do orfanato”.
O orfanato – e provavelmente também a escola do centro de Iena – espelha o espirito
pedagógico predominante na Alemanha nessa época. O historiador Heinrich Pleticha lembra
que, neste final do século 19, já “fora esquecida a proposta de Alexander von Humboldt, que
pregara o ensino voltado para o desenvolvimento da personalidade do cidadão e não para
transformá-lo num elo da sociedade”.
Triunfante, acrescenta Pleticha, ”surgiu o ensino baseado nos princípios de Herbart,
que pregava a passividade do aluno para receber o que professor tinha a dizer. Era o ensino
baseado na repetição das idéias do professor, na decoreba e em regras estritas para reduzir a

14
Dunker, Cornelia, Die Stoysche Erziehungsanstalt em http://www.thur.de/org/tlz/ em 03/05/2005.
14

pessoa às necessidades da sociedade“. Johann Friedrich Herbart (1776-1841) estudou


Filosofia na Universidade de Iena. Logo entrou em confronto com o inovador pedagogo
suíço Johann Heinrich Pestalozzi e outros representantes de uma pedagogia humanista.15
De fato, a pedagogia de Herbart rejeitava a existência de qualquer capacidade do
espírito e não aceitava nenhuma energia natural. “Para ele, a teoria das faculdades [do espírito
humano] foi tão somente uma mitologia. Na alma somente há experiências que se acumulam
de forma sucessiva. O espírito em seu estado original é somente uma tábula rasa”, explica a
pedagoga brasileira Vera Lúcia Camara F. Zacarias.16
Independente da orientação pedagógica vigente naquela época, o autor do único
trabalho acadêmico em alemão sobre Curt diz que ele soube aproveitar o seu tempo no
colégio. Segundo Günther Dungs, “seus bons conhecimentos de ortografia nos seus trabalhos
científicos [em alemão] apontam para uma boa formação escolar. Especialmente nos seus
documentos lingüísticos, pois todos incluem uma minuciosa gramática [da língua indígena
estudada]”.17
Na verdade, o sistema de ensino baseado no herbartismo da sociedade prussiana é um
dos três mundos que conforma a adolescência de Curt Unckel. As brincadeiras infanto-juvenis
nas florestas de Turíngia constituem um mundo. O terceiro universo é o das leituras na
biblioteca da famosa fabricante de instrumentos óticos Carl Zeiss, empresa ainda tomada pelo
espírito libertário personificado por Goethe e Humboldt nas décadas de ouro de Iena.
No final do século 19, o debate científico é dominado pela angústia de ver civilizações
inteiras sendo engolidas pelo avanço da cultura europeia. O etnólogo Adolf Bastian, que
estudara Medicina em Iena, clamava em 1881: “Está ardendo por todos os cantos do mundo
etnológico, arde claramente, um grande fogo arde por toda parte! E ninguém levanta a mão!
[para apagá-lo]”.18
Bastian quer salvar elementos culturais de outros países, de forma que possam ser
estudados no futuro. Para isso, cria o Museu Etnológico de Berlim, que até hoje exibe objetos

15
Böhm, Winfried, in Pleticha, p. 368, e http://www.herbart-gesellschaft.de/startdeu.html, em 23/05/2006, minha
tradução.
16
Zacarias, Vera Lúcia Camara F. in http://www.centrorefeducacional.com.br/herbart.html, em 23/05/2006.
17
Dungs, Günther, Die Feldforschung von Curt Unckel Nimuendajú und ihre theoretisch-methodischen
Grundlagen, Holos Verlag, Köln, 1991. p 15, minha tradução. Dungs, descendente de colonos alemães que
voltaram do Brasil à Alemanha no início do século 20, concluiu aos 75 anos de idade seu mestrado na
Universidade de Colônia, cuja tese constitui seu livro.
18
Petermann, Werner, Die Geschichte der Ethnologie, Peter Hammer Verlag, Wuppertal, 2004, p. 525, minha
tradução. Durante aproximadamente 25 dos seus 79 anos de vida, Bastian (1826-1905) viajou por todos os
continentes, escreveu 80 livros e cerca de 300 artigos. Fundou também o museu etnológico de Viena e a famosa
publicação especializada Zeitschrift für Ethnologie (Revista de Etnologia). É nela que Curt Nimuendajú publica
seu primeiro trabalho etnográfico. Bastian acreditava na existência de pensamentos primordiais, comuns a todos
os povos, mas também com algumas particularidades culturais. Cf. Wilhelm Seidensticker, Enzyklopädie des
Märchens, volume I, Berlim, 1977, p. 1324.
15

da cultura material dos povos ditos primitivos do mundo inteiro. Outros museus da Europa
seguem essa tendência. O zoológo e filósofo Ernst Haeckel contesta Bastian. Ele diz que o
processo de seleção natural é inevitável. Os povos mais fortes acabam subjugando os mais
fracos. A polêmica entre ambos dura décadas. Haeckel torna-se famoso no meio acadêmico
pelas suas pesquisas no campo da biologia marinha, especialmente de medusas.19
A opinião pública o conhece mais pela sua defesa da teoria da evolução das espécies
de Charles Darwin, a quem visitou várias vezes na Inglaterra. Mas Haeckel dá-lhe um
conteúdo filosófico diferente, pois essa evolução prova, na sua opinião, a existência de uma
entidade superior ao ser humano. Ele defende o monismo, segundo o qual Deus e a natureza
têm a mesma origem. Logo, o espírito permeia toda a matéria.
Vizinhos de rua em Iena, o velho Haeckel e o menino Curt Unckel provavelmente se
conheceram. Durante certo tempo, Curt Unckel terá visto quase diariamente Ernst Haeckel.
Ele morava com sua avó Luise Weber até a morte desta em 1895 na rua Widermannsweg
número 505 casa “d”, não muito longe do local onde Haeckel mandou construir, em 1883, a
vila Medusa, hoje o Museu Ernst Haeckel, na rua que leva o seu nome.
Embora não existam documentos provando um encontro entre ambos, Menchén relata
uma conversa que poderia ter acontecido no alto das montanhas que cercam a cidade. Curt
está sentado num platô, daqui pode-se ver o vale do rio Saale, o descampado de Coppanz, a
escura floresta de Turíngia. Ao seu lado, Ernst Haeckel desenha a paisagem numa folha de
papel. Ménchen dá vazão à sua imaginação e coloca o jovem sonhador respondendo a uma
observação do velho cientista sobre o homem e a natureza:

“Goethe diz que é preciso lutar e não se entregar”. Tropeça inseguro no que disse,
continua, porém: “mas eu não consigo entender muito dessa poesia toda [do Goethe]. Em
comparação, Alexander von Humboldt era bem diferente, ele não ficou preso ao seu lugar de
origem”. Haeckel sorri interiormente e fica admirado com a ligação dos dois nomes feita pelo
jovem. A seguir, Haeckel lhe faz uma confidência. Goethe pintou um quadro que mostrava a
unidade dos diversos aspectos da natureza e o dedicou a Humboldt. O jovem Unckel olha para
o alto, mas no lugar do falcão voando em círculos enxerga imagens do seu passado: o dia em
que viu Haeckel observando numa rua de Iena uma placa dedicada a Humboldt, os livros que
ele Curt leu desse explorador que foi até o rio Orinoco, que desemboca no Amazonas, e [os

19
Haeckel, Ernst, Die Welträtsel, 1899, Berlin, nova edição, 1961. Suas obras História natural da criação,
Antropogenia e, finalmente, Enigmas do universo despertaram a ira da igreja católica alemã. O clero não aceitou
a teoria de Haeckel de que a criação do mundo não aconteceu como consta na Bíblia. Atualmente, o ensino de
Biologia na escola pública alemã está mais próximo do darwinismo materialista do que o creacionismo católico
ou o monismo de Haeckel.
16

livros] dos pesquisadores alemães Johann Baptist Spix e Carl von Martius que também
estiveram lá. Mas também revê o seu rigoroso tutor, o professor Paul, reclamando com a sua
envelhecida tia Berta que o chefe da oficina da Carl Zeiss deu um cascudo no jovem porque
ele fica sonhando com essas viagens.20

Vista do platô Haeckelstein, ao fundo a floresta de Coppanz, onde Curt brincava de índio.

Cappeller não informa se algum dos amigos de Curt Unckel que ele entrevistou sequer
sugeriu um encontro com Haeckel. Se tivesse acontecido, teria sido uma sensação para esses
jovens de Iena. Ex-colega de banco escolar, Guilherme Rüdiger disse que “todos nós éramos
grandes admiradores de Ernst Haeckel”.21

Entre a Rússia e o Brasil

Ainda menino, Curt Unckel lidera seus amiguinhos em brincadeiras pelas florestas de
pinheiros e coníferas dos arredores de Iena. Juntos, constroem casinhas de madeira no alto das
árvores num lugarejo das redondezas. Seu conhecimento sobre os índios impressionou tanto
o companheiro de brincadeiras Fritz Sander, que, mais de sessenta depois, em 1961 ainda
lembra: “Como eu também gostava de me informar a respeito dos índios e o Unckel já sabia
muito a respeito, criamos um pequeno grupo, sendo que ele era o chefe”.

20
Menchén, p. 22 e 16. Na verdade, o rio Orinoco deságua no oceano Atlântico.
21
Contado por Rüdiger em carta enviada em fevereiro de 1970, quando Rüdiger teria 83 anos, cf. Menchén, p.
23. Segundo a artista plástica mineira Lotus Lobo, Rüdiger trabalhou de 1918 a 1968 numa gráfica de Belém,
onde Curt Nimuendajú também morou. Daí em diante, Rüdiger trabalhou como artista gráfico para a empresa
União e Indústria, em Juiz de Fora (MG). Entrevista com Lotus em 9 de junho de 2005. Cappeller, p. 14 e 36.
17

Procurada por Cappeller, a única sobrinha de Curt, Irmgard Müller, confirma: “Desde
a mais tenra idade, ele mexia com tudo o que tivesse a ver exclusivamente com mapas e
índios. Quando a minha mãe lhe pagou a passagem [para viajar ao Brasil], cumpriu-se o seu
acalentado sonho de infância”. O colega de banco escolar Friedrich Artmann revela uma
simpatia que, se aprofundada, teria mudado radicalmente a vida do jovem estudante: “Nós
brincávamos com soldadinhos de chumbo, depois como índios e caçadores. Nessa época, Curt
tinha mais a tendência de emigrar para a Rússia e chegou a estudar russo. Mais tarde, recebi
um cartão [dele] do Brasil”. Seus vínculos familiares com a Rússia poderiam explicar esssa
atração juvenil. Afinal, o pai de Olga (sua irmã por parte da mãe) era oriundo de lá, seu
próprio pai provavelmente morreu em Moscou e sua tia Berta voltara de São Petersburgo a
Iena para assumir sua educação. A atração pelos índios no Brasil, contudo, seria mais forte.
Aos 16 anos, Curt conclui em 1899 o segundo grau no Instituto Karl Stoy. O colega
Roderich Stintzing fornece sua única descrição física desta época: “Ele era um pouco maior
[do que eu], tinha a pele um pouco mais bronzeada do que os outros alunos e uma testa
própria de pensadores. Eu fiquei com a impressão de que se tratava de uma pessoa que sabia
qual era o seu caminho”.

Em Iena, Curt Unckel treinou com armas, que levou ao Brasil, mas não as usou contra os índios.
18

Olhando uma foto de Curt já adulto apresentada por Cappeller nos anos sessenta do
século vinte, Stintzing acrescenta: “na minha lembrança, ele tem feições mais suaves, de um
jovem alto, pele levemente escura e um olhar meio sonhador. O nariz pronunciado certamente
ainda não tinha essa forma, assim como os rasgos enérgicos em torno da boca e do queixo,
sem falar do perfil de formato arrojado. Mas a testa, sim, já era alta e larga”.
Em 1899, Curt Unckel ingressa na Carl Zeiss, na época a mais famosa empresa de
ótica de precisão da Europa.22
Mesmo antes de entrar na Zeiss, Curt Unkel ja frequenta a Sala Pública de Leitura de
sua cidade. Financiada pela Zeiss e pelo fabricante de vidros Otto Schott, a Sala Pública de
Leitura em Iena foi inaugurada em 1 de novembro de 1886 pela Sociedade Comenius, que
almejava oferecer à população uma doutrina moral independente das religiões.
A biblioteca se propunha contar com publicações de bom nível literário de várias
correntes de pensamento e credo. O acesso dos interessados era livre e gratuito de 10 a 22
horas, inclusive aos domingos e feriados.23
O diretor de Carl Zeiss, Ernst Abbe, queria que as pessoas que moravam sozinhas
contassem com um local de leitura e entretenimento. Abbe estava mesmo à frente de sua
época. Ele introduziu cláusulas sociais pioneiras na Zeiss: jornada de trabalho de oito horas
diárias (que só se tornaram oficiais na Alemanha em 2006), férias pagas, direito dos operários
a organização sindical, salário/hora e direito a aposentadoria.24 Após 1945, o regime socialista
estatizou a Carl Zeiss, que, com a reunificação alemã em 1989, foi privatizada e virou parte da
atual Jenoptik.
Abbe determinara ainda que o acervo da biblioteca da Sociedade Geográfica da
Turíngia, criada em 1882, fosse transferida para a biblioteca popular. ”Este seria um ponto de
atração muito especial para o jovem Unckel”, afirma Lindner.25
Certamente, a sala de leitura foi uma fonte inesgotável de tesouros para Curt Unckel.
Provavelmente é aí que ele lê as obras do escritor alemão Karl May, que escreveu mais de 60
livros, traduzidos em 33 línguas. Esses relatos fictícios teriam atingido uma tiragem geral
estimada em 200 milhões de exemplares. May descreveu a vida de povos exôticos,
especialmente da América do Norte e da Ásia, a partir da ótica alemã. A principal personagem
é Winnetou, o apache que se torna amigo do explorador Oldshatterhand.

22
Na ficha funcional da empresa, até hoje consta a informação: “Curt Unkel, nascido em 17/04/1883 em Jena,
solteiro, residente em Jena, ingressou em 10/04/1899 como aprendiz de mêcânico, saiu em 14/05/1903”. Cf.
Wolfgang Wimmer, chefe do arquivo da empresa Carl Zeiss, em E-Mail de 10/12/2004.
23
Lindner, Frank, Curt Unckel-Nimuendajú, Jenas großer Indianerforscher, Jenaische Blätter, nº. 5, quartus-
Verlag, Jena, 1996, p. 7.
24
Menchén, p. 23.
25
Lindner, ibid.
19

May até hoje exerce influência na cultura alemã infanto-juvenil. Mais do que atual são
frases quase proféticas como “O indígena também é uma pessoa e possui direitos humanos. É
um grave pecado declarar que [ele] tem direito à existência e [ao mesmo tempo] tirar-lhe aos
poucos os seus meios de subsistência”.26 Esta idéia, ligeiramente modificada, consta do
manifesto de Curt a favor da autonomia indígena, escrito em 1933.
No atlas da biblioteca de Iena, Curt localiza o bairro paulistano de Cambuci, onde anos
mais tarde iria morar, conforme carta enviada em 1904 ao amigo Ernst Reinhardt: “De São
Paulo, Curt Unckel escreve ao seu amigo ‘Max’, [dizendo que] ele vai achar certinho no mapa
da ‘sala de leitura’ o bairro de onde ele escreve [Cambucy] e a cidade de Ipiranga, onde está o
museu”.27
Seu entusiasmo pelos índios cativa também seus companheiros de trabalho. Um deles,
Fritz Sander, conta: “durante a minha formação de aprendiz na fábrica da Carl Zeiss, conheci
por ocasião de uma visita à sala de leituras um jovem chamado Unckel. Ele se interessava
muito pela América do Norte e do Sul, especialmente pelos índios. Naquela época, ele pegava
da biblioteca tudo o que encontrava sobre esses temas”.
Depoimento parecido é o de Guilherme Rüdiger: “Nós chamávamos [a sala de leitura
de] de sala quente, porque era lá que nos encontrávamos no frio inverno ou quando chovia.
Pegávamos os livros nas estantes e era Unckel, junto com Max, quem explicava [o conteúdo
dos livros]”.28
Os jovens mais atentos percebiam algo diferente nele. O colega de trabalho Paulo
Märzer relembra que, quando Curt Unckel ainda era aprendiz de mecânica no Departamento
de Medidas da Carl Zeiss, alguém disse: “presta atenção nele, é um revolucionário”.
Em menos de três anos, Curt Unckel passa de aprendiz a funcionário da área de
medições. Contudo, esse “revolucionário” nada tem a ver com a técnica e a mecânica
empresariais. Em 1903, ele surpreende seus amigos com a lacônica notícia de que não dava
valor ao serviço militar obrigatório e que iria abandonar a Alemanha.
Em maio desse ano, pouco depois de completar vinte anos, pede demissão da Carl
Zeiss. Na ficha funcional da empresa consta que ele “emigrou para o Brasil”.29

Os quatro anos na Zeiss contribuem para a personalidade do futuro etnólogo de


maneira decisiva, afirma Dungs: “(…) de um lado, o aprendizado de ótica e de mecânica fina,

26
May Karl Friedrich (1842-1912), Ein Ölbrand, Verlag Neues Leben, 1985, Berlim, p. 3, minha tradução.
27
Não se sabe a data exata da carta, podendo ser de 06/01/1904 ou de 10/01/1904, cf. Cappeller p. 15 e 14.
28
Menchén, p. 23.
29
Zeiss, mail do diretor de Pessoal da empresa, Wolfgang Wimmer.
20

que lhe deu a capacidade de trabalhar de maneira segura e precisa. Por outro lado, as
iniciativas sociais lhe permitiram iniciar-se na auto-educação. O fato da empresa ser de
propriedade dos funcionários por iniciativa do dono também contribuiu para sua visão de
justiça”.30
De uma perspectiva mais ampla, Dungs aponta a bagagem cidadã que Curt Unckel
leva para o Brasil: “Uma boa instrução escolar, uma visão humanista, vontade de saber, amor
pela literatura científica e a vontade construtiva de se elevar”.
Nesta início de século vinte, a Prússia ainda vive o apogeu do seu poder, mesmo uma
década após a morte do “chanceler de ferro” Otto von Bismarck. Entre 1870 e 1871, de uma
tacada só Bismarck lançou as bases para uma nova Alemanha. Após ocupar militarmente
Paris, criou, no Palácio de Versailles, junto com outros estados, ducados e cidades livres, o
Império Alemão, o “Reich”. Guilherme I reinava, mas quem mandava mesmo era von
Bismarck.31 Em poucos anos, seu governo transformara a Alemanha agrícola numa potência
industrial, ainda hoje responsável pelo maior produto interno bruto da Europa.
Antes disso, já tinha crescido a sua influência militar no continente. De 1864 a 1871, o
Reich alemão derrotou a Dinamarca, França e Áustria. As despesas militares absorveram em
1870 quase 70% do orçamento do império. Negócios escusos grassavam entre militares,
parlamentares e empresários do aço e do carvão, tais como Krupp e Thyssen. Concluídas as
guerras na Europa, o “Reich” lançou-se a uma política expansionista fora do continente. Sem
colônias até 1870, passou em 1884 a ser a terceira maior potência colonial do mundo, apenas
atrás da Inglaterra e da França.
Os valores morais prussianos impregnam as pessoas: vida pública ascética, costumes
rigorosos, culto à autoridade e à obediência, o pudor de não externar sentimentos em público.
Estes elementos certamente influenciam Curt Unckel, cuja forma ríspida e direta de falar
destoaria dos padrões brasileiros vigentes. Suas feições austeras e a vigilante discrição quanto
a si mesmo não convidariam ao diálogo fácil na terra dos papagaios.
Ao mesmo tempo, a imaginação do jovem de Iena vê-se inflamada pela obra do
geógrafo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904), que marcaria gerações de cientistas e políticos
do mundo inteiro. Ratzel afirma que as civilizações assemelham-se aos seres humanos, que
passam pelas etapas do nascimento, crescimento, apogeu, declínio e morte. As migrações

30
DU, p. 15 e 17.
31
Até meados do seculo 19, a Alemanha ainda era uma economia agropastoril. A extração de carvão aumentou
de apenas 1,5 milhão de toneladas em 1820 para 3,5 milhões de toneladas em 1840. Já na Inglaterra, no mesmo
período passou de 12,5 milhões para 30 milhões de toneladas. A produção de minério de ferro seguiu a mesma
tendência. Estas duas matérias-primas eram a base da nascente industrialização européia. Somente no final do
século 19 é que a Alemanha desenvolve uma estrutura manufatureira, baseada nas indústrias têxtil, siderúrgica e
química. Cf. Engelmann, p. 261 e 409.
21

seriam um elemento dinâmico nesse processo, pois a mudança geográfica alteraria o padrão
étnico de um povo.
Ratzel tornou-se mundialmente famoso pelo seu conceito de Lebensraum (espaço
vital). Como o Estado também vive um ciclo que vai do seu nascimento até a decadência, ele
deve lutar pelo seu espaço vital, uma área geográfica e cultural que lhe permita continuar
existindo. Inclusive através da expansão pacífica de suas fronteiras, a exemplo da colonização
chinesa em séculos passados. No século 20, a ideologia nazista apropriou-se deste conceito.
Em sua monumental obra Völkerkunde lançada em 1880, Ratzel confessa não entender os
motivos que levaram os Tupi-guarani a migrar.32
Este livro constava da biblioteca da Sala de Leitura, patrocinada pela Carl Zeiss. Será
que, instigado por esse enigma, Curt Unckel atravessa o oceano Atlântico já com a intenção
de contatar os Tupi-guarani?

32
Ratzel, Friedrich, Völkerkunde, 1885, Bibliographisches Institut, Leipzig, Vol. 1, p. 8.
2 - Como Unckel virou Nimuendajú

A última informação conhecida sobre Curt Unckel ainda residindo na Alemanha é o seu
pedido de demissão da Carl Zeiss em maio de 1903. É uma atitude inusitada. Ele troca o
emprego garantido numa grande empresa de tecnologia de ponta pelas incertezas e riscos de
um país desconhecido e de contatos com habitantes exóticos para o olhar europeu.

Casinha de Nimuendajú no interior da reserva de Araribá.

Nada se sabe quando e onde ele embarca rumo ao Brasil, nem quando chega. A
exemplo de outros milhares de alemães, deve ter aportado de navio no Rio de Janeiro, naquela
época ainda a entrada oficial de imigrantes no país. Certamente ele adentra um – mas nem
sempre admirável – mundo novo. É igualmente desconhecido porque ele decide morar em
São Paulo.
23

Fritz Cappeller, seu primeiro biógrafo, dá uma idéia da feérica impressão que o recém
chegado, sem experiência anterior com outra cultura, terá tido percorrendo as ruas de São
Paulo naquele início do século 20:1

É assombrosa a seriedade e a objetividade com que o jovem de 20 anos, em uma carta


de 12 páginas, datada em 6 de janeiro de 1904, informa sobre temas como a administração
pública, impostos, questões sanitárias, o clima, a arquitetura da cidade, o fornecimento de
água [potável], mas também sobre conflitos de limites, corrupção e temas semelhantes. Com
relação a irregularidades, ele [Curt Unckel] escreve: “Nada disso é exagero, mas uma
desagradável verdade, que, para o republicano honesto que ainda sou, não constitui nenhum
prazer ter que ver essas coisas numa república”.

Certemente que o ideal alemão de república e o Brasil do início do século vinte pouco
tinham em comum. As diferenças formais começam pelo fato de que a monarquia na
Alemanha só chega ao fim com a sua derrota na Primeira Guerra Mundial, em 1918. Mas não
é o tipo de regime político vigente no Brasil que abala Curt Unckel. Ele vive situações
completamente novas, como a mistura racial de negros, índios, caboclos, mulatos, cafusos e
europeus convivendo em aparente harmonia.
Curt Unckel busca adaptar-se à sociedade brasileira. A duras penas, consegue trabalho
de vendedor de ferramentas na loja de um filho de alemães, Ricardo Nashold, na rua
Florêncio de Abreu, em São Paulo.2
No paraíso sonhado, Curt Unckel depara-se com problemas bem mundanos: o calor
abrasador, os eternos mosquitos, a displicência dos moradores, especialmente na hora de
pagar dívidas e salários. Ele conta a um amigo de Iena que comprara uma mula, “cujo
pagamento não foi nada fácil, porque no Brasil reina a mais absoluta exploração, onde as
pessoas trabalham sem ver a cor do dinheiro”.3
Escrever é sua forma de buscar um novo equilíbrio num universo mutante e
incompreensível. Mas torna-se também o jeito de comunicar momentos agradáveis, como
conta, em 1960, o amigo da distante Iena, Walter Habel: “Eu também recebi logo após a sua
chegada a São Paulo uma longa carta, na qual ele me conta que a [mulher] preta que lhe lava a

1
Cappeller, p. 17
2
Menchén, p. 31, sem citar a fonte. Segundo ele, uma foto de Unckel com o fuzil nos ombros foi fornecida por
Habel. Em 10 de fevereiro de 2005, Ricardo Naschold Neto me informou por E-Mail que sua mãe sabia muito a
respeito da loja do avô. Ela, contudo, morrera algumas semanas atrás e o pai de Ricardo falecera em 1998. Entre
os documentos da mãe, Ricardo achou uma carta do diretor do Museu de Leipzig, Fritz Krause, dirigida ao seu
avô. Ambos se conheceram em São Paulo, durante a expedição de Krause ao rio Araguaia no início do século 20.
3
Cappeller, p. 17. Aparentemente, Capeller é uma das poucas pessoas que leu essa carta.
24

roupa canta uma música muito bonita. Ele me mandou a partitura da melodia e como entre
nossos amigos [em Iena] um deles era músico logo aprendemos a música”.

O enigma da primeira expedição

Na mesma carta de 6 de janeiro de 1904, Curt Unckel informa que já tinha participado de uma
expedição pelo interior, possivelmente de São Paulo, sem dar maiores detalhes por onde
andara. Apenas que teve que abortar essa primeira expedição “em consequência do calor
estorricante e da dor nos olhos, provocada pela luz deslumbrante no chão sem vegetação, que
não deixa ver mais nada”.4
Uma segunda carta, de 10 de janeiro, mostra que os fatos se precipitam. Depois de
poucos meses em São Paulo, ele finalmente está prestes a realizar seu sonho que o levara a
deixar a Alemanha: “Vou participar de uma expedição do engenheiro Lacerda, que quer
explorar o rio Feio e libertar um missionário capturado pelos índios Coroado. Eles precisam
de gente armada e eu sou um desses”.5
Esta notícia deve ter caído como uma bomba em Iena, desorientando amigos e
familiares. Na gelada Alemanha (em janeiro é rigoroso inverno), a atitude de Curt só poderia
ser vista como prova de que o calor tropical efetivamente acirra as mais simples contradições
humanas: Não é que Curt Unckel acalentou anos a fio nas florestas de Iena o ideal
humanitário de conhecer a vida indígena, deixou família, amigos e emprego garantido para
cruzar o oceano Atlântico e agora vai participar de uma expedição punitiva contra os
indígenas?
Dois dias depois, envia um cartão postal ao amigo Fritz Töpfer. Ele confirma sua
decisão de participar da expedição. Fica claro que Curt Unckel tem consciência de estar diante
de fatos completamente novos. Fatos que mudariam sua vida. Por isso, não quer prender-se a
um lugar. Ele prefere ser fiel à sua ânsia de correr aventuras com desenlaces imprevisíveis.
Principalmente numa sociedade onde a volatilidade das convicções constitui a única
possível certeza: “De São Paulo, um último cumprimento à família Töpfer e ao noivo Müller.
Provavelmente ainda nesta semana deixo SP e vou ingressar em Lençóis num grupo armado
de uma expedição que vai explorar o rio Feio. É incerto se eu retorno a São Paulo”.6

4
Ibidem. Anos mais tarde, pouco antes de morrer foi diagnosticado que Nimuendajú tinha glaucoma.
5
Curt Unckel embarcara para o Brasil levando uma pistola e um fuzil M88, cf. Cappeller p. 16.
6
Uma cópia digital deste cartão endereçado ao ótico Fritz Töpfer foi entregue em novembro de 2005 ao prof.
Joachim Born, da Universidade de Iena, que em dezembro desse ano organizou um seminário internacional
alusivo aos 60 anos da morte de Curt Nimuendajú.
25

Em janeiro de 1904: “Talvez esta semana deixe São Paulo (...) meu retorno é incerto”.

Igualmente incerto é se ele de fato participou da expedição ao rio Feio. A postal é de


12 de janeiro de 1904 e ele informa que na semana seguinte iria a Lençóis. Isto não condiz
com documentos oficiais das expedições aos rios Peixe, Tietê, Paraná e Feio, que duraram de
abril de 1905 a março de 1907.
Elas foram organizadas pela Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São
Paulo, criada em 1886 para facilitar a expansão da pujante cafeicultura no Estado. Como o
nome da comissão já revela, não estavam previstas pesquisas ligadas aos habitantes do
interior paulista.7
Pouco antes de morrer em 1945, ele dá uma informação que, aparentemente, contradiz
o que escreveu aos amigos de Iena em 1904: “(...) eu comecei os meus trabalhos de campo
como ajudante de cozinheiro da Comissão Geográfica de São Paulo”.8
Possivelmente, Curt Unckel acabou mesmo na cozinha, onde não precisaria de armas.
Seja como for, o jornalista e biográfo alemão Menchén narra uma possível divergência
entre Curt Unckel e o chefe dos peões que constroem a ferrovia noroeste. O local: algum
ponto no noroeste de São Paulo, no início do século 20. Comandados pelo siciliano Rico, um
grupo de homens fortemente armados protege os trabalhadores que lançam a linha contra os

7
Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, Dossiê da expedição do Rio Feio/Aguapeí, em
http://memoria.fundap.sp.gov.br/memoriapaulista/publicacao/conquista-do-sertao-paulista/dossie-da-expedicao-
do-rio-feioaguapei acessado em 23/03/2011.
8
Carta a Harald Schulz, 26/06/1944, MN.
26

índios que defendem seu território. Curt Unckel é um dos guarda-costas. À noitinha, o chefe
das obras volta a São Paulo depois de inspeccionar o local. Em torno da vendinha, juntam-se
os exaustos trabalhadores.
À falta de diversão, fabula Menchén, eles começam a incomodar um índio bêbado:9

Um trabalhador joga um copo de cerveja na cabeça do indígena, que apenas mexe os


lábios, como se chorasse por dentro. (...) ”Cá, amigo [em português no original], sabe cantar
uma música alegre para nós? Traz as tuas irmãs para cá e por cada uma delas você ganha um
garrafa cheia”. Os olhos do índio brilham ao ver a cachaça [em português no original].
Gagueja umas palavras em português e, desajeitado, tenta pegar o copo. (...) Um dos homens
aproxima-se por trás e corta o fio que segura a esfarrapada calça do índio que, sem perceber,
tenta dar o passo à frente. A calça cheia de furos escorrega lentamente até o chão. Os homens
berram de satisfação. Chico acena mais uma vez com o copo. O índio tropeça na calça caída e
cai. Como se estivessem num circo, alguns homens batem palmas. Chico inclina-se para
frente e joga lentamente a cachaça na bunda escura do índio. “Joga um fósforo nele, vai dar
um ótimo filé”, atiça um negro.
(…) “Eu não arriscaria queimar meus dedos”, diz uma voz tranquila que vem do
balcão. É um homem que já está lá há algum tempo, baixo e forte, vestindo roupa de couro.
Chico olha-o desorientado. Precavidos, alguns homens recuam. “O que há com o alemão?”,
berra o baixinho. Unckel passa ao seu lado sem olhar e abaixa-se diante do índio caido no
chão. “Você tem que controlar melhor seus homens”, disse, dirigindo-se a Rico, cujos olhos
brilham perigosamente. (...) Rico enfrenta o alemão. “É melhor se você não voltar por aqui“,
sibila entre os dentes.

O livro de Menchén foi publicado em 1979 na Alemanha, narrando o que poderia ter
acontecido no início desse século em São Paulo. Em 20 de abril de 1997, a ficção tornou-se
realidade em Brasília. Cinco jovens, um deles o filho do juiz federal Novély Vilanova da
Silva Reis, atearam fogo a um indígena pataxó, que dormia numa parada de ônibus. Galdino
Jesús dos Santos, que tinha viajado do Espírito Santo a Brasília para comemorar o Dia do
Índio, foi assim assassinado.

A juíza Sandra de Mello determinou que o crime fosse julgado não como homicídio
doloso, mas como lesão corporal grave, seguida de morte. Em função disso, a pena máxima

9
Menchén, p. 46, minha tradução.
27

de trinta cairia para doze anos de prisão. Em 2001, porém, os jovens foram condenados por
homicídio doloso pelo júri popular a 14 anos de prisão.10

Logo no primeiro contato com os índios, o jovem Curt Unckel mostra de que lado
está, conta um amigo de Jena: “Ele [Curt] voltou de sua primeira viagem aos índios, que
durou vários meses, com o lábio inferior furado como símbolo de pertencer a uma tribo, e por
isso usava barba comprida”.11
Nimuendajú nunca revelou quando exatamente aconteceu esse primeiro encontro com
indígenas no Brasil. No seu primeiro trabalho científico, ele apenas enumera: “Vim a
conhecer os Guarani em 1905, no oeste do estado de São Paulo; vivi então, com poucas
interrupções até 1907, como um deles, na sua aldeia no rio Batalha”.12
Nesse início do século 20, a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (atual Novoeste) se
aproxima da área do rio Batalha, ameaçando as tribos desta região ao noroeste de Bauru. É
preciso abandonar a área do rio Avari e procurar novas terras para evitar o confronto com os
brancos.
Mesmo essa empreitada tem riscos, conta Curt Unckel: “Numa excursão de
reconhecimento, empreendida a cavalo ao Rio Feio em Maio de 1906, quase caímos (Ponõchi
e eu) nas mãos dos Coroado, verificando assim que a terra dos Guarani à margem do [rio]
Lontra ainda não era habitável para nós”.13
Este sucinto trecho de poucas linhas descortina o início de uma mudança radical na
vida de Curt Unckel. Como num passe de mágica, o jovem ex-funcionário da empresa de
tecnologia da ponta na Alemanha passa a morar entre os índios talvez materialmente mais
pobres do Brasil.
Seus relatos de 1913 sobre o dia-a-dia na aldeia desmentem radicalmente hipóteses
formuladas quase cem anos mais tarde de que ele queria conhecer a romântica vida indígena.
Aceito pelos Apapokuva-Guarani, Curt Unckel acompanha o rumo errático desses
indígenas, acossados por implacáveis fazendeiros e seus ferozes capangas. No início do
século vinte, os Apapocúva moravam perto de Bauru, SP, e, depois de algum tempo de

10
Rede Globo, Assassinato do índio Galdino completa 10 anos, 19/04/2007,
http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL23764-5598,00.html acessado em 04/04/2011.
11
Cappeller, p. 17. Ele não cita o nome da pessoa que deu a informação.
12
Nimuendajú Unkel, Curt, As lendas da criação e a destruição do mundo como fundamentos da religião
Apapokuva-Guarani, p. 3.
13
Nimuendajú, Curt, Apontamentos sobre os Guarani, separata da Revista do Museu Paulista, 8, São Paulo,
1954, p. 28. O livro, escrito em 1908, só foi editado após a sua morte, com tradução e notas do etnólogo Egon
Schaden.
28

perambulação, Joguyroquý, filho de Araguyraá, funda uma nova aldeia na foz do Avari, no
meio do rio Batalha. A situação é insustentável, lembra Curt Unckel14:

Ali a febre palustre [malária], a disenteria e o sarampo, bem como a incompetência do


principal [cacique], de que os colonos vizinhos souberam se aproveitar para explorar e desunir
a horda, quase a levaram à extinção. O avanço da estrada de ferro Noroeste, cujos
contingentes de trabalhadores representavam um perigo constante para a aldeia, obrigou em
1907 o resto do bando a abandonar o Avari. A muito custo consegui reunir alguma famílias
rio acima, no Aribá, onde passamos uma existência miserável.

A miséria não é uma imagem poética, mas parte da nova vida inexplicavelmente
escolhida pelo alemão. Outras vivências decorrentes dessa opção são igualmente difíceis de
explicar a europeus, como aquela na qual os pajés evitaram a sua morte: “(...) a terapia
indígena me salvou quando, em 1907, no Araribá, abatido pela desnutrição, febre palustre e
disenteria, já me considerava desenganado, tendo até participado do começo do meu próprio
ritual fúnebre, um tanto prematuramente iniciado”.15 Mas não dá detalhes que expliquem a
sua recuperação.

Outro exemplo da dura existência desses Guarani é a história da menina que virou
prostituta. Francisco da Costa Ribeiro, conhecido por Chico Mestre, era o dono de uma
fazenda perto da aldeia do Avari. Ele se apaixonou pela menina de 13 anos Maria Tacoapuarã
e, por isso, encheu de presentes o pai, o kaiowá Uembe. Ele resistiu ao assédio até que um dia
aceitou a oferta de Chico Mestre e, acompanhado da filha, foi morar na fazenda. “Foi ai que
durante um mutirão Chico Mestre procurou apoderar-se da menina, mas esta gritou, o capitão
Avacauju [o cacique] interveio e, embora Chico Mestre armado de garrucha o fizesse recuar,
a tentativa tinha falhado desta vez. (...) Uembe tornou a mudar-se para a aldeia”.16
Astuto, Chico Mestre mandou mulher e filhos para a casa dos sogros em Agudos (SP),
espalhando que se separara da mulher para casar com Maria Tacoapuarã. Como esta manobra
também falhou, ameaçou exigir de volta todos os presentes que dera a Uembe. Maria
Tacoapuarã mudou-se de novo para a fazenda e virou companheira de Chico Mestre.
Uma semana depois, ela apareceu na aldeia com sinais de violência física. Contra os
conselhos de Curt Unckel, os índios foram junto com a menina a Bauru dar queixa ao

14
As Lendas, p. 13.
15
Ibid., p. 92.
16
Nimuendajú, Apontamentos, p. 34.
29

delegado de polícia local. Ao chegar lá, já encontraram Chico Mestre, acompanhado de duas
testemunhas de que Maria Tacoapuarã se prostituíra há mais de um ano.

De volta à área indígena, conta Curt Unckel:

Chico Mestre deu ordens para que um jovem Guarani, Jesuino Eiju, que trabalhava na
fazenda casasse [sic] com Tacoapuarã. O próprio Chico Mestre foi uma das testemunhas,
quando Eiju e Tacoapuarã se casaram no civil em Bauru. Não somente pagou as despesas da
formalidade, mas, para para festejar o acontecimento, comprou também carne, cachaça e
foguetório. Eiju não viveu um dia sequer em companhia da mulher que lhe fora imposta e
faleceu no ano seguinte. Atualmente, Tacoapuarã é de fato prostituta, recebendo ainda, de vez
em quando, a visita de Chico Mestre.17

O batismo indígena

Após morar um ano com os Apokokuva-Guarani, dá-se uma reviravolta fundamental na vida
de Curt Unckel, já então adotado como filho pelo cacique e pajé Avacauju, que ele, às vezes,
também chama nos seus escritos de Joguyroquy. Na noite de 14 a 15 de julho de 1906,
dezenas de indígenas se reúnem em torno da tapera do seu amigo Ponõchi, à beira do rio
Batalha.
Como o filho recém nascido de Avacauju seria batizado, todos os membros da tribo
acorrem para participar. Portanto, Curt Unckel descreve no início somente a cerimônia do
batizado do seu irmão indígena:

A noite era luarenta e fria. Em toda parte, no terreiro e na beira da mata, reluziam as
pequenas fogueiras dos Guarani e em torno estavam deitados os vultos escuros dos índios
embrulhados em cobertas e roupas; não se ouvia o menor ruido e somente de vez em quando
surgia no raio luminoso da fogueira um rosto amarelado, soprando de olhos fechados as
brasas, para avivar o fogo.18

Por volta de meia-noite, mulheres e crianças entram numa casinha, onde cantam e
dançam horas seguidas. As crianças deitam no chão e dormem, enquanto os adultos dançam.

17
Ibid, p. 36.
18
Ibid, p. 36. Esta aldeia foi transformada em posto indígena em 1946, batizado com o nome de Curt
Nimuendajú. Atualmente, é composto de quatro localidades, uma delas é a aldeia Nimuendajú.
30

Coreografia de dança ritual indica inclusive a posição de “crianças dormindo”.

Quando Curt é chamado a entrar, a constelação do Cruzeiro do Sul parecia sumir no


céu, sinal de que daí a pouco iria amanhecer. Avacauju começa a cantar, mexendo o chocalho
ao longo do corpo de Curt e umedecendo-o com a água tirada de uma cuia. O pajé muda a
melodia e anda pelo recinto, acompanhado por Curt e seus dois padrinhos.
A cena se repete mais uma vez e então chega o momento culminante:

Avacaujú se pôs bem diante de mim e exclamou, hesitante e excitado, mas em voz
bem alta e clara: “Muendajú-ma-nderey! — Nandereyigua nde! — Nandéva nderenoi
Nimuendajú!” (“Muendajú é teu nome! — Tu fazes parte da nossa tribo! — Os Guarani te
chamam Nimuendajú!”). E então, apontando para Poñochí e sua mulher: “Cova-ma
ndeangá!” (“Eis teus parentes”, quer dizer padrinhos de batizado). Depois recomeçou, para
meu pavor, a cantar de cabeça erguida diante de mim, mantendo as mãos sobre a minha
cabeça, abençoando-me. Ainda demorou um bom tempo até que ele, deixando os braços
caírem, desse um passo atrás, ao que o canto cessou e a cerimônia foi encerrada.

O relato de Curt assume um tom solene:


31

Quando o sol, cerca de meia hora depois, nasceu atrás da floresta, iluminava um novo
companheiro da tribo dos Guaranis [sic] que, apesar da sua pele clara, compartilhou com eles
lealmente no curso de dois anos a miséria de um povo agonizante.19

É a manhã do dia 15 de julho de 1906 – sua mãe alemã, Marie Unckel, nascera 53
anos atrás quase na mesma data, em 8 de julho de 1853.
É assim que Curt Unckel transforma-se em Curt Nimuendajú, filho adotivo do casal
Apokokuva-Guarani Joguyroguý e sua mulher, Nimõa.20
O jovem alemão de 23 anos finalmente encontra no sertão de São Paulo o lar que não
conhecera em Iena. A alegria de ter, pela primeira vez na vida, uma família transparece na
maneira carinhosa com que Curt Nimuendajú escreve sobre seus pais indígenas.
Afinal, ele pode ouvi-los, conversar com eles a qualquer momento. São eles que o
guiam pelos meandros de uma cultura ainda desconhecida para quem três anos atrás ainda
morava na Alemanha. Estes sentimentos aparecem na sua descrição dos preparativos para a
pajelança anterior à sua empreitada de matar um jaguar, que recebera a alma em pena de um
indígena assassinado:

Minha mãe adotiva, Nimõa, teceu uma faixa larga com longas borlas nas pontas e
bordadas por um rico enfeite de penas. Joguyroquý [seu pai], entrementes, fez três flechas
comuns de caça, de cana de cambaúva, ponta dentada de madeira e penas de jacu como guias.
Ele convocou então mais dois homens e, como parecia ser necessária a presença de uma
mulher, também minha madrinha. Esa veio com sua melhor amiga, trouxe-me ainda uma
testeira e me pintou com urucu [urucum] para a luta iminente.21

Ele comemora do seu jeito despretencioso e quase imperceptível o prazer de sentir-se


membro de uma família de carne e osso. O faz com os instrumentos característicos da cultura
que está abandonando: a escrita e a fotografia. No seu primeiro livro – As Lendas –, ele

19
Nimuendajú, Curt, Nimorangaraí, revista Mana vol. 7 nr. 2, Rio de Janeiro, outubro de 2001, p. 148. O
original foi publicado no jornal paulistano Deutsche Zeitung, de 13 de julho de 1910. O tom deste relato é
irônico, distante. O livro Apontamentos traz uma versão ligeiramente modificada e a abordagem é quase solene.
A diferença poderia ser explicada pelo fato de que Nimorangaraí é dirigida à comunidade de língua alemã no
Brasil, ao passo que Apontamentos constituem anotações que, segundo seu editor Egon Schaden, não foram
aproveitadas na primeira obra de Nimuendajú, a As Lendas.
20
Ele demorou para escolher o nome que usaria definitivamente. Ele assina o primeiro capítulo do livro
Apontamentos sobre os Guarani, concluído em 2 de dezembro de 1908, como Curt Unckel. O segundo, como
Curt Unckel Nimuendajú, e sua primeira obra As Lendas como Curt Nimuendajú Unckel. Em 1922, ao adotar a
nacionalidade brasileira, decidiu-se pelo nome Curt Nimuendajú.
21
Nimuendajú, As Lendas, p. 43.
32

apresenta a sua família guarani ao mundo ocidental. Uma foto mostra o cacique e sua esposa,
além de seus irmãos Guyrapéjú e o Aavajoguyroá, e sua cunhada Mangaayjú. 22
É uma singularidade possivelmente sem paralelo no mundo acadêmico: o europeu que
adotou o status de indígena divulga a sua nova situação familiar num periódico especializado
em Etnografia.
Mais ainda. No apêndice do livro Apontamentos sobre os Guarani, ele esboça o que
certamente é a primeira árvore genealógica de uma família indígena.
Pacientemente, ele rastreia dados dos mais velhos membro de seus antepassados
através de seis gerações. Chega até um índio cujo nome ninguém mais sabe, mas ainda é
lembrado como o “capitão dos Guarani de Iguatemi [SP], morto pelo ano de 1830 numa
expedição [guerreira] contra os Avavaí. Casou com ? [sic], raptada pelos Avavaí”.

Na árvore genealógica de sua família indígena, ele também incluiu ▲o seu nome.

Um dado fundamental nessa árvore genealógica é que ele próprio se incluiu: “Curt
Unckel Nimuendajú, adotado em 1906”. Ele não é, contudo, o primeiro alemão na tribo. O
mesmo documento revela ainda que sua tia Apopokuva casou-se com o alemão Georg
Grütken e passou a se chamar Amélia Niapery Grütken.23
Quem traduziu para o português e publicou Apontamentos sobre os Guarani é um
outro irmão indígena de Curt e igualmente de origem alemã. Trata-se do antropólogo Egon
Schaden, nascido em Santa Catarina.

22
Nimuendajú, Die Sagen..., original em alemão, p. 387.
23
Nimuendajú, Apontamentos, apêndice.
33

Num artigo publicado em 1968 na Revista de Antropologia, ele conta:

O parentesco espiritual que o liga [Curt Nimuendajú] a todos os indianistas assume


para mim um sentido peculiar por termos sido ambos – Nimuendajú e eu – recebidos não
somente, com todos os ritos, como irmãos da tribo no mesmo bando de Apapokúva ou
Ñandéva-Guarani, mas até na mesma família. O pai adotivo de Nimuendajú, Avakaúdjú, é
irmão de Poydjú, a quem devo o tratamento de txerúangá [sic], que corresponde ao da pessoa
que toma o lugar do pai na cerimônia batismal do nimorangaraí.

Schaden acrescenta:

Uma vez que irmão e sobrinho são sinônimos em guarani, Nimuendajú é txerykeý, ou
seja, meu irmão mais velho. Como tal o tenho considerado também no campo dos estudos
etnológicos e, em particular, na investigação da cultura guarani contemporânea.24

O batizado de Schaden se deu na noite de 20 para 21 de abril de 1947. É assim que,


mesmo dois anos depois de morto, Curt Nimuendajú ganha mais um irmão. Em 1908, quando
desenhou a árvore genealógica de sua família Apapokúva, tinha dois irmãos vivos, um morto
e uma irmã viva.25

O sentido dos nomes

A sutileza na história de Egon Schaden é que ele informa espontaneamente o seu nome
indígena - Avanimondyiá. Mas, curiosamente, não revela o seu significado, atitude
inicialmente inexplicável num cientista. O manto de mistério que cerca os nomes indígenas
torna-se evidente na cerimônia de batizado, o ñeengaraí, feito pelo pajé para conhecer a
região espiritual de onde provém a criança e identificar seu nome. Íntimo conhecedor desses
rituais, Curt Nimuendajú explica:

24
Egon Schaden, Notas sobre a vida e obra de Curt Nimuendajú, Revista de Antropologia 1967-8 v. 15-16, p. 79.
Egon Schaden nasceu em Palhoça (SC) em 1913, neto de avôs alemães. Aluno de Claude Lévi-Strauss na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, em 1941 assumiu como professor assistente a cadeira de
Antropologia nessa faculdade. Em 1953, lançou a Revista de Antropologia. Sua área de maior interesse era a
cultura, religião e língua dos Guarani. Morreu em 1991, cf. Borges Pereira, João Baptista, Emilio Willems e
Egon Schaden na história da Antropologia, Estudos Avançados, volume 8, número 22, 1994, p. 249-253.
25
DU, p. 21.
34

O nome determinado deste modo tem para o Guarani uma significação muito superior
ao de um simples agregado sonoro usado para chamar o seu possuidor. (...) O Guarani não “se
chama” fulano de tal, mas ele “é” o nome. O fato de malbaratar o nome [usá-lo
indevidamente] pode prejudicar gravemente seu portador. É por este motivo que pais
cautelosos, especialmente quando vivem com seu filho entre estranhos, guardam segredo
sobre o verdadeiro nome da criança, atribuindo a esta um apelido qualquer. Conheço vários
índios que não sabiam seus próprios [verdadeiros] nomes, porque seus pais morreram cedo
sem havê-los confiado a ninguém. (...) Eles acham profundamente ridículo que o sacerdote
cristão, que sempre se julga superior ao pajé pagão, pergunte aos pais da criança como esta se
deveria chamar. Pretende [o sacerdote] que é padre e sequer é capaz de saber determinar o
nome certo da criança? Daí o menosprezo do Guarani ao batismo católico e aos nomes
portugueses.26

Involuntariamente, Nimuendajú traduz parcialmente o seu nome indígena. Ao


apresentar uma lista de nomes masculinos e femininos Apapokuva-Guarani, inclui dois
conceitos do seu próprio nome: “muendá – fazer (mõ), moradia – endá)”.
Mas não os interpreta. Mesmo assim, o episódio mostra como lhe é difícil viver a
essência do universo Apapokuva. Pois ao traduzir, em 1914, parcialmente o seu nome, ele
mostra que ainda não é um Guarani como seus irmãos.
Inúmeros pesquisadores tentaram atribuir significados a esse nome. Um dos que mais
se empenhou é Egon Schaden. Ele lembra que o paraguaio Juan Francisco Recalde:

(...) aventa a hipótese de que o final jú [sic] derivaria do u correspondente a pai. Com
recurso à doutrina da reencarnação aceita pelos Apapokúva, traduz então “Nimuenda (é seu)
pai, ou melhor: descendente de Nimuendá”. Na pessoa do Nimuedajú teria, assim, renascido
Nimuendá, hipotético personagem da mitologia, assim denominado porque “soube abrir o seu
próprio caminho neste mundo e conquistou o seu lugar, talvez de chefe entre os
contemporâneos” (op. cit. p. 2).27
Egon Schaden aceita, com restrições, essa interpretação:

26
As Lendas, p. 31.
27
A opinião de Egon Schaden está em Apontamentos sobre, p. 56. No final de sua vida, Nimuendajú manteve
uma discussão azedíssima com Baldus e com Juan Francisco Recalde, primeiro tradutor para o espanhol do seu
livro As Lendas. Uma segunda tradução ao espanhol foi publicada em 1978 pelo Centro Amazónico de
Antropología y Aplicación Práctica, de Lima, Peru, de autoria de J. Barnadas, cf. Viveiros de Castro, Eduardo, e
Charlotte Emmerich, in As Lendas, p. xxxix.
35

Na opinião de Recalde, a cor amarela que em guarani se diz jú [sic] ou djú, não tem
“valor mitológico” em que se possa fundar outra interpretação. Mas na realidade é esse o
sentido que a maioria dos Guarani dá ao final djú, não tradução vulgar de amarelo, mas como
termo religioso, em que o “amarelo” equivale a “áureo” como a luz do sol e, de modo geral,
ao celeste, sublime ou sagrado. O valor deste djú é de natureza muito mais emotiva e mística
do que representativa, e mais de uma vez me disseram que [o djú] evoca sentimentos que só
um Guarani pode ter. As almas humanas vêm do além, são, pois, djú, e daí a frequência desse
final nos nomes próprios.

Recalde, considerado um exímio conhecedor do idioma guarani falado no Paraguai,


interpreta esse nome como “aquele que soube abrir o seu próprio caminho neste mundo e
conquistou o seu lugar”. Já Schaden afirma que ”esta tradução um tanto livre é inteiramente
satisfatória do ponto de vista simbólico. Nada mais expressivo para bem caracterizar a vida de
um homem que, sem formação universitária de espécie alguma, se tornou expoente máximo
de uma ciência altamente especializada, como é a etnologia brasileira. Isto como fruto de
incomparável força de vontade, da firme decisão de por a [própria] existência a serviço de
uma só idéia”.28

O etnólogo e apresentador da edição em português de As Lendas, Eduardo Viveiros de


Castro, mostra como o ser Guarani se enraíza em Curt Nimuendajú:

(...) Identificação tão intensa que (...) torna-se difícil distinguir entre a mistura de
obstinação e desencanto daqueles Guarani que Nimuendaju acompanhou em suas migrações
na busca de um sonho, e o pessimismo do próprio Nimuendaju quanto à sorte final dos índios
e ao resultado de seus esforços em favor deles. (...) Se jamais recuou de sua empresa,
entretanto, é porque este desencanto não era dos que se resolvessem em imobilismo ou em
autonegação; ao contrário, ele sempre foi dobrado de uma afirmação insistente quanto ao
valor dos próprios valores e à certeza de uma vocação.29

Viveiros de Castro acrecente que essa identificação de Nimuendajú com os indígenas


se dá inicialmente com os Apapocuva-Guarani:

28
Schaden, Notas sobre a vida e obra de Curt Nimuendajú, p. 78.
29
Viveiros de Castro Eduardo, As Lendas ... p. xviii.
36

Nisso mais que em tudo Nimuendaju se assemelhou aos seus Guarani; e por isso
mesmo sua memóravel conclusão sobre a melancolia e o pessimismo histórico Apapocúva –
que outros autores estenderam aos demais Guarani –, enquanto sintoma de que este povo
perdera a vontade de viver, deve ser avaliada com olhos de hoje. Contra todos os vaticínios
sobre o fim iminente de sua cultura, os Guarani continuam, e continuam como são: não
apesar, mas talvez por causa de tudo [isso].

Em carta enviada ao sociólogo alemão radicado em São Paulo Herbert Baldus em


1938, Nimuendajú acrescenta mais informações sobre o seu nome: “(...) A raiz é tendá, o
lugar que corresponde a uma pessoa ou coisa. (...) Com a partícula ativa mo, temos o verbo
moendá (Montoya, dar assento, dar lugar). A partícula ñe, igual a je [em português] antes de
vozes nasais, segundo Montoya é recíproco in se ipso – ju, juv, é verbo defectivo que designa
a existência, o ser”.30
A ironia teuto-guarani aparece na frase seguinte da mesma carta: “Comprendo
perfeitamente o sentido do meu nome e o sr. também o compreende, mas até hoje não fui
capaz de traduzi-lo com exatidão para o alemão, nem para o português. Quem sabe o senhor
consegue?”
É assim que, no final de sua vida, Nimuendajú é o Guarani que sugere, insinua, brinca,
ironiza, mas não revela o significado do seu nome.

30
Belém, 25/05/1939, DU, p. 194. Montoya é o padre jesuíta Antonio Ruiz de Montoya, um dos primeiros
estudiosos da língua guarani. Suas obras mais conhecidas são El Tesoro de la lengua guaraní (publicada em
1639), El Arte y Bocabulario de la lengua guaran“ (1640), e El Catecismo de la lengua guarani (igualmente
1640), cf. Meliá, Bartomeu, Etimología y semántica en un manuscrito inédito de Antonio Ruiz de Montoya, in
Amerindia: revue d'ethnolinguistique amérindienne, La "découverte" des langues et des écritures d'Amérique,
Paris, 1995, p. 331.
3 - A criação e a destruição do mundo
A convivência com os Apapocuva-Guarani é o ponto de inflexão para Curt Unckel tornar-se
Curt Nimuendajú. É quando ele faz uma opção de vida. “Aqui nasceu, no sentido literal da
palavra, o homem que até hoje ocupa um lugar de honra entre os etnológos e pesquisadores”,
diz Menchén.1

Foto de Nimuendajú mostra esculturas dos gêmeos da religião apopocuva.

É entre esses Guarani, concorda Dungs, que “em 1905 esse jovem de 22 anos decidiu
assumir sua futura vida indígena”.2 Dungs atribui a decisão às leituras em Iena, especialmente
de relatos de exploradores europeus em outros continentes.

1
Menchén, p. 38.
2
DU, p. 20.
38

Um desses livros é o Die Völker des Erdballs, de Heinrich Berghaus, um compêndio


de Etnografia de meados do século 19. O etnólogo Egon Schaden identifica no exemplar que
pertenceu a Nimuendajú sinais desse processo de solitária aprendizagem: “Serviu-lhe para a
iniciação autodidática em etnografia. Em letra caligráfica estão aí numerosas anotações
marginais que testemunham a seriedade com que o jovem de então tomou contato com uma
ciência na qual, por seu próprio esforço, haveria de tornar-se mestre de projeção”.3
A partir de sua adoção pelo casal Guarani Joguyroquý e Nimõa, a vida de Curt Unckel
muda radicalmente. De 1906 a 1908, ele perambula pelo noroeste de São Paulo, norte do
Paraná e suleste do atual Mato Grosso do Sul. Ao lado dos Apapocuva-Guarani e outras tribos
como os Xavante e Coroados, conhece a força e a beleza da cultura indígena, vivendo como
um indígena a mais.
É essa igualdade na convivência que lhe permite ser o primeiro não-indígena que narra
momentos da vida da tribo inacessíveis a outras pessoas, como a cerimônia na qual um pajé
guarani troca o nome do doente para salvá-lo. Um rapaz de 15 anos já não dava mais sinais de
vida, mas mesmo assim o pajé Ñeẽnguei começa a cantar uma plegária.4
Curt está ao lado, observando:

(...) o canto já durava horas e Cuperý permanecia inerte nos braços de sua mãe.
Ñeẽnguei derramava e soprava o que podia do seu poder mágico sobre jovem; finalmente,
passada a meia-noite, ele pareceu ver a doença. Pegou-a cuidadosamente como se fosse um
pano estendido sobre o enfermo, começando com uma mão pela cabeça e com a outra pelos
pés; em seguida o enrolou em volta de sua mão direita, levantou-se, foi à porta da casa e
atirou a doença para longe; soprou então as mãos, assoviando, enquanto as batia com estalos.
Retomou seu lugar no preciso momento em que o enfermo se virou gemendo, abriu os olhos e
perguntou, erguendo levemente a cabeça, enquanto olhava interessado em torno de si:
“Mbaéva pã? (O que está acontecendo?)”. Em seguida bebeu água, virou-se e dormiu
tranquilamente até a manhã seguinte.5

Situações como estas deixam marcas indeléveis no jovem nascido na Alemanha. Ele
descobre que os tratamentos xamâmicos são uma expressão da cosmogonia que alimenta a

3
Schaden, Notas sobre a vida…, p. 79. Nimuendajú deu a Schaden o livro, que, por isso, não consta do seu
espólio, feito em 7 de agosto de 1946, conforme microfilme 322 do Museu do Índio. Berghaus foi professor de
Etnologia em Berlim, cujo livro em dois volumes foi lançado em 1868 em Berlim. Ele apresenta os diversos
povos do mundo, inclusive grupos indígenas da América do Sul. Só disponível em antiquários pelo preço médio
de US$ 4.500,00.
4
Nimuendajú, As lendas, p. 92.
5
Ibid.
39

vida dos Apapocuva-Guarani. Ao receber um novo nome, a pessoa torna-se uma outra
individualidade, porque a doença está ligada ao doente por meio do nome.
Curt Unckel também vivencia a perseguição a que são submetidos os indigenas. A
construção da Estrada de Ferro Noroeste, que iria ligar Bauru a Corumbá (MS), provoca
massacres de famílias e extermínio de tribos. Os indígenas, por sua vez, atacam povoados e
fazendas, matando pessoas e roubando gado.
Esses sangrentos confrontos não se limitam ao sertão paulista. Em outras regiões do
país, a situação é muito parecida. O pesquisador Julio Cesar Melatti cita os Xokleng no
Paraná e em Santa Catarina, que defendem suas terras, que seriam dadas a colonos alemães e
italianos, mas também os Botocudo de Minas Gerais e do Estado de Espírito Santo.6
Efetivamente, Curt Unckel não se encontra num país povoado apenas por europeus e
seus descendentes. O interior do Brasil é ocupado não somente por caboclos, mas também por
índios. Não existem terras vazias, mas terras habitadas por indígenas nômades.
O choque no sertão entre índios, caboclos e colonos provoca morte e destruição. Seus
reflexos chegam amortecidos às cidades do litoral. Nesse início do século 20, o Brasil assiste
ao debate ideológico sobre o destino dos índios.
Nacionalistas incipientes exaltam qualidades mitológicas da raça, de certa forma
inspirados pelo naturalismo nas artes. Ainda ecoam obras do século 19 como a ópera O
Guarani, de Carlos Gomes, e o romance Iracema, escrito por José de Alencar.
Em contrapartida, os chamados desenvolvimentistas querem explorar as riquezas
naturais do país. Invadir as terras indígenas e expulsar ou exterminar seus habitantes aparenta
ser a maneira mais rápida, eficiente e barata de atingir esse objetivo.

O “extermínio de índios”

Em 1908, a discussão acalorada sobre se a “sociedade nacional“ deveria exterminar os


indígenas ou protegê-los do avanço das frentes de trabalho transforma-se em conflito aberto.
O estopim é um documento do zoólogo alemão Hermann von Ihering, quem usa a expressão
“extermínio de índios”.
Indignados cidadãos protestam nos jornais. O ”Centro de Sciencias e Letras“ de
Campinas questiona diretamente o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, do qual von
Ihering é sócio fundador. Não existem registros de que o Instituto tenha esclarecido essa

6
Melatti, Julio Cesar, De Nóbrega a Rondon, Revista de Atualidade Indígena, ano 1, no 3, p. 38, Brasília, Funai,
1977.
40

interrogação. Prudentemente, o sócio von Ihering deixa de assistir por um tempo às reuniões
da douta instituição paulistana.7
Três anos depois, von Ihering afirma que nunca sugerira algo parecido. Num curto
estudo sobre os indígenas do Estado de São Paulo, apenas apresentara o “aspecto científico da
questão, mencionando, entretanto, as relações entre indígenas e inmigrados [sic], e o
extermínio dos elementos em guerra com os sertanejos. A frase deu lugar a um comentário
desfavorável do sr. dr. Silvio de Almeida, que comunicou aos leitores do [jornal O] Estado de
S. Paulo a sua importante descoberta de recomendar eu ‘o extermínio dos índios’. Protestei
imediamente nunca ter proferido semelhante coisa, mas o admirável achado do sr. dr. Silvio
corria mundos, ecoando triunfal pelos jornais, numa ansia sentimental de lances
emocionantes”.
Pode ter sido apenas um mal-entendido. Ou mesmo uma manobra dos tímidos
defensores dos indígenas da época. Fato é que o zoólogo alemão torna pública uma distinção
entre “índios mansos” e “índios bravios”. Ele propõe claramente que a missão do governo
deveria ser a de proteger a vida e a propriedade dos “civilizados” dos ataques dos “bravios”,
como já se fazia nos Estados Unidos e na Argentina.
Já os “mansos” seriam catequisados por religiosos e apoiados pelo governo. A atitude
perante o outro grupo deve ser diferente: “os índios assaltantes, que impedem o
desenvolvimento regular da civilização, serão aldeiados [confinados em aldeias] mesmo à
força e até por meio de bandeiras, como já há muito o recomendava José Bonifacio, ainda que
se devam o mais que possível evitar recursos extremos”.
Mesmo com apenas quatro anos de permanência no Brasil, Curt Unckel coloca-se
decididamente contra as idéias do seu patrício, ilustre intelectual da época. A questão para ele
é indígena, não alemã. Num artigo publicado no jornal em alemão Deutsche Zeitung, em
novembro de 1908, mostra que as propostas de von Ihering eram impraticáveis.
Ao mesmo tempo, critica a atitude do governo, que promove expedições con fins
punitivos contra os indígenas. Ironia é que, em 1905, ele quis participar armado da “expedição
do dr. Lacerda”, cujo objetivo teria sido resgatar um sacerdote sequestrado por indígenas.8

7
Ihering, Hermann von, A questão dos índios no Brazil, Revista do Museu Paulista, v. 8. p 114, 1911. Ele
chegou ao Brasil em 1880 e se dedicou à observação de pássaros no litoral gaúcho. Diretor do Museu Paulista de
1894 a 1916, morreu em 1930. Avaliando sua atuação no cargo, Ulpiano T. Bezerra de Meneses, professor do
Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, afirma: “Trata-se do
casamento mais perfeito que jamais existiu entre museus e um determinado campo do saber, estabelecendo-se,
no caso, relação simbiótica entre a forma institucional e as ciências naturais e suas práticas”. Cf.
http://www.iea.usp.br/iea/revista/online/revista22/museupaulista.html.
8
O artigo Ainda a questão indígena, edição de 03/11/1908 do Deutsche Zeitung, foi também o seu primeiro
trabalho escrito sobre os indígenas. Ele teria reagido ao artigo Die Indianerfrage – A questão indígena, publicado
no Deutsche Zeitung em 1908, de autoria de Walter Fischer, cf. Welper, p. 40.
41

Não achei registros de discussões públicas entre Curt Unckel e von Ihering, que acaba
contratando-o para liderar expedições pelo interior do Estado em nome do Museu Paulista.
Afinal, poucas pessoas têm o conhecimento direto da vida dos índios como esse alemão
adotado pelos Apapocuva-Guarani.
Assim, dois adversários com posições filosóficas diametralmente opostas passam a
trabalhar no Museu Paulista. Uma das primeiras expedições já mostra as diferenças entre
ambos. Em 1909, von Ihering encomenda uma pesquisa etnográfica entre os Xavante ao “sr.
Kurt [sic] Unckel, amigo dos índios, o qual já vivera dois anos entre os Guaranys do Rio
Batalha. O resultado foi quase nulo. Os Chavantes, [Xavantes] numerosos até há poucos
decênios, não existem mais hoje. Restam tão somente quatro indivíduos, assimilados à
população sertaneja e esquecidos em grande parte do seu idioma”.9
A avaliação desta pesquisa mostra que origem comum alemã constitui um elo frágil
demais para vencer o abismo que separa ambos na questão indígena. Curt Unckel dá nome e
vida a três desses quatro “indivíduos” citados pelo seu chefe:

Luiza Chavante é uma mulher ainda moça, vive amasiada com um caboclo. (…) Foi
aprisionada numa “dada” [ataque], tendo levado um tiro nas costas. Maria Chavante, já de
certa idade, é casada com um oleiro italiano, do qual tem dois filhos. (…) Diz o marido que
prefere esta índia a qualquer mulher branca.

Finalmente, Unckel descreve também a situação de:

José Chavante, homem robusto, ativo e corajoso. (…) Foi, como os demais, capturado
em uma “dada”, perdendo nessa ocasião pai e mãe. Sua vida é uma rosário de sofrimentos.
Basta dizer que José Chavante já foi vendido uma vez e outra [vez] trocado por uma vaca,
tendo vivido sempre escravizado. (...) É esse o último Oti.10

Nesse ano de 1910, acirra-se o debate público sobre a política governamental para os
índios. Desde a chegada dos portugueses ao Brasil, os assuntos indígenas eram um quase
monopólio de fato da igreja católica.
As reduções jesuíticas, tanto no sul quanto no nordeste, são exemplos de um modelo

9
von Ihering, p. 135.
10
Nimuendajú, Os Nossos índios – O extermínio da tribu dos Otis, 9/11/1911, O Estado de S. Paulo, Filme 397,
MI. Em 1944, Nimuendajú relembra a expedição, cf. Cartas Etnolinguísticas, Curt Nimuendajú e R. F. Mansur
Guérios, 1948, Revista do Museu Paulista, n. 2, p. 215.
42

de catequização para transformar os “selvagens sem alma” em católicos fervorosos. A


expulsão dos jesuítas em 1759 da então colônia brasileira, o retorno dos mesmos um século
depois e a independência política do império português em 1822 em pouco alteraram a
escassa atenção do governo para com os indígenas.

A grande mudança veio com a República. Ela teve no seu bojo um núcleo militar e
não-religioso: os positivistas. Desenvolvido pelo francês Augusto Comte em meados do
século 19, o positivismo se autodefine como uma corrente filosófica que se apoia em valores
éticos, rejeitando tanto a religião quanto a metafísica.
Esse núcleo propõe em 1910 uma Inspetoria Federal de Proteção Fraterna dos
Indígenas do Brasil. Estes receberiam tratamento bondoso, garantia de posse da terra e
proteção contra violências e abusos. O líder é o então tenente-coronel Cândido Rondon.
Nascido em 1865 no atual Mato Grosso do Sul, Rondon é descendente, por parte
materna, de indígenas das tribos Bororo e Terena e, pelo lado paterno, de Guaná. Formado
pela Escola Militar do Rio de Janeiro, participa do movimento abolicionista e das
conspirações a favor da proclamação da República. Em 1898, ingressa na Igreja Positivista do
Brasil. De 1881 a 1906, dirige a construção de estradas e linhas telegráficas entre o Mato
Grosso e Goiás, e entre Corumbá e Cuiabá.11
No conceito positivista-indigenista, não existe espaço para ensino religioso ou
catequese. O cientista von Ihering discorda da “catequese oficial”, mas critica também o
poder de polícia do órgão proposto perante a população branca:

É natural que compita à inspetoria fiscalizar o modo pelo qual os indígenas são
tratados nas colônias e estabelecimentos particulares, mas duvidamos que lhe caiba
igualmente “tornar efetiva a punição dos crimes que se cometem contra os indígenas”. Não se
precisa de domador para lidar com a boiada.12

Ainda em 1910, é criado o órgão federal Serviço de Proteção aos Índios e Localização
de Trabalhadores Nacionais (SPILTN). A meta declarada é atrair indígenas e dar-lhes
proteção temporal durante sua passagem para o estágio de trabalhadores agrícolas.

O fato do tenente-coronel Cândido Rondon ser seu primeiro diretor e de ter tomado

11
Cf. http://www.brasil.gov.br/sobre/historia/personagens-historicos/marechal-rondon-1865-1958.
12
Ihering, p. 127.
43

posse no dia 7 de setembro indica claramente que facção venceu os embates pelo controle do
novo órgão estatal.13
O antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima afirma que o SPILTN foi idealizado
pela mesma entidade que montou o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio – a
Sociedade Nacional de Agricultura.
A SNA, segundo ele, “assoma como aparelho não estatizado responsável pela
sistematização de interesses de distintos segmentos agrários regionais, sobretudo fluminenses,
com menos peso político e econômico, face à dominação exercida pela grande burguesia
cafeeira paulista (composta pelos produtores de café associados aos empreendimentos
urbanos e à burguesia mercantil internacional)”.14
Esta dicotomia é utilizada por Lima para explicar a permanente falta de recursos do
SPI ao longo de sua história, pois os influentes cafeicultores paulistas controlam o estratégico
Ministério da Fazenda. Independente das divergências entre fluminenses e paulistas, na
chamada questão indígena, a proteção laica, estatal e militar do SPI subsistui a igreja católica
e sua catequese religiosa.
Ciente da mudança política, Curt Unckel troca o Museu Paulista de von Ihering pelo
SPI de Rondon no mesmo ano da fundação do órgão federal.15 O antropólogo Luís Donisete
Benzi Grupioni informa que o próprio Rondon convidou Nimuendajú para ser um dos
primeiros funcionários, sem citar a fonte desta afirmação.16
Além do seu ingresso no SPI, outro fato significativo acontece em 1910. Quatro anos
depois do seu batizado entre os Apapocuva, Curt passa a usar oficialmente o nome Curt
Nimuendajú. Como se fosse um rito de passagem, justamente ao ingressar no SPI, órgão
criado para assumir a causa dos seus irmãos indígenas.
Nimuendajú leva ao SPI o seu mais precioso capital – sua experiência pessoal na
difícil e dolorosa existência dos indígenas. Num artigo de um jornal alemão de São Paulo, ele
escreve que:

(...) a vida do silvícola sul-brasileiro é tão incrivelmente miserável, tão cheia de


penúria e privações, de perseguições e de perigos, o convívio prolongado com os selvagens

13
O SPILTN foi criado pelo Decreto-Lei nº 8.072, de 20 de junho de 1910. A partir de 1918 é só SPI e em1967,
durante a ditadura militar, foi substituído pela Funai, cf. funai.gov.br/quem/historia/spi.htm em 24/08/2006.
14
Lima, Antonio Carlos de Souza, Um Grande Cerco de Paz. Poder Tutelar, Indianidade e Formação do Estado
no Brasil, Vozes, Petrópolis, p. 104,1995.
15
Carta a Herbert Baldus, Belém, de 25/05/1939, cf. DU, 194.
16
Cf. Grupioni, Luís Donisete Benzi, Coleções e expedições vigiadas: Os etnólogos no Conselho de
Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, Hucitec, SP, 1998, p. 176.
44

pueris,teimosos e obstinados [é] de tal modo insuportável que um criminoso fugitivo deveria
estar positivamente [efetivamente] maluco para submeter-se a tudo isso espontamente (...).17

Aos 26 anos, antes de ingressar no SPI em 1910.

Logo realiza sua primeira “pacificação”. Ou melhor, organiza a “atração” dos


indígenas Coroado, também chamados de Kaingang, perseguidos pelos campos de São Paulo
e do atual Mato Grosso do Sul. No final de 1911, políticos regionais querem exterminar os
Coroado. Para evitar um fato consumado, Nimuendajú e dois oficiais do Exército estabelecem
um acampamento à beira do Ribeirão de Patos, perto do rio Feio (SP).
Após três meses de permanência na área habitada pelos indígenas, Nimuendajú volta à
capital de São Paulo para fazer um mapa da região. É quando começam as dificuldades,
segundo seu relato. Seu substituto, que vive bêbado, foge após o primeiro ataque dos

17
Nimuendajú, A questão dos Coroado, publicado no jornal Deutsche Zeitung, 19/07/1910, São Paulo.
45

Coroado, que queimam o acampamento. Sem liderança, os trabalhadores contratados pelo SPI
se dispersam pela mata.18
Depois da catástrofe vem a mudança. Um novo inspetor assume a direção do SPI em
São Paulo e passa a chefia do acampamento no Ribeirão dos Patos a um sargento aposentado,
Bandeira de Mello.
Nimuendajú recebe uma espinhosa missão adicional, a de responder pelos Guarani
espalhados pelo Estado – os Apapocuva, Oganhviva e os Tauyngúa. Certo dia, conta ele, teve
de sair do acampamento em Ribeirão dos Patos “muito apressado para a aldeia no Araribá,
pois os componentes do grupo [indígena] do qual faço parte estavam fazendo danças rituais
mágicas noturnas para amaldiçoar o meu substituto com o qual não se conseguiam
relacionar”.19
Enquanto ele acalma seus companheiros na reserva de Araribá, em Ribeirão dos Patos
a aproximação corre por conta própria. No dia 18 de março de 1912, o cacique dos Coroado e
mais seis índios ficam três dias no acampamento. Nimuendajú lamenta não ter assistido a esse
primeiro encontro pacífico: “Eu, que fui o primeiro que em São Paulo colocou suas forças em
prol desse objetivo, infelizmente não pude estar presente neste momento maravilhoso.”

Mas também tem o seu momento de glória pessoal. Os Coroado querem conhecer a
pessoa que abrira a primeira picada na mata e deixara presentes. Em meados de abril de 1912,
Nimuendajú chega ao acampamento, onde 58 índios erguem uma nova aldeia.
Após uma ceremônia, acontece uma inesperada homenagem dos indígenas: “O
guerreiro é jovem, baixo e tem duas mulheres belíssimas. Não fala com ninguém e chega a
virar o rosto para não ser interrogado. Porém, quando eu em certo momento me encontrava a
sós com os índios, puxou-me ao encontro dele, colocando minha cabeça no seu regalo [talvez
regaço, colo], passando suas mãos sob [pelos] meus cabelos”.
Este sinal de aceitação certamente faz bem a Nimuendajú, que expressa sua satisfação
pelo sucesso da empreitada: “(...) o essencial de minhas observações é [que] a luta racial
nojenta que envergonhava o sertão paulista agora teve fim, se não for cometida outra
burrada”.
A “pacificação” deve ter tido um impacto muito forte neste alemão que desembarcara

18
Araribá, 14 de abril de 1912, Cf. Nimuendajú a Hugo Gensch, p. 2, filme 322, MI. É uma carta em alemão,
traduzida por Dagmar Schneider em maio de 1974. Hugo Gensch era médico em Blumenau (SC) e tentara várias
vezes pacificar os Kaingang no Estado. Menchén afirma, sem citar fontes, que Curt Unckel, apenas chegado da
Alemanha, teria conhecido em São Paulo o recém formado médico Hugo, que trabalhava num hospital e juntava
dinheiro para abrir um consultório no sul do Brasil. Cf. Menchén, p. 36.
19
Nimuendajú a Hugo Gensch, p. 3, 4 e 7.
46

nove anos atrás no Brasil com a difusa idéia de conhecer os índios. É por isso que, muito a
contragosto, obedece a ordem do SPI de São Paulo e retorna para continuar na chefia da
reserva de Araribá.
Mal poderia imaginar que essa obediência prussiana iria levá-lo a vivenciar eventos
que o tornariam mundialmente famoso no mundo da Etnologia.

A “Terra sem Mal”

Em maio de 1912, inesperadamente ele encontra, às margens do rio Tietê, a apenas 12


quilômetros da capital paulista, um grupo Guarani oriundo do Paraguai:

Eram autênticos índios da floresta, com o lábio inferior perfurado, portando arcos e
flechas, sem conhecimento do português e falando apenas algumas palavras em espanhol.
Eles queriam atravessar o mar em direção ao leste. Tamanha era a confiança no sucesso desse
plano que quase me levou ao desespero. (...) Não dava para argumentar com eles (...) e, no
entanto, em hipótese nenhuma poder-se-ia deixá-los entregues à sua [própria] sorte.20

Autorizado pela Inspetoria de Índios de São Paulo, Nimuendajú junta-se a eles. Depois
de três dias de caminhada para vencer 70 quilômetros, chegam a Praia Grande, ao sudeste de
Santos.
Cansados, decidem acampar à beira do mar. Nimuendajú descreve a primeira noite,
quando chove sem parar e o fogo se apaga, e o dia seguinte:

(...) ficamos sentados, tristes, sem abrigo, sob as nossas cobertas. Mas, pela manhã, a
chuva parou e o sol se levantou radiante e esplendoroso do mar. Ensimesmados e mudos os
paraguaios estavam ao meu lado sobre a duna. Visivelmente, a situação lhes parecia
extremamente lúgubre. Eles haviam, aparentemente, imaginado o mar de forma totalmente
diferente, sobretudo não tão terrivelmente grande. Sua confiança tinha sofrido um golpe
violento. Eles se mostravam bastante abatidos, especialmente à noite, e o canto de pajelança a
Tupacý, que eu aguardava com grande expectativa, não progredia, embora eu também tivesse
trazido o meu maracá e procurasse ajudar com todas as minhas forças.

20
As Lendas, p. 105, 106 e 108.
47

Após quatro dias de novas tentativas e intensas discussões, Nimuendajú convence-os a


morar na reserva de Araribá. Ao passar perto da capital paulista, ele emprega de novo seu
talento para fazê-los desistir da idéia de voltar ao litoral. Na reserva, exigem que Nimuendajú
fique morando com eles. Mas como ele volta a viajar, os Guarani vindos do Paraguai
abandonam a reserva, novamente em busca da salvação.
É através desses acontecimentos que o mundo científico fica sabendo que a lendária
migração de índios Guarani em busca da “Terra sem Mal”, o paraíso indígena, continua nesse
início de século 20. Originalmente registradas pelos jesuítas no Paraguai no século 16, as
migrações eram tidas como reflexos de guerras entre tribos inimigas ou consequência do
avanço europeu em terras indígenas. Às vezes, geravam perplexas reações de intelectuais
como o do alemão Friedrich Ratzel, que, no século 19, não entendia o possível fundo religioso
dessas migrações.
Consideradas extintas, agora elas se abrem para o mundo ocidental graças à
experiência pessoal de Nimuendajú. Mas ele não fica preso ao fato de ter sido o primeiro não-
indígena a participar de um desses deslocamentos a longas distâncias, pois os Guarani vindos
do Paraguai percorreram aproximadamente mil quilômetros a pé.
Cuidadoso, Nimuendajú questiona se seriam essas migrações os “últimos estertores
daquele movimento migratório que conduziu os Tupi-Guarani da época colonial ao seus
assentamentos ao longo da costa oriental?”. Ele sugere que esses grupos indígenas haviam
avançado em direção ao litoral pouco antes da chegada dos europeus ao continente americano,
no final do século 15. A sua pouca experiência com a vida marítima seria uma prova da sua
chegada recente às praias atlânticas.
Mesmo sendo guerreiros mais arrojados do que outros grupos localizados no interior
do Brasil, provavelmente os Guarani não tinham planos de conquista. Por isso, ele conclui que
“a mola propulsora para as migrações tupi-gurani não foi sua força de expansão bélica, mas
[que] o motivo tenha sido outro, provavelmente religioso”.
Nimuendajú localiza geografica e temporalmente o fenômeno que, em parte, vivenciou
pessoalmente:

No princípio do século XIX começou entre as tribos Guarani [da margem direita do
baixo Iguatemi, atualmente MS] um movimento religioso que até hoje ainda não está
completamente extinto. Pajés, inspirados por visões e sonhos, constituíram-se em profetas do
fim iminente do mundo: juntaram à sua volta adeptos em maior ou menor número e partiram
em meio a danças rituais e cantos mágicos, em busca da “Terra sem mal”; alguns a julgavam
48

situada, conforme a tradição, no centro da terra; mas a maioria a punha no leste, além do mar.
Somente deste modo [pela migração] esperavam poder escapar à perdição ameaçadora.

Ao longo das décadas seguintes, pesquisadores de vários países e de diferentes


gerações transformam esta cuidadosa hipótese em certeza científica. Na segunda década do
século 20, o etnólogo suíço naturalizado norte-americano Alfred Metreaux escreve um livro
compilando as informações existentes até essa época sobre os Guarani, elevando a reflexão à
categoria de fato comprovado.21 A antropóloga francesa Hélène Clastres, apoiada em
pesquisas realizadas no Paraguai pelo seu marido, Henry Clastres, vai além e afirma, nos anos
oitenta, que as migrações eram motivadas exclusivamente por motivos religiosos.22
Até hoje continua este debate acadêmico, impulsionado pelo fato de Nimuendajú ter
sido o único estudioso que testemunhou pessoalmente uma migração guarani à procura da
terra “das palmeiras eternas”. Nos últimos anos, surgiram vozes que discordam da hipótese de
Nimuendajú. Francisco Noelli, professor da Universidade Comunitária Regional de Chapecó
(SC), aponta o que considera equívocos. O primeiro seria que Nimuendajú aceitou as
hipóteses de pesquisadores alemães como Carl von Martius, Karl von den Steinen e Paul
Ehrenrich para sugerir “uma motivação para as ’migrações’ dos Tupi de cunho estritamente
religioso”.23
O segundo erro seria que considerou as migrações como já existentes antes da chegada
dos portugueses ao Brasil e concluiu que todas elas eram iguais. “A indistinção entre estes
dois processos resultou em uma interpretação que comprimiu e resumiu a um único fenômeno
os diversos e distintos eventos históricos que ocorreram ao longo da formação multivariada
[sic] dos povos que hoje são incluídos no tronco linguístico Tupi (...)”.
Na verdade, Noelli aprofunda a sutil crítica já esboçada no início dos anos 90 por
Bartomeu Melià. Sacerdote jesuíta espanhol residente no Paraguai, ele acentua o caráter
hipotético da proposta de Nimuendajú sobre as migrações: “Estas são marcadas por um
acentuado misticismo e têm na dança, que as acompanha, seu símbolo ritual. A descrição que
Nimuendajú faz destas formas de ‘busca da terra-sem-mal’ no citado capítulo é simplesmente
antológica e não é de se estranhar que se haja convertido em referência obrigatória, quando se
tem de tratar do tema. Sua hipótese até hoje inquieta os etnólogos dos Guarani”.24

21
Metreaux, Alfred, The Guarani, South American Indians, B.A.E. Bulletin 143, v. 3, Washington, 1943.
22
Clastres, Hélène, Terra sem mal, Profetismo tupi-guarani, Editora Brasiliense, São Paulo, 1978.
23
Noelli, Francisco Silva, Curt Nimuendajú e Alfredo Metreaux, a invenção da busca da ”terra sem mal“,
Suplemento Antropológico Universidad Católica del Paraguay, Revista del Centro de Estudios Antropológicos,
v. XXXIV, nº.2, dezembro 1999, Asunción, p, 126.
24
Meliá, Bartomeu, A Terra sem Mal dos Guarani, Revista de Antropologia, v. 33, São Paulo, 1990, p. 44.
49

Não conheço qualquer resposta às questões levantadas por Noelli. Ele coloca em
questão a competência e seriedade de dezenas de pesquisadores posteriores a Nimuendajú,
citando alguns papas da antropologia latino-americana: Alfred Metreaux, Egon Schaden,
Maria Isaura Pereira de Queiróz, Hèlenè Clastres e Branislava Susnik:

Estas idéias recorrentes sustentam a afirmação de que a procura do yvy maraneý


tornou-se um mito acadêmico, um assunto sobre o qual os pesquisadores ficaram repetindo
acriticamente e estufando a questão da ‘terra sem mal’.25

Noelli também discorda do conceito lançado por Nimuendajú de que os Guarani que
queriam atingir o paraíso deviam realizar peregrinações até atravessar o mar. Ele interpreta
um livro do pesquisador paraguaio León Cadogan, que:

(...) mostra claramente que a ascensão ao yvy maraneý cruzando o mar se dá através
de exercícios espirituais e jejuns que vão livrando o corpo das imperfeições humans e que
livram a pessoa da “prova da morte”. (...) Cadogan deixa claro que o ingresso se dá sem a
necessidade da migração terrena.

León Cadogan, filho de australianos, nasceu no Paraguai em 1899. Autodidata como


Nimuendajú, suas línguas do dia-a-dia eram o guarani paraguaio e o mbya guarani, fora o
castelhano e o inglês. Ele conquistou a confiança de vários grupos mbya e publicou, em 1959,
o livro Ayvu Rapyta, em mbyá e em castelhano. Morreu em 1973, também materialmente
pobre como Nimuendajú.
Noelli dá uma interpretação equivocada ao texto de Cadogan, que apresenta o caminho
iniciático que todo guarani pode percorrer para ascender em vida aos mundos espirituais– e
inclui a peregrinação física. O fim da viagem por terra até o litoral marca o início da
empreitada espiritual, embora alguns tenham se elevado sem peregrinar, segundo Cadogan.26
Enquanto estudiosos discutem as razões das migrações, os indígenas continuam
andando em busca da imortalidade. A antropóloga Maria Inês Ladeira afirma que as
migrações no triângulo Brasil- Paraguai-Argentina continuavam, pelo menos até início da
última década do século 20.27

25
Noelli, p. 133.
26
Cadogan, León, Ayvu Rapyta, textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá, Biblioteca Paraguaya de
Antropología, v. XVI, 1992, p. 229.
27
Ladeira, Maria Inês, O caminhar sob a luz, o território Mbya à beira do oceano, PUC, São Paulo, 1992.
50

Assim como em 1912, a mítica migração dos Guarani para a “Terra sem Mal” tornou-
se um marco na vida de Nimuendajú, outros fatos no ano seguinte lhe abririam novos
horizontes. Um sinal vem pouco antes do seu encontro com os Guarani oirundos do Paraguai.
Na sede paulista do SPI, ele fica sabendo que logo seria transferido para Santa Catarina,
conforme confidenciou a Hugo Gensch.28
De fato, Nimuendajú iria abandonar São Paulo, mas geograficamente em direção
oposta. Ainda em território paulista, Nimuendajú consegue um feito: criar um espaço protetor
para sua tribo e outras aparentadas como os Oguauíva e Kayguá. Assim, em 1912 é
inaugurada a reserva de Araribá, perto de Bauru. Atualmente, uma aldeia da reserva leva seu
nome, uma das poucas homenagens oficiais prestadas no Brasil a Nimuendajú.29
Irriquieto, entre janeiro de 1912 e março de 1913 Nimuendajú percorre o noroeste de
São Paulo e o sul do atual Mato Grosso do Sul. Ele tenta convencer o SPI da necessidade de
pacificar os Ofaié, ameaçados pela construção de uma estrada ligando São Paulo ao atual
Mato Grosso do Sul. Para isso, é preciso fazer viagens de localização e pacificação das tribos
da região. Após enfrentar as copiosas chuvas de março de 1913, Nimuendajú propõe ao SPI:
“As viagens devem ser feitas fora da temporada das chuvas. Eu me coloco à disposição para
realizá-las”.30

Nimuendajú e a cosmogonia apapocuva

O destino, porém, tem outros planos. Em junho de 1913, acontece um acontecimento


marcante na vida de Nimuendajú. À beira do ribeirão Santa Bárbara, afluente do Rio
Ivinhema (sudeste do Mato Grosso do Sul), três índios de sua tribo abrem-lhe as portas do
mais bem guardado segredo dos Apapocuva-Guarani: os seus mitos fundadores, as lendas da
criação e da destruição do mundo. Sentados em torno do fogão para se proteger das frias
madrugadas do inverno matogrossense, os três confidentes ditam em guarani Apapocuva um
conteúdo que até então nenhum ocidental conhecia. Nimuendajú relembra:

28
Cf. Carta a Gensch, p. 8. Naquele ano, houve sangrentos confrontos entre bugreiros, colonos de origem alemã
e os povos indígenas Kaingang e Xokleng. O primeiro contato pacífico com este último grupo só aconteceu em
1914, graças ao trabalho do funcionário do SPI, Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, missivista de Nimuendajú,
cf. Flavio Braune Wiik, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina, Xokleng, história do contato em
socioambiental.org/pib/epi/xokleng/hist.shtm, dia 13/06/2006.
29
Os Oguauíva e os Kayguá integram a longa lista de povos extintos. Entre 1930 e 1940, vários grupos Guarani
foram levados de Araribá para a atual Terra Indígena Laranjinha (PR), cf. Rita de Cássia de Araújo e allii,
Memórias, conhecimentos e literatura na Escola Indígena Guarani Nhandewa, 2009, Universidade Estadual de
Maringá, http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/3173_2161.pdf acessado em 14/01/2011.
30
DU, p. 205.
51

Os mitos de que vou tratar inúmeras vezes os ouvi contados parcialmente (mas raras
vezes na íntegra). Não somente os ouvia, contudo, como eu próprio também os contava. (...)
Eu procurava de preferencia a companhia dos velhos, principalmente a dos pajés, deixando-
me instruir por eles, durante muitas horas, sobre sua velha religião. Ainda hoje eles se
orgulham de seu discípulo.31

Em 1914, a mais importante revista especializada da Europa, a alemã Zeitschrift für


Ethnologie, publica os resultados de sua convivência entre os Guarani e as observações feitas
ao longo de quase oito anos. Trata-se de sua primeira obra de fôlego, escrita em alemão: Die
Sagen von der Erschaffung und Vernichtung der Welt als Grundlagen der Religion der
Apapokuva-Guarani. Em português, As lendas da criação e da destruição do mundo como
fundamento da religião dos Apapocuva-Guarani. É um livro inovador até os dias de hoje.
Duas lendas, reproduzidas em Apapocuva Guarani e traduzidas para o alemão, constituem o
ponto central. Elas estão colocadas no final, como se fossem um apêndice. A introdução são
na verdade comentários de Nimuendajú, que ocupam mais de 90 por cento da obra.

A edição original de As Lendas, publicada em alemão.

31
As Lendas ..., p. 4.
52

A primeira frase do livro soa enigmática, irônica: “Os índios Guarani são tão
conhecidos que pareceria supérfluo escrever ainda mais alguma coisa a seu respeito”. Depois,
seguem-se mais de 100 páginas com informações inéditas sobre religião, cultura, língua,
deslocamentos geográficos e vida material desses indígenas. A retomada do tema das
migrações à “Terra sem Mal” não é a única grande novidade que Nimuendajú apresenta ao
mundo ocidental.
Em poucas linhas, ele também revela a impressionante cosmogonia apopocuva,
representada pela lenda da criação e a destruição do mundo:

Ñanderuvuçú (“Nosso Grande Pai”) surge como primeiro [deus] e o faz de modo
verdadeiramente imponente: como uma luz resplandescente no peito ele se descobre, sozinho,
em meio às trevas. Meu informante ditou-me cuaraý – sol , em lugar de endý, luz; mas que
isto não se referia ao sol propriamente dito, e sim a uma outra luz, depreende-se do fato de
que Ñanderuvuçú carrega ainda hoje tal luz em seu peito, ao passo que o sol surge
independentemente.

Ele acrescenta:

Sobre um suporte em forma de cruz, “ele dá à terra o seu princípio” e a provê de água.
Então o criador “acha” de repente ao seu lado seu auxiliar Ñanderú Mbaecuaá [“Nosso Pai,
o Conhecedor das Coisas”]. O papel que esta personagem desempenha na solução do
problema da criação da mulher já demonstra que ele tem muito menos poder e importância
[do] que Ñanderuvuçú: “achemos uma mulher!” exige o criador e Mbaecuaá não sabe fazer
nada senão [formular] outra pergunta: ”como podemos achar uma mulher?” – “Na panela!”
decide Ñanderuvuçú. Ele faz uma panela, cobre-a e passado algum tempo ordena a
Mbaecuaá que vá verificar. Este encontra de fato uma mulher e a traz consigo. Assim, há
agora três pessoas sobre a terra: Ñanderuvuçú, Ñanderu Mbaecuaá e a mulher Ñandecý
(Nossa Mãe).32

As pesquisas de Nimuendajú revelam ainda o equívoco da afirmação da igreja católica


durante a época colonial, e que perdura até hoje, de que os indígenas não tinham alma. A
sabedoria Apapocuva-Guarani distingue entre a alma animal e a alma humana:

32
Ibid, p. 47. Ele narra também como se deu o surgimento de outros deuses, demônios, heróis e grandes pajés.
53

Pouco depois do nascimento vem juntar-se ao ayvucué [a alma] um novo elemento


que completa a alma humana: o acyiguá. A palavra é um particípio de acý, que significa
como substantivo “dor” e como adjetivo e advérbio “vivaz, violento, vigoroso”. O acyiguá é
uma alma animal. Os Apapocuva atribuem as disposições boas e brandas do homem ao seu
ayvucué, as más e violentas ao seu acyiguá. O apetite por alimentos vegetais e leves provém
do ayvucué, o [apetite] por carne, do acyiguá. As qualidades do animal que contribuíram
como acyiguá para a formação da alma humana determinam o temperamento da pessoa em
questão.33

Contudo, acrescenta Nimuendajú, a alma “boa” dos adultos tem a possibilidade de


retornar ao mundo espiritual. Trata-se de um caminho iniciático, percorrido pelos pajés que
buscam ascender às regiões mais elevadas, “que, inspirados por sonhos e aparições,
apartaram-se dos [outros membros] de sua tribo, passando uma vida solitária, de jejuns e
danças rituais. (...) não só deviam abster-se de carne, como [também] de alimentação vegetal
pesada. Viviam somente de certas frutas, de caguijý [milho fermentado] e mel. (...) Devido a
esta forma de vida, seus corpos se fizeram leves; o acyiguá, alma animal, era subjugado,
enquanto o ayvucué tomava o caminho de onde viera: durante as danças de pajelança suas
almas abandonavam a terra e retornavam a Ñandecý, Ñanderyqueý ou Tupã”.34
A migração dos Guarani visa a chegar à “Terra sem Mal”. O paraíso guarani estaria
localizado ao leste, em algum lugar entre o Brasil e a África, Europa ou mais além ainda.
O deslocamento de pajés e um pequeno grupo de seguidores ou mesmo de tribos
inteiras movimenta indígenas morando no Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai, afirma
Nimuendajú:

Os fatos históricos só fazem confirmar o que os próprios índios sempre me


asseguraram: a marcha para leste do Guarani não se deveu à pressão de tribos inimigas;
tampouco à esperança de encontrar melhores condições de vida do outro lado do [rio] Paraná;
ou ainda ao desejo de se unir mais intimamente à civilização – mas exclusivamente ao medo
da destruição do mundo e à esperança de ingressar na Terra sem Mal.35

A tradição espiritual dos Apapocuva de que o fim do mundo é iminente está


diretamente ligada à busca da “Terra sem Mal”. A chamada cataclismologia guarani reúne

33
Ibid, p. 33.
34
Ibid, p. 61.
35
Ibid, p. 101.
54

cinco fenômenos: a conflagração, o desmoramento da terra, o dilúvio, a queda das trevas e a


chegada do Jaguar Azul. Os pajés as denominam mbaé megûa, expressão que os Apapocuva
traduzem como “desgraça, infortúnio”.
Um exemplo destas portentosas imagens é o desmoronamento da terra, que deverá
acontecer no futuro, acrescenta Nimjuendajú:

(...) antes de criar a terra, Ñanderuvuçú fez a yvy-itá, a escora da terra. Colocou uma
viga no sentido leste-oeste e outra, por cima, no sentido norte-sul. Pisou então sobre o ponto
de cruzamento deste yvyrá joaçá recoypý (cruz eterna de madeira) e encheu os quadrantes da
terra. Quando a terra tiver que ser destruída, Ñanderyqueý tomará a extremidade oriental do
braço inferior da cruz e a puxará lentamente para leste, enquanto o braço superior
permanecerá na sua posição original. Com isso a terra perde o seu suporte ocidental. Ao
mesmo tempo, um fogo subterrâneo começa a devorar o subsolo a partir da beira ocidental da
terra; um pouco adiante, suas labaredas alcançam a superfície e o trecho que ficou atrás
desmorona com estrondo. De início lenta, depois cada vez mais rapidamente, a destruição
avança de oeste para leste.36

Essas revelações sobre os fundamentos espirituais de um dos povos formadores da


atual nação brasileira foram publicadas em 1914. Até hoje não se sabe como Nimuendajú teve
acesso à mais famosa revista etnológica européia da época, a Zeitschrift für Ethnologie. Aos
31 anos de idade, sem título acadêmico, ele era um ilustre desconhecido no Brasil e na
Europa.
Em meados de 1914, estoura a Primeira Guerra Mundial na Europa. Mesmo submersa
nos conflitos, a comunidade etnológica registra a importância da obra. Até 1919, Nimuendajú
publica, além do livro, cinco artigos nessa revista. Ainda, é convidado para ser sócio vitalício
da seleta Sociéte dos Americánistes de Paris.
Assim, torna-se uma referência para os especialistas europeus em Etnologia,
especialmente para aqueles que lêem em alemão, idioma no qual os trabalhos foram
publicados. Em contrapartida, no Brasil durante décadas Nimuendajú é praticamente
ignorado, exceto pelo sociólogo alemão Herbert Baldus, e o etnólogo brasileiro Egon
Schaden, descendente de alemães. Somente 60 anos mais tarde o trabalho é publicado no
Brasil.

36
Ibid., p. 67.
55

Em 1987, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e a linguista Charlotte Emmerich,


ambos funcionários do Museu Nacional, traduzem o livro para o português. O conteúdo é uma
múltiple virada copernicana na Etnografia, apresentada no capítulo 5 desta biografia –
Criativo, autodidata, pioneiro.
Como não podia deixar de ser, a obra também apresenta deficiências e fraquezas,
aponta Viveiros de Castro:

Muita coisa nele, naturalmente, soa “datada”: certas escolhas vocabulares e escolhos
conceituais, certas ideias e juízos; certo compromisso (jamais profundo, e que depois
desapareceria) com a etnologia alemã de seu tempo, marcada pelo difusionismo e a
problemática dos estratos e círculos culturais. Os excursos [disgressões] comparativos por que
o autor envereda parecem hoje “selvagens” e, (...) atestam aqui, sobretudo, um domínio
incompleto do campo e uma formação errática, que se socorre de toda espécie de analogias
para buscar um fundo cultural pan-americano arcaico.37

Vivieros de Castro aprofunda a crítica:

O mbaé megûa - que Nimuendajú denomina de “cansaço vital” dos índios - é um


exemplo onde o autor mistura opinião própria e depoimento de terceiros. Nimuendajú conta
que o mbaé megûa estava presente em qualquer discussão sobre mitologia, mas também
como motivação para uma pajelança.
É como se mexer nesse tema fosse a própria razão de viver destes indígenas: “Certa
vez, o sábio Joguyroquý concluiu um discurso que me fizera sobre o fim iminente do mundo
dizendo ‘Quando penso no mbaé megûa, meu filho, queria mesmo era largar tudo, tirar até
minhas roupas, tomar somente meu maracá e cantar, cantar’.38

Ao interpretar essa manifestação religiosa, Nimuendajú continua opinando. Sua


verdadeira razão “está no pessimismo inconsolável desta tribo moribunda que, sem o saber, há
muito tempo que já se entregou. (...) Não é só a tribo dos Guarani que está velha e cansada de
viver, mas é toda a natureza”.
Em seus contatos com Ñanderuvuçú, os pajés “ouvem muitas vezes como a terra lhes
implora: ‘devorei cadáveres demais, estou farta e cansada, ponha um fim a isto, meu pai!’. E

37
Viveiros de Castro, p. xxi.
38
As Lendas, p. 70.
56

assim também clama a água ao criador (...) e assim todo o resto da natureza. Diariamente se
espera que Ñanderuvuçú atenda as súplicas da sua criação [de suas criaturas]”.
Esta postura espiritual-existencial dos apapocuva tem dupla origem, afirma
Nimuendajú. A primeira seria que “o germe da decadência e da morte da raça” já teria
existido antes do contato com os europeus, sugerindo com isso a existência de um processo de
transformações independendente das influências de cristãos.
A segunda começa justamente a partir desse encontro de culturas: “não devemos
esquecer quem, durante mais de três séculos, fez [determinou] a história dos Guarani:
conquistadores espanhóis, aventureiros de todos os países do mundo, jesuítas com seu sistema
que sufocava qualquer livre iniciativa, caçadores de escravos paulistas e seus aliados, os Tupi
do litoral; epidemias devastadoras e, finalmente, os Mbajá [no original, provavelmente os
Mbyá] e Kaingýgn [Kaingang] com suas campanhas bélicas – os Guarani sempre foram a
parte sofredora”.39

Filho de alemães e irmão indígena de Nimuendajú, o antropólogo Egon Schaden


concorda com a explicação deste sobre o “pessimismo” guarani: “Ora, de um índio acossado
pela idéia de que a terra está prestes a ser destruída pelo fogo, pelas águas ou mesmo pelas
trevas, e obcecado pelo mal que, em sua opinião, sempre e em toda parte se lhe pretende
fazer, não é possível exigir julgamento sereno e objetivo em suas relações com pessoas
estranhas”.
Mas acrescenta que Nimuendajú teria exagerado: “Baseado em minha própria
experiência, avalio bem as cores escuras e fantásticas em que os Guarani devem ter pintado a
Nimuendajú as suas atribulações. Talvez haja, pois, algum exagero em um ou outro episódio
(...)”.40. Schaden, porém, não dá exemplos desses “exageros”.

Sem entrar no mérito do diagnóstico sobre o “pessimismo” dos Apapocuva, Viveiros


de Castro chega a conclusão oposta à de Nimuendajú e Schaden. Sua opinião é que ambos
teriam “confundido o que nos parecer ser uma concepção trágica do mundo com seu
simulacro e contrafação, o pessimismo; talvez, depois a ter magistralmente analisado não
tenha Nimuendajú percebido que a cataclismologia Guarani tem atrás de si uma mistura muito
sutil de esperança e desânimo, paixão e ação, e que sua aparência negadora oculta uma
poderosa força afirmativa: em meio à sua miséria, os homens são deuses”.

39
Ibid, p. 131.
40
Schaden, in Apontamentos... p.11.
57

Ele conclui que “não importa: aqui, ao contrário do que fez em trabalhos posteriores,
Nimuendaju não se furtou a interpretar; suas descrições são carregadas de pathos, ele ousou
pensar o pensamento Guarani, refletir sobre ele com simpatia e emoção. Com isso, arrisca-se;
mas este é um risco que vale a pena”.41
Viveiros de Castro estabelece uma ligação direta entre a postura existencial de
Nimuendajú e o “pessimismo” Guarani. Ponto de partida constitui a adoção do nome
indígena, que significaria o abandono da origem europeia. Em troca, abraça a cosmogonia
indígena e sua tradução prática no dia-a-dia, uma amálgama que torna quase impossível
separar a obstinação e o desencanto dos Guarani do pessimismo de Nimuendajú.42

41
Viveiros de Castro, p.xxiv.
42
Ibid. p. xviii.
4 - No mato, sem dinheiro, sem apoio

As aventuras vividas por Nimuendajú durante seus contatos com os Apoapocuva-Guarani


tornam-se ainda maiores nas expedições posteriores a outras tribos. Essas viagens revelam
episódios de desespero pela falta de dinheiro, instantes de indignação devido à carência de
apoio institucional e material, mas também momentos de satisfação. Mostram também a sua
sensação de impotência perante as forças da natureza e o caráter humano, inclusive o próprio.
Deixam, por outro lado, entrever como ele desenvolve a habilidade de aceitar os fatos e, ao
mesmo tempo, improvisar para seguir rumo aos seus objetivos.

Anos depois, Nimuendajú arrependeu-se de ter "pacificado" os Parintintin.

Feito camaleão, Nimuendajú assume papéis diferentes ao longo do tempo –


inicialmente, indigenista; depois, colecionador de objetos etno-arqueológicos e, finalmente,
estudioso, como o identifica o antropólogo Luís Donisete Benzi Grupioni.
Na verdade, é a ênfase na atividade principal de cada época que muda. As outras
atividades continuam ativas, mas em segundo plano. Mesmo os desafios mudam na forma e se
mantêm no conteúdo ao longo do tempo.1

1
GR, Coleções e expedições vigiadas: Os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e
Científicas no Brasil, Hucitec, São Paulo, 1998, p. 187.
59

Prioritariamente indigenista

O primeiro período vai desde os contatos iniciais com os Apapokuva-Guarani (no interior de
São Paulo em 1905) até a “pacificação” dos Parintintins, no rio Madeira, em 1923: “(...)
Nimuendajú é, antes de tudo, um indigenista, ora ligado diretamente ao SPI, ora
movimentando-se por conta própria, embora contando já com algumas obras publicadas e
com algumas coleções depositadas em museus”, avalia Grupioni.
Em meados de junho de 1913, Nimuendajú ainda se desloca pelo sertão paulista e
matogrossense. Um dos seus principais feitos é a coleta dos mitos dos Apapokuva-Guarani,
que deram origem a As lendas da criação e a destruição do mundo segundo a religião
Apapokuva-guarani.
Outro resultado prático de suas expedições é a reserva criada em 1912 de quatro
aldeias Apapoucuva-Guarani e outros grupos indígenas em Avaí (SP). Em 1913, Nimuendajú
“é transferido para o Rio de Janeiro, servindo por alguns meses no Ministério da Agricultura e
de lá é enviado para Belém do Pará”.
Belém é a porta de acesso à Amazônia e ao cerrado, onde se localizam mais tribos
desconhecidas do que no Sudeste. Tudo indica que a mudança a Belém é uma decisão pessoal.
Cerca de 16 anos mais tarde, ele explica que a “(...) adaptação ao meio [ambiente] constitui
para o êxito dos trabalhos uma vantagem sobre as pessoas que, residindo em meios diferentes,
só vem à Amazonia para visitas de demora mais ou menos limitada e sempre preocupadas
com a sua volta. A Amazônia apresenta a particularidade de possuir para as suas empresas
[etnológicas] um único ponto de partida: esta capital [Belém], para onde convergem todas as
vias de comunicação”.2
Além disso, lá funciona desde 1871 o Museu Emilio Goeldi (atualmente conhecido
como Museu Paraense Emilio Goeldi). O início em Belém é duro para quem tinha vivido com
os Apapokuva-Guarani no sertão paulista.
Na mesma carta a Roquete Pinto, conta que “d [D]esde setembro do ano passado
[1913] me mantiveram absolutamente inativo [sem função], em Belém até que eu solicitei
transferência para um lugar qualquer onde precisassem os meus serviços de contatos com
indígenas”.

2
Carta ao diretor do Museu Nacional, Edgard Roquete Pinto, de Belém, 22/02/1928, cf. Welper, p. 44. A carta é
publicada conforme a ortografia atualmente em vigor. Nascido no Rio de Janeiro em 25 de setembro de 1884,
Roquete Pinto participou de uma expedição junto com Rondon, resumida no livro Rondônia, antropologia
etnográfica. Na década de 30, criou a Rádio Mec. Membro da Academia Brasileira de Letras, morreu no Rio de
Janeiro em 18 de outubro de 1954.
60

O ano de 1914 traz mais uma mudança geográfica: “Fui então deslocado para o
Maranhão, mas tenho certeza de que lá não me irá melhor [do que em Belém]”. Nimuendajú
faz levantamentos linguísticos das tribos Manaé do rio Ararandiu, Tembé do rio Acará
Pequeno e Turiwára do rio Acará Grande, todas no Pará. Mas também dos poucos Crengêz
residentes na aldeia Timbira Bacury, em Bacabal (MA). Estes vocabulários são publicados
junto com sua primeira obra em 1914 no prestigioso jornal Zeitschrift für Ethnologie.
Em 1915, ele adentra pela primeira vez uma aldeia canela, a Aldeia do Ponto, na
região do rio Corda (MA), assim como também a aldeia dos Timbira Bacaba, em Cajuapára,
nas nascente do rio Gurupy, e em Araparityua, na margem esquerda do Gurupi. Ele vai visitar
novamente a Aldeia do Ponto nos anos 30.
Nesse ano de 1915, é comissionado pela Inspetoria de Índios do Maranhão a realizar a
“pacificação” da tribo Urubu, mas acaba sendo demitido do SPI no mesmo ano (veja o
capítulo 6 – Preservar os indígenas). Esse é um divisor de águas na vida do indignado
Nimuendajú, que até então só ganhava um magro salário de funcionário público.

As informações sobre suas atividades profissionais neste período são escassas.


Grupioni diz que Nimuendajú passa a coletar objetos indígenas para vender a museus. Ainda
em 1915, forma entre os Aparaí sua primeira coleção etnográfica, vendida aos museus Goeldi
e ao da Universidade da Filadélfia, dos Estados Unidos3.
De 1916 a 1919, percorre a região dos rios Xingu, Iriri e Curuá, relacionando-se com
indígenas das tribos Juruna, Xipáia, Curuaya, Arana e Kayapó. A coleta de objetos da cultura
material destas tribos dá origem à primeira coleção vendida ao Museu de Gotemburgo, na
Suécia.
É quando, possivelmente, também acontece a sua iniciação na arqueologia indígena,
pois afirma num documento que acompanha essa coleção: “Os cacos de cerâmica atestam que
outros povos com cerâmica altamente desenvolvida moravam no Xingu e no baixo Iriri antes
da chegada das tribos Tupi (Xipaia, Juruna)”.4
Em 1919, tenta ir até as tribos Aiána, Upuruy, Tirió e Oiampy, no Amapa, integrando
a Comissão Colonizadora do Oiapoque. Por motivos desconhecidos, o chefe da comissão,
engenheiro Gentil Norberto, recusa sua participação. Sua condição de alemão terá despertado
suspeitas, pois no início do século 20 essa região fora motivo de disputa entre o Brasil e a
França.

3
GR, p. 177.
4
Declaração assinada por Nimuendajú em 02/05/1921 e arquivada no livro de coleções do Museu de
Gotemburgo em 22/08/1922. Uma outra coleção é vendida ao Museu de Stuttgart, da Alemanha, diz Grupioni.
61

Para as autoridades da comissão, possivelmente francês e alemão são iguais, embora


ambos já tenham se enfrentado na Primeira Guerra Mundial.5
Em 1920, acontece uma virada na vida de Nimuendajú: ele assume no Museu Emilio
Goeldi seu primeiro e único cargo de direção no serviço público. Grupioni atribui a decisão à
diretora Emilia Snethlage, cujas metas para modernizar o museu incluem a “revisão completa
das coleções etnográficas e arqueológicas do Museu, a organização de um inventário
completo das coleções etnográficas e a confecção de um catálogo que permita verificar a
ausência de um objeto em pouco tempo”.6
A sua curta permanência no cargo mostra-se frutífera para a instituição. A organização
que Nimuendajú cria naquele ano para as peças etnográficas e arqueológicas do Museu Goeldi
mostra seu pioneirismo, atesta levantamento feito em 2010. Os campos informativos e os
critérios de classificação por ele criados são utilizados ainda nessa data nas fichas
documentais do museu.7

Afazares burocráticos são demais para quem gosta da vida na floresta. Mestre em
cultivar relações estratégicas, ele sugere ao diretor geral do SPI, Luiz Bueno Horta Barbosa,
que gostaria de deixar o cargo recém assumido: “Há dois meses [05/1920] ocupo no Museu
Paraense o posto de chefe da seção etnográfica. Isto nada impede de estar pronto para o S.P.I.
quando o sr. de mim precisar, conforme já declarei”. Dito e feito. Em 1921, sai do Museu e
retorna ao SPI.8
Esse ano traz uma outra virada para Nimuendajú. Um engenheiro sueco sediado em
Belém, Gunnar Pira, aciona seu primo, Adolf Pira, em Estocolmo para oferecer ao Museu de
Gotemburgo peças arqueológicas.
É Adolf Pira quem intermedia por carta o primeiro contato com o diretor do museu,
Erland Nordeskiöld: “Conforme combinado, envio pela presente a lista de objetos embarcados

5
Nimuendajú, Relatório ao diretor geral do SPI, Luiz Bueno Horta Barbosa, Belém 23/07/1920, MI, filme 397.
p. 2. Veja também Sarney, José, e Costa, Pedro, A nova ocupação, pg. 229 em
http://www.senado.gov.br/senadores/senador/jsarney/Historia_Amapa/sarney_12_novaOcupacao.pdf
6
Oficio de Emilia Snethlage ao secretário-geral do Estado do Pará, em 19/12/1919, depositado na Biblioteca do
Museu Goeldi, GR, p. 178. Existem paralelos entre ambos: ela estudou história natural em Iena, cidade natal de
Nimuendajú, e veio ao Brasil em 1905, dois anos depois dele, cf. Corrêa. Em 1925, ela a elogia: “Eu não paro de
admirar e valorizar a modéstia e a coragem desta cientista”, cf. carta de 11/07/1925 ao diretor do Museu de
Gotemburgo, Erland Nordenskiöld, MG. Ela era tia do etnólogo Heinrich Snethlage, que conheceu Nimuendajú
pessoalmente em Belém em 1935, cf. carta de Nimuendajú ao diretor interino do Museu de Gotemburgo, Walter
Kaudern, Belém, 21/01/1935, MG.
7
Benchimol, Alegria, Nimuendajú, do “coração verde“ da Alemanha às matas verdes do Brasil, XI Encontro
Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, outubro de 2010, p. 13. Ela diz ainda que, em 1939/1940,
Nimuendajú trabalhou novamente no Museu. Nessa ocasião, ele reconheceu que enviara por engano ao Museu
Nacional peças pertencentes no acervo do Goeldi, oferecendo em troca outros objetos, cf. CS, p. 282.
8
Nimuendajú, Relatório ao diretor geral do SPI, Luiz Bueno Horta Barbosa, Belém 23/07/1920, MI, filme 397.
p. 7. GR, p. 178.
62

da coleção de Unkel, além de um mapa confeccionado por ele. Unkel chama-se Nimuendajú,
que é o seu nome entre os [índios] Guarani (...)”.9

A “pacificação” dos Parintintin


A venda dessa coleção ao museu de Gotemburgo abre oportunidades inimagináveis de
mudanças profissionais. Junto com o primeiro retorno de Nimuendajú ao SPI, são dois fatos
que, ao longo de três anos, se entretecem para fazer surgir logo depois uma nova etapa na vida
do pesquisador.
O terceiro fato acontece em setembro de 1921, quando é encarregado pelo Inspetor do
SPI de Manaus, Bento Martins Pereira Lemos, para proceder à “pacificação” dos Parintintin,
no rio Madeira.

Os Parintintin eram temidos na área do rio Madeira.

9
Estocolmo 24/06/1921, MG, traduzida do sueco para o espanhol pela antropóloga argentina Gloria Esteban
Johansson e por mim para o português.
63

Antes mesmo de começar, ele rompe a tradição que mandava criar um posto longe da
aldeia indígena: “O pacificador tem de estabelecer-se permanentemente no território della [da
aldeia] e obrigá-la com esta medida a entender-se pouco a pouco com elle [o “pacificador“],
depois de ter se convencido da inexpungabilidade da sua posição e das vantagens que a
permanência delle traz para a tribo toda”.10
A inovação leva-o a entrar em choque com capitão Eduardo Amarante, que anos atrás
fracassara ao montar uma base entre os indígenas Mura-Pirahã, adversários dos Parintintin.
Este confronto com a burocracia brasileira será mais perigoso para Nimuendajú do que o
contato com os arredios indígenas, pois Amarante é genro do criador do SPI, o então tenente-
coronel Cândido Rondon 11.
Em março de 1922, Nimuendajú instala o posto às margens do igarapé da Traíra,
afluente do rio Alto Maicy-Mirim. Exatamente como queria, pois, na outra margem, está a
maloca dos Parintintin. O segundo passo de sua estratégia é levantar um posto resistente a
invasões. Essa incomum construção consistia em uma casa com teto de zinco à prova de
flechas, cercada com arame farpado e, curiosamente, dotada de uma porteira aberta.

Posto fortificado do SPI, à beira do rio Mayci-Mirim, visto da aldeia Parintintin.

10
Nimuendajú, Curt, Os índios Parintintin do Rio Madeira, Journal de la Societé des Américanistes de Paris,
Nouvelle serie, XVI, p. 213, 1924, Paris.
11
Lima, p. 170.
64

Durante dois meses, sucedem-se os ataques dos Parintintin a partir da mata


circundante. Até que, em 28 de maio, às 10 horas, Nimuendajú coloca uma bacia cheia de
miçangas à beira do igarapé que separa o posto da maloca.
Os índios aceitam os presentes e recebem, além disso, machados, terçados e facas. Em
troca, oferecem uma coroa de penas.
Animado, Nimuendajú decide dar o passo decisivo:

Perguntei se não estavam com fome e, como respondessem afirmativamente, dei-lhes


três tigelas com farinha d`água, farinha de tapioca e açúcar, a primeira dádiva que eles
resolveram receber diretamente das minhas mãos. Retiraram-se para um pequeno limpo
[clareira] a uns 20 passos, puseram as tigelas no chão, dançaram um instante em roda [em
torno] delas e se acocoraram para comer um pouco. Depois vieram de novo para junto de
mim, pediram ainda mais isto e aquilo e, enfim, lá pelas 15h 30m, se retiraram em paz e
carregados de brindes.
O grande milagre estava feito: as feras indomáveis, os antropófagos com os quais só se
pode falar pela boca do rifle tinham pacificamente conversado e trocado presentes comigo
durante quase três horas!

Primeira foto dos “indomáveis” Parintintin, à beira do posto do igarapé da Traíra.


65

No dia 12 de junho de 1922, ele passa a direção do posto ao ajudante Amaro, que fica
com mais cinco homens, e retorna a Belém, “afim de tratar da minha saúde e dos meus
negócios particulares”.12
Dois meses depois, Nimuendajú volta às pressas ao posto avançado. Na sua ausência,
os contatos resvalaram para relações sexuais dos funcionários do SPI com as indígenas. Os
homens eram achincalhados e ridicularizados pelos sertanistas. Nimuendajú disciplina os
funcionários e, ao mesmo tempo, demonstra sua autoridade perante os indígenas.
Ao explicar a estes que o chefe que ordenou a expedição não quer guerra, mas sim
paz, os Parintintin acorrem em bandos ao posto para selar o fim das hostilidades.
A crise, porém, espreita bem longe do posto do rio Maicy. Oficialmente, os louros da
pacificação ficam com o antecessor de Nimuendajú, afirma o cientista Manoel Nunes Pereira.
Além disso, o general Rondon mandara um telegrama a Manuel Lobo, seringalista instalado
perto do posto de pacificação: “Peço-vos aceitar com bondade mais vivos agradecimentos
pelo valioso concurso continuais nos prestar na pacificação indios parintintin chegando a
termo com tamanha felicidade de um sonho pt tão longa campanha cheia de peripécias
assombrou desde manobra dirigida pelo capitão [João] Portátil acaba finalmente alcançar
immorredouro triunfo para glória do Brasil e sossego da população laboriosa Madeira abraço-
vos efusivamente pela vitória final em que colaboraste com sábio patriotismo e amor ao
indio”.13
Nunes Pereira, encarregado em 1946 de investigar o falecimento de Nimuendajú no
Alto Solimões, reclama do que considera uma omissão de Rondon: “Mas nenhuma palavra a
Nimuendajú!”.
Independente da atitude de Rondon, o SPI tem orçamento estreito, as despesas do
posto e os presentes para os indígenas são pagos justamente pelo seringalista Manuel Lobo.
Nimuendajú vê-se acuado e propõe a retirada organizada, no que é prontamente apoiado pela
direção do SPI.
Assim, no início de 1923, termina a inacabada “pacificação” dos Parintintin.
Nimuendajú é demitido pela segunda vez do SPI. Em 1924, revela o seu estado de espírito ao
antropólogo alemão Hermann Dengler: “Nunca mais eu vou participar da pacificação de uma
tribo, disse-me Nimuendajú em [Belém do] Pará”.14

12
Nimuendajú, Os índios Parintintin, pp. 217-219. Entre outros “negócios particulares”, casar com Jovelina
Nascimento.
13
Pereira, Manoel Nunes, Curt Nimuendaju: síntese de uma vida e de uma obra, Belém, 1946, p. 35. Ele não
informa a data do telegrama.
14
Dengler, Hermann, Eine Forschungsreise zu den Kavahib-Indianern am Rio Madeira, Zeitschrift für
Ethnologie, Vol. 59, 1927, p. 15.
66

Nimuendajú acredita que a razão da debacle é a sua condição de “alemão”, desafaba


com seu ex-subordinado Garcia. Trecho da carta está no capítulo 6 – Preservar os indígenas.
Porém, é possível que Nimuendajú tenha forçado a sua saída do processo de “pacificação”.
Antes do retorno ao posto do Maicy-Mirim em setembro de 1922, ele combinara com o chefe
do SPI que, até janeiro do próximo ano, voltaria a Belém porque tinha compromissos
assumidos com o diretor do Museu de Gotemburgo.15
O fim desse tumultuado ciclo no SPI muda sua vida profissional. Até então, o salário e
o apoio institucional do SPI, mais as coleções vendidas ao Museu Emilio Goeldi, permitiram-
lhe ser um indigenista com uma organização relativamente simples e contando com a infra-
estrutura desses órgãos públicos.

Preferencialmente colecionador

Na nova fase, Nimuendajú dá crescente prioridade à coleta de objetos utilizados pelos


indígenas que espelham a vida da tribo. São instrumentos musicais, ferramentas, armas,
brinquedos, que representam o que se convencionou chamar de cultura material. Essa coleta
soma-se ao levantamento de lendas, mitos, práticas mágicas e fundamentos religiosos – que
ilustram a vida anímico-espiritual de uma etnia.
A difusa figura do colecionador profissional, aliado ao estudioso, vê-se reforçada pelos
acordos feitos com vários museus. O primeiro é o Museu de Gotemburgo, com cujo diretor, o
barão Erland Nordeskiöld, Nimuendajú mantém acordos, formalizados caso a caso em longas
missivas entre Belém e Gotemburgo. Nos primeiros anos, a coleta etnológica é substituída por
excavações arqueológicas.
Curiosamente, os maiores achados resultam de viagens nos primeiros anos da sua
tempestuosa relação com Nordenskiöld. De 1923 a 1926, ele localiza 65 sítios arqueológicos
na área de Santarém (PA), às margens do rio Tapajós, e outros tantos no arquipélago próximo
à ilha de Marajó (PA). Várias peças estão até hoje expostos no Museu de Gotemburgo. Os
resultados mais relevantes constam do capítulo 5 – Criativo, autodidata, pioneiro.

Os sucessos arqueológicos não escondem o fato de que as relações entre ambos se


deterioram rapidamente. De um lado, Nimuendajú se ressente da estreiteza financeira para
realizar as expedições. Do outro, da ausência de uma situação definida. Demitido em 1922 do

15
Manaus, 12/09/1922, MG.
67

SPI, no ano seguinte rejeita a sua contratação pelo Museu Nacional, mas tenta conseguir um
contrato com Gotemburgo. Nordeskiöld não se pronuncia.16
No segundo semestre de 1924, ele exige com dureza germânica clareza do granítico
etnólogo sueco: “Eu repito mais uma vez: não tem a ver se eu recebo sumas pequenas ou
grandes, mas a exata definição da minha relação de trabalho. Após cada expedição, a situação
torna-se cada vez mais aguda para mim e por isso não posso mais protelar uma decisão, a
menos que eu vá empobrecer definitivamente se continuar com este método de trabalho, o que
certamente não é a sua intenção. EU QUERO SABER CLARA E EXATAMENTE O QUE É
MEU E O QUE É DO MUSEU. [sic]”.17

Após anos esperando definições, Nimuendajú peita o diretor do museu de Gotemburgo.

A resposta tem o mesmo teor das anteriores. O barão evita assumir uma posição clara:
“Dias passados enviei ao senhor 1 mil coroas suecas. (...) Eu lhe envio o máximo que eu
posso, mas confesso que são valores insignificantes”.18 Na mesma carta, Nordeskiöld conta
orgulhoso que o museu gastou 1 mil coroas exclusivamente para publicar um único artigo

16
Carta de Nimuendajú sem data, que segundo anotação a lápis seria de 8/9/1923, MG. A de Nordenskiöld é de
27/10/ 1923, MG.
17
Belém, 06/07/1924, MG.
18
Gotemburgo, 01/12/1924, MG.
68

numa revista sueca. É o mesmo valor que remete a Nimuendajú para viajar, pesquisar e tirar
seu sustento. Ele, porém, aceita o jogo. Só que em junho de 1925, em meio dos Palikur, na
região do Oiapoque (AP), pede, desesperado, quinhentos mil-réis (500$000) a Carlos Estévão
de Oliveira, amigo e diretor do Museu Emilio Goeldi.19 Em setembro, retorna a Belém,
trazendo uma malária que o deixa prostrado quatro meses na rede.20
Quando Nordeskiöld sugere a realização de outras pesquisas sem pagar mais, ele
explode: “Se eu for arruinar definitivamente a minha saúde na minha idade [ele tem 43 anos]
mantendo as atuais expedições, onde é que está o ganho material para mim para poder viver o
resto da minha vida? Sim, eu vivi muito modestamente durante os três anos que trabalhei para
o Museu de Gotemburgo, mas não possuo nada. (...) A escolha de um trabalho de campo
nunca foi influenciado pelo temor da febre [malária] (...) Mas se agora eu escolhesse a área
dos índios Kasuenã no [rio] Trombetas isso seria suicídio”. 21
A resposta do barão sueco é igualmente virulenta: “Eu pensei que o senhor tivesse
mais interesse em indígenas vivos do que nos restos dos mortos. Por isso, sugiro que o senhor
mesmo escolha a tribo que deseja visitar. Isso quem escolhe é o senhor. Eu não posso avaliar
daqui [da Suécia] qual é a melhor região”.
Gunnar Pyra, o engenheiro sueco que intermediou o contato entre ambos, escreve a
Nordenskilöd, intercedendo por ele: “(...) Apesar do seu modo quase ascético de viver, até
hoje [Nimuendajú] não tem desviado um centavo sequer do dinheiro que recebeu do
senhor”.22
Nem o relato do seu patrício de Belém muda a postura do barão. Ou talvez até
precipita a clara posição que, finalmente, Nordenskiöld assume em março de 1926: “Não
existe a menor possibilidade de o museu contratá-lo ou de dar-lhe alguma garantia futura. Se
o senhor quiser continuar trabalhando conosco, posso lhe garantir 3 mil coroas para janeiro do
próximo ano e mais 3 mil em junho. Isto também poderia ser feito nos anos seguintes, mas
não tenho a coragem de fazê-lo, porque para isso deveria procurar [doações de] pessoas
físicas”.23
A justificativa é surpreendente. Na década de vinte, a industrialização tardia da Suécia
cria a riqueza material que a tira da posição de um dos mais miseráveis países europeus do
início do século vinte. Nimuendajú lê a carta num hospital em Manaus. Sob os efeitos de

19
Aldeia do Uaçá, 23/06/1925, p. 81, CS.
20
Belém, 25/09/1925, MG.
21
Belém, 19/11/1925. A carta do barão é de 22/10/1925. Ambas no MG.
22
Gotemburgo, 17/12/1925, MG. A carta de Pyra é de Belém, 17/02/1926, cf. Ryden, In Pursuit... p. 10.
23
Gotemburgo, 12/03/1926, MG.
69

elevadas doses de quinino para combater a nova malária, adquirida durante a estadia de três
meses entre os Mura, informa que deseja continuar coletando para o Museu.
A resposta do barão a essa carta traz mais uma desagradável surpresa para
Nimuendajú: “Em dezembro, eu viajo junto com o dr. Linneé e a minha mulher para o
Panamá e de lá para Maracaibo, para realizar pesquisas na Colômbia e na Venezuela. Eu
espero encontrar lá o elo entre a curiosa cultura que o senhor conheceu em Santarém e a
cultura indígena na América Central”.24
A mensagem não poderia ser mais clara: Nordeskiöld quer ficar com os louros se a
hipótese formulada por Nimuendajú for confirmada. A idéia do barão é que Linneé chegaria
até o rio Amazonas a partir da Venezuela, enquanto que Nimuendajú deveria dirigir-se à área
povoada pelos índios Uaupés e Uraricoera, no rio Negro, pois o etnólogo alemão Koch-
Grünberg teria achado lá cerâmica muito curiosa.
O papel reservado a Nimuendajú é o de menino de recado, fornecendo cerâmica para
fundamentar a teoria que agora passou a ser de Nordenskiöld. Conscientemente ou não, o
pesquisador lança mão de um ditado prussiano “Fale sim, mas faça não”, na medida em que
responde: “É uma enorme alegria saber que eu ainda posso ajudar e com prazer irei pelo Rio
Negro pesquisando em sua direção”. Este é o “sim”.
O “não” é que, em dezembro, condiciona a pesquisa pelo Rio Negro ao recebimento
até janeiro seguinte das 9 mil coroas que Nordenskiöld prometera no lugar de 3 mil iniciais. A
carta é enviada à Universidade de Berkeley, Estados Unidos, onde Nordenskiöld prepara a
viagem à Colômbia.25
O cenário para o rompimento que se aproxima está montado. Ao receber um minguado
cheque de 3 mil coroas, Nimuendajú coloca Nordenskiöld contra a parede: “Como o valor
recebido [3 mil coroas] mal dá para a viagem prevista ao Rio Negro, ainda considerando que
não posso contar com a prometida subvenção do SPI, peço ao senhor a gentileza de me
informar com a maior rapidez possível a validade da frase „9.000 coroas em Janeiro e em
Junho“. 26
O desencontro é completo. Neste final de janeiro de 1927, Nimuendajú sobe o Rio
Negro, rumo à Venezuela. Pela programação montada unilateralmente por Nordenskiöld, o
barão deveria encontrar-se em algum lugar entre os Estados Unidos e a Colômbia. E o único

24
Gotemburgo, 20/07/1926, MG. A carta de Nimuendajú é datada de 11 de junho.
25
Belém, 04/08/1926 e Belém, 02/12/ 1926, ambos no MG. Em Berkeley, Nordenskiöld mantém contato com
Robert Lowie, personagem fundamental na vida de Nimuendajú anos mais tarde.
26
Belém, 20/01/1927, MG.
70

elo de ligação entre ambos está na Suécia, do outro lado do Oceano Atlântico, a milhares de
quilômetros.
Uma dramática carta de Nimuendajú a Nordenskiöld em março de 1927 mostra outra
escorregada do barão: “As últimas [notícias suas] recebi ainda dos Estados Unidos. Portanto,
não sei até aonde o sr. Linné estende suas pesquisas; eu li no jornal S.A.P. [Societé des
Americanistes de Paris] que ele queria voltar COMIGO [sic] do Orinoco via Rio Negro”. 27
Nimuendajú ignora que Nordenskiöld já denunciara o acordo verbal que existia entre
ambos. Em junho, só lhe resta passar recibo: “Hoje recebi a sua carta de 24/02/27, na qual o
senhor me desliga dos trabalhos para o museu. Para poder mandar as coleções da atual viagem
ao Uaupés e Içaná é preciso que eu receba algum dinheiro, porque apesar da subvenção do
SPI esta viagem me dá novamente prejuízo e não estou em condições de pedir dinheiro
emprestado para pagar o transporte [até Belém], o empacotamento e o envio [à Suécia]”.
O drama humano continua. A aparente calma de Nimuendajú em nada delata seu
profundo abatimento. Ele retorna doente da expedição ao Rio Negro e fica inativo quase um
ano até junho de 1928 em Belém. Possivelmente, sofre as primeiras manifestações da
depressão psicológica que se tornará visível no final de sua vida.
Enquanto isso, Nordenskiöld interrompe a expedição da discórdia porque, conforme
conta seu substituto em Gotemburgo, Gösta Montell, o barão “sofreu uma infecção sanguínea
maligna, foi operado no Panamá e assim que melhorar vai voltar à Suécia”.28
É o feitiço se virando contra o feiticeiro: em fevereiro o sueco rompera relações com
Nimuendajú porque este não atingira os resultados esperados e, meses depois, é Nordenskiöld
quem se encontra em idêntica situação. Mas, claro, continua no cargo de diretor do museu.

Os museus alemães

Antes de embarcar para o Rio Negro em dezembro de 1926, Nimuendajú pressente o fim da
cooperação com Gotemburgo. Em busca de alternativas, pede então ao pesquisador suíço
Felix Speiser que o apresente a museus alemães. Speiser escreve ao diretor do museu de
Dresden, elogiando os conhecimentos etnológicos e os baixos custos das expedições de
Nimuendajú. Interessado, Fritz Krause, agradece a Speiser, mas pede primeiro informações a
Nordenskiöld.29

27
São Gabriel da Cachoeira,17/03/1927, MG.
28
Belém, 03/06/1928, e Gotemburgo, 01/09/1927, MG.
29
Carta de Speiser, sem data, p. 243. Krause Leipzig, 18/02/1927, cf. DU, 245.
71

A resposta do barão é um blefe: “trata[-se] de um excelente pesquisador, que com


poucos recursos [financeiros] realizou um excelente trabalho para nós. A razão pela qual
rompi relações com ele é que não consegue se relacionar com os brasileiros. Provavelmente é
muito honesto para fazer-lhes um agrado quando isso for necessário. Com os indígenas, ao
contrário, entende-se perfeitamente. Seus trabalhos escritos foram formulados de maneira
independente”. Enquanto isso, Nimuendajú discute com o Museu Nacional sua contratação,
mas usa o pouco inteligente método de falar de outras negociações e pedir pressa a Roquette
Pinto, diretor do museu. Claro, não tem acordo.30
No primeiro contato com o Museu de Leipzig, são visíveis as cicatrizes deixadas pelas
experiências com o museu sueco. A Krause conta que o trabalho:

(...) deixou-me um severo prejuízo (....) Nordenskiöld havia me prometido que a


metade dos pagamentos seria para minhas próprias despesas. Como eu viajo a primeira
metade do ano e a outra dedico à organização do material coletado, vê-se que eu não poderia
ter uma outra ocupação para outra instituição; (...) tivesse eu tirado imediatamente [uma parte]
para [cobrir] minhas despesas da metade das remessas, não teria ficado dinheiro suficiente
para a viagem e [para] as despesas decorrentes do envio das coleções. O senhor pode ler em
todos os meus trabalhos que não sou “traficante” e que a etnologia não é para mim um
negócio. Os meios financeiros colocados à disposição pelo museu de Gotemburgo eram
simplesmente insuficientes. (...)31

Aqui fica claro que Nimuendajú não consegue achar o ponto de equilíbrio entre o
aspecto financeiro (pagamento de despesas mais seu ganho pessoal) e a faceta científica. Esse
fugidio meio-termo só iria atingir uma única vez anos mais tarde.
Em julho de 1927, Nimuendajú assina um contrato com três museus alemães (das
cidades de Leipzig, Dresden e Hamburgo). O objetivo é realizar uma única expedição para
explorar a vazante do Tocantins ou a jusante do Rio Negro, a critério do pesquisador. Ele
receberá 9 mil Reich Mark pelo trabalho, a ser feito em 1928. Se faltar dinheiro durante as
viagens, ele deve solicitar um adicional e, diante de uma resposta negativa, poderá
interromper as pesquisas sem sofrer prejuízos financeiros.32
É a primeira vez que ele assina um contrato, inclusive com cláusulas prevendo uma
eventual rescissão. Possivelmente isto faz surgir um Nimuendajú bem humorado na sua

30
Gotemburgo, 15/11/1927, p. 241, DU; e Belém, 22/02/1928, MN.
31
Carta a Fritz Krause, de 24 de abril, talvez de 1927, p. 235, DU.
32
Carta de Krause a Nimuendajú, Leipzig, 19/07/1928, DU, p. 237.
72

primeira expedição para os museus alemães. No caminho até os grupos Jê no Maranhão, ele
faz uma curta crônica dessa inusitada viagem:

A distância entre Coroatá e Pedreiras é de 80 km em linha reta, mas, devido à


carreira vertiginosa do caminhão, gastamos mais de 6 horas e meia para chegar ao nosso
destino. Porque de hora em hora foi preciso parar para consertar o carro; e como mais ou
menos de meia em meia legua existe na beira da estrada uma taberna (síria, que dúvida!),
faziam-se estes consertos, sempre que possível fosse, na porta de alguma delas, e os
passageiros para não perderem a paciência, e o chaufeur para acalmar os nervos, matavam o
bicho [da sede], bebendo cachaça a valer. (...) Finalmente, porém, ele e os seus dois
ajudantes concordaram que era muito conveniente apressar a viagem para ver se podiam
ainda voltar para dormir na casa da fulana de tal, rapariga esta que, segundo a descrição
minuciosa deles... 33

Essa expedição inicia uma série de viagens a áreas habitadas por índios Canela e
Ramkokamekra, marcadas pela complexidade logística. Nimuendajú coleciona até para seis
museus ao mesmo tempo (os três alemães, mais Gotemburgo, Goeldi e Museu Nacional) e
pesquisa para escrever três obras fundamentais sobre as tribos do grupo linguístico Jê.

A operacionalidade e o financiamento se revelam igualmente intrincados, confusos.


Aos 45 anos de idade, o sertanista que trabalhara para o SPI e coletara peças arqueológicas e
etnográficas passa a reunir material e realizar observações para elaborar monografias sobre
culturas indígenas.
É assim que, depois de ir às aldeias de Bacaba, Pikobyé, Krikateye, Guajajara e
Timbira Kreapímkateye, Nimuendajú chega no inicio de março de 1929 a um paraíso
indígena:

Ponto, a aldeia dos Remkókamekra, é o maior povoado indígena que até agora tenho
visto: compõe-se de 31 casas com mais de 300 habitantes. As casas formam um círculo de
300 m de diámetro. A aldeia divide-se em dois partidos (mehakrá) exogâmicos e matriarcais:
os Harákateye (= Gente do Levante) e os Küikateye (Gente do Poente), dos quais os primeiros
formam o semicírculo oriental e os segundos o ocidental. Com intervalo de 3-5 anos
celebram-se simultâneamente em ambos os Mehakrá as cerimônias da iniciação dos moços,

33
Barra do Corda, 14/10/1928, CS, p. 119.
73

que duram diversos meses, ficando os moços durante todo este tempo separados do resto da
população. Os iniciados formam para o resto da sua vida, casados ou solteiros, uma turma
organizada com um “primus” e um comandante que é um homem mais velho.34

Vista panorâmica da aldeia Pedra Branca, dos Kenpokateye, construída em círculo.

Aldeia do Ponto, uma mina etnográfica

Aí estão algumas linhas da primeira descrição da vida social de uma tribo Jê. Isto é, vários
anos antes de Nimuendajú conhecer Lowie, que, segundo alguns estudiosos, o teria induzido
aos estudos sociológicos.
Muito impressionado pela aldeia do Ponto, ele oferece uma visão panorâmica de sua
localização no sertão maranhanse: “Sobretudo na época de festa, estando limpos todos os
caminhos e praças, a aldeia apresenta um aspecto muito bonito e pitoresco. Qual uma roda
enorme com raios e cubo, avista-se ela, estendida na chapada, quando, vindo de Barra do
Corda, o viajante alcança a última elevação ao norte, enquanto a Serra dos Alpercatas cerra os
fundos do quadro”.35

34
Carta sem data, enviada a Krause, cf DU, p. 238. O texto é idêntico à carta de Barra do Corda, 01/04/ 1929,
CS, p. 140.
35
A Habitação dos Timbira, Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro,
vol 8, p. 77, 1944. Ele atribui enorme importância à estrutura das aldeias do grupo Jê. Na publicação The dual
Organisations of the Ramkokamekra (Canella) of Northern Brazil, ele divulga o desenho que fez da aldeia
Ramkokamekra – que se assemelha ao que seria uma célula humana. Ja a aldeia Xerente é comparada a uma
ferradura, cf. The Associations of the Apinaye.
74

Outro texto de Nimuendajú a apresenta como um capítulo indígena de As Mil e Uma


Noites: “Todos os dias e todas as noites pode-se na aldeia do Ponto observar cantigas, danças
e exercícios esportivos. A corrida de tora à qual assisti dúzias de vezes nada tem a ver com a
iniciação dos moços e muito menos ainda é condição para o casamento, como sempre se crê.
Vi-a executada por meninos de 12 e vovôs de perto de 50 anos. A aldeia do Ponto é, numa
palavra, uma mina etnográfica. Ela é tambem o único lugar onde ainda hoje se poderia estudar
as instituições sociais e religiosas dos Timbira em toda a sua extensão. (...)”36

Uma corrida masculina de toras registrada por Nimuendajú.

Mesmo em estado de graça etnológica, Nimuendajú reclama do apoio financeiro dos


museus alemães em carta ao padre Wilhem Koppers, editor da renomada publicação científica
austríaca Anthropos. Para espanto de Nimuendajú, a carta é publicada na revista.
A indignada resposta de Krause, que coordena a ação dos museus alemães, é
contundente:

As observações do senhor Nimuendajú sugerem interpretações como se os três museus


não tivesssem meios financeiros suficientes para apoiar o viajante ou estivessem desiludidos
em suas baratas expectativas. (…) Devo chamar a atenção de que, desde o início, os três
museus aportaram mais dinheiro do que o apontado por Nimuendajú (nove mil marcos no
lugar de oito mil); que já em abril de 1929, quando Nimuendajú fez a primeira observação de
que a expedição não seria financeiramente compensadora para ele, [os museus] tomaram a
iniciativa de pagar um adicional, no valor de 1 500 marcos, após a entrega das coleções. Os

36
DU, p. 239.
75

pedidos de socorro do viajante, que chegou doente e sem dinheiro ao Maranhão [sic], foram
atendidos em sete dias pelos museus e em mais nove [dias] fora essa suma a ele enviada.37

Koppers tenta agradar a gregos e troianos numa carta do número seguinte da revista.
Mas Nimuendajú deixa de publicar em Anthropos. A nível de resultados materiais, contudo,
no final, entre mortos e feridos, salvam-se todos: o Museu de Dresden recebe a coleção
principal dos Ramkokamekra; o de Leipzig, a dos Apinayé; e o de Hamburgo, peças do grupo
Pukóbye.38
No segundo semestre de 1929, Nimuendajú está no Alto Solimões, na fronteira com o
Peru e a Colômbia. É o primeiro contato com a tribo dos Ticuna, à qual ele dedicará suas
últimas expedições e onde virá a falecer em 1945.
Em janeiro de 1930, Nimuendajú retorna às tribos Jê do sertão maranhense, financiado
pela segunda e última vez pelos museus alemães. Rompendo sua tradição, durante os oito
meses desta expedição, Nimuendajú só se queixa uma única vez da falta de dinheiro.39
A tranquilidade econômica e a boa organização acabam logo. Pouco antes do Natal de
1930, os museus alemães denunciam o contrato, o que leva Nimuendajú a voltar a oferecer
coleções.
Ele escreve inclusive a Nordenskiöld: “(...) o professor Reche [substituto de Krause]
informou via telegrama que não dispõe mais de recursos para financiar a coleção. Vou assistir
à cerimônia de iniciação de jovens e comprar um total estimado de 500-600 peças, entre elas
máscaras da dança ritual dos Apinaye, que passarão a ser da minha propriedade. O senhor
teria eventualmente interesse em comprar a coleção?” 40
O contrato com os museus alemães, contudo, cria problemas, mesmo depois de
denunciado unilateralmente. Em janeiro de 1932, Nimuendajú envia a monografia Os Timbira
à Alemanha, mas sem fé de vê-la publicada. Ele propõe fixar um prazo para sua publicação,
após o qual teria liberdade para usá-la, mas nunca teria recebido resposta.41 Surge assim a
lenda etnográfica de que o manuscrito sobre os Timbira teria desaparecido. Nos anos 40,
cansado de esperar, ele simplesmente readapta o original em alemão e o publica em inglês.

37
Carta Nimuendajú, de 02/04/1929, é divulgada em Im Gebiete der Gê-Völker im Inneren Nordost Brasiliens,
Anthropos, v. XXIV, 1929, p. 672. A carta de Krause, Leipzig, 19/10/1929, in Anthropos, v. XXV, 1929, p 1104.
38
Indianer Brasiliens – Ausstellung des Staatlichen Museums für Völkerkunde Dresden zum 100. Geburtstag des
Jenenser Indianerforschers Curt Unckel-Nimuendajú, 1983-1984, Dresden, p. 25.
39
Carta de Belém, 16/12/1929, MG. Apesar do grave desentendimento do ano anterior, Krause propõe essa
expedição, cf. Indianer Brasiliens, p. 25. Nimuendajú pede a Carlos Estevão uma remessa de “dois contos de
réis”, cf. Barra do Corda, 05/08/1930, p. 176, CS.
40
Belém,17/12/1930, MG. Em novembro do ano seguinte, Nordenskiöld recebe 1246 objetos dos Apinayé e
Ramkokámekra, pagos em janeiro de 1932, cf. MG.
41
Belém, 16/01/1932, MG.
76

Só em 1983 o Museu de Dresden se pronuncia. Um magro livro comemorativo do


centenário de nascimento de Nimuendajú traz a sua versão do fim do relacionamento
etnográfico, em conexão com o manuscrito: “Krause também reconheceu o elevado valor
científico deste trabalho [Os Timbira], para cuja publicação contudo não havia meios
financeiros suficientes. (…) Nimuendajú estava realmente muito irritado com o não
pagamento dos honorários pela publicação do manuscrito, que ele precisava urgentemente
para pagar suas contas e empreender sua viagens. A situação econômica na Alemanha ficara
cada vez mais difícil e não permitia mais financiar expedições, de tal forma que a frutífera
cooperação com ele chegou ao fim”.42
Ainda em 1932 Nimuendajú recebe uma desagradável notícia. Em meio a pesquisas
numa aldeia canela, chega uma carta do etnólogo sueco Henry Wassen, informando que “(...)
há quatro semanas que Nordenskiöld está hospitalizado devido a uma urgente operação do
estômago”. Na mesma época, Nimuendajú também adoece: “Uma epidemia de malária
atingiu a aldeia e matou, entre outras, a minha mãe adotiva Pebré. (...) Eu também acabei
ficando doente e as dores do fígado e do baço impediram-me de visitar os Canela”.43
Em meados de julho, Wassen anuncia a morte do barão Nordenskiöld, que, do leito do
hospital, pediu que Nimuendajú recebesse um livro: “(...) ele queria que o museu lhe
oferecesse uma boa obra etnográfica, especialmente interessante do ponto de vista humano.
Ele queria que o senhor estivesse em contato com as correntes modernas da ciência europeia,
porque ele acreditava que o senhor vivia muito isolado no Brasil”.44
O impacto terá sido muito forte para Nimuendajú.
Desejoso de conhecer o barão pessoalmente, ele já o convidara pelo menos três vezes a
visitar o Brasil. Ainda em 1930, cansado de tantas negativas, Nimuendajú convida-se: “eu
desejo muito poder usufruir alguma vez durante algumas semanas do tesouro da biblioteca do
Museu de Gotemburgo. Mas vai ficar um inocente e eterno desejo. Já fazem 28 anos que
estou no Brasil e até agora não tive os meios [financeiros] para sequer voltar à Alemanha,
nem falar de visitar a Suécia”.45 Cinco anos mais tarde, ele estará na Alemanha e na Suécia,
mas o barão já morrera.
Em duas linhas, Nimuendajú resume a Wassen sua tristeza: “(...) Com sua morte eu
pessoalmente perdi o único apoio que tinha achado no meu solitário caminho profissional”.

42
Indianer Brasiliens, p 25.
43
Gotemburgo, 07/04/1932 e Boa Vista, 13/05/ 1932, ambas MG. Em 1927, após o rompimento, os dois ficaram
doentes ao mesmo tempo.
44
Trata-se de A vida sexual dos salvagens, de Bronislau Malinowski, cf. Gotemburgo, 19/07/1932, MG. Esse
cientista é tido como pai do método de observação participante, na verdade lançado e praticado pela primeira vez
por Nimuendajú, cf. capítulo 5 - Criativo, autodidata, pioneiro.
45
Barra do Corda, 03/06/1930, MG.
77

No mesmo dia, escreve uma longa e atenciosa carta ao etnólogo sueco Karl Gustav Izikowitz,
que lhe solicitara informações sobre instrumentos musicais, e pede “o grande favor“ de lhe
enviar uma foto do falecido barão.46
Talvez tenha ficado ressentido com Wasen, pois, um mês depois, confessa a Carlos
Estévão: “o que eu não sabia era que Nordenskiöld morreu em consequencia de paludismo
[malária]”, doença contraída na viagem de 1927 até o Panamá. Três meses depois da morte do
barão sueco, Nimuendajú também pega mais uma vez malária, a doença que matara seu
amigo Nordenskiöld.47

A virada norte-americana

Em 1933, o mundo etnológico de Nimuendajú sofre uma reviravolta e incorpora um


financiamento dos Estados Unidos. É um reflexo no Brasil da progressiva substituição da
hegemonia europeia nas ciências sociais pela norte-americana. Ele propõe ao Carnegie
Institution uma excursão aos Xerente (MA) e a viagem à Suécia no ano seguinte.48
Uma novidade igualmente de peso é o aparecimento de outro interlocutor, mas com
poder de decisão e coerção. É o Conselho de Fiscalização das Expedições Artisticas e
Cientificas no Brasil. Em 11 de maio de 1933, o presidente Getulio Vargas assinara o decreto
número 22.698, que serviria de base para o Ministério da Agricultura criar o referido órgão.49
Em 1935, Nimuendajú dá outro passo decisivo para mudar sua situação profissional.
Em carta a Robert Lowie, etnólogo da Universidade da Califórnia, conta que recebera
financiamento da Carnegie para escrever um artigo sobre os Timbira, que teriam certos
paralelos com indígenas norte-americanos.
Só que “ao voltar da Suécia, tive de parar pela falta de dinheiro. Para concluir [o
manuscrito] faltam ainda umas 400 a 500 páginas. Interesso-me mais pela pesquisa dessa
tribo do que pela publicação (...)”.50

46
A duas cartas são de Belém, 13/08/1932, MG.
47
Manaus, 24/09/1932, MG.
48
Aldeia do Ponto, 10/07/1933, CS, p. 196.
49
Lisboa, Araci Gomes, O Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, Ciência,
patrimônio e controle, Universidade Federal Fluminense, 2004, p. 72.
50
Belém, 08/02/1935, cf. DU, p. 261. A idéia de contatar Lowie partira do etnólogo sueco Karl Izikowitz. É ele
quem recebera Nimuendajú na estação ferroviária de Gotemburgo (“gordo, alegre e amável: um puríssimo
judeu!”, o descreve Nimuendajú a Estevão de Oliveira, em Gotemburgo, 10/05/1934, CS, p. 210). É
igualmente Izikowitz quem sugere a remessa do artigo “A corrida de toras dos Timbira”, cf. Gotemburgo,
10/07/1934, CS, p. 210. O artigo só foi publicado em português em 2001, na revista Mana, 7 (2), p.151-
194, Museu Nacional, 2001.
78

Ele não espera resposta e visita os Canela, onde se manifesta de novo o já conhecido
problema da falta de dinheiro. Só que desta vez o déficit é muito maior do que antes, pois ele
se comprometeu a comprar peças para quatro museus (Paraense, Nacional, de Berlim e de
Gotemburgo).
Ao recorrer a quatro amigos em São Luiz, onde se encontra, dá cada vez com a cara na
porta. Disposto a qualquer coisa, implora ao amigo e diretor do Paraense: “No desespero
destes insucessos venho agora bater à porta do Snr. Não me incomodo absolutamente que eu
tenha de pagar os juros, fossem eles lá quais fossem. Preferia não tirar por fim nenhum lucro
monetário desta viagem, contanto que pudesse cumprir o meu compromisso com o Museu
Nacional. Quero perder tudo, mas não quero ficar desmoralizado pela falta de palavra”.
Um mês depois, quando chega uma remessa de Carlos Estevão, ele já conseguira
empréstimo em São Luiz e sente-se confiante para voltar às aldeias. Mas no fundo é o seu
medo de voltar a sentir o fracasso que lhe faz agir dessa maneira.51

Efetivamente, Nimuendajú enfrenta o risco de voltar à situação de cinco anos atrás.


Como naquela época, coleta para quatro museus, tem falta crônica de recursos e a cambiante
realidade do sertão teima em contradizer o mais minucioso planejamento.
Além disso, as condições de vida extremamente chocantes dos indígenas dificultam a
realização de uma simples pesquisa científica. Sarampo, varíola e gripe matam dezenas de
indígenas na aldeia onde ele se encontra. Os sobreviventes podem morrer a qualquer
momento, porque somente dez por cento das vacinas aplicadas estavam em condições de uso.
Abalado, admite a Krickenberg, diretor do museu de Berlim:

Claro que meu trabalho sofreu sob condições extremamente desfavoráveis. É uma
tortura moral para ambos os lados [dele e dos indígenas] barganhar e discutir preços [numa
aldeia] onde fui recebido como o salvador.

Assim, é obrigado a privilegiar alguns museus e colocar outros na fila de espera. Dos
700 objetos coletados, destina 500 ao Museu Nacional e 200 ao de Berlim. Já os que só
compram coleções prontas, os museus Paraense e de Gotemburgo, ficam de mãos vazias.52

51
São Luiz do Maranhão, 13/04/1935, p. 226 e Barra do Corda, 25/05/1935, p. 228, CS.
52
Barra do Corda, 25/06/1935, MEB, Microfilme 175-31. A Kaudern, diretor do Museu sueco, confessa que
“não sei como pagar minhas dívidas com o Museu de Gotemburgo. Após este segundo fracasso, estou sem
dinheiro e não tenho a menor idéia onde poderia consegui-lo. (...)”, cf. carta de 25/06/1935, MG.
79

Como a crise se aprofunda, toma uma decisão extrema. Já desesperado, procura, no


meio do sertão, comprador para seus mais valiosos objetos de trabalho:

Tratei de vender aqui o que possuo: cavalo, sela, rifle, máquina fotográfica, mas não
achei quem me quisesse dar por qualquer destes objetos a quarta parte sequer do que valem;
quando veem uma pessoa em apertos só querem se aproveitar dessa circunstância.

Por pouco Nimuendajú teve de vender o cavalo, ou melhor, a mula, a sela e o rifle.

Só não chega a mendigar porque, novamente, Carlos Estevão, entra em campo:


“Mais uma vez o Snr. me tirou prontamente de um aperto terrível em que me achei aqui na
[cidade de] Barra [do Corda] depois de voltar definitivamente da aldeia sem ter mais nem
dinheiro para a passagem para São Luiz.”.53

53
Barra do Corda, 30/07/1935, CS, p. 234.
80

De volta a Belém, recebe uma excelente notícia dos Estados Unidos: o etnólogo da
Universidade de Califórnia, Robert Lowie, promete US$ 100 mensais durante cinco meses,
oriundos de um fundo da universidade para estudos sobre parentesco e organização social.
Além disso, a propriedade dos resultados das pesquisas está contratualmente definida,
pois Lowie tem direito a usar com exclusividade os achados de Nimuendajú em seus
trabalhos, citando o autor, que, por sua vez, poderá publicar de maneira independente.54
Assim avança o longo período de passagem do Nimuendajú prioritariamente
colecionador para o preferencialmente estudioso. Esta transição começara com a viagem a
Gotemburgo, em 1934, exclusivamente para pesquisar no museu sueco as coleções feitas por
ele. Agindo na mesma direção, Lowie, diferente dos parceiros anteriores, dá prioridade à
redação de monografias e livros, o trabalho de campo tem importância menor. Isto irá influir
no método até então empregado por Nimuendajú, arredio a escrever, mas sempre disposto a
empreender uma expedição.
Em meados de 1936, Lowie anuncia uma verba de US$ 1 200,00 até junho de 1937,
do jeito que Nimuendajú queria.55 São recursos garantidos para um ano inteiro de trabalho,
algo que ele não conheceu dos museus europeus. Ele comemora a nova situação filmando os
Canela. Depois de esperar um mês, no dia 4 de agosto ele recebe os rolos de celuloide. No dia
seguinte, estréia com a câmara na mão, rodando filmes cujo paradeiro atual é desconhecido:

Filmei um bom número de cenas de corridas de tora de ambos os sexos, corridas de


estafeta, corridas de páreo, e o Krúatak (resvalar de flechas). Tambem atrapalhei-me um
pouco com o aparelho: achei muito inconveniente que a corda dele fosse tão curta que, para
se fazer correr trinta metros de filme, é preciso dar corda três vezes. Assim, aconteceu por
diversas vezes que, no melhor da festa, a corda faltava, e até eu dar corda novamente, tudo
já estava acabado. (...) tenho quase certeza de que [muitas cenas] estão imprestáveis, porque
foram feitos com luz deficiente, mas tive de arriscar a exposição porque sabia que a ocasião
näo voltava mais.56

Parente rico de 300 indígenas pobres

É durante esta viagem que, pela primeira vez, Nimuendajú decide priorizar o trabalho de
gabinete: “Eu acho necessário escrever o material sobre os Rakmkokamekra, Apinaye e

54
Berkeley, 22/08/1935, DU, p. 263.
55
Berkeley, 03/06/1936, CS, p. 269.
56
Pedreira, 01/09/1936, CS, p. 257.
81

Xerente. O material [colhido] aumenta de tal forma que eu não saberia mais o que fazer se
[esse material] aumentar ainda mais. Eles têm de ser registrados em papel, antes que a viveza
das impressões mais recentes apague as mais antigas. Eu gostaria mesmo é de viajar de novo,
mas tenho certeza [de] que [a qualidade] do material [escrito] seria prejudicado”. 57
Logo, porém, Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional, lhe faz uma
tentadora proposta de contratação exclusiva: “A coleção dos Canela coletada pelo Sr.
despertou o maior interesse e um alto funcionário do governo se mostrou interessado em
arranjar recursos para contratá-lo no museu. (...) A sua incumbência seria o prosseguimento
dos seus trabalhos e [a] elaboração de outros, vindo ao Rio ao cabo de cada coleção feita, afim
de obter melhores elementos bibliográficos para ultimar cada um dos seus estudos. (...). A
perspectiva desse contrato me agrada imensamente, mas nós precisamos assentar previamente
com segurança todas as condições.”
No final, uma despedida inusitada, escrita a mão: “Aqui fico apresentando os meus
cumprimentos afetuosos”.58
Na resposta, Nimuendajú avalia o seu acordo com Lowie como sendo uma
“combinação bastante vantajosa para ambos. (...) A soma de 100 dólares mensais provou
porém ser insuficiente especialmente porque sou o parente ‘rico’ de 300 Canela pobres e seria
desmentir todo o meu passado se eu deixasse de socorrer índios necesitados enquanto [eu]
ainda possuisse alguns recursos”.
Faz então duas perguntas, que já deixam entrever a conclusão: “A primeira questão é
portanto saber se o contrato com o Museu Nacional conservaria a minha situação financeira
pelo menos ao mesmo nível da atual. A segunda é a da continuidade (...). Uma pessoa
importante do governo se propos auxiliar no caso. E se esta pessoa não estiver mais em
condições de prestar esse auxílio, como provavelmente mais cedo ou mais tarde acontecerá,
visto tratar-se de uma pessoa do governo?”
Para concluir, explica que o contrato exclusivo com o Museu Nacional o obrigaria a
romper as ligações com Lowie e com o museu Emilio Goeldi: “(...) estas minhas atuais
relações não se baseiam em contrato nenhum, são meras combinações estabelecidas sobre a
base da confiança recíproca. Mas precisamente por causa disto: com que cara poderia eu
depois eventualmente procurar reatá-las?”.59
De março a junho de 1937, as mesmas tribos Jê visitadas ano passado acolhem
Nimuendajú. Acolher é um eufemismo. Os indígenas deixam que Nimuendajú chegue. Ele

57
Boa Vista (Goiaz) [sic], 07/08/1936, p. 271, DU.
58
Rio de Janeiro, 25/09/1936, MN.
59
Belém, 27/10/1936, MN.
82

fica abismado com a situação dos 300 habitantes que sobreviveram dos 500 que ele contara na
sua última visita em 1930. A descrição que ele faz do aspecto físico desses sobreviventes tem
traços dantescos:

Um grupo de índios doentios, cobertos de farrapos, recebeu-me numa casa quase em


ruínas na qual estavam dois doentes de bexigas. O capitão Caetano veio se arrastando,
apoiado num bastão, pois as solas dos seus pés estavam, como o corpo, cobertas de bexigas. O
rosto estava inchado, e das pústulas desciam fios de sangue e pus que deixaram vestígio no
meu braço quando ele me abraçou. Não me achei com coragem de estabelecer-me nesta
aldeia. Comprei um boi para eles e fui-me embora. 60

Ironicamente, é graças a 146 peças Xerente e 22 Apinayé coletadas em outras aldeias


durante esta viagem em 1937 que Nimuendajú quita sua dívida com o Museu de Gotemburgo,
que pagara sua passagem de volta ao Brasil em 1934.61
Enquanto o cargamento atravessa o Atlântico rumo ao museu sueco, Kaudern, seu
diretor, faz uma proposta que beira a falta de decoro profissional: Nimuendajú escreveria para
sua recém criada coleção “Etnologiska Studier”. Como pagamento pelas colaborações,
ganharia 50 exemplares gratuitos. Se desejasse mais exemplares, receberia pelo preço de
custo.62
Nimuendajú recusa. A razão simboliza a profunda transformação que estava se
gestando e agora quer tornar-se realidade: “Desde 1935 trabalho junto com Lowie e com
financiamento norte-americano no levantamento da vida das tribos Gê, às quais me dedico
quase que exclusivamente desde 1928 (nove anos!). (...) Agora chegou a [minha] hora de
escrever, enquanto as recordações continuam frescas na memória. Por isso, não seria possível
começar estudos paralelos”.63

Prioritariamente estudioso

O não a Kaudern é também uma consequência do fato de que, alguns meses antes, Lowie
comunicara a Nimuendajú que poderia contar com US$ 1.200,00 para suas pesquisas, até
junho do ano seguinte. Consolida-se assim o início da sua fase de etnólogo prioritariamente

60
Boa Vista (Goiás), 18/06/1937, p. 264, CS.
61
Belem, 20/07/1937, MG, e GR, p. 189. Kaudern só confirma um ano depois: “embora seja difícil estimar o
valor econômico das peças, a sua dívida com o museu está quitada”, cf. Gotemburgo, 08-01-1938, MG.
62
Gotemburgo, 21/06/1937, MG.
63
Belém, 27/09/1937, MG. Este é o mesmo conteúdo de sua carta de agosto do ano passado a Lowie.
83

estudioso.64 Esses dois elementos – a garantia, pela segunda vez, de um orçamento anual para
as pesquisas e a declaração de querer refletir e escrever mais do que antes – caracterizam o
novo Nimuendajú.
Como na natureza humana às vezes avanços e recuos se manifestam paralelamente,
nessa mesma carta a Kaudern Nimuendajú mostra como ainda lhe custa simplesmente sentar-
se à escrivaninha: “Lowie deu-me a opção de utilizar o financiamento deste ano [fiscal] para
continuar o trabalho de campo (eu tinha sugerido ir aos Kamakan no sul da Bahia) ou concluir
o trabalho do manuscrito. Devido à minha preguiça de escrever, decidi-me, a contragosto,
pela primeira [palavra riscada] e assim que eu acabar com o empacotamento das últimas
coleções começarei sem demoras com os rabiscos [escrever]”.65
Para encerrar o frutífero ano de 1937, Nimuendajú tem dois motivos de satisfação
intelectual: ele recebe as provas tipográficas de sua obra The dual organisation e cópia de
teses de graduação de três estudantes da Universidade da Califórnia, “que já trabalham com
inteira desenvoltura a organização dos Ramkokamekra”.66

Alegria intelectual e desespero existencial

Alegria intelectual e desespero existencial misturam-se em Nimuendajú. Uma pungente carta


a Lowie em janeiro de 1938 descreve uma catástrofe difícil de imaginar, mas que presenciou
pessoalmente nas proximidades do rio Xingu (PA). Em agosto do ano anterior, 800 indios
Gorotire se refugiaram pacificamente em Nova Olinda, à beira do rio Fresco. Como após
certo tempo faltou comida para os índios e para os colonos, o SPI mandou alimentos, mas os
custos de transportes absorveram a maior parte da verba dessa operação de emergência.
Após cinco meses, cerca de 300 pessoas morreram de gripe e pneumonia. O desespero
espalhou-se entre os índios sobreviventes: um grupo caiu na bebedeira e na prostituição, outro
grupo entrou no mato, mas foi massacrado pelos Kayapó da floresta.67 A desorientação e a
impotência são patentes em Nimuendajú. Dividido entre seu comprometimento com os
indígenas e a paixão pela Etnologia, busca aflito uma solução junto a Lowie:

Eu deveria restabelecer os requisitos para um estúdio intensivo. Eu deveria tentar


reunir pelo menos uma grande parte da horda [tribo]. Mas como não possuem terra e devido

64
Berkeley, 03/06/1937, p. 275, CS.
65
Belém, 27/09/1937, MG.
66
Belém, 13/12/1937, p. 281, CS. Logo em janeiro, Lowie elogia o seu trabalho sobre os Xerente, cf. Berkeley,
07/01/1938, p. 281, CS.
67
Belém, 19/01/1938, MN.
84

às incertezas ainda não plantaram sequer um pé de milho, eu teria que responder pela
alimentação de centenas de famintos indígenas e isso durante cinco meses. Foge à minha
compreensão saber onde eu poderia conseguir os recursos para a compra e transporte desses
alimentos (...) Peço ao senhor para pensar se existe uma possibilidade de resolver esses
problemas ou eu deveria começar o trabalho com os Kamakam. Talvez eu possa acompanhar
um inspetor do SPI que vá aos Gorotire (...).

Lowie fala a linguagem da razão: “Gostaria de apoia-lo na sua intenção de dedicar a


próxima expedição aos Kamakam e seus vizinhos. Conforme a sua exposição, infelizmente os
Gorotire devem ficar de fora. Mas o senhor poderia viajar com o Inspetor, caso isso for
inevitável por motivos políticos”.68
Em fevereiro desse mesmo ano, a “preguiça” de escrever a monografia sobre os
Apinaye junta-se ao dilema existencial de acorrer aos Gorotire ou visitar os Kamakã. Em
março, finalmente toma uma decisão e apresenta ao Conselho de Fiscalização licença para
pesquisar entre os Kamakã na Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo.69
Os eventos dos anos seguintes mostrarão que ele acabaria atingindo os três objetivos:
concluir a monografia, pesquisar entre os Kamakã e acorrer aos Gorotire. Para a expedição
aos Kamakã, Nimuendajú se dá ao luxo de não pedir ao Museu de Gotemburgo dinheiro
antecipado para a coleção já acertada de objetos da cultura material dessa tribo.70
As mudanças de Nimuendajú espelham-se também no seu novo estilo de apresentar as
monografias. No lugar de pensar, estruturar e escrever, agora ele se deixa levar pelos
pensamentos: “Antigamente, eu me torturava para obrigar os fatos a se encaixarem em
capítulos, hoje mal faço isso e simplesmente escrevo. Se [no futuro] todos os trabalhos forem
publicados, no lugar de índice vai ser preciso ter um enorme glossário de termos”.71
Lowie também trilha novos caminhos. Quando as fontes de recursos ameaçam secar,
ele bola uma estratégia para angariar novos financiadores e pede que Nimuendajú faça um
plano plurianual de pesquisas, de 1939 a 1943, para Lowie passar o chapéu entre instituições
nos Estados Unidos.72
Nimuendajú lamenta o corte de recursos, justamente agora que precisa comprar uma
máquina de escrever e um aparelho fotográfico novos. Ainda com a velha “Corona”, que ele
levou inclusive à Alemanha e Suécia, escreve sua proposta de plano de pesquisas para o

68
Berkeley, 27/01/1938, p. 283, CS.
69
Documento número 940, GR, p. 189.
70
Belém, 18/02/1938, MG.
71
Belém, 30/03/1938 p. 285, CS.
72
Berkeley, 16/05/1938, p. 287, DU.
85

período 1939-1942: expedições aos Kaingang de Arreias, os Gorotire do Rio Branco e a um


grupo desconhecido do rio Javaucu, afluente do Xingu, no Pará.73
No intercâmbio de opiniões, certo dia Lowie pergunta sobre a vida social dos Tupi,
especialmente de sua tribo, os Apapocuva-Guarani. Nimuendajú mostra-se envergonhado de
nada saber a respeito. E abandona seu hábito de analisar os outros para avaliar seus próprios
trabalhos:

Durante minha permanência entre os indígenas, eu estava sozinho, nunca achara


alguém interessado [por Sociologia] e eu começava com aquilo que mais conhecia: a língua e
a religião (...) O senhor pode ver isso nos meus trabalhos iniciais (Guarani, Xipaia, etc.).
Depois entrei em contato com Nordenskiöld, que também não atribuia grande importância à
Sociologia. A primeira vez que percebi que poderia haver algo sério [com a Sociologia] foi
em 1928, quando me mandaram da Alemanha o livro do senhor “Primitive Society”,[segundo
Dungs, enviado por Krause]. A literatura [especializada] aqui existente é ruim. Não se
esqueça que eu sou integralmente autodidata.74

É agora que Nimuendajú parece tomar consciência do valor da relação com Lowie.
Eles não se conhecem pessoalmente, mas se relacionam de maneira harmoniosa. É justamente
neste época que a cooperação pode chegar ao fim. Lowie conta que o jovem etnólogo norte-
americano Alfred Metreaux conseguiu recursos para pesquisar no Gran Chaco [regiões do
Paraguai, Bolívia e Argentina] e pensa em convidar Nimuendajú, “porque [Metreaux]
considera o senhor, assim como eu, o pesquisador da América do Sul que mais se
desenvolveu, mesmo que o senhor se considere apenas um autodidata”.75
Embora a proposta de Metreaux seja muito tentadora - uma expedição renderia
economicamente o equivalente a quase três anos de pesquisas com Lowie -, Nimuendajú
permanece fiel ao seu parceiro. Detalhes deste singular momento estão relatados no capítulo 8
– O encontro dos mestres.
Paralelamente, Nimuendajú prepara-se para a expedição à Bahia, a Minas Gerais e ao
Espírito Santo. Essa viagem marca um ponto de inflexão geográfica, mas também temática de
suas pesquisas. Isso, em grande parte, porque o insucesso de achar tribos Jê naqueles Estados
irá determinar o fim dos estudos deste grupo línguistico.

73
Belém, 16/06/1938, p. 289 DU.
74
Ibidem.
75
Berkeley, 27/06/1938, p. 290, DU.
86

Mas também porque será a última expedição a render coleções a museus estrangeiros.
Dessa data em diante, as instituições brasileiras serão as destinatárias exclusivas das coleções
feitas por ele.76
Nimuendajú chega dia 22 de setembro de 1938 ao posto Paraguaçu do SPI, perto de
Ilhéus (BA). As pesquisas se prolongam até 29 de novembro e são descritas a Carlos Estevão
como um “completo fracasso”.77 A carta, porém, permite um olhar privilegiado sobre um
instante concreto das pesquisas de Nimuendajú. Aqui ressalta o trato humano e digno por ele
brindado a Jacinta Grayirá, tida como última descendente dos Kamakan sem mistura com
brancos ou caboclos.
A descrição de Jacinta feita por Nimuendajú é antológica: “Parecia ter muito mais de
70 anos, era cega de um olho e surda de ambos os lados [ouvidos] e já bastante esquisita, se
bem que ainda não apresentava sinais de demência senil. Falava um português péssimo com
uma fonesia puramente Kamakã, de maneira que muito custei a compreendê-la”. Nimuendajú
ainda tem dúvidas se valeria a pena dedicar tempo à coleta do vocabulário desta tribo. A
certeza que esta poderia ser a última chance de registrar nem que seja alguns elementos dessa
língua fala mais forte.
Disposto a levantar a árvore genealógica dela, Nimuendajú improvisa uma estratégia
para facilitar a comunicação com essa senhora que aparente ter 70 anos, é cega de um olho e
parcialmente surda:

Fiz bonecos de garrafas vazias e caixas de filme, coloquei-os diante da velhinha


dando-lhes os nomes daqueles rolos que vinham ao acaso para o grau de parentesco em
questão: Isso aqui é o Antonio”.
“Hein?”
“O Antonio”
“Hein?”
“O AN-TO-NIO!!!”
“Ah, o Antonio?”
-“Sim, o Antonio, E isto aqui é a Juana”.
- “Hm, a Anna”.
- “Não, não é a Anna, não! É a JUANA!!!”
- “Hein?”

76
GR, p. 190. A tendência já é visível nesta expedição: Gotemburgo fica com uma magra coleção dos Maxakali
de 58 itens, enquanto que o Goeldi recebe 144 e o Museu Nacional 87 unidades, p. 194,GR.
77
Ilhéus, 08/01/1938, p. 191, GR.
87

- “A JUANA!!!”
- “Hm, a Juana”.
- Quando Antonio fala com a Juana: Como é que trata ela?”
- “Antonio diz: Xecáxkara”.
(Tinha porém para duvidar da exatidão desta informação e pergunto portanto:)
- “Será mesmo xecáxkara que ele diz?”
- “É, Antonio diz para Anna xecáxkara”
- “Mas isto não é Anna, é JUANA!!!”
- Ah, sim, Juana!” (Durante um minuto a velhinha olha para o boneco de bocar aberta
abobalhadamente. De repente vejo como a sua imaginação se anima: o rosto toma uma
expressão amável e, imitando a grossa voz masculina do finado Antonio ela diz):
“Kecaxkédseda”.
“E como falava Juana a Antonio quando respondia?”
-“Juana?!” – Esta nunca aprendeu a nossa língua!”.
- “E se tivesse aprendida a língua, como ele teria dito?”
- “Qual! A Juana não tinha cabeça para isso! Ela nunca aprendeu uma palavra!
Etc. Tive de determinar tudo por meio de exemplos concretos. Não admitia relações
hipotéticas nem as mais claras e plausíveis: “se A tivesse casado com B...”.
“- Mas ela nunca casou!”

Além dessa tentativa, Nimuendajú ainda procura levantar as relações de parentesco


dos Kamakã. É aí que ele desiste, porque a velha Jacinta ostenta com orgulho sua condição de
indígena casada na igreja católica apostólica romana, enquanto que seus parentes indígenas
não casaram na igreja.
Do Espírito Santo, ele propõe a Kaudern uma coleção de objetos Maxakari por 200
dólares. O diretor do museu sueco aceita, mas,posteriormente, depois de examinar duas vezes
a coleção recebida, afirma tratar-se de “objetos feitos recentemente e que não utilizados pelos
indígenas, servem no máximo como modelos“ e só poderia pagar 75 dólares ou mandar de
volta a Belém.78
Indignado, Nimuendajú responde que ele vai viajar ao Xingu. Como ninguém pode
receber a remessa em Belém durante a sua ausência, ele não quer sujeitar-se às enormes
formalidades burocráticas brasileiras, além de que as peças seriam danificadas durante o

78
Colatina (ES), 04/04/1939, MG e Gotemburgo, 11/08/1939, MG. Segundo Grupioni, citando carta de
Nimuendajú a Estevão de Oliveira de 22/04/1939, ele queria saldar o compromisso assumido com o finado
Nordenskiöld de arranjar uma coleção da “região dos Botocudo”, p. 196, GR.
88

transporte. Seu veredito: “(...) é melhor destruir aí em Gotemburgo do que mandar de volta”,
mas pede para Kaudern tomar o cuidado de evitar que qualquer peça chegue a mão de
colecionadores particulares.
O tira-teima transatlântico se alastra ainda mais com a informação de Kaudern de que
não será possível destruir os objetos. Ele ainda tenta mandar de volta em 1940, mas a
insegurança no tráfico marítmo nas rotas atlântics devido à Segunda Guerra Mundial impede
o transporte.79 Os objetos Maxakari possivelmente ainda estão encaixotados no depósito do
museu em Gotemburgo e endereçados a Curt Nimuendajú.

Continuidade é fundamental

Ao voltar em junho de 1939 a Belém, Nimuendajú lê uma inesperada proposta de dona


Heloisa Alberto Torres, do Museu Nacional, de bancar a expedição aos Gorotire. O tom é
claramente otimista: “Tenho uma boa notícia: possuo os meios para custear sua ida aos
Gorotire; preciso saber a quanto montam as despesas e se o sr. concorda em que elas corram
por nossa conta. Quanto mais depressa me chegar a resposta, melhor”. 80
A resposta segue rápida. O conteúdo, porém, não agradaria dona Heloisa. Lowie só
arranjou 500 dólares no lugar de 2 mil planejados, mas Nimuendajú continua a parceira com
ele. Afinal, o levantamento junto aos Gorotire pode levar anos.
Por isso, ele recusa a proposta do Museu Nacional: “Para estudos feitos pelo meu
sistema da longa convivência e identificação com a tribo, mais importante mesmo [do] que a
largueza dos recursos monetários torna-se a MANUTENÇÃO DA CONTINUIDADE [sic].
(...) Enquanto o auxílio de Lowie não me faltar por completo, não me acho com o direito de
procurar outro, nem estaria isto no interesse do meu programa de estudos das tribo Gê”.81
Suas prioridades ficam mais clara ainda quando apresenta ao Conselho de Fiscalização
o pedido de pesquisa entre a tribo dos Gorotire, ameaçados de extinção. O objetivo formal da
expedição é vagamente formulado e, pela primeira vez, não propõe colecionar objetos.82
A viagem aos Gorotire se estende de novembro de 1939 a fevereiro do ano seguinte.
Ela marca o início da coleta exclusivamente para museus nacionais, mas em especial a
transferência do foco geográfico das expedições do Brasil Central para algumas áreas da
Amazônia.

79
Belém, 11/08/1939, MN e Gotemburgo, 25/09/1939, MG.
80
Rio de Janeiro, 20/06/1939, MN, p. 198, GR.
81
Belém, 27/06/1939, p. 198, GR.
82
Carta de 30/06/1939 ao Conselho, p. 198, GR.
89

Para Nimuendajú, esta viagem é etnologicamente um fracasso, ao qual se soma a


desesperadora situação em que vivem indígenas e caboclos nessa área do Xingu.83
Seu relatório inclui um exemplo da chamada aculturação de indígenas que moram
numa missão protestante. Quando indígenas da mesma tribo mas recém chegados do mato
acampam por perto, constata Nimuendajú, acontece um choque intracultural:84

À noite, os índios da missão pareciam possessos pelo demônio da civilização. Talvez


também quisessem impressionar os recém chegados com os conhecimentos que tinham dos
costumes civilizados. Os homens vestiram roupas civilizadas que todos possuem, mas que só
excepcionalmente usam, e começaram a dançar em pares, à maneira dos civilizados, no pátio
em frente à casa dos homens. Um deles tocava uma flauta de bambu fabricada por um
morador de Nova Olinda e um outra batia numa lata vazia de kerosene, feita tambor. Os
outros imitavam com fidelidade espantosa os gritos e os modos de cabra [sic] bêbados, apesar
de não haver felizmente uma gota de álcool:
‚Oh, diabo!, Oh, danado!
Traz a cachaça!“
Depois, continuaram a dança ao som de um himno protestante, aliás, o ‚Kyrie’ da
Missa de Angelis, transformado numa marcha alegre:
‚A deus eterno, criador, A Cristo nosso redentor
Alleluia! Alleluia!“

E finalmente para variar:


‚Cocorococococó! Cocorococococó!
O galo tem saudade da galinha carijó’.

A próxima expedição – à procura dos Kayapó, nos arredores de Conceição do


Araguaia – é um novo fracasso operacional, que abala a saúde de Nimuendajú. O médico
aventa as seguintes doenças: sífilis secundária, lepra ou uma doença que atinge os rins ou o
fígado.
Sua reação parece querer transmitir, mesmo para o seu amigo Estevão de Oliveira, a
imagem de etnólogo durão: “Eu não me assustaria com sífilis porque na Amazônia toda
pessoa normal tem sífilis, malária e vermes, como também tem boca, olhos e nariz. Lepra já é

83
Belém, 26/03/1940 a Estevão de Oliveira, p. 201, GR.
84
Curt Nimuendajú, Viagem de reconhecimento aos índios Gorotire-Kayapó do Rio Xingu, 1939-1940, entregue
ao SPI em 18/04/940, cf. microfilme 115, MI.
90

para se levar a sério. Os testes mostraram que não tenho nem sífilis nem lepra. Resta a terceira
hipótese, não muito importante”.
Mesmo doente, fica avaliando se a próxima viagem seria para rever os Krahô, que
estão sendo dizimados, ou para a área dos Gaviões, onde os latifundiários são contra ele.
Salomônico, acaba escolhendo os Ticuna, do Alto Solimões.85
O obrigatório pedido de licença ao Conselho de Fiscalização é para realizar estudos
sociológicos e religiosos desses indígenas. O delicado e nevrálgico relacionamento com este
órgão vai torna-se mais complexo ainda. O Conselho exige agora a remessa de todas as
coleções para o Rio de Janeiro, onde serão avaliadas e partilhadas entre museus nacionais e
estrangeiros.86
Como se tudo isso fosse pouco, a incerteza financeira ronda a expedição. Nimuendajú
escreve desesperado para informar a Lowie que os US$ 200 prometidos não chegaram e que
ele precisa de 500 dólares para empreender a viagem.87
Lowie percebe a seriedade da situação. Envia então uma ordem de pagamento pelo
telégrafo de US$ 100 dos 200 recebidos pelo artigo sobre os Jê do Nordeste que assinou
sozinho na publicação Handbook of South American Indians.
É o único caso documentado em que Lowie contribui do seu próprio bolso para pagar
parcialmente uma expedição, da qual ele é também beneficiário.88
Com o financiamento garantido e já instalado entre os Ticuna, Nimuendajú conta as
dificuldades e as alegrias da alagada floresta dessa região amazônica:

Em Tabatinga lutei com grande dificuldade para comprar uma canoa: o Solimões traz
uma enchente já um tanto extraordinária. Todas as margens estão alagadas, e mesmo em
Tabatinga só se vai de casa em casa por água. (...) Finalmente comprei uma canoa, mas receio
que ela dê muito malmente para a viagem projetada. Em todo caso mandei consertar e
prepará-la, e espero que ate 1.° de abril tudo esteja pronto. (...) Com grande espanto de certa
gente daqui, para quem esses Tukuna são o verdadeiro simbolo da velhacaria, malandragem,
preguiça, etc. etc., com os quais hoje nada mais se pode fazer, dentro de 3 dias tive eles todos
andando atrás de mim: deram-me de comer nas casas deles, fizeram-me presentes e se
ofereceram espontaneamente para [como] remadores na viagem pelo Solimões abaixo.89

85
Belém, 06/10/1940, p. 302 e Belém, 04/11/1940, p. 304, ambos DU.
86
GR, p. 211.
87
Belém, 24/01/1941, p. 306, DU.
88
Berkeley, 12/02/1941, p. 308, DU. O artigo de Lowie só foi publicado em 1946, um ano depois da morte de
Nimuendajú.
89
Leticia, 27/03/1941, p. 288, CS.
91

A natureza aqui é muito diferente daquela que Nimuendajú conheceu entre os Jê no


seco e poeirento Brasil Central:

Outra calamidade que aqui não deixa à gente uma hora sequer de sossego, nem de dia
nem de noite, é a terrivel praga de mosquitos, maruins e matucas. Pescoço, orelhas e pulsos
coçam e ardem e os ouvidos estão me zunindo dos tapas constantes que sou obrigado a dar a
mim mesmo. Escrever é quase impossível, porque no [dentro do] mosquiteiro se sua em bicas,
pelo menos durante o dia, quando dois se metem dentro para trabalhar. É o meu velho defeito
de me convencer sempre que semelhante bagatela como um inverno amazônico PARA MIM
[sic] não tem importância. De fato, estou fazendo o trabalho assim mesmo, mas – hm [sic].90

A intermitente chuva diária incomoda até na realização das mais simples necessidades
biológicas: “Devagar, mas irresistivelmente a água preta do igapó vem se aproximando da
casa de Calixto. De três lados já tem apenas 4 metros e na frente uns 8 metros - de terra? não!
De lama! Quem quer fazer as suas necessidades tem de embarcar na canoa e remar para a
mata que está alagada com 5-6 metros de fundura. O que numa noite de chuva escura como
breu já representa um emprendimento de certo vulto“.

Em contrapartida, uma dieta compulsória reduz a necessidade premente de utilizar o


banheiro ticuna: “De saúde vou regular, mas estou ficando cada vez mais magro porque a
nossa alimentação não passa quase de farinha de mandioca, mingau de bananas verdes e
aracu”. O precário regime alimentar vê-se compensado pela inusitada participação direta no
nascimento de um movimento messiânico. Poucos meses antes da chegada de Nimuendajú,
centenas de Ticuna abandonaram o seringal e construíram uma casa grande em estilo
tradicional no lugar sagrado da tribo, bem distante do rio Alto Solimões. Mas o seringalista
Quirino Mafra obrigou-os a voltar ao seringal. Durante sua estadia, Nimuendajú é convidado
pelos índios e visita o local, com o que acredita ter conquistado a confiança dos Ticuna.91

Pobreza em Belém, abastança em Berkeley

No início de outubro, já de volta a Belém, pinta um melancólico quadro de sua pobreza


material a Lowie:

90
Perpétuo Socorro, Rio Solimões, 23/05/1941, p. 290 e 296. CS.
91
Igarapé da Rita, 28/07/1941, p. 298, CS. Aracu é um peixe presente em várias regiões amazônicas.
92

Eu preciso urgentemente um ingresso constante para [sair da] minha pobreza. É triste
quando a pessoa, depois de oito meses de trabalho, volta para casa e vê como esta está caindo,
sem poder mudar essa situação. Eu tive a esperança de que os 300 dólares [que receberia pelo]
do mapa [etno-histórico] e o 240 dólares pela colaboração para o Handbook iriam pelo menos
me tirar desta situação. Eu vejo com horror chegar o fim do trabalho de campo [a próxima
expedição].92

A reação de Nimuendajú nada tem a ver com os indígenas. Ao contrário, ela é


provocada pela última carta de Lowie. Esta tem algo de leonino: para a próxima expedição, o
professor da universidade norte-americana da Califórnia só conseguiu 300 dólares e acredita
que com o dinheiro que Nimuendajú receberá pelo mapa e os artigos será possível financiar a
viagem aos Ticuna.93
Analisando a proposta de Lowie, Dungs mostra, em 1990, sua indignação: “é inusitado
que Nimuendajú tem que arranjar recursos de outros trabalhos para esse projeto [dos Ticuna],
portanto, trabalhar duas vezes pelo valor de um [projeto]”.94
Nimuendajú revela-se um autêntico Apapocuva-Guarani. Tomado por uma espécie de
fatalismo, que considera inevitável a falta de dinheiro, ele faz tudo para evitar a realização
dessa profecia.
Menos pegar o boi pelos chifres, ou seja, enfrentar o bem pago professor de Berkeley.
Sua única reação é a fina ironia com que conclui a carta a Lowie: “Eu lhe felicito pelas belas
férias e pelo título de doutor em ciências”.95
Lowie reage envergonhado: “Em primeiro lugar, peço-lhe perdão pela minha injusta
proposta. Com certeza que eu não queria que o senhor, ainda mais nesta situação, sacrificasse
o dinheiro que com esforço ganhou pelo mapa e pelos artigos! Porque justamente o senhor
deve pagar do seu próprio bolso as expedições? Peço-lhe que considere como se eu não
tivesse falado essa expressão conscientemente”.96
Lowie ainda promete procurar mais 500 dólares para a expedição. No lugar de colocar
claramente a injusta divisão do retorno econômico e de renome científico entre ambos,
Nimuendajú sente-se confirmado na sua missão de voltar logo aos Ticuna:

92
Belém, 09/10/1941, p. 312, DU.
93
Berkeley, 03/10/1941, p. 311, DU.
94
Dungs, p. 312 DU.
95
Ibid, p. 313.
96
Berkeley, 18/10/1941, p. 313, DU.
93

Lamento não poder satisfazer seu pedido de considerar como se sua “expressão
conscientemente” não tivesse sido pronunciada. Pelo contrário, enquanto mais eu analiso,
mais firme é a minha convicção de que ela é a única possibilidade no momento, pois em
março de 1942 eu DEVO [sic] voltar aos Ticuna CUSTE O QUE CUSTAR [sic]. Quero dizer,
que não se deve adiar o fim do trabalho de campo nessa tribo até a época de chuvas de 1943.
O que eu vivenciei deve ser complementado enquanto as impressões continuam frescas. Eu
não sei como será entre os Tucuna [sic] em 1943. Nada de trabalhos intermediários! Eu devo
sacrificar minhas necessidades particulares e usar o dinheiro disponível para a viagem.97

Ele faz uma complexa projeção da entrada e saída de recursos previstos até o fim da
expedição de 1942 para concluir: “Mesmo que o senhor não consiga mais dinheiro até essa
época [o início da expedição], MESMO ASSIM [sic] a viagem vai ser feita. Com isso eu vou
ficar na pior depois do trabalho de campo. Minha esperança é que o senhor pelo menos
NESSE MOMENTO [sic] possa me ajudar”.

Nimuendajú vive dividido. De um lado, as condicionalidades do mundo que o cerca: a


precária situação econômica dos Ticuna, a sua crônica escassez de dinheiro e o implacável
clima amazônico. Do outro, seu impulso de concluir o levantamento etnográfico e apresentá-
lo ao mundo não-indígena, visando à preservação dos membros da tribo e da cultura indígena.
Ao mesmo tempo, é grato a Lowie porque o estimula a realizar essa missão.
Isso parece explicar a sua atitude. Não parece vivenciar algo assim como uma
ofendida indignação quando Lowie sugere algo que seria ignóbil para outros mortais. Ao
contrário, é como se o antropólogo norte-americano lhe oferecesse a oportunidade de cumprir
aquilo que ele, Nimuendajú, sente ser sua necessidade vital.
Lowie cumpre o prometido e consegue que a Fundação Rockefeller financie com 500
dólares a expedição. No início de janeiro de 1942, porém, os burocratas norte-americanos
enviam o dinheiro ao Museu Nacional, cujos burocratas se recusam a repassar os recursos a
Nimuendajú. Assim fracassa a nova chance que Lowie arranjara para financiar as expedições,
isso depois da comovente troca de correspondência entre ambos.
Dona Heloisa tenta uma solução, querendo contratar Nimuendajú, embora
abandone a idéia de exclusividade: “Eu penso achar uma forma de cooperação que
harmonizem os interesses do senhor e do senhor Lowie. Peço a sua opinião, de forma que
eu possa responder à Fundação Rockefeller, pois penso em unir o prestígio desta com a do

97
Belém, 26/10/1941, p. 313, DU.
94

Comitê Interamericano de Relações Artísticas e Intelectuais, que apoiam e continuarão


apoiando o museu [Nacional]”.98
Inamovível, Nimuendajú repete o argumento de seis anos atrás de manter tudo como
está entre ele, o Museu Nacional, o Emilio Goeldi e Lowie. Mas entoa a surrada, e mais real
do que nunca, canção da falta de recursos para a próximo expedição, prevista para fevereiro
ou março.99
Porém, é a Lowie que Nimuendajú mostra como se sente acuado e explode:100

Creio que, através de todas essas dificuldades, aprendi que DEUS DO CÉU [sic] me
fez pequeno para que eu não precise mais me abaixar. Estou em permanente estado de defesa
com o Museu Nacional, que me quer só para si. Eu não [sic] devo trabalhar para o estrangeiro,
mas somente para o Museu Nacional. Todo e qualquer elogio do exterior gera para mim mais
problemas do que traz alguma vantagem. O pior é quando se fazem referências ao meu
trabalho para o Museu de Gotemburgo. Apesar da minha naturalização em 1922, ainda sou
um estrangeiro.

O sertão do trabalho intelectual

Em abril de 1942, embarca para o Alto Solimões. Cinco meses mais tarde, é preso por
militares sem qualquer justificativa. Já em liberdade, sofre uma crise depressiva que não o
deixa voltar tão cedo ao trabalho de campo nem retomar a redação de monografias e artigos.
Para complicar ainda mais, Lowie comunica que, devido ao custo da guerra dos Estados
Unidos contra a Alemanha, a Itália e o Japão, a Universidade da Califórnia cortou os
financiamentos de pesquisas.101

Ao longo de 1943 e 1944, Nimuendajú passa a viver as agruras do sertão do trabalho


intelectual. Aprendizado duro para quem continua dando mais valor a uma expedição do que a
escrever páginas e páginas de achados etnológicos.
Julian Steward, editor do Handbook of South American Indians, ligado ao Smithsonian
Institution norte-americano, propõe a Nimuendajú que escreva dois artigos para publicação.
Um de 5 mil palavras sobre os Ticuna e outro de 10 mil para listar tribos no Brasil – ambos

98
Rio de Janeiro, 08/01/1942, p. 223, DU.
99
Belém, 13/01/1942, p. 224, DU. Nesses dias, ele recebera 7 contos de réis do Museu Nacional pela coleção já
entregue dos Ticuna. É com este dinheiro que realiza mais uma viagem ao Alto Solimões.
100
Belém, 12/01/1942, p. 318, DU.
101
Berkeley, 10/10/1942, p. 319, DU.
95

mal pagos (260 dólares). A iniciativa representa mais um apoio psicológico do que
propriamente uma folga econômica para o pesquisador.102
O esforço anímico e físico para escrever os artigos é grande demais para ele: “Até
agora escrevi 81 páginas, não posso cortar [reduzir os artigos]! Aliás, é três vezes maior do
que o exigido. Não tenho dinheiro para fazer fotos (...)”.103
A resposta de Steward soa dura, mas realista: “(...) devo ficar firme no que diz respeito
à redução [do tamanho dos artigos], porque o dinheiro é limitado. A administração diz: uma
palavra, um centavo [de dólar]”.104
No segundo semestre de 1943, as sequelas de 40 anos de sertão o impedem de assumir
a direção do Serviço Etnológico do Conselho Nacional de Proteção aos Índios. Sem
alternativas, assina contrato com o Museu Nacional para traduzir para o português suas obras
e colaborar com o já promovido general Cândido Rondon no CNPI.
Isto lhe proporciona um minguado salário mensal, mas também proteção contra as
perseguições dos “nativistas”, informa a Steward.105
Nimuendajú já intuíra em novembro de 1941 que a fase de trabalhos de campo está
chegando ao fim. Atendendo ao pedido de Carlos Estevão de Oliveira, toma uma atitude
inédita: estrutura algumas de suas experiências de vida com os indígenas e as repassa de
maneira didática. Nimuendajú dá aulas a cinco mulheres, entre elas à filha de Carlos Estevão,
Lygia.106
Nada fica registrado dessas palestras em Belém. Já Harald Schultz, com quem
Nimuendajú se recusara a fazer expedições devido à enorme aparelhagem cinematográfica
que o jovem etnólogo queria levar, age de maneira mais prática: ele anota suas conversas com
Nimuendajú no Rio de Janeiro em 1943.
Alguns dos conselhos caracterizam claramente o autor: “Indagar e tomar nota não só
da presença [sic], mas também da ausência [sic] dos diferentes traços da cultura material e
não-material. (...) Se possível, adoecer [sic] e submeter-se a tratamento, pelo menos [durante]
dois dias. Antes disso, porém, pedir descrição do processo (cautelosamente, sem aparentar

102
Steward, Washington, 27/02/1943, p. 331, DU.
103
Belém, 05/05/1943, p. 331, DU. Numa carta anterior, de 17/04/1943, ele agradecera a Steward o convite para
participar do Congresso de Americanistas no México, mas informa que não vai porque não tem dinheiro, ibid.
104
Washington, 10/05/1943, p. 332, DU.
105
Ibidem. Dona Heloisa teria tentado que ele fosse transferido para o Museu Nacional, mas a idéia foi rejeitada,
informa Grupioni, à página 232, sem dizer, contudo, quem impediu a medida que satisfaria a antiga vontade de
dona Heloisa de trabalhar lado a lado com Nimuendajú. O contrato com o CNPI tem um filhote inesperado: a
publicação dirigida a crianças “Brinquedos de nossos índios”, adaptação de Alba Maria de Carvalho, Série
Infantil nº. 1, Conselho Nacional de Proteção aos Índios, 1958.
106
As aulas se sucedem até agosto de 1944, cf. Nunes Pereira, p. 59.
96

muito interesse!), afim de compreender melhor o verdadeiro tratamento”.107 A íntegra dessas


convrsas encontra-se na seção Documentos do presente livro.
Em outubro de 1943, o duplo golpe do destino de não poder assumir um cargo no
CNPI e de ficar impedido de viajar deixam-no prostrado. Durante quase um mês escreve
somente para dona Heloisa, pedindo remédios que não acha em Belém para continuar o
tratamento alimentar iniciado no Rio de Janeiro.108
Em novembro do mesmo ano, conta a Baldus que se sente velho demais: “É assim que
me vejo colocado fora de combate, enquanto o senhor, aos 44 anos, ainda é um jovem”.109
Mas o teimoso Nimuendajú ainda não é carta fora do baralho etnológico. Pouco antes
do Natal de 1943, conta a dona Heloisa que recebera uma carta do seu informante ticuna,
Nino Atahyde, contando que uma moça está em reclusão, esperando por ele para realizar o
rito da passagem à puberdade.110
A destinatária é a pessoa certa para uma eventual viagem aos Ticuna. O fim dos
financiamentos norte-americanos, devido à Segunda Guerra Mundial, faz do Museu Nacional
o único parceiro possível de Nimuendajú. A tática de água mole em pedra dura funciona e, em
julho de 1944, dona Heloisa acaba concordando com uma nova viagem aos Ticuna.111
Em resposta ao etnólogo sueco Karl Itzikowitz, que contara que Kaudern morrera em
julho de 1942, Nimuendajú porém reclama de dona Heloisa e fala com saudade dos tempos
quando ele trabalhava com Nordenskiöld e Lowie.112
Em dezembro de 1944, fracassa sua tentativa de ir ao Alto Solimões. Ele atribui a
culpa à lentidão do Museu Nacional em responder às necessidades de embarcar antes que
mude o regime de águas na Amazônia.
Ele se queixa diretamente a dona Heloisa: “Se me conformasse com o silêncio da Snra.
isto não só prejudicaria o trabalho como também seria inteiramente incompatível com o meu
caráter. Eu não sou apenas o tradutor deste e daquele texto, mas essas monografias que estou
traduzindo representam cada uma um pedaço da minha vida, de maneira que é-me impossível
produzir a indiferença necessária”.113
Não achei nenhuma resposta imediata de dona Heloisa a este desabafo. Nele estão
contidos os dois temas que marcam as relações mútuas a partir desse momento até a morte de

107
Sugestões para pesquisas etnográficas entre os índios do Brasil, Sociologia, v. III, nº 1, 1946, pp. 36-44, São
Paulo. Segundo Baldus, as anotações em alemão foram revisadas por Nimuendajú e traduzidos ao português por
Egon Schaden.
108
Belém, 29/10/1943, p. 225, DU.
109
Belém, 10/11/1943, MN.
110
Belém, 14/12/1943, p. 225, DU.
111
Rio de Janeiro, 19/07/1944, p. 227, DU.
112
Belém, 21/08/1944, MG. É a última carta conhecida remetida à Suécia.
113
Belém, 22/12/1944, MN.
97

Nimuendajú: a viagem aos Ticuna e a conclusão da redação das 300 lendas indígenas por ele
coletadas.
Porém, a questão profissional e o aspecto existencial estão embolados. Ambas as
pessoas espelham o mútuo desencontro de visões de como agir para chegar à meta comum.
Quando dona Heloisa diz que vai mandar de 30 mil a 40 mil cruzeiros até abril para a
expedição aos Ticuna, ele rebate que 40 mil é o mínimo.114 Quando Nimuendajú explica que
não pode concluir as 300 lendas porque faltam as narrativas dos Ticuna que ele ainda tem de
colher, mas não consegue viajar, dona Heloisa silencia.115
Na mesma carta que solicita esse apoio a dona Heloisa, ele critica a demora no uso de
sinais diacríticos para a impressão de um trabalho linguístico. Este são elementos gráficos
auxiliares da escrita que servem para indicar a pronúncia de uma palavra. Nimuendajú exige a
confecção de sinais especiais para esse trabalho.
Isso é demais para dona Heloisa. Ela dá uma bronca como nos bons velhos tempos:
“Eu realmente não entendo as suas preocupações quanto aos símbolos diacríticos usados pelo
Sr. EU [sic] já lhe disse em seis cartas que estou de acordo com suas sugestões, que eu lhe
pedira que fizesse uma comparação desses símbolos, mandei fazer os novos linotipos [para
impressão], lhe enviei uma cópia dos mesmos, mas o sr. volta novamente ao tema, que já se
resolveu faz tempos. O senhor deveria me conhecer, e saber que eu cumpro o que
prometo”.116

O retorno definitivo aos Ticuna

Antes de partir para o Solimões, dona Heloisa faz um novo arranjo institucional em benefício
de Nimuendajú, que permanece no Rio de Janeiro de 29 de julho a 9 de agosto para conversar
com João Alberto Lins de Barros, diretor da Fundação Brasil Central. O acordo é relatado a
Baldus, o sociólogo alemão residente em São Paulo:

Ficou combinado com o Museu Nacional que trabalharei uma parte do ano para este e
a outra para a “Fundação”, fazendo eu a divisão [do tempo] como achar melhor. O que ele
[João Alberto] quer é que as possibilidades etnográficas da “Fundação” sejam por mim
aproveitadas, os resultados publicados pela “Fundação” e as coleções reunidas num museu
regional em Aragarças. Isto de eu ficar assim rachado pelo meio eu acho bem desvantajoso, e

114
Rio de Janeiro, 16/02/1945, e Belém, 25/02/1945, ambas MN.
115
Belém, 23/02/1945, p. 229. DU.
116
Rio de Janeiro, 17/08/1945, p. 230, DU.
98

não tenho lá muito entusiasmo pela empresa. Em todo caso, farei primeiro, desde setembro, a
minha planejada estada de seis meses entre os Tucuna, e depois ainda elaborarei os resultados
dela. De maneira que só pelo mês de agosto de 1946 poderei começar os trabalhos para a
“Fundação”.117
O uso de aspas ao citar a Fundação sinaliza a sua desconfiança quanto à seriedade do
empreendimento: “Isto é, se até lá o avanço da expedição Roncador-Xingu já não tiver dado
em massacres e expulsão das tribos da bacia dos formadores do [rio] Xingu. Nesse caso,
ninguém conta mais com a minha colaboração – isto cá muito entre nós!”.
Dois meses depois da conversa, Nimuendajú denuncia o acordo. Bem informado,
conta a dona Heloisa que funcionários da FBC preparam um massacre, sob direção de um
homem de confiança de João Alberto, o engenheiro Carlos Telles, que teria feito um discurso
no sentido “ou acaba-se com os índios ou estes acabam com a civilização”. A prova dessas
intenções é fornecida por José Maria Malcher, inspetor-chefe do SPI em Belém, que
apreendera caixas chegadas do Rio de Janeiro para Telles, contendo bombas e granadas.118
Nimuendajú comunica a dona Heloisa a sua única decisão possível: “Considero-me
definitiva e imediatamente incompatiblizado com a FBC”. O mesmo jeito decidido utiliza ao
dirigir-se ao seu discípulo Harald Schultz: “Não gostei que o senhor deu a foto a Baldus, que
quer publicá-la. Isto seria muito desagradável para mim.”119

O retrato, publicado após sua morte

Antes de iniciar sua última viagem a uma tribo indígena, Nimuendajú se desvencillha
das obrigações profissionais que ainda o ligam ao mundo “civilizado”: rompe com a
117
Belém, 13/08/1945, p. 201, DU.
118
Belém, 14/10/1945, p. 236, GR.
119
Belém, 10/10/1945, p. 219, DU. Schultz também pedia conselhos pessoais, como quando sua mulher o
abandona em 1943, deixando-o sozinho com uma filha de dois anos, mesma idade quando Nimuendajú ficou
órfão de ambos os pais, p. 217, DU.
99

Fundação Brasil Central, rejeita um contrato com o Museu Paraense e considera o contrato
com o Museu Nacional quase extinto. É como se ele somente quisesse estar em contato com
os indígenas.
Não se sabe que dia de novembro Nimuendajú se despede da mulher, dona Jovelina, e
deixa a casinha comum em Belém. No dia 12 de dezembro de 1945, Curt Nimuendajú é
enterrado em São Paulo de Olivença, cidade próxima ao igarapé da Rita. O SPI de Manaus
instaura uma investigação sobre a morte de Nimuendajú cuja conclusão é desconhecida até
hoje – veja o capítulo 11 - As mortes de Nimuendajú.
Dona Heloisa entrega-se à tarefa de resgatar os trabalhos quase concluídos, deixados
por Nimuendajú na casa em Belém. Ela argumenta que o Museu Nacional havia pagado
antecipadamente pelo catálogo de peças arqueológicas, encomendado pelo Serviço do
Patrimônio Histórico, pelas 300 lendas indígenas e pela monografia dos Ticuna. Todos,
portanto, pertencem ao museu e, em consequência, o dinheiro achado no local do falecimento
de Nimuendajú corresponde à viúva, dona Jovelina.120
A diretora do Museu Nacional quer ainda evitar que o espólio intelectual de
Nimuendajú seja enviado ao exterior e, ao mesmo tempo, apoiar financeiramente dona
Jovelina:

Interesso-me pela aquisição de todo o arquivo do Curt: notas, originais, cartas,


biblioteca, em suma, papéis de qualquer natureza. O diretor do Serviço do Patrimônio
Artístico e Histórico Nacional acedeu ao meu pedido de tombar o Arquivo de Curt a fim de
poder se atalhar qualquer tentativa de fazê-lo sair do Brasil. (...) Quanto à forma de aquisição
parece-me que só poderá ser feito num pagamento. A sua sugestão de fazer-se por forma de
concessão de uma pensão à viúva me parece difícil. Entretanto, em vista do merecimento do
Curt, pode-se tentar conseguir do governo uma pequena pensão para a viúva e eu tenho
certeza que o Conselho [Nacional] de Proteção aos Índios não se recusará a tomar essa
iniciativa. Enquanto a pensão não viesse, a viúva viveria do dinheiro deixado pelo Curt e por
quaisquer outros meios que eu poderia consertar [acertar] aqui com pessoas amigas.

Dona Jovelina morreu em 1972, 104 das 300 lendas foram publicadas em 1986 e o
espólio de Curt Nimuendajú está depositado no Museu Nacional.

120
Rio de Janeiro, 07/02/1946, enviada ao inspetor do SPI em Belém, José Malcher, MN.
100

5 - Criativo, autodidata, pioneiro

Nenhum intelectual gosta de ser chamado de autodidata. Mas quer ser pioneiro, inovador,
destacar-se de seus contemporâneos.
Nimuendajú realiza a quadratura do círculo: é pioneiro na Etnologia justamente por ser
autodidata. Por acreditar na sua capacidade de observação, estar focado no chamado “objeto
do estudo” (o indígena, que ele eleva à condição de sujeito) e por recusar-se a demonstrar
pressupostos teóricos. Ele troca permanentemente informações e críticas com outros
estudiosos, mas especialmente consulta os indígenas.
O próprio Nimuendajú revela não ter frequentado a universidade. Em 1939, resume
para o sociólogo Herbert Baldus o que passou a ser conhecido ironicamente entre os
antropólogos como o seu currículo acadêmico: “O senhor quer saber da minha historia
pessoal? É muito simples: nasci em 1883 em Jena, não recebi nenhum tipo de ensino
acadêmico, em 1903 vim ao Brasil, morei até 1913 em São Paulo e daí em diante o Pará tem
sido o meu acampamento central, o resto [é] uma sequência de expedições quase sem
interrupções (...). Não tenho nenhuma foto minha”.1

Durante rito de iniciação numa tribo Canela, nos anos 30.

1
DU, p. 194.
101

A simplicidade dessa observação esconde o essencial: sua postura ética e moral como
pesquisador, vivida no dia-a-dia. O também etnólogo Egon Schaden encontra nas obras de
Nimuendajú reflexos da linha intelectual do pesquisador: “(...) cada uma de suas páginas
testemunha uma preocupação constante e nunca desmentida em confiar apenas em
observações próprias, uma honestidade espontânea em confessar deficiências e lacunas, em
ser o primeiro a apontar o caráter fragmentário do material colhido”.
Schaden aponta outra característica: “um receio quase doentio de propor ou sugerir
alguma interpetação teórica possivelmente falha. (...) E, em terceiro lugar, a atitude humilde
de quem procurava aperfeiçoar cada vez o seu método de trabalho com auxílio dos que
estivessem mais bem informados no tocante aos requisitos teóricos da etnologia moderna”.2
De fato, não é o método desenvolvido por terceiros e absorvido em centros de ensino
que determina sua atitude e a sua ação como etnólogo. É justamente o contrário. Baseado nas
suas convicções, observações e reflexões, Nimuendajú cria métodos de pesquisa para ser
cientista.
Após estudar três de seus livros sobre tribos do grupo linguístico Jê, o antropólogo
Julio Cesar Melatti esboça um perfil revelador: “A própria personalidade de Curt Nimuendajú
era tão surpreendente quanto as sociedades Jê. Tal como elas, Nimuendajú poderia ser
caracterizado por negações: não tinha curso universitário, não era docente de instituições
acadêmicas, não podia ser definido por nenhuma orientação teórica que então florescia. (...)”.3
É justamente esse conjunto de negativas que revela o seu lado afirmativo: “No entanto,
este pesquisador excêntrico, tal como as sociedades que estudava, então conhecidas como
‘tribos marginais’, se destacava entre os demais por uma série de atributos positivos: suas
frequentes pesquisas de campo, seus insistentes retornos às mesmas sociedades, sua defesa
dos direitos indígenas”.

Desprovido de camisa-de-força metodológica, Nimuendajú capta a essência de cada


tribo, acrescenta Melatti: “ao trabalhar com os Guarani, privilegiou o estudo da religião, ao
passar para os Jê, volta-se para os grupos cerimoniais e para os próprios ritos. Nimuendaju
não tinha compromissos teóricos que o desviassem daquilo que os próprios índios lhe faziam
sentir ao espírito observador como o foco motivador de sua existência”.

2
Schaden, Egon, Notas sobre a vida e obra de Curt Nimuendajú, Revista de Antropologia, 1967-8, v. 15-16. p.
82.
3
Os livros de Nimuendajú são The Eastern Timbira, The Apinayé e The Serente, até hoje inéditos em português,
cf. Melatti, 1985, pp. 10 e 18.
102

Seus métodos de coleta estão isentos do viés imposto por uma corrente de pensamento
acadêmico vigente na época de suas pesquisas, afirma a arqueóloga norte-americana Anna
Curtenius Roosevelt: “Como Nimuendajú não coletava seletivamente a exemplo de todos os
outros acadêmicos, suas coleções são algumas das poucas existentes em museus que incluem
amostras de utensílios domésticos (…), que documentam a presença de residências em locais
catalogados equivocadamente como locais ceremoniais vazios”.4

Bom, qual é, afinal, o pioneirismo de Curt Nimuendajú? Responder a essa pergunta


significa passar do singular ao plural. É possível listar um mínimo de 11 exemplos de sua
ação inovadora.

1- Indígena é, finalmente, protagonista

Uma leitura cuidadosa de As lendas da criação e a destruição do mundo como fundamento da


religião Apakokuva-Guarani conduz à conclusão de que Nimuendajú inverte o padrão da
etnologia do século vinte. Ele apresenta a cosmogonia e a cultura indígenas a partir delas
mesmas e não como reflexo ou interpretação de uma ciência centrada na cultura ocidental e
cristã.
Fato inédito na história da Etnografia, o indígena assume seu lugar de protagonista.
Após quatro séculos sendo insisentemente apresentada como uma personagem invisível,
anônima e passageira,, tanto nos relatos de missionários católicos quanto de pesquisadores,
“pela primeira vez, o índio é sujeito e não objeto de estudos”, afirma o etnólogo Viveiros de
Castro, apresentador da versão da obra em português.
Publicada originalmente em alemão em 1914, a primeira tradução foi ao espanhol, 30
anos mais tarde, versão que Nimuendajú não aceitou. Somente em 1987 foi traduzida ao
português.5
Embora a análise de mitos fosse na época o grande instrumento de trabalho dos
etnólogos, “as centenas de páginas que Nimuendaju gasta para contextualizar, comentar e
interpretar os dois mitos que transcreve – cumpre lembrar que sua monografia se quer apenas
como introdução [sic] aos mitos – testemunham algo de novo e de próprio”, acrescenta
Viveiros de Castro.

4
Roosevelt, Anna Curtenius, Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaelogy on Marajó Island, San
Diego, Academy Presse, 1991, p. 165, minha tradução.
5
Viveiros de Castro, in As Lendas, 1987, p, xxiii.
103

Na obra de Nimuendajú, quem fala é o prório índio. Assim, o pesquisador não-


indígena torna-se o transmisssor de conhecimentos desconhecidos pela ciência ocidental. “O
discurso guarani acede aqui ao estatuto de objeto pleno, de totalidade significante em si – ele
ganha a dignidade de um pensamento”.6

Nas suas pesquisas posteriores, Nimuendajú mantém a prática de dar a palavra aos
membros da comunidade visitada. Esta postura teve décadas mais tarde seus seguidores. Nos
anos 50, o antropólogo norte-americano William Crocker ampliou o protagonismo indígena.

Seu colega, Charles Wagley, explica que Crocker reunia seus assistentes Canela e
colocava questões ligadas à estrutura social, às ceremônias e à ideologia da tribo:

Nem sempre os assistentes do painel concordavam, gerando discussões vivas,


gravadas em fitas. Essas discussões ajudavam o antropólogo a aprofundar o passado da
cultura e da sociedade dos Canela; também esclareceram que os indivíduos viam de maneiras
diferentes a sua cultura. Poucas vezes li um livro no qual pessoas analfabetas esclareciam
detalhadamente como fora feita um estudo dessa natureza. Tenho certeza que, se Curt
Nimuendajú estivesse vivo, ele me acompanharia nos parabéns aos Canela e a Crocker pela
publicação desta monografia.7

2 – Fonte é revelada na própria obra

A segunda ação inédita é que Nimuendajú foge do até então tradicional anonimato da fonte,
pois mata a cobra e mostra o pau. Ele cita expressamente as pessoas que forneceram as
informações, na linguagem acadêmica até hoje inexplicavelmente ainda chamadas de
informantes, e uma sintética avaliação de cada uma destas pessoas: “Meus informantes foram
três bons amigos da horda [do grupo] dos Apapocúva, à qual eu também pertenço:
Guyrapaijú, velho e conservador; Tupãjú, muito viajado; e principalmente Joguyrovyjú, o
místico religioso”.8

6
Ibidem. Quase 20 anos mais tarde, este professor do Museu Nacional retoma em 2005 o papel central dos mitos
para propor, em caráter exploratório, uma filosofia indígena, cf. Viveiros de Castro, em A Onça e a Diferença.
7
Prefácio de Charles Wagley do livro The Canela (Eastern Timbira), I: An Ethnographic Introduction, de
William Crocker, Smithsonian Institution Press, 1990.
8
As Lendas, p. 4.
104

O livro, editado em 1914, é seguido por obras sobre outras tribos – nelas consta a
mesma clara identificação dos transmissores das práticas e dos conhecimentos indígenas.
Nimuendajú é, portanto, quem dá início ao atual padrão acadêmico do pesquisador revelar os
nomes de seus interlocutores.
Sua postura é, mais uma vez, aperfeiçoada por Crocker, diz Wagley: “(...) ele recusa o
uso do termo ‘informante’ aos indígenas que instruíram e ensinaram o pesquisador de campo.
No seu livro, ele usa a expressão ‘assistente de pesquisas’. Ele o faz movido pelo respeito
perante eles [os indígenas] e para evitar as implicações negativas desse termo em inglês [em
português também tem atualmente sentido pejorativo]”.9

Nos seus livros, Crocker publica dezenas de fotos de seus assistentes de pesquisa,
dando assim também rosto a esses indígenas Canela. Aliás, Nimuendajú fotografou não
somente seus assistentes Apapocuva e Canela, mas também seus parentes nestas tribos.

3 – Nimuendajú se reconhece indígena

A terceira inovação é que Nimuendajú não esconde o fato de ter sido adotado pelos indígenas
e se considerar um deles. No seu livro sobre os Apapocuva-Guarani, ele historia mais
detalhadamente seu inusitado currículo de indígena adotado: 10

Em 1906 fui incorporado com todas as formalidades na tribo, recebendo o meu nome
índio. Passei a maior parte dos anos seguintes, porém entre as tribos Kaingýgn, Coroados,
Ofaié (Xavantes) e Chané (Terenas), vendo os Guarani só ocasionalmente. Em 1911, voltei,
pelo Serviço de Proteção aos Índios do governo brasileiro, para a minha aldeia durante alguns
meses, passando depois quase todo o ano seguinte com as diversas hordas do Estado de São
Paulo, em 1913 também no sul de Mato Grosso [atual MS]. Tenho sempre vivido como um
índio entre índios: aprendi assim o Guarani, certamente com imperfeições, mas talvez melhor
que muitos que escreveram mais sobre a língua do que eu.

9
Wagley, Charles, ibid.
10
As Lendas, p. 4 e 3. No século 19, houve uma situação parecida de convivência integral. O cientista húngaro-
alemão Johan Stanislau Kubary viveu entre os nativos da ilha Palau, no Oceano Pacífico. Casado com uma
mulher da região, transformou-se no portavoz dos palauenses perante os europeus, que o rejeitaram. Como seus
escritos não foram entendidos pelos etnólogos da época, virou capataz de escravos numa fazenda de Palau,
passou a beber e acabou se suicidando. Cf. Werner Petermann, Die Geschichte der Ethnologie, Peter Hammer
Verlag, Wuppertal, 2004, p. 536.
105

Sua autoridade entre os indígenas provêm exatamente do fato de viver intimamente


com os mesmos. É a confiança destes que lhe permite ter acesso a segredos tribais, o que,
aliado à sua capacidade intelectual, o transformam em pesquisador. Independente de título
universitário ou filiação a uma efêmera corrente acadêmica.

Contra os cânones acadêmicos, Nimuendajú publica uma foto de sua família indígena.

Ao ocupar este instável meio-termo entre pesquisador ocidental e membro de uma


tribo, Nimuendajú vira de cabeça para baixo o esquema (até hoje em parte vigente) de olhar a
cultura indígena para enxergar nela a sociedade de origem do cientista, afirma Viveiros de
Castro: “Este debruçar-se sobre as questões alheias [sic] é o que distingue a verdadeira
etnografia de uma mera acumulação de ‘fatos’ (que, devidamente registrados, respondem a
tudo – ou nada – que se lhes pergunte)”.11

4 – Pesquisador deveria aprender a língua indígena

Em 1914, Nimuendajú propõe que os etnólogos aprendam a língua do grupo étnico que
pretendem visitar, do jeito que ele fez com os Apapocuva. A principal vantagem dessa medida

11
Viveiros de Castro,p. xxiv.
106

é que o pesquisador penetra profundamente na cultura a ser estudada: “É impossível exigir de


um índio a tradução numa língua européia de mitos como o do Iñypyrû, que se conformasse
ao espírito do original. Ao passo que nós precisamos encontrar as concepções fundamentais
da religião original, o índio pressupõe, como absolutamente naturais e óbvios, este
conhecimento e um número de outros [conteúdos] que o observador [pesquisador]
normalmente não possui”.12
Nimuendajú tem consciência de que o tradutor acaba sendo uma espécie de filtro entre
pesquisado e pesquisador. Sabe que, mesmo falando a língua local, poderiam surgir
interpretações pessoais. Sem professor-orientador nem compêndio para consultar, o zeloso
Nimuendajú cria o recurso de pedir aos indígenas que ditem as lendas, às quais ele afirma não
ter introduzido modificações.
Sua prática etnológica no início do século 20 de aprender a língua indígena torna-se
objeto de discussões lideradas pelo seu parceiro intelectual, Robert Lowie, na década de 30,
na Universidade da Califórnia. Lowie gostaria de aprofundar a ácida discussão que já dura
anos nos EUA e, em julho de 1937, pergunta a Nimuendajú: até que ponto é desejável o uso
de tradutores no trabalho dos etnólogos? Sua opinião é de que se os pesquisadores falassem a
língua dos grupos visitados entrariam livre e diretamente em contato com essas pessoas.13
Um mês depois, Lowie disse concordar plenamente mutatis mutandi com a
experiência de Nimuendajú. Lamentavelmente, eu não achei no Museu Nacional nem a sua
resposta ou qualquer carta de Nimuendajú abordando diretamente essa questão.14
Em suas obras, encontram-se exemplos de como o fato de falar a chamada língua geral
e conhecer algumas palavras da língua da tribo o ajudam a se orientar nos seus diálogos. A
idéia dos pesquisadores aprenderem a língua tribal só encontra adeptos a partir da década de
60 do século 20.

5 – Aplica a observação participante antes de Malinowski

Nimuendajú é um dos pais intelectuais de um conceito que iria revolucionar a Etnologia no


século 20: a observação participante como método de trabalho de campo. É também o
primeiro a colocá-lo em prática. Até então, os cientistas visitavam inúmeros grupos numa
única viagem, ficando curtas temporadas em cada aldeia.

12
As Lendas, p. 110. Iñypyrû é a narrativa da Era do Morcego, anterior à criação do sol e da terra, na cosmologia
apopokuva. Anos depois, ele emprega o mesmo método na coleta de lendas em outras tribos.
13
Berkeley, 17/07/1939, DU, p. 295.
14
Berkeley, 17/08/1939, DU, p. 296.
107

Naquela época, os pesquisadores “mantinham distância das pessoas pesquisadas e


identificavam-se exclusivamente com sua própria cultura, observando os problemas das
culturas alheias através da visão e do ângulo da sua própria cultura”, afirma Dungs, o primeiro
a estudar os métodos de pesquisa de Nimuendajú.15
A nova abordagem consiste em que o pesquisador fica longo tempo no grupo
escolhido, participando do dia-a-dia da aldeia. Nimuendajú permanece mais de cinco anos em
contato direto com os Apapocuva, aprende a língua destes e é aceito como membro integral
da tribo. Só depois é que publica As Lendas. Sua observação a este respeito é magistral: 16

Grande é o número de fábulas de animais. Estes são os elementos que mais facilmente
se obtêm do índio, que ele menos teme comunicar ao estranho. Por isso, este tipo de mito foi
mais frequentemente observado e detalhadamente registrado. Disto decorre facilmente a
impressão de que a religião dos índios consiste apenas nestas fábulas ou que, pelo menos, elas
constituem seu elemento principal. Se, contudo, o observador tivesse sempre sido considerado
pelos índios como companheiro de tribo e de crença, e tivese tido o domínio de sua língua, o
quadro das religiões sul-americanas originais ter-se-ia configurado, provavelmente, como
diferente sob muitos aspectos, e menos primitivo e rústico na sua totalidade, do que hoje é em
geral o caso, devido à forma da observação empregada.

A ênfase neste longo parágrafo está justamente no final da última frase: “devido à
forma da observação empregada”. Este texto faz parte do livro As Lendas, publicado em 1914,
que é de fato a primeira aplicação do método científico posteriormente conhecido como
“observação participante”. Nimuendajú simplesmente publica os resultados do método
elaborado e aplicado com sucesso nos anos anteriores. Sem alarde, sem ostentação. Ou talvez
sem ter consciência da sua própria descoberta.

É no mínimo curioso que as questões básicas levantadas e colocadas em prática por


Nimuendajú entre 1908 e 1912 constituam os alicerces da obra do antropólogo polonês
Bronislau Malinowski, de 1922. Na visão predominante até hoje, ele é o criador do método da
observação participante.17

15
DU, p 64.
16
Nimuendajú, As Lendas, p. 110.
17
Malinowski (1884-1942) realizava suas pesquisas na Nova Guinea quando teve início a primeira guerra
mundial. Por ter passaporte austro-húngaro, foi confinado pelos ingleses nas ilhas Trobriand, no Oceano
Pacífico, cf. Kramer, Fritz W., Schriften zur Anthropologie / Bronislaw Malinowski, Eschborn bei Frankfurt am
Main: Klotz, 1999.
108

Sua metodologia, redigida em 1921, baseia-se em três pontos: “(...) em primeiro lugar,
naturalmente, o estudante deve possuir objetivos realmente científicos e conhecer os valores e
os critérios da moderna Etnografia. Em segundo, ele deve criar para si boas condições de
trabalho, isto é, em geral, viver sem [entrar em contato com] outros homens brancos,
diretamente entre os indígenas. Finalmente, ele tem de aplicar uma série de métodos especiais
de coleta, de manuseio e fixação das evidências”.18
Lá estão a teoria e a prática de Nimuendajú de 1908 a 1914, espelhadas na obra de
Malinowski, publicada em 1922: conhecimento científico, convivência com os indígenas,
coleta e processamento adequado do material recolhido.
Viveiros de Castro ja chamou a atenção, cuidadosamente, para este fato em 1986:
“Temos um texto de 1914 - ano em que ainda se gestava o mito do ‘trabalho de campo’ com o
exílio de Malinowski - que testemunha a prática de uma demorada ‘observação participante’
integral e consciente (sobredeterminada, como que para maior modernidade, por funções de
mediação inserida no indigenismo positivista que então nascia); que demonstra o controle e o
emprego da língua nativa enquanto ao mesmo tempo condição necessária, instrumento
principal e objeto privilegiado de análise (...)”.19
Há, contudo, uma divergência essencial entre ambos. Malinowski propõe que o
cientista pense as teorias antes de contatar os indígenas: “(...) enquanto mais problemas ele
levar consigo para o campo, mais ele terá o hábito de moldar suas teorias de acordo com os
fatos e de ver os fatos agindo sobre a teoria, e melhor preparado estará para o trabalho”.20
Nimuendajú, ao contrário, abandona a visão eurocêntrica e quer revelar o indígena por
ele mesmo: “Para que eu, porém, mesmo inconscientemente, não introduzisse meu próprio
estilo e minhas opiniões pessoais nos textos originais, fiz com que pessoas competentes me
ditassem as lendas. A estas narrativas não acrescentei nem diminui uma só palavra, se bem
que às vezes isto pudesse ter sido necessário, mesmo segundo a opinião dos índios. Assim,
estes textos são um testemunho, não de como os Guarani deveriam falar, ou talvez pudessem
falar, mas como de fato o fizeram a mim”.21

Esclarecida a origem do método, resta a pergunta de um eventual plágio. Será que


Malinowski se apropriou da obra intelectual de Nimuendajú? A hipótese é plausível. Há sinais
inquietantes nesse sentido. No seu livro, Malinowski escreve uma frase enigmática: “A

18
Malinowski, Bronislaw, Argonauts of the Western Pacific, E. P. Duton & Company, New York, 1960, p. 6,
minha tradução.
19
Viveiros de Castro, p. XXII.
20
Malinowski, p. 9.
21
Nimuendajú, As Lendas, p. 4.
109

análise psicológica dos pensadores alemães [ele somente cita Bastian] trouxe uma abundante
colheita de informações muito valiosas dos resultados obtidos pelas recentes expedições
alemãs na África, América do Sul e no Pacífico (…)”.22
Uma análise cronológica de suas expedições mostra que ele chegou à sua versão do
método após a publicação da obra de Nimuendajú. Ele mesmo confirma esta sequência
temporal (causal?), mas sem citar de maneira alguma Nimuendajú. A primeira expedição de
Malinowski é realizada de agosto de 1914 a março de 1915, na ilha de Woodlark. Ele visita
periodicamente a aldeia acompanhado por um guia “branco”.
Os resultados são parcos, lamenta: “Eu bem sabia que o melhor remédio para isso
[falta de diálogo com os indígenas] era coletar dados concretos e por isso fiz um censo na
aldeia, levantei quadros genealógicos e termos de parentescos. (...) Nada avançava em termos
de obter [acesso] às suas idéias religiosas e mágicas (...)”. Más é só Malinoskwi ficar sozinho
entre os indígenas que começa a ter acesso “à magia do etnógrafo que o leva a evocar o
espírito real dos indígenas, a imagem real da tribo”. Porém, ele só a aplica meses depois (a
partir de maio de 1915) na sua segunda expedição, em outra comunidade, na ilha de
Trobriand. Os resultados: “Passei a sentir que estava em contato com os indígenas”.23
Mesmo o início da Primeira Guerra Mundial em julho de 1914 não teria impedido que
a revista Zeitschrift für Ethologie, onde Nimuendajú publicara sua obra, chegasse às mãos de
Malinowski, que mantinha contato com a London School of Economics, de Londres. A leitura
da monografia em alemão não seria problema – afinal, ele estudara inicialmente Economia na
Universidade de Leipzig, antes de se mudar a Londres.
Os indícios de um possível plágio são fortes. Mas indícios não constituem provas. No
final do século 19, o etnólogo norte-americano Frank Hamilton Cushing já tinha morado com
indígenas Zuñi daquele país. Desconheço se Nimuendajú soube disto ou, quem sabe, talvez
inspirou-se em Cushing.
Já foram documentadas situações parecidas de pessoas que tiveram idéias semelhantes
demais ou inventaram aparelhos ou métodos quase na mesma época. Uma explicação desta
“coincidência” seria a existência de campos morfogenéticos, ou seja, certas idéias, princípios
em estado puro, se tornam acessíveis a algumas pessoas, em lugares diferentes e épocas
semelhantes, independente de contatos entre elas.24
Curioso é que, até no Brasil, Malinowski é tido como o precursor do método da
observação participante.

22
Malinowski, pp. 9 e 5.
23
Ibid, p. 7 e 6. A terceira expedição vai, com interrupções, até setembro de 1918.
24
Church, Dawson, Die neue Medizin des Bewusstseins, VAK Verlag, 2008, p. 168.
110

Fica o mistério de como Nimuendajú – sem qualquer formação acadêmica e nenhuma


experiência anterior com indígenas – cria o método e o utiliza para escrever o primeiro livro a
partir dessa técnica. Dungs acredita que Nimuendajú inaugurou a observação participante
devido à sua postura pessoal e ideológica: “A base residia na sua atitude de republicano e
democrata, em oposição à superestimação da própria cultura, vigente no imperio alemão e em
consequência entre os europeus com relação aos nativos de outras regiões do mundo”.25
Possivelmente, Dungs chegou a essa conclusão depois de entrevistar um colega de
trabalho de Nimuendajú, o pesquisador e indigenista José Maria da Gama Malcher. Esse
antigo funcionário do SPI explica que:

Ele [Nimuendajú] dizia que muitos etnólogos trabalham de maneira superficial e que
não chegam ao miolo das questões. Nas suas palavras, devido à situação em que nos
encontramos, devemos chegar ao fundo. Ele sempre ia fundo. (...) Ele estudava para entender
e aprender. Identificava-se com seu trabalho e seus amigos, os indígenas. Falava sempre de
NÓS [sic], ou seja, sentia-se um indígena, batia no peito e dizia NÓS [sic]. (...) Ele não falava
de política [indigenista], [ele] era indígena dia e noite.26

O depoimento de um outro contemporâneo de Nimuendajú mostra como ele captava


um lado essencial da vida indígena. Expedito Arnaud, ex-diretor do Museu Emilio Goeldi,
privou da amizade de Nimuendajú ao longo de 20 anos: “Quem mora muito tempo com os
indígenas, sabe como é com eles: quem quiser morar com eles vai ter que casar logo. E
Nimuendajú queria ficar com eles. Os indígenas também queriam segurar um homem
importante, ‘aparentá-lo’ na tribo. O parentesco é muito importante para os índios, parte de
sua vida política e da organização social”.27
O etnólogo Egon Schaden, irmão indígena de Nimuendajú, aprofunda o conceito de
observação participante: “Não basta comer alimentos indígenas, beber cauim de milho ou de
batata doce, dormir em rede de buriti, pintar-se com jenipapo e urucu e participar de danças e
cerimônias tribais – é preciso sentir na própria carne os problemas do grupo como os próprios,
temer as mesmas ameaças, acalentar as mesmas esperanças, encolerizar-se com as mesmas
injustiças e arbitrariedades”.28

25
DU, p. 65.
26
DU, p. 164.
27
Ibid, p. 166.
28
Schaden, Egon, Quarenta anos de Curt Nimuendajú a serviço do índio brasileiro e ao estudo de suas culturas.
1973, p. 86.
111

6 – Religião guarani resistiu à influência jesuítica

Outra inovação de Nimuendaju é que ele lança um tema que, até então, não existia – a
influência do cristianismo, mais especificamente da congregação dos Jesuitas, na religião das
tribos do grupo linguístico Tupi-Guarani. A chegada dos portugueses ao Brasil no início do
século dezesseis é seguida pelo envio dos primeiros missionários em 1548. Como a conversão
dos indígenas à religião cristã requeria o conhecimento de suas crenças, muitos sacerdotes
dedicaram-se a aprender a língua e a religião, com destaque para o jesuíta Antonio Ruíz de
Montoya.
Viveiros de Castro afirma que a questão da influência cristã é inevitável “diante de um
sistema de pensamento fundado numa visão dual da pessoa onde ‘verbo’ e ‘carne’ se opõem,
onde a noção da divindade é concebida como um Logos [sic] criador, onde o apocalipse – o
apocalipse e não a gênese, o futuro e não passado – constitui-se como pólo orientador da vida
religiosa”.29 Ele opina que, neste tema, Nimuendajú rompe sua postura neutral e toma partido,
pois ele “descarta firmemente qualquer marca jesuítica apreciável na religião dos Apapocúva
-como fará Leon Cadogan mais tarde para a teologia Mbyá-Guarani -, abrindo com isso um
debate que perdura”.
Nimuendajú mostra também o outro lado da medalha: são justamente os religiosos
cristãos, jesuítas e de outras congregações, que descaracterizaram as divindades indígenas.
Ele discorda assim da centenária afirmação de que Tupã é o equivalente ao Deus cristão: “Sua
viagem para (a morada de) Ñandecý é representada de modo tão autenticamente Guarani,
que não pode haver dúvida quanto à genuidade de Tupã enquanto personificação do
trovão”.30 O mesmo acontece com Añá, o ser divino que, segundo os jesuítas, representava o
demônio: “Ele não tem nenhuma relação com Tupã, de quem – conforme o uso da linguagem
missionária – deveria ser o antagonista”.

7 – Nimuendajú revela cosmologia e escatologia Tupi-Guarani

Embora fossem conhecidos desde a chegada dos portugueses ao Brasil, nem religiosos nem
pesquisadores conseguiram tomar conhecimento da existência de uma visão cosmológica
eescatológica dos Tupi-Guarani. Mesmo as migrações de fundo religioso eram sucintamente
apresentadas nos relatos feitos a partir do século 16 pelos sacerdotes europeus. Segundo

29
Viveiros de Castro, p. xxvi.
30
Nimuendajú, As Lendas, p. 55.
112

Viveiros de Castro, a obra As Lendas mudou isso, pois ela mostra um verdadeiro achado
etnológico – que o complexo profético-migratório Tupi-Guarani continua existindo:
É com este ensaio também que se introduz na literatura [etnológica] o tema da “Terra
sem Mal” (e a propria expressão, hoje célebre). É aqui que se encontra a primeira descrição da
escatologia Guarani, a qual articula um dualismo espiritual do ser humano (alma-palavra
celeste, alma-animal terrestre) a uma lógica da sublimação da corporalidade, e que gira em
torno do tema de uma aniquilação cósmica da qual é possível escapar pelo acesso hic et nunc
[sic] ao paraíso – uma escatologia que afirma a finitude humana mas ao mesmo tempo
persegue a superação imediata desta condição pela ascese ou pelo excesso.31

Posteriormente, estudiosos transformariam em certeza a hipótese formulada por


Nimuendajú sobre as migrações para a Terra sem mal, como é mostrado no capítulo 3 – A
criação e a destruição do mundo.

Mapa de migrações guarani, desenhado por Nimuendajú em 1914.

31
Viveiros de Castro,p. xxvi.
113

8 –Apresenta as complexas tribos Jê

A partir de 1937, Nimuendajú repete a dose inovadora ao apresentar trabalhos que


transformam a pesquisa etnológica de tribos localizadas no Brasil. Agora é a vez das
sociedades do chamado grupo Jê.32 Até então, os poucos estudiosos interessados nas tribos
localizadas no Brasil Central usavam relatos reaproveitados de viajantes do século 19. Esta
abordagem ainda se mantinha no final dos anos 30.
A obra etnológica básica era o livro The American Indian, de Clark Wissler, de 1917,
que incluía todas as tribos da planície tropical no que denominou de “área da mandioca”. Aí
estavam também os Jê.
É a entrada em cena de Nimuendajú, apoiado por Lowie, que transforma esse cenário,
afirma o professor norte-americano Charles Wagley: “Até poderia se afirmar que Curt
Nimuendajú deu início a uma nova era na antropologia social e cultural da planície tropical
sul-americana e que suas pesquisas ‘levaram ao fim’ algumas visões até então existentes com
relação à etnografia desta parte do mundo”.33
Já em 1929, Nimuendajú pressente estar revolucionando o conceito etnológico vigente
sobre os Jê: “Reconhece-se que estes povos Jê são algo mais do que algumas pessoas pensam
e que sua cultura não deve ser mais tratada como algo que menor. Como é que caberiam a
matrilinearidade, duas classes de casamento, danças de máscaras, ritos de iniciação de jovens,
festa da primeira mestruação, o sol e a lua como a dupla da criação, com a idéia de ‘cultura
primitiva’?”34
Quase dez anos após a publicação do último livro de Nimuendajú em inglês em 1946,
surgem nos Estados Unidos duas vertentes de estudo dos grupo Jê. A primeira é iniciada por
David Maybury-Lewis, que, em 1955, estuda os Xerente e, em 1958, os Xavante.
Logo é criado o chamado Projeto Brasil Central Harvard, junto com o Museu
Nacional, do Rio de Janeiro. Dele participaram alguns dos mais renomados antropologos
brasileiros dessa geração, tais como Roberto da Matta e Júlio Cezar Melatti. A segunda
iniciativa apoia-se na pesquisa individual de William Crocker, do Instituto Smithsonian, que
em 1957 esteve pela primeira vez entre os Canela, num total de sete viagens.35

32
A família linguística Jê é formada por tribos como os Canela, Krahô, Apinaye, Xavante, Xerente, Kaingang,
Gavião e Krikiti, entre outros. No início do século 21, a maioria delas contavam com menos de cinco mil
habitantes, cf. Povos Indígenas no Brasil, Línguas, Introdução, Instituto Socioambiental,
http://pib.socioambiental.org/pt 2010.
33
Wagley, Charles, prefácio ao livro de David Maybury-Lewis, Dialectical Societes, The Gê und Bororo of
Central Brazil, Harvard Presse, 1979, p. ix, minha tradução.
34
Belém, 14/06/1929, carta a Krause, DU, p. 239.
35
Wagley, p. ix.
114

Esta enxurrada de pesquisadores dispostos a apresentar elementos novos e


interpretações diferentes mostrou também visões conflitantes com as detectadas por
Nimuendajú. Melatti faz um resumo de “erros” cometidos por Nimuendajú na pesquisa das
tribos do grupo Jê. Citando Roberto da Matta, ele afirma que “os quatro grupos exogâmicos
de descendência paralela, descritos por Nimuendaju na monografia sobre os Apinayé, na
verdade não existem”.36
As pesquisas de Maybury-Lewis junto aos Xerente mostram resultado semelhante. Ele
conclui pela inexistência “da regra de residência patrilocal, afirmada por Nimuendajú. E como
não se encontraram metades matrilineares exogâmicas nos grupos Timbira posteriormente
pesquisados, é muito provável que elas também não existam entre os Ramkokamekra, como
relatou Nimuendajú”.37
Melatti pergunta como explicar tais erros etnográficos num pesquisador tão cuidadoso
como Nimuendajú. Ele passa a palavra a Maybury-Lewis, que supõe “(...) que, no caso dos
Xerente, tais imprecisões se devem ao fato de Nimuendajú estar tentando reconstruir uma
sociedade que havia sido muito [tempo] modificada pelo contato [com os brasileiros]”.
Assim, ganha força a hipótese de Roberto da Matta: “(...) a maneira como apresenta
certos dados referentes à organização social também permite supor que Nimuendajú não
usava com a frequência esperada as genealogias (...) e as anotações censitárias. É possível
também que Nimuendajú se apoiasse muito em certos informantes (note-se como fala
freqüentemente em Jose Dias Mãtuk, um chefe Apinayé) que muitas vezes lhe apresentavam
uma imagem ideal de certas instituições, interpretada, quem sabe, de um ponto de vista muito
pessoal”. Fica a pergunta se Nimuendajú terá confundido o seu desejo de ver as sociedades
indígenas mais fortemente estruturadas com a situação real das mesmas durante suas
expedições nas décadas de 1920 a 1940.

9 – Elabora o primeiro mapa etno-histórico brasileiro

É justamente o autodidata Nimuendajú quem elabora sozinho o primeiro mapa das etnias
residentes em território brasileiro, publicado em 1981 pelo então IBGE. Os dados nele
incluídos impressionam: são citadas 972 tribos, 889 fontes bibliográficas38 e em torno de
500 rios.

36
Melatti, 1985. p. 19, e Roberto da Matta, Um mundo divido, Vozes, Petrópolis, 1976, p. 133, citado por
Melatti, p. 19.
37
Maybury-Lewis, Cultural Categories of the central Gê in Dialectical Societes, Cambridge, Hardvard
University Press, 1979, p. 232 in Melati, p. 19.
38
Arnaud, DU, p. 138.
115

Tudo isso, compactado num mapa que, na versão original, utilizava várias cores e,
impresso, ocupava um espaço de dois metros de comprimento por dois de largura.39
Ninguém sabe ao certo quantas versões elaborou Nimuendajú desse mapa único em
seu gênero. Em 1935, ele faz a primeira referência conhecida sobre o futuro mapa.40 Dungs
afirma que o segundo exemplar foi enviado ao antropólogo Julian Steward, do Smithsonian
Institution, em 1942, e o terceiro entregue ao Museu Nacional no mesmo ano.41
A antropóloga Berta Ribeiro dá uma versão diferente: “O Mapa, refeito três vezes, a
primeira em 1942 para o Smithsonian Institution, que o publicou no Handbook of South
American Indians (...); o segundo, elaborado para o Museu Goeldi, e o terceiro, para o Museu
Nacional (…)”.42
Em palestra na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 2009, um dos
responsáveis pelo mapa publicado pelo IBGE, George Zarur, cita mais um exemplar, que teria
sido entregue ao então inspetor do SPI em Belém, José Maria da Gama Malcher, e destruído
no incêndio da sede do SPI em 1968.43
Independente dessas divergências quanto à confecção do mapa, ele é um documento
de valor inestimável. Paradoxalmente, passaram-se quase quarenta anos até que alguns
intelectuais brasileiros e a burocracia reconheceram a potencialidade encerrada nesses poucos
metros quadrados de papel colorido a mão.
Na apresentação do mapa impresso em 1981, Berta Ribeiro mostra os possíveis usos
do mapa. A partir dele, seria possível explicar “a grande atomização de etnias (1.400 no Brasil
e países limítrofes), a imensa pulverização lingüística (40 troncos com centenas de línguas e
dialetos)”. Também poderia contribuir para entender os efeitos da penetração de frentes de
colonização em territórios indígenas e as reações das populações locais. Mas também saber
mais a respeito da ecologia cultural indígena.44
Quanto ao produto impresso, Zarur dá a entender que a técnica gráfica em 1981 ainda
não estava em condições de reproduzir fielmente o trabalho de Nimuendajú: “As
classificações não foram alteradas, mas certos sinais do mapa, alguns de difícil leitura e de
quase impossível tratamento gráfico para impressão, foram alterados”.45

39
Ribeiro, Berta, O mapa etno-histórico de Curt Nimuendajú, Revista de Antropologia, Separata do volume
XXV, São Paulo, 1982, p. 178. Dungs diz que a primeira versão media 2,40 por 1,80 metros, Dungs, p. 178.
40
Carta de 22/01/1935 a Estevão de Oliveira, CS, p. 221 e rodapé 164, p, 378.
41
DU, p. 138.
42
Ribeiro, p. 178., hipótese adotada por Thekla Hartmann, em CS, rodapé 164, p. 378.
43
Zarur, George, palestra em 2009 na SBPC in www.georgezarur.com.br acessado em 29/03/2011.
44
Ribeiro, p. 179. A linguista Charlote Emmerich, que traduzira a primeira obra de Nimuendajú, conferiu a
notação fonética e a ortografia dos nomes das tribos.
45
Zarur, Ibidem.
116

Nada disso seria novidade para Nimuendajú, se ainda estivesse vivo. Suas anotações
testemunham que as condições objetivas para o levantamento das informações em campo
também estavam longe do ideal. Faltavam dinheiro e infraestrutura de apoio, sobravam
perseguição política e ataques ideológicos e físicos.
Fiel ao seu autodidatismo, ele viaja sozinho, levando seu equipamento, diz Dungs:
“Toda vez que adentrava um território ou navegava um rio, Nimuendajú desenhava um
croquis a mão na sua caderneta de campanha. Os trajetos eram medidos com o relógio em
minutos e segundos, calculando ainda a velocidade de deslocamento da canoa. Com a bússula
determinava as variações do rio, os pontos de referência e a distância [entre estes]. Às vezes
incluía coordenadas astronômicas”.46
O trabalho solitário de desenhar, escrever, conferir nomes e localizações em sua casa
de Belém também exige tempo e dedicação. Afinal, todos os mapas foram desenhados e
pintados a mão, lembra Berta Ribeiro: “(…) no dizer de Nimuedajú, [ o mapa] quase ocupava
o espaço [todo] do seu local de trabalho, impedindo-o de trabalhar mais de 5 horas seguidas
em sua elaboração, pelo desconforto que representava seu manuseio”.47

A obsessão de Nimuendajú quanto à precisão e à qualidade do próprio trabalho fica


patente na carta enviada ao etnólogo Julian Steward, que se prontificara a visitá-lo em Belém:
“Acho muito bom que eu possa lhe mostrar aqui o mapa, indicando as deficiências, pois
embora o mapa PRECISE [no original] de melhorias ele EXIGE muito trabalho”.48
Na verdade, este documento etno-histórico é a coroação de outros trabalhos
semelhantes, feitos a longo de sua vida de cartógrafo autodidata. O primeiro mapa conhecido
de Nimuendajú foi elaborado em 1906, a pedido do diretor do Museu Paulista, Hermann von
Ihering.49
A pergunta que surge é como o autodidata aprendeu as diversas disciplinas que lhe
permitiram elaborar mapas. Uma pista é fornecida por Berta Ribeiro: “Nimuendajú exprimiu
suas habilidades de artesão, adquiridas quando exercia o ofício de mecânico-ótico, na
adolescência [na Alemanha], aliadas a seus conhecimentos de historiador, geógrafo,
cartógrafo e etnólogo [no Brasil]”.50

46
DU, p. 137. Nimuendajú também levava uma máquina de escrever e um fuzil nas suas expedições.
47
Ribeiro, p. 178.
48
Belém, 25/01/1942, DU p. 329.
49
DU, p. 137. Posteriormente ele desenha um mapa da localização do Terena, anexado ao seu relatório de 1913
ao SPI, mas também cartas para efeitos de desapropriação de terras para grupos indígenas.
50
Ribeiro, p. 178.
117

10.- Descobertas arqueológicas

Igualmente autodidata em Arquelogia, ele contribuiu com duas hipóteses, ambas confirmadas
décadas depois, além de mais duas, tidas como prováveis. Para chegar a isso, ele examina
cuidadosamente as peças achadas pelo cientista Emilio Goeldi, existentes no Museu do
mesmo nome. Ex-diretor desse museu, Nimuendajú também estuda os documentos daquele
cientista. Mas principalmente realiza escavações na Amazônia em condições de trabalho hoje
consideradas impossíveis.

Mapa das excavações feitas por Nimuendajú noTocantins.

Em agosto de 1924, ele visita várias ilhas no delta do Amazonas, em torno do


archipélago de Marajó.
Nelas descobre urnas em cemitérios de tribos extintas e compara-as com urnas
conhecidas: “A ilha de Caviana em que os quatro cemitérios de urnas evidenciam igual
número de tipos cerâmicos [dos quais nenhum é idêntico aos conhecidos de Marajó]51 mostra

51
Esta frase não foi traduzida, cf. original Streifzüge in Amazonien, Ethnologischer Anzeiger, p. 95, II, 2, 1929.
118

claramente a complexidade da história do povoamento da foz do Amazonas: os dois


cemitérios da época do Descobrimento, Apani e Bacabal, são totalmente diferentes. Nessa
região só se tem notícia dos Aruã históricos, aos quais provavelmente pertenceram as urnas de
Pacajá e talvez também as de Rebordelo; estas representando a cerâmica no momento do
contato e as primeiras representando um período mais recente de decadência da arte oleira,
com forte influência européia”.52
No mesmo ano desse achado, já formula a hipótese de que a “cerâmica pintada”
seria uma prova de que “os Aruã são um elemento relativamente recente e, que tanto na
[ilha da] Caviana como no [na de] Marajó, foram precedidos por povos diferentes: os
fabricantes daquela louça pintada que todos nós admiramos”.53
Em 2004, o arqueólogo Eduardo Góes Neves conclui que Nimuendajú “propôs que, na
cronologia do delta do Amazonas, a cerâmica Aruã marcaria a última ocupação, sendo mais
recente do que a cerâmica policrômica da fase marajoara (…). Esta hipótese foi
posteriormente confirmada por Meggers & Evans (1957:534-539)”.54
Em abril de 1923, mais uma descoberta. Nimuendajú sobe o rio Tapajós rumo a
Santarém. Ele vai à procura de cerâmica pré-colombina, inspirado em leituras de Emilio
Goeldi, que visitara a região no século 19. Em Santarém, o lugar mais insuspeito já sugere o
que ainda viria: “levei três dias a catar fragmentos de uma cerámica antiga, muito interessante,
nas sarjetas das ruas desta cidade. Parece incrível, mas em 24 horas eu já tinha juntado um bom
princípio para uma coleção arqueológica! O molecório me ajudou com afinco para ganhar
qualquer tostão ou cruzado tambem”.55
É nos arredores desta cidade que ele, de 1923 a 1926, localiza 65 sítios arqueológicos,
que teria mais sambaquis ainda.56

Nimuendajú desenterra alguns objetos intactos e muitos cacos, comparando-os com


peças de cerâmica depositadas no Museu Emilio Goeldi e desenhos publicados em livros.
Após concluir que o “estilo Tapajós” é genuinamente pré-colombino, sugere uma ligação com
as culturas da América Central: “Figuras que mostram formas animais e humanas são, porém,
muito comuns ao norte do Equador [em direção à América Central]. (…) Por parte dos

52
Nimuendajú, Excursões pela Amazônia, Revista Antropológica, vol. 44, no.2, p. 3, São Paulo 2001.
53
Carta de Pracutuba, Caviana, 29/8/1924, CS, p. 62.
54
Neves, Eduardo Goes, The relevance of Curt Nimuendajus Archeological Work, em In Pursuit of a past
Amazon, Curt Nimuendajú, Gotemburg, 2004, p. 7, minha tradução. O casal de arqueólogos Betty Meggers e
Cliff Evans pesquisou intensamente a Amazônia de 1950 a 1990.
55
Santarém, 20/04/ 1923, CS, p. 35, a Carlos Estevão.
56
Nimuendaju, Curt, Os Tapajó, Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, vol x, p. 90 a 106, 1949, p, 102. O
trabalho foi concluído em 1939.
119

Tapajó, é preciso mesmo contar com uma fantasia muito fabulosa, pois pode-se esperar tudo
de quem teve a louca idéia de combinar os pés de uma taça ou um relógio de areia com os pés
em forma de lâmina ou tripés”. 57

Um dos achados arqueológicos de Nimuendajú depositados no Museu de Gotemburgo.

Nimuendajú envia as peças ao Museu de Gotemburgo, mas encontra cerrada oposição


do diretor à sua hipótese.
A Carlos Estévão, ele confessa: “Nordenskiöld ainda não se conformou com a
cerâmica de Santarém. Diz ele que não sabe o que fazer dela, e continua: seria possível que
ela fosse póscolombiana [pós-colombina] e influenciada pelo gosto português do século XV?
Francamente, uma tal suposição eu não esperava de Nordenskiöld!”.58 Anos depois,
Nordenskiöld adota a teoria por ele proosta.59
Nimuendajú ainda sugere que os caminhos trilhados pelos indígenas numa possível
conexão América Central-Santarém estariam localizados longe da costa atlântica: “Nenhum

57
Santarém, 18/01/1925, MG.
58
Santarém, 18/01/1925, CS, p. 73.
59
Neves, p. 6.
120

estilo cerâmico no território brasileiro apresenta tantos elementos em comum com os estilos
da parte meridional da América Central (Chiriqui, Darién) como o dos Tapajó.(...). O caminho
pelo qual chegou este conjunto de elementos até a foz do Tapajós ainda não foi determinado,
devido à grande falta de material proveniente das regiões intermediárias. Parece porém que a
via não foi pela costa e pelo Amazonas acima, porque na região do foz deste rio falta a
maioria daqueles elementos”.60 Meggers e Evans confirmaram essa hipótese em 1957.61
Outra descoberta refere-se à cerâmica por ele achada na região habitada pelos Palikur,
nas proximidades do Oiapoque (AP). A partir da análise desses objetos, Nimuendajú propõe
em 1926 que estes indígenas teriam mantido contato com tribos localizadas nas terras
alagáveis do Amapa e da Guiana francesa. Neves diz que “em 1994, o francês Stephen
Rostain afirma que a cerâmica de Aristé data do século quatro. Se a hipótese de Nimuendajú
for correta, os Palikur e seus antecessores seriam quase o único exemplo [de indígenas] na
área não andina da América do Sul que ocuparam continuamente a mesma área geográfica ao
longo de 17 séculos”.

11 – Pesquisas concorrentes para comparar resultados

Nos anos 30, Nimuendajú propõe que diversos pesquisadores façam seus trabalhos na mesma
tribo. Isto permitiria comparar métodos e resultados. Mas essa não é uma sugestão teórica,
lançada ao acaso para que os outros a realizem.
Ele mesmo se joga na fogueira. Em 1937, escreve a Baldus:

(...) Porque o senhor quer desistir por minha causa do seu plano de pesquisar entre o
Kamakan? Na minha opinião, nós dois podemos muito bem pesquisar a mesma tribo, depois
seria duplamente interessante comparar os resultados. Com quase absoluta certeza, não
iriamos nos encontrar em campo (...). Se a proposta não for do seu interesse, peço que
mantenha seus planos, como se nada tivesse ouvido de mim.62

Sem papas na língua, Nimuendajú comenta o episódio com Lowie. A resposta deste é:
“Seria muito bom se a mesma tribo fosse visitada por dois sérios pesquisadores de formação
acadêmica e abordagens diferentes”.63

60
Nimuendajú, Os Tapajó, Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, v. x, p. 105, Belém, 1949.
61
Neves, p. 6 e 7.
62
Belém, 22/11/1937, MN.
63
New Haven, 03/12/1937, DU, p 280.
121

No ano seguinte, Baldus comunica a Nimuendajú a decisão de não pesquisar entre os


Kamakam. As razões alegadas são os problemas entre latifundiários e indígenas, bem como
seu novo interesse em aprofundar o estudo da língua tupi.64
A prática da pesquisa paralela poderia permitir o surgimento de informações, teorias e
interpretações diferentes das conhecidas, aumentando as propaladas liberdade e pluralidade
científicas. Quem sabe Baldus ficou receoso de concorrer com o já então internacionalmente
famoso Nimuendajú.
Anos mais tarde, Baldus reconhece os benefícios de trabalhos dessa natureza: “Se bem
que eu só fiquei de junho a agosto com eles [os Tapirapé], foi felicidade extraordinária que eu
consegui obter alguns dados ignorados por Wagley e que servirão de complementação ao
artigo do projetado Handbook. Em todo caso, aprende-se muito quando dois visitam a mesma
tribo em epocas pouco distantes e talvez W. [Wagley] e eu iremos visitar os Tapirapé mais
uma vez, e então simultaneamente”.65
O que Nimuendajú não consegue em vida, torna-se realidade décadas mais tarde, pelo
menos a nível teórico. Melatti compara as pesquisas de Nimuendajú entre grupos Jê do
chamado Brasil Central (Apinaye, Ramkokamkera e Xerente) com as de Jules Henry junto
aos Xókleng (SC).
Ele sugere certa tendenciosidade em ambos etnólogos, que trabalharam na mesma
época em tribos da mesma família linguística, mas geograficamente diferentes:

Os Apinaye, os Ramkokamkera e os Xerente descritos pelo primeiro [Nimuendajú]


parecem ter o comportamento rigidamente determinado pelos costumes, enquanto os Xókleng
estudados pelo segundo [Henry] chegam a transmitir-nos a idéia de uma sociedade amorfa,
sem estrutura. Talvez isso se explique por estar Nimuendajú voltado para o comportamento
ideal, enquanto Henry, com sua orientação mais psicológica, focalizava sua atenção
preferencialmente nas peculiaridades mais individuais.66

No país dos bacharéis, Nimuendajú recusa várias vezes o convite de entrar na vida
acadêmica. Em 1939, disse não à idéia de virar professor da USP, aventada por Baldus:
“Desculpe-me por não seguir o seu conselho bem intencionado. Não vou me candidatar a um

64
São Paulo, 20/02/1938, MN. Em carta de 16/03/38 a Lowie, Nimuendajú lamenta a decisão: “Ele tem
infelizmente uma abordagem diferente da de nós dois (Nimuendaú e Lowie)“. Na transcrição dessa carta no seu
livro, Dungs erra ao informar que Baldus teria pedido a Nimuendajú que desistisse de sua expedição, DU, p. 285.
65
Carta a Nimuendajú, São Paulo, 01/06/1942, MN. Aparentemente, esta expedição conjunta de Baldus e
Wagley não chegou a acontecer.
66
Melatti, 1985, p. 19. A obra de Jules Henry chama-se Jungle People, New York, J.J. Augustin, 1941.
122

lugar! Eu não caibo numa cátedra [jogo de palavras, pois em alemão, como em português, a
palavra cátedra é a mesma para designar a cadeira]. Eu me acostumei demais a sentar na
esteira dos indígenas. Também tomei a firme decisão de, enquanto me for possível, não
ingressar no serviço público. Não tenho a menor vontade de me submeter a chutes ‘nativistas’
[integralistas] para poder ensinar Etnologia no Brasil. Sou muito intransigente PARA [ser]
COMO ELES QUEREM [no original]”.67

Mesmo em plena crise existencial em 1942, Nimuendajú, aos 59 anos, não é picado
pela mosca azul de vir a ser professor na Escola Livre de Sociologia, em São Paulo, dirigida
pelo seu amigo Baldus.68

67
Belém, 25/05/1939, DU, p. 193.
68
DU, p. 196. Contudo, de novembro de 1941 a agosto de 1944, ele deu aulas, no Museu Paraense Emilio
Goeldi, a cinco moças, entre elas a Lygia Estevão de Oliveira, filha de Carlos Estévão, amigo de Nimuendajú e
diretor do Museu, cf. Nunes Pereira, 1946, p. 59.
6 - Preservar os indígenas e sua cultura

Tanto as pesquisas etnolingüísticas quanto a coleta de lendas e objetos da cultura material são
instrumentos de Curt Nimuendajú para realizar a sua missão: a preservação física dos índios
em suas terras e o incentivo à prática da religião e da cultura da tribo.
Essa é a sua resposta prática ao emocionado apelo do etnólogo alemão Adolf Bastian
(capítulo1) de que é preciso acumular dados sobre povos do mundo inteiro antes de que esses
venham a ser extintas pela evolução da cultura europeia.

Perante a tribo, Nimuendajú é iniciado pelo cacique Bruẽ nos segredos dos Xerente.

Só que Nimuendajú vira a equação pelo avesso: coleta objetos do uso cotidiano e
registra o conhecimento das tribos justamente para evitar o seu desaparecimento compulsório.
É esse contexto que torna compreensível a sua resposta a Fernando de Azevedo. Em outubro
124

de 1935, o criador do Instituto de Educação de São Paulo propõe a Nimuendajú a publicação


de seus trabalhos na coleção Brasiliana, editada pela Companhia Editora Nacional.
Nimuendajú agradece polidamente o convite e coloca as cartas na mesa: “Por ora
tenho de empregar todos os esforços em recolher o material que ainda falta, pois esta tribo [os
Canela] tão interessante e simpática pode da noite para o dia desaparecer do rol das tribos
existentes, como já aconteceu com os Apinayé e outros, diante dos meus olhos”.
Em poucas linhas, resume o sua vivência com a população Canela: “No ano passado,
ela sofreu horrivelmente três epidemias (sarampo, gripe e varíola) [doenças introduzidas por
brancos e caboclos]. A hostilidade dos fazendeiros vizinhos contra a tribo e contra mim não
cessam enquanto o índio ainda estiver de posse daquele miserável sobejo das terras dos seus
antepassados que ele por ora está ocupando. Eis porque por enquanto não me preocupo com a
publicação do material científico. Eu queria antes de tudo por a salvo o material humano”.1
É assim que ele se abstém de participar da coleção Brasiliana, um clássico da cultura
brasileira daquela época. A ironia subjacente à recusa é que, possivelmente, as primeiras
informações que Nimuendajú recebeu sobre índios residentes no Brasil foi lendo relatos não
científicos publicados em enciclopédias na longínqua Iena, no final do século 19.
Ao analisar a primeira obra de Nimuendajú, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro
faz um retrato de sua postura existencial: “Na questão indígena, paixão e razão não se
distinguiam em Nimuendaju, defensor sem meias palavras dos direitos dos índios e da
dignidade intrínseca de suas formas culturais. É naqueles trechos indignados, a incendiar aqui
e acolá a massa de dados etnográficos, que se pode talvez entrever algo da personalidade do
homem, pouco inclinado a transigir com suas crenças morais, incapaz de esconder seu
desprezo pelos ‘cristãos’ ou ‘neobrasileiros’ que acossavam os índios, e manifestando
violenta repugnância pela hipocrisia que enxergava em sua civilização de origem.”
Na tentativa de estruturar esse conjunto aparentemente anárquico de características
pessoais, ele cria uma inusitada imagem de Nimuendajú:

Uma mistura germanicamente complexa de muito romantismo aventureiro, outro tanto


de fundamentalismo ético; um impulso de renunciador hindu temperado de bastante ceticismo
e comandando por uma genuina curiosidade intelectual? Talvez. O que importa é que isso foi
para nós uma via de acesso ao universo Guarani, e mais tarde a muitos outros.2

1
Belém, 26/02/1936, MN.
2
Viveiros de Castro, As Lendas, p. xx.
125

O pensamento central do portador desta “mistura germanicamente complexa” é: o


desenvolvimento dos índios deve partir de sua própria cultura, baseado na religião que eles
professam, na língua que falam e nas terras que habitam. Essa corajosa e profética visão foi
praticada por ele numa época em que a política governamental consistia em transformar
rapidamente indígenas em mão-de-obra “útil” ao desenvolvimento “da sociedade nacional”.
Nimuendajú lança assim as sementes de posturas incluídas na Constituição de 1988,
que hoje constituem, mesmo que atenuadas, políticas de governo. Suas conclusões após uma
expedição em 1927 ao rio Uaupés, perto de São Gabriel da Cachoeira (AM), já espelham essa
visão:3
(...) o que estes índios precisavam [sic] com maior urgência seria uma regeneração
moral pelo reerguimento de sua consciência individual e racial, sentimentos estes que foram
espezinhados pelos civilizados, até se apagar a sua útima centelha. A tutela das missões
jamais produziu em parte alguma este efeito [regeneração e reerguimento], antes pelo
contrário. O índio antes de provar os benefícios da civilização moderna possuia estes
sentimentos: eles caíram com os esteios de sua maloca. Para lhe restituir o que lhe foi
roubado, seria preciso colocá-lo novamente sobre a base de sua cultura própria e deixá-lo
evoluir em paz durante algumas gerações.

Em 1935, usando o tradicional penteado Canela.

3
Nimuendajú, Reconhecimento dos rios Içana, Aiari e Uaupés. Relatório apresentando ao Serviço de Proteção
ao Índios do Amazonas e do Acre. 1927, filme 340. MI, p. 106.
126

O manifesto

Durante pouco mais de duas décadas, Nimuendajú observa, acompanha e sofre com as
tragédias tribais e pessoais de indígenas e “neo-brasileiros”. Em 1933, parte da ação prática
para a elaboração de uma política indigenista. Sem pertencer a qualquer partido político ou
corrente de pensamento, ele faz um solitário proselitismo a favor dos indígenas.
Surge, então, o manifesto Algumas considerações sobre o problema do índio no
Brazil, um documento pungente, realista, que vai ao fundo da questão.
São suas reflexões a partir de quase 30 anos de experiência prática que o levam a
afirmar:4

As tribos que hoje ainda conservam o seu equilíbrio primitivo ou são francamente
hostis ou inacessíveis pela natureza do seu território. Não existe em todo o Brasil uma única
tribo que tivesse conseguido restabelecer o seu equilíbrio sobre a base da civilização moderna.
(...) Uma vez que o mero contato com a civilização ASSIM COMO ELA NA REALIDADE É
[sic] causa o desequilíbrio e subsequente desmoronamento das culturas indigenas, nada é de
admirar que todas as tentativas de catequese religiosa, social ou cívica tivessem fracassado
lastimosamente e com total prejuízo para o índio, porquanto elas tiveram por princípio e fim
por o índio em contato mais íntimo possível com esta civilização.

Disso resulta, acrescenta Nimuendajú, que: “(...) nenhuma nação mesmo civilizada
poderá se desfazer das suas normas tradicionais religiosas, morais e sociais sob pena de sofrer
o mesmo desequilíbrio e cair em decadência. Só do índio exige-se o milagre de ele abandonar
toda a sua cultura própria para ‘abraçar a civilização’ sem que isto dê o resultado desastroso
para ele que de fato deu”.5
Ele se coloca contra as duas tendências que, especialmente a partir da proclamação da
República, disputam a hegemonia pelo (des)trato com os indígenas – a ação estatal-militar e a
catequisação religiosa.
Afinal, ambas são reflexos diferenciados do mesmo fenômeno de desconhecimento da
cultura indígena. Somente nos anos 70 do século vinte surgem etnólogos e, posteriormente,

4
Nimuendajú, Algumas considerações sobre o problema do índio no Brazil, MN, p. 1, 21/10/1933, eu mudei a
pontuação para facilitar a leitura.
5
Ibid. p. 2. Quase vinte anos mais tarde, a pensadora alemã naturalizada norte-americana Hannah Arendt
descreve a situação dos judeus na Europa dos séculos 18 e 19 com uma imagem muito parecida: “A
desmoralizante exigência [feita a judeus] de se afastarem do seu próprio povo estava ligada à condição, que só se
realizaria como mentira, de serem diferentes e melhores do que os outros [membros da sociedade]”, cf. Arendt,
p. 146.
127

as Ong como novas forças políticas que entram, parcialmente, em choque com esses poderes
estabelecidos há séculos.
Nimuendajú pode ser considerado o precursor dessa terceira alternativa: a alternativa
civil, desligada de uma religião e do Estado, mas, principalmente, alimentada por uma visão
que considera central o elemento “indígena”, que não é necessariamente nem cristão nem
ocidental.
Dentro dessa perspectiva, torna-se cristalina sua corajosa e inédita posição no Brasil
dos anos 30, que mexe em duas feridas do nacionalismo:

Esta exigência descabida estriba especialmente em dois conceitos errados: Na


reverência supersticiosa por aquele conjunto de trapos e remendos chamados de a
“CIVILIZAÇÃO MODERNA” [sic] ou “CIVILIZAÇÃO CHRISTA” [sic] e o no conceito do
“ÍNDIO BRASILEIRO”. Resulta da convicção de que o estado de cultura primitivo do índio
seja um estado de FEROCIDADE [sic] vergonhoso para o Brasil e para o índio próprio.
Enquanto se insistir no preconceito de ver na civilização moderna de origem européia o
estado ideal de perfeição fora do qual não há salvação nem felicidade e que o índio deve
adoptar [sic] integralmente [essa civilização] quanto antes, nunca poderão [se poderá]
compreender e portanto também não fazer justiça a populações com culturas primitivas e
profundamente diferentes como as das tribos de índios.

Numa atitude incompreensível para muitos brasileiros mesmo no século 21,


Nimuendajú equipara indígenas e não-indígenas: “A civilização moderna é apenas uma das
formas que a cultura humana pode tomar, as culturas das tribos dos índios são outras tantas. O
estado primitivo do índio deve ser julgado do ponto de vista histórico e etnológico”.
O temor de uma Amazônia dividida, que até hoje em dia paira muito forte em certas
áreas militares, intelectuais e diplomáticas, também foi abordado por ele. Porém, longe de
Nimuendajú defender a secessão. Ele propõe a responsabilidade moral prática perante os
indígenas:

É preciso reconhecer às tribos de índios o direito de [a] uma existência étnica própria.
Enquanto todos se chegam ao índio só com a preocupação estulta de querer corrigi-lo em tudo
o que difere do civilizado, os fracassos e as decepções continuarão. Ao Brasil compete
exercer um protetorado sobre as tribos que ainda existem encravadas no seu território. Com a
usurpação das terras dos índios pelos portugueses e seus sucessores, os brasileiros, recaiu
128

sobre o Governo do Brasil a obrigação moral e histórica de velar pela sorte dos que foram
espoliados em proveito da nova nacionalidade que se formou e de protegê-los contra a
decadência em que os lançou o choque das culturas. Esta fatalidade que os índios sofrem por
si só impõe ao Governo a obrigação de cuidar da sua conservação e de considerar esta uma
questão de honra, sem visar lucro material qualquer.

Sua proposta concreta choca-se frontalmente com a ideologia “estatal-indigenista”


dessa época. Ele defende a criação imediata de reservas territoriais para cada tribo ou
fragmento de tribo. Só nelas, “separados do contato com os civilizados, os índios poderão
recuperar e conservar o seu equilíbrio interno e fortalecer e desenvolver o seu organismo
étnico”. A segunda etapa deveria ser iniciada, “com a maior cautela o melhoramento da
cultura deles, devendo-se começar pelo lado econômico mas respeitando e fortalecendo
sempre a primitiva organização social, mesmo nos casos que ela diverge da do povo
brasileiro”. Finalmente, chegaria o momento do “aproveitamento do índio, cuja resposta tem
sido sempre a máxima preocupação do civilizado em contato com aqueles”.

Os militares

Seu manifesto contraria aqueles que ditam e aplicam a política estatal na questão indígena na
primeira metade do século 20. Em meio a uma complexa rede de tendências civis, religiosas,
intelectuais, nacionalistas, fascistas e liberais, a hegemonia é claramente militar.
O seu representante é um descendente de indígenas, o militar Cândido Rondon. É ele
quem, após tornar-se famoso pela construção das linhas telegráficas de Mato Grosso a Goiás,
cria em 1910 o Serviço de Proteção ao Índio. É um poder tutelar militar, sendo Rondon o seu
símbolo, afirma, em 1995, o antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima:6

A imagem do grande cerco de paz revela-se em toda sua complexidade nas palavras do
militar [Rondon], sumarizando numerosos mecanismos ainda hoje em ação: técnica militar de
pressionamento e forma de manter a vigilância, ao mesmo tempo assédio de um inimigo
visando cortar-lhe a liberdade de circulação, os meios de suprimento e a reprodução social
independente (sem implicar o ataque dos sitiantes), além de defesa contra os de fora do cerco,
como num cercado para as crianças, estabelecendo limites e constrições aos por ele

6
Lima, Antonio Carlos de Souza, Um Grande Cerco de Paz. Poder Tutelar, Indianidade e Formação do Estado
no Brasil, 1995. Vozes, p. 131.
129

incluídos/excluídos, numa amplitude que deveria justificar um numeroso quadro


administrativo, de fato hoje em dia existente.

Nimuendajú toma partido a favor dos indígenas num momento particularmente


confuso da complexa história do SPI. Em 1933, o órgão iria ser transferido para o terceiro
ministério em 20 anos de existência. O ministro da Agricultura, coronel Juarez Távora,
defende seu repasse ao Ministério da Guerra.
A exposição de motivos mostra claramente a visão militarista que estava prestes a
vingar: o Ministério da Guerra seria o melhor órgão de governo em condições de “defender o
índio do esbulho de invasores e educá-los no sentimento vivo de seus deveres para com a
Nação. Amparado e dirigido por chefes militares adquirirá o índio facilmente a convicção de
que é acima de tudo um servidor de sua pátria tanto nos labores quotidianos da paz, como nas
horas em que porventura se vier a exigir dele sacrifícios maiores”.7

Este parecer do coronel Távora leva a data de 30 de outubro de 1933. Uma semana
antes, Nimuendajú tinha protocolado o seu manifesto no SPI. Nele, contesta diretamente o
dogma da existência do “índio brasileiro”, defendida pelo coronel: “Existem tribos de índios
dentro dos limites [territoriais] do Brasil, mas não índios brasileiros, porquanto tudo as
distingue profundamente da população neo-brasileira que forma e mantém a Republica dos
Estados Unidos do Brasil”.8
As diferenças no aspecto físico, na cultura, na língua, na religião e organização social
fazem que as tribos formem “pequenos enclaves de povos estranhos ao povo dominante,
povos minúsculos mas muito bem caracterizados como tais”.
Nimuendajú ousa formular nesse manifesto algo que soa impossível e indesejável a
muitas pessoas – que os indígenas localizados no Brasil tenham uma outra pátria. O exemplo
concreto apresentado em 1933 é algo que, mesmo hoje, alguns setores da opinião pública
brasileira consideram ser um ato de lesa-pátria: “Desde dos tempos da descoberta habita a
tribo Tukuna [Ticuna] no Rio Solimões. A fronteira entre o Brasil e o Peru que parte de
Tabatinga cortou pelo meio o seu território. O tratado Salomon-Lozano entregou outra fatia
do seu território à Colombia. Haverá quem acredita que estes Tukuna, em cumprimento

7
Sedoc, m. 334, f. 411-414, cf. Lima, p. 302. Em seus 57 anos de existência, o SPI passou por quatro
Ministérios: da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC, 1910/30); do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC,
1930/34); da Guerra (1934/39); e da Agricultura (1939/67). Em 1967, foi substituído pela Funai.
8
Nimuendajú, Algumas considerações, p. 3.
130

daqueles tratados de cujas conveniências eles nem sabem nem entendem, se tornaram
brasileiros, peruanos e colombianos?”.

A resposta de Nimuendajú, de 1933, pode ser conferida ainda hoje por quem visitar a
região do Alto Solimões:9

A patria amada deles é e será sempre o território antigo da sua tribo de qualquer lado
daquelas fronteiras. Os seus patrícios serão os que falam a mesma língua e seguem os mesmos
costumes em qualquer das três repúblicas, e brasileiros, peruanos e colombianos são para eles
três qualidades de invasores tão terrivelmente parecidos entre si que, para todos os três, a
língua Tukuna [sic] só possui um termo. Em toda parte as fronteiras internacionais foram
traçada sem a menor consideração dos limites das tribos. (...) Mas é prova de muita
ingenuidade esperar patriotismo da parte dos membros das tribos assim divididas e de querer
constitui-los em guardas de fronteira, como consta que agora se esteja projetando.

O “agora” de Nimuendajú refere-se a 1933 (embora o projeto de índio-soldado


continua vigente até hoje). O documento entregue ao SPI só faz aumentar as suspeitas dos
militares diante de um pesquisador nascido na Alemanha, mesmo que naturalizado brasileiro e
portador de um nome indígena. E, pior ainda, crítico à ação “cívico-militar”.

O Davi indígena em nada influencia a ação do Golias nacionalista e militarista. Em


1934, o SPI é transferido para o Ministério da Guerra, onde fica subordinado diretamente ao
Estado Maior do Exército. Em 1939, porém, retorna ao Ministério da Agricultura, mas
portando a autorização de alistar militares em seus quadros. O novo objetivo é a introdução de
colonos nas terras indígenas, especialmente nas áreas de fronteira.10

O Serviço de Proteção aos Índios

Cioso de seus princípios, Nimuendajú mantém, ao longo dos seus 40 anos dedicados aos
índios, uma instável relação dialética com o todo-poderoso SPI.11

9
Ibidem. Em 1938, o tenente-coronel Cândido Rondon iria intermediar, com sucesso, a disputa de limites entre
os governos do Peru e da Colômbia na área ticuna.
10
Lima, p. 267 e 286.
11
Em 1910, ano da criação do SPI, ingressa na Inspetoria de São Paulo. Cinco anos depois, é demitido. Volta em
1921, novamente demitido dois anos mais tarde. É contratado pela terceira vez em 1944 pelo general Rondon. A
131

Ele homenageia as conquistas do órgão e critica a catequese cristã: “Para se fazer


justiça a esse Serviço tão mal conhecido e facilmente caluniado por se achar o seu campo de
trabalho fora do alcance da vista do grande público, é preciso salientar que em toda a história
do Brasil nunca houve época igual [de 1910 a 1933] em que se tivesse pacificado tantas tribos
tidas por indomáveis. Não existe um único caso historicamente documentado que uma tribo
qualquer em condições de hostilidade como as acimas citadas tivesse sido pacificada por
algum missionário religioso!”12

Ao mesmo tempo, justamente por conhecer o órgão por dentro, enumera os seus
problemas: “Um deles é congênito: o SPI nasceu como uma cruzada patriótica, desprezando a
base científica que poderia ter facilitado o conhecimento do universo indígena. O segundo é
que o órgão não contava com a solidariedade dos índios, porque estes sabiam intuitivamente
que os brancos não estavam de acordo com sua religião e seus costumes”.
No seu manifesto de 1933, ele resume as carências do SPI, antevendo algumas das
mazelas do seu futuro sucessor institucional, a Funai: “a falta de conhecimento da cultura dos
índios da parte dos seus funcionários; a falta de autoridade e [de] força executiva para
defender os índios contra os seus inimigos que muitas vezes são pessoas de influência local no
sertão; a falta de recursos materiais para poder agir em zonas de difícil accesso”.
Ele faz um claro e doloroso diagnóstico do SPI, que inclui fatores estruturais da
sociedade brasileira e decisões político-ideológicas tomadas pelos grupos que usufruem do
poder. Nimuendajú enumera a inestabilidade das instituições republicanas, as “idéias erradas
e atrasadas” que a opinião pública tem dos indígenas, a insuficiência de recursos financeiros,
a dispersão das tribos e “a deficiência geral da realização do Direito nos sertões”.13

Atritos com Rondon

Como reflexo da filosofia de enfrentar os todopoderosos militares, a relação de Nimuendajú


com Rondon é igualmente complexa.
De um lado, ele admira ao constatar, em 1941, o sentimento que desperta entre os
Ticuna: “Remadores não me faltam: a meia hora de Tabatinga mora um pequeno grupo de

última se dá em 1945, como Delegado de Índios no Alto Solimões, cf. Oliveira Filho, p. 261, citando portaria
05, de 11/45, da 1a. IR, MI. Nimuendajú morre portanto sendo Delegado de Índios contratado pelo SPI.
12
Algumas considerações, p. 6.
13
Ibidem. Quanto ao último item, Darcy Ribeiro escreve anos mais tarde que o SPI representou „a criação de
uma instituição de imposição da lei, exatamente nos sertões mais ermos onde ela jamais pudera imperar“, cf.
Darcy Ribeiro, Os índios e a Civilização, Editora Vozes, 1982.
132

Tukuna [Ticuna] que Rondon libertou da servidão por ocasião da sua estada em Leticia
[Colômbia]. A primeira pergunta que eles me fizeram foi pelo General. É impressionante
como este homem, onde quer que passe, trata de beneficiar os índios”.14
Mas também o critica, em 1935, por ocasião da discussão de um novo regulamento
para o SPI, que fora incorporado à Inspetoria de Fronteiras do Ministério da Guerra: “fiquei
desapontadissimo! Em vez de focar com nitidez e resolutamente os pontos mais necessários
para a garantia da existência do índio, encheram linguiça com futilidades administrativas;
até se lembraram de mandar introduzir o uso de fósforos entre os índios! O projeto é tão
bonitinho - fica-se enlevado com tanto patriotismo e humanidade!”.15
O novo regulamento seria, de fato, aprovado no ano seguinte. Antes disso,
Nimuendajú já adverte que tudo é fogo de palha:

Mas ele [o regulamento] nunca será executado porque a sua realização exigiria
somas fabulosas [de dinheiro] que o S. P. I. nunca terá à disposição, e mais empregados do
que os índios existem em todo o Brasil. As poucas emendazinhas que o Rondon fez
referem-se a outras tantas futilidades! E ainda, num telegrama anexo, ele fala de boca cheia
dos ‘20 anos de experiências que o S. P I. tem!’ Se é isto o que a experiência lhe ensinou é
porque ele tambem é daqueles que são incapazes de corrigir os seus erros: marca Rabelo.16

Durante anos, Nimuendajú evita qualquer contato sequer epistolar com Rondon, como
fica patente na sua carta de 1920 enviada ao diretor do SPI, Luiz Bueno Horta Barbosa. Nela,
o pesquisador diz não dirigir-se diretamente a Rondon para pedir informações sobre os
indígenas de Rondônia porque não saberia “qual [é] a opinião que ele [Rondon] formou a
respeito da tal de espionagem minha”.17
A referência a uma suposta “espionagem” de Nimuendajú se refere, possivelmente, ao
fato da Alemanha, seu país de nascimento, ter invadido a Bélgica em 1915, durante a Primeira
Guerra Mundial. Na época no SPI, ele foi demitido, segundo Nimuendajú por esse motivo.

14
Letícia, (Colômbia), 27/03/1941, p. 288, CS.
15
São Luiz do Maranhão, 21/08/1935, CS, p. 239.
16
Ibid. Trata-se de Manuel Rabelo, que Nimuendajú já criticara durante a “pacificação” dos Kaingang, em 1912.
Depois de um ataque dos Coroado, o acampamento foi abandonado e o SPI arquivou o projeto “As dívidas
acumuladas pela comissão sob a miserável administração de Rabello somavam muitos contos de réis”, in
Nimuendajú, Carta a Hugo Gensch, p. 3, MI. Em 1932, Rabelo teria articulado uma reunião de ministros para
viabilizar a transferência do SPI ao Ministério da Guerra, o que aconteceu dois anos mais tarde, cf. Donald
O’Reilly, Rondon: biography of a Brazilian republican Armee commander, dissertação de douturado na
University of Michigan, in Lima, p. 272. Em 1939, ele é apresentado pelo jornal O Radical como general e chefe
do SPI, cf. López Garcés.
17
Belém 23/07/1920 p. 3, MI, microfilme 397.
133

Nimuendajú evita até contato epistolar com o general Rondon.

Quase quinze anos mais tarde depois de mandar a carta a Horta Barbosa, sua atitude
permanece a mesma: “Aqui tivemos notícia que Rondon virá de Leticia para se encontrar com
a família em Belém, Como eu mesmo estou sujo com ele, dei ao meu amigo Carlos Estevão
todos os dados necessários para fazer uma exposição sobre os índios (...)”.18
Porém, em 1943, o cenário já é outro. Nimuendajú dirige-se a Rondon em tom
amistoso: “É com grande satisfação que aceito o seu chamado para colaborar pela quarta vez
[com] o SPI, de cujos princípios nunca me afastei, mesmo que existam intervalos entre as
minhas atividades [no SPI]. (...) Tenha a gentileza de me esclarecer a composição da
expedição e que funções pensa me atribuir”.19
No lugar de uma expedição, é convidado por Rondon para assumir a direção das
investigações etnológicas do Conselho Nacional de Proteção aos Índios. O reencontro pessoal
com Rondon acontece em julho de 1943, no Rio de Janeiro. Porém, sua saúde precária o
impede de seguir participando de expedições e de ser o primeiro etnólogo trabalhando no SPI.
Mesmo profundamente desiludido com a situação, Nimuendajú cita uma boa nova:

18
Carta a Marcelino Miranda, funcionário do SPI em Barra do Corda, 20/01/1936, Welper, p. 93.
19
A data está incompleta, legível é apenas 8/6/, mas, devido à temática, deve ser de 1943, DU, p. 214.
134

“Isto [a sua não participação no CNPI] atingiu com igual dureza o general Rondon, que nessa
época tornou-se um verdadeiro amigo meu”.20
Em 1945, pouco dias antes de morrer, ele cita Rondon numa carta ao jovem etnólogo
Harald Schultz, responsável pela Seção Etnográfica do CNPI: “Quanto ao vocabulário do
general Rondon, digo-lhe que, pelo amor de Deus, não vá por algo assim logo (bater à porta
do) ao coronel Amilcar toda vez que que lhe escrevo a respeito!”21
A derradeira amizade que Nimuendajú atribui a Rondon não se vê espelhada na
memória histórica brasileira. Um sinal disto é o fato de que o nome de Nimuendajú não
aparece oficialmente em nenhuma das três “pacificações” por ele empreendidas.
Até hoje, historiadores e estudiosos atribuem estas ações ao então general Rondon,
genericamente ao SPI ou a outras pessoas. Um ex-chefe de Nimuendajú, Luiz Bueno Horta
Barbosa, cita duas dessas empreitadas (a dos Coroado e dos Parintintin), mas os louros vão
“para a escola e para o fundador”, em alusão a Rondon, que, em 1955, recebeu a patente de
marechal, a mais elevada do exército brasileiro.22
A primeira “pacificação” se dá com os Coroado, no interior de São Paulo.
Mal chegado ao recém cirado SPI, Nimuendajú inicia os contatos no final de 1911,
mas durante o desenrolar da ação vê-se obrigado a reassumir a direção do posto indígena de
Araribá (SP). Assim, não leva até o fim a mútua aproximação amistosa. A pedido dos
Coroado, porém, em abril de 1912, vai ao acampamento destes indígenas, que queriam
conhecê-lo pessoalmente.
Ele começa uma segunda “pacificação” em 1915, quando, a pedido da Inspetoria de
Índios do Maranhão, procura os membros da tribo Urubu. O episódio é praticamente
desconhecido. Uma das poucas referências existentes é do próprio Nimuendajú numa carta
que achei no Museu de Gotemburgo, na Suécia.
Seu relato da pacificação às margens do rio Gurupi é sucinto: “(...) No momento em
que esses indígenas estavam contentes ao ponto de, através de sinais, me pedirem facões, fui
convocado urgentemente [à sede da Inspetoria], demitido e responsabilizado pelo ataque
alemão à Bélgica!!!”.23

20
Belém, 06/11/1943, DU, p. 323. É, contudo, nessa ocasião contratado para colaborar com o general Rondon no
CNPI. Este órgão fora criado em 1939 para planejar e estudar “as questões que se relacionam com a assistência e
proteção aos selvícolas, seus costumes e línguas”, cf. Lima, p. 286.
21
Santa Rita do Weil, 07/12/1945, DU, p.219.
22
Barbosa, Pelo Índio e pela sua proteção oficial, exposição feita ao ministro da Agricultura, Miguel Calmon du
Pin e Almeida, em 1923 e publicada pela Comissão Rondon nº 86, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p. 4,
1947.
23
Belém, 07/02/1925, carta a Nordeskiöld, MG. Em 1915, o SPI sofrera reformas, resultantes das consequências
econômicas da Primeira Guerra Mundial, incluindo demissão de funcionários, cf. Lima, p. 110.
135

O “pecado da pacificação”

A terceira e última “pacificação” é documentada por ele mesmo. Desde finais do século 19, os
Parintintin habitam uma região de aproximadamente 22 mil quilômetros quadrados entre os
rios Madeira, Machado e Marmelos, no Amazonas. Ao longo desses anos, sucedem-se
ataques de seringueiros, que invadiram as terras indígenas, que se defendem, ganhando fama
de cruéis entre os moradores da região.

Em setembro de 1921, Nimuendajú recebe a missão de “pacificá-los”. Doente, só no


final de março do ano seguinte instala um posto avançado às margens de um afluente do rio
Alto Maicy-Mirim. Do outro lado, está uma aldeia Parintintin. Ele escolhe essa perigosa
proximidade porque acredita que, aos poucos, os indígenas irão aceitar a presença dos
sertanistas e descobrir as vantagens que ela traz.
Após meses de escaramuças, em 28 de maio de 1922 acontece o primeiro contato
pacífico. Os indígenas ganham machados e miçangas das mãos de Nimuendajú e conversam.
Ele se sente confirmado na sua avaliação:

O grande milagre estava feito: as feras indomáveis, os antropófagos com os quais só se


pode falar pela boca do rifle tinham pacificamente conversado e trocado presentes comigo
durante quase três horas!.24

No dia 12 de junho de 1922, novamente doente, entrega a direção do posto ao seu


ajudante Amaro e retorna a Belém.25 Sua ausência coloca em risco os avanços já realizados,
pois os sertanistas caem na indisciplina, mantêm relações sexuais com as indígenas e abusam
dos homens. Seis meses depois, Nimuendajú volta ao posto. Em português claro, ele expressa
que: “Em primeiro lugar, tanto o encarregado do posto como todos os trabalhadores devem se
comportar como homens sérios e respeitáveis, evitando as brincadeiras brutais e estúpidas
com os índios, especialmente as obscenidades deles, enfim toda a intimidade demasiada com
os homens e mais ainda com as mulheres.”26

24
Nimuendajú, Os índios Parintintin do rio Madeira, Journal de la Societé des Américanistes de Paris, Nouvelle
serie, XVI, p. 218.
25
Mais de 30 anos depois, o escritor português Ferreira de Castro narra um diálogo fictício entre Nimuendajú e o
médico carioca Bonifácio, que o aconselha a voltar para casa e tratar-se da “anemia”, cf. Ferreira de Castro, O
instinto supremo, Editora Civilização Brasileira, 1968, p. 199.
26
Nunes Pereira, Curt Nimuendaju: síntese de uma vida e de uma obra, Belém, 1946, p. 35.
136

Com os indígenas, por outro lado, dá início a uma demonstração de pacífica


autoridade:

Antes de tudo, expliquei aos índios que nós formávamos uma empresa particular,
avulsa, mas que havia trás de nós um poderoso chefe, cujas ordens cumpríamos e que era o
senhor de todas estas coisas que eles estavam recebendo de nossas mãos e de muito mais, e
que este chefe não queria que fizessemos guerra uns aos outros. Levei-os ao portão e aí
expliquei-lhes, in loco [sic], porque, naquele assalto de 28 de maio de 1922, não fiz fogo
sobre eles quando avançavam contra a casa, mas saí ao encontro deles com presentes nas
mãos. Eles ouviram tudo com a maior atenção (…) e depois prometeram solenemente:
acabou-se a nossa guerra contra vos! Com grande rapidez a notícia percorreu a tribo toda.
Índios que eu nunca tinha visto chegavam ao posto, levaram-me para o terreiro e diante de
todos pediam: “Conta do nosso chefe! Tu mesmo falaste com ele? O que foi que ele te disse?
O que ele manda dizer a nós?”.27

A batalha decisiva, porém, é travada na retaguarda. No Rio de Janeiro, o “chefe”, o


general Rondon, atribui a façanha da “pacificação” ao antecessor de Nimuendajú. Ainda,
parabeniza o influente seringalista local, Manuel Lobo, que, conforme o antropólogo Miguel
Nunes Pereira, pagava o abastecimento do posto do SPI e dos indígenas.28 Com certeza que
isso terá abalado Nimuendajú. Ele passa a duvidar do sucesso final da empreitada.
Nunes Pereira acrescenta que Nimuendajú adverte que o SPI deve investir pesado até
chegar a bons resultados: “A verdadeira pacificação ainda está muito longe [de acontecer] e a
Inspetoria tem de contar ainda, durante anos, com despesas avultadas e no primeiro tempo se
pode considerar feliz se conseguir manter o estado atual das coisas, isto é, a suspensão das
hostilidades coletivas contra o Posto do maicy. Querer evitar as excursões guerreiras dos
Parintintin contra os outros civilizados seria, na época atual, uma pretensão ridícula”.
A situação econômica torna-se insustentável, ao ponto de Nimuendajú propor ao SPI
suspender a empreitada, enquanto ainda for possível organizar “uma retirada em ordem”.
Assim, a até então bem encaminhada mas inconclusa “pacificação” chega ao fim:

Em 17 de janeiro [de 1923] deixei novamente o posto, ainda com grandes esperanças
para o futuro. Mas enquanto eu no sertão ainda estava trabalhando, em Manaus e no Rio de

27
Nimuendajú, Curt, Os indios Parintintin, p. 291.
28
Nunes Pereira, Curt Nimuendaju: síntese de uma vida e de uma obra, pp. 36 e 35.
137

Janeiro está [já fora] decidida a sua sorte. Sem recursos para concluir a obra de pacificação, o
inspetor Bento Lemos pediu-me, como meu último serviço, que desse as disposições
adequadas para a retirada da guarnição do posto, e com isto me vi dispensado.29

Nesse artigo no famoso Journal de la Societé des Américanistes de Paris, de 1924,


Nimuendajú revela de maneira muito sutil sua profunda decepção com o fim abrupto da
“pacificação”:

Desta forma perdeu-se por completo o trabalho dispendioso e cheio de perigos de um


ano. Os Parintintin por ora só atendiam a mim, a Garcia [um substituto] e a mais ninguém.
Em tempos calculáveis não haverá mais trato pacífico com esa tribo, motivo porque resolvi
dar a publicidade as minhas observações pessoais, reunidas no presente trabalho.

Nos bastidores, sua indignação não conhece limites. Em carta a José Garcia, sertanista
que assumira o comando do posto para concluir a retirada, ele confessa a sua amarga
desilusão: “Cada vez mais admiro a sua tenacidade. Eu não teria aguentado nem a centésima
parte disto. Mas não se iluda. Não espere jamais recompensa pelos sacrifícios! Ninguém lhe
fará justiça; pelo contrário, você será o bode expiatório e servirá para desculpar os erros dos
outros. Por mais que me entristeça a sorte dos meus pobres companheiros não posso ir em
socorro deles, porque já me convenci que o maior mal da pacificação foi este de ter sido eu, o
alemão, [sic] o chefe dela. Portanto, é preciso que eu desapareça. E desapareci”.
Curiosamente, diz acreditar no senso de justiça do general Rondon: “Faço, no entanto,
todo o possível para que a sua situação desesperada, com todas as minúcias, chegue ao
conhecimento do general Rondon. Talvez... Ele já me fez um dia justiça, a mim.”30 Será que
“a justiça” que Rondon fez foi readmiti-lo, em 1921, no SPI, depois da “suspeita de
espionagem” de 1915?
Nunes Pereira fala dos remorsos de Nimuendajú, sugerindo que a esperteza do já
calejado sertanista na tentativa de “pacificação“ desses indígenas teria gerado um inesperado
efeito psicológico: “Curt Nimuendajú (…) tinha arrependimento de haver aproveitado, com
incrível tática, a rebeldia dos jovens Parintintin que percebera vir se avolumando contra os
velhos da tribo”.31

29
Os índios Parintintin, pp. 220 e 211.
30
Nunes Pereira, p. 36.
31
Ibid. p. 38.
138

O próprio “pacificador“ fala de “crime” ao se referir a esse episódio de sua vida: “O


governador [do Pará] quis me empurrar goela abaixo a pacificação dos Açuriní (da margem
direita do meio Xingu). Eu porém rejeitei imediatamente: a pacificação dos Parintintin foi o
meu último crime dessa natureza (…).”32
Em 1934, desabafa pessoalmente com o pesquisador sueco Stig Rydén: “Espero que
Deus me perdoe pelo pecado de ter realizado a pacificação entre os índios e os brancos, pois
assim chegaram as doenças dos brancos para os índios, que morreram mais em consequência
destas do que nas lutas contra os brancos”.33
O etnólogo Gusinde registra, em 1946, uma promessa de Nimuendajú: “Nunca mais
ajudarei a pacificar uma tribo”.34

Nimuendajú confessa o “pecado” de ter “pacificado” os Parintintin.

32
Carta a Nordenskiöld, Belém, 22/10/1925, MG.
33
Rydén, Stig, introdução do livro In Pursuit of the Past Amazon, Curt Nimuendajú, 2004, Gotemburgo, p. 9.
34
Gusinde, Martin, Beitrag zur Forschungsgeschichte der Naturvölker Südamerikas, Archiv für Volkerkunde, v.
I, Viena, 1946, p. 61.
139

A decepção de Nimuendajú centra-se na “pacificação” como a maneira de garantir a


continuidade física e cultural dos indígenas. Ele sente na prática aquilo que Lima escreveria
decadas mais tarde sobre o SPI, essa “potência ilusória que se oferece como a única
alternativa ao conflito ou à total escravidão (...)”.35

Mesmo assim – ou por isso mesmo – persiste no objetivo. Ao longo de seis anos,
utiliza outro método com outra tribo em outra região do Brasil. Ele quer garantir as terras dos
Canela no Maranhão, que consegue mensurar pessoalmente para facilitar uma futura
demarcação. Os detalhes estão no capítulo 13 – Cosmogonias indígenas adotam Nimuendajú.

Reconhecimento dos indígenas

Mesmo em meio a tantos dissabores que se acumulam ao longo dos anos, Nimuendajú
também vivencia momentos excepcionais entre os indígenas.
À margem de um afluente do rio Madeira, na região dos Lagos do Sampaio, ele assiste
como os Múra: “(...) queriam à fina força que me demorasse entre eles para ajudá-los na
defesa dos seus direitos contra os intrusos. Chegaram mesmo a me oferecer a pouca criação
que tinham, queriam me dar castanhas, etc. e iam para Manaus para reclamar na Inspetoria
dos Indios a minha volta para o meio deles!”36

Entre os Palikur, no Oiapoque, na fronteira com a Guiana, aos 42 anos de idade o


sisudo Nimuendajú deixa-se levar pela emoção:

Anteontem e ontem assisti a uma dança em casa do pajé Lexan Yuyú (fotografado de
frente e de lado, sentado no seu banquinho em forma de pássaro). Cachiri muito! Bebi um
bocado e estava bom - bom mêmo [sic]. Mas o resultado foi que depois, quando o ar se
encheu com o cheiro do cachiri misturado com o aroma do urucu fresco, quando os maracás
tiniam nas pontas das varas compridas e o terreiro estremeceu ao ritmo da dança, me voltou
tão vivamente a recordação daquele tempo quando eu fiquei homem entre os Guarani que não
pude mais resistir: tirei os sapatos e entrei no meio. (Que vergonha para os meus cabelos
brancos!). Ainda hoje estou cansado. Mas foi bonito.37

35
Lima, p. 175.
36
Borba, 10/04/1926, CS, p. 92.
37
Arucauá, 23/05/1925, CS, p. 78.
140

Entre os Xerente, recebe o nome de Seliemtói, o nome que deram ao imperador D.


Pedro II. Os Apinaye o batizam de Tamgaa-ti, nome de uma estrela; os Ticuna referem-se a
ele como “buí”, nome dado ao herói-mítico Dyói. Dos Ramkokamekra recebe uma das
máximas honrarias da tribo, o nome de um chefe já falecido, Kukaipó.38

Nimuendajú é batizado “Taamgati”, nome de uma estrela, pelos Apinayé.

Entre os Apinayé da aldeia de Bacaba, é o ilustre filho dileto que retorna:

(…) toda a população estava trabalhando na roça; só a velha mãe do capitão com a
irmã dela, mais velha ainda, me apareceram. Ela colocou um banquinho para mim e eu me
sentei. As duas velhas acocoram-se na minha frente e começaram a chorar: “Meu filho, eu
estou com pena de você! Você está magro, meu filho! Você passou mal, meu filho?”. Depois

38
Barra do Corda, 01/04/1929, CS, p. 141. O nome Seliemtói leva um til no segundo i, cf. CS. p. 158.
141

falou-me da morte de uma neta e ambas as velhas romperam em novos prantos. Finalmente,
ela perguntou: “Você chegou, meu filho?” “Cheguei, minha mãe, vim para ver vocês”.39

Em Santa Rita do Weil, visita o lugar sagrado dos Ticuna – um igarapé que é o palco
da lenda dos heróis gêmeos e onde um vidente na mesma época anunciara uma profecia. Logo
após, é tido como representante do herói cultural Dyoé e colocado para dirimir complexas
questões ligadas, por exemplo, à prática do incesto entre membros da tribo.40
Sua visão dos valores da cultura indígena leva-o a vetar, com sucesso, o envio pelo
SPI de uma professora a uma aldeia Ticuna. Nimuendajú argumenta que, antes de querer
ensinar o alfabeto e o hino nacional, ela deveria aprender com os indios “para chegar àquela
compreensão apreciativa da cultura deles que eu considero indispensável para o
estabelecimento da solidariedade entre ela, professora, e os indios, sem a qual todo o mais o
trabalho seria perdido”.41
Por compreender a alma indígena, ele mantém o convívio amistoso, mesmo correndo o
risco de ser devorado no sentido mais concreto da palavra:

Não vi os Parintintin comerem carne humana, mas, das maneira que os conheço, acho-
os muito capazes de o fazer, e ocasionalmente ouvi de sua própria boca coisas que tornam
provável a existência deste costume entre eles. Assim me perguntavam com a maior
naturalidade se não comíamos os [indígenas das tribos] Múra, Pirahá e afirmavam, sem o
menor escrúpulo, que eles mesmo o faziam. (...) Tawari, um moço muito amável e amigo
nosso, zangou-se um dia, na saída do posto, sem razão explicável [aparente] e, sentado ao
meu lado, me disse baixinho, mas com um olhar cheio de ódio: “Os teus pés eu quero comer!
Os teus olhos eu quero comer! É bom!”.42

Os religiosos

Nimuendajú discorda frontalmente da catequese religiosa. Logo nos seus primeiros contatos
com indígenas, em 1913, conhece um padre capuchino no interior de São Paulo. Este mostra-

39
Carolina, 09/03/ 1930, CS, p. 149.
40
Igarapé da Rita, 28/07/1941, DU, p. 310.
41
Igarapé da Rita, 09/05/1942, CS, p. 306. O “Dr. Xerez” é Sebastião Martins Xerez, inspetor regional do SPI
em Manaus nessa época, cf. Lima, quadro 2, s. n.
42
Nimuendajú, Os índios Parintintin do rio Madeira, p. 233. Com os Xipaia, tem experiência parecida: “Desde
que eu lhes dei a entender que eu considero a antropofagia algo perfeitamente natural e evidente, nenhum Sipaia
negou a sua antiga forma de viver; pelo contrário, eles têm me contado vários casos, sem eu ter pedido”.
Nimuendajú, Brückstücke aus Religion und Überlieferung der Sipaia-Indianer, Anthropos, v. 14-15, 1919-1920,
p. 1023.
142

se “visivelmentre contrariado e com bastante medo de febres e dos indios (...) A opinião que
ele faz dos Ofaié e que só pode ser a dos seus colegas, visto ele não ter experiência própria
nenhuma, é péssima, e parecia ele estar convencido de que nada se conseguiria com estes
‘bugres”.43
Anos mais tarde, relata o que acontece entre os indígenas Paiguy-piranga, do rio
Maracá, afluente da margem esquerda do rio Amazonas, ao sudeste do Estado do Amapá:
“Um padre, patrício meu, cometeu a horrenda estupidez de batiza-los e de casar a 2 mulheres
da tribu com seringueiros, sem que cada uma das duas partes entendesse uma só palavra da
língua do outro”.44
Ao mesmo tempo, reconhece os elementos positivos da ação missionária. Às margens
do rio Uapés, afluente do rio Negro, no atual município de São Gabriel da Cachoeira,
Nimuendajú elogia os padres.
Além de não usarem a violência contra os índios Tarianá e libertado vários deles das
mãos dos seus opressores, os salesianos “pagam aos índios pelos gêneros e serviços que estes
fornecem pelo menos melhor do que os outros negociantes e patrões, tanto que nunca lhes
faltam braços, queixando-se os negociantes já amargamente que nas vizinhanças da missão
hoje se torna difícil a cobrança [pagamento] pela taxa (...). Junte-se a isso o ensino primário e
profissional e a assistência médica que lhes fornecem aos indios gratuitamente, forçoso é
reconhecer que numa zona onde o índio só recebe ultrajes de toda parte a missão salesiana
representa uma enorme vantagem para este”.45

Nessa missão salesiana, contudo, o indígena sofre um tipo muito mais sutil de
perseguição.
Ele vê-se prejudicado pela “comprovada incapacidade [do missionário] de
compreender e fazer justiça a uma cultura qualquer que não seja a pretensa cultura ‘cristã’. A
intolerância inerente ao seu ofício, que os obriga a ver em cada índio um objeto de conversão
religiosa, incompatibliza-os com o cargo de protetor da individualidade indígena. (...) O índio
no seu estado de cultura primitiva causa-lhes medo e nojo”.

43
Porto Tibiriçá, 08/01/1913, carta ao diretor do SPI em SP, Luiz Bueno Horta Barboza, MI.
44
Relatório ao diretor geral do SPI, Luiz Bueno Horta Barbosa, Belém 23/07/1920, promovido ao cargo em
1919, cf. p. 2, MI, filme 397. Como Nimuendajú só adota a nacionalidade brasileira em 1922, o “patrício” é um
sacerdote alemão.
45
Relatório à Inspectoria do SPI/Am e AC, Belém, 27/09/1927, MI, p. 102, filme 340. Na década de 40, o SPI
adota essa política de criar postos de vendas de produtos alimentícios para os indígenas. No mesmo relatório, ele
cita o livro Missões Salesianas no Amazonas, do monsenhor Pedro Massa, que conta a situação de um sacerdote
que perdera num naufrágio os gêneros alimentícios que levava a bordo: “E o heróico salesiano [sentado] de
cócoras fazia camaradagem com os pobres indígenas, servindo-se daquela nauseante [nojenta] refeição servida
numa vasilha comum!”.
143

Nimuendajú é testemunha ocular desta imposição religiosa. Ele participa da última


festa dos Tarianá, perto de São Gabriel da Cachoeira. Última porque o “padre João”, um
missionário salesiano, tinha ordenado o fim dos “ritos pagãos”. Mas também a substituição
compulsória da casa comunitária de 1200 metros quadrados por casinhas unifamiliares,
cuidadosamente alinhadas uma atrás da outra pelos religiosos.
Ele confessa sua desolação:

Eram mais de 120 índios. Não me fartei de observá-los durante toda a noite nas suas
danças ao clarão da fogueira em redor dos possantes esteios da enorme maloca. Quase chorei
de raiva, indignação e impotência quando me lembrava [sic] que seria a última festa. Porque
eu ia embora e o “padre João” ficava.46

Nimuendajú afirma que missionários protestantes também agem incentivando a


preservação física dos indígenas e, ao mesmo tempo, destruindo seus alicerces culturais. Ele
destaca o missionário inglês Horacio Banner, da Igreja Metodista Independente, que fala a
língua kayapó e a quem elogia pelo seu trato com os indígenas instalados à beira do rio
Xingu.47
É enorme, porém, sua decepção ao constatar que, na sua opinião, essas extraordinárias
qualidades só servem para satisfazer as vivências religiosas de Banner:

A ordem de Cristo – “ide e ensinai” – é executada por MIM [refere-se a Banner] (ou
por NÓS), onde, em quem, mesmo com que resultados [isso se realiza] não importa, porque
EU [Banner] recebo por isso as graças divinas, tanto se eu viver e obtiver um bom resultado
como também se eu morrer num fracasso. (...) esta orientação me parece por demais
egocêntrica, e a indiferença para com o resultado prático – que não sejam as graças divinas
concedidas a MIM [Banner] – é a sua consequência natural. Também Horace via nos Gorotire
pouco mais do que um mero pano de fundo para a sua experiência religiosa DELE. Tinha-os
em conta de seres humanos e não de “bichos”, mas as manifestações da cultura indígena lhe
pareciam na melhor das hipóteses absursidades [sic] caprichosas que não mereciam atenção

46
São Gabriel, 22/06/1927, CS, p. 112. Ele propõe a criação de um posto do SPI na área para acabar com essa
situação. A educação religiosa é coisa suspeita para Nimuendajú. Ao tuxuá (cacique) ticuna Nino Ataíde, ele
sugere que mande seus filhos estudarem entre os padres, mas não os deixe em conventos ou claustros, cf. carta a
Nino, Belém, 15/04/1944, p. 184, DU.
47
Nimuendajú, Viagem de reconhecimento aos índios Gorotire-Kayapó do Rio Xingu, 1939-1940, 18/04/1940,
filme 115, p. 11, MI. Na igreja metodista de Grappenhall, na Inglaterra, existe um mural em memória de Horace
Banner e sua esposa, Eva, cf. http://www.grappenhall-im-church.org.uk, acessado em 06/02/2011.
144

nem a serem tomadas a sério, sendo preferível varre-las quanto [antes] para o lixo do passado
tenebroso destes futuros cristãos.

Nimuendajú considera a política indigenista norte-americana, nesse ponto, um


exemplo para o Brasil da década de 30 do século 20. Ele cita um documento onde a liberdade
religiosa do indígena nos Estados Unidos é equiparada à de outras populações. Mas violações
à lei devem ser tratadas como tais, mesmo que cometidas sob influência da religião. Eventuais
punições não devem interferir na prática religiosa dos indígenas. Empolgado, ele envia uma
cópia da circular ao seu amigo e diretor do Museu Emilio Goeldi, Carlos Estévão, com um
comentário: “Acho-o [o documento] magistral e creio que fizeram muito bem em divulgá-lo
no Brasil; especialmente devia ele ser remetido oficialmente a todos os missionários daqui”.48

Tem uma questão, que nem a religião cristã nem a civilização ocidental resolvem, e
que indigna Nimuendajú muito profundamente: o alcoolismo que se espalha entre os
indígenas. Sua atitude durante a festa de iniciação de adolescentes numa aldeia apinajé ilustra
isso. Os vendedores de cachaça sitiam o rancho onde se achavam os rapazes em reclusão, que,
embriagados, ameaçam as moças que também participam da ceremônia tribal.
O bom etnólogo dessa época é aquele que, em nome da ciência supostamente isenta,
não toma partido na vida da tribo. Mas ele decide romper esta tradição:

Um belo dia, porém, a minha paciência se acabou: quebrei as garrafas de cachaça e


tomei a espingarda de um daqueles infames que fugiu apavorado quando me viu de rifle em
punho. Depois fiz no pátio um discurso que profundamente envergonhou os chefes da aldeia,
de maneira que daí em diante sempre a situação melhorou um pouco, e os Peb-kahák entraram
no devido regime. Mas a aldeia do Ponto está perdida: ela se dissolve literalmente no álcool.
Fazia pena ouvir as súplicas das mulheres quando se aproximou o tempo da minha partida:
“Não vai, Kokaipó, fica na aldeia! Se você vai [for embora], a cachaça entra outra vez e nós
[seremos os] que vamos sofrer!”49

De fato, dois anos depois, constata de novo os efeitos da civilização “representada


pelos vagabundos da vizinhança e os vendedores de cachaça [na aldeia] de Boa Vista. Logo
na minha chegada na Boa Vista espantou-me o Nicolau Velho: apresentou-se esfarrapado,

48
Barra do Corda, 03/07/1936, CS, p. 256. Refere-se à circular 2970 da Repartição dos Assuntos dos Indios,
Ministério do Interior dos Estados Unidos, de 03/01/1934, cf. rodapé 186, p. 379. CS.
49
Barra do Corda, 30/06/1930, CS. p. 167. Kokaipó é o seu nome entre os Apinayé.
145

cadavérico - pois ainda estava sofrendo de sezões [febres] - e completamente embriagado.


Lamentei depois não ter tirado um retrato dele naquele estado para tê-lo à mão quando um dia
se discutir a necessidade de ‘chamar os nossos infelizes irmãos das selvas ao grêmio da
civilização”.50
Vivenciar isto o desanima profundamente. Ele diz que perdeu a fé no futuro da tribo,
bem como na ação do líder José Dias e na sua própria iniciativa. Desesperado, jura nunca
mais voltar.
Cinco anos mais tarde, vive algo parecido na aldeia xerente de Providência, do “meu
amigo velho, o capitão Cipriano Brue”. Em meio à desintegração cultural da tribo, ele
simboliza para Nimuendajú a continuidade: “Brue mesmo é cauterizado com todos os ácidos
da civilização. Mas no fundo conservou-se índio, honestamente convencido da excelência da
sua raça e da cultura primitiva dela. O verdadeiro fundo desta sua orientação conservadora
está no seu caráter profundamente místico e religioso. É um vidente e sonhador, discipulo da
Estrela d'Alva”.51
Mesmo com o apoio de Brue, mudar o ambiente na aldeia leva tempo. Nimuendajú
sente-se explorado por metade dos 90 indígenas.
Já a outra metade age diferente:

(...) pouco a pouco acordou neles o antigo sangue cherente [sic] e eles começaram a
demonstrar prazer nas cerimônias dos tempos passados. Tiravam a roupa, pintavam-se e
faziam outra vez corridas de tora, também as mulheres e moças. E as mais afoitas entre estas
últimas eram duas que tinham sido educadas pelas freiras em Conceição do Araguaia. A
princípio sempre salientavam que faziam tudo exclusivamente para mim e com grande
sacrifício; agora tudo já corria por si mesmo, e quando uma vez fui à [aldeia] Piabanha
continuaram as corridas na minha ausência.

As contradições de Nimuendajú

Nimuendajú vive permanentemente na corda bamba entre o respeito à vida da tribo ou a


realização do seu trabalho científico. Às vezes, interfere conscientemente para atingir seus
objetivos, como se dá entre os Canela. Depois de esperar quase um mês por mais filmes, estes

50
Boa Vista, 29/03/1932, CS. p 185. Nesse ano, a aldeia era parte do Estado do Maranhão. Hoje está localizada
entre os municípios de Goiatins e Itacajá, TO.
51
Boa Vista, 18/06/1937, CS, p. 265.
146

chegam quando a tribo começa a ficar desesperada porque tem que plantar ou senão vai passar
fome meses depois.
Nimuendajú decide filmar a qualquer custo:52

Os indios tinham retardado por minha causa o fim da sua festa anual, que era o Tep-
yarkwa, e assim ainda pude apanhar algumas cenas dela. (…) Assim, acabado o Tep-yarkwa,
cujo final já retardaram em atenção a mim até a chegada do filme, queriam imediatamente
espalhar-se, para cada família tratar da sua lavoura. Por mais louvável e justo que eu achasse
este zelo deles, teria sido um desastre se eu tivesse voltado com dois rolos de filme exposto
apenas. Assim, a peso de 4 bois e mais alguma coisa, mantive-os juntos e em disposição de
festa durante mais uma semana, conseguindo assim mais alguns motivos para a câmera.

ciocoicoi

Danças de homens, mulheres e jovens das tribos Ramkokamekra e Krahô.

52
Pedreira, 01/09/1936, CS, p. 257.
147

Em outra aldeia, Nimuendajú reconhece que dar presentes aos índios é negativo:53

Fazer ao índio um presente é quase sempre o meio mais seguro para afugentá-lo.
Como ele não acredita em atos desinteressados do “branco” para com ele, fica logo
atemorizado pela idéia de que novos planos ocultos e traiçoeiros não esteja [o branco]
tramando e que despropósitos e não vai exigir mais tarde ainda em troca do tal presente: e
evita daí diante de aparecer-lhe. Quis tirar a contraprova disso e durante a minha visita na
aldeia Caruru não dei o mínimo presente a ninguém. O desembaraço dos índios deste lugar foi
notavelmente maior do que dos de Yutica, onde eu adotara ainda a praxe da liberalidade.

Diferente de outras situações, na aldeia Caruru é tratado como um “neo-brasileiro”


qualquer: “Sempre notei com inveja a urbanidade e a liberalidade com que eram recebidos os
índios meus remadores assim que eu entrava com eles numa maloca: o dono de casa os
cumprimentava na entrada, oferecia-lhes assentos e trocava com eles cerimoniosamente as
frases de estilo. Para mim, tinham apenas um olhar cheio de medo e desconfiança, após o qual
ele me virava as costas na certeza de não encontrar da parte do ‘branco’ devasso e brutal a
menor compreensão para um tratamento cortês”.
Este encontro constitui uma dolorosa experiência para Nimuendajú:

Para mim pessoalmente, acostumado à convivência íntima com os índios e das tribos e
regiões mais diferentes, a permanência entre os Içana e os Uaupés foi muitas vezes um
verdadeiro martírio, vendo-me sem mais nem menos e com a maior naturalidade tratado como
criminoso, perverso e bruto.

53
Nimuendajú, Reconhecimento dos rios Içana, Aiari e Uaupés. Relatório apresentado ao Serviço de Proteção
aos Índios do Amazonas e do Acre. 1927, p. 96, microfilme 340, MI.
7 - O retorno à Europa, o nazismo

Aos 51 anos de idade, 31 dos quais no Brasil, Nimuendajú volta à Alemanha em 1934. Nos
meses antes de embarcar, não esconde sua profunda insatisfação com as autoridades do país
que adotara voluntariamente. Talvez a perspectiva de voltar pela primeira e única vez à sua
pátria de nascimento teria influenciado o seu estado de espírito.
Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional e sua grande aliada nos
confrontos com o Conselho de Fiscalização, pergunta abertamente: “O Dr. [Alfred] Metreaux
(…) disse-me que (…) o senhor também está pensando em sair do Brasil. Mande-me contar o
que pensa de positivo sobre o caso. Não imagina o quanto tenho pensado nestes últimos três
meses em trabalharmos de comum acordo, mas nada se resolve de definitivo e as
possibilidades nunca passam de mera expectativa”.1

Nimuendajú, elegante durante sua visita à Suécia.

A resposta é igualmente clara: “(…) pelo gosto, ou antes pelo desgosto meu, eu
deixaria quanto antes o Brazil [sic] para procurar novo campo de trabalho no Peru, na Bolívia
ou em qualquer outra republica vizinha, porque preferiria ser um estrangeiro de primeira
1
Rio de Janeiro, 25/01/1934, MN.
149

categoria lá, a ser um cidadão de segunda aqui. Foi o Dr. Carlos Estevão que tenho em conta
de meu melhor amigo que me fez desistir da execução imediata deste plano, mas continuo
‘com o trinco na mão”.2
No dia do embarque em Belém rumo à Alemanha e Suécia, em nova missiva conta a
dona Heloisa que a viagem à Europa é a sua chance de estabelecer novos contatos e se mudar
do Brasil, caso não for possível continuar trabalhando com instituições brasileiras.3
Nimuendajú leva 33 dias para atravessar o oceano Atlântico no navio a vapor até o
porto alemão de Hamburgo.4
Os três primeiros dias na Europa passa visitando o Museu Britânico, em Londres, onde
se queixa da neve e da ausência de coleções etnológicas “significativas” de povos indígenas.
Nesses dias, sua irmã Olga lhe dá as boas-vinda numa curta carta: “Seja bem-vindo em terras
alemãs! De Hamburgo você vem direto para Iena? E você fica umas semanas? Isso é
necessário, depois de 32 anos de separação; não marque outros compromissos! Tudo o que
tem para contar vai ser pessoalmente. O importante é você chegar aqui”.5
A filha de Olga, Irmgard, também escreve ao tio que ainda não conhece pessoalmente:
“Querido tio Curt, que enorme surpresa saber que você vem direto para Hamburgo. Que
alegria especial é para mim, pois, como não posso tirar férias, provavelmente eu não poderia
ver você. Tomara que dê certo e você tenha tempo livre para mim”.6
Em Hamburgo, onde fica de 9 a 17 de abril, Nimuendajú dissimula sua alegria de
sentir-se bem tratado, dizendo que só pagou uma única vez suas refeições. Ele é
sucessivamente convidado pela família Michahelles, representante local da casa bancária
Berringer com filial em Belém, pelos parentes da sua sobrinha e por uma outra família, de
maneira que só se deita de madrugada. São pequenos luxos burgueses na sua pátria de
nascimento, desconhecidos em Belém ou numa aldeia indígena.7
No Museu de Hamburgo, tem o primeiro encontro com a penúria econômica que
atinge a vida cultural alemã. Num prédio espaçoso e bonito, o material de outras partes do
mundo é muito maior do que o da América do Sul. Do Brasil só constam algumas peças
arqueológicas de Santa Catarina e os objetos que ele enviou da cultura Jê, que revê durante
muitas horas. Lamenta ainda que o museu não esteja em condições financeiras para adquirir

2
Belém, 16/02/1934, MN.
3
Carta a Heloisa Alberto Torres, Belém, 05/03/1934, MN.
4
Dresden, 26/041934, CS, p. 201.
5
Iena, 01/04/1934, MN, minha tradução. Na verdade, seriam 31 anos desde que Curt Unckel deixou Iena.
6
Altona-Hochkamp, 29/03/1934, MN, minha tradução.
7
Dresden, 26/04/1934,CS, pp. 202 e 203.
150

coleções de peças Marajó e Aparaí, “pois atualmente não dispõe nem do dinheiro para
comprar um armário que precisava”.
Depois de visitar Hamburgo, aproxima-se o momento do reencontro de Curt
Nimuendajú com o Curt Unckel que viveu em Iena até os 20 anos de idade. Não existem
registros de suas expectativas quanto a esse momento, mesmo porque expressar seus
sentimentos por escrito não é bem a sua especialidade.
Por isso, não é nada surpreendente que a única menção à irmã Olga numa carta ao seu
confidente Carlos Estevão seja uma solitária linha, sem sequer citá-la pelo nome: “De 17 a 22
de abril estive em Jena com a minha irmã, revivendo com ela os tempos da nossa infância
(...)”.
Olga, filha do primeiro casamento da mãe de ambos, é seis anos mais velha do que
Curt. O papel de irmã protetora, com um toque maternal, poderá ter sido uma constante nesta
relação. Ela revela ao irmão que, ainda menina, já tomava conta do irmão menor.8 É
igualmente significativo que foi Olga, trabalhando como professora primária, quem pagou em
1903 a sua passagem de navio ao Brasil.
Não se sabe o que os irmãos conversaram durante a curta estadia de Curt em Iena.
Porém, através das cartas trocadas depois dessa visita é possível saber o que deixou de ser dito
pessoalmente.
A irmã Olga também tem dificuldade de mexer em temas da vida familiar e chega ao
ponto dela “esquecer” de mostrar ao irmão, que revê após 31 anos, um objeto que poderia
reacender lembranças mais vivas desse passado comum. Somente depois que Nimuendajú já
está na Suécia é que, por carta, ela toca no tema: “Você mal lembra da imagem da mamãe?
Infelizmente, enquanto você esteve aqui, eu não atinei que tenho fotos da família num
album”. Os retratos estavam na sua própria casa, em Iena.9
Olga só consegue referir-se a situações concretas do passado por carta, sete meses
depois da visita do irmão Curt, que então já está de volta a Belém, a milhares de quilômetros
de distância: “Penso o tempo todo nos quatro dias bonitos que você nos deu de presente, pena
que não foram quatro semanas. A foto da nossa mãe deve ser entre 1878 e 1882 [antes do
nascimento de Curt]”. A frase sugere que Olga teria enviado uma cópia de um retrato da mãe
de ambos ao irmão em Belém.
As vinte linhas seguintes da mesma carta constituem um relato de datas e situações
narradas “objetivamente”, embora silencie quanto ao seu próprio pai. Somente no final,

8
MN, Iena, 24/11/1934.
9
MN, Iena, 22/07/1934.
151

permite-se insinuar um sentimento: “Após alguns meses, a nossa mãe voltou [à Alemanha] e
você nasceu na casa dos Bechsteiner na rua Wagnergasse. O pequeno chegou!”.10
O retorno de Nimuendajú ao Brasil fecha a janela para o passado alemão. Para trás,
fica a angústia de Olga, perceptível numa carta de novembro do mesmo ano: “Meu querido
jovem, onde é que você se escondeu, que não se ouve mais nada de você? Será que você já
está cheio de sua pátria? Não sabemos se você atravessou sem problemas o oceano [Atlântico,
de navio] ou se ficou no Rio para fazer contatos, como você aguentou a mudança de clima
depois de ‘morrer de frio [na Europa]?”.11
Numa única passagem, Nimuendajú adquire uma loquacidade desconhecida quanto se
trata de sua própria vida. Em carta a Carlos Estevão, expressa a emoção do seu retorno
simbólico à infância, matizada pela percepção de que o passado efetivamente passara:12

(...) e revendo as matas e montanhas onde eu brincava quando era menino. Percorri-as
agora sozinho, saudando as árvores e pássaros e todos os animais da mata, meus antigos
conhecidos. Entrei, como há 31 anos atrás [sic], na taberna da pequena aldeia de Coppanz, nas
montanhas a oeste da cidade, reconheci ainda os bancos e as mesas daquele tempo e me sentei
no meu lugar velho, mas gente estranha veio me servir e, perguntando, soube que da família
do antigo dono ninguém mais existia. E assim por diante.

A inegável melancolia de captar que ele é agora um estranho inclusive na sua cidade
de nascimento deve ter doído. Mesmo revendo a irmã, o ambiente de sua adolescência não
está mais lá. Agora sabe que a Alemanha que deixou em 1903 ficou em algum lugar no meio
do caminho rumo ao Brasil. Só ficam as lembranças, que, com o passar dos anos, tornam-se
cada vez mais ariscas, fugidias, mutantes.
Mas no Brasil ainda é tratado como estrangeiro. A diferença entre a densa floresta de
pinheiros de Iena e a mata rarefeita dos Canela terá aprofundado a pergunta de, afinal, qual é a
sua pátria. Como terá explicado aos amigos da irmã o que significa viver entre indígenas?
Não existem relatos historiando suas conversas com amigos de infância, a quem
possivelmente terá contado o choque cultural que existe entre um fazendeiro e os Canela do
sertão maranhense, algo difícil de avaliar, principalmente se os ouvintes nunca deixaram a

10
Iena, 24/11/1934, MN.
11
Ibid. Olga sofre com a separação, como se lê na sua carta de 22/09/1937: “Meu sentimento de culpa já se
encarnou num pesadelo: eu tinha recebido uma carta com o envelope escrito:‘Susto = Notícia’ com a informação
de que um tubarão tinha devorado você. Meu grande medo era se você tinha ar suficiente na barriga do tubarão”.
MN.
12
Dresden, 26/04/1934, CS. p. 203.
152

terra natal. Nem os seu amigos de infância, ouvidos por Cappeller em 1960, relatam um
reeencontro.
Depois dos seis dias com sua irmã Olga em Iena, Nimuendajú retoma o périplo dos
museus. Em Lepzig, conhece pessoalmente o seu diretor, Fritz Krause, com quem discutira
por carta dois anos atrás, mas de quem agora é convidado para festejar o seu aniversário com
a família. No Museu, porém, não há motivos para comemorações. Há dois anos que as
coleções estão amontoadas sobre bancas provisórias e no chão em salas fechadas ao público
no edifício novo. O dinheiro simplesmente acabou. Ele vê coleções de objetos indígenas da
região do Xingu e do Araguaia, mas dos Jê apenas o que ele enviara e não esconde o orgulho
de ser o único fornecedor dessas peças.
A próxima estação é o museu de Berlim. Sua opinião do material vistoriado é positiva,
assim como do diretor, Walter Krickeberg, em quem não notou “aquele abatimento moral que
tanto me impressionou em outras partes. Parece mesmo que este museu ainda dispõe de
alguns recursos (Snethlage!), pois Krickeberg tratou logo de entabolar negociações comigo
para o futuro, falando de coleções que queria comprar, de trabalho e publicações e mesmo de
subsídios”.13 A sua avaliação equivocada e parcial da personalidade de Krickenberg vai ter
consequências negativas, a curto prazo, para o sociólogo alemão radicado em São Paulo,
Herbert Baldus. E a longo prazo para o próprio Nimuendajú, como se verá mais à frente.
De Berlim, dirige-se à Dinamarca, onde visita, de 4 a 8 de maio, o museu da capital.
Profundamente tocado diante de um quadro do pintor holandês Alfred Eckhout, ele supõe que
os indígenas retratados sejam canela e que o pintor efetivamente presenciou a cena pintada:14

Este quadro pareceu-me, sob o ponto de vista etnológico, o mais importante de todos:
representa ele 8 homens dançando em círculo, batendo com força o pé direito e brandindo na
mão direita a estoleca e as flechas, enquanto a esquerda, pendendo, segura o cacete. Estão
inteiramente nus e sem pintura, o prepúcio amarrado com um fio. Só um deles traz a pedra
verde no beiço e os pauzinhos nos cantos da boca; em outros só se vê os respectivos furos, e o
mais novo dos dançadores nem estes [furos] não apresenta ainda. O corte dos cabelos é
inteiramente identico ao dos Canelas. À direita, ao lado do grupo dos homens que dançam de
boca fechada, estão duas mulheres moças, com um amarrado de folhas metido no cordão da
cintura, uma ao lado da outra, abraçando-se com as mãos por detrás das costas, os pés em
posição de dança, e tapando com a mão livre a boca (e as narinas?). As bochechas parecem

13
Göteborg, 09/05/ 1934, CS, p. 208.
14
Ibid., p. 209. Eckhout esteve no Brasil de 1637 a 1644, cf. Sönke Lundt, Der Blick auf die Neue Welt: Die
Brasilienreise Albert Eckhouts 1637-1644, Kiel Universität, Kiel, 2000.
153

um pouco inchadas: tem-se a impressão que elas estão produzindo algum ronco [som] na mão.
Levei muito tempo diante deste quadro que muito me impressionou.

Finalmente, no dia 8 de maio chega a Gotemburgo, a sua grande meta etnográfica na


Europa. Porém, após um mês de estadia, sente-se um índio solitário nos luxuosos salões
suecos. A primeira dificuldade é o clima, pois mesmo o verão sueco não lhe deixa trabalhar à
vontade e sente-se constantemente ameaçado de ficar gripado. Ele tem mais objeções:15

A segunda está na divisão do tempo de trabalho daqui com a qual não me posso
conformar: esta gente nada faz antes das 9 horas da manhã, e, em compensação, quer fazer da
noite dia. “Da noite” é modo de falar, porque às dez horas da noite o Snr. ainda pode ler sem
luz [artificial] na rua e às duas da manhã outra vez. Isto não é terra para quem nunca esperou
o sol [despontar] na rede! No Pará, às 9 horas da manhã eu já fiz a melhor parte do meu
trabalho. A terceira é que o custo de vida é aqui incomparavelmente mais elevado do que no
Pará, de maneira que, por mais economicamente que eu viva, estou gastando sozinho mais do
que gastaria no Pará em companhia da minha mulher e [em Belém estaria] passando melhor.

Nimuendajú estranha o clima e os costumes suecos.


Após os magros resultados profisionais na Alemanha, vem uma nova desilusão
intelectual. Sua expectativa de aprender com os etnólogos do museu de Gotemburgo vai por
água abaixo: “Pelo menos em matéria de americanística eles é que podiam aprender de mim,

15
Göteborg, 09/06/1934, CS. p. 212.
154

esta é a dura verdade. Kaudern da América nada sabe; Ryden, que tem 26 anos, talvez ainda
dê para alguma coisa quando tiver 40. (...) Izikowitz não está mais no Museu porque Kaudern
é anti-semita. Eu tenho a nitida impressão [de] que os dias de glória do Museu de Göteborg já
passaram; Nordenskiöld não deixou quem o substituisse”.16
Curiosamente, a viagem à Suécia nasce marcada por um paradoxo básico: para
escrever sua famosa monografia sobre os Canela, Nimuendajú emprende uma viagem de
navio de mais de seis mil quilômetros até a distante Gotemburgo. Se a evolução social
brasileira tivesse respeitado os indígenas, as peças dessas coleções estariam disponíveis perto
de Barra do Corda, a menos de 500 quilômetros de Belém em linha reta.
Independente disso, Nimuendajú está orgulhoso das coleções que ele fez no Brasil
para o museu sueco: “Felizmente, as únicas culturas convenientemente expostas em sala são
as dos Canelas e a dos Apinaye! O material sobre os índios sul americanos que eu vi no
Museu de Berlim e nos seus armazens é seguramente cinco vezes maior do que o do Museu
de Göteborg, mas o daqui representa maior número de tribos e representa o continente com
maior regularidade de distribuição”.17
É inegável que o Curt Unkel nascido em Iena morreu para abrir espaço ao Curt
Nimuendajú tropical. Órfão pela segunda vez no seu país de nascimento, privado de apoio
intelectual nos museus alemães e suecos, Nimuendajú busca refúgio na sua distante pátria
adotiva: “Estou contando os dias que ainda sou obrigado a passar fora do Brasil e
antegozando o momento da minha volta. Para a Europa, sou um caso perdido”.18 A
melancolia que o invade em pleno verão europeu de 1934 reflete talvez o fato de que já fora
adotado pelos seus neo-compatriotas, os Xerente, os Apapokuva-Guarani, os Apinayé e os
Ramkokamekra. Anos depois, os Ticuna Rio Negro também o incluirão na sua vida tribal.
Além disso, a penúria econômica que conhece no Brasil o acompanha até na rica
Suécia: “Assim que eu estiver de posse das fotos que preciso, voltarei imediatamente para o
Pará, porque se ate lá me restar algum d inheirinho quero gastá-lo no Pará, onde ele durará
mais do que na Suécia. Infelizmente prevejo que os meus recursos nem de longe chegarão
para a conclusão do manuscrito”.19
O tempo passa, o pessimismo cresce: “Voltarei um tanto apreensivo: aqui nada me
facilitaram. As minhas despesas foram muito maiores do que eu calculava. Pagando a

16
CS, p. 213. Nordenskiöld foi diretor do museu até sua morte em 1932.
17
Ibid. Ainda faz um afago em Carlos Estévão, diretor do Museu Goeldi: “A biblioteca do Museu sé e superior à
do Museu do Pará quanto a obras gerais sobre a americanística. Ela é muito menor que esta e ai de mim se eu
não tivesse o material que achei no Pará!”.
18
CS. p. 212.
19
Göteborg, 09/06/1934, CS, p, 214.
155

passagem de volta aqui quase não me restará dinheiro nenhum. O meu trabalho ainda não
está nem pela metade”.20 Como mantendo o ritual de muitas viagens, pede dinheiro
emprestado para poder voltar ao Brasil – desta vez não ao diretor do Museu Emilio Goeldi,
Carlos Estevão, mas ao do Museu de Gotemburgo.21 O retorno a Belém em setembro de 1934
vê-se tingido por um sentimento de fracasso: “Esperava tambem com impaciencia notícias de
Barra do Corda e do Museu Nacional, sendo que estas últimas seriam de certa importância
para a minha orientação aqui”.22

As funestas consequências do nazismo

Republicano de coração, na sua passagem pela Alemanha em 1934 Nimuendajú rejeita o


nazismo, que um ano antes chegara ao poder. Mas só assume essa posição depois de deixar a
sua pátria de nascimento: “Não há dúvida que o nacional-socialismo, pelos seus princípios, é
francamente hostil à ciência pura e disto faz até ostentação. Como todo socialismo, ele exige
do indivíduo que mergulhe no rebanho, odeia o individualismo do qual o cientista, por sua
natureza, é o representante mais temível. Ciência só comprende e admite até onde ela se
relaciona com os problemas do nacional-socialismo: de lá em diante, tudo é besteira [para o
nazismo]”.23

Nazismo, um “fenômeno nítidamente patológico”.

20
Göteborg, 20/07/1934, CS, p, 215.
21
Belem, 20/07/1937, MG.
22
Göteborg, 20/07/1934, CS, p. 215.
23
Göteborg, 10/05/1934, CS, p. 205.
156

Os nazistas ainda não tinham cometido suas maiores atrocidades. Cinco anos antes do
início da Segunda Guerra Mundial, Nimuendajú emite um julgamento que se mostraria
profético: “A tirania intelectual que o nacional-socialismo exerce só pode trazer, mais cedo ou
mais tarde, consequências funestas para a cultura alemã em geral. Causou-me pena o aspecto
das vitrines das livrarias na Alemanha, porque fornecem um índice bastante seguro do nível
intelectual de um povo. Hoje elas foram transformadas em meras agências de propaganda do
nacional-socialismo, formando um desagradável contraste com outros países germânicos,
como a Inglaterra, Dinamarca e a Suécia”.

A seguir, caracteriza Hitler de uma maneira incomum, mas acertada:

Todo este nacional-socialismo, justamente pelas suas pretensões supergermânicas


[pangermânicas], tem para mim um aspecto estranhamente não-germânico: ele me parece um
fenômeno nítidamente patológico. Permita-me uma comparação: um homem recebe um
ferimento grave numa perna; sobrevém a gangrena, e a sua morte será inevitável uma vez que
os que o assistem, ou por falta de competência, ou por falta de coragem, não se resolvem
[pela] à amputação. Surge um medico que arrasta o paciente para a mesa de operação,
narcotiza-o, corta-lhe a perna, e o homem está salvo. (...) Mas o que não se concebe é que
aquele médico queira agora sugerir ao paciente que doravante não só o seu estado normal,
como mesmo a condição ideal para ele seja a da narcose, estendido sobre a pedra! É e o que
Hitler está fazendo.

Esta clara consciência política numa época de desorientação ideológica, contudo,


tem o seu contraponto. Durante sua conversa com o diretor do Museu de Berlim, Walter
Krickenberg, o arguto Nimuendajú comete um erro de avaliação. Falando sobre os alemães
residentes no Brasil, comenta que o sociólogo Herbert Baldus agia em São Paulo como se
fosse um comunista.
Mal sabia que o diretor do Museu era membro do partido nazista. Krickenberg usa a
informação para recusar o ingresso de Baldus na então famosa Sociedade Antropológica da
Alemanha.
Em carta manuscrita de 19 de junho de 1934 dirigida à Sociedade de Antropologia,
Etnologia e Prehistória, Krickenberg acusa:24

24
Díaz de Arce, Norbert,Plagiatsvorwurf und Denunziation, Untersuchungen zur Geschichte der Altamerikanistik
in Berlin (1900-1945), dissertação de doutorado em História, na Universidade Livre de Berlim, 2005, p. 183.
minha tradução.
157

Há algum tempo atrás fiquei sabendo, por acaso, pelo conhecido pesquisador
sulamericano Dr. Kurt Nimuendajú (que apesar do nome indígena é um bom alemão), que
Baldus (...) teria se tornado na América do Sul uma pessoa indesejável devido à sua tendência
e ação comunistas; evidentemente ele não tem ocultado a sua inimizade à nova Alemanha
[nazista]. (...) Como eu lanço mão da informação do senhor Nimuendajú, que atualmente se
encontra na Suécia, sem sua autorização, estaria agradecido se, no caso da eventual recusa do
pedido do senhor Baldus, não fosse citado o nome Nimuendajú. Com minha mais elevada
consideração e Heil Hitler.

Krickenberg erra ao escrever o nome de Curt e atribui-lhe o grau de “doutor”.

O mal está feito. Baldus, porém fica sabendo de tudo e exige, de maneira firme e
elegante, que o próprio Nimuendajú resolva o problema com a pessoa que apadrinhou a sua
proposta de filiação à Sociedade, o professor Karl Theodor Preuss.25

25
São Paulo, 20/07/1934, MN.
158

Preventivamente, Baldus também escreve a Preuss: “(...) Eu acho completamente


impossível que um homem com quem há anos mantenho uma amistosa troca epistolar possa
ter pronunciado uma acusação sem qualquer base. Não posso negar, ao mesmo tempo, que
uma vez escrevi ao sr. Nimuendajú de maneira negativa sobre a situação na Alemanha. Mas
ela se deu sob o impacto da notícia de que a minha esposa fora detida para investigações, em
função de uma denúncia que, posteriormente, mostrou ser infundada. Desde que a minha
esposa está aqui comigo, vejo tanto sua detenção como o nacionalsocialismo e suas metas sob
outra perspectiva e lamento muito as palavras que escrevi ao sr. Nimuendajú”.
Desconhece-se o teor da carta de Nimuendajú ao professor Preuss. Meses depois,
Baldus agradece essa intervenção e lista a Nimuendajú as possíveis consequências do seu
comentário. Mesmo morando no Brasil, Baldus depende economicamente da Alemanha e o
governo nazista pode inviabilizar seu trabalho e estadia no país. Também pode cortar seus
vínculos editoriais com empresas alemãs e impedir a futura especialização, que ainda pretende
fazer em Berlim.26
A indesejada profecia se realiza logo depois.
No natal de 1934, Baldus conta a Nimuendajú que a partir de então não recebe mais
nenhum centavo da Alemanha: “Anteontem recebi a informação (...) de que os prometidos
fundos não me serão enviados, porque o governo [alemão] proibiu [a remessa] devido a
restrições cambiais. (...) Como meu editor me escreveu contando que devido à queda no
mercado editorial alemão não poderia assinar novos contratos, e também que a remessa dos
meus honorários não foi autorizada pelo órgão de controle cambial, agora estou na lama.
Nada mais tenho a fazer senão procurar alunos para dar aulas de alemão para não morrer de
fome, enquanto que nas horas livre continuo com meus trabalhos etnológicos, que por sua vez
não rendem dinheiro”.27
O longo e eficiente braço do nazismo pode agir novamente a qualquer momento. Por
saber disso, Baldus aproveita a visita, em janeiro de 1935, do etnólogo Fritz Mühlmann,
membro da Sociedade Antropológica Alemã, para mandar uma mensagem a Krickenberg. O
relato de Mühlmann endereçado ao presidente da Sociedade é esclarecedor: “Ele [Baldus]
garantiu me a sua postura favorável ao Terceiro Reich e solicitou-me que transmitisse ao
senhor a sua posição política”.28

26
São Paulo, 25/10/1934, MN.
27
São Paulo, 17/12/1934, MN.
28
Díaz de Arce, p. 184. Após o fim da guerra, Krickenberg negou a filiação ao partido nazista e afirmou que, ao
contrário, seu nome estava na lista de suspeitos da célula local do partido em Berlim. Perante um tribunal de
guerra norte-americano, porém, não apresentou provas, ibid.
159

É como se Nimuendajú tivesse dificuldades em separar a ciência da ideologia nazista


que alguns científicos abraçam. Depois de avaliar equivocadamente Krickenberg em
Berlim, repete o gesto com o zoológo alemão Otto Schulz-Kampfhenkel no Brasil. No dia 21
de setembro de 1935, um avião de dois lugares com a cruz gamada nazista decola do hangar
da Panamerican Airways em Belém rumo ao rio Jari. A bordo, Schulz-Kampfhenkel e o
copiloto Gerd Kahle.29
No livro escrito a partir dessa expedição, Schulz-Kampfhenkel elogia “o alemão”
Nimuendajú: “A literatura cientifica não oferece respostas a questões profundas. Muitas
noites de animadas conversas no romântico escritório do alemão Nimuendajou [sic], que anos
a fio morou entre os índios no sul [do Brasil] e é tido como excelente especialista dos
costumes indígenas, fornecem valiosos conselhos”.30
Anos mais tarde, Nimuendajú tenta se afastar desse contato: “Inicialmente, tive uma
boa impressão de Schulz-Kampfhenkel. Eu aceitei seus planes [planos da expedição ao rio
Jari], exceto o uso de um avião. É também significativo que ele ficou dois anos entre um
punhado de índios. Mas após eu ter lido seu artigo no jornal, eu não o reconheci e achei toda a
apresentação algo mostruoso (eu não conhecia o seu livro)”.31
Os episídios envolvendo Krickenberg e Schulz-Kampfhenkel contribuem para
disseminar a suspeita de que Nimuendajú seria nazista. No ambiente beligerante vigente
depois que o governo de Getulio Vargas declara a guerra à Alemanha, uma meia suspeita já
é a verdade inteira, como o próprio Nimuendajú constata com a sua prisão em 1942.
De nada adianta sua postura anti-nazista, que sua irmã, de certa forma, admira: “As
suas impressões sobre nossa situação política e cultural são tão acertadas que o Edwart
[cunhado de Nimuendajú] chegou a copiar um trecho de sua carta. (...) Ainda acreditamos nas
boas intenções de Hitler, mas não deverá ser tão despótico, além de que o [cidadão] alemão é
muito autônomo e crítico”.32
Após Hitler proibir por lei o contato de cidadãos “arianos” (de origem germânica) com
pessoas de “raças inferiores”, como negros, judeus e ciganos, Olga não se contém:

Recentemente, Edwart ouviu uma palestra em que se disse que o único povo que
aspira à mistura racial é o brasileiro. Todos os outros são a favor da pureza racial. A

29
Ménchén, p. 186.
30
Schultz-Kamphenkel, Otto, Rätsel der Urwaldhölle, Vorstoß in unerforschte Urwälder des Amazonenstromes,
Deutscher Verlag, Berlin, 1938, p 28.
31
Carta a Herbert Baldus em 17/02/1941, MN.
32
Iena, 12/09/1934, MN. Edwart Richter é o marido de Olga, engenheiro da empresa Zeiss, onde Curt Unckel
trabalhara como aprendiz ótico até 1903.
160

Alemanha agora também é a favor, de tal forma que a partir de primeiro de janeiro de 1936
todas as empregadas domésticas menores de 45 anos devem abandonar as famílias judias. É
assim que, em pleno inverno, milhares de jovens arianas são jogadas no mercado de trabalho
das grandes cidades.33

Ela critica mais uma vez os atos praticados em nome do nacional-socialismo, mas não
a ideologia: “Não é mais possível estar de acordo com tudo o que acontece aqui. O Partido
[nazista] se arroga direitos que não tem e gera descontentamento geral. Espero que essa
política partidária não gere um final infeliz para um movimento que é bom”. Parte das cartas
nesse período é ocupada com temas políticos de ambos os países, que vivem tempos de
agitação popular e tendências totalitárias. Nimuendajú vaticina que, depois da chamada
Intentona Comunista em 1935, viria uma tentativa fascista, o que de fato foi o golpe
integralista de 1937:34

(...) eu fiquei muito contente de ter notícias de vocês, mesmo que estejam usando um
barril de pólvora como sofá. (...) No final do ano passado, tivemos (...) uma revolução
comunista. Ela foi o resultado imediato do tonto socialismo, no qual entraram o líder e os
heróis da grande Revolução de 1930, depois que o poder caiu-lhes na mãos da noite para o dia
e em pouco tempo tiveram que assistir à própria impotência de criar algo nacional-brasileiro,
como realmente desejavam. O líder militar [do levante comunista] era um antigo caudilho, o
comissário político e representante da Rússia era um judeu alemão. A próxima revolução (...)
será provavelmente a fascista, (...) mas para realizar um regime fascista eles são tão
incompetentes quanto [para executar] qualquer outra revolução.

O “antigo caudilho” vem a ser Luiz Carlos Prestes. O “judeu alemão” é Arthur Ernest
Ewert, que não é judeu, e adota o pseudônimo de Harry Berger. Torturado pela polícia
getulista comandada pelo descendente de alemães Felinto Müller, Ewert é deportado à
Alemanha em 1947 e morre, em 1957, num hospital psiquiátrico na então República
Democrática Alemã.35 Na última linha desta carta à irmã, Nimuendajú pergunta se acredita no
futuro do nacionalsocialismo. A resposta, matizada com uma piada anti-nazista, mostra a
crescente militarização do dia-a-dia alemão:

33
Iena, 14/11/1935, MN.
34
Pedreiras, 06/09/1936, MN.
35
Arthur Ewert und die Wandlung von Luis Carlos Prestes zum Kommunisten, Jahrbuch für historische
Kommunismusforschung 1994, Berlin 1994.
161

Existe carência de mão de obra em toda parte, especialmente da masculina. No campo,


os jovens têm de prestar o serviço pré-militar de um ano e depois o de dois anos nas Forças
Armadas. (...) Você me pergunta se eu acredito no futuro do nacionalsocialismo? Minha
resposta é uma piada que atualmente circula em Berlim: Alguém pergunta a Hitler quanto
tempo vai durar o Terceiro Reich. Ele responde: “eternamente!”. A resposta de Göring é “no
mínimo mil anos”. E a resposta de Goebbel é: “NSDAP” [abreviação do partido nazista e que
na piada é desdobrado em “Nur Solange Die Affe Parieren”, que traduzido em português
significa “somente enquanto os macacos obedecerem”].

Após a tentativa comunista, prevê o golpe fascista de 1937.

Em 1937, o tom de crítica de Olga desaparece. Em seu lugar surge uma entusiasmada
nacionalista: “Nos próximos dias, toda a Alemanha será coberta de bandeiras. Agora mesmo
vive-se o rescaldo das festa de aniversário do Reichsparteitag em Nüremberg, e logo vem a
visita de [Benito] Mussolini. Qual é afinal a posição do Brasil perante a nossa pátria?”36

36
Iena, 22/09/1937, MN. Reichsparteitag era o congresso que o partido nazista realizava anualmente de 1922 a
1938, primeiro em Munique, depois em Weimar (perto de Iena) e finalmente em Nüremberg, cf. Urban, Markus,
162

A resposta de Nimuedajú não faz menção à “nossa pátria”, mesmo porque há muito
tempo que ele não se identifica com a Alemanha. Ele prefere falar da mistura racial brasileira:
“Claro que os sucessos de Hitler impressionam os brasileiros, especialmente aqueles ligados
às relações internacionais. Seria bom demais se o Brasil TAMBÉM [sic] assustasse o mundo!
Mas vai demorar ainda até isso acontecer, independente do tipo de regime que nós tenhamos
no futuro. Mesmo Hitler seria aqui um pobre coitado. Tudo fracassaria nas mentiras e no
egoismo do povo. Falar com brasileiros sobre raças é algo impossível porque, devido ao peso
das condições reinantes, se sentem compelidos a elevar o caos racial à categoria de ideal de
Estado”.37
Meses depois, Olga conta que ela mesma já participa de treinos para-militares: “Aqui
ainda ressoa o júbilo pela anexação da Áustria e a propaganda eleitoral mobilizou todas as
forças. Meu treinamento como ‘bombeira’ em caso de ataques aéreos termina semana que
vem. Ontem treinamos o uso de máscaras antigases: ficamos num quarto cheio de gás
lacrimogênico, puxamos cordas, marchamos no pátio do quartel de bombeiros usando
máscaras. Nas últimas duas noites, aprendemos a apagar incêndios”.
Ela faz questão de demonstrar que, mesmo assim, a vida continua normalmente na
Alemanha: “Claro que a gente também ri, especialmente quando mulheres baixinhas e
gordinhas usam roupas antichamas, máscaras antigases e capacetes de aço. Quem não tem
capacete, usa uma panela da cozinha”.38
Nimuendajú coloca a irmã à par do clima de ódio contra alemães no Brasil, que
também o atinge através das brigas com o Conselho de Fiscalização.
Ele atribui isso à propaganda norte-americana, mas critica a ação nazista no país:

Sem sombra de dúvidas que os nacionalsocialistas agiram de maneira estúpida em


relação aos alemães que moram aqui: a criação de grupos locais mais ou menos fanáticos, a
nazificação mais ou menos brutal de associações e escolas através de certos jovens imbecis
150 por cento nacional-socialistas, a declarada intenção de obrigar todos os descendentes de
alemães a uma unidade política (...).

No meio da carta, inesperadamente, ele se identifica como alemão: “isto [a


nazificação] obrigou a nós, alemães residentes no exterior, a escolher entre ser vistos como

Die Konsensfabrik. Funktion und Wahrnehmung der NS-Reichsparteitage 1933–1941, Vandenhoeck &
Ruprecht, Göttingen 2007.
37
Belém 16/12/1937, MN.
38
Iena, 01/04/1938, MN.
163

inimigos da Alemanha ou como do Brasil, o que despertou a desconfiança dos brasileiros. (...)
Certamente que eles [os nazistas] se mantiveram à margem da política brasileira, mas fizeram
como se aqui não existissem brasileiros ou como se agissem em terras conquistadas”.39
Ele diz não haver nenhuma semelhança entre o nazismo e o integralismo, uma
identidade proclamada pelos simpatizantes de Plinio Salgado naquela época.
Mas considera o golpe fascista de 1937 como mais uma ação contra os alemães
residente no Brasil: “(...) eu acho que os brasileiros são absolutamente incapazes de produzir
de maneira fascista. Caso realmente existir um alemão simpatizante do golpe fascista na
crença de que o nacional-socialismo teria algum ponto PRÁTICO [sic] em comum com o
integralismo brasileiro, isto só confirmaria que ele nada entende dos brasileiros em geral e do
integralismo em particular. Isto só aconteceu (...) na bem intencionada vontade de criar mais
motivos para atiçar o povo contra os alemães”.
No final, responsabiliza Getulio Vargas pelo caos no país:

Mas seria falso atribuir isto [o ódio aos alemães] somente aos norte-americanos. A
atual ditadura não se apóia nem ao [no] povo desorganizado nem em partidos organizados. O
povo vive uma completa anestesia política. O que sobrou dos partidos políticos é inimigo do
ditador. Ele precisa se tornar populista imediatamente e isso aqui se consegue da maneira
mais fácil na medida em que atiçar o ódio ao estrangeiro.

Seu parceiro na Etnologia, Robert Lowie, austríaco naturalizado norte-americano,


também toma conhecimento dessa análise: “Aqui existem o nacionalismo e o nativismo
[fascismo], sendo que o último é o que gera consequências mais desagradáveis. O nacionalista
tem interesse na associação a nível de Estado, o nativismo é contra o contato com os que ‘já
nasceram diferentes’. (...) Mas isto é assim mesmo em toda parte, que o estrangeiro não é
querido. Olhado dessa ótica, o índio também é estrangeiro”.40

A última carta de Olga que eu achei no Museu Nacional é de 1940 e mostra uma
patriota eufórica: “(...) no que diz respeito à nossa guerra, tudo vai para frente a passos
agigantados a nosso favor. O que Hitler tem feito até hoje tem pés e cabeça e os ingleses vão
ter que mudar de idéia daqui a pouco. Nenhum de nossos inimigos tem a disciplina e a força
de nosso exército”.41

39
Belém do Pará, 18/05/1938, MN.
40
Belém, 06/02/1941, DU, p. 307.
41
Iena, 15/05/1940, MN.
164

Aqui perdem-se os registros da correspondência de Curt Nimuendajú com sua irmã


Olga Richter. Cappeller supõe que ela não foi informada da morte do irmão em 1945: “Pouco
antes falecer em 13 de novembro de 1959, ela [a irmã Olga] destruiu todos os documentos
[referentes a Nimuendajú], porque ao longo de 20 anos nada mais ouviu do seu irmão que
emigrara”.42
Os últimos anos de vida de Olga terão sido tingidos pela amargura do silêncio do
irmão.
Mas talvez ficou como marca indelével a imagem que ela guardava e um dia
confidenciou ao próprio Curt:

Alguns dias atrás falávamos que cada pessoa só deveria trabalhar na área em que está
interessada. Assim haveria mais pessoas excelentes no mundo. Mas infelizmente para a
maioria o trabalho é apenas como as tetas da vaca. Você é uma das poucas exceções e, apesar
de algumas desagradáveis experiências de vida, uma pessoa de sorte.43

42
Cappeller p. 12. Ele terá recebido esta informação da filha de Olga, Irmgard, a quem entrevistou em 1962.
43
Iena, 01/04/1938, MN.
8 - O encontro dos mestres

Dois cientistas estrangeiros marcaram o caminho intelectual de Nimuendajú. O primeiro passa


rapidamente pela vida de Nimuendajú – em troca, o trabalho deste serviu, em parte, de base
para o surgimento da teoria antropológica que tornaria seu autor mundialmente famoso.
Com o segundo, plasma-se uma prolífica cooperação ao longo de quase 15 anos. Seus
resultados são visíveis na obra de Nimuendajú, mas praticamente inexistentes na do colega
norte-americano.

O “não” a Lévi-Strauss

O primeiro cientista é o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que chega a São Paulo em
1935 para dar aulas na recém criada Universidade de São Paulo. E que logo parte para a
pesquisa de campo entre os Bororo.

Nimuendajú aposta no trabalho etnológico de Lévi-Strauss.

Francês nascido na Bélgica em 1908, a partir dos 27 anos leciona na USP. Suas
expedições a tribos do chamado Brasil Central renderam material e conteúdo para suas
166

posteriores reflexões. Seu livro Tristes Trópicos (1955, Paris) expandiu a sua fama para além
do mundo acadêmico até hoje. Propôs a antropologia estruturalista – uma tentativa de mostrar
que estruturas básicas de funcionamento da mente se refletem numa enorme variedade de
práticas institucionais e de parentesco na sociedade indígena. Morreu em 01/11/2009.
Não se sabe quando Nimuendajú e Lévi-Strauss começam a curta troca de
correspondência. Aparentemente, Nimuendajú toma a iniciativa em 1936. Nesse ano, Lévi-
Strauss publica dois artigos no Brasil: “Com os selvagens civilizados”, no jornal O Estado de
S. Paulo [publicado em 10/11/1936] e “Contribuição para o Estudo da Organização Social
Bororo”, na Revista do Arquivo Municipal, de São Paulo. Nos arquivos do Museu Nacional,
consta uma carta de 10 de novembro de 1936, na qual Nimuendajú agradece a Lévi-Strauss a
remessa do trabalho sobre a organização social dos Bororo.1
Nela, Nimuendajú conta que, de 1905 a 1912, já havia morado em áreas ocupadas por
povos de língua Jê em São Paulo, Paraná e no atual Mato Grosso do Sul. Mas, mesmo tendo
trocado correspondência com outros estudiosos, uma série de interrogações ainda o atormenta.
É isto que explica a sua expectativa sobre Lévi-Strauss: “Agora toda a minha
esperança é que o senhor ainda tenha ocasião de por o assunto [a organização social dos
Kaingang] em pratos limpos mediante um estudo demorado”.
No dia seguinte, Nimuendajú pergunta a Baldus: “Quem é e o que é Claude Levi-
Strauss? Primeiro vi dele o artigo ‘Com os Selvagens Civilizados', que me interessou pelo seu
posicionamento na questão indigena. Depois vem sua ‘Contribution a 1'etude de
1'organisation sociale des Bororo’ no J.S.A., onde ele, em poucas paginas, traz material muito
valioso, e que chegou para mim como se houvesse sido encomendado. O que se pode esperar
dele a mais no futuro?”2
Imigrante alemão com dificuldades para se estabelecer no Brasil e tido como
simpatizante comunista em pleno Estado Novo, Baldus descreve Lévi-Strauss, sem esconder
uma ponta de ciúmes: “(...) se incorporou muito bem na sociedade [paulistana]. Ele é educado
e gentil, entre 27 e 30 anos, aparentemente abastado, pois tem uma casa elegante, uma mulher
mundana, e foi secretário de Leon Blum. (...) ocupa a cadeira de Sociologia [na USP] e dá
aulas de Etnologia, sua mulher também deu um curso de Etnografia (...)”.3
Nimuendajú intui a futura estatura intelectual do jovem etnólogo francês e comenta
com Baldus: “é notável que esse homem, que só recentemente passou para a Etnologia, tenha

1
Belém, 10/11/1936, MN.
2
Belém, 11/11/1936, DU, p.188. JSA é o periódico especializado Journal de la Societé de Américanistes,
editado em Paris.
3
São Paulo 30/11/1936, DU, p. 189. Blum foi várias vezes primeiro-ministro francês entre 1936 e 1950.
167

se inteirado em tão pouco tempo de uma maneira tal, que ele compreendeu com tanta precisão
as condições sociológicas dos Bororo, que de fato não são simples. Quando penso em como
me esfolei seis anos com a Sociologia dos Canelas!”4
A resposta de Lévi-Strauss, que não fica sabendo dessa avaliação, a Nimuendajú é um
convite, em nome do professor Paul Rivet, o então papa mundial da Etnologia, para participar
de uma expedição aos territórios dos Nhambiquara, no atual Mato Grosso, no final de 1937:
“Da minha parte, desejo vivamente contar com sua alta capacidade e sua experiência, que
seriam uma garantia particularmente preciosa de sucesso de nossa empreitada”.5

Lévi-Strauss convida Nimuendajú para uma expedição, que...

À beira do rio Tocantins, na aldeia de Boa Vista (atual Estado de Tocantins),


Nimuendajú escreve uma resposta que deve ter supreendido Lévi-Strauss.
Polidamente, Nimuendajú recusa o convite, informando que, durante os próximos dois
anos, pretende se concentrar esclusivamente no estudo das tribos do grupo lingüístico Jê. Por
causa disso, não teria tempo adicional disponível para a expedição proposta, desejando,
porém, manter a correspondência já iniciada entre ambos.6

4
Belém, 13/01/1937, DU, p. 189.
5
Paris, 02/02/1937, MN, minha tradução.
6
Boa Vista (Goiás), 06/07/1937, MN.
168

...recusa, por “absoluta falta de tempo”, mas...

Nesse mesmo dia, escreve a Baldus e conta a verdadeira razão da recusa: “(....) Um
dos motivos é que claramente a expedição será dirigida pelo dr. [Jehan A.] Velard. Devido
aos seus métodos de pesquisa de campo, que ele próprio disse ter usado entre os Guayakí
[indígenas residentes no Paraguai], não pode contar comigo (ataque e saque da aldeia e
sequestro de crianças)”.7

...de fato é devido a profundas razões éticas.

7
Ibid, MN. Ele é mais veemente com o diretor do Museu Emilio Goeldi, Carlos Estévão de Oliveira: “Segundo
os seus próprios relatórios publicados no Journal de la Sociéte des Americanistes de Paris, nas suas expedições
aos Guayakí ele [Velard] assaltou os acampamentos destes índios a mão armada, disparando e saqueou-os e
sequestrou uma criança que ele agora está criando”. Belém, 21/11/1937, CS, p. 272.
169

Elogios ao futuro antropólogo

Baldus aproveita a deixa e critica azedamente Lévi-Strauss. Ele garante que o ajudou na sua
chegada a São Paulo, mas depois que o francês criou o Instituto de Etnologia da USP sente-se
por ele injustamente perseguido.
Crítica maior, porém, assesta contra Nimuendajú8:

(...) certos caciques daqui, por exemplo Fernando de Azevedo, me dizem que
exatamente o muito por mim adorado senhor Nimuendajú é quem o colocou na berlinda, ao
citá-lo como um grande etnólogo e apresentar seu artigo sobre os Bororo como uma obra-
prima. (...) Quero lhe dizer, portanto, que o senhor Lévi-Strauss só ficou alguns poucos dias
na aldeia Bororo, nunca tinha visto anteriormente um índio e sua única preparação
bibliográfica foi o que eu lhe disse pessoalmente.

Nimuendajú responde que, à luz dessas informações, Lévi-Strauss comporta-se como


um patife: “(…) O senhor pode acreditar que eu não tenho o menor interesse de segurar a
escada de uma pessoa com as qualidades morais do sr. Lévi-Strauss, ainda mais contra o
senhor”. Depois, vem o ato de contrição porque é a segunda vez que o prejudica. Durante sua
viagem a Berlim em 1934, ele dissera que Baldus agia como comunista em São Paulo. O
partido nazista alemão perseguiu Baldus no Brasil.
Este episódio alimentou as suspeitas de que Nimuendajú teria sido simpatizante
nazista – oito anos mais tarde, iriam gerar sua injustificada mas mesmo assim humilhante
prisão na Amazônia. “Eu penso sempre que nem o diabo leva a sério o que eu digo ou deixo
de dizer, mas parece que isso não acontece quando alguém se vê prejudicado”, justifica-se
Nimuendajú.
Quanto à qualidade da pesquisa do etnólogo francês, contudo, não muda de opinião:

Se o sr. Lévi-Strauss não tinha visto um índio anteriormente, não fora influenciado
pela literatura [existente] e ficara somente alguns dias em Kejara, tudo isso me leva a admirar
ainda mais como ele executou o trabalho. Minha honestidade exije que eu diga: eu não teria
conseguido [realizar o trabalho] nessas mesmas condições (...).9

8
São Paulo, 11/10/1937, MN. Ele cita ainda o caso do protetor peniano “falsificado” e um “índio safado” [em
português, no original] como informante, na opinião de Pedro Cruz, o diretor da Comissão de Proteção aos
Bororo.
9
Belém, 22/11/1937, MN.
170

Na mesma carta, Nimuendajú critica e elogia Lévi-Strauss.

Essa admiração intelectual não gerou frutos etnológicos ou pessoais para Nimuendajú.
A última notícia conhecida de algum contato, mesmo indireto, com Lévi-Strauss é de 1939.10
O parceiro intelectual de Nimuendajú, Robert Lowie, conta que aprecia o espírito de
independência do francês e, por isso, o recomendara para trabalhar numa universidade norte-
americana. A exemplo do acontecido com Nimuendajú, é esse apoio de Lowie que abre as
portas da academia americana a Lévi-Strauss.
Ironias do destino, é como se a recusa de Nimuendajú a participar da expedição à
Serra dos Pareci tivesse propiciado a Lévi-Strauss o material de base para, após décadas de
mais estudos, lançar sozinho a sua famosa Antropologia Estruturalista. Quem sabe se uma
pesquisa conjunta ou uma comparação dos resultados de cada um teria mudado a feição dessa
importante teoria antropológica? Claro, mera especulação. Mesmo citando Nimuendajú e
outros autores nessa obra, Lévi-Strauss reivindica exclusivamente para si os louros.11
Coerente, mesmo em meio a constantes dificuldades econômicas e logísticas,
Nimuendajú continua suas pesquisas entre as tribos Jê, publicadas em seis trabalhos. Eles são

10
A carta de Lowie deve ser de novembro ou dezembro de 1939, conforme Dungs, p. 297.
11
Lévi-Strauss, Claude, Strukturale Anthropologie, Berlin, 1981.
171

The dual organisations of the Ramkokamekra (Canella) of Northern Brazil, The gamella
Indians, The Apinayé, The Association of the Serente, The Serente e The Eastern Timbira.
Quase 80 anos após o lançamento do primeiro volume desta coletânea, nenhuma das
seis obras foi traduzida para o português. Sua importância e do próprio Nimuendajú
assemelham-se à posição de seus amados Apopokuva-guarani: distantes, quase invisíveis, mas
mesmo assim presentes na sociedade brasileira e na etnologia do continente americano.
A trajetória de Lévi-Strauss obedece a outros padrões. Ele foi um dos poucos
antropólogos do meados do século passado que continua conquistando adeptos e adversários
no mundo academico a nível internacional. Sua passagem pela vida de Nimuendajú foi
meteórica, mas o trabalho deste contribuiu, em parte, para o francês desenvolver sua carreira
antropológica.
Igualmente fugaz foi a permanência de Lévi-Strauss no Brasil, o francês que veio ao
Brasil e continuou francês. Segundo a antropóloga Fernanda Peixoto Massi, sua estadia de
quatro anos significou uma transformação fundamental a nível profissional: “O Brasil
representou (…) um momento de passagem decisivo na construção de sua futura identidade
profissional. Se antes de 1935 Lévi-Strauss era um professor de filosofia no ensino secundário
francês com fortes vínculos com a política, a partir de 1938 transforma-se em um americanista
com pesquisas sobre índios brasileiros, deixando a militância política de lado (…)”.12
É inevitável confrontar Nimuendajú e Lévi-Strauss. O etnólogo Luís Donisete Benzi
Grupioni faz essa comparação. E só encontra diferenças entre ambos, que considera muito
significativas para serem simplesmente deixadas de lado:13

(...) ambos marcaram a história da disciplina, embora de forma distinta: a obra do


etnólogo francês despenhou papel crucial no desenvolvimento da moderna teoria
antropológica, ao passo que a obra de Nimuendajú foi fundamental para o desenvolvimento
da etnologia americanista. Se o primeiro sempre foi acusado de ter feito pouco trabalho de
campo, o segundo é quase que venerado pelo feito de ter realizado pesquisa em cerca de meia
centena de grupos indígenas diferentes. Enquanto Lévi-Strauss, ao longo de sua carreira,
buscou na diversidade dos dados etnográficos os invariantes do pensamento humano,
notabilizando-se como um teórico da disciplina, Nimuendajú dedicou-se à descrição
minuciosa de sociedades indígenas específicas, consagrando-se como o etnógrafo de campo
que mais conheceu grupos indígenas diferentes no Brasil.

12
Massi, Fernanda Peixoto, Lévi-Strauss no Brasil: A formação do etnólogo, Mana, nº 4, p. 96, 1998.
13
Grupioni, Luís Donisete Benzi, Coleções e expedições vigiadas: Os etnólogos no Conselho de Fiscalização
das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, Hucitec, SP, 1998, p. 166.
172

A essa avaliação deveria ser acrescentado o papel inovador da teoria e da prática do


método de trabalho, apresentado por Nimuendajú em 1914 e décadas depois batizado com o
nome de “observação participante”, mas atribuído ao etnólogo polonês Bronislau Malinowski.
As diferenças de ambos na pesquisa de campo também aparecem muito claramente,
acrescenta Gruppioni. Lévi-Strauss pratica o estilo europeu e americano em vigor na época,
caracterizado por longo e contínuo trabalho em campo, seguida de ausência permanente.
Nimuendajú representaria a passagem ou a combinação desse estilo com um modelo mais
contemporâneo, que se distingue por curtas estadas consecutivas ao longo do tempo e pelo
envolvimento político do antropológo no destino dos povos estudados. Nimuendajú situa-se
entre os dois estilos, realizando um trabalho de campo fragmentado, com retornos
sistemáticos e permanências mais ou menos longas, realizando investigações simultâneas
entre grupos indígenas diferentes.

O parceiro norte-americano

A segunda relação profissional que marca Nimuendajú é com o etnólogo austríaco


naturalizado norte-americano Robert Lowie. Ela é diametralmente oposta à mantida com
Lévi-Strauss. Lowie torna-se rapidamente o seu maior interlocutor intelectual e também um
conselheiro pessoal. Tudo isso por carta, a uma distância de seis mil quilômetros.
O encontro inicial acontece aos poucos, na verdade, leva exatamente dez anos para se
concretizar. Em suas memórias, Lowie descreve o processo temporal de aproximação. Em
1925, relembra, o barão Erland Nordeskiöld, diretor do Museu de Gotemburgo, na Suécia,
cita um “alemão chamado Kurt Onkel, que viveu a maior parte de sua vida adulta no Brasil,
exceto um ano de estudos em Uppsala, na Suécia. (…) Em 1925 eu não tinha interesse na
América do Sul e simplesmente arquivei esse nome esquisito nos meus neurônios. Uma
década depois, Karl G. Izikowitz, discípulo de Nordeskiöld, perguntou-me o que poderia fazer
por Nimuendajú (...)”.14
Em 1934, Izikowitz envia cópia desta carta a Nimuendajú, sugerindo que mande o
artigo sobre as corridas de tora dos Canela, que deveria ser publicado em inglês porque nos
Estados Unidos ninguém fala outra língua.15

14
Lowie, Robert H., Ethnologist, A Personal Record, University of California Press, Berkeley and Los Angeles,
1959, p. 119. Lowie erra em alguns pontos. Nimuendaju foi batizado como Curt Unckel, não Kurt Onkel, e só
permaneceu cinco meses na cidade sueca de Gotemburgo para estudar as coleções que ele enviara do Brasil.
15
Gotemburgo, 19/12/1934, cf. Welper, p. 61.
173

Animado pelo apoio de Izikowitz, Nimuendajú se apresenta a Lowie. Calejado


sertanista, age com Lowie como se estivesse lidando com indígenas, que três vezes ajudara a
“pacificar” no Brasil: “Dirijo-me ao senhor porque estou convencido que é um dos poucos
que pode entender os inúmeros e curiosos paralelos entre a cultura Timbira e a dos indios
norte-americanos”.16 A seguir, historia que a Carnegie Institution financiou sua viagem à
Europa em 1934, de onde voltou com 206 páginas sobre os Canela, mas parou de escrever por
falta de recursos. O mesmo capítulo que enviou ao Carnegie – a corrida de toras – remete
agora a Lowie e pede que depois lhe devolva, porque prepara uma nova viagem aos Canela.
A estratégia dá certo. Impressionado pela qualidade do material, Lowie se prontifica a
recomendar a publicação do trabalho, lembrando ainda que Nordenskiöld o elogiara repetidas
vezes. Nimuendajú responde que, coincidentemente, recebeu a carta pouco antes de viajar à
área dessa tribo “para fazer um pequeno trabalho apenas com um pequeno adiantamento do
Museu de Berlim”. E lança diretamente a pergunta-objeto de sua estratégia: “Como eu posso
conseguir financiamento através do senhor?”.17 A jogada é brilhante. Nimuendajú só entra na
questão do financiamento na segunda carta após fazer a ligação entre a carta de Lowie e a
viagem paga pelo famoso Museu de Berlim.

A corrida de toras canela foi o tema utilizado por Nimuendajú para atrair a atenção de Lowie.

Nimuendajú já tinha percebido que, após o fim da Primeira Guerra Mundial, a


Etnologia, a Antropologia e outras áreas das Ciências Sociais deixam de ser lideradas por
instituições europeias. Novo colosso econômico, os Estados Unidos também querem ocupar o
espaço acadêmico mundial.

16
Belém, 08/02/1935, DU, p. 261.
17
Berkeley, 04/03/1935, DU, p. 262. Eu desconheço se Lowie sabia dos desencontros entre Nimuendajú e
Nordenskiöld. A carta de Nimuendajú é de 30/03/1935, DU, p. 262.
174

Um mês depois de Nimuendajú botar as cartas na mesa, Lowie assume a tarefa de criar
e administrar uma rede de contatos intelectuais e de fontes de financiamento nos Estados
Unidos. Logo faz uma proposta concreta a Nimuendajú: 100 dólares mensais durante cinco
meses, do Fundo de Estudos sobre Parentesco e Organização Social da Universidade da
Califórnia:

O senhor teria de enviar relatórios mensais circunstanciados, na medida do possível


informações detalhadas sobre os tipos de parentescos das tribos visitadas, instituições
matrimoniais, clãs, etc. Minha intenção principal é permitir que o senhor trabalhe todo o
material dos Timbira, sabendo que as instituições religiosas com frequência estão
intimamente ligadas às sociais. Mas como os recursos financeiros são com destinação
específica, peço para acentuar nos seus relatórios os elementos sociológicos.18

O professor da renomada Universidade da Califórnia abre para Nimuendajú as portas


da academia norte-americana e, de certa forma, do mundo ocidental. Com apoio financeiro,
alternadamente, da Universidade da Califórnia, Smithsonian Institution, e das Fundações
Carnegie e Rockefeller, Nimuendajú vai aprofundar as pesquisas que já tinha começado entre
as tribos do grupo Jê.
Ele busca apenas recursos para continuar seu trabalho. Sem saber, dá um passo
decisivo para sua consagração profissional e ainda para tomar consciência de uma ferida
aberta que leva na alma. Talvez pelo fato de ser austríaco naturalizado norte-americano,
falar a mesma língua e professar o mesmo amor pela etnologia, Lowie torna-se um
conselheiro pessoal de Nimuendajú, quase um confessor de algumas questões íntimas.

A ferida aberta de Nimuendajú

No contato exclusivamente epistolar – eles não chegaram a se conhecer pessoalmente –,


surge um tema que certamente pegou Nimuendajú desprevenido. Um tema que ele carregara
a vida toda e, somente na fase adulta, graças a Lowie torna-se consciente. Essa questão
pessoal se esboça em 1936, inicialmente como um assunto etnológico a mais.
Em resposta ao envio do terceiro capítulo do trabalho sobre os Jê, Lowie faz um
singelo pedido profissional: “Ninguém mais do que eu sabe como é difícil achar o sentido
exato das regras de parentesco. (...) Em geral, gostaria [de receber] mais dados íntimos sobre a

18
Berkeley, 22/08/1935, DU, p. 263.
175

vida familiar, mas não sexual, senão a atitude anímica [dos indígenas] perante seus filhos,
entre os casais, do tio materno com seus sobrinhos, etc”.19
É a primeira vez que Lowie solicita a Nimuendajú que inclua a vida familiar nos seus
estudos sobre tribos da família linguística Jê. Afinal, parentesco como objeto de pesquisa
sociológica se baseia em boa parte na estrutura e na convivência familiares. Numa carta
posterior, Lowie pergunta concretamente porque irmãos têm sobrenomes diferentes .20
Quase um mês depois, Nimuendajú responde: “Estou profundamente grato ao senhor
pelas suas perguntas e sugestões. É isso que tinha faltado até agora. Se desde o início alguém
tivesse me orientado desta forma, meus trabalhos teriam sido provavelmente muito melhores”.
É palpável a alegria de Nimuendajú – 33 anos após o primeiro contato com indigenas
e 24 da publicação do primeiro trabalho acadêmico, ele acha o parceiro que buscava, alguém
com quem pode trocar experiências, aprender, ensinar. A seguir, faz um sincero mea-culpa:
“Confesso que, devido à minha falta de conhecimentos sociológicos, eu simplifiquei a questão
dos irmãos. Agora vejo que não é assim. (...) A apresentação da vida familiar do
Ramkokamekra vai gerar um longo capítulo, que vou concluir, com todos os detalhes”.21
Cinco meses depois, cansado de esperar pela resposta, Lowie volta ao tema, bem mais
incisivo, mais claro: “(...) estou mais convencido do que nunca da enorme importância do
trabalho. O sistema de ceremônias é incrivelmente interessante, a ordem social sugere
inúmeras comparações – mas seria desejável ter mais detalhes sobre a vida familiar [sic]. Com
isso me refiro menos à sexualidade e mais, digamos assim, às relações anímicas na vida do
casal, as ligações emocionais entre pais e filhos, entre irmãos, etc.”.22
Teria evitado Nimuendajú, consciente ou inconscientemente, abordar a vida íntima
familiar dos Ramkokamekra? Mesmo sem saber nada ao certo, Lowie bate no ombro de
Nimuendajú de uma maneira carinhosa, fraternal, quase paternal: “O senhor não precisa se
afligir porque encontra dificuldades com o parentesco. Somente pesquisadores superficiais
afirmam que vão direto à essência”.
Reconfortado pelo apoio de Lowie, Nimuendajú abre o jogo:

É a segunda vez que o senhor me chama a atenção para o fato de que até hoje eu não
relatei nada da vida familiar dessas tribos. À luz de sua primeira observação, conferi o que
tinha coletado e é estranho que eu saiba muito pouco a esse respeito. Nas expedições

19
Berkeley, 24/01/1936, DU, p. 266.
20
Berkeley, 18/02/1936, DU, p. 268.
21
Belém, 03/03/1936, DU, p. 268.
22
Berkeley, 27/08/1937, DU, p. 276.
176

posteriores, prestei atenção para esse aspecto e agora volto a perceber que eu recolhi muito
pouco material”.23
Como entender que um pesquisador minucioso, detalhista e exigente, nascido na
Alemanha prussiana do século 19, enfrenta dificuldades em coletar dados justamente do dia-a-
dia familiar de indígenas no Brasil do século 20? Será que a primeira experiência conhecida
da “observação participante”, realizada por ele entre os Apapocuva-Guarani, não podia ser
aplicada entre os Ramkokamekra?
Na mesma carta, Nimuendajú esboça um resposta a essas indagações. Ele afirma que,
claro, o problema é da organização social das tribos observadas:

Mesmo que eu atribua esses resultados negativos a uma observação deficiente, não
posso fugir do fato de que a vida familiar dos Canela, Xerente, Apinayé não tem um papel
fundamental na sociedade. As outras instituições sociais reduzem a importância da família. E,
através da participação precoce das crianças nessas organizações, elas são afastadas da
família. (...) Mas tenho a impressão de que não somente as ligações entre pais e filhos, mas
também entre os casais, sofrem sob a atual separação das diferentes funções cerimonais e
sociais. O resultado é que a família – NAO POR COMPLETO, MAS DE FATO EM PARTE
[sic] – é rebaixada a uma instituição transmissora de nomes, funções, etc.

Será que Nimuendajú está se referindo, consciente ou inconscientemente, à sua própria


experiência familiar e social na Alemanha? Órfao de ambos os pais desde o segundo ano de
vida, foi criado pela tia materna numa sociedade marcada pelo controle social sobre a vida
familiar. Uma família indígena Apapocuva o adotou quando tinha 23 anos e ele só casa aos 39
anos. Mas a relação de casal, sem filhos, mais parece um acordo entre patrão e empregada.
Dois meses depois da última carta, admite suas dificuldades para escrever sobre os
Xerente, tribo que não conhece tanto quanto os Ramkokamekra:

Uma história realmente ridícula! Depois que consegui criar um arquivo, não tive
problemas com a raça, tribo, comunidades, parentesco, família. Mas assim que cheguei ao
ponto de trabalhar com os aspectos solicitados pelo senhor sobre a vida familiar eu me
atrapalhei! Durante três dias trabalhei de maneira confusa e desorganizada e foi uma tortura
juntar o material deste capítulo. Vi então que é uma loucura escrever sobre o que não se sabe.
Portanto, apaguei as palavrinhas que tinha escrito desse capítulo e passei para o seguinte.

23
Belém, 30/09/1937, MN.
177

Imediamente, comecei a trabalhar sem problemas. Eu acho que de fato o responsável por esse
fracasso é a minha carência por completo de conhecimentos psicológicos.24

O que Nimuendajú chama de “carência por completo de conhecimentos psicológicos”


pode simplesmente ser a sua falta de experiência de vida familiar com seus pais. Em Iena, ele
não teve contato com o pai, que morreu antes do seu nascimento. A mãe faleceu quando Curt
tinha um ano e meio de idade.
Foi assim que o pequeno Curt viu-se privado do contato íntimo com seus pais. Por
mais carinhoso que tenha sido o convívio com a avó e tia maternas, ele sente um vazio
emocional. Este sentimento provavelmente também se manifesta na sua tendência de
mulherengo com as indígenas da floresta e as caboclas do norte e nordeste do Brasil.

Nimuendajú não consegue captar a vida familiar dos Canela.

Lowie sente o drama e, solidário, tenta aliviar o fardo: “O senhor tem razão de deixar
de lado esse tema fatal da vida em família, caso não tiver material suficiente. Alguns aspectos
poderão ser recuperados a partir de outros elementos [da vida social dos indígenas

24
Belém, 16/11/1937, MN.
178

25
estudados]”. De fato, o tema “família, vida familiar” é abandonado por Nimuendajú, sob
aprovação de Lowie. Da famosa trilogia Jê, o volume dedicado aos Apinayé é o único que
contém um capítulo sobre a família.26

Um diálogo pai-filho e a camaradagem

Esse tom íntimo no relacionamento entre ambos toma, às vezes, o aspecto de um diálogo pai-
filho. Certo dia, Nimuendajú conta que está muito doente – dos rins ou fígado, efeito de várias
malárias contraída na Amazônia – mas que, mesmo assim, pensa em começar a expedição aos
Ticuna. Lowie reage energicamente: “Não me perdoaria se uma viagem patrocinada por mim
gerar maus resultados para o senhor. Se não me engano, embora ambos tenhamos a mesma
idade, eu não me sinto mais tão forte quanto há oito anos”.27
Em suas memórias, Lowie confessa os dramas de consciência que vivia com relação a
Nimuendajú: “Às vezes, me parecia desonesto que eu ficasse comodamente sentado em casa,
enquanto ele tinha que singrar rios perigosos, atormentar-se andando por florestas tropicais ou
visitando infrutiferamente tribos que já foram praticamente dizimadas por doenças. Mas ele
não pedia outra coisa senão estar entre os índios. Tudo o que queria na vida era apoio
financeiro para empreender suas viagens”.28
No meio antropológico brasileiro ainda circula o mito de que Lowie “ensinou”
Nimuendajú a “fazer” Sociologia. Sem saber das discussões que iriam surgir no futuro, na sua
primeira carta a Lowie Nimuendajú já fala da organização social dos Ramkókamekra: “O
aspecto mais interessante [dos Ramkókamekra] é a organização social, a qual eu apresento de
maneira resumida [no texto da] na corrida de toras”.29
Segundo o antropólogo Julio César Melatti, em 1935 Nimuendajú já havia realizado a
maior parte de suas visitas aos Ramkokamekra e aos Apinayé e efetuado uma das duas etapas
da pesquisa de campo entre os Xerente. Até a publicação de sua primeira monografia sobre o
grupo Jê em 1939, fizera outras expedições, além de escrever outras duas obras. Nimuendajú
não teria simplesmente tido tempo para ler cuidadosamente textos acadêmicos e, durante suas
movimentadas expedições, ainda mudar a orientação das pesquisas de campo.30

25
Universidade de Yale, New Haven, 03/12/1937, DU, p 280.
26
Melatti, Julio Cezar, Curt Nimuendaju e os Jê, Serie Antropologia, nº 49, Brasília, DF, 1985, p. 9.
27
Belém, 06/10/1940, DU, p. 302 e Berkeley, 16/11/1940, DU, p. 304.
28
Lowie, Ethnologist, A Personal Record, p. 121, minha tradução.
29
Belém, 08/02/1935, DU, p. 261.
30
Melatti, p. 13.
179

A sua formação é autodidata, através da leitura de livros e de contatos epistolares com


etnólogos como Nordenskiöld, Alfred Métreaux, Paul Rivet, ainda antes de conhecer Lowie.
Fundamental no seu relacionamento com esse último é a constante troca de perguntas
e respostas. Lowie lembra que algumas observações de Nimuendajú ocupavam de seis a dez
páginas, escritas a máquina em espaço um. A resposta a um simples pergunta era, às vezes,
“praticamente uma tese de mestrado“.
Na sua autobiografia, Lowie publica quatro páginas de correspondência trocada entre
ambos. Numa confissão posterior à morte do parceiro intelectual, conta quanto ele lucrou com
o intercâmbio: “A extraordinária exatidão das observações de Nimuendajú, que revelavam
fenômenos inesperados da cultura religiosa e sociológica das tribos sul-americanas, me
estimulou a escrever um conjunto de trabalhos avançando na importância teórica de seu
trabalho na reconstrução da história cultural da América ou dos problemas da evolução
cultural em geral”.31
Lowie descreve as condições desse intercâmbio, que durou dez anos. Eles escreviam-
se de maneira regular, nos primeiros seis anos em alemão. A censura durante a Segunda
Guerra Mundial obrigou-os a adotar outro método de comunicação. Nimuendajú escrevia em
português, que Lowie decifrava com ajuda de um dicionário e um aluno seu, que passara sua
infância no Brasil, e respondia em inglês, que o pesquisador em Belém traduzia como podia.
Isto tornou o trabalho mais lento e criou um contínuo e irritante estado de confusão.
O professor de Berkeley atesta sua influência no trabalho conjunto: “Eu pude guiá-lo
até certo ponto, porque eu tinha mais conhecimento teórico, podia interpretar os resultados e
acrescentar comparações a partir de dados de outras regiões [do mundo]”. Tudo isso é
também consequência das qualidades pessoais do parceiro brasileiro, acrescenta: “Somente
obtemos resultados extraordinários quando o talento da observação é acompanhada tanto pela
permanência demorada quanto pelo contato com a etnografia profissional, como é a marca do
trabalho do senhor Nimuendajú”.32
É por isso que Lowie faz críticas metodológicas aos trabalhos de Nimuendajú. Ao
mesmo tempo, o etnólogo de Berkeley sugere caminhos novos, abordagens inusitadas.
Transforma-se num conselheiro editorial.
Propõe, por exemplo, publicar logo os achados etnológicos, de forma a Nimuendajú
ficar mais conhecido no meio acadêmico norte-americano e, por extensão, no mundo inteiro.33

31
Lowie, Ethnologist, pp. 121-120. Ainda em 1936, reconheceu que o ineditismo do material Jê coloca questões
que se estendem muito além da América do Sul, Berkeley, 13/09/1937, DU, p. 277.
32
Lowie, The History of Ethnological Theory, 1937, p. 6, minha tradução.
33
Berkeley, 05/02/1936, DU, p. 267.
180

Assim, The Dual Organisation of the Ramkokamekra (Canella) from Northern Brazil é
publicado em 1937 na revista American Anthropologist, em co-autoria com Lowie.34
Em 1937, Nimuendajú revela sua alegria ao ver pela primeira vez resultados de seus
escritos no meio acadêmico norte-americano: “Recebi as provas [tipográficas] de ‘The dual
organisation’. Tive realmente prazer em escrever o artigo. Chegaram pelo correio cópia de
teses de graduação de três estudantes da Universidade da Califórnia, que já trabalham a
organização dos Ramkókamekra com inteira desenvoltura”.35

Lançado em 1937 em inglês e ainda inédito em português.

Cooperação pode acabar

Dois anos depois do início da parceria, surge a ameaça de que poderá faltar o apoio financeiro
e institucional. Lowie é criticado pelo órgão que exerce um rígido controle acadêmico na
Universidade da Califórnia – ele não estaria acompanhando os trabalhos de Nimuendajú e,
afinal de contas, somente membros da Faculdade devem ter acesso a financiamentos. Lowie
dá um jeitinho e burla as exigências: ele assina junto com Nimuendajú um curto resumo da
divisão social dos Canela em duas classes, acrescentando algumas notas explicativas.36

34
Lowie, Berkeley, 24/01/1936, DU, p. 266.
35
Belém, 13/12/1937, DU, p. 281.
36
Berkeley, 16/06/1937, DU, p. 275.
181

Em 1938, surge um momento de extrema tensão entre Nimuendajú e Lowie.


O crescente sucesso do alemão que virou índio e etnólogo autodidata no Brasil
desperta a atenção de outros pesquisadores norte-americanos. Lowie conta que o famoso
etnólogo Alfred Metraux conseguiu recursos para pesquisar no Gran Chaco [região que
abrange o Paraguai, Bolívia e Argentina] e pensa em convidar Nimuendajú, “porque
[Metraux] considera o senhor, assim como eu, o pesquisador da América do Sul que mais se
desenvolveu, mesmo que o senhor se considere apenas um autodidata”.
Lowie acrescenta que aceitaria a decisão de Nimuendajú se este preferir o trabalho
com Metraux. Conhecedor da tendência na cultura alemã de apreciar a sinceridade,
especialmente em momentos difíceis, Lowie aposta tudo numa jogada só: “Isto [a obtenção de
financiamento] exige aqui [nos Estados Unidos] tempo e, devido à situação econômica do
país, algumas fontes de recursos geralmente disponíveis tendem a secar. (...) Conforme
minhas forças o permitirem, eu irei acelerar o [nosso] trabalho conjunto”. Para arrematar, uma
quase-despedida, que traduz o estado de espírito de Lowie naquele momento: “Mas tenha
certeza que nada na vida me deu mais satisfação do que trabalhar com o senhor”.37
É uma encruzilhada para Nimuendajú. O fluxo de recursos intermediados por Lowie
está cada vez mais lento. Em julho de 1938, ainda não recebera os atrasados do ano fiscal
1937-1938 nem os prometidos 700 dólares para o período que está começando (1938-1939).38
Metraux vai pagar 2 mil dólares por uma expedição, o equivalente a quase três anos de
pesquisas financiadas por Lowie. Com esse dinheiro, Nimuendajú poderia reparar a casa de
Belém onde vive modestamente com a esposa ou organizar expedições com folga de recursos.
Além da projeção acadêmica de trabalhar junto com um cientista norte-americano em
ascensão como Metraux.
É assim que Nimuendajú vê-se cortejado por dois dos maiores corifeus da etnografia
norte-americana dos anos 30 do século passado. Uma situação que muitos intelectuais
brasileiros gostariam de viver nos dias de hoje. Nimuendajú diz ao sociólogo Herbert Baldus
que tomou uma decisão em poucas horas: “Metraux tinha me pedido uma resposta imediata e
entre a chegada de sua carta e a saída do próximo avião do correio aéreo [de Belém ao Rio]
havia somente três horas de diferença (...)”.39 Esta afirmação não confere com os fatos, pois o
tempo médio de entrega de correspondência por via aérea entre os dois países era de seis dias.
A carta de Metraux tem data de 20 de junho; a de Lowie, de 27 do mesmo mês, ambos
provenientes dos Estados Unidos. A resposta tanto a Metraux como a Lowie é de 6 de julho.

37
Berkeley, 27/06/1938, DU, p. 290.
38
Belém, 06/07/1938, MN.
39
Belém, 18/07/1938, MN.
182

Nimuendajú parece desculpar-se perante Baldus por não tê-lo recomendado a Metraux para
assumir o seu lugar na expedição ao Chaco paraguaio, região de interesse de Baldus.
A difícil decisão é facilitada pelo fato que, graças a Lowie, seu rumo profissional
mudara ultimamente. A conclusão é uma declaração de fidelidade ao esforço comum:

Eu vou continuar com o trabalho conjunto enquanto der, se o senhor não rejeitar, e
sem fazer novos acordos com ninguém, enquanto existir o menor rastro de esperança de que o
senhor deseja continuar o trabalho. Eu informei ao senhor que, ano passado, recusei uma
proposta do Museu Nacional [de trabalho exclusivo].40

Extremamente aliviado, Lowie responde no mesmo dia que recebe a missiva. A


decisão confirmaria a pureza do ideal de Nimuendajú e ele, Lowie, fará o máximo que puder
para manter a continuidade das pesquisas.41 Nimuendajú faz a Metreaux uma auto-avaliação
sincera e objetiva: “Os estudos dos povos Gê, que realizo há dez anos, ainda não foram
concluídos de maneira minimamente satisfatória. Se os abandonar, não seria de esperar que,
no futuro próximo, alguém os retome com sucesso. Mesmo que pareça inmodesto, devo-me
considerar necessário no [trabalho de] campo e não me considero facilmente substituível”.
Realizar os estudos desejados por Metreaux significaria começar tudo do zero,
argumenta: “No Chaco, é o contrário, lá trabalham suficientes bons pesquisadores e eu
deveria primeiro entrar na matéria, além de aprender as línguas [indígenas]”. É por isso que
vai persistir na pesquisa dos Jê, com recursos financeiros aportados por Lowie. Se estes
faltarem, Nimuendajú está disposto a voltar à sua “tática anterior” de arranjar mais uma vez
empréstimos particulares e pagá-los com a venda de coleções etnológicas.42
Continua, portanto, a dobradinha entre Nimuendajú, um etnólogo mais afeito ao
trabalho de campo, e Lowie, com maior tendência à produção acadêmica. Os críticos em geral
apontam o que falta a um e ao outro, exigindo que cada pesquisador reúna em si as duas
qualidades. Mas esquecem que é exatamente o trabalho conjunto de ambos que propiciou
alguns dos mais prolíficos momentos da Etnologia latinomericana até os dias de hoje. Lowie
expressa isso cristalinamente: “(...) formamos um bom time, em parte porque cada um de nós
era excelente naquilo que o outro era fraco, em parte por causa da nossa herança alemã em
comum e também por nossa sede de fatos e provas objetivas”.43

40
Belém, 06/07/1938, MN e DU, p. 291.
41
Berkeley, 14/07/1938, DU, p. 291.
42
Belém, 06/07/1938, DU, p. 249.
43
Lowie, Ethnologist, p. 126.
183

Em meio a expedições bem sucedidas, Nimuendajú também amarga inúmeras


desventuras. Retornar a Belém sem bons resultados é sentir que sua carreira está em perigo.
Ao voltar de uma expedição aos Kaiapó-Gorotire do rio Xingu em 1940, revela seu desespero:
“Este segundo e ainda mais completo insucesso meu me deixou um tanto desconcertado. O
que dirão disto na America do Norte? Ainda não acabei o meu relatório ao Prof. Lowie.
Francamente, não tenho mais coragem de lhe propor um estudo dos Kaingang. Se isto aqui
[no norte do Brasil] já está deste jeito, como não estará no Sul! [ele estivera entre os Kaingang
em 1910-1911] E eu não posso arriscar um terceiro fracasso. (...) Em todo caso preciso reunir
todos os meus recursos para uma nova viagem que restabeleça o meu credito”.44
A resposta de Lowie parece ser a de um pai:

Eu não acredito num fracasso total. O senhor colheu tanto entre os Ramkókamekra
que a diferença é muito evidente, mas acredito que, após exame mais demorado, o material
dos Botocudo não é de maneira nenhuma desprezível. (...) O seu nome não [sic] sofreu
nenhum prejuízo, pois eu sei como são as coisas aqui e, depois de ouvir as explicações de
Metraux, posso imaginar vivamente em que condições se luta na América do Sul.

Para animá-lo ainda mais, conta que ele possivelmente será convidado para o próximo
Congresso Pan-americano de Etnologia e o editor do Handbook of South American Indians,
Julian Steward, deseja sua colaboração.45

Os efeitos da guerra

Em meados de 1940, os mais famosos trabalhos etnográficos de Nimuendajú estão


praticamente prontos. Agora começa a etapa da tradução do alemão para o inglês. Então surge
o inesperado. O início da Segunda Guerra Mundial na Europa e Ásia também atinge a troca
entre esses cientistas de língua alemã, a começar pela censura epistolar. As cartas passam a
sofrer atraso de até três meses, tornando ainda mais precária a troca de informações. A crônica
dificuldade de financiar expedições e concluir livros se aguça em tempos de guerra. E, na
visão de Nimuendajú, aumenta a xenofobia vivida no Brasil.

44
Belém, 26/03/1940, CS, p. 275.
45
Não consta o dia da carta, apenas a data de março de 1940, DU, p. 299. É como se Nimuendajú tivesse
esquecido o elogio que recebera o ano anterior de Lowie: “(...) eu tenho muita mais confiança no senhor do que
numa dúzia desses recém formados doutores e por isso vou continuar me esforçando para conseguir recursos
para o trabalho do senhor”, cf. Berkeley, 29/05/1939, DU, p. 293.
184

No início de 1942, a burocracia brasileira o impede de receber o dinheiro que Lowie


conseguira via Fundação Rockefeller. Ele, então, explode: “Todo e qualquer elogio do
exterior gera para mim mais problemas do que traz alguma vantagem. (...) Apesar da minha
naturalização em 1922, ainda sou um estrangeiro”.46
Pouco tempo depois, Lowie informa que a censura militar nos Estados Unidos lhe
recomenda escrever em inglês e a Nimuendajú responder em português. Esta carta já está em
inglês. O uso de uma língua na qual nenhum deles está à vontade tem sérios reflexos no andar
dos trabalhos, colocando em risco a compreensão. Lowie sente como a guerra na distante
Europa se interpõe entre ambos europeus, mesmo morando no continente americano. O
pedido quase patético de Lowie na mesma carta é um eco dessa realidade que avança
inexorável: “Devemos manter a nossa correspondência (...)”.47
Três meses mais tarde, Lowie anuncia o fim que se aproxima: “Aconselho o senhor a
consolidar suas relações com o Smithsonian Institution porque, devido às atuais
circunstâncias, a universidade [da California] brevemente não poderá mais apoiá-lo. Os
recursos para este trimeste já estão esgotados. O aumento do alistamento militar tem um efeito
muito forte sobre os estudantes e os estudos em geral. A atmosfera [assim criada] não
favorece os estudos que não contribuem para os esforços [de guerra] do momento, como é o
caso da Etnologia.”48
A resposta de Nimuendajú não poderia ser mais realista. Enquanto que o professor de
Berkeley fala da “atmosfera” na universidade, o pesquisador embrenhado na Amazônia conta
que foi pessoalmente atingido pela guerra que, para Lowie, parece distante. Caluniado, preso
e liberado, seu tom é de desesperança. Não se sente em condições de continuar trabalhando e
sustentar-se economicamente, pois na sua pátria é tratado como um estranho, mas nos Estados
Unidos sente-se avaliado pelo seu desempenho profissional.49
Lowie solidariza-se com o desorientado Nimuendajú e tenta transmitir-lhe ânimo : “É
desnecessário dizer que estou profundamente conturbado pelo que o senhor me conta, pelas
vexações a que o senhor se vê submetido. É uma vergonha que um pesquisador do seu porte
seja impedido de trabalhar”. Talvez motivado pelo estado de espírito do parceiro, dias depois,
comunica que manda pelo correio marítimo um exemplar de The Serente [Os Xerente], obra
de Nimuendajú escrita com apoio de Lowie e publicada nos Estados Unidos. 50

46
Belém, 12/01/1942, MN.
47
Berkeley, 10/07/1942, DU, p. 318.
48
Berkeley, 10/10/1942, DU, p. 319.
49
Belém, 26/10/1942, MN.
50
Ambas as cartas de Berkeley, 7 e 25/11/1942, DU, p. 320.
185

A remessa só chega três meses depois a Belém. Nimuendajú mostra um entusiasmo


comedido: “A tradução é maravilhosa, como o senhor sempre faz. Em algumas passagens, o
trabalho sofreu com [devido aos] os necessários cortes. Seu estilo é diferente do dos Apinayé,
não leve a mal a minha franqueza”.
Nas linhas seguintes, ele abre o jogo sobre sua situação psicológica: “O original sobre
os Tucuna sofre sob a minha atual situação anímica. Eu já tenho 200 páginas escritas com [a]
lapis, que serão 120 a 130 escritas a máquina”.
Numa carta de fevereiro de 1943, pede a Steward para antecipar o pagamento dos
artigos encomendados: “Vou ficando sem dinheiro, a partir de abril não tenho mais nada”.51
A resposta de Lowie dá uma valiosa informação para pesquisadores contemporâneos:
“Eu também sinto muito que, além dos cortes no texto que eu mesmo fiz, a redação cortou
mais páginas, devido à falta de recursos para publicar o manuscrito como eu o submetera. Eu
lamentei especialmente que as lendas foram eliminadas por completo (...)”. Também confessa
estar desolado pelas dificuldades do parceiro. Propõe então que o original sobre os Ticuna
seja adiado e Nimuendajú dê prioridade aos artigos para Steward, porque os recursos para
pagá-los só estarão disponíveis até junho próximo. A bem intencionada proposta chega depois
que Nimuendajú já enviara o original de The Tukuna.52
Ciente da depressão que assola Nimuendajú, Lowie tenta apoia-lo: “Aqui vive-se uma
extrema situação quando se procura fazer algo que não tenha a ver com a guerra. (...) Tenha
certeza que farei tudo o que for possível para defender seus interesses e que seguirei
apreciando o seu trabalho. Gostaria muito que nosso trabalho conjunto continuasse (...)”.53
Porém, Nimuendajú está exausto. Mesmo que Lowie arranjasse dinheiro, falta-lhe a
disposição interior para começar uma expedição, porque “o ambiente aqui está totalmente
envenenado”. Até no seu baluarte que o apoia há duas décadas, o Museu Emilio Goeldi, ele
sente que não é tratado mais como antigamente. Além disso, os artigos encomendados pelos
seus amigos Carlos Estevão e Julian Steward não vingaram.54 Ainda surgem mais decepções.
Em julho de 1943, convidado pelo general Cândido Rondon viaja ao Rio de Janeiro para
discutir se assumiria a direção da Seção de Pesquisas Etnológicas do Conselho Nacional de
Proteção aos Índios.
Durante as negociações, um glaucoma no olho esquerdo quase o deixa cego. Após
uma bateria de exames, os médicos dizem o que Nimuendajú nunca teria desejado ouvir:

51
Belém, 12/02/1943, DU, p. 320.
52
Berkeley, 04/03/1943, MN e Belém, 11/03/1943, DU, p. 321.
53
Berkeley, 31/05/1943, MN.
54
Belém, 14/06/1943, MN.
186

(...) eu devia abandonar de uma vez e para sempre a minha vida de sertão e a minha
convivência com os índios. (...) A mim semelhante solução causou uma grande tristeza. O sr.
bem sabe como eu amava esta vida e como eu estava identificado com os indios. Parece-me
incrível que eu nunca mais hei de ver os campos dos Canella banhados em sol, nem os igarapós
sombrios dos Tukuna. Além de que eu pensava ainda de fazer algumas coisas que agora talvez
nunca mais serão feitas.

É certamente o momento mais triste de sua vida. Impotente, Nimuendajú toma


consciência de que seu tempo de indigenista acabou. Diante de si, só sente o vazio.
Desconsolado, aceita um contrato com o Museu Nacional para traduzir suas obras para o
português e outro acordo para colaborar com o general Rondon no CNPI e na elaboração do
mapa do Mato Grosso (MS e MT) no Ministério da Guerra. Além de um modesto salário
mensal, receberia também proteção contra as perseguições dos “nativistas”, como ele chama
os integralistas: “No Rio não conheci nada das perseguições a que me vejo submetido aqui.
Ao contrário, civis e militares me trataram com grande consideração”.55
Lowie lamenta o fim do trabalho de campo, “que o senhor tanto amava e no qual o
senhor atingiu resultados absolutamente inigualáveis”. Mas aplaude o fato de Nimuendajú
finalmente receber “de sua pátria adotiva o reconhecimento que tanto merece”.56
A relação de ambos também se esvai. Após quase um ano de silêncio, Lowie escreve e
Nimuendajú responde, quase telegráfico: “Obrigado pela remessa de um exemplar das lendas
Xerente. Não lhe escrevi mais, em parte por falta de assunto, em parte porque supunha que o
senhor não estivesse mais em Berkeley. Mas sempre que escrevia a Steward lhe pedia que
mandasse lembranças ao senhor”.
Ainda abatido, Nimuendajú não esconde que se refugia nas lembranças de uma
parceria que já pertence a um passado que já passou e não vai voltar: “Lembro com saudades
o tempo em que isso dependia apenas do seu auxilio e da iniciativa minha. Às vezes os
recursos eram escassos, mas nós faziamos tudo o que queríamos, mesmo com dificuldade”.57

Essas lembranças levam Nimuendajú a se debruçar na escrivaninha de sua casa em


Belém, traduzindo e reescrevendo os mitos e lendas que coletou com indígenas de 23 tribos
ao longo de sua vida. O Museu Nacional quer publicá-los, mas ele lamenta que não estejam

55
Belém, 06/11/1943, MN.
56
Berkeley, 06/12/1943, MN.
57
Belém, 02/12/1944, MN.
187

traduzidos para o inglês.58 Sem saber, Lowie age, pela última vez, como conselheiro pessoal e
consultor editorial. Ele sugere a reedição do primeiro livro, o As lendas da criação e a
destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapokuva-Guarani, mas
enriquecido pelas experiências posteriores do autor e publicado na língua que for.59
Contudo, ele mexe na ferida provocada pela desastrada tradução dessa obra para o
espanhol. Sua resposta é uma critica azeda ao tradutor, mas contém já o melancólico anúncio
do provável fim do seu único trabalho atual: “Com o Museu Nacional vou de mal a pior e
creio que o rompimento não se fará esperar mais muito [sic]. O que farei depois não sei”.60
A última carta de Lowie é enviada no final de maio de 1945, depois que o exército
soviético já conquistara a longuínqua Berlim. Com o fim da Segunda Guerra na Europa, ele
sinaliza um futuro para seu parceiro no Brasil: “(...) é chato que o seu mais significativo
trabalho sobre a messiânica religião dos Apapocúva tenha sido muito mal traduzido. Teria
sido melhor publicá-lo na sua forma atual em alemão ou em uma tradução confiável”.

Última carta de Lowie planeja o futuro com Nimuendajú.

58
Belém, 03/03/1945,MN.
59
Berkeley, 27/03/1945, MN.
60
Belém, 18/04/1945,MN.
188

Na sua derradeira missiva a Lowie, Nimuendajú conta que prepara a quarta expedição
aos Ticuna, que, incluindo a redação do material que seria coletado, o manteria ocupado até
agosto de 1946.61
Desafiando conselhos médicos, Nimuendajú viaja a terras ticuna. No dia 11 de
dezembro de 1945, é enterrado em São Paulo de Olivença, perto do Igarapé da Rita.

Sete anos após sua morte, é lançada sua última obra, em inglês.

Possivelmente, Lowie só ficou sabendo da morte de Nimuendajú pelos jornais da


época ou necrológios publicados em revistas antropológicas.
Em sua autobiografia, Lowie comenta a morte do parceiro com uma piada de mau
gosto, quase humor negro. Após explicar que o trabalho conjunto se deu exclusivamente por
correspondência, ele acrescenta: “E assim foi - entre pergunta e resposta - durante quase dez
anos. Até que N. [Nimuendajú] visitou os Tukuna (sic) e morreu entre eles. Mas, típico dele,
primeiro escreveu seu trabalho”.62

61
Berkeley, 24/05/1945 e Belém, 13/08/1945, MN.
62
Lowie, p 124, referência à monografia The Tukuna, enviada a Lowie em março de 1943, publicada em inglês
em 1952, até hoje inédita ao português.
9 - Os relacionamentos amorosos
Atualmente, é conhecida a influência das vivências infantis e da adolescência, bem como das
relações amorosas, na vida das pessoas e na sociedade em geral. Identificar eventuais origens
e possíveis efeitos é tarefa delicada, ainda mais quando as culturas e o espírito da época de um
tempo passado contrastam com as opiniões que, mais tarde, passam a vigorar.
Neste capitulo, busca-se indicar atitudes e atos de Curt Nimuendajú, bem como capta-
los dentro de alguns contextos conhecidos até meados do século 20. Como essas “conexões”
tendem a ser muito mais sutis do que a interpretação de “fatos conhecidos” e a leitura de
documentos disponíveis, elas constituem muito mais hipóteses do que certezas.

Uma das poucas fotos disponíveis do casal Curt e Jovelina, “Lila”.

A morte prematura dos pais no final do século 19 priva o pequeno Curt Unkel não
somente da convivência com eles, mas possivelmente também de ter acesso às imagens de
mãe-ser femenino e de pai-ser masculino no ambiente familiar. Segundo os dados existentes,
sua infância e sua adolescência são marcadas pela onipresença feminina: a irmã seis anos
190

mais velha, a avô materna, a tia materna, as professoras na escola. A única figura masculina é
a de um professor do colégio, seu tutor legal na adolescência, que, pela idade, poderia ter sido
seu avô.1
A escassa documentação existente sobre a vida de Curt Unckel na Alemanha não
contém qualquer referência a namoradas. A migração para o Brasil terá sido um choque para
o jovem de 20 anos, que abandona a fria e repressora cultura prussiana do início do século 20
para adentrar, décadas depois, a exuberante floresta amazônica, o quente cerrado maranhense.
Nas aldeias, índios e índias andam nus ou semi-nus. A sensualidade impregna o dia-a-
dia, mesmo das cidades do litoral, criando um ambiente diametralmente oposto ao reinante na
Alemanha, conforme relatos da daquela época. Durante sua permanência em São Paulo e suas
expedições pelo atual Mato Grosso do Sul, ele não registra relacionamentos amorosos em
seus diários de campo, onde costuma anotar os eventos importantes de cada dia.
Em 1922, já morando em Belém, casa-se com Jovelina do Nascimento, nascida em
1903, segundo informação do próprio Nimuendajú. Naquele mesmo ano, aos 39 anos, ele
adota a nacionalidade brasileira, sob nome de Curt Nimuendajú. Dungs a apresenta como
“lavadeira” e especula que o casamento aconteceu para facilitar a sua naturalização, hipótese
não comprovada.2
Meticuloso, ao longo do tempo Nimuendajú guarda exemplares da troca de
correspondência com Jovelina, a quem chama carinhosamente de “Lila”. As cartas
encontradas no arquivo do Museu Nacional, que não cobrem o período que vai de 1922 a
1934, apontam duas fases bem diferentes do que teria sido a vida em comum.
Na primeira etapa dessa correspondência, que parece estender-se de 1934 a 1939,
sente-se calor humano, proximidade anímica entre ambos. Em certas ocasiões, a relação à
distância vê-se tingida pela necessidade do reencontro pessoal, como nestas poucas linhas
enviadas por Jovelina:

Belém, 27-09-34
Eu tornei a recair de febres, mas já fiquei boa graças a Deus (...) O dinheirinho poupei
[o] que pude, mas tu sabes [que] com a doença eu tive mais gastos (...) vou pedindo a Deus
que você venha e as saudades são muitas. (...)
Lila

1
Cappeller, p 12.
2
DU, p. 25.
191

Certa vez, Jovelina envia um romântico cartão postal, que mostra um casal de jovens
brancos, elegantemente vestidos, cercados de rosas vermelhas e com pombas brancas nas
mãos:

Belém, 28 maio de 1935


Fiquei bastante satisfeita em ter recebido o cartão da cunhada Olga Richter [irmã de
Nimuendajú]. Escreve para ela que eu estou bastante satisfeita com o cartão que ela me
enviou e diga que ela me mande o retrato dela que eu quero conhecê-la. (...)
Meu bem, aceita esta postal que tua mulher manda.
Lila

Além de relatórios e livros, Nimuendajú mostra-se também capaz de escrever cartas


carinhosas, revelando um aspecto pouco visível de quem em geral se apresenta como um
carrancudo pesquisador do sertão:

São Luiz, 6 de junho de 1936


(...) Conta-me com quem estas vivendo desde que a Roseira e o Maninho foram
embora. Estou com muita pena de você porque não tem quem lhe visita. Se eu pudesse
voltaria logo porque também já estou outra vez com saudade da minha caboclinha e da nossa
casinha. (...)
Um abraço do seu marido
Curt

Independente do lugar em que eventualmente está, Nimuendajú retribui, do seu jeito,


as seguidas mensagens de apreço da esposa, que se encontra em Belém:

Barra do Corda, 02.07.36


Caboclinha minha, recebi sua carta de (...) Agora só venho [retorno] da aldeia [dos
Canela] quando eu tiver tudo acabado, de maneira que nos dois meses vindouros tu não terás
mais noticias minhas. Faço assim para acabar o trabalho quanto antes, e não quero perder
tempo com viagens para a [cidade de] Barra [do Corda]. Escreva-me para eu já encontrar
alguma noticia sua assim que eu voltar.
Um abraço de coração do seu marido
Curt
192

Uma carta, enviada por Jovelina anos depois, lembra os sentimentos gerados pelo
romantismo literário que pregou alguns segmentos da sociedade brasileira (e da européia) no
século 19 e, aparentemente, continuam presentes no Pará:

Belém, 26 de dezembro de 1938


(...) Você manda-me perguntar qual era a minha doença, era uma febre que não
passava um instante, mas eu não fui ao médico porque sem a sua presença eu não faço nada.
No mais, aceite um abraço e um beijo de sua querida esposa
Lilia

Em outras cartas, fica patente a constante preocupação de Nimuendajú com a situação


econômica de Jovelina durante sua ausência, mas também com a solidão dela na casinha da
rua Chaco, em Belém:

Victoria do Espíritu Santo, 28 de abril de 1939


(...) Bemzinho meu, você nem sabe como são sempre ruins para mim essas últimas
semanas que eu passo fora de casa quando estou para voltar. Perco a paciência e tudo que
empata a minha volta [para casa] me aborrece. Desde fevereiro que não tenho mais notícias
suas e só levo imaginando que você esteja talvez doente outra vez e que de certo já lhe faltam
os recursos que talvez voce já meteu alguma gente ruim consigo que lhe roubam o pouco que
você tem e que lhe exploram. (...) No dia 18 de abril lhe mandei quinhentos mil réis. (...) E
agora só lhe peço: tenha pena do seu marido velho que está lutando por aí para ter com que
sustentar você e veja onde lhe fica esse dinheiro!
Um abraço do seu marido
Curt

Em 1939, Nimuendajú completa 56 anos; Jovelina, 36. Há quase 15 que ele se ausenta
meses a fio, deixando-a sozinha ou em companhia de conhecidos. A correspondência
disponível no Museu Nacional sugere que, aproximadamente a partir dessa data, muda o tom
da relação do casal.
Passa a vigorar um certo pragmatismo, talvez cansaço, talvez aceitação. Sinal disso é
uma carta, na qual ele conta as pequenas peripécias, como a falta de água em Manaus, o alto
custo de vida, mas também dá práticos conselhos do dia-a-dia, como se escrevesse a uma
amiga, a uma colega de trabalho:
193

Manaus, em 7 de março de 1941,


(...) Incluso mando-lhe tres envelopes com o endereço para São Paulo de Olivença,
mas espere primeiro carta minha, porque ainda não sei se o agente do Correio lá merece
confiança. Quando você me escrever depois, veja que carta esteja bem fechada: imprensa-a
num livro, como você me viu fazer. Muitos abraços do seu marido
Curt

Na correspondência de 1943, parece despontar novamente certo afeto pela “Lila“,


talvez compensando a profunda depressão provocada pela prisão no ano anterior e o
terrível diagnóstico de que não deve mais fazer expedições. Poderia ser também uma forma
de reconhecimento à esposa ou produto das perspectivas de uma certa futura melhoria
econômica. Ou, quem sabe?, talvez seja a sua maneira de expressar certos sentimentos:

Rio [de Janeiro], 27-09-43


(...) Fiz um contrato com o Museu Nacional. Terei um ordenado que dará para
vivermos um pouco melhor [do que] como temos vivido nestes últimos meses. Você terá o
que precisar, e em fins do ano creio que poderemos também consertar a sua casinha. Estou
ansioso por voltar, pois desde que embarquei [em Belém] não tive mais notícias suas.
Felizmente, agora só faltam uns quinze dias.
Um abraço do seu marido
Curt

Aparentemente, Lila não é o grande amor da vida de Nimuendajú. Ou talvez não ele
consegue – ou acha que não devia – mostrar carinho por escrito. Nas cartas disponíveis,
refere-se à esposa de maneira que surgem imagens nebulosas sobre casamento. Em missiva à
sua irmã Olga, comenta o fato de sua sobrinha, a filha de Olga, ser quarenta anos mais nova
do que o homem com que acaba de casar na Alemanha e conclui que:

[Belém 16/12/1937]
Para um homem primitivo como eu, isso significa pregar uma peça na vida. Eu sou
vinte anos mais velho do que a Lila e naquela época [do casamento] achava que era uma
diferença muito grande. Mas como Lila envelhece mais rápido do que eu essa diferença fica
cada vez menor. (...)
Curt
194

Porém, Jovelina vive 26 anos a mais do que ele. Na mesma carta, Nimuendajú mais
parece um observador participante doméstico do que o marido: “Lila vive comodamente com
suas galinhas, patos, pombas, papagaios, gatos, cachorros e uma penca de afilhados que
esquentam a cabeça da ‘madrinha Lila’ [em português] até que ela os bota para fora de casa”.

Em outra missiva à sua irmã, tem-se a impressão de que Lila ocupa um lugar fugidio,
uma posição indefinida, no mundo de Nimuendajú:

Belém, 24/04/1940
(...) Eu a Lila estamos bem de saúde, ela está forte e gorda. Lila não esquece que você
tem aniversário dia 11 e me encheu o dia inteiro para escrever a você. Ela mesmo fez 37 anos
no dia 10 de abril (?) [sic] e está toda orgulhosa da neta na Alemanha. (...) Continuamos
vivendo bem, mas claro que não vamos ficar ricos. Eu ainda vou aguentar uns anos nesta vida
de sertanista (...)
Curt

O relato de um contemporâneo de Nimuendajú esclarece qual o papel que ele atribui a


Lila. José Maria da Gama Malcher, então chefe do SPI no Pará, perguntou, segundo ele em
tom de brincadeira, porque casara com uma mulher tão feia. A resposta foi:3

Ela é analfabeta, mas uma boa mulher. Você acredita que, se eu tivesse casado com
uma alemã, ela faria o que a Jovelina faz? Quando estou trabalhando à uma ou às duas da
manhã e preciso tomar um cafezinho, a Jovelina se levanta e prepara vários cafezinhos frescos
para mim. E sem resmungar. Ela é mais uma empregada do que uma esposa, mas é boa para
mim.

É difícil aferir, a partir do relato de Malcher, se Nimuendajú disse mesmo que sua
mulher era analfabeta. Uma carta enviada por Lila a Curt sugere que ela sabia escrever:

Belém, 28-05-34
(...) Meu bem, não se aborreça que eu pedi à Roseira para escrever esta [carta] por me
achar um pouco enfraquecida da doença. (...)
Lila

3
O diálogo foi contado por Malcher a Dungs em 1987 em Belém, p. 163, DU.
195

A caligrafia dessa carta, de fato, é diferente das outras existentes no acervo do Museu
Nacional. Só esse detalhe ainda não fornece prova conclusiva, pois naquela época era comum
pagar-se a uma pessoa alfabetizada para escrever cartas, o que, talvez, a Lila fez dessa vez,
devido à “doença”. Mas, se ela ditava a carta para o marido a terceiros, talvez teria tido
vergonha de expressar sentimentos que, sozinha, colocaria no papel. Nimuendajú, por sua vez,
não mostraria um lado íntimo, se alguém tivesse lido suas cartas para a Lila.
Segundo Malcher, Lila não sabia somar nem substrair, situação característica de
muitos analfabetos: “Toda vez que ele [Nimuendajú] preparava uma viagem, colocava
dinheiro em tudo quanto é buraco e fissura na casa para que Jovelina pagasse as despesas e
não gastasse tudo de uma vez só. Ela era analfabeta e não sabia fazer contas”.4

As aventuras amorosas de Nimuendajú eram um segredo de Polichinelo amazônico no


meio etnológico. Segundo relatos da época, o cientista de Manaus, Manuel Nunes Pereira,
contava, em conversas informais, vários casos de envolvimentos com índias e caboclas. Um
contemporâneo confirmou em 1987 essa imagem de Nimuendajú. Expedito Arnaud, diretor de
um departamento do Museu Emilio Goeldi na década de 40, disse que “é verdade que Curt
gostava das mulheres, ele era afim [delas]. Não parecia, não, mas era assim mesmo”.5
A atração possivelmente aumentava devido às características exóticas das pessoas
envolvidas. Afinal, o louro de olhos azuis se destacava na população de caboclos e mulatos,
da mesma maneira que as índias e as caboclas do interior tinham aparência física algo
diferente das brasileiras das grandes cidades e das alemãs da distante Iena.

Cotejando as cartas existentes no arquivo do Museu Nacional, pode-se, inicialmente,


concluir que Nimuendajú poucas vezes teria ficado sem companhia femenina durante suas
expedições, pelo menos no período de tempo coberto por essa correspondência. Algumas
ligações se estendem por um período de tempo relativamente longo. É o caso de Liosete, com
quem se carteia de 1934 a 1938.
Certo dia, ela escreve para o “Maninho Curt”, achando que ele não voltaria:

Barra do Corda 10-07-34


(...) agradeço imensamente a cordialidade de sempre tens para com a minha humilde
pessoa (...). Maninho, eu até pensava que fosse esquecida [sic]. O motivo do teu silêncio

4
Malcher, DU, p. 164.
5
Cf. Laraia, em As mortes de Nimuendajú p. 71. Expedito Arnaud, entrevista em 1987 em Belém, DU, p. 168.
196

trouxe-me essa impressão. Quando vens de novo à nossa Barra? Teremos ainda o prazer de
vernos? (...)
Aceite lembranças minhas e um abraço da amiga
Liosete

Às vezes, Curt mostra-se muito diferente do sisudo e metódico etnólogo Nimuendajú:

Belém, 25-02-36
(...) agradeço-lhe o que tens feito pelos canelas, dando-lhes vestidos para as mulheres
deles. Se eles aparecerem novamente, conta-lhes que eu já sai do Pará e que no começo do
mês de maio estarei com eles. (...) Li, de vez em quando pego a sua carta e levo a encher as
linhas de reticências no fim dela. Quando chegar você me contará o que aí não está escrito?
Lembranças aos seus pais e um abraço e ---ha! --- do teu Curt.

Também há situações em que demonstra sua preocupação por Li:

Belém, 18-12-36
Eu sou de fato um sujeito abominável, Li. Sempre lhe disse que eu não prestava, mas
às vezes parece que você duvida. Não só nunca mais lhe escrevi depois de deixá-la em Barra
do Corda, como ainda mais deixei de [sic] passar quase duas semanas depois de receber sua
carta de 29 de novembro e tudo isto porque queria dar-lhe logo a certeza da minha volta.

Em janeiro de 1937, ele pensa em subir o rio Tocantins, passando por Imperatriz,
Porto Franco e Carolina para ficar entre os Xerente perto de Piabanha. Como assim não
passaria por Barra do Corda, ele acha uma alternativa para poder vê-la:

Só se na volta dos cherente [sic] tomo o caminho por terra de Carolina para Barra do
Corda. Isso seria em julho de 1937. Agora, pelo amor de Deus, Li, não fique amuado [sic], e
conta-me, antes de [eu ] seguir para a minha viagem: como foi que você veio parar no Anil?
Como você deixou os seus na Barra e que notícias teve deles? (...) escreva-me como dantes,
você me escrevia! Não se zanga [sic] com seu amigo velho que, na velhice, está ficando
preguiçoso para escrever. Olha, sabe quantas páginas tinha a minha última carta que mandei
para a América do Norte? – 52, escritas a máquina!. (...) Até quando agora, Li?! – Três beijos
sobre o seu coração do seu amigo Curt.
197

Em São Luiz, conhece uma moça chamada Maria Leonarda, que parece muito
afeiçoada a Nimuendajú. A troca de cartas vai de 1934 a 1939:

São Luiz, 11-01-38


Ao fazer-lhe esta cartinha é para saber da sua saude, nos vamos uns bons e outros não,
mais [sic] estamos vivendo com forme [sic] o que Deus quiser. Já estou muito triste em não
saber noticias suas, mas se quer mais escreveu uma cartinha a nos. Já fiz o meu curso de
dactylographie [sic] em 15 de novembro de 1937. Estou bastante tristonha em não ver o meu
querido ao meu lado benzinho peço-te que não tardes muito. No mais vou terminar [esta
carta] com o coração cheio de alegria em mais tarde ver o meu querido junto a mim. Abraços
e beijos da querida Maria Leonarda (...). O endereço ainda é o mesmo.

Meses mais tarde, Maria Leonarda agradece o dinheiro que Nimuendajú enviou:

São Luiz, 06-04-38


Recebi o dinheiro, o qual muito agradeço. Assim logo que chegou tratei de pagar a
matrícula [ilegível] que devia. (...) Quando o senhor estiver mais desocupado de seus serviços,
caso possa, pesso-lhe [sic] mandar-me alguma cousa [sic] porque agora estou muito
desprevenida de roupa.

Os diários de campo de Nimuendajú, além de datas e roteiros, incluem dados sobre


seus encontros amorosos, que, após sua morte, Nunes Pereira chamou-os de “diário erótico”.
No meio etnológico, falava-se que Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional, o
teria “destruído para proteger a imagem do pesquisador e de outras pessoas envolvidas”.6 Não
se sabe de eventuais envolvimentos de Nimuendajú com cientistas ou funcionárias públicas.
O “diário erótico” está depositado no Museu Nacional. Escritos em alemão, oito
pequenos cadernos, parcialmente consumidos pelas traças e em parte ilegíveis, citam várias
relações, marcadas com triângulos, círculos com um ponto no meio e rabiscos sequenciais,
sugerindo uma nomenclatura criada pelo autor. Seu significado, porém, permanece oculto.
Confrontando relatos de viagens e esses diários, é possível reconstituir parcialmente
uma viagem de 1938 a aldeias de indígenas Kamakam (BA) e Maxacali (ES). No dia 18
agosto desse ano, Nimuendajú embarca em Belém num navio rumo à Bahia e torna real a
expressão popular de que marinheiro tem um amor em cada porto.

6
Laraia, p. 71 e Welper, p. 7.
198

No dia 12 de maio de 1939, Curt Nimuendajú retorna a Belém, após dez meses de
expedições. A descrição desse dia é curta: “[ilegível] conta que Lila sabe das minhas relações
com Raimunda”. Nos três dias seguintes, já na sua cidade, ele enumera os seus encontros com
Raimunda.
As informações das cartas e dos diários íntimos fornecem uma visão relativa e parcial
da personalidade de Curt Nimuendajú, mas também quase nada dizem quanto às outras
pessoas citadas nesses episódios. Isso porque faltam documentos que permitam aprofundar os
fatos e contextos apresentados e mostrar as várias facetas dos participantes. Seria arriscado
julgar, segundo parâmetros culturais e morais do início do século 21, pessoas citadas em
contextos sócio-culturais de 70 ou 80 anos atrás.

A atitude de Nimuendajú em algumas das tribos visitadas é bem diferente. Ao


responder uma pergunta de Lowie sobre as práticas dos indígenas das tribos Jê perante as
doenças, revela o que aparenta ser uma relação amorosa:7

Eu estava morando na casa do “meu irmão Matuk”, que era feiticeiro, e tinha visões
solares [espíritos ligados ao sol] foi rezar junto com uma moça Apinayé, chamada Irati, que
era tida como minha mulher, no mato e pediram ao Sol para que eu ficasse bom [sic].
Nenhum deles falou nada disso, eu só fiquei sabendo mais tarde através de outros índios.

Nimuendajú, porém, assume claramente seu relacionamento com uma indígena


Canela no Maranhão. Ele relata três momentos da vida social com Kentapi. É quando é
possível senti-lo companheiro dela, membro da tribo. Numa carta ao amigo Carlos Estévão,
conta detalhes de uma foto na qual ele e Kentapi aparecem:8

Explicação da fotografia: no dia da minha partida em agosto de 1930, a india Kentapi


botou luto por mim. Não cortou mais os cabelos que cresceram ate quase a altura da boca e
nunca mais apareceu em público. Agora, alguns dias depois da minha chegada, ambos nós
fizemos cortar os nossos cabelos e enfeitar-nos pelas pessoas competentes (as que conosco estão
na relação de “Hapin”) que por este serviço receberam gratificações. Kentapi pós o enfeite
comum de quem findou o luto e que consiste em grudar penugem de gavião no corpo, como a
fotografia mostra, pintando o resto [do corpo] com urucu. O meu enfeite é diferente, porque é o

7
Belém, 20/10/1937, DU, p. 279.
8
Barra do Corda, 02/05/1931, CS, p. 181.
199

da sociedade dos Tamhák, à qual pertenço. Assim fomos levar cada um uma grande cuia com
comida para o senado [pessoas ilustres da tribo] reunido no pátio, enquanto os outros estavam
dançando e, apresentando-nos assim, passamos a fazer outra vez parte da sociedade.

A cena é idílica. Possivelmente, faz bem a muitos “civilizados” saber que os indígenas
vivem não somente em contato íntimo com a natureza, mas que entre eles reina absoluta
harmonia. Tomar conhecimento de costumes que fortalecem o sentimento comunitário
também deve agradar muitos “neo-brasileiros” dos dias de hoje.
Dois anos mais tarde, ao explicar a cerimônia de iniciação dos jovens indígenas,
Nimuendajú volta a colocar Kentapi no centro de uma cena tribal:9

As moças se estenderam numa linha de combate e, de repente, com furiosos gritos de


guerra, lançaram-se contra os moços, cobrindo-os com uma saraivada de côcos, laranjas e
outras frutas. Os moços, que esperavam por isso, se desviavam com destreza da maioria dos
projeteis, mas as moças avançavam sempre e, no meio do pátio e na maior confusão e algazarra,
travou-se uma luta geral entre os dois partidos. Foi, porem, curta, e a única moça que conseguiu
vencer o índio seu adversário foi Kentapi!

O idílio do casal chegaria ao fim. Desconheço qualquer escrito de Nimuendajú sobre


esse tema. Graças ao antropólogo Jonaton Alves Silva Júnior é possível saber os dramas
vividos por Nimuendajú, Kentapi e pelos Canela quando da última estadia do pesquisador na
aldeia. Em maio de 2004, Silva Júnior entrevista vários indígenas contemporâneos de
Nimuendajú e moradores da aldeia visitada por ele. Maria Pyhkàl, prima de Kentapi, tinha 77
anos quando foi entrevistada por Silva Júnior. Ela conta que em 1929:10

Depois que chegou aqui entre os Canela os índios resolveram dar uma mulher para ele
chamada Ken-taapi, não era menina nova, e em sua primeira relação com Kokaipó, Ken-taapi
não agüentou, os índios ficaram preocupados, ela ficou poucas horas com ele deitada.

Conforme o uso indígena, Kokaipó (nome de Nimuendajú na tribo) sai da casa de seus
pais Canela e vai morar com Kentapi e os pais desta. Depois de um mês, retorna a Belém.
Kentapi segue a tradição de deixar o cabelo crescer na ausência do marido.

9
Aldeia do Ponto, 10/07/1933, CS, p. 198.
10
Silva Júnior, Jonaton Alves da, Os Ramkokamekrá: sociedade em movimento, antes e depois de Curt
Nimuendajú, São Luís-MA, 2004, p. 26.
200

É assim que Nimuendajú a encontra em abril de 1930 quando está de novo na aldeia.
Realiza-se então a ceremônia pela qual se comemora o reencontro do casal. A foto que
Nimuendajú enviou a Carlos Estevão foi tirada durante essa visita.
Em agosto de 1930, Kokaipó deixa a aldeia para voltar a Belém. Em 1933 e em 1935,
ele está novamente pesquisando entre os Canela. Na hora da despedida na cidade de Barra do
Corda, conta Nimuendajú: “(…) os Canela que me acompanharam até aqui se despediram de
mim desconsolados, porque não lhes pude mais prometer que voltaria, como dantes sempre
fazia ao partir”.11 Nessa carta a Carlos Estévão, Nimuendajú não cita Kentapi.
Talvez imaginando que Kokaipó não retornaria, Kentapi decide contrariar o costume
tribal e refaz a sua vida na aldeia, relembra Maria Pyhkàl:12

(…) Ken-taapi gostou de outro homem que se chamava Iloia Tààmi, casou-se com ele,
os parentes de Ken-taapi se zangaram com ela cortando seu cabelo. A lei dos índios é quando
(…) o marido viaja, não deve se pintar e nem cortar o cabelo, assim que mulher [Kentapi]
gostou do Tààmi foi cortado o cabelo.

Inesperadamente, em julho de 1936, Nimuendajú retorna à aldeia, o que ninguém


esperava. No início, os indígenas ficam desorientados com situação gerada por Kentapi e seus
dois maridos. Mas logo abrem o jogo. Maria Pyhkàl conta a solução achada:

Kokaipó chegou e perguntou por sua mulher, ninguém não podia dizer para ele que
ela [Kentapi] não havia casado,[os indígenas] falaram a verdade, ele no mesmo momento
pede para os trabalhadores [que o acompanham] colocarem as cargas no jumento novamente e
volta para a localidade chamada Curicaco, onde se arrancha [se instala] na casa do branco
chamado Zaquiel. Sua casa tinha apenas paredes de palha. (…) As lideranças se ajuntaram no
meio do pátio [da aldeia] e chamaram a mãe da Ken-taapi, que se chamava Aykronõ,
encomendou [sic] para ela levar Ken-taapi para fazer as pazes com ele.

Só não houve um confronto entre os dois homens porque, naqueles dias, o marido
indígena de Kentapi estava caçando distante da aldeia.
Mas como Iloia Tààmi poderia voltar a qualquer momento da caçaria, era conveniente
para os indígenas agir com a maior rapidez possível. Portanto, a mãe de Kentapi pede a Maria

11
Barra do Corda, 30/06/ 1935, CS, p. 236.
12
Silva Jr., p. 27.
201

Pyhkàl, que nessa época era uma mocinha, para acompanhá-las até a casa onde Kokaipó se
instalara. Maria Pyhkàl continua narrando o que ela afirma ter presenciado pessoalmente
quase 70 anos atrás:13

Quando Ken-taapi chegou, bateu na porta, ele abriu, e eles se abraçaram, entraram no
quarto os dois. Passadas algumas horas, saiu e despachou a sogra dando facão, machado, pano
e dinheiro. Depois disso Kokaipó passou a raiva, quando deu a tarde ele voltou para Brejo dos
Bois [Nimuendajú chamava-o de Riacho dos Bois] que naquele tempo era aldeia. Antes de ele
chegar na aldeia os índios resolveram dar qualquer outra índia para ele e escolheram Maria
Conceição Muruwrá, mas ele não quis, ela não era tão bonita, e já tinha filhos.

Insatisfeito com a opção dada pelos Canela, Kokaipó decide agir por conta própria,
recorda a única testemunha ocular ainda viva em 2004:

Procurou outras mulheres, escolhendo Korẽ, que foi sua segunda mulher, com ela não
foi para a casa do sogro e da sogra dele, ficando [Kokaipó] na casa de seus pais. Passado uns
meses o pessoal fez uma prisão de Ikhréré [ceremônia de reclusão], e ele depois disso foi
embora para terra dele, não voltando mais, chegando [anos mais tarde] aqui [na aldeia] no
Ponto a noticia do falecimento, que ele tinha morrido na terra dele.

Com tantas relações amorosas, é alta a chance de Nimuendajú ter tido filhos. Nenhum
dos documentos conhecidos registra sequer uma insinuação nesse sentido. A exceção é uma
carta do próprio Nimuendajú a Carlos Estevão, envolvendo justamente Kentapi:14

Uma outra descoberta interessante: os Canelas tambem se dirigem ao Sol com preces!
Vi Kentapi sentada numa esteira em casa da mãe dela. Podiam ser umas 8 horas da manhã e o
sol entrava pela porta da casa até os pés da índia que estava comendo. De repente, ela
estendeu os braços com as mãos abertas rumo ao sol e disse com voz meiga e suplicante: “Pa-
pam, veja, eu aqui estou sentada e comendo só: dá-me um filhinho!” - Quando eu mais tarde
pedi que ela repetisse as palavras, ficou envergonhada e começou a rir, mas vendo que eu
estava [falando] serio, repetiu-as enfim e confessou que não era a primeira vez que assim
fazia e que a sua irmä Iromkre, pedindo um filho a “Nosso Pai”, fôra logo atendida.

13
Ibid. Segundo Nimuendajú, a ceremônia seria o Tep-yarakwa, cf. carta de 01/09/ 1936, CS, p. 257.
14
Aldeia do Ponto, 12/06/1933, CS, p. 195.
202

Em entrevista, Silva Júnior revela uma informação que, aparentemente, poucas


pessoas conhecem fora da aldeia canela – Nimuendajú tem uma filha:15

Casamentos realmente, dentro dos costumes Canelas foi somente com Kentapí, mãe da
ainda viva Pimenta, essa por sua vez mãe de Raimundo Nonato Kaare, ex-vereador municipal
de Fernando Falcão-MA. Os canelas consideram apenas esse como casamento propriamente
dito porque Nimuendajú foi o “primeiro homem de Kentapí”, ele a deflorou e morava na casa
dos sogros quando estava entre os Canela e com Kentapi.

Pela tradição canela, portanto, Pimenta é filha de Nimuendajú, embora seu pai
biológico seja um outro homem. Ela mesma estava convencida da paternidade, conta Silva
Júnior, que descreve um dos seus últimos contatos com Pimenta:16

No ano de 2003 estava eu voltando de campo com meu orientador [William] Crocker,
nosso transporte quebrou e ficamos confinados por mais de meio dia em um setor de roça
onde Pimenta estava plantando sua mandioca. Ela chegou para Crocker e perguntou em Jê:
“Keti sabes noticias do meu pai? ele sumiu e minha mãe morreu perguntando por ele!”.

Silva Júnior acrescenta que:

Crocker me olhou e traduziu o que ela tinha falado, ele então respondeu que
Nimuendajú também já havia morrido, mas que tinha muita paixão pelos Canela e que se
soubesse algo dele no retorno em 2005 falaria com ela. Certa vez, em 2005, levei a foto dele e
de Kentapi que tem no livro “Cartas do Sertão” para ela como lembrança. Ao receber a foto,
ela fez o choro cerimonial dos Canelas para mim.

Rememorando os relacionamentos amorosos de Nimuendajú com as indígenas, é


possivel atribuir ao sertanista uma vida muito voltada para a sensualidade. Talvez criticar o
que parece ser uma postura imoral.
Existe, porém, uma outra razão que mostraria um outro aspecto dessas relações, afirma
Expedito Arnaud: “Quem conhece os índios sabe que, quem quer morar entre eles, acaba
casando. E o Curt queria ficar entre eles. Os índios querem ser ‘parentes’ de pessoas bem

15
Silva Jr., entrevista em 23 de novembro de 2010. Segundo ele, Nimuendajú teria tido relações amorosas com
uma outra indígena, chamada Colhel.
16
Ibid, entrevista em 8 de fevereiro de 2011.
203

vistas como Curt. O parentesco é algo muito importante para eles, parte da organização da
sociedade e é elemento político”.17 Como Nimuendajú fazia questão de manter contatos
profundos e duradouros nas tribos, não é de admirar que tivesse casado em várias aldeias.
No Alto Solimões, possivelmente ele foi além dos limites fixados pelas próprias
tradições indígenas. E isto teria sido uma das prováveis razões de sua morte em 1945, numa
das muitas hipóteses sobre o seu falecimento.
Em maio de 1942, durante sua terceira expedição aos Ticuna, Nimuendajú visita
aldeias localizadas à beira de igarapés perto de Santa Rita do Weil. Como outras vezes,
hospeda-se na casa do seu amigo indígena Nino Atahyde. Mesmo sabendo das rigorosas
regras que determinam a vida das índias virgens até o rito de puberdade, ele não se contém.
Nimuendajú anota no seu diário íntimo de 1942 os encontros furtivos ao longo de três
meses com mulheres da tribo, citadas por seus nomes “cristãos”. Os registros apontam
relações sexuais com algumas delas; com outras, teria havido trocas de carícias.18
É de se imaginar que Nino Atahyde e outros líderes sabiam das relações de
Nimuendajú com as indígenas. Só que, paradoxalmente, nessa época ele ocupa um papel
central na cosmogonia de várias comunidades Ticuna da área do Igarapé Santa Rita.
Considerado a reencarnação do herói cultural Dyoé, o louro de pele curtida pelo sol e
atitude decidida é inclusive chamado a decidir questões complexas como casos de incesto. Ele
defende os índios contra os “neo-brasileiros” que queriam escraviza-los, constituindo-se em
seu porta-voz perante o governo federal, no caso o SPI.
Contudo, não seria irreal imaginar que, em algum momento, os Ticuna teriam
concluído que Nimuendajú, justamente na sua condição de herói cultural, estaria quebrando a
tradição que proíbe relações sexuais às moças antes da realização do rito de passagem à idade
adulta.
Será que Nino Atahyde teve que escolher entre manter a coesão social imediata da
tribo ou preservar a tradição fundadora do herói cultural? Esta possibilidade é reforçada pela
misteriosa morte de Curt Nimuendajú exatamente nessa aldeia Ticuna onde ele mantinha
relações com várias índigenas. Mas tudo fica a nível de hipótese.
A única herdeira oficial de Curt Nimuendajú foi Jovelina Nascimento, a “Lila”. Ela
passou a ser amparada pelas pessoas mais próximas ao pesquisador. Segundo Arnaud, dona
Heloísa, diretora do Museu Nacional, decidiu comprar o acervo de Nimuendajú e enviava a
dona Jovelina, mensalmente, a importância de Cr$ 1000,00.

17
Depoimento de Arnaud, DU, p. 166.
18
Diário de 1942, MN.
204

Por volta de 1949/1950, ocorreu a compra definitiva do acervo pela importância de


Cr$ 80.000,00. Com o saldo verificado a favor de dona Jovelina, foi adquirida uma casa para
a viúva, pois ela já tinha vendido aquela que o marido lhe havia deixado.
Para conseguir isso, dona Heloisa ainda manteve uma longa disputa com a burocracia
brasileira da época. Sua dedicação chegou a ponto de, no último dia do ano de 1947, escrever
ao reitor da então Universidade do Brasil: “(...) verifiquei ser impossível a aquisição total das
peças diante do saldo da verba de 1947. Nessas condições e para que não se perca o referido
saldo, peço a vossa Magnificência mandar empenhar a importância de 44 mil cruzeiros a
favor de Jovelina Nimuendajú”.19
Mas essa relativa segurança material dura pouco para “Lila”, historia Arnaud:

A partir de então, e durante varios anos, foi desconhecido o paradeiro de D. Jovelina,


até que afinal a localizamos, já em fins da década de 60, em estado de penúria. Havia vendido
a nova casa e sobrevivia como lavadeira, residindo em companhia de uma família num
longínquo súburbio de Belém. Nos últimos anos de vida passou a desfrutar de uma modesta
pensão concedida pelo governo do Estado do Pará, em atenção ao pedido feito pelo sr. Miguel
Silva, funcionário do Museu [Emilio] Goeldi. Em complementação a essa parca remuneração,
os pesquisadores do Departamento de Antropologia do Museu [Goeldi] passaram a lhe
proporcionar uma ajuda mensalmente. Mas considerando as condições precárias em que ela
vivia, o Dr. Luiz Scaff, diretor do Museu, após haver possibilitado seu tratamento no hospital
da Santa Casa de Misericórdia, conseguiu interná-la no asilo D. Macedo Costa, onde ela
terminou tranquilamento os seus dias, em 1972.20

Dungs afirma que ela morreu em 7 de novembro de 1972. O biógrafo alemão


Menchém acrescenta que “ela recebia nessa época uma pequena pensão de 72 cruzeiros, dos
quais seis eram pagos pela Associação de São Sebastião, que lhe garantiu um simples mas
sério enterro. Ela ainda determinou que, após a sua morte, a pensão deveria ser utilizada para
pagar a educação de uma criança pobre”.21

19
Arnaud, Expedito, Curt Nimuendaju, Aspectos de sua vida e sua obra, Revista do Museu paulista, XXIX,
1983-4 p. 68 e carta de Heloisa Alberto Torres de 31/12/1947, MN.
20
Arnaud, Ibidem.
21
DU, p. 26 e Ménchem, p. 212, ambos sem citar a fonte.
10 - O eterno gringo na pátria de adoção

Brasileiro de coração e de carteirinha, nem mesmo um sobrenome indígena adiantou: Curt


Nimuendajú sentiu a vida inteira que era visto como estrangeiro, tratado como um estranho
no ninho, como o alemão. Seus contemporâneos que agiam dessa maneira eram suficientes
para deixá-lo triste. Ainda no século 21, alguns acadêmicos o apresentam como sendo de
nacionalidade alemã.

Nasceu e morreu “alemão”, mesmo adotando a nacionalidade brasileira e nome indígena.

Desde sua chegada a São Paulo em 1903 e até a adoção em 1922 da nacionalidade
brasileira, ele tem passaporte alemão. Mas não é o lugar de nascimento ou o documento que o
distingue de “pretos”, “mulatos” e mesmo “brancos” da capital. São a aparência física – louro
de olhos claros – e a maneira de falar e de agir (sotaque carregado, jeito decidido e direto de
conversar) que contribuem para que seja visto como uma pessoa diferente.
Porém, é justamente a sua decidida postura a favor dos índios que o transforma em
“alemão”, uma sutil metamorfose do conceito que designa uma nacionalidade para um termo
206

que descreve uma atitude, um comportamento de quem é assim chamado, mas também
assinala o (pre)conceito de quem o utiliza.
O primeiro confronto com a discriminação vem da hierarquia burocrática do SPI,
conta Nimuendajú. Em 1915, ele é comissionado pela Inspetoria de Índios do Maranhão para
“pacificar” a tribo Urubu, à beira do rio Gurupi, no norte do Estado. Meses de paciente
trabalho de mútua aproximação e criação de confiança acabam, porém, inesperadamente:
“No momento em que esses indígenas estavam contentes ao ponto de, através de sinais, me
pedirem facões, fui convocado urgentemente [à sede da Inspetoria regional], demitido e
responsabilizado pelo ataque alemão à Bélgica!!!.”1
Efetivamente, em 1914, o império alemão atacara a Bélgica e outros países, dando
início à Primeira Guerra Mundial. Mas isso foi na Europa, a milhares de quilômetros do
Maranhão. Para sua tristeza, tem início um estigma que o persegue a vida inteira.
Em 1923, a acusação o alcança entre índios Maué na longínqua Amazônia. Descendo a
pé o rio Maricuã, a cem quilômetros de Parintins (PA), encontra-se com o cacique José Leão,
que o recebe com extraordinária desconfiança. Misterioso, Nimuendajú só informa a Carlos
Estevão de Oliveira, amigo e diretor do Museu Emilio Goeldi, que o mês de permanência na
aldeia foi infrutífero para suas pesquisas etnológicas, “devido a uma estranha circunstância
que lhe contarei pessoalmente”.2
A “circunstância” é realmente estranha. Perguntando com jeito, Nimuendajú fica
sabendo que, em 1918, já no final da Primeira Guerra Mundial, os índios tinham sido
alertados contra espiões alemães. Confrontado em 1923 com essa acusação genêrica, mas
mesmo assim potencialmente letal, ele bate em retirada da aldeia maué: “Proceder a um
estudo etnológico dessa gente em tais circunstâncias era impensável. Minha partida deu-se
sob risco de vida”.3
Os temas “espião”, “alemão” e “espião alemão” são uma constante na sua vida. A sua
segunda demissão do SPI, ocorrida em meio à “atração” dos Parintintin no rio Xingu (PA)
poucos meses antes do episódio com os Maués, tem por base a mesma razão, segundo ele:
“(…) o maior mal da pacificação foi este de ter sido eu, o alemão, [sic] o chefe dela”.4

Aos poucos, os ecos da Primeira Guerra Mundial se esvaem do dia-a-dia de


Nimuendajú. Porém, a perseguição continua. Ela apenas assume outras formas. Se antes o

1
Carta ao diretor do museu de Gotemburgo, barão Erland Nordenskiöld, em 07/02/1925, MG.
2
Santarém, 02/07/1923, CS, p. 42.
3
Nimuendajú, Curt, Streifzüge in Amazonien, 1929, p. 89.
4
Nunes Pereira, p. 36.
207

preconceito espelhava a visão ideológica no sentido “brasileiro” versus “estrangeiro”, agora


são cada vez mais confrontos no estilo “coronel/seringalista” contra “forasteiro/estranho”.
Na região chamada de “Boca do Bahu”, parte de Altamira (PA), hoje o maior
município brasileiro, em 1918 possivelmente nunca ninguém viu um estrangeiro, mas
qualquer morador identifica logo quem vem de fora. Nessas florestas ribeirinhas rio Curuá
acima, os Xipaia vivem sob enorme pressão “de seus senhores cristãos”, que lhes impõem
obstáculos à prática de sua religião tradicional.5
Estes seringalistas só conhecem a sua própria lei. A indesejável presença do estranho
pesquisador gera imediatamente uma reação violenta. Mesmo atingido pessoalmente,
Nimuendajú só registra um resumo dos fatos acontecidos no seu diário de campo. O pequeno
caderno comido pelas traças hoje depositado no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, só exibe
frases telegráficas escritas em alemão de acontecimentos ocorridos em janeiro de 1918:6

Sexta-feira, 18: De manhã cedo, sou preso por Lopes, que ameaça me algemar. Depois
da partida de canoa [ilegível] e longas negociações, ele se acalma. Pedro Lopes chega.
Sábado, 19: Lopes me interroga, sou preso como “suspeito”. Pedro Lopes faz as vezes
de secretário. Lopes me trata bem.
Domingo, 20: Encerrado o expediente da minha prisão.

O diário de campo de Nimuendajú registra uma prisão, que ele nunca contou.

5
Nimuendajú, Brückstücke aus Religion und Überlieferung der Sipaia-Indianer, Anthropos, Band 14-15, 1919-
1920, p. 100.
6
Diário de campo de 1918, MN.
208

Inexplicavelmente, ele silencia sobre essa detenção. Não existe qualquer indício de
quem seriam as pessoas citadas nem as circunstâncias da “prisão”. Nem sequer ao fazer um
apanhado parcial das vicissitudes sofridas até 1938 ao seu amigo Herbert Baldus esse
episódio aparece. A sua amizade com os indígenas já tivera como contrapartida dois tiros de
revólver no sertão de Bauru, um ataque em plena rua em Barra do Corda e as mais loucas
acusações em abaixo-assinados e telegramas ao governo federal.7
Mas nenhuma palavra sobre o acontecido na Boca do Bahu. Terá sentido vergonha?
Quem sabe foi adquirindo traquejo à medida que as agressões se sucediam e, assim, algumas
escapam à memória fugidia?

Protestos em alto e bom som

Com o tempo, sua atitude muda. Quase vinte anos depois da “prisão” na região da Boca do
Bahu, ele vive uma situação parecida no sertão do Maranhão. Aqui também vigora a lei do
mais forte. Os latifundiários tentam primeiro o boato desmoralizador contra Nimuendajú, que
pesquisa em aldeias indígenas da área. Membros das famílias Arruda e Cravo espalham em
1933 que ele sumiu devido ao telegrama-denúncia dirigido ao Ministro do Trabalho de que
ele violentara várias índias.
Sua volta em maio de 1935 à aldeia Canela Apanyekra acende a boataria de que ele
rouba gado dos fazendeiros, o que Nimuendajú considera quase um álibi para futuros atos de
“proteção” da propriedade privada. No final de junho, ele é agredido nas ruas de Barra do
Corda e clama por justiça em alto e bom som. Depois de apresentar queixa à polícia local,
passa a receber ameaças diárias de que será assassinado.
Aberto o inquérito, os latifundiários, filhos da terra, mostram sua esperteza, indigna-se
Nimuendajú: “(...) do depoimento do acusado e de suas testemunhas resultou a evidência: que
eu não tinha sofrido agressão nenhuma, antes pelo contrário, tinha provocado estupidamente
o acusado e as testemunhas! Vendo que as outras testemunhas eram da mesma laia daquelas
duas, nem quis mais assistir ao depoimento delas, e retirei-me enjoado - e eles nem foram
mais depôr. (...) Aquele inquerito provou-me como, de fato, depende unicamente da boa
vontade deles de me assassinarem impunemente ou de me meterem na cadeia como ladrão de
gado”.8

7
Belém, 13/03/1938, DU, p. 192.
8
Barra do Corda, 02/07/1935, CS, p. 232.
209

Nimuendajú não desiste. Como a justiça e a polícia colocam-se claramente a favor do


poder político local, ele pede proteção ao governo estadual. De São Luís, chega um tenente,
comandando 12 soldados. “com a missão de garantir a minha segurança e garantir o meu
trabalho. Ontem houve um tiroteio entre os soldados e os ‘senhores’ de Barra do Corda, que
acabou com 20 desses facínoras na cadeia. Eu estou muito mais seguro entre os indígenas!”.9

As brigas com o e no Conselho de Fiscalização

Os conflitos até então acontecem na floresta, no sertão. A consolidação da Revolução de


1930 muda a forma e o conteúdo do precário equilíbrio entre Nimuendajú e o poder público a
nível nacional. Reaparece o elemento ideológico que, logo depois do fim da Primeira Guerra
Mundial, tinha passado a segundo plano.
A gradual ascensão ao poder de correntes xenófobas leva o governo de Getulio Vargas
a coibir tanto a atuação de pesquisadores estrangeiros no Brasil quanto a restringir a saída do
país de material coletado. Assim, em 1933 é criado o Conselho de Fiscalização das
Expedições Artísticas e Científicas no Brasil.10 Trata-se de um instrumento de controle
ideológico do Estado. Expedições estrangeiras e particulares são, pela sua própria natureza,
suspeitas de ameaçarem o patrimônio natural do Brasil, analisa o antropólogo Luiz de Castro
Faria. Ele sabe do que fala. Na qualidade de representante do Conselho de Fiscalização,
acompanha, em 1938, a expedição do francês Claude Lévi-Strauss ao Mato Grosso.11
Assim, a desconfiança, o controle e o cerceamento às atividades de Nimuendajú
passam a existir também na capital da República. Esta política espalha-se do Rio de Janeiro
para o país inteiro. A serviço do Estado Novo, os intelectuais xenófobos – aqueles que
consideram no mínimo suspeito e em geral nefasto qualquer contato com o que não nascera
integralmente brasileiro – combatem Nimuendajú anos a fio.
É que ele critica o integralismo, o nacionalismo xenófobo, o nazismo, o Estado Novo.
Mas também se levanta contra as religiões e o comunismo. Enfim, discorda de qualquer
órgão ou pessoa que, na sua opinião, persegue o índio ou nada faz para evitar sua extinção.
Para os “nativistas”, como Nimuendajú batiza os xenófobos, ele não passa de um
mercenário estrangeiro, que vende pedaços do patrimônio brasileiro a museus europeus e

9
Barra do Corda, 30/07/1935, carta a Walter Krickenberg, Museu Berlim.
10
O presidente Getúlio Vargas assina em 11 de maio de 1933 o decreto número 22.698, que autoriza o
Ministério da Agricultura a criar o referido órgão, o que ocorre em 28 de julho do mesmo ano, cf. Araci Gomes
Lisboa, O Conselho de Fiscalização das Expedições Artisticas e Cientificas no Brasil. Ciência, patrimônio e
controle, Universidade Federal Fluminense, 2004, p. 72.
11
Faria, Luis de Castro, A invenção do patrimônio: continuidade e ruptura na constituição de uma política
oficial de preservação no Brasil, 1995, p. 34.
210

norte-americanos. E, argumentam, ainda fica famoso com esse comércio internacional


transvestido de ciência.
Essa imagem não muda nem a partir de 1939, quando ele publica nos Estados Unidos
um livro sobre os Apinajé e dois estudos em co-autoria com o etnólogo Robert Lowie, da
Universidade da California. Fato é que, até meados dos anos 20, a única instituição brasileira
que se interessa pelo trabalho de Nimuendajú é o Museu Emílio Goeldi.
Mesmo na década de 30, quando o Museu Nacional começa timidamente a querer
comprar coleções, ele só consegue realizar seus estudos com financiamento estrangeiro,
como ele mesmo conta em 1933: “Volto agora da minha expedição aos Canela. Graças ao
apoio que consegui da Carnegie Institution foi possível concluir as pesquisas junto a essa
tribo”.12
Na malha de critérios do Conselho de Fiscalização, Nimuendajú passa sem problemas
oficialmente pelo quesito “nacionalidade”, pois assumira a brasileira em 1922. Mas é
reprovado no item “particular”, pois não é funcionário de nenhuma instituição governamental
de pesquisas. Daí é um passo para que os intelectuais mais próximos ao integralismo se
refiram a Nimuendajú como “o alemão”.
Dois anos antes da criação do Conselho de Fiscalização, Nimuendajú conta a
Nordenskiöld, diretor do museu sueco de Gotemburgo, que o vento está mudando. Ele sabe
que uma parcela dos formadores da opinião pública esposa a postura do general Cândido
Rondon sobre “pesquisadores estrangeiros” que levam objetos indígenas para museus de seus
países, ficando os brasileiros “privados desse ofício”.13
Este argumento, encastelado no Conselho de Fiscalização, será usado contra
Nimuendajú até sua morte. A suspeita de pirataria etnográfica vê-se reforçada quando ele
viaja à Suécia em 1934. Ele vai exclusivamente para rever coleções de objetos dos povos Jê
coletados por ele e, assim, escrever um livro a ser editado em inglês – tudo financiado pela
organização estrangeira Carnegie Institution.
Na mesma carta em que pede autorização a Walter Kaudern, diretor interino do Museu
de Gotemburgo para estudar as coleções, ele informa que a dificuldade de enviar uma nova
coleção de objetos Canela reside “na nova legislação de exportação. Eu tenho pouca
esperança de conseguir, mas vou tentar [enviar as coleções à Suécia]”.14
Ao voltar da Suécia em setembro de 1934, ele simplesmente ignora o Conselho de

12
Belém, 18/10/1933, carta a Walter Kaudern, diretor interino do Museu de Gotemburgo, MG.
13
Ofício reservado no. 26, de 11 de abril de 1932 ao Ministério de Relações Exteriores, p. 66, cf. Lisboa. A carta
a Nordenskiöld é de 03/09/1931, MG.
14
Belém, 17/02/1934, MG.
211

Fiscalização e emprende uma viagem aos Fulni-ô, em Pernambuco. Nos arquivos do órgão
não há registros de autorização. Para realizar a próxima expedição, contudo, é obrigado a se
apresentar ao Conselho.
Nimuendajú escolhe o caminho mais fácil e se dirige à diretora do Museu Nacional, a
cientista Heloisa Alberto Torres. A única mulher entre os sete membros permanentes do
Conselho fora empossada em julho de 1934.
Nimuendajú a conheceu pessoalmente em 1930, quando duas funcionárias do Museu
Nacional do Rio de Janeiro passaram por Belém: “Uma delas, a senhorita Heloise [sic]
Torres procedeu a excavações na ilha de Marajó e voltou ontem. Ainda não vi os resultados
de suas pesquisas”. 15 Em 1934, Nimuendajú pede a dona Heloisa, como hoje é lembrada no
meio antropológico, financiamento para as expedições. A resposta é negativa.
No reencontro epistolar em janeiro de 1935, a linguagem de Nimuendajú mostra uma
espécie de ressentimento, uma tensão que dominará o relacionamento entre ambos, tanto
pessoal quanto institucional.
A carta a dona Heloísa começa irônica: “Peço-lhe desculpas por dirigir-me novamente
à senhora, com manifesto desrespeito ao augusto silêncio com que respondeu às minhas
cartas de 12 de outubro, 26 de outubro e 2 de novembro [de 1934]”.
Seu objetivo é coletar peças indígenas entre os Canela para o Museu de Berlim, o
Nacional e de Goteburgo, além de completar os estudos, “especialmente sociológicos, que
desde 1929 estou procedendo naquela tribo”. Ele coloca a dona Heloísa uma questão que não
consta do vocabulário do Conselho: quem é proprietário das peças coletadas entre os
indígenas? A pergunta tem sua razão de ser. Em 1934, o Conselho determinara que parte da
coleção feita pelo etnólogo alemão Emil Snethlage fosse “devolvida” ao Museu Nacional.
Nimuendajú ouviu em sua casa em Belém o relato pessoal de Snethlage.
Ele diz ainda que tanto ela,diretora do Museu Nacional, quanto o diretor do Emilio
Goeldi, seu amigo Carlos Estévão de Oliveira, se comprometeram a comprar as coleções que
ele, Nimuendajú, fizer. Desafiante, exige clareza: “(...) desejava enfim saber em termos que
não permitam dúvidas se, em português claro, o Museu Nacional comprará a parte das
coleções que pretende ou se a confiscará por intermédio do delegado do Conselho”.16
Seu tom é forte, quase agressivo. Até parece querer ditar condições. Na verdade, ele só
quer saber o nome do delegado do Conselho de Fiscalização em São Luiz (MA) e também do

15
Rodapé 121, p. 373, CS, e carta de Belém, 22/10/ 1930, a Nordenskiöld, MG.
16
Belém, 13/01/1935, MN. Dois anos atrás, ele já vendera uma coleção ao Museu Nacional, cf. carta de
Nimuendajú a Carlos Estevão, de 10/07/1933: “Respondi imediatamente à Snrta. Heloisa Torres, prometendo
remeter a coleção assim que eu voltar ao Pará, cumprindo fielmente as instruções dela”, cf. CS. p. 198.
212

substituto. Sua intenção é esclarecer tudo antes de enfrentar o poeirento sertão maranhense e,
ao voltar carregando coleções, “evitar que a lei se transforme para mim em arapuca graças à
intervenção de uns tantos estranhos ao caso”.
Após informá-lo de que conseguira um empréstimo pessoal para financiar a expedição,
dona Heloisa o enfrenta:17

(...) Para poder ajuizar de certos casos é preciso conhecer-lhes todos os aspectos.
Muito estranhei a precipitação com que o senhor, depois de ter conversado aqui conosco
como conversou, julgou tão severamente as decisões do Conselho. Por conseguinte,
considero de bom aviso que, no futuro, o senhor se informe bem dos fatos antes de manifestar
opiniões a respeito, sob pena de se fazer passar por leviano. É preciso também que o sr. sabia
que não é somente o sr. a única pessoa que cumpre com a [sua] palavra no mundo.

Esse tipo duelo verbal é o núcleo da convivência entre Nimuendajú e dona Heloisa.
Ela, no Rio de Janeiro; ele, em Belém ou em alguma aldeia indígena. Ao longo de dez anos,
depois de cada choque vem a calmaria, que se expressa no tratamento formal, distante,
profissional. É por isso que, na mesma carta de fevereiro de 1935 em que revida o tom
peremptório de Nimuendajú, dona Heloisa responde friamente suas perguntas.

Galinho de briga, Nimuendajú reafirma seus argumentos. Decide, porém, separar as


figuras de diretora do museu e de membro do Conselho de Fiscalização: “O que prometo é
que nunca mais irritarei a senhora com tais assuntos. Dirigir-me-ei, se necessário for,
diretamente ao presidente do Conselho, consciente de que este me atenderá se assim
entender. Longe de mim porém de causar conscientemente aborrecimentos a quem me tratou
com tanta gentileza e tantas vezes já se esforçou para ajudar-me nos meus trabalhos”.
Mas a solene decisão vira logo apenas uma futura intenção: ”Com este mesmo correio,
remetto [sic] ao presidente do Conselho o pedido de autorização para a viagem. Como não
me foi possivel obter o endereço do Conselho, dirigi esta carta aos cuidados da Snra.,
pedindo-lhe que faça chegá-la às mãos do destinatário”.18
Neste episódio, fica evidente a colisão de interesses por parte de dona Heloisa, que
dirige o Museu Nacional, mas também é membro do Conselho de Fiscalização. Como se
desenrola esse processo: é a própria dona Heloisa quem, em nome do Conselho, avaliza as

17
Rio de Janeiro, 02/02/1935, MN.
18
Belém, 09/02/1935, MN.
213

viagens de Nimuendajú, cujas coleções ela se compromete a comprar, agora no papel de


diretora do Museu Nacional.

Dona Heloisa adverte Nimuendajú que ele pode ser considerado leviano.

Idêntica duplicidade de papéis se dá com Carlos Estevão. Como diretor do Museu


Emilio Goeldi, encomenda oficialmente coleções a Nimuendajú e, em caso de necessidade,
financia particularmente as expedições. Mas quem avalia se o colecionador cumpre as
disposições legais do Conselho, no que diz respeito a coleções embarcadas em Belém, é o
mesmo Carlos Estevão.
Existe, na verdade, mais um degrau: na instância superior, no plenário do Conselho,
Nimuendajú conta com sua fiel aliada, dona Heloisa, que representa o Museu Nacional no
órgão fiscalizador.
Nos interstícios da responsabilidade legal, gesta-se uma inusitada relação entre
Nimuendajú, Carlos Estevão e dona Heloísa. É quase uma cumplicidade, que se mantém até a
214

morte de Nimuendajú em 1945. Os dois cientistas em cargo de direção na burocracia


brasileira vão ajudar e proteger Nimuendajú nos embates que ainda virão com a ala mais
nacionalista do Conselho de Fiscalização.Certamente que tudo isto é do conhecimento dos
outros membros do Conselho. Ao ponto que é dona Heloisa quem, na qualidade de relatora
do Conselho, aprova a expedição de Nimuendajú aos Canela em 1935, que renderá peças ao
Museu Nacional.
Autor de um estudo sobre o Conselho, Luiz Grupioni opina que as relações de
Nimuendajú com esse órgão de controle nesse período são “exemplares, de mútua
cooperação – o Conselho cumpre seu papel de fiscalizador à medida que também faz contatos
com delegados e autoridades nos Estados para facilitar suas expedições [de Nimuendajú]”.19
Para azar de Nimuendajú, a bonança só dura até o início da década de 40. A exaltação
do elemento nacional (especialmente o indígena) na literatura da década de 20 transforma-se
no nacionalismo que alimenta a Revolução de 30.
Os reflexos da Segunda Guerra Mundial no Brasil acirram essa tendência ideológica
de violência verbal ao que é considerado alienígena nos anos 40. Um exemplo dessa
virulência é o livro do tenente Hugo Bethlem, publicado em 1939. Trata-se de uma narrativa
de “viagem cívica” pelo Vale do Itajaí, em Santa Catarina, colonizado por alemães e seus
descendentes: “Cinqüenta anos de República irresponsável e alguns anos de descuido do
Império permitiram que os núcleos de colonização estrangeira se transformassem em
verdadeiros quistos raciais; ameaçadores de nossa soberania, centros de divulgação e
irradiação de ideais alienígenas, soluções de continuidade do espírito nacional”.20
Pesquisadora do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, Giralda Seyferth
explica que essa virada nacionalista atinge tanto as colônias no interior (tidas como as mais
distantes da sociedade brasileira) quanto as cidades onde as organizações de caráter nacional
ou étnico eram mais visíveis. É por isso que a legislação do Estado Novo obriga as chamadas
“escolas estrangeiras” a modificar seus currículos e manda demitir os professores tidos como
“desnacionalizados”.
A escola que não se adapta às exigências é sumariamente fechada. A partir de 1939, o
controle já inclui a imprensa em língua estrangeira e entidades recreativas, esportivas e
culturais de imigrantes. O cúmulo dá-se com a proibição do uso em público de outra língua
além da portuguesa, incluindo atividades religiosas. Claro, dá-se também o recrutamento dos
jovens de origem estrangeira para o serviço militar obrigatório.

19
GR, p. 201.
20
Bethlem, 1939:139 IX, in Giralda Seyferth, A assimilação dos imigrantes como questão nacional, in Mana v. 3
n.1, Rio de Janeiro, abril 1977, p. 1.
215

Lição prática de integralismo

Esta transformação político-ideológica também chega ao Conselho de Fiscalização: o ano de


1939 se encerra com uma reformulação da composição de seus membros titulares. A facção
que favorece a concentração institucional no órgão federal assume a liderança, até então em
mãos de pessoas a favor dos institutos de pesquisa, como dona Heloisa, que prioriza o papel
do Museu Nacional. Símbolo da ala vitoriosa é Bertha Lutz, também funcionária do Museu
Nacional, partidária do fortalecimento do Conselho como órgão de âmbito nacional, acima
das entidades nele representadas. 21
Logo Nimuendajú sente o que significa essa alteração no Conselho. Retornando em
abril de 1940 de sua viagem aos Gorotire, tem de apresentar o seu relatório sobre esses
indígenas do Xingu. Ele pressente que a crítica situação desta tribo tem um potencial
explosivo no seio do Conselho e confidencia seu dilema ao etnólogo norte-americano Robert
Lowie: “Ainda devo escrever o relatório ao SPI, não devo mentir, mas também não posso
contar a verdade”.22
Finalmente, cria coragem e resume, em 17 páginas, as contradições sociais, culturais e
o ambiente psicológico nessa região do Xingu. Brancos e caboclos assaltam e queimam
aldeias indígenas; seus moradores são assassinados. Grupos indígenas como os Kaiapó
reagem, matando seus agressores. Nos momentos em que não ocorrem atos de violência
ostensiva, os brancos lembram satisfeitos os massacres que perpetraram, relatos ouvidos pela
população sertaneja.
Nimuendajú apresenta as consequências de decisões políticas, tomadas pelos vários
níveis de governo, e também aponta as razões que levaram a esse estado de coisas no Xingu.
Mais ainda, ele toca no nervo exposto do Estado Novo – a pouca penetração das decisões do
poder central nos estados e municípios. Um resumo de suas conclusões mostra iso muito
claramente:23

(...) a falta de autoridade do encarregado numa zona onde a realização do direito é


ainda deficientíssima, para não dizer nula. Eu mesmo assisti como o assassino de um índio e
seus cúmplices denunciados por Pedro Silva foram intimados pelo juiz de direito de Altamira
a se apresentarem. (...) O regatão sírio Assad Curi porém resolveu o caso satisfatoriamente:

21
GR, p. 203.
22
Belém,12/04/1940, CS, p. 299. Por lei, ele deve prestar contas ao Conselho de Fiscalização.
23
Nimuendajú, Curt, Viagem de reconhecimento aos índios Gorotire-Kayapó do Rio Xingu, 1939-1940, filme
115, MI , p. 16. O documento leva data de 18/04/1940.
216

‘ninguém assina o papel [intimação judicial] e nem se apresenta. Eu, na minha próxima
viagem a Belém, vou arranjar tudo lá com o chefe de polícia’. E parece que arranjou mesmo.
Nestas condições, a afixação do decreto federal n. 5.484 de 1928 que dá garantias aos índios
torna-se um ato quase ridículo aos olhos dos moradores. A isto alia-se a carência de recursos
financeiros do SPI, o que impede uma ação intensiva e constante em zonas de difícil acesso,
onde o transporte é caríssimo. A ausência de pessoal suficiente para nomerar encarregados
locais do órgão de proteção aos indígenas aumenta a sua ineficiência operacional.

Nos seus mais de trinta anos de etnólogo, Nimuendajú já denunciara situações


semelhantes, sem ser perseguido publicamente. Neste início da década de 40, o relatório cai
como uma bomba no rarefeito ambiente da sociedade brasileira e do Conselho de
Fiscalização. Impossibilitados de reduzir o poder dos “coronéis” na política estadual, os
membros do Conselho, da alçada federal, optam por combater o denunciante, sem tocar nas
feridas expostas no relatório. Nascido na Alemanha, Nimuendajú passa a ser um ótimo alvo
para a crescente onda nacionalista, que não admite lições nem de civismo nem de moral desse
brasileiro naturalizado.
Em reunião do Conselho do dia 2/7/1940 no Rio de Janeiro, a representante do Museu
Nacional, Berta Lutz, que também preside a sessão, afirma que Nimuendajú exorbitara de
suas funções científicas, criticando as autoridades locais. O conselheiro Carlos Flexa Ribeiro,
que relata o pedido de Nimuendajú para viajar pelo rio Araguaia, emite parecer favorável à
concessão de licença para uma nova expedição. Ele o descreve como uma pessoa que “há
muitos anos vive no Brasil, no meio dos selvagens da região amazônica, e é um amigo do
nosso país“.24
O aparente desconhecimento por parte de Flexa Ribeiro de que Nimuendajú possui a
nacionalidade brasileira prenuncia o que ainda vem pela frente. Na reunião seguinte, ele
muda de posição e critica não o relatório, mas diretamente o “sr. Kurt”, como passa a chama-
lo daí em diante: “Quanto aos civilizados, propriamente, o sr. Kurt faz crítica acerba. E no
tocante a certas autoridades brasileiras chega a parecer um libelo a acusação que lhes irroga,
tanto às administrativas, como às políticas”.
Seu parecer é um torniquete ideológico, que poderá ser usado daí em diante a qualquer

24
GR, p. 204. Filha de pai suíço e mãe inglesa, Berta Lutz tornou-se, aos 25 anos, a primeira funcionária
graduada do Museu Nacional em 1919, cf. http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/feminismo/bertha-lutz.php
acessado em 11 de abril de 2011.Carlos Otávio Flexa Ribeiro nasceu em Belém em 11 de agosto de 1914,
formou-se em Direito no Rio de Janeiro em 1935. Foi diretor de Educação da Unesco e deputado pela UDN e
pela Arena. Morreu em 6 de agosto de 1991 no Rio de Janeiro, cf. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós
1930. 2ª ed. Rio de Janeiro, FGV, 2001.
217

momento. Mesmo favorável à concessão da licença de pesquisa, Flexa Ribeiro propõe que os
futuros relatórios sejam “informes sociológicos exclusivamente [sic] obtidos nos grupos
indígenas”. Sem mencionar as coleções dos Gorotire entregues aos museus Nacional e Emilio
Goeldi, exige de Nimuendajú uma nova coleção. Berta Lutz, mais radical, vota contra a
autorização, que, contudo, é concedida, nos termos apresentados pelo relator.25
Termina assim a hegemonia de dona Heloisa e do Museu Nacional no Conselho de
Fiscalização. Começa o cerco xenófobo contra Nimuendajú. Seu delicado e nevrálgico
relacionamento com o Conselho de Fiscalização vai se tornar mais complexo ainda. Porém,
para ele a realidade do sertão é mais forte do que a das decisões tomadas no Rio de Janeiro.
Cansado de esperar pela autorização para ir ao Araguaia, que só foi dada em 12 de julho de
1940, ele embarca num navio para lá ainda no dia 22 de junho.

Sem relatório de pesquisa, porque a tribo deixou de existir.


No Rio de Janeiro, ninguém percebe o drible. Ele completa a magistral jogada com
um relatório de viagem, onde cita, sem criticar autoridade alguma, um caso mais dramático
ainda do que o dos Gorotire: “Feita [a expedição] com o fim de estudar um núcleo de índios

25
Reunião de 12/07/1940, GR, p. 204.
218

Caiapós [sic] que existia ao Oeste de Conceição do Araguaya [sic], nos rios Pau d’arco e
Arraias, tive de constatar que ele [o grupo de indígenas] já não existe mais”.26

Nimuendajú desafia o Conselho de Fiscalização

A relativa cordialidade no Brasil científico-estatal dos anos trinta também deixa de existir
na década seguinte. Agora vigora a nova realidade, a da desconfiança, a do controle. O
Conselho exige que todo material etnográfico coletado por ele seja vistoriado pelo delegado
estadual desse órgão. O consolo da medida draconiana é que está esclarecida, indiretamente,
a pergunta de Nimuendajú a dona Heloísa em 1935 sobre a propriedade das coleções: as
peças serão avaliadas pelo Conselho, que determinará que instituição brasileira receberá
quais objetos.Os museus estrangeiros só poderão receber duplicatas existentes dos
originais.27
Desorientado, consulta a grande aliada, que conta: “Eu não estou mais no Conselho de
Fiscalização”. Dona Heloisa, porém, mantém a política de apoio: “O Museu Nacional poderá
patrocinar sua excursão, solicitando eu mesma a permissão. Para justificar a medida, eu
poderia declarar que o senhor à sua volta forneceria ao Museu Nacional um relatório geral da
viagem e que as coleções me serão oferecidas à venda. (...) Eu tenho facilidade em obter
urgência para a solução do caso”.28
Animado pela resposta, Nimuendajú pede autorização ao Conselho para realizar
estudos de sociologia e religião dos indios “Tukuna” e tribos vizinhas, no rio Solimões, com
financiamento norte-americano via Lowie. Fiel ao seu impulso de esclarecer situações, mas
também disposto a brigar, Nimuendajú decide enfrentar o Conselho.
No mesmo documento, lista os objetos por ele coletados e entregues a museus
nacionais e estrangeiros, de 1934 a 1940. Sua conclusão é que a maioria, em torno de 80 %
de pouco mais de 2 mil 600 itens, encontra-se no Brasil. Depois, declara a inocuidade da
determinação do Conselho de Fiscalização de que as coleções serão divididas pelo delegado
regional: “No mais, o atual delegado do Conselho de Fiscalização no Pará, Dr. Carlos
Estevão de Oliveira, já muito antes de existir um Conselho de Fiscalização, tinha costume de
visitar-me em casa cada vez que eu voltava de uma excursão para discutirmos o material
trazido por mim”.29

26
Belem do Pará, 22/06/1940,CS, p. 200 e GR, p. 206.
27
GR, p. 205.
28
Rio de Janeiro, 19/11/1940, MN.
29
Belém, 26/11/1940, in GR, p. 207.
219

Insatisfeito com tudo isso, ainda ironiza uma decisão do Conselho, numa alfinetada
dirigida diretamente a Flexa Ribeiro. Como a licença para viajar ao Araguaia autorizava a
expedição a deixar o Brasil pelo porto de Belém, ele devolve o golpe: “(...) sendo eu cidadão
brasileiro, estabelecido no país há 37 anos, não tenciono absolutamente deixá-lo”.

Em carta, ironiza o Conselho e alfineta Flexa Ribeiro.

No dia 3 de dezembro de 1940, reúne-se o plenário do Conselho. Flexa Ribeiro lê o


pedido de licença de Nimuendajú. Imediamente retruca que a quantidade de peças
etnológicas coletadas não tem a ver com a qualidade destas. A representante do Museu
Nacional, Berta Lutz, propõe que esta distinção seja levada em conta quando da partilha das
coleções feitas pelo solicitante.30
Na sessão de 17 do mesmo mês, Flexa Ribeiro aceita o duelo. Primeiro, repete a
distinção entre quantidade e qualidade das peças coletadas feita na reunião anterior. O
raciocínio ainda subliminar de que Nimuendajú teria contrabandeado peças de valor
inestimável e deixado as insignificantes no país começa agora a tomar corpo.
O relator lê uma frase de Erland Nordenskiöld, diretor do Museu de Gotemburgo, de
que graças a Nimuendajú o museu sueco possui a “mais considerável coleção que existe fora

30
GR, p. 208. Flexa Ribeiro nada teria pessoalmente contra Nimuendajú, pois apenas seria o porta-voz da nova
tendência ideológica vigente no Conselho de Fiscalização, opina Grupioni, GR, p. 210.
220

do Brasil sobre o Amazona inferior”. Isto consta do livro de Nordenskiöld L’Archéologie du


Bassin de l’Amazon. Por essas inexplicáveis coincidências da vida, o livro fora dedicado
justamente a Nimuendajú.31
Contra essa declaração, só existe a afirmação de Nimuendajú de que enviara apenas
226 exemplares a Gotemburgo. Flexa Ribeiro passa a tecer ilações que mais parecem provas
contra Nimuendajú:

Convém ainda rememorar que o livro é de 1930 e que a carta do sr. [Nimuendajú] é
datada do mês passado. E logo nos assalta esta indagação: no interregno destes últimos dez
anos houve completa negligência do pesquisador erudito no tocando a novas remessas? (…)
Pois se há dez anos atrás já o museu de Gotemburgo era o mais rico, na seção arqueológica,
em espécimes amazônicos, como não se encontrará agora, decorrido um decênio? Ou será
que o sr. Nimuendajú, dez anos volvidos, possuía tais exemplares, e de tamanha valia, que
antes de atingirem a soma de 226, já tinham força para fazê-lo o dono do melhor quinhão?
(…) Como aferir o valor intrínseco e extrínseco de um objeto arqueológico pela simples
designação de quantidade?

O refinado argumento de Flexa Ribeiro lança a suspeita de que Nimuendajú estaria


burlando a legislação vigente no país. Não há acusação concreta, simplesmente porque a lei é
omissa quanto a qualidade ou raridade de peças etnográficas ou arqueológicas.
A mera insinuação, lançada no rarefeito ambiente xenófobo brasileiro do início da
década de 40, já constitui a condenação inapelável do suspeito. O réu virtual é apresentado
por Flexa Ribeiro como “estrangeiro, mas alemão, embora naturalizado“.
O relator propõe, e os membros presentes do Conselho aprovam, que sejam
redobrados os controles sobre Nimuendajú: “dada a importância do colecionador”. Assim,
todas as coleções feitas por ele devem ser enviadas ao Rio de Janeiro e o Conselho decidirá o
que cada museu irá receber. É uma clara intromissão ideológica na liberdade do pesquisador
de organizar coleções conforme critérios científicos.
Consuma-se assim o cerco pessoal a Nimuendajú. É a ideologia do extermínio
individual que entra em ação. A partir de agora, praticamente toda atitude ou ação dele será
suspeita para os membros do Conselho de Fiscalização. Porém, antes do início da viagem
autorizada aos Ticuna, Nimuendajú ainda articula com Carlos Estevão o jeito de driblar o
novo controle estabelecido.

31
GR, 208. O livro de Nordenskiöld é citado em DU, p. 242.
221

Assim, o diretor do Museu Emilio Goeldi (e representante desse Conselho no Pará)


comunica ao Conselho que o museu decidiu patrocinar a expedição aos Ticuna e encomendar
uma série de objetos para completar uma coleção já existente. Com isso, não seria preciso
enviar as peças ao Rio de Janeiro para partilha.32
Flexa Ribeiro percebe a jogada de Carlos Estevão e mantém a decisão de que as
coleções deverão ser depositadas no Conselho, no Rio de Janeiro, para divisão a critério do
órgão. Carlos Estevão alerta que a medida irá prejudicar, de maneira injustificável, o Museu
Goeldi. Ele argumenta que, moralmente, seria tratar uma coleção científica do museu como
se fosse produto de uma atividade clandestina.
Materialmente, mesmo que o Conselho pagasse as despesas de transporte da coleção
até o Rio de Janeiro e daí a Belém, o Goeldi ficaria com o prejuízo, científico e econômico,
das peças frágeis que forem danificadas, como as de cerâmica e plumas.33
Ele ainda adverte que isso será um atropelo institucional, na medida em que um órgão
federal pretende determinar o destino do patrimônio de um instituto da alçada estadual. Para
mostrar que o enfrentamento é para valer, demite-se do cargo de representante do Conselho
no Pará.
A solução para o imbroglio institucional surge quando o interventor do governo
federal no Pará, José Malcher, amigo de Nimuendajú, viaja ao Rio de Janeiro. Em reunião de
27 de maio de 1941, o Conselho volta atrás e decide que a coleção a ser feita por Nimuendajú
para o Emilio Goeldi seja entregue em Belém. A parcela destinada a exportação seria enviada
ao Rio de Janeiro para avaliação e partilha. Assim, o governo de Getulio Vargas apaga logo o
incêndio de uma rebelião estadual, que poderia se espalhar rapidamente a outras capitais.
Vitória para Nimuendajú, Carlos Estevão e a ala independente dos institutos de
pesquisa no Conselho. Ela é coroada pelos resultados das coleções feitas entre os Ticuna. Em
4 de novembro de 1941, Nimuendajú apenas comunica ao Conselho que o Museu Emilio
Goeldi recebe 275 peças dos Ticuna e o Nacional, um total de 272. Sem saldo a exportar,
nada havia para o Conselho partilhar no Rio de Janeiro.34
Esta vitória, contudo, já carrega o germe da próxima escaramuça institucional e
pessoal. De fato, o momento é simplesmente de trégua. Nimuendajú expõe as marcas
anímicas desse confronto. Triste, escreve para Lowie: “Todo e qualquer elogio do exterior
gera para mim mais problemas do que traz alguma vantagem. O pior é quando se fazem

32
Carta de Carlos Estevão ao Conselho, de 15/02/ 1941, GR, p. 212. Nimuendajú pensa que poderia ser
nomeado etnólogo dos museus Nacional e Emilio Goeldi. Com isso, deixaria de ser controlado pelo Conselho.
Se falhar, iria pesquisar os Ticunas na Colômbia e no Peru, Belém, 06/02/1941, DU, p. 307.
33
Parecer de 11/03/1941 e carta de Carlos Estevão, 18/04/1941, ambos em GR, p. 212.
34
GR, p. 214 e 215.
222

referências ao meu trabalho para o Museu de Gotemburgo. Apesar da minha naturalização


em 1922, ainda sou um estrangeiro”.35

“Condenado” publicamente sem processo

Nesses dias, dona Heloisa comunica ao Conselho de Fiscalização que encomendara a


Nimuendajú nova pesquisa entre os Ticuna do Alto Solimões. Flexa Ribeiro, que relata o
pedido, decide reabrir as hostilidades. Ele afirma que Nimuendajú não solicitara a renovação
de sua licença de pesquisador nem tinha cumprido as exigências feitas para pesquisas
anteriores. Pede ao Conselho para oficiar ao Museu Nacional “para que aguarde a
regularização das obrigações contraídas com este Conselho, pelo referido cientista, para que
novas missões lhe sejam cometidas”.36
O novo pomo da discórdia é o relatório de pesquisa entre os Ticuna de 1941, que não
fora entregue ao Conselho. A situação de Nimuendajú é delicada. Já suspeito de
contrabandear objetos etnológicos para museus estrangeiros, agora teria sido pego
descumprindo as determinações do Conselho. O que bem poderia ser apenas uma zelosa e
atenta preservação dos interesses brasileiros mascara também motivos ideológicos.
Gruppioni chama a atenção para a atitude de Flexa Ribeiro: “É significativo que em
todos os seus últimos pareceres o conselheiro Flexa Ribeiro acentue que Nimuendajú é
etnólogo de nacionalidade alemã e brasileiro naturalizado”.37
Para complicar ainda mais a precária situação de Nimuendajú, os acontecimentos da
política mundial jogam lenha na fogueira. Em 1938, início da Segunda Guerra Mundial, a
classe política brasileira oscilava entre o bloco daqueles que apoiavam os Estados Unidos e
dos que queriam a neutralidade (que inclui simpatizantes do nazismo ainda vitorioso na
Europa). Quatro anos mais tarde, o Brasil rompe relações diplomáticas com a Alemanha,
Itália e Japão. Em 18 de fevereiro de 1942, submarinos alemães afundam dois navios
brasileiros. A indignação popular é enorme. No dia 24 do mesmo mês, um terceiro navio é
atingido. No dia seguinte, além de noticiar o ataque, O Globo publica uma notícia:

Suspensas as pesquisas do etnólogo alemão – Não poderá mais realizar trabalhos


para o Museu Nacional

35
Belém, 12/01/1942, DU, p. 318.
36
Respectivamente, 8 de janeiro e 4 de fevereiro de 1942, GR, p. 216.
37
GR, p. 216.
223

No dia seguinte, em Belém, Nimuendajú lê no jornal A Folha do Norte que “na


reunião do Conselho de Fiscalização de Expedições foi ventilado o caso do etnólogo Curt”. É,
de fato, um caso de sumária execução pública da honra de Nimuendajú, sem direito de defesa.

Informação confusa e tendenciosa atinge Nimuendajú.

Outros jornais republicam. Grupioni vê neste episódio o dedo dos xenófobos do


Conselho de Fiscalização: “Todas as matérias [dos jornais] trazem a resolução do Conselho e
a orientação dada ao Museu Nacional. Em todas [as notícias] é dito que o pesquisador é de
nacionalidade alemã”.38
A marota manipulação consiste em que, num mesmo texto oficial do Conselho de
Fiscalização, Curt Nimuendajú é apresentado, no início, como sendo cidadão alemão, e,
algumas linhas depois, transformado em alemão “e brasileiro naturalizado”. A rigor, o
Conselho nem mentira nem falseara a verdade, mas a informação é confusa e tendenciosa.
Nimuendajú fica quieto nesse ninho que mistura marimbondos xenófobos e
nacionalistas nem tão xenófobos. É o brasileiro nato Carlos Estevão quem escreve em 28 de
fevereiro a dona Heloisa, filha do conservador pensador fluminense Alberto Torres. A
situação é estranha porque Nimuendajú não pedira autorização de viagem e também tinha

38
Ibid, p. 217.
224

enviado o relatório que Flexa Ribeiro afirma não ter recebido. À beira de mais um conflito
institucional, dona Heloisa pede ao ministro da Educação, Gustavo Capanema, que interceda
nessa nova briga entre o Conselho de Fiscalização, o Museu Nacional e Nimuendajú.
Em 13 de março de 1942, dona Heloisa explica que o pesquisador enviara de Belém,
em 4 de novembro de 1941, o relatório da viagem aos Ticuna desse mesmo ano. Como o
documento está extraviado, ela solicitou providências aos Correios e coloca a cópia que
possui à disposição dos membros do Conselho. Graças à intervenção de Capanema, em 7 de
abril de 1942, o Conselho de Fiscalização volta atrás e Nimuendajú visita os Ticuna.39
Mais uma vez, a ação política derrota a facção xenófoba do Conselho de Fiscalização.
Mais uma vez, Nimuendajú não espera pela autorização e em 6 de abril de 1942, um dia antes
da concessão ser dada no Rio de Janeiro, já viaja para o Alto Solimões. Lá é ser preso sob
suspeita de espionagem, mas liberado sem provas.
O abatido Nimuendajú volta a Belém e durante três anos não empreende nenhuma
expedição. Somente após a derrota militar do nazismo na Alemanha em maio de 1945 é que o
Conselho de Fiscalização deixa de controla-lo. Ironicamente, sua última expedição aos
Ticuna no final de 1945 acontece inclusive com a rcomendação do Conselho. Mas
Nimuendajú falece justamente durante essa viagem.

Ainda que tarde, Conselho deixa de controlar Nimuendajú.

39
Ibid, p. 220. Posteriormente, os Correios devolvem o exemplar extraviado, que é entregue ao Conselho de
Fiscalização.
225

Mesmo depois de morto, em certos círculos sua imagem continua sendo a de um


estrangeiro, de um “alemão”. Ainda em 1945, ao noticiar o seu falecimento, o jornal A Tarde,
de Manaus, publica:40

Faleceu Curt Nimiendajú! O ilustre etnólogo alemão pereceu vitimado por um


colapso, em São Paulo de Olivença.

Também no meio acadêmico persistem ecos dessa percepção. Em 2001, a professora


do Departamento de Antropologia da USP, Marta Rosa Amoroso, publicou uma resumida e
bem estruturada biografia de Nimuendajú. As primeiras linhas apontam esse traço marcante
de sua vida de ter nascido alemão e morrido brasileiro. No penúltimo parágrafo, ele volta a ser
alemão: “A presença do etnólogo alemão, articulando um discurso favorável aos índios,
reavivava naquelas sociedades a memória de jornadas passadas. Ali, quase um século antes,
estiveram outros europeus interessados nos índios (...)”.41
Em 2005, a pesquisadora do Museu Emílio Goeldi, Priscila Faulhaber, apresenta
Nimuendajú, como “etnógrafo alemão” no documento “O etnógrafo e seus ’outros’:
informantes ou detentores de conhecimento especializado?“. Este trabalho debruça-se sobre a
imagem que os Ticuna ainda tinham de Nimuendajú no final do século vinte. Em 2008, ela
repete a informação equivocada da nacionalidade quem trabalhou durante mais de 30 anos
justamente para o Museu Emilio Goeldi onde ela pesquisou durante longo tempo.42

Como era visto Nimuendajú pelos alemães de sua época? Além da amizade do
sociólogo Herbert Baldus, o único depoimento que eu achei foi o de August Brückner. Ele
esteve no Brasil em 1929, junto com sua esposa, a cineasta Pola Bauer-Adamara, enviados
pela então famosa distribuidora alemã Ufa, para filmar na Amazônia. O casal contrata
Nimuendajú para ir até as aldeias Ticuna do Alto Solimões. Nas anotações de 20 de julho de
1929 de seu diário de viagem, August avalia Nimuendajú:43

40
Edição de 17/12/1845, GR, p. 241.
41
Amoroso, Marta Rosa, Nimuendajú às voltas com a história, Revista de Antropologia, v. 44, nº 2, São Paulo,
2001, p.1.
42
Faulhaber, Priscila, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 35, julho-dezembro 2005, p. 113 e 121, e Etnografia na
Amazônia e Tradução Cultural: comparando Constant Tastevin e Curt Nimuendaju, no Boletim do Museu
Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 3, nº 1, jan.-abr. 2008, pp. 16 e 26.
43
Brückner, August, 3000 Kilometer auf dem Amazonas, Aus dem Tagenbuch August Brückners, Berlin, sd., p.
69. No dia 14 de agosto, outra anotação: “Os conhecimentos de Nimuendajú são imprescindíveis para a ciência,
que ele conquistou somente porque renunciou a ser europeu. Mesmo que se tenha alguma objeção a esta decisão,
ele deve seu conhecimento [sobre os indígenas] ao fato de ter adotado a língua, os costumes e os hábitos
indígenas”.
226

Não sabemos como ele realmente se chama. No Pará, é apenas conhecido com esse
nome. Certamente que no passado foi alemão, pois domina o idioma sem sotaque. Ele
conhece muito bem as peculiaridades [da cultura e política] alemãs. Mas ele virou índio
mesmo. Sua mulher também é uma indígena. Seu conhecimento etnológico é extraordinário.
(…) Sua vida será sempre um mistério, que ele o levará ao túmulo. É uma pessoa que diz de
preferência o que as pessoas querem saber dele, mas nunca [fala] dele e do seu passado.

No dia 5 de setembro, Nimuendajú diz a Brückner estar preocupado com ele. Sua
febre chega a 38,5 graus, a pele parece seca e fizera um escândalo desproporcional devido a
uma atitude impensada de Josua, acompanhante da expedição.A viagem é interrompida
devido à péssima saúde de August Brückner.
Três meses mais tarde, ele morre de malária e é enterrado em Belém. Pola Brückner
ainda faz tomadas na ilha de Marajó para os filmes que levaram o casal ao Brasil –
Urwaldsymphonie, lançado em 1931, e Die grüne Hölle, em 1930-31. A Carlos Estevão,
Nimuendajú conta que o casal não quis pagar o preço combinado pelo seu trabalho de guia e
intérprete.44
Os únicos registros de reconhecimento ao seu trabalho etnológico ainda em vida
provêm de estrangeiros. Repetindo um comportamento habitual, em 1938 Nimuendajú custa
a aceitar elogios de Alfred Metraux: “Eu sei que os meus resultados estão aquém dos de
Koch-Grünberg e Gusinde. O elogio que o senhor me fez – ‘turning point in the studies [sic]
of American Anthropology’ – não posso nem quero aceitar, na certeza de que (eu tenho esse
desagradável pressentimento) os outros pesquisadores irão rir disso”.
Ao contar o episódio a Lowie, recebe uma inesperada homenagem. O etnógrafo de
Berkeley afirma não conhecer ninguém na América do Sul que tenha produzido trabalhos
comparáveis às suas pesquisas sociológicas.45
Lowie mata a cobra e mostra o pau, numa certeira avaliação:

Não é exagero falar que os trabalhos do senhor marcam época, devido a três razões: 1)
as tribos Gê são decisivas para o estudo da América do Sul; 2) o senhor tem a rara habilidade
de conquisar a confiança dos índios; e 3) o senhor evita enfatizar apenas um [sic] aspecto
mais apreciado pelos mesmos, como a religião, mas atribui a mesma importância a todos os
aspectos da cultura, algo que na prática nem sempre é possível de atingir.

44
Ibid. p. 105, e carta de Nimuendajú p.143, CS.
45
Belém, 24/07/1938, p. 249, e Berkeley, 08/08/1938, p. 291, ambas cartas em DU.
227

Treze anos após a morte de Nimuendajú ocorrida em 1945, seus restos mortais foram
depositados numa igaçaba, na entrada da Seção de Etnologia do Museu Paulista, na
Universidade de São Paulo.
Aí ficou 23 anos. Até que, em 1981, a etnóloga de ascendência alemã, Thekla
Hartmann, venceu a burocracia e conseguiu realizar o enterro na capital paulista, no jázigo de
um amigo alemão de Nimuendajú.
O relato da etnóloga:46

Seus despojos encontram-se agora ao lado do jázigo de um amigo, a quem ofereceu,


nos idos de 7 de agosto de 1920, um exemplar do trabalho sobre os Apapokuva. Esse livro
de encadernação antiga está entre os meus mais caros guardados e apresenta anotações a
lápis, do próprio punho de Nimuendajú, inclusive uma dedicatória redigida em Belém, que
diz: ‘Ao meu querido, velho amigo Paul Alicke, lembrança da época das visitas de índios
em sua hospitaleira casa’.

46
Hartmann, Thekla, O enterro de Curt Nimuendajú, Revista do Museu Paulista, São Paulo, 1981/2 p. 190.
11 - As quatro pré-mortes

Mesmo antes do seu falecimento na segunda semana de dezembro de 1945, Nimuendajú já


experimenta fortes e sucessivos choques, que balançam os ideais que ele acalenta no mínimo
desde a sua chegada ao Brasil. São como que quatro pré-mortes, que acontecem nos seus
últimos quatro anos de vida.

Em 1942, Nimuendajú confessa: “perdi a razão de viver”.

A prisão: fim do ideal de ser aceito como brasileiro

A primeira pequena morte ocorre durante a sua longa estadia entre os ticunas no Alto
Solimões em 1942.
Ao chegar em maio ao igarapé da Rita, no município de São Paulo de Olivença, ele
fica sabendo que na região comenta-se que ele fora morto e degolado. O boato é espalhado
por Roberto Mafra, subdelegado de policia e primo do seringalista Antônio Roberto. A
campanha de difamação transforma fatos acontecidos em outros lugares em intrigas
locais. A descoberta em abril de um rádio clandestino de alemães que transmitiam dados
229

sobre navios ancorados na baía do Rio de Janeiro, vira peça acusatória em setembro na
floresta amazônica. Assim, pela boca dos seringalistas, Nimuendajú vira espião alemão,
escondido no igarapé da Rita e que usa o rádio para enviar informações secretas a Berlim.
Outra acusação dos seringalistas é que ele teria feito um mapa dos igarapés para os
bombardeios dos nazistas quando atacarem o Brasil e, por isso, o governo getulista estava
prendendo todos “esses alemães que andam se escondendo entre nós” e que no pais só
deveriam ficar “nós, os brasileiros”.1 Ainda em Belém, antes de começar essa viagem,
Nimuendajú pressente uma armação e confidencia ao etnólogo norte-americano Alfred
Metraux seu receio de ser perseguido pela polícia estadual do Amazonas. O golpe contudo
virá de militares de baixa patente.
Ele capta o primeiro sinal numa reunião com oficiais do Exército do destacamento em
Tabatinga, quando um tenente transforma a conversa “num verdadeiro inquerito com o fim
manifesto, não de informar-se sobre a minha pessoa e os meus trabalhos, mas de comprovar
por meio de perguntas maliciosamente insinuantes que eu era aquilo que ele queria que
fosse: um espião alemão”.2 Quatro meses mais tarde, esse militar seria o executor da prisão
ilegal de Nimuendajú.
Enquanto isso, o cenário político brasileiro muda de maneira radical. A ambiguidade
do presidente Getúlio Vargas de apoiar o governo norte-americano na Segunda Guerra
Mundial sem romper com a Alemanha nazista chega ao fim. O pretexto são novos ataques de
submarinos alemães a cargueiros brasileiros. Em agosto de 1942, o Brasil declara a guerra aos
países do chamado Eixo (Alemanha, Itália e Japão).
Pessoas dessas nacionalidades - e seus descendentes - são observadas, vigiadas,
perseguidas, encarceradas, inúmeras confinadas em campos de concentração. No Alto
Solimões, os descendentes de alemães não falam a língua dos antepassados nem cultivam suas
tradições, apenas herdaram sobrenomes como Müller e Günther.
Um juiz de São Paulo de Olivença afasta um policial, alegando que esse não deve
ocupar cargo público por ser de origem alemã. Pelo mesmo motivo, o comandante de um
barco nega o embarque a pessoas em situação parecida. Nimuendajú se pergunta: se isso
acontece com brasileiros nascidos no Brasil, o que seria para quem nasceu na Alemanha
mesmo e fala com sotaque carregado? Será aceito no barco de retorno a Manaus? 3

1
Cartas de Igarapé da Rita, 09/05/1942 p. 308 e Igarapezinho, 12/06/1942, p. 311, ambos CS. Em 1915 e em
1923, ele já se defrontara com o fantasma da suspeita de espionagem.
2
Belém, 01/02/1942, MN. e CS, p. 310. Prevendo dificuldades, Carlos Estevão tinha recomendado Nimuendajú
a Balié Monteiro, chefe do destacamento do Exercito em Tabatinga, cf. CS, rodapé 222, p. 382.
3
Igarape da Rita, 03/09/ 1942 CS, p. 327. Dias antes, lera a carta de Carlos Estevão, de 26/08/1942, onde ele
informa sobre a iminência da guerra, GR, p. 225.
230

Na verdade, o retorno é muito diferente – e muito pior – do que Nimuendajú poderia


temer. No dia 20 de setembro de 1942, ele se despede dos Ticuna, coloca sua bagagem em
duas canoas e se dirige à cidadezinha de Santa Rita, à margem do Solimões. Quatro dias
depois, já esta instalado, sem problemas, no barco a vapor Aimoré.
No dia seguinte, o agressivo ambiente contra alemães na região torna-se uma licença
de fato para seus inimigos agirem à vontade: 4

(...) pela manhã fizemos escala em Santo Antônio do Içã onde agora se acha o
destacamento federal que no ano passado estava em Tonantins. E estando eu sentado no salão,
apareceu-me o capitão Osvaldo Camargo Novaes, o mesmo com que [quem] tive aquela
entrevista desagradável em Tabatinga, em casa do Ten. Baliú, dando-me voz de prisão e
entregando-me a um sargento para ser conduzido preso a Manaus. Este sargento era o mesmo
cujas exigências descabidas eu tinha me negado a atender em Tonantins, no ano passado, mas
o comandante Amorim telegrafou logo à SNAPP e creio que desta maneira o Snr. [Carlos
Estevão] tambem ficou ciente do ocorrido.

A prisão a bordo dura cinco dias. No dia 30 de setembro, o navio aporta em Manaus.
A violência da detenção no Alto Solimões contrasta com a amabilidade com que é tratado por
militares e policiais. Também pudera: Carlos Estevão, diretor do Museu Emilio Goeldi,
conseguira uma recomendação do comandante da Região Militar de Belém, a quem os
militares de Manaus estão subordinados.
Nimuendajú reencontra um tenente que fora comandante de um batalhão de fronteira
em Tabatinga, o comandante militar de Manaus entrega-lhe pessoalmente as chaves de suas
malas. Na delegacia de polícia, cita seus desafetos e as razões da inimizade dos seringalistas
contra ele. Nimuendajú abandona a delegacia imediatamente depois. Aparentemente tudo está
acabado, sem grandes prejuízos.
Em sua primeira carta em português, devido à censura em época de guerra, ele narra a
Lowie o repúdio que sofre no Brasil: “Minhas perspectivas futuras são muito tristes, não me
vejo em condições de me sustentar com o meu trabalho. Só tenho recursos [econômicos] até o
final do ano. Nos Estados Unidos sou avaliado pelo meu desempenho, aqui sou visto como
um estranho”.5

4
Manaus, 01/10/1942, CS, p 331. SNAPP significa Serviços de Navegação do Amazonas e Administração dos
Portos do Pará.
5
Belém, 26/10/ 1942, DU, p. 320.
231

Ele é tido como espião nazista, a serviço do país onde nascera contra a nação que
escolhera para ser sua pátria. A xenofobia grassa tanto nas grandes cidades quanto no interior.
Mesmo autorizado a trabalhar sem qualquer restrição formal, uma expedição exigiria gastar
mais energia em desfazer suspeitas e se defender de acusações infundadas do que
propriamente dedicar-se a tarefas etnológicas. Com trabalho e recursos garantidos só para dois
meses, confessa a Baldus a sua crise existencial: “A situação em que fiquei (...) é muito triste:
perdi, a bem dizer, a minha razão de ser, e não sei como hei de viver”.6
É demais para ele. Intimamente quebrado, impõe-se um auto-exílio em sua casa, em
Belém. São quatro meses de profunda depressão. De outubro a dezembro de 1942, não tem
forças para conferir anotações ou rever peças coletadas. Ele fica na rede, tentando entender o
desencontro entre seu sentimento de brasileiro e o fato de que alguns setores do país onde
mora 40 anos o tratam como inimigo mortal.

Foto de 1986 da casa onde Nimuendajú morou em Belém.

Aos poucos, retoma as atividades que são uma parte de sua razão de ser. No início de
fevereiro de 1943, surge uma nesga de luz no seu escuro túnel existencial: ele recebe o seu

6
Belém, 22/11/1942, MN.
232

recém publicado livro The Serente, enviado por Lowie. Mas não consegue articular uma
resposta ao seu parceiro norte-americano.
No dia 12 desse mês, vence por algumas horas esse estado de prostração e conta a
Lowie que mal consegue avançar com o original sobre os Tucuna. Sim, já tem 200 páginas
escritas a lápis, mas sem prazo de conclusão. Neste mesmo dia, em carta ao antropólogo
norte-americano Julian Steward, diz estar na insustentável e vergonhosa situação de viver uma
vida perdida. Em 10 de março, ele envia o manuscrito de The Tukuna a Lowie e tenta
entusiasmar-se: “são ao todo 146 páginas, com um número enorme de fotos e resumos. (...)
Agora vou escrever alguns artigos para o HSAI [publicação etnológica patrocinada pelo
governo norte-americano]”.7
Mesmo assim, recusa a segunda oferta de Baldus de se mudar para São Paulo. Em
1939, já dissera “não” à hipótese de dar aulas de Etnologia na USP porque não quer ser
acadêmico. Em 1943, tem argumentos bem diferentes para repetir a negativa: artigos pagos
não são uma alternativa real porque no momento nada tem para publicar, mora na sua
modesta casa em Belém, onde conhece o meio social. Mas principalmente paira a quase
certeza de que em São Paulo sofreria o mesmo acosso xenófobo que o atinge na floresta
amazônica. Efetivamente, a caça às bruxas contra descendentes de alemães, italianos e
japoneses acontece em âmbito nacional.
Meses depois, queixa-se a Lowie da sua penúria econômica: “Mal consigo sobreviver
com os pequenos artigos para o Museu Paraense [Emilio Goeldi] e [para] Steward. Não sei
como vai ser daqui em diante. Minha situação tem piorado cada vez mais. No museu não sou
mais tratado como antigamente. (...)”.8 Assim, quando Steward informa que o mapa etno-
histórico será dividido em três seções para publicação e impresso somente em preto e branco,
sua mal-humorada reação é: “Quando às modificações no mapa, faça como o senhor achar
melhor”.
Nimuendajú se revolta com a sua situação em que vive, admite a Metraux: “Dias atrás,
o general Rondon me convidou a assumir a direção de uma expedição aos Bororo, Umatina e
Bakairi. (...) Eu apenas espero a passagem aérea para viajar ao Rio de Janeiro (não
divulgue!!!) Infelizmente empobreci de tal maneira que me falta o básico [de roupa e calçado]
e sinto vergonha de me apresentar desta forma no Rio de Janeiro, além de que minha casa
ficará sem auxílio [econômico]”.9

7
DU, p. 320, GR, p. 226 e Belém, 11/03/1943, DU, p. 321.
8
Belém, 14/06/1943, DU, p. 322.
9
Carta a Steward é de 12/08/1943, p. 332 e a Metreaux de 10/07/1943, p. 253, ambas DU.
233

Saúde precária mata aspiração de influir no SPI...

O segundo choque letal dá-se em meados de 1943, justamente quando aceita o convite do
general Cândiro Rondon de ir ao Rio de Janeiro. Sua antiga tese de que o SPI precisa de
etnólogos em cargos de direção finalmente se impõe entre os militares que mandam no órgão.
Até então, a participação de civis no SPI era muito restrita.
Em carta a Baldus, Nimuendajú conta que um funcionário do governo ficou
impressionado com o fato do órgão norte-americano de assuntos indígenas ter orientação
científica. Mas o SPI negara-se a aceitar a participação de etnólogos e a solução foi criar o
Conselho Nacional de Proteção aos Índios, embora sob a chefia de um militar, o general
Rondon. Como nem o general nem qualquer civil têm experiência em estudos etnológicos,
deixou-se de lado a questão científica. Mas como havia recursos financeiros disponíveis, o
CNPI comprou equipamento de filmagem e enviou uma equipe para a área de origem do
general Rondon, no atual Mato Grosso do Sul.
Segundo Nimuendajú, a chefia ficou a cargo de “Harold Schultz, brasileiro nato de
origem alemã, bastante habilidoso, ativo e inteligente, e que pelo menos conhece as obras de
Steinen e Koch-Grünberg. (...) Apesar do senhor Schultz ter feito mais do que era de se
esperar de um homem inteiramente novato no campo da etnografia, o resultado não podia
justificar de forma alguma a existência de um Serviço Etnológico do CNPI e da respectiva
verba. Só então que resolveram chamar a mim [sic]”.10
Mesmo o honroso convite do general Rondon para chefiar o Serviço Etnológico tem
um laivo de amargura, revela Nimuendajú:

Porque a mim? Ninguém do SPI nem do CPI jamais leu uma linha do que eu escrevi,
nem conhece sequer o título de qualquer publicação minha. Mas o coronel Jaguaribe, membro
do CNPI e chefe do serviço de Acabamento da Carta do Mato Grosso, no Estado Maior do
Exército, quando esteve na França há alguns anos atrás ouviu do boca de (Paul) Rivet um
juízo sobre as minhas contribuições ao Journal de la Societé des Américanistes que foi o
suficiente para convence-lo [a Jaguaribe], e com ele todo o CNPI de que eu era uma sumidade
em etnologia e o único no Brasil capaz de cobrir com o seu renome científico.... a verba!
Mesmo depois de assentado isto ninguém ainda achou que valesse a pena verificar uma vez
em que se baseava semelhante juízo.

10
Belém, 10/11/1943, MN.
234

“Ninguém do SPI (...) jamais leu uma linha do que eu escrevi”.

Sua conclusão sobre o futuro do recém criado órgão é sombria. Ele insinua que a
ênfase na filmagem de indígenas revela mais uma intenção propagandística do que interesses
científicos:11

O que se esperava de mim era que traçasse vistosos programas de trabalhos de largo
fôlego, executados por meio de grandes expedições, mas ninguém tinha a menor idéia como e
em que condições um etnólogo deve trabalhar em campo para obter um resultado que
satisfaça mais ou menos as exigências da etnologia moderna. Julgavam tal resultado garantido
pelo aparelhamento cine-fotográfico que tinham adquirido. (…)

Apesar das dúvidas quanto à viabilidade do trabalho no CNPI, ele quer negociar. Em
julho de 1943 voa ao Rio de Janeiro para decidir a questão. No aeroporto militar do Galeão, é
recebido pelo general Rondon, o coronel Jaguaribe e a diretora do Museu Nacional, Heloisa
Alberto Torres.

11
Ibid. Em 1995, o antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima acentua o lado midiático da ação militar voltada
para os índios, cf. Lima.
235

Nas discussões dos dias seguintes, Nimuendajú coloca claramente sua posição. Não
seria possível fazer nenhum tipo de trabalho etnológico enquanto o jovem etnólogo Harald
Schultz quiser filmar ao mesmo tempo, junto com cinco ajudantes, as tribos visitadas. Seria
gente demais para ganhar a confiança dos índios.
Um coronel presente exige que ele aceite essas condições e ainda leve alguns
estudantes de etnologia juntos. Mas Rondon concorda com Nimuendajú, embora o salário
inicialmente proposto em telegrama fosse reduzido em 20 por cento.
O que seria o coroamento de sua vida não acontece. No lugar disso, sobrevém um
obstáculo intransponível, que inviabiliza tudo o que fora penosamente acordado. Em meio às
negociações no Rio, Nimuendajú tem um ataque de glaucoma, que quase o deixa cego.
Aliás, sua primeira expedição, no agora longuínquo ano de 1904, fora interrompida
exatamente por causa de uma severa inflamação dos olhos. Em 1943, apesar da recuperação
parcial da visão, exames de rotina revelam, por outro lado, agudos problemas digestivos, diz a
Baldus: “(...) os médicos chegaram à conclusão de que o meu estado sanitário [de saúde] era
tal que eu devia abandonar de uma vez e para sempre a minha vida de sertão e de convivência
com os índios”.12
Paradoxalmente, é justamente o desgaste do seu engajamento de exatos 39 anos entre
indígenas em mais de 13 Estados que o impede de transformar sua experiência no mato em
direção estratégica do órgão estatal indigenista. No lugar da almejada influência científica e
civil no SPI através do CNPI, surge um minguado acordo com o Museu Nacional para
traduzir suas obras ao português e colaborar com o general Rondon no CNPI.
Mas pelo menos sente-se protegido contra seus adversários, diz a Lowie: “Isto me
daria um pequeno salário mensal, mas também proteção contra as maldades dos últimos anos.
No Rio não conheci nada das perseguições a que me vejo submetido aqui. Ao contrário, civis
e militares me trataram com grande consideração”.13

... e provoca o fim das expedições

A mesma razão que impede a posse de Nimuendajú como primeiro etnólogo em cargo de
chefia no órgão estatal indigenista o obriga a abandonar a vida do sertão. Esta é a terceira
pequena morte. De volta a Belém no dia 15 de outubro de 1943, cai novamente num estado
depressivo, que o impede de comunicar-se com seus missivistas.

12
Belém, 10/11/1943 MN.
13
Belém, 06/11/1943, DU, p. 324.
236

A única exceção é dona Heloisa, que a tudo assistiu no Rio, e a quem agora pede
ajuda: “Não é possível achar [em Belém] o medicamento receitado pelo meu médico [do Rio
de Janeiro]. Lembrando-me da sua cordial proposta, peço a gentileza de me enviar cinco
vidros de piperasina Midy. Até agora estou sobrevivendo à custa de uma dieta à base de leite
e frutas”.14
Somente no início de novembro tem força para expor sua penúria e tristeza a Lowie,
Baldus e Metreaux. Nimuendajú destila tristeza na correspondência com o seu confidente
Lowie:

Por motivos de saúde tive de renunciar para sempre à vida que levei quase 40 anos em
convivência com os índios. (...) A mim semelhante solução causou uma grande tristeza. O sr.
bem sabe como eu amava esta vida e como eu estava identificado com os indios. Parece-me
incrível que eu nunca mais hei de ver os campos dos Canella [sic] banhados em sol, nem os
igapos sombrios dos Tukuna [sic]. Além de que eu pensava ainda de fazer algumas coisas que
agora talvez nunca mais serão feitas.15

“Nunca mais hei de ver os campos dos Canella banhados em sol”.

14
Belém, 29/10/1943, DU p. 225. Nimuendajú terá certamente conversado com o seu amigo Carlos Estevão de
Oliveira, que também morava em Belém, mas eu não achei qualquer documento a este respeito.
15
Belém, 06/11/1943, DU.p. 323.
237

A resposta de Lowie é bálsamo para o doente e ferido Nimuendajú:16 “Fiquei contente


de receber notícias suas (…). Mas o conteúdo me espantou. O problema com seus olhos e, em
consequência disso, que não poderá mais ir ao campo, é algo que me oprime muito. (...) Por
outro lado, é muito bom (...) que o senhor recebeu de sua pátria adotiva o reconhecimento que
tanto merece”.
Metreaux envia um elogio profético, mas já conjugado no passado: “Eu sei que suas
expedições lhe davam a maior alegria que o senhor poderia ter, que o seu amor pelos
indígenas e seu jeito de tentar salvá-los e de preservar suas tradições para o futuro são
testemunhos da personalidade do senhor. Lembre-se que o senhor fez no Brasil mais do que
qualquer outro antropólogo nos últimos quarenta anos e que o nome do senhor ficará ligado
para sempre aos estudos sobre os indígenas da América do Sul. O senhor foi um grande
pioneiro do trabalho científico no Brasil”. 17
A intensa troca epistolar de Nimuendajú e Lowie também torna-se aos poucos coisa do
passado. É Lowie quem, após um ano de mútuo silêncio, retoma o contato. Ele conta que o
trabalho The Sherente [ Os Xerente] foi publicado no “Journal of American Folklore” e envia
em anexo um exemplar. Devido à guerra, ainda não recebera as provas tipográficas do
trabalho sobre os Canela. Por alguma razão desconhecida, Nimuendajú não responde a Lowie,
mas abre-se com Steward:18

Se eu realmente não for mais trabalhar, eu vou sentir falta primeiro dos meus indios e
segundo do trabalho com os cientistas norte-americanos, que eu realmente apreciei durante
nove anos. Mas agora chega de choro! Do seu velho amigo. PS: eu também sinto saudades da
compreensão que Lowie e o senhor demonstravam especialmente pelo meu trabalho. Aqui eu
sou julgado somente pelo que ouvem de mim, me vêem como um estranho, eles têm essa
mentalidade que o senhor pessoalmente conheceu. Não posso viver em paz devido às pessoas
de quem eu dependo.

Tradução vira traição a uma postura existencial

A quarta pequena morte provém da tradução ao espanhol da sua primeira obra As Lendas da
Criação e da Destruição do Mundo como Fundamento da Religião dos Apapocuva-Guarani.
É um drama iniciado em 1937 e que só estoura em 1944.

16
Berkeley, 06/12/1943, MN.
17
Washington, 02/12/43, DU, p. 254.
18
Cartas de Berkeley, 22/11/1944, MN e de Belém, 04/08/1944, DU, p. 332.
238

Em 1937, Herbert Baldus propõe a Nimuendajú que o estudioso Juan Francisco


Recalde traduza as duas lendas do Apapokuva-guarani. Apresentado como especialista da
língua guarani, o médico e político paraguaio quer traduzir para o guarani paraguaio e
português ou espanhol. Baldus o ajudaria na leitura e tradução do texto em alemão.
Em geral desconfiado, Nimuendajú aceita de bom grau a recomendação do amigo
Baldus: “Se o Dr. J. F. Recalde tiver interesse em traduzir meus textos em Guarani, pode fazê-
lo tranquilamente. Diga-lhe por favor que o segundo parágrafo do mito de Iñipyrû está errado
[Nimuendajú faz a correção em Apopocuva-guarani e o traduz ao alemão]”.19
Nimuendajú refere-se clara e exclusivamente aos textos em Apopokuva-guarani.
Aparentemente, está tudo certo. Aparentemente. Quatro anos depois, Recalde pede a opinião
do autor sobre o trabalho parcial de tradução ao espanhol e guarani paraguaio. Só que agora
não se refere apenas aos textos em Apopokuva-guarani, mas fala da obra completa. Quem
intermedia novamente é Baldus.20
Não achei registros de que Nimuendajú tivesse respondido essa carta, bem como uma
outra de Baldus, datada de 01/06/1942.
Possivelmente, Nimuendajú esquece ou não tem condições psicológicas para tocar no
assunto, pois, de maio a setembro de 1942, ele mora com os ticunas no Solimões. E, ao voltar
desta expedição, acaba preso, acusado de ser “espião nazista”. Enquanto isso, a tradução
assume vida própria. Somente dois anos depois, em 1944, é que Nimuendajú dá sinal de vida,
mas já soltando fogo pela boca:21

Dias atrás o dr. Recalde me enviou um recorte de “O Estado de S. Paulo” da autoria do


senhor, onde consta que Recalde traduziu e publicou a totalidade do meu trabalho sobre a
religião dos Apapocuva. O facto [sic] me surpreendeu e desagradou muito. Quando o senhor
em 11 de outubro de 1937 me escreveu que o dr. Recalde queria traduzir os meus textos [em]
Guarani, eu imediatamente concordei porque o tenho em conta de autoridade no assunto. Em
todas as cartas posteriores, tratando do assunto só se falou dos textos [em] Guarani. Qual não
foi agora o meu espanto a ler no citado artigo do snr que “Juan Francisco Recalde no seu
trabalho publicado ha poucos dias não se limitou a traduzir a parte alemã para o castelhano...”
etc. Elle [sic] não se limitou, como devia ter-se limitado, à tradução da parte guarani, isto que
é a verdade.

19
Carta de Baldus de São Paulo, 11/10/1937. Ele omite que Recalde é exilado político. Nimuendajú responde de
Belém, 22/11/1937, ambas no MN.
20
São Paulo, 08/03/1942, MN.
21
Belém, 29/07/44, MN.
239

Capa da tradução ao espanhol, que Nimuendajú recusa.

Nimuendajú explica que, após quase 30 anos da publicação original, haveria correções
a serem feitas. Ele diz que aceita de boa vontade os comentários de Recalde sobre a parte
linguística, mas “(...) ainda não recebi os exemplares que elle [sic] me prometeu. Há pouco
tempo, convicto da necessidade de ser corrigido aquele trabalho, eu tratei com o Museu
Nacional a sua tradução e publicação. Naturalmente, serei agora obrigado, bem contra a
minha vontade, a referências constantes ao trabalho do Dr. Recalde, a não ser que eu prefira
declarar bem alto e publicamente que a tradução dele fora feita sem a minha autorização e
conhecimento e que considero-a inexistente”.
Constrangido, Baldus desculpa-se imediatamente: “Naturalmente trata-se de um
lamentável equívoco. A culpa é exclusivamente minha e peço-lhe perdão”. Ele conta que não
explicara corretamente a Recalde que a tradução seria apenas do texto em guarani.
Tentando desarmar o indignado Nimuendajú, explica que o tradutor “evitou ou
modificou cuidadosamente certas referências e expressões cuja tradução talvez podesssem ser
desagradavel ao Snr, isto é desagradavel não por razões científicas, mas ‘cívicas’ . O Snr.
compreenderá imediatamente a que me refiro, quando recebe [sic] e lê [sic] a tradução”.22

22
São Paulo, 02/08/1944, MN. Baldus argumenta ainda que a tiragem de 100 exemplares não deverá ter grande
divulgação, pois se destinaria exclusivamente a linguistas.
240

A frase de despedida tem algo de ingênuo: “Espero ansiosamente sua resposta, para
saber se a tempestade já passou”.

Baldus pede perdão a Nimuendajú e diz que tentou “protegê-lo”.

Porém, o furacão continua. Mais ainda, cresce a indignação de Nimuendajú. Em


primeiro lugar, porque Recalde não respeitara o acordado e, em segundo, porque após os
esclarecimentos de Baldus, trata-se também de censura ao texto original, como se ele tivesse
medo das críticas feitas em 1914.
Nimuendajú reafirma sua postura de vida: “Os Snrs. estão redondamente enganados
quanto à minha atitude em face da situação do momento. As críticas às relações indios e
civilizados eu as faço hoje como as fiz em 1914. (...) O que necessita de reforma no referido
trabalho – e admiro-me não ser o Snr. da mesma opinião – é toda aquella [sic] parte delle [sic]
que não trata de observações directas [sic] minhas. Em todas as comparações paralelas, etc, eu
fui muito desastrado e tolo”.23

23
Belém, 31/08/44, MN.
241

Autocrítica ao seu primeiro livro: “Fui muito desastrado e tolo”.

No início de 1945, finalmente Nimuendajú lê a tradução. Mais uma vez, o circo pega
fogo. Ele ataca tanto o desconhecido Recalde quanto o amigo e confidente Baldus:24

A introdução de Recalde [na tradução] é completamente desnecessária, é de má-


educação incluir nela trechos de minha correspondência particular. Além do fato de que eu só
o autorizei a traduzir as duas lendas em guarani. A ortografia do Dr. Recalde é falha. Sua
tradução não autorizada de minhas anotações do alemão para o português ultrapassa as
minhas piores expectativas. Como era de se esperar a tradução [das lendas] do guarani [para o
espanhol] é boa. Aqui o Dr. Recalde comete menos erros do que eu. Agradeço-o pela
descoberta de uma meia-dúzia de erros [do Nimuendajú]. Ele não está preparado para esse
trabalho. Com frequência, troca completamente o sentido das frases. Suas observações
demonstram desconhecer por completa a mentalidade dos indígenas. Esta carta vai dirigida ao
senhor porque é co-responsável pela publicação. Não assumo qualquer responsabilidade pelo
trabalho publicado.

24
Belém, 08/01/1945, DU, p, 200.
242

Diante do rumo que o problema assume, Baldus confessa que sente vergonha por ter
sido negligente, pois Nimuendajú examinara a tradução com a escrupulosidade que ele
mesmo deveria ter feito. Admite que tentara servir dois amigos, mas que o resultado é ruim.
Segue-se um minucioso mea-culpa, um ato de integridade intelectual:25

Um dia ele [Recalde] me trouxe o trabalho já mimeografado [no original] para eu


‘correr os olhos’ a fim de evitar os erros mais grosseiros. Confesso que, neste momento, não
me perguntei se o Sr. autorizara a tradução da obra inteira ou só de uma parte dela. Folheei
apresadamente a versão, pois estava sobrecarregado de outros serviços. Encontrei [na
tradução] muitas coisas contestáveis (...), falei com ele a respeito, mas não insisti pelas
seguintes razões: 1) a responsabilidade por tudo aquilo é evidentemente só dele e não do Snr.;
2) o trabalho já estava mimeografado; 3) o Dr. Recalde é muito mais velho do que eu, fato
esse que, devido à minha educação, eu respeito talvez exageradamente. Não conferi, como o
senhor fez, a tradução do texto alemão com o original, e o Dr. Recalde nem esperava isso de
mim, pois me deu unicamente a tradução sem devolver-me o original.

Baldus tenta mais uma vez satisfazer as duas partes e propõe uma fórmula salomônica
para agradar Nimuendajú sem prejudicar Recalde: “Basta declarar na versão portuguesa da
mesma obra: ‘Por um mal-entendimento [mal-entendido], o tradutor da versão espanhola
publicada numa edição mimeografada de 100 exemplares não se limitou, conforme a minha
autorização, à tradução dos textos das lendas, mas traduziu inteiramente o texto alemão. Esta
tradução contém numerosos erros, não podendo eu assumir nenhuma reponsabilidade por ela’.
Acho portanto, não ser preciso citar o nome do tradutor”.

Mesmo perdoando o amigo, o espinho fica cravado no coração de Nimuendajú, admite


em carta a Lowie: “(...) O pior é que Recalde não tem gabarito pra traduzir do alemão: 1)
porque não domina o suficiente a língua alemã; 2) porque não tem conhecimentos
etnográficos e dos indígenas; 3) porque não tem suficiente cuidado para realizar uma
reprodução de um trabalho dessa natureza. Esse tal Recalde acredita ter me ajudado, mas não
está em condições de reconhecer as suas deficiências. Petulante e atrevido, me mandou dez
exemplares”.

25
São Paulo, 16/01/1945, MN.
243

Possivelmente, o mal só não é maior porque a tiragem não passa, de fato, de escassos
cem exemplares mimeografados, dez dos quais Recalde enviou a Nimuendajú. Só que o
próximo parágrafo da carta a Lowie permite imaginar que Nimuendajú talvez tenha jogado
fora os exemplares que recebeu:

Quando o senhor ver um desses exemplares, por favor comunique meu juízo ao dono.
Eu não lhe envio um exemplar porque é volumoso e eu não tenho dinheiro para “uma coisa
assim”.26

Meses depois, esperançoso, sugere a Lowie uma possível tradução para o inglês: “Eu
devo traduzir o artigo [a obra As Lendas] para a língua deste país [o Brasil], mas a Edition
(Auflage) [tiragem] é muito pequena para ter ressonância. O que o senhor acha disso?”.27

Não achei uma eventual resposta de Lowie. Nimuendajú não chega a traduzir sua
primeira obra para o português, nem faz qualquer ressalva à qualidade da tradução ao
espanhol.
Nesse final de 1945, ele está com 62 anos de idade, doente no mínimo cinco vezes de
malária, quase cego de um olho, com problemas cardíacos, submetido a dieta rigorosa e
tomando diariamente remédios que só encontra no Rio de Janeiro.
Em meados de novembro desse mesmo ano, ele desobedece a orientação médica e
embarca para sua última expedição entre os Ticuna, no Alto Solimões, onde faleceu.

26
Belém, 18/04/1945, DU, p. 325. O inventário dos seus bens não registra a existência de sequer um único
exemplar da tradução de Recalde. A relação de quase mil livros e dezenas de mapas e trabalhos ineditos foi
microfilmada, filme número 322, MI.
27
Belém, 13/08/1945, DU, p. 326.
12 - Sete lendas sobre a sua morte

Ao longo de seus últimos anos de vida, em meio às quatro pré-mortes – ou talvez justamente
por causa disso – Nimuendajú só tem olhos para a tribo dos Ticuna do Alto Solimões. Mal
chega a Belém da viagem durante a qual fora preso em 1942, ele já negocia a volta aos
igarapés ticunas. Os objetivos etnológicos foram atingidos, mas sente-se convidado a
empreender futuras expedições.
Um ano depois, insiste, mesmo sabendo que sua saúde não é mais a de trinta anos
atrás. Seus argumentos perante dona Heloisa, a possível financiadora, mudam; porém, a meta
se mantém: “Eu considero as lendas dos Ticunas [sic] muito valiosas porque foram relatadas
por um informante, o índio Nino, como se fossem contadas a um outro Tukuna [sic], sem
adaptações ou mudanças que um civilizado iria fazer”.1

Ao fundo, Nino Athayde, misteriosa personagem central na morte de Nimuendajú.

1
Belém 21/10/1942, p. 224 e 04/12/1943, p. 225, ambas DU.
245

Quando dona Heloisa em abril de 1944 afirma que “as lendas dos ticunas que o senhor
me mandou foram as mais belas que eu já li”, ele aproveita a deixa e volta ao tema. Até que
ela concorda: “Se a saúde do senhor permitir e os custos da viagem não forem elevados, o
senhor pode viajar. Mas diga-me a que autoridades devo recomendar-lhe para evitar
obstáculos”. Claro que sua saúde não permite. Nimuendajú evita esse assunto, prefere falar
de custos, das condições da sua última estadia na aldeia. Finalmente, a viagem é autorizada
por dona Heloisa, que quer pagar entre 30 mil e 40 mil cruzeiros.2
Nimuendajú acha uma indignidade: “(...) 40 mil cruzeiros são o mínimo”.
Desesperançado, ele apela para a ironia: “Infelizmente, a solução destas dificultadezinhas em
si bem insignificantes, mas que se interpõe de uma maneira desagradável à boa marcha dos
trabalhos, não depende de mim, e tenho de esperar que a sra. as resolva como e quando
quiser”. A pressão sobre dona Heloisa tem o efeito esperado. Mesmo com seis meses de
atraso, o valor autorizado ultrapassa o mínimo fixado por ele: “Sua expedição aos Ticuna
patrocinada pelo Museu Nacional pode começar em setembro. O Museu Nacional paga 48 mil
cruzeiros (…)”.3

É agosto de 1945. Na Europa, o nazismo fora derrotado. No Brasil, os militares


conspiram para derrubar Getúlio Vargas da presidência.
Curt Nimuendajú empreende sua última expedição. Ironicamente, agora é
recomendado, pela primeira vez, pelo Conselho de Fiscalização, que finalmente o reconhece
como pesquisador brasileiro e, ao mesmo tempo, independente.
Não se sabe ao certo quando Nimuendajú deixa Belém. A primeira pista da derradeira
viagem é o seu desembarque em novembro de 1945 em Manaus. Na noite de 22 de novembro,
continua viagem no navio Inca rumo ao Igarapé da Rita, segundo o antropólogo Miguel
Nunes Pereira, enigmática personagem nos eventos que a seguir serão apresentados. A
próxima referência vem da carta de 6 de dezembro, onde Nimuendajú narra a Baldus seus
projetos de “pacificar” os Parakanan, às margens do rio Tocantins.4
As duas últimas cartas conhecidas de Nimuendajú datam de 7 de dezembro.
Uma é endereçada ao pesquisador alemão Friedrich Maynthusen, informando que
chegara um dia antes a São Paulo de Olivença e que, no dia oito de dezembro, os Ticuna iriam
apanhá-lo para “ir às suas terras”.

2
Rio de Janeiro, 08/04/1944, 19/07/1944 e 25/02/1945, p 226, 227 e 229, DU.
3
Belém, 16/02/1945, DU, p. 229, Belém, 23/03/1945, MN, e Rio de Janeiro, 15/08/1945, DU, p. 230. O Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional também financia a expedição, GR, p. 239.
4
Pereira, Manoel Nunes, Moronguetá, 1967, Civilização Brasileira, p. 446. Laraia, p.71.
246

Nimuendajú diz que, após quatro meses no mato, voltará a Belém.

A segunda é a missiva dirigida ao jovem etnólogo do SPI, Harald Schulz. Em meio a


conselhos técnicos e explicações etnográficas, Nimuendajú demonstra sentir-se muito à
vontade onde está:5

Igarapé da Rita, 7 de dezembro de 1945


Para mim, é sempre um prazer datar uma carta a partir de uma área indígena. Posso
imaginar o efeito que produz nos leitores saberem que estou escrevendo na minha velha
máquina de escrever em meio a selvagens. (...)

Nimuendajú localiza seu paradeiro numa “maloca tucuna”, o que poderia ser a casa do
seu amigo e confidente, o cacique Nino Athayde, no Igarapé da Rita. Mas também uma outra
aldeia dos inúmeros igarapés da região.
Dia 11, Curt Nimuendajú é enterrado no cemitério de Santa Rita do Weil, à margem
esquerda do rio Solimões, no município de São Paulo de Olivença. Não se sabe o dia exato de

5
DU, p. 211 e 219.
247

seu falecimento. Afirma-se que teria sido o 10 de dezembro. A ata de exumação do corpo,
realizada em 1957, só se refere ao sepultamento, ocorrido no dia 11 de dezembro.6

Telegrama afirma que Nimuendajú morreu dia 10, mas “Manuelão” não confirma a data.

A única certeza que existe quanto ao falecimento de Nimuendajú é que isto aconteceu
mesmo. Como teriam transcorrido suas últimas horas de vida, as razões e circunstâncias do
evento dependem dos interesses, ou da visão, de quem conta.
Só se tem conhecimento de uma única testemunha da morte de Nimuendajú: o
cacique Nino Athayde, em cuja casa Nimuendajú se hospedara durante expedições anteriores.
O agente do SPI em Tabatinga, Manoel Pereira Lima, o “Manuelão”, tomou o depoimento do
cacique em janeiro de 1946:7

6
Hartmann, Thekla, 1981-1982, p. 188.
7
SPI, ofício N° 25, de 21/02/1946, Centro de Documentação Etnológica, MI, Rio de Janeiro, p. 4.
248

Depois de uns dois dias que estava naquele igarapé, o professor [Nimuendajú] saiu da
casa e foi dar um passeio. Nesse percurso, tomou uma xícara de café na casa de um civilizado
[que Nino não identificou]. Quando [Nimuendajú] chegou à casa [de Nino], passados alguns
momentos, foi atacado por uma súbita convulsão e quando [Nino] correu para socorrê-lo,
verificou que ele jorrava sangue pela boca. O índio desesperado em ver esse quadro trágico
pegou-se à vítima e perguntou o que sentia, mas foi tarde porque ele [Nimuendajú] não teve
mais tempo de falar. A morte foi-lhe instantânea.

Nunes Pereira, nomeado pelo SPI de Manaus para esclarecer o fim de Nimuendajú,
também interrogou Nino Athayde, mas somente em fevereiro de 1946. Ele apresenta uma
outra versão: “Sua morte, ocorrida na tarde de 10 de novembro de 1945, isto é, no mesmo dia
da sua chegada à casa do tuxuá [cacique] Evanique ou Nilo Ataíde (…)”.8
Esta curta frase de Nunes Pereira contém pelo menos dois erros. Talvez somente de
datilografia.
O primeiro erro consiste em mencionar a data 10 de novembro como o dia da morte,
quando possivelmente queria escrever 10 de dezembro. O segundo é que o “Nilo” citado por
Nunes Pereira vem a ser justamente o cacique Nino.
Mas também traz uma novidade: Nimuendajú teria morrido no dia de sua chegada à
casa de Nino Atahyde, enquanto este dissera, conforme “Manuelão“, que isso aconteceu
“depois de uns dois dias que estava naquele igarapé”.
As duas pessoas que deveriam oficialmente esclarecer este ponto silenciaram. No seu
relatório, “Manuelão”, referiu-se vagamente ao: “(…) falecimento do professor Curt (…), nos
dias do mês de dezembro do ano passado [1945]”.
No mesmo documento, “Manuelão” escamoteu mais uma informação ao escrever
apenas que “(…) chegou o sr. Curt em Santa Rita no princípio de dezembro (…)”.9 É evidente
a contradição com Nunes Pereira.

8
Nunes Pereira, Manuel, Moronguêtá, p. 446. Antropólogo e ictiólogo, foi fundador da Academia Amazonense
de Letras e presidente do Instituto de Etnografia e Sociologia do Amazonas, (*1893 +1985). A opinião de
Nimuendajú sobre Nunes Pereira era péssima: “Este foi para comigo, como sempre, o cientista serio e austero,
em franco contraste com o juizo que outros conhecidos fazem dele. Faz grande ostentação da sua qualidade de
germanófilo, o que em Manaus não é muito vantajoso, dada a atitude do chefe de policia. Frequenta algumas
casas alemãs e vi-o pedir opiniões sobre artigos de jornais, etc. Na casa Berringer trataram-no com fria cortesia,
parecendo admitir a possibilidade de ele agir de acordo com a policia. Talvez seja ele agente provocador e
germanófilo ao mesmo tempo; pelo menos eu acharia nele semelhante incongruencia perfeitamente cabivel”,
carta de Nimuendajú, Igarape da Rita, 09/05/1942, CS, p. 306.
9
SPI, ofício n° 25, p. 4.
249

A outra pessoa que deveria esclarecer a morte de Nimuendajú é justamente Nunes


Pereira. Nomeado pela chefia do SPI de Manaus para investigar o fato, ele prometeu em
meados de 1946 divulgar um relatório, o que, se eventualmente aconteceu, seu conteúdo
continua até hoje desconhecido.
Pode-se argumentar que o cacique Nino Atahyde talvez não tivesse noção clara dos
dias da semana ou que, talvez, não possuísse um calendário. Nas proximidades de sua casa,
contudo, morava uma pessoa identificada apenas como “Professor Barcelos”, que certamente
poderia dar uma informação correta. Curiosamente, nem “Manuelão” nem Nunes Pereira
informam ter ouvido essa desconhecida personagem, que poderia esclarecer essas questões.
Estes misteriosos eventos e outros inexplicáveis atos de pessoas envolvidas têm sua
origem exatamente no caldeirão de paixões na área. Atores tão diferentes como indígenas,
seringalistas, indigenistas e militares agem com interesses peremanentemente conflitantes, às
vezes temporariamente confluentes, nesta área de fronteira com a Colômbia e o Peru.
É a sua atitude inicial intuitivamente favorável aos indígenas que leva Curt
Nimuendajú a participar de maneira ativa dessa complexa situação. Como já fizera entre os
Canela no Maranhão, entra de corpo, alma e razão na vida da aldeia.
Seu engajamento e seu conhecimento dos hábitos dos habitantes da área, além de sua
visão estratégica, ficam claros numa conversa, em 1942, com um funcionário graduado do
SPI em Manaus. Esse queria fixar o posto indígena num igarapé, incluído no mapa da área
feito por Nimuendajú no ano anterior.
Nimuendajú afirma que a escolha do local “seria inteiramente ineficiente, pois o seu
encarregado saberia malmente o que se passava nas duas casas mais próximas. Os índios dos
outros seis igarapés dificilmente iriam procurá-lo lá dentro e ele, para visitá-los, teria sempre
de descer primeiro o Igarapé Preto para depois entrar novamente em qualquer outro”.
Sugere que o posto seja fundado “nas vizinhanças de Tabatinga, na margem do
Solimões, por estar perto dos igarapés Mariuaçu, Tacana e Belém onde um controle se torna
mais necessário, e também para evitar os abusos que se dão nas visitas dos índios a Tabatinga
e Letícia [Colômbia]. Em Tabatinga teria o posto [do SPI] o apoio da força federal [o
Exército], a assistência de médico e a comunicação pelo telégrafo como por via fluvial e
aérea. (...) o Dr. Xerez aceitou prontamente esse plano meu (...)”.10

10
Igarapé da Rita, 09/05/1942, CS, p. 307. Em 1945, o chefe da 1°. Inspetoria Regional do SPI em Manaus,
Alberto Pizarro Jacobina refere-se ao mapa: “Tenho em meu poder um precioso croquis da região dos Ticuna,
com a localização do posto, desenhado pelo (sic) próprio punho do professor Curt”, cf. SPI, ofício número 25, p.
2.
250

Não é nada surpreendente, portanto, que ele tenha sido nomeado delegado de índios do
SPI no Alto Solimões pela Inspetoria de Manaus, possivelmente antes de 1945.11
Sintomaticamente, não consta a data da portaria e muito menos são divulgadas as
diretrizes que Nimuendajú recebeu da inspetoria do SPI. Tudo indica ser uma missão secreta
nessa área de fronteira.
É possível que tenha começado, de maneira sigilosa, em 1941, quando Nimuendajú,
em carta a Carlos Estevão, fala de sua futura atuação na área, mas parece não referir-se
exclusivamente a questões etnográficas: “Uma coisa estou prevendo desde já: a minha visita
atual não resolverá ainda o problema dos Tukuna [sic], e seria muito a desejar que pudesse
repeti-la em fins de 1941 ou em começos de 1942. (...)”.12
Porém, é iguialmente imaginável que os seringalistas locais ficam sabendo que
Nimuendajú não era mais apenas um etnólogo a serviço dos museus Nacional e Goeldi. Isto
explicaria a mudança de comportamento da familia seringalista Mafra, que, em 1940, o
recebera amavelmente e, no ano seguinte, o hostilizara perante os indígenas.
Afinal, ele teria passado a trabalhar para o SPI, com o apoio do Exército. Contudo, os
empresários também têm seus aliados entre os militares, como aqueles que prenderam
Nimuendajú, sem provas, em setembro de 1942.
Esse ano é um divisor de águas na história recente desta região amazônica, quando é
criado o Posto Indígena Ticunas em Tabatinga (PIN), consolidado entre 1943 e 1945,
conforme um documento da Funai de 1996.
O SPI agia de comum acordo com o Exército, revela uma carta do chefe da 1a.
Inspetoria Regional do SPI em Manaus, Alberto Pizarro Jacobina, ao comandante do Pelotão
Independente de Tabatinga, capitão José Maria Cardoso Dourado.
Pizarro Jacobina apresenta Nunes Pereira na sua missão secreta, sem informar
oficialmente os motivos da viagem: “Ele vos dirá de viva voz meus recados relativamente aos
projetos que há um ano atrás tive a honra de vos expor, quando da minha visita a
Tabatinga”.13
É com esse pano de fundo que, transcorridos mais de 60 anos, as circunstâncias do
falecimento de Nimuendajú – morte natural ou assassinato – permanecem pouco claras. Ao
contrário, o passar do tempo tem aumentado a complexidade do caso.

11
SPI, ofício número 25, p. 1.
12
Perpétuo Socorro, Rio Solimões, 23/05/1941, CS, p. 295.
13
Funai, despacho n° 39, de 27 de dezembro de 1996, processo Funai/BSB/0416193, com relação à terra
indígena Tukuna Umuriaçu, p. 7, seção 1 do DOU, de 13/01/1997. SPI, ofício nº 25, p. 7.
251

O etnólogo do Museu Nacional, João Pacheco de Oliveira Filho, arrola sete


hipóteses:14
1.- Morte “natural”, (hipótese natural).
2.- Assassinado por brancos, conforme afirmam os índios.
3.- Assassinado por índios, devido ao comportamento sexual de Nimuendajú com as
indígenas, que seria a versão de seringalistas locais.
4.- Assassinado pelos índios para roubar-lhe pertences, da mesma origem acima.
5.- Morte natural, que “Manuelão“, do SPI, tentou aproveitar para forçar a criação de
uma reserva indígena no local, o que seria outra versão dos seringalistas.
6.- Envenenado por Barcelos, dizem os indígenas.
7.- Envenenado por Barcelos, Nimuendajú morreu na casa deste, segundo os índios.

Morte natural…

A primeira versão é a de morte decorrente de seu estilo de vida. Ela se vê fortalecida pelo
trecho do depoimento de Nino Athayde de que Nimuendajú “foi atacado por uma súbita
convulsão (...) ele jorrava sangue pela boca”. Afinal, o etnólogo estava com 62 anos, doente,
coração debilitado, aorta dilatada, quase cego de um olho, sob rigorosa dieta que não podia
seguir de maneira alguma no mato. Será que seu corpo não suportou mais as consequências de
no mínimo cinco malárias adquiridas ao longo de quase quarenta anos de expedições?
Essa é a hipótese aventada por Roque de Barros Laraia, professor do Departamento
de Antropologia da Universidade de Brasilia. Após lembrar uma carta de Nimuendajú a
Baldus, ele conclui que “as cartas terminaram aí, provavelmente quando seu organismo
desgastado por tantas malárias e envenenado por tanto quinino se recusou a continuar a
luta”.15
Uma pessoa poderia informar sobre a saúde física de Nimuendajú até a sua chegada à
área ticuna: o mestre de obras do SPI, André Tomasi. Ambos viajaram juntos de navio de
Manaus até Tabatinga.
No mesmo dia 18 de dezembro em que os jornais de Manaus publicaram a notícia da
morte de Nimuendajú, Pizarro Jacobina, chefe do SPI de Manaus, enviou ofício ao agente
“Manuelão“, instruindo-o para ouvir André.

14
Oliveira Filho, João Pacheco de, “O nosso governo” – Os Ticuna e o regime tutelar, tese de doutouramento,
Rio de Janeiro, 1986, p. 262.
15
Laraia, p. 71.
252

Dia 8 de janeiro de 1946, novo ofício, onde o chefe do SPI afirma estar “desejando
especialmente informes do mestre André, pois Curt poderia ter-se queixado de alguma
indisposição física, orientadora da causa de sua morte“.
Três dias depois, Jacobina reitera seu pedido porque “acredito que falando ambos em
alemão deviam ter tido oportunidade de conversar intimamente“. Em 16 do mesmo mês,
finalmente chega uma resposta de Manuelão.
Nenhuma palavra sobre André, apenas o misterioso anúncio de que “tenho algumas
informações a prestar a essa Chefia, segundo informações de um indio que viajou até este
Posto, para comunicar a referida morte”. Trata-se de Nino Atahyde. Finalmente, em 23 de
janeiro, Manuelão responde ao pedido de 18 de dezembro. É uma decepção para Jacobina,
pois a conversa entre Nimuendajú e o mestre André foi, segundo Manuelão, exclusivamente a
respeito dos costumes dos indios Ticuna e mais nada.16
O documento de Manuelão choca-se frontalmente com a versão apresentada por Nunes
Pereira no seu livro Moronguêtá. Ele garante que, a bordo do navio Inca rumo a Tabatinga,
Nimuendajú “(...) revelara a André Tomasi que não tinha amigos entre os civilizados e entre
os próprios patrícios – alguns alemães se haviam localizado na costa do Solimões – entre o
Igarapé da Rita e o povoado de Santa Rita do Weil – ‘porque defendia os Tucuna e os pagava
bem’ [grifos no original] a troco dos trabalhos, que lhe prestavam, na suas viagens a pé ou em
canoa pelos sítios por eles habitados”.17
Nunes Pereira não menciona se Tomasi falou a respeito do estado de saúde de
Nimuendajú durante essa viagem conjunta.

Envenenado por brancos…

A segunda hipótese é a de assassinato. Ela ganha corpo no relato de Nino de que Nimuendajú
morreu após tomar café na casa de um “civilizado”. Mas também nos antecedentes, pois
Nimuendajú narrara a perseguição empreendida contra ele por membros da família Mafra e
outras pessoas da região.
Em 1942, após estabelecer o posto indigenista, a próxima etapa da estratégia do SPI
consistia em criar uma reserva exclusiva para os Ticunas. O responsável pela nova tarefa era
Manuelão, que esteve pessoalmente com Nimuendajú naquele ano: “Tive a oportunidade de

16
SPI, ofício n° 25, pp. 1-3.
17
Nunes Pereira, p. 447. Ainda em Manaus, o próprio Nunes Pereira diz ter notado a intranquilidade de
Nimuendajú antes embarcar para Tabatinga: “Nós o sentimos bastante preocupado com o seu regresso ao Alto
Solimões, revelando-nos pressentimentos”, ibid, p. 446. Mas não diz quais são esses pressentimentos.
253

conhecê-lo em 1942, quando viajei a primeira vez para este posto, de passagem pelo Igarapé
da Rita, onde o referido senhor achava-se no estudo etnográfico com a carta [mapa] daquele
igarapé. Nesta ocasião, tive o ensejo de conhecer as suas qualidades cultas, e ainda mais a
maneira carinhosa e familiar com que vivia entre aqueles selvícolas [sic]”.18
Seringalistas, comerciantes, proprietários de terra e donos de castanhais da região eram
contrários à política indigenista do SPI. Beneficiários de um regime de semi-escravidão,
teriam tramado a prisão de Nimuendajú como “espião nazista”, diz Nunes Pereira: “De há
muito tempo não era vista complacentemente [pelos “civilizados”]a atuação do cientista
[Nimuendajú] entre os índios, atraindo-os em massa (…), despertando neles a consciência de
seus direitos e estimulando-os mesmo contra os metodos desumanos que caracterizam, em
geral, as relações dos patrões e dos trabalhadores rurais nas zonas produtoras de castanha,
madeira e borracha nos altos rios da Amazônia. Conspiraram, portanto, contra ele. E
prendendo-o, com sentinela à vista, prontamente o embarcaram para Manaus (…)”.19
Manuelão registrou no seu informe que “na opinião do índio [Nino Athayde], e de
outros seus parentes, é que o inditoso foi vítima de um envenenamento, pois segundo ele
contou, quase todos os civilizados que moravam naquele lugar não gostavam do professor
porque era um grande defensor dos índios”. Matreiro, Manuelão, deixa uma porta aberta no
seu relatório: “Talvez que isto seja criação de índio…, mas é bom duvidar-se que seja também
verdade. (…) Para um conhecimento concreto do caso, só serviria se fosse uma pessoa fazer o
esclarecimento in loco (…)”.20
Esta era exatamente a missão secreta de Nunes Pereira no Alto Solimões. Em 6 de
fevereiro de 1946, ele viajou de avião a Tabatinga, portando uma carta do chefe do SPI em
Manaus dirigido ao capitão José Maria Cardoso Dourado, comandante do Pelotão
Independente de Tabatinga. O conteúdo é formulado de maneira vaga para camuflar o real
objetivo da viagem: “Tem esta o fim especial de apresentar o Dr. Nunes Pereira, presidente do
Instituto de Etnologia do Amazonas, que se dirige a essa região, em visita ao Posto Indígena
Ticunas, afim de prosseguir seus estudos, como etnólogo e historiador. (…)”.

Além de Pizarro e o próprio Nunes Pereira, somente Manuelão e o comandante desse


pelotão estavam à par da missão. No dia 18 de fevereiro de 1946, Nunes Pereira abandonou
Tabatinga e foi de canoa até o Igarapé da Rita para ouvir Nino Athayde.21

18
SPI, ofício nº. 25, p. 4.
19
Nunes Pereira, Moronguêtá, p. 445.
20
SPI, ofício nº. 25, p. 6.
21
SPI, ofício n° 25, p. 7.
254

O relatório que Nunes Pereira possivelmente teria produzido não foi encontrado nos
arquivos do SPI. Na sua obra Moronguêtá, ele promete: “Noutra ocasião, em documento que
pretendemos submeter à consideração pública, trataremos circunstanciadamente da morte de
Curt Nimuendaju (…)”.22 Nunes Pereira morreu em 1985, sem ter divulgado o prometido
documento. Porém, parece ter deixado uma pista, difícil de se provar, mas que revela a
complexidade do tema envolvendo o fim de Nimuendajú.

Envenenado, sim, mas pelo cacique Nino Athayde…

As versões sobre a morte de Nimuendajú teriam acabado aí. Não fosse a atuação de João
Pacheco de Oliveira Filho. Em sua tese de doutoramento “O nosso governo – os ticuna e o
regime tutelar” ele traz a terceira versão. Apresentada em 1986 no Museu Nacional, ela
reproduz trechos de uma conversa que ele teria gravado com Nunes Pereira.
O conteúdo revelado muda tudo o que se conhecia até essa data:23

O que [Nunes Pereira] registrou mais fortemente na memória foi basicamente o que já
relatara naqueles trabalhos [sua palestra em 1946 e seu livro Moronguêtá]. Apenas um ponto
fora ali omitido: o depoimento que recolhera do índio Nino (que com bastante precisão
chamava tanto pelo nome português Nino Ataíde, quanto pelo nome Ticuna, Evanique), no
Igarapé da Rita. Nessa ocasião, ele [Nino] teria dito que Nimuendajú anteriormente se casara
com uma de suas filhas e que agora pretendia casar-se com uma de suas sobrinhas, uma filha
do irmão de Nino. Em consequência da insistência do etnólogo, ele havia decidido envenená-
lo. Nunes Pereira acreditou piamente naquele relato, convencido que já estava de se tratar de
um assassinato e não de morte natural, bem como ainda devido a outros casos que mencionou
de envolvimento sexual do cientista com índios de grupos que pesquisara.

Oliveira Filho acrescenta em nota de rodapé: “O costume dos regatões e comerciantes


de manterem relacionamento sexual com algumas mulheres de seus fregueses não era aceito
pelos Ticuna. Os poucos casos de choques e mortes com regionais decorreram exatamente de
fatos assim, provocando uma reação imediata e violenta do marido, irmão ou outros
parentes”. Ele lembra que os confrontos e suas consequências eram de pleno conhecimento de
Nimuendajú, reproduzindo um trecho da obra deste sobre os Ticuna: “(…) alguns civilizados,

22
Nunes Pereira, p. 448.
23
Oliveira Filho, O nosso governo, p. 270.
255

que imaginavam que poderiam cometer esse crime (o estupro) impunemente contra índias,
tiveram encontros muito desagradáveis com os ticunas”.
Nimuendajú cita dois casos de morte violenta nesse contexto. Isto leva Oliveira Filho a
afirmar:

Entre os próprios índios não há menção a casos de estupro, pois as relações ilícitas
(sic) são sempre vistas como de responsabilidade da mulher, que as permitiu. Um de seus
informantes (de Nimuendajú) conclui enfaticamente: “Se ela não quiser, quem vai possui-
la?”. 24

Fica a incógnita de porque Nunes Pereira teria ocultado durante 40 anos uma
informação/confissão que, se verdadeira, transformaria por completo todo o cenário que
envolve a morte de Nimuendajú. O silêncio público de Nunes Pereira, que deveria ter feito um
relatório ao SPI sobre sua missão secreta, teria a ver com o que ele denomina de uma atitude
de estar “velando pela memória gloriosa do notável etnólogo teuto-brasileiro”.25
O também antropólogo Laraia diz que a hipóteses do cacique e xamã Nino Athayde ter
assassinado Nimuendajú já era comentada há bastante tempo:26

Enquanto a primeira versão [assassinato pelos seringalistas] atribui ao herói a


faceta de mártir dos conflitos interetnicos na região, a segunda - e que mais circulou entre
os antropólogos - tinha a peculiaridade de acentuar traços picantes: no lugar do herói
épico surgia o herói galante. É conveniente lembrar que esta versão sempre foi de “uso
interno”, limitando-se a uma divulgação oral entre os “iniciados”, como um segredo que
não podia ser escrito para não correr o risco de extrapolar os limites permitidos. Essa
interpretação explica o silêncio de Nunes Pereira. Silencio decerto conseguido a duras pe-
nas, porque o saudoso antropólogo era homem pródigo no falar, generoso em revelar as
muitas histórias que sabia.

Oliveira Filho escolhe outra direção. Ele sugere que Nino Atahyde, de fato, falou a
verdade quando contou a Manuelão do suposto envenenamento por brancos, mas movido por
outras razões:27

24
Nimuendajú, The Tukuna, 1952, p. 93. minha tradução. Esse livro, publicado somente seis anos depois da
morte do autor, até hoje não foi traduzido ao português. Oliveira Filho, p. 271.
25
Nunes Pereira, p. 449.
26
Laraia, p. 71.
256

(...) na primeira ocasião se poderia expressar melhor a opinião de Nino, pois: a)


Manuelão era uma figura conhecida em toda a área, possuindo a confiança dos índios,
enquanto Nunes Pereira era um desconhecido[para Nino]; b) para fazer a denúncia contra os
civilizados, Nino viajou vários dias de canoa do Igarapé da Rita até Tabatinga, estando
protegido daqueles que acusava pela distância e pela autoridade do PIT [no caso, de
Manuelão] (...).

Já o depoimento tomado por Nunes Pereira, acrescenta Oliveira Filho, se deu “nas
imediações da casa dos supostos executores do crime. Um terceiro fator: antes de chegar ao
Igarapé da Rita, Nunes Pereira mantivera um relacionamento amistoso com Artheyethe Ayres
de Almeida, filho do seringalista Antonio Roberto e chegara inclusive a viajar no barco deste
último. Um último ponto pode ser mencionado: entre os dois depoimentos de Nino se definira
na cabeça de quem agora conduzia a investigação [Nunes Pereira] a crença na hipótese de
assassinato, bem como paralelamente recrudescia a expectativa geral e a manipulação de
acusações mútuas”.
Efetivamente, na sua correspondência com Jacobina Pizarro, Nunes Pereira não cita
uma única vez a hipótese de morte natural ou acidental: “(...) relativamente à morte do Curt,
tanto o mestre de obras, o austríaco, que veio com ele pelo Inca, como alguns indígenas,
confirmam versão de envenamento. (...) Ouvi o dr. Waldemar Marco, do S.E.S.P., que esteve
como um dos arroladores do espólio do Curt, e com o padre Manoel Albuquerque. Ambos
falaram sempre em assassinato.”28
Oliveira Filho avalia o cenário político-ideológico-indigenista, mas também evita
entrar no mérito de se houve morte natural ou crime. É difícil concordar com a sua conclusão:
“Manuelão dividia-se [sic] entre acreditar na morte por envenamento provocado por regionais
[seringalistas] e a possibilidade de uma morte natural, enquanto Nunes Pereira excluía essa
última hipótese, faltando-lhe apenas estabelecer se os culpados eram os regionais ou os índios.
É muito provável que esses fatores tenham se combinado, de modo que o depoimento do
[cacique] Nino [Ataíde] que era uma denúncia [feita a Manuelão] transformou-se em uma
confissão [a Nunes Pereira] melhor ajustada às pressões do momento”.29
É igualmente possível, porém, que o silencioso Nunes Pereira tenha dado uma resposta
pessoal e conclusiva em linguagem cifrada. Durante a inauguração de uma placa em

27
Oliveira Filho, p. 272.
28
SPI, ofício número 25, p. 8.
29
Oliveira Filho, p. 272.
257

homenagem a Nimuendajú no Museu Paraense Emilio Goeldi em 1946, ele profere uma
palestra sobre a vida e obra do etnólogo falecido.
Num gesto incomum na década de 40, Nunes Pereira envereda, perante uma platéia de
militares, indigenistas e cientistas, pelo espinhoso tema das relações sexuais entre indígenas e
brasileiros: “Poderia referir-me aqui a vários e preciosos elementos recolhidos e estudados
nessa obra por Curt Nimuendajú, tal o que se prende à circuncisão das mulheres (…), tal o
vício nacional da bebedice; tal o rigor com que os Tukuna respeitam as suas leis de exogâmia
e a completa incompreensão que isso encontra da parte dos civilizados (…)”.30

Agora vem o clímax, escamoteado num recurso literário, talvez para apontar que
facção, na sua opinião, teria assassinado Nimuendajú:

(...) tal o intercurso [relação] sexual a respeito do qual [Nimuendajú] escreveu


delicadíssima observação.

Na privilegiada condição de único leitor do manuscrito da obra The Tukuna em 1946,


Nunes Pereira reproduz na sua palestra essa “observação” do livro de Nimuendaju, que,
significativamente, não consta do primeiro texto, redigido em 1929:31

(...) intercurso [relação] sexual antes da festa da puberdade parece até hoje para os
Tukuna uma coisa inimaginável; e assim também antigamente o intercurso premarital,
segundo dizem. Hoje tenho razão de [para] supor que as matas e as águas silenciosas dos
igapós, onde as canoinhas de pesca deslizam, velozes e sem deixar vestígios traidores,
encobrem os segredos de muitos namorados cujos pais nada suspeitam.

Numa carta ao seu amigo Carlos Estevão, Nimuendajú traçara, em 1944, um sucinto,
agudo e sugestivo perfil psicológico de Nino Athayde, que os partidários da teoria do cacique
assassino podem interpretar como uma premonição:

[Nino é] um dos índios mais civilizados, mas ao mesmo tempo mais conservador do
que todos os outros.32

30
Nunes Pereira, Curt Nimuendaju: síntese de uma vida e de uma obra, Belém, 20 de junho de 1946 p. 48, 1946.
31
Ibidem. O primeiro texto de Nimuendajú sobre os Ticuna consta do seu relatório de 10/12/1929 ao SPI, filme
397, MI.
32
Belém, 15/04/1944, DU, p. 226.
258

Cacique mata e rouba Nimuendajú…

A quarta versão é a acusação dos seringalistas de que Nino teria matado e roubado
Nimuendajú. Ela está registrada no relatório de Manuelão, mas aqui é colocada na boca de
Nino:33 “O comunicante queixou-se que esses senhores [o professor local, Barcellos, e outros
moradores não-indígenas] o caluniaram de ter ele subtraido muitos dos objetos deixado [sic]
pelo referido professor”.
Nino Atahyde também disse a Manuelão que Barcellos e outros vizinhos fizeram o
inventário dos bens de Nimuendajú: “No momento em que [essas pessoas] faziam o espólio, o
índio presenciou conferirem 30 mil cruzeiros que o sr. Curt trazia em sua companhia e muitos
outros objetos que o caboclo não soube explicar direito”.
Oliveira Filho rejeita esta hipótese, sob alegação de que os índios iriam receber de
qualquer jeito as mercadorias, pois Nimuendajú as trouxera para repartir entre eles, em troca
de relatos sobre lendas. O valor de 30 mil cruzeiros foi posteriormente entregue à viúva de
Nimuendajú.

Índígenas matam Nimuendajú e Manuelão faz uso político…

A quinta versão consta de um documento que Nunes Pereira afirma ter visto nas mãos de
Arteiette, filho do seringalista Antonio Roberto, possivelmente redigido por este. Nele consta
que “o alemão que morreu envenenado com timbó, em Santa Rita, já apareceu para o
Manuelão duas vezes!”.
Nesse relatório, acrescenta Nunes Pereira em carta ao chefe do SPI em Manaus, “a
origem da concentração [de ticuna no posto indigenista de Tabatinga] é atribuida a manobras
do Manuelão, a quem mostrei hoje mesmo as acusações que lhe são feitas. Presumo que esse
relatório tenha sido enviado a [o general Cândido] Rondon e ao Banco da Borracha (…)”.34
Manobra de Manuelão ou não, fato é que, logo após o falecimento de Nimuendajú,
centenas de ticuna abandonaram suas terras e se fixaram no Posto Indígena de Tabatinga.

33
SPI, Ofício nº 25, p. 5. Ibidem. Esse valor em dinheiro foi entregue ao SPI em Manaus, sendo que dona
Heloisa intercedeu junto ao órgão para que fosse repassado à viúva de Nimuendajú.
34
SPI, ofício número 25, p. 8. O suposto relatório não foi achado nos arquivos do SPI. O então Banco da
Borracha financiava os seringalistas.
259

Um mês antes da chegada de Nimuendajú ao local de seu falecimento, em novembro de 1945,


“Manuelão” já tinha tomado posse da fazenda Bom Destino e, após acordo com o Exército,
criou a primeira reserva indígena do Alto Solimões, conforme Oliveira Filho.
Jacobina Pizarro, chefe do SPI em Manaus, enfatiza o significado do que considera um
vitorioso evento indigenista. Para ele, muitos indígenas procuravam o posto porque queriam
melhorar de vida e ganhar mais, expectativa resultante dos esforços e obras do SPI na área.35
Sucessora do SPI, a Funai apresenta, em 1997, uma outra versão. Como o posto
indígena se encontrava junto ao povoado e ao quartel do Exército, surgiram conflitos entre os
índios e os habitantes não-indígenas ligados às repartições governamentais e militares.
O Exército propõe “a mudança do Posto Indígena, consolidada através de um Acordo
firmado entre o Forte de Tabatinga e o Serviço de Proteção aos Índios, pelo qual ficou
reservado ao Posto Indígena Ticunas uma faixa de terra medindo aproximadamente 12 km de
extensão por 5 km de largura (6.000 ha) com frente para o [rio] Solimões e fundos para o
igarapé Tacana“.
Ainda segunda a Funai, “a aquisição da fazenda Umariacu de Jose Mendes dos Santos
pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1945, seguiu-se ao citado Acordo o
legalizando, pois, eliminava-se na área acordada, a única posse de particulares. A
transferência dos índios que encontravam-se junto ao Posto em Tabatinga [sic] foi realizada
em fins de 1945 e início de 1946”.36
Algo assim era a esperança que Nimuendajú alimentava por mudanças, expressa no
livro The Tukuna, cujos originais em português concluiu em 1943:37

Para os Tukuna, foi uma triste época de exploração, escravidão e permanência sob o
tacão dos arrogantes “patrões” (sic), homens ignorantes, mas superiores em força. (...) Ainda
hoje existem indivíduos morando nos igarapés habitados pelos Tucuna, que querem manter os
índios sujeitos ao seu mandonismo egoista. É de se esperar que o SPI, que se estabeleceu
nesta região em 1942, coloque um ponto final a estas visões anacrônicas.

Independente do SPI, os próprios indígenas tentaram ao seu modo mudar essas


condições de vida. O elemento central parece ser a espiritualidade da vida tribal. Nimuendajú
fora profético ao afirmar, em 1942, que os Ticuna estavam maduros para um movimento

35
Oliveira Filho, p. 284, e SPI, ofício número 25, p. 10.
36
Funai, DOU, p. 7, seção 1, despacho processo Funai / BSB/0416193. Este documento encontra-se disponível
em http://www.jusbrasil.com.br/diarios/952149/dou-secao-1-13-01-1997-pg-7, acessado em 6 de junho de 2010.
37
Nimuendajú, The Tukuna, p. 9, minha tradução, in Nunes Pereira, Síntese de uma vida... p. 46.
260

messiânico, que ele ajudou a plasmar. Nesse mesmo ano, um ticuna teve visões, mostrando
Nimuendajú como o enviado dos heróis culturais da tribo.
É por isso que, a notícia de uma aparição (ou várias) de Nimuendajú após sua morte
poderá ter acelerado a saída em massa de indígenas das terras seringalistas, sugere Oliveira
Filho:

Em janeiro de 1946, um jovem morador do igarapé Tacana, Aprísio Ponciano, teve


uma visão em que um homem branco (que ele desconhecia mas que poderia ser Tecuquira ou
Tanatü, que costumam aparecer desse modo e que já teriam aparecido anteriormente no
[igarapé] São Jerônimo, com forma física igual à de Nimuendajú) lhe anunciou uma grande
inundação e mandou que todos se reunissem em Tabatinga, em torno de Manuelão.38

A permanente chegada de mais famílias Ticuna à recém criada reserva nos primeiros
meses de 1946 obrigou o comandante do pelotão em Tabatinga a telegrafar urgentemente a
Jacobina Pizarro em Manaus:39

TABATINGA 48/C DE 7/2 PT COMUNICO-VOS QUE NESTES ULTIMOS TRES


DIAS CHEGARAM NESTA LOCALIDADE CERCA 80 FAMILIAS INDIOS TICUNA
NUM TOTAL APROXIMADO 300 PESSOAS APRESENTANDO ASPECTO
DESOLADOR POR FALTA MORADA E ALIMENTOS PRINCIPALMENTE VG
CRIANDO SERIOS PROBLEMAS PARA SENHORA HELENA LIMA RESPONDENDO
INTERINAMENTE PIF TICUNAS (...) PT CONSTA CHEGARÃO DENTRO PROXIMOS
4 DIAS RESTANTES RESIDENTES (...) PT DIANTE DO EXPOSTO SOLICITOVOS
UMA PROVIDENCIA URGENTE VG PRINCIPALMENTE ALIMENTOS E
MEDICAMENTOS E ETC VG POIS TAIS INDIOS ESADO SE ACHAM PODERÃO
CRIAR SERIOS PROBLEMAS NESTA FRONTEIRA PT ENCAREÇO SE POSSIVEL
VINDA PROXIMO AVIÃO ENCARREGADO POSTO COM INSTRUÇÕES E
RECURSOS FAZER FACE SITUAÇÃO PT TEN DOURADO CMT PEL TABATINGA.

Manuelão, que estava em Manaus, voltou às pressas de avião a Tabatinga. De Manaus,


o inspetor Jacobina Pizarro expressa a Nunes Pereira sua satisfação pelo andamento do

38
Oliveira Filho, p. 284.
39
SPI, ofício número 25, p. 11.
261

projeto da reserva dos Solimões, que, na sua opinião, daí em diante iria se desenvolver sem
problemas.
Ele rende uma homeagem ao etnólogo recentemente falecido: “Curt Nimuendajú, se
tivesse assistido a isso [a chegada de indígenas à reserva criada], sentiria certamente uma
indizível satisfação, amante que era dos ticunas [sic], vendo agora despontar a aurora de
redenção de uma tribo inteira, em prol da qual empenhou o derradeiro impulso de seu nobre
coração”. Em ofício ao diretor do SPI no Rio de Janeiro, José Maria de Paula, Jacobina
propõe que o posto seja batizado com o nome de Curt Nimuendajú.40

Oliveira Filho atribui a Jacobina a manipulação dos fatos acontecidos em função de


uma estratégia da ação indigenista na área, que culminaria na criação do Posto Indígena
Nimuendajú. “Isso seria algo que para os índios faria bastante sentido, reforçando um mito
que para eles tinha profundas repercussões políticas e religiosas”, acrescenta.41
Porém, a proposta de Jacobina não vingou. O local chama-se oficialmente Terra
Indígena Tukúna Umariaçu.

Professor Barcelos envenena Nimuendajú para roubá-lo …

Durante suas pesquisas no Alto Solimões, Oliveira Filho gravou uma conversa com
descendentes de ticunas que conheceram pessoalmente Nimuendajú. Este encontro se deu em
1981 – 36 anos após a morte/assassinato do pesquisador. Euzébio Custódio Ataíde (filho do
cacique Nino Ataíde) e Adércio Custódio (filho do cacique Genésio Custódio, irmão de Nino)
afirmam lembrar-se vivamente dele.
A seguir trechos da conversa, dirigida, gravada e editada por Oliveira Filho: 42

“Adércio: Era em São Paulo [de Olivença], ele [Nimuendaju] chegou lá. E lá que
viram! Viram que ele trazia muita mercadoria. (…) Então, aí… um daí que chamava… não
sei como é o nome dele…
Euzébio: Barcelo.
Adércio: (...) O Barcelo viu ele. Que trazia muito… Ele [Barcelos] morava na vila,
pertinho, em Santa Rita. Chegou lá, [Barcelos] chamou na mesa e deu um cafezinho para ele

40
Ibid, p. 13 e 15.
41
Oliveira Filho, p. 285.
42
Ibid, p. 276.
262

[Nimuendaju]. Deu aquele cafezinho… então ele morreu. Não sei o que botou, um pouco de
veneno, acho… (...).
Euzébio: Foi o finado Genésio que foi buscar ele [Nimuendaju] lá em São Paulo[de
Olivença]. (...) Aí quando, com o Barcelo, aí que deram o cafezinho pra ele. (…) Quando o
finado Côrt [sic] disse ‘Te logo’, ele [Barcellos] disse: ‘Te logo’. Aí quando ele andou,
distante assim pouquinho, aí o Barcelo disse:‘Não sei que hora eu apareço por lá!’. O Barcelo
disse, já mangando, porque parece que ele já estava sabendo… Que estava fazendo mal, né?
Lá que o finado Genésio pegou [percebeu] que foi ele que botou veneno. (…) Quando finado
Côrt [sic] chegou lá na casa do Nino, aí ele passou mal… (…) Chegou aí, quando foi negócio
de umas oito horas da noite, aí ele sentiu dor de estômago, provocou [vomitou], provocou
(…) só sangue, só sangue. Aí quando foi o outro dia [Nimuendajú] morreu. Aí que ele
[Barcellos] apareceu. (...)
Adércio: Foi assim mesmo, Pai contou que foi ele mesmo! (...)
Adércio: Então, aí o Nino e o papai entregaram tudo prá ele… Leva! Devolveram para
ele (…) Ele ficou com todo aquele montão de mercadoria, a caixa (…). Era terçado, era
machado, era tudo. (…) Ficou tudo prá ele. Aí la, em Santa Rita, é que ele distribuiu mesmo
pro povo dele (…)
João [Oliveira Filho]: Nenhum Ticuna ganhou nada?
Adércio: Não. Distribuiu só pros civilizados. E nós ficamos (…) Era por causa disso
que ele [Barcellos] envenenou o Côrt [sic].
João: Não tem uma história de que ele [Nimuendaju] tinha uma mulher? Que casou
com uma ticuna. É verdade?
Euzébio: Não, nunca teve.
Adércio: Nunca teve! Nunca teve, nunca! Na vida nunca, porque papai contava isso.
Nunca!”.

Nesta versão, não se fala da quantia de 30 mil cruzeiros que, segundo Nino Ataíde,
fora achada durante a avaliação dos pertences de Nimuendajú.
Mais significativo ainda é que nenhum dos indígenas que participaram da gravação em
1981 viu o que narraram. Eles repetiram o que uma suposta testemunha teria presenciado (o
cacique Genésio Custódio, irmão de Nino Athayde).
Chama ainda a atenção a vigorosa negação de ambos indígenas ouvidos de que
Nimuendajú tivesse mantido relações sexuais com mulheres ticunas. Duas delas, segundo o
depoimento de Nunes Pereira apresentado por Oliveira Filho, deveriam ser uma irmã de
263

Euzébio (e portanto tia de Adércio) e uma de Adércio (e tia de Euzébio). Fica a impressão
desse ter sido um sangrento drama passional no interior da família ticuna com quem mais
Nimuendajú manteve contato, se é que tudo isso assim aconteceu.

Envenenado por Barcellos, Nimuendajú morre na casa deste…

Em 1983, dois anos depois da conversa com os ticuna Euzébio e Adércio, Oliveira Filho
recolhe outra versão. Quem narra é Pedro Inácio, apresentado por Oliveira Filho como “atual
capitão de Vendaval [povoado ticuna], apoiado nas observações de João Laurentino [genro de
Calisto, outro cacique]”.
A sétima versão narra o que teria começa a acontecer à beira de um igarapé e
culminado no desenlace na casa do professor Barcellos:43

Ele (Nimuendaju) chegou lá com muita coisa prá ele (Nino) e outros tuaxawa
[cacique] que mora mais perto (…) Barcellos estava remando na frente, então viu um monte
de coisas. Cheio de caixa, assim, muita caixa com mercadoria que o Cort trazia. (…) Passou
[Nimuendajú] uma semana lá com Nino. Então uma vez o Barcellos foi lá e disse: ‘Olha, você
vem com nóis. Porque você mora com os Ticuna? Lá é coisa … não presta’. (...) Aí ficou
[Nimuendajú] lá [na casa do Barcellos]. Chegô a hora do almoço, almoçaram. Então, antes
disso já estava preparado o veneno, desse Barcelo. Preparô lá, quem sabe como foi. Terminô o
almoço e falô: ‘Pode trazer o café para ele’. Então deu para ele [Nimuendajú], ele tomô. Logo
que acabô de tomar o café, lá se deu o grito e provocou em sangue. Mesma hora Côrt morreu
(…). Assim que foi.

Faz pouco sentido continuar especulando. Tantas versões e inúmeras contradições ao


longo de mais de 65 anos geram uma dinâmica que ainda torna possível o surgimento de
novas lendas sobre o falecimento de Curt Nimuendajú.
Independente da versão apresentada por quem narra a susa morte, esse alemão de
nascimento, brasileiro de carteirinha e indígena de coração renasce permanentemente na
memória tribal dos Ticuna do Alto Solimões.

43
Ibid, p. 280.
13 - Cosmogonias indígenas adotam Curt Nimuendajú

O mérito de Curt Nimuendajú pelas suas inovações introduzidas na Etnologia e pelas


pesquisas realizadas deve ser creditado, em boa parte, aos seus inúmeros parceiros indígenas.
Ele queria incentivar a continuidade (às vezes o renascimento) da cultura e da tradição desses
povos, mas também oficializar a posse das terras por eles habitadas.

Nos casos en que essa ingente tarefa se tornou realidade, os indígenas o haviam
integrado ao cotidiano das aldeias, através de batizados, casamentos e das atividades do dia a
dia. Mas, aparentemente, ele também se deixou integrar. A mútua cooperação foi
particularmente intensa em três das quase quarenta tribos por ele visitadas: Apapocuva-
Guarani (SP), Canela (MA) e Ticuna (AM).

Nimuendajú descreve o casamento com Kentapi (na foto).

A face mais sutil da profunda abertura indígena nessas tribos é revelada pelo fato de
que Nimuendajú foi incluído na própria cosmogonia, foi tratado como um representante dos
265

deuses. Essa situação impregnou de tal forma os indígenas Canela e Ticuna que, pouco mais
de duas gerações após sua morte em 1945, a passagem de Nimuendajú continua viva na
memória geracional desses grupos.

O alemão é aceito na tribo Guarani

Nas minhas pesquisas, não achei relatos de indígenas Apapocuva-Guarani que tiveram
contato pessoal com Curt Nimuendajú durante a sua permanência na tribo ou mesmo depois
de sua partida para Belém.1
Os dados dos primeiros anos Curt Nimuendajú no Brasil mostram que, na ausência de
relatos dos Apapocuva, há fatos que apontam para um profundo e íntimo relacionamento com
os indígenas da região:

1903 Curt Unkel, aos 20 anos de idade, chega ao Brasil e se instala em São Paulo.
1905 Conhece os Apapocuva na atual divisa SP-MS.
É adotado pela familia do cacique e pajé da tribo.
1906 É batizado com o nome de Nimuendajú.
1907 Entra em contato com outras tribos da região.
1910 Ingressa no SPI, criado nesse ano pelo coronel Cândido Rondon.
Cria a reserva de Araribá para os Guarani e outras tribos da área.
1911 Retorna a Araribá por alguns meses.
Começa a “atração” dos Kaigang (SP).
1912 Em Araribá, “caça uma alma em pena” que aterrorizava sua aldeia.
Empreende com Mbya-guarani vindos do Paraguai a busca da Terra sem Mal.
1913 É iniciado nas lendas fundadoras dos Apapocuva.
1914 As lendas são publicadas em apapocuva-guarani e em alemão.
Muda-se para Belém e nunca mais volta a Araribá.

O principal documento que ilustra as relações entre Nimuendajú e esses indígenas é


a sua primeira obra – As Lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da
religião dos Apapocuva-guarani.

1
A exceção constitui o “capitão” Antônio Branco, que, em 1985, afirmou ter conhecido pessoalmente
Nimuendajú. Na verdade, ele só lembrava que o seu pai, um cacique, teria recusado a proposta de Nimuendajú
de ir morar em Araribá, cf. Ladeira , M. & Azanha, p. 50.
266

Uma leitura inversa da longa introdução da cosmogonia e apocalipse indígenas conduz


à pergunta: o que terá levado esses indígenas a aceitar a presença permanente de um homem
“branco” na aldeia? As violências da população “civilizada” local contra os Apapocuva,
narradas inclusive por Nimuendajú nessa obra, já deveriam ser razão suficiente para, em
condições normais, barrar sua moradia na taba.
O simples desconhecimento da língua falada na tribo já era um motivo para afastar os
que não nasceram Apapocuva, inclusive indígenas de outros grupos. Para esses indígenas,
Curt Unckel não foi um “civilizado” como os outros. Ele tinha ou trazia algo que o distinguia
dos demais.
No seu segundo ano no Brasil, certamente que Nimuendajú não falava fluentemente o
português. Mesmo assim – ou talvez por isso mesmo – foi aceito. É ele quem conta a respeito
dessa barreira cultural que os Apapocuva criavam para se diferenciar, inclusive de outros
indígenas:2

Só quem fala exatamente o mesmo dialeto é considerado pelos Guarani como membro
da tribo. A menor diferença de sotaque em relação ao dialeto da horda [do grupo] é motivo de
escárnio e caracteriza a pessoa como estrangeira [no original, a palavra em alemão é Fremde,
que corresponde em português a forasteiro, estranho]. Quando se fala em outro dialeto, é
frequente os índios se recusarem a entender, embora pudessem fazê-lo.

Esta observação só aguça o mistério de porque esses indígenas terão despendido tanto
esforço durante tantos anos para instruir um perfeito desconhecido na língua e nos costumes
da tribo. Igualmente enigmático é que ele tem acesso imediato e íntimo à mais alta autoridade,
do grupo, pois é adotado como filho por Joguyroquy.
Curioso é que Nimuendajú chama seu pai de duas maneiras diferentes: Joguyroquy, no
livro As Lendas, e Avacauju, nas obras Nimongaraí e Apontamentos.
Seu pai indígena concentra o poder político como cacique; o religioso, como pajé. A
mãe indígena é Nimoá, ele tem dois irmãos: Guyrapéjú e Aavajoguyroá. Os quatro membros
da família original, mais sua cunhada Mangaayjú, estão retratados numa foto à página 386 da
publicação original em alemão.
Nimuendajú relata uma situação de perigo – caçar um “grande cão” [talvez uma onça]
que incorporara a alma de um Apapocuva assassinado –, onde se torna perceptível, de

2
Nimuendajú, As lendas, p. 7.
267

maneira sutil, o carinho e a preocupação dos pais indígenas pelo filho adotivo, nascido na
Alemanha:3

Convenci afinal um rapaz afeiçoado a mim, mas Joguyroquý declarou não ter
confiança nele e que seria melhor eu mesmo ir. Era só isso que eu estava esperando e
concordei imediatamente. Joguyroquý, contudo, logo encheu-se de dúvidas, temendo que a
coisa acabasse mal para mim, seu ‘filho’. Mas fiquei firme e os preparativos se realizaram.
Minha mãe adotiva, Nimõa, teceu uma faixa larga com longas borlas nas pontas e bordada por
um rico enfeito [enfeite] de penas. Joguyroquý fez três flechas comuns de caça, de cana de
cambaúva, ponta dentada de madeira e penas de jacu como guias.

Outra situação incomum é o seu batizado como membro do grupo. Batizar uma
criança é algo extraordinário para os Apapocuva-Guarani. Nimuendajú explica que, para eles,
o nome escolhido é a própria pessoa e não apenas uma maneira de chamá-la. As crianças são
batizadas depois que o pai conclui a couvade, o período de reclusão de vários dias logo após o
nascimento. Mais extraordinário ainda é que Nimuendajú recebe seu nome indígena aos 23
anos de idade, junto com o irmão nascido dias atrás.
Seu relato é, portanto, único por se constituir em uma observação direta e participação
consciente de uma ceremônia de batizado indígena:4

Avacauju [o pajé que dirige a ceremônia] chegou bem perto de mim, aproximou seu
rosto ao meu e, em estado de êxtase e com voz excitada, disse-me: “Teu pai está falando. Este
(apontando para Ponõchi e a mulher deste) é teu padrinho – esta, tua madrinha. Teu nome é
Nimuendajú. Nimuendajú é como te chama a nossa gente”. “Nimuendajú!”, repetiu com voz
forte, dando um passo para trás e estendendo as duas mãos sobre a minha cabeça, como que
abençoando-me. Ponõchi, que tornara a por a cuia na forquilha, apertou-me sobre o ombro
para que eu me sentasse no banquinho, enquanto o canto recomeçou. Afinal, Avacauju deixou
cair as mãos, a melodia emudeceu e a cerimônia estava terminada.

O nome Nimuendajú tem a peculiaridade de prestar-se a diversas traduções para o


português, conforme consta do capítulo 2. Sentindo-se um Apapocuva, Nimuendajú via-se

3
Ibid, p. 43.
4
Nimuendajú, Apontamentos..., p. 39. O tradutor e editor desta obra, o antropólogo Egon Schaden, diz que o
texto provém de anotações feitas por Nimuendajú, não aproveitadas e só divulgadas após sua morte. Na verdade,
o batizado, parcialmente modificado, foi publicado pelo próprio Nimuendajú no jornal Deutsche Zeitung, em
1912.
268

compelido a não divulgar o significado mais profundo do seu nome. Independente da


discussão de especialistas sobre se o seu nome teria um sentido religioso ou não, fato é que as
lendas do seu livro sobre os Apapocuva apresentam exclusivamente a espiritualidade indígena
(a língua da tribo é mostrada em apenas sete páginas de um total de 119 na edição original).

Nimuendajú no universo Guarani

Nesse livro, ele exibe a cosmogonia e a escatologia com a segurança de quem vive nesse
universo, até então simplesmente desconhecida por “neo-brasileiros”. Eu não achei explicação
para o mistério de porque Nimuendajú teve acesso a essa centenária espiritualidade indígena.
Ele apresenta, por exemplo, uma hierarquia divina à qual nem jesuitas nem franciscanos
tiveram acesso em quase quatrocentos anos de contato com os vários grupos Guarani que,
nesse período de tempo, moraram distribuídos pelo Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai.

Eles são os “deuses masculinos” Ñanderuvuçú, que ocupa papel central, e Ñanderu
Mbaecuaá, o segundo na hierarquia. Também aparece a “deusa” Ñandecý. As duas figuras
máximas apresentadas pelos religiosos cristãos têm papel secundário para os apapocuva,
afirma ele:5

Apenas no capítulo XXX da lenda da criação aparece uma figura cujo nome veio a
ganhar popularidade absolutamente imerecida, pois foi aplicado pelos velhos missionários
como denominação do diabo em todo o Brasil: Añãy, o Anhanga dos Tupi. (…) Eles
[Nimuendajú pluraliza para os Añãy] são, pelo menos no começo [da criação], mortais como
os jaguares, e não só são desprovidos de qualquer força mágica excepcional, como carecem
de qualquer esperteza humana. (…) O papel que a mitologia Apapocuva lhes reserva é [o] de
um burlesco tal que não encontrei equivalente em nenhuma outra lenda indígena.

A segunda figura que jesuitas e franciscanos apontam como central na cosmogonia


guarani é Tupã, tido por eles como o deus único indígena, à imagem e semelhança do
monoteismo cristão. Nimuendajú aponta o desconhecimento desses sacerdotes, desde a época
colonial, das raízes religiosas indígenas:6

5
Nimuendajú, As lendas, p. 52.
6
Ibid, p. 55. Curioso é que, na tradução ao português, o apelido de Nimuendajú de Tujá é grafado,
equivocadamente, como Tupá, cf. p. 44.
269

Defrontei-me com esta figura mitológica com certa desconfiança. Primeiro, devido ao
notório abuso que os missionários praticaram com seu nome, fazendo-o significar “deus“ em
todo o Brasil, Paraguai, grande parte da Argentina e Bolívia, e o introduzindo com esta
acepção em tribos que, como os Jüporoka-botocudos ou os Kiriri, são tão aparentados com os
Guarani como os alemães com os árabes. Segundo, fiquei um tanto perplexo com o fato de
que Tupã só aparece no fim do ciclo mitológico Apapocúva, no capítulo XLIII, ao passo que
a ação propriamente dita já termina no capítulo XLI, e que, exceto com Ñandecý, ele não
estabelece relações com nenhuma outra personagem mítica – de tal modo que é fácil ter-se a
impressão de que esta figura teria sido acrescentada posteriormente.

Igualmente importante para avaliar a enorme penetração de Nimuendajú entre os


Apapocuva é saber como ele teve acesso a um tema até então oculto. Nimuendajú faz questão
de informar no livro que recebera esses segredos tribais de três sábios: “Meus informantes
foram três bons amigos da horda dos Apapocúva, à qual eu também pertenço: Guyrapaijú,
velho e conservador; Tupãjú, muito viajado; e principalmente Joguyrovyjú, o místico
religioso”.7 Mas silencia quanto às razões que levaram os indígenas a confiar-lhe esses
segredos.
Também é fundamental ressaltar o momento em que se dá a transmissão do
conhecimento da cosmogonia indígena. Nimuendajú mesmo datou o início dos diálogos:
junho de 1913. Um ano antes, contudo, ele fora submetido a uma prova de coragem. Em
1912, vivencia pessoalmente o medo que assola sua aldeia devido a uma assombração. Um
guarani chamado Avaretey fora morto pelo próprio cunhado, que estava bêbado. Segundo a
religião, a parte animal (anguéry) da alma de um indígena assassinado custa a achar o
caminho para a Terra sem Mal. No caso narrado por Nimuendajú, ela se incorpora num
“grande cão”. Como várias tentativas de um pajé de afastar o anguéry do assassinado que
apavora a aldeia falham, é a vez do pai de Nimuendajú dar um jeito na situação.
A empreitada é cheia de risco, adverte Nimuendajú:8

Ninguém tenta corrigir seus desvios [do anguéry] de modo amigável, ao contrário:
procura-se eliminá-lo como a um animal perigoso – isto é, se se ousa tanto, se alguém tem
coragem de embarcar em tão perigosa aventura. Senão, prefere-se simplesmente abandonar o
lugar. Também no Araribá havia um bom número dos que opinavam ser muito melhor largar

7
Ibid. p. 4.
8
Ibid, p. 42.
270

tudo e partir depressa para Mato Grosso [MS], para o litoral ou para qualquer outro lugar. A
eliminação propriamente dita do anguéry não é tarefa própria do pajé principal, recaindo
sobre um ajudante especialmente designado por ele para tal [ação]. Joguyroquý [pajé-chefe e
pai adotivo de Nimuendajú] encontrou as maiores dificuldades, pois ninguém queria assumir
o perigoso encargo.

Nimuendajú acaba assumindo a missão de libertar a tribo da assombração. Joguyroquý


organiza a expedição: ele leva seu maracá, dois indígenas carregam machado e foice,
Nimuendajú vai armado com o fusil Winchester que trouxera da Alemanha.
Uma indígena, na qualidade de madrinha, acompanha os homens. A quase dois
quilômetros da aldeia, Joguyroquý instala-se numa clareira e começa a cantar, atraindo
finalmente a assombração para fora da mata.
Nimuendajú conta com detalhes o que acontece:

O medonho visitante aproximava-se lenta e inexoravelmente; ao menos era o que


gemia Joguyroquý em meio a seu canto; “Ojaró ma curí, anguéry! Nderechaí pã, Tujá?
Oú raé!” – “ele já chegou mais perto, o anguéry.! Não o ves, Tujá? Ele realmente está
vindo!”. Mandou que eu avançasse, e pulava como se quisesse pegar o anguéry pelos flancos
com seu maracá. Pelo modo como ele o defrontava, saltando à esquerda e à direita, pude
deduzir o lugar exato onde o espectro deveria estar – perigosamente perto, aliás. De repente,
Joguyroquý saltou para o meu lado, agarrou-me pelos ombros por trás e, gritando com uma
voz esganiçada pela emoção, estendeu a mão com o maracá à nossa frente, para dentro da
escuridão noturna:“Upepy! Upépy! Embopú voí, Nimuendajú!” – “Para lá, para lá! Atire
rápido, Nimuendajú!”

O excitado alemão obedece imediatamente:9

– Trovejante, o tiro partiu na direção indicada; mas eu obviamente havia mirado mal,
Joguyroquý gritou com maior desespero ainda: “Upépy, Tupá [sic], embopú jevý catú!” –
“para lá, Tujá, atire mais uma vez!” – Mirei, então, com todo cuidado no ponto exato indicado
pelo maracá, e de novo o tiro ecoou no universo. Quando baixei a arma, o pajé suspirou
aliviado: “Aipó catú!” – “Agora, sim!” – Ele estava quase chorando. Os outros, exceto minha

9
Ibid, p. 44. É neste trecho que a tradução ao português troca o apelido de Nimuendajú de Tujá por Tupá.
271

corajosa madrinha, tinham-se valentemente afastado, no momento crítico, uns trinta passos
atrás.
As datas fornecidas por Nimuendajú sugerem que somente após vencer essa prova
iniciática de coragem, que restabeleceu a paz na aldeia, é que lhe são revelados os mistérios
da tribo. Ele não informa se recebeu atribuição de poder espiritual (como se daria depois entre
os Apinayé, no Maranhão) ou a função de sábio da tribo (a exemplo dos Ticuna, no Alto
Solimões).
Seja como for, dois anos antes desse episódio já revelara sua liderança inconteste ao
realizar o aldeamento de sua tribo e de outras próximas na reserva de Araribá. Foi ele quem
solicitou a sua criação ao Inspetor do SPI de São Paulo, Luiz Bueno Horta Barbosa, que
visitou a aldeia, conforme mostra a foto da página 384 da versão em alemão do livro As
lendas.
Nimuendajú foi o primeiro etnólogo que participou de várias manifestações do
messianismo indígena. A primeira vez quando, em 1912, acompanhou os Mbyá-Guarani,
vindos do Paraguai em busca da Terra sem Mal. Ele os encontrou perto da capital paulista e
os guiou até o litoral, pois desejavam atravessar o oceano.
Diante da magnitude do Atlântico, os Mbyá desistiram e, depois de três dias de
discussões, aceitaram a proposta de ir morar em Araribá. Porém, assim que Nimuendajú
voltou ao SPI em São Paulo, eles abandonaram a reserva. O simples fato de Nimuendajú ter
dirigido os Mbyá na sua peregrinação rumo ao paraíso indígena, mesmo que somente por
alguns dias, também terá impressionado positivamente os Apapocuva.10
Um outro etnólogo também foi bem recebido pela tribo. Egon Schaden, de pais
alemães e nascido em Santa Catarina, foi adotado pela mesma família indígena e falava que
era “irmão de Nimuendajú”. O privilégio de ter acesso direto aos segredos fundadores da
tribo, porém, ficou para Nimuendajú, pois, aparentemente, Schaden não recebeu informações
a esse respeito.
Para isso terá pesado ainda o fato de Nimuendajú ter morado (e migrado) vários anos
com os indígenas e ter se empenhado pelos seus irmãos. Nimuendajú contou ao sociólogo
Baldus ter sido baleado em Bauru, perto de Araribá, por membros da população local.
Em 1912, a reserva de Araribá incluía, além da própria tribo de Nimuendajú, membros
dos Oguauíva, Nimombaecatú, Tupãmbei e Nimbiadrapoñý. Ao longo dos anos seguintes,
praticamente todas desaparecem, a composição da reserva muda repetidamente. A

10
Ibid, p. 106. Antes de entrar em contato com os Apapacuva-Guarani, um grupo destes tentara durante mais de
cinco anos chegar à Terra sem Mal, até se recolher, em 1912, à reserva de Araribá, ibid. p. 15.
272

antropóloga Lucia Helena Rangel afirma que “(…) a reserva estava praticamente desabitada
no final da década de 1920, em razão de os Gurani terem sido dizimados por um surto de
gripe espanhola que os atingiu por volta de 1919. No final dessa mesma década, chegam ao
Araribá as primeiras familias terena, procedentes do Mato Grosso do Sul. Existem atualmente
[1983] dois aldeamentos separados: um Terena, outro Guarani”.11
Em julho de 2010, três dos quatro grupos indígenas eram da etnia Terena. Somente a
aldeia Nimuendaju abrigava 25 membros do grupo Guarani, possivelmente nenhum deles era
Apapocuva-Guarani, o que significaria a extinção de sua linha familiar indígena, assim
também como a sua família alemã Unckel deixou de existir.12

No sertão dos Canela

O que apenas se esboça entre os Apapocuva torna-se visível em meio dos Canela. A ação
etnológica e a postura pessoal de Nimuendajú têm efeitos inovadores, renovadores, na cultura
desses indígenas do sertão então considerado maranhense. As sementes lançadas por ele de
1929 a 1937 frutificam após sua morte. Em 2004, ainda era lembrado como enviado de uma
divindade, que reside além mar, possivelmente na Europa.
Até a chegada de Nimuendajú à aldeia em 1929, fazendeiros e criadores de gado
pressionavam os indígenas a abandonar suas terras ancestrais nas proximidades de Barra do
Corda. Além de plantar para consumo próprio, também trabalhavam para os sertanejos. A
cachaça e o assédio sexual dos fazendeiros e de seus empregados aumentavam o conflito
cultural e existencial. Aparentemente, os Canela tinham uma atitude defensiva, esquiva,
perante a população local.
É nesse universo adverso que Nimuendajú incentiva os indígenas à prática e à
retomada de antigos costumes e festas religiosas. Um exemplo é a reintrodução da corrida de
toras em determinadas cerimônias. A mudança pacífica que somente décadas mais tarde seria
captada pelos antropólogos foi respondida imediatamente com violência pelos fazendeiros. As
ameaças e agressões de pistoleiros dificultavam a ação de Nimuendajú, mas, ao mesmo
tempo, contribuiam para consolidar sua imagem perante os Canela.
O comprometimento de Nimuendajú levava-o a se hospedar nas aldeias, rompendo
com isso a separação existente entre indígenas e sertanejos/fazendeiros. Desta maneira, ele
começou um movimento que teve continuidade após sua morte. William Crocker, o

11
Rangel, Lucia Helena, Vida em reserva, p. 77.
12
Jornal da Cidade, de 01/07/2010, Bauru.
273

antropólogo norte-americano que visitou a aldeia Canela pela primeira vez em 1957, disse que
o funcionário do SPI, Orículo Castello Branco, instalou-se com sua família em 1938 na aldeia
e enfrentou os criadores de gado da região.
Depois, foi a vez de Olimpio Cruz, que chegou em 1940 e incentivou o trabalho na
roça ao ponto dos Canela atingirem a autosuficiência agrícola por alguns anos. Antes da saída
de Olímpio em 1947, uma professora primária do SPI, apenas conhecida como dona Nazaré,
ensinou seis jovens a ler e escrever em português.13
A linhagem de engajamento teve continuidade através do próprio Crocker, que
morava na aldeia durante suas pesquisas e falava a língua canela. O movimento iniciado por
Nimuendajú gerou uma profunda transformação do universo indígena, afirma o antropólogo
Jonaton Alves da Silva Júnior.
Os não-indígenas passaram a ser agrupados em três “tipos de agentes externos”: o
sertanejo, os moradores das cidades vizinhas (em especial de Barra do Corda) e os habitantes
de cidades grandes (pesquisadores brasileiros, estrangeiros, funcionários do SPI e, atualmente,
da Funai).14

O messianismo canela

Em janeiro de 1963, surgiu um movimento messiânico na comunidade Canela. Líder é Khêê-


khwèy, descrita por Crocker como “uma bela e alta mulher de 40 anos“. Grávida, ela afirmava
receber mensagens do feto. A principal profecia é que, após seu nascimento, os Canela
passariam a viver como os brancos, isto é, nas cidades e usando carros, enquanto que aqueles
caçariam no mato com arco e flechas. Seria uma inversão radical da situação existente.
A liderança Canela aceitou as profecias, o movimento messiânico cresceu e os
indígenas passaram a abater inúmeras cabeças do gado dos fazendeiros, que pastavam em
terras tradicionais da tribo. Uma nova mensagem do feto autorizou o abate porque, afinal,
logo eles seriam os donos dos rebanhos, que atualmente estavam em poder dos fazendeiros e
eram cuidados pelos empregados.
Em meados de maio, o bebê nasceu, mas logo morreu. Isto provocou uma divisão
entre os Canela, alguns abandonaram o movimento, outros continuaram dançando para
apressar as profecias. Mas também roubando o gado. A reação se faz sentir, escreve Crocker:

13
Crocker, William, The Canela (Eastern Timbira), I, An Ethnographic Introduction. Smithsonian Institution,
Washington, D.C., 1990, p. 17.
14
Silva Jr., Jonaton Alves da, Barra do Corda, Nimuendajú e um esboço da fricção interétnica, em
http://indiosdomaranhao.blogspot.com acessado em 21/11/2010.
274

No dia 10 [de julho de 1963], cerca de 200 fazendeiros e empregados atacam a maior
aldeia (…). Mas os Canela já estavam de sobreaviso devido ao primeiro ataque [três dias
antes a uma aldeia menor] e tinham colocado sentinelas. Comandados pelo jovem líder
Kaapêltùk, os homens levaram as mulheres a atravessar um rio próximo, usando a espessa
floresta ciliar que ligava as duas beiradas. Os homens que ainda possuíam as poucas armas
que não foram vendidas ficaram defendendo esta “ponte” até que as mulheres entraram na
floresta do outro lado do rio. Desta forma, cinco ou seis Canela liderados pelo jovem
Kaapêltùk e escondidos no mato conseguiram resistir [o ataque de] 200 fazendeiros durante as
duas horas que mulheres e crianças precisaram para atravessar em direção ao oeste.

Vista aérea da aldeia Canela invadida por fazendeiros e seus empregados.

Após sete dias perambulando pelo sertão e graças à intervenção de funcionários do SPI
de Barra do Corda, os Canela se instalaram em outra área. É quando Crocker chega a Barra do
Corda e fica sabendo do movimento messiânico, do qual nem os fazendeiros nem os
sertanistas do SPI tinham conhecimento.15

15
Crocker, p. 18 e p. 19, minha tradução.
275

Silva Jr. diz que a líder do movimento messiânico, Khêê-khwèy, também conhecida
pelo nome de Maria Castelo, foi empregada da família de Orículo Castelo Branco: “Maria
Castelo teve influência enorme de Castelo Branco, (…), ela falava bem o português, morava
na casa do posto [do SPI] e (…) viu Nimuendajú quando tinha 11 a 13 anos, no auge das
pesquisas dele entre os Canela”.16
A influência de etnólogos e sertanistas sobre os indígenas mostra o outro lado dos
contatos interétnicos, pois, entre 1980 e 2003, três tradutores e assistentes de pesquisa de
Crocker se tornaram líderes nessa comunidade Canela.17
Outra prática, iniciada por Nimuendajú e mantida pelos etnólogos posteriores a ele, é a
maneira destes se relacionarem com os indígenas. Nimuendajú costumava pagar com
mercadorias valiosas para os índios (panos, miçangas, machados) o artesanado confeccionado
por estes ou a participação em festas. O interesse de Crocker pelo artesanato, festas, ritos e
mitos indígenas despertava neles “lembranças boas e sadias”.18
Segundo Silva Jr., “Crocker também consolidou o sistema de pesquisa de Nimuendajú
de compensar os índios nas ajudas de pesquisa, pagar os índios pelas informações e depois
disso todos os antropólogos que vieram tiveram que fazer tal processo de alguma forma,
porque ’os antropólogos são fiscais de Awkhê!’, nas palavras dos próprios Canela”.
A identificação da ligação entre antropólogos e Awkhê é possivelmente a maior
contribuição de Silva Jr. para compreender o significado que os Canela ainda hoje atribuem a
Nimuendajú. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que analisou o mito do Awkhê,
afirma que esta figura mítica Canela “seria um índio que, queimado, teria se transformado no
primeiro branco, D. Pedro II (1825-1891) em algumas versões – em todo caso, um fazendeiro
benigno [bom]”.19

Nimuendajú, representante de Awkhê

Ouvindo três adultos Canela em 2004, Silva Júnior constatou que a imagem de Nimuendajú
como representante de Awkhê ainda se mantém viva na memória desse povo. O indígena José
Pires Cahhàl, que tinha 58 anos ao dar depoimento, não tinha nascido quando Nimuendajú

16
Silva Jr., entrevista em 23/11/2010.
17
Crocker, capítulo final, p. 7. Neste mesmo livro, ele inclui dois outros elementos que agiam na sociedade
Canela no início do novo milênio: o desejo dos jovens de concluir o nível secundário de ensino e a penetração de
duas vertentes do cristianismo, a católica e a protestante, esta última via o Instituto Linguístico Sommers, p. 14.
18
Silva Jr, ibid.
19
Cunha, Manuela Carneiro da, O Mundo aos pés dos Índios, Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 6,
nº 63, de Dezembro de 2010, p. 33.
276

visitou a aldeia e, durante o movimento messiânico de 1963, era adolescente. Mesmo assim,
ele narra que:20

Awkhê ainda esta vivo, ele vive na Europa, ou (...) nos Estados Unidos. Ele era quem
mandava o ‘curto’ (referência a Nimuendajú), ele vinha pegava os artesanatos nossos e levava
para a terra dele, chegava lá Awkhê ficava alegre em vê as coisas do seu povo, perguntava por
todo mundo e então mandava o “Curto” de novo, sempre trazendo dinheiro para nós, só que o
branco ficava com quase tudo, quando o Kokaipó [nome Canela de Nimuendajú] chegava
aqui, até hoje ele manda dinheiro para a gente, só que os brancos ficam com mais da metade.
Um dia ele voltará e vai transformar a gente, vamos viver melhor!

Silva Jr. disse, em entrevista, que para os Canela “Crocker veio do mesmo lugar que
Nimuendajú; mesmo que este [Crocker] diga o contrario, sempre será assim“. Possivelmente,
é essa origem que os indígenas desse grupo linguístico Jê enxergaram em Nimuendajú.
Nas suas visitas a essas tribos, Nimuendajú recebia constantemente provas de
reconhecimento. A exemplo dos Apapocuva-Guarani, ele foi adotado por uma família
indígena dos Apinayé, pela mãe do cacique José Dias, na aldeia de Bacaba.21
Ele foi batizado com o nome de Tamgaa-ti, como esses indígenas denominavam uma
estrela. Dois outros povos da região também renomearam Nimuendajú. Os Xerente da aldeia
Providência “resolveram botar o maior nome que para eles existe: Seliemtói, o nome que
davam a D. Pedro II que ainda hoje vive na memória deles como a personificação da bondade
e sabedoria”. Já na aldeia do Ponto dos Ramkokamekra recebeu o nome de um famoso chefe
já falecido, Kukaipó.22
Sua posição nessa última aldeia citada era singular. Ele foi o primeiro não-indígena
que, casando com uma mulher da tribo, passou a morar com seus sogros, respeitando a
tradição matrilinear da tribo.
Em suas cartas a Carlos Estevão, Nimuendajú cita três vezes sua mulher Kentapi. Nos
seus livros, publica três fotos dela. Maiores detalhes estão no capítulo 9 - Os relacionamentos
amorosos.

20
Silva Jr., Os Ramkokamekrá: sociedade em movimento, antes e depois de Curt Nimuendajú, UFMA, São
Luiz, 2004, p. 16. No relato, fala-se do retorno de Kokaipó, ou seja Nimuendajú, à aldeia canela.
21
CS, p. 127. Nimuendajú chegou a publicar fotos da mãe Apapocuva, mas não da Apinayé. Seliemtói leva um
til no último i.
22
Ibid. p. 141 e 158.
277

Nimuendajú tinha consciência da influência que exercia na vida dos indígenas. Mesmo
assim, a partir do observado na aldeia Bacaba, disse ter ficado surpreso pela profundidade
desse efeito:23

Se eu não tivesse voltado, os Apinaye nunca teriam achado a coragem de cumprir esta
lei dos seus antepassados, tão condenada pelos “cristãos” que sempre se esquecem que as suas
mulheres tambem tem [sic] as orelhas furadas. Sem eu dizer uma palavra a respeito, a minha
mera presença entre eles reanima os costumes antigos: pintam-se imediatamente, reunem-se
de madrugada e à noite no pátio para [realizar] as suas danças e resolvem ate perfurar orelhas
e lábios! “Quando voce vai embora fica tudo triste: ninguem se pinta mais, ninguem dança
mais!” Eu mesmo fiquei espantado de ver esta mudança. Eu nunca pensava que a minha
influencia chegasse a tanto. E agora toda [a cidade de] Carolina me olha horrorizada porque
pela minha cara ainda correm as linhas pretas da pintura de genipapo dos Apinaye!

Esta situação gerou uma anedota, narrada pelo antropólogo Julio Cezar Melatti e por
ele atribuída ao colega Roberto da Matta: “Na sexta-feira de Páscoa, Nimuendajú saiu de uma
aldeia Apinayé para fazer compras em Tocantinópolis. Pintado e ornamentado como um
índio, ele foi repreendido por um comerciante por andar desse jeito num dia festivo dos
católicos. Apontando os adornos Apinayé, Nimuendajú teria respondido:‘Esta é a minha
religião”.24
Lenda indígena ou anedota etnológica, a posição atribuída a Nimuendajú por indígenas
de várias outras etnias sinaliza um aspecto pouco comentado: ele era tido como um ser
humano enviado pelos deuses. Contando sua passagem por tribos perto do rio Uaupés, na
fronteira com a Colômbia, Nimuendajú revela porque ele era frequentemente visto como
padre: “O índio pede o batismo, isto é, a pura verdade, mas não porque compreendesse o
alcance desse símbolo cristão, mas porque vê nele um ato mágico de grande eficiência, tanto
que ele [o índio] já fica satisfeito se qualquer leigo o executa, sendo numerosos os casos em
que nesta viagem pediram a mim o batismo, mesmo na zona já percorrida pelos padres”.25
O “leigo” Nimuendajú recebe constantemente provas de que os indígenas Jê honram
essa representação espiritual. Em Providencia, uma aldeia Xerente na bacia do rio Tocantins
(TO), é iniciado nos mistérios da tribo pelo cacique e pajé Brue: “Ele era seriamente meu
amigo: nunca tentou explorar-me nem mentiu, e no dia antes da minha partida passou-me

23
Carolina, 09/03/1930, p. 150, CS.
24
Melatti, Curt Nimuendaju e os Jê, p. 18.
25
Nimuendajú, Reconhecimento dos rios Içana, Aiari e Uaupés, p. 103.
278

solenemente e perante todo o povo as coisas sagradas que ele tinha recebido da Estrela
d'Alva: a cantiga, a pintura e os pauzinhos que possuem o poder de impedir que um eclipse
solar se eternize”.26
Seria um erro imaginar que Nimuendajú foi aceito nas tribos e recebeu homenagens
somente depois de ter exibido a sua postura a favor dos indígenas. Sem precisar mostrar de
que lado estava, ele foi batizado já durante a primeira permanência de alguns meses nas tribos
Apinayé (1928), Canela (1929) e Xerente (1930).

A demarcação de terras

Nimuendajú também se empenha pessoalmente para garantir as terras de alguns grupos


Canela. Através do médico e delegado regional do Conselho de Fiscalização nesse Estado,
João Braulino de Carvalho, ele consegue uma audiência com o governador Achiles Lisboa. A
estratégia é bem sucedida, informa contente a Carlos Estévão, a quem orienta sobre os
próximos passos:27

Para o Snr. tratar direito da questão dos Canelas com o General Rondon, comunico-lhe
o seguinte:
1. Que o Art. 133 da nova Constituição do Estado do Maranhão garante aos índios as
terras que ocupam “nos termos do Art. 129 da Constituição Federal”. Esta ótima medida
devemos ao Dr. João Braulino de Carvalho.
2. Que o mesmo Dr. João Braulino de Carvalho fará entrar no orçamento do ano
vindouro a verba de 15 contos para a demarcação de terras de índios.
3. Que o Dr. Achiles Lisboa me encarregará da parte do Governo Estadual de proceder
ao reconhecimento das terras dos Canelas. Este reconhecimento farei gratuitamente e de
forma que ao engenheiro das Obras Públicas que vier depois de mim tratar do assunto pouco
mais restará a fazer além da legalização do levantamento [topográfico] feito por mim.

Não é a primeira vez que Nimuendajú mobiliza Carlos Estévão em favor desses
indígenas. Em 1934, da longínqua e gélida Europa, ele recorda ao amigo: “E NÃO SE
ESQUEÇA DOS CANELAS! [sic]”.28 É curioso que o fato de Nimuendajú interceder nessa
época pelos Canela durante sua estadia na Europa coincide com a imagem dos indígenas de

26
Boa Vista, 18/06/1937,CS, p. 266.
27
São Luiz do Maranhão, 25/04/ 1936, CS, p. 245.
28
Dresden, 26/0491934, CS. p. 204. Em 10/05/1934 e 09/07/1934 repete a mesma mensagem.
279

que ele é um enviado do deus Awkhê, que mora além mar, conforme depoimento recolhido
por Silva Jr. em 2004.
Já de volta ao Brasil em 1934, pode-se imaginar a sua satisfação ao receber
pessoalmente o apoio do governador para avançar nesse projeto: “Consegui do Dr. Achiles
uma autorização para proceder ao reconhecimento das terras ocupadas pelos Canelas - sem
remuneração, nem ajuda de custas. (…) Achei que devia aproveitar essas boas vontades e
fazer um levantamento expedito, calculando a área total e a área aproveitável para a
lavoura”.29
Ele age sem hesitar, mesmo sem contar com o equipamento técnico indispensável:

Imediatamente, e debaixo de todo segredo, comecei então o levantamento das terras,


auxiliado pelos índios. Não me foi possível obter em São Luiz nem uma corrente de medição,
nem uma bússola prismática. Comprei 20 metros de corrente de prender cachorros, coloquei
fixas [fichas] e argolas nela e assim fiz uma boa corrente de medição. Os rumos tive de
levantar com minha bússola de mão. Alguns alinhamentos eu medi à [com a] corrente, outros
levantei à [com] bússola e relógio. Foram 11 dias de duro trabalho, debaixo do sol abrasador
dos chapadões, varando por cerrados, caatingas e serras. Quando os nossos vizinhos
[fazendeiros e sertanejos] se aperceberam do que estávamos fazendo, já o trabalho estava
findo - e eu com os meus pés em petição de miséria!

Com os dados do levantamento topográfico debaixo do braço, ele retorna a Barra do


Corda, onde, contando com meios técnicos igualmente precários, trabalha:

(...) três dias desenhando como nunca na minha vida e remeti dois exemplares do
croquis e os dados necessários, um ao Dr. João Braulino e o outro ao Dr. Antônio Lopes, visto
como o Dr. Achiles já tinha entregue o governo ao [interventor nomeado pelo presidente
Getulio Vargas] Carneiro de Mendonça. Calculei a área total em 330.000 hectares, dos quais
malmente a décima parte prestável para a lavoura: as restingas estreitas e muitas vezes
falhadas ao longo dos cursos mais volumosos de água.30

O balanço desta ação mostra um ativo anímico e um passivo profissional. Dedicando-


se em tempo integral à demarcação da terra dos Canela, abandona os estudos etnológicos e a

29
Barra do Corda, 03/07/1936,CS, p. 253. Como se verá mais adiante, Nimuendajú banca estas despesas
com seus parcos recursos.
30
Ibid. p. 255.
280

coleta de objetos. Além disso, as despesas realizadas superam as expectativas iniciais. Porém,
ele está satisfeito: “acho que não pude proceder de outra forma sem renegar o meu passado”.
A alquimia de Nimuendajú consiste em usar a sua remuneração dos recursos enviados por
Lowie destinados ao trabalho etnológico para pagar justamente os custos do levantamento
topográfico das terras dos Canela.31
Mas logo tem uma nova decepção: “Sobre a legalização das terras dos Canelas, nem
Antônio Lopes, nem João Braulino me escreveu mais coisa alguma. Provavelmente, com as
reviravoltas da política maranhense, tudo ficou outra vez em águas de bacalhau, e eu fui mais
uma vez o besta”.32
Nimuendajú enganou-se. Hoje os Canela vivem em terras oficialmente registradas pela
Funai no município de Fernando Falcão, no Maranhão.33

Nos igarapés Ticuna

Assim como os Apapoucuva contribuem para mostrar o Curt Nimuendajú defensor dos
indígenas e o cientista autodidata, os Ticuna revelam o “branco” que, possivelmente em parte
contra a sua vontade, assume a identidade de representante da divindade Dyói. Essa imagem
da memória tribal é registrada nos anos 80 do século passado e talvez ainda viva até os dias de
hoje.
O alcance dessa transformação (ou simbiose?) é tamanha que, mesmo após a seu
falecimento (seja assassinado por seringalistas ou por indígenas, seja morte natural), sua
lembrança continuou beneficiando os Ticuna do Alto Solimões. É assim que o SPI de Manaus
aproveitou as circunstâncias não esclarecidas de sua morte para consolidar a política
indigenista oficial nesta região amazônica na década de 40.

De 1929 a 1941, a metamorfose

Nos seus 40 anos de etnólogo, Nimuendajú exibiu uma postura inequívoca perante as quase
40 tribos que conheceu. Igualmente clara era sua atitude diante dos respectivos grupos de
“civilizados” que as agrediam ou exploravam.

31
São Luiz do Maranhão, 25/04/1936, CS, p. 245.
32
Pedreira, 01/09/1936, CS, p. 259.
33
As terras foram homologadas em 1982, conforme decreto 87.960, de 21 de dezembro de 1982 e publicado no
Diário Oficial da União - Seção 1 - 22/12/1982 , p. 23977, cf. Instituto Socioambiental. O município foi criado
em 1994 pela lei número 6.201, de 10 de novembro de 1994, DOU número 215, cf. Famem.
281

Entre os Ticuna, porém, nota-se como se buscara evitar um confronto direto com os
seringalistas do Alto Solimões. A sua primeira expedição já exibe este matiz de “um no prego,
outro na ferradura”. Sem meta etnológica, Nimuendajú empreende em 1929 uma viagem aos
Ticuna, levando ainda um casal de cinegrafistas alemães. Na verdade, ele fora comissionado
pelo SPI do Amazonas.34
Durante os 16 dias que fica na área, Nimuendajú só vai a dois igarapés onde existem
“barracões” de seringalistas e a um outro sem presença de “brancos”. Apesar de seu informe
citar outros atores sociais da área, sua ênfase são os Ticuna e os “patrões”. Ele faz uma clara e
profunda distinção entre a situação observada no barracão Belém do Solimões e no de São
Jerônimo.
Neste último, relata que “(…) notei imediamente com grande satisfação a cordialidade
existente entre a familia do patrão e as dos indios. Muitas vezes encontrei a sala da casa de
morada cheia de mulheres e crianças indias que se agrupavam nos bancos e no assoalho ao
longo das paredes e no meio delas a dona e as filhas da casa, todas na maior harmonia. Em
Belém, cujo arrendatario é solteiro, falta este quadro atraente”.
O consumo de cachaça obedece o mesmo padrão. No barracão Belém, onde a bebida
circula sem restrições, os indígenas “causam a impressão de fracos, menos sadios e
degenerados”, enquanto no São Jerônimo é servida vez por outra e em pequenas quantidades.
O dono do São Jerônimo é Manuel Mafra, membro do clã que controla os seringais do Alto
Solimões e que anos mais tarde vai combater Nimuendajú. O proprietário do barracão Belém
não é identificado.
Mesmo que não tenha presenciado em nenhum dos estabelecimentos cenas de
violência física, os índios estão sujeitos à arbitrariedade dos patrões, denuncia Nimuendajú:
“Ainda hoje sofrem pacientemente a tutela dos donos de barracões que decidem ao seu
belprazer sobre os destinos dos indios, espezinhando, consciente ou inconscientemente as suas
instituições religiosas e sociais“.
Seu relato sobre a atuação do SPI na área em 1929 é devastador, pois até o delegado
deste órgão tem os “seus” índios:

Muitos civilizados da zona somente conhecem o SPI de nome por péssimas [palavra
riscada no original] informações, os indios nada absolutamente sabem da existência dele. O
delegado do SPI ao qual compete a vigilancia da zona em questão, o snr. Mirandolino Caldas
em Tupy, goza em geral estima entre a população, mas nunca vai a aqueles centros nem os

34
Nimuendajú, Curt, Os índios Tucuna, Relatório ao SPI, de 10/12/1929, mcrofilme 397, MI.
282

indios de lá vão ter com ele [procurá-lo] nem toma ele conhecimento das relações dos indios
com os seus patrões. Consta-me que o snr M. Caldas tem na sua propriedade Tupy um
numero de familias de indios hoje já bastante limitado que vivem em condições de agregados.

Segundo o antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho, este trecho do relatório levou
o inspetor do SPI em Manaus, Bento Pereira Lemos, a visitar a área meses depois, em maio de
1930. Após ver os índios reunidos pelo delegado local no barracão de Belém do Solimões, o
inspetor desmentiu Nimuendajú, pois ouviu que eles “fizeram elogios ao delegado, do qual
mostraram ser muito amigos”.35
Depois de 12 anos de ausência, em 1941 Nimuendajú volta ao Alto Solimões. Muita
coisa mudara. A primeira novidade é que os militares, que dão as cartas no SPI, consideram a
região de interesse estratégico. Em 1939, o então general Cândido Rondon estivera em
Tabatinga, como mediador do conflito armado entre o Peru e a Colômbia pelo posse da cidade
de Letícia. Oliveira Filho atribui ao inspetor do SPI e major do Exército Carlos Eugenio
Chauvin a proposta de criar um posto na área ticuna.36
É justamente a situação que os seringalistas menos querem: que o Alto Solimões
entrasse no radar do governo federal. Os sensíveis sismógrafos dos seringalistas, contudo, já
detectam as transformações. Nimuendajú só capta as primeiras reações destes, na medida em
que a matriarca da família Mafra em Manaus, dona Yayá, se recusa a recebê-lo. Mas ele não
entende o porque dessa mudança.37
Por sua vez, Nimuendajú também modificou sua postura. Em 1941, quer fazer um
amplo estudo etnológico dos Ticuna, que o leva a procurar os indígenas fora da área dos
seringais. Ainda fica dois dias no barracão Perpétuo Socorro, de Quirino Mafra, que “apesar
de não me conhecer me recebeu bem”, conta. Dias antes, procurara Antonio Roberto Mafra
no barracão Belém. Dois exemplos de que ele ainda permanece fiel à sua política de contatos
formais e amistosos com a mais poderosa família da região.38
A terceira mudança vem dos Ticuna. Ao chegar ao igarapé São Jerônimo no início de
abril de 1941, Nimuendajú penetra num mundo ao qual até hoje poucos etnólogos tiveram
acesso - a gestação de um processo de fervor espiritual, que gera desdobramentos
profundos e diretos na vida da tribo:

35
Relatório anual da 1ª. Inspetoria do SPI, 1930-1931, cf. Oliveira Filho, João Pacheco, Ensaios em
antropologia histórica, editora UFRJ, 1999, p. 70.
36
Ibid, p. 28. Nimuendajú conhece pessoalmente o major Chauvin em Manaus em 1941, cf. CS, p. 283.
37
Leticia, 27/03/1941, CS, p. 283.
38
Ibid, p. 289.
283

Entre os Tukúna do [igarapé] São Jerônimo está se esboçando um movimento


messiânico. Desde o ano passado [1940] Norán, um curumim de seus 13 anos, teve visões e
sonhos, aparecendo-lhe o filho de Dyói com os seus companheiros, o qual mandou dizer aos
Tukúna [sic] que se retirassem para as cabeceiras do igarape, para certo lugar onde, segundo a
tradição, era a habitação de Dyói e de Epi. Lá deviam construir uma grande casa em estilo
antigo e festejar não sei que cerimônia. Viria então uma grande enchente que destruiria os
civilizados, salvando-se os Tukúna.39

Efetivamente, poucos meses antes da chegada de Nimuendajú, centenas de Ticuna


abandonam o seringal, fazem na área indicada pelo garoto vidente um roçado enorme e
levantam um grande casarão em estilo tradicional. Enquanto o entusiasmo dura, é possível
vencer as dificuldades.
O jornalista norte-americano, David Dunaway, conta o que ouviu de indígenas Ticuna
em 1976:40

Nora’ne contraiu uma doença durante a viagem e mal podia falar. Na metade do
segundo mês [de chegada], ele anunciou que tivera um sono de mau augúrio: o tempo dos
Ticuna tinha sido adiado, porque alguém tinha casado fora da tribo e Dyai estava furioso. A
insatisfação se espalhou rapidamente. As pessoas diziam que, caso Nora’ne não estivesse
realmente louco, então tinha ingerido yajé, um pó psicodélico usado pelos líderes tribais nas
ceremônias.

Ele não informa quem foi o seu intérprete, se o filho de um missionário norte-
americano instalado na área ou um guia brasileiro apenas identificado como Jorge, que então
teria traduzido da língua ticuna para o portunhol que Dunaway parece entender. A essência,
contudo, confere com o que Nimuendajú anotara em 1941: “o filho de Dyói tinha declarado
ao curumim que estava zangado com os Tukúna por causa de casos de incesto (quebra da
exogamia de moiety) que se tinham dado entre os reunidos”.41
O sumiço inesperado, segundo Dunaway, de 600 a 700 indígenas deixou o “patrão”
Quirino Mafra sem mão de obra para o seringal. Dunaway ouviu do próprio Quirino o que ele
fez no roçado: “Eu cheguei cansado até uma ampla planície e lá estavam os Tukuna, morando

39
Igarapé de Santa Rita, 23/05/1941, CS, p. 294.
40
Dunaway, David, Time of the Tukuna, Mother Jones, June 1976, v. 1, nº 6, Boulder, Colorado, Estados
Unidos, p. 16, minha tradução.
41
Carta de Perpétuo Socorro, 23/05/1941, CS, p. 295. É importante anotar que Nimuendajú se refere a incesto
praticado entre os participantes do movimento messiânico.
284

em pequenas cabanas em torno de uma clareira circular enorme. No centro, tinha uma grande
fogueira. Assim que eu fiquei sabendo porque eles estavam aí, e isso de um garoto que eu
conheci desde pequeno, eu ri sem parar. Eu lhes disse que não aconteceu inundação nenhuma,
que tinham que descer imediatamente até o rio e parar com essa bobagem”.42
Nimuendajú, que falou com os Ticuna da aldeia messiânica imediatamente depois da
volta desses aos igarapés, descreve um Quirino Mafra radicalmente diferente: “(...) ralhou-os
e ridicularizou a profecia como mentira absurda, ameaçou que deportaria o curumim para o
Rio e que ele faria com que o Governo mandasse destruir os indios reunidos por aviões que
jogariam bombas sobre eles (os Tukúna têm disto uma ideia pelas lutas entre os peruanos e
colombianos em 1933)”.43
É em meio a este confronto aberto que Nimuendajú realiza seu trabalho etnológico de
coletar lendas, organizar festas e mandar confeccionar máscaras para as ceremônias tribais.
Mas confessa que o poder dos seringalistas é enorme e, assim que as águas do rio baixam,
abandona seus mal iniciados levantamentos: “(...) logo os patrões dos indios insistiram com
estes [para] que começassem imediatamente a extração de borracha, enquanto durar esse
trabalho não há mais tempo para contar histórias e celebrar festas. E assim tive de retirar-me
sem concluir, pelo menos provisoriamente, as investigações“.44
Ele evita tomar oficialmente partido na disputa, embora seu coração e seu braço
estejam do lado indígena. É por isso que, antes de abandonar a região, levanta os dados para
fazer o mapa dos igarapés que serviria de base para instalar o posto do SPI no ano seguinte.45

O sutil (ou desejado?) envolvimento

É durante essa expedição de 1941 que Nimuendajú começa a ser sutilmente envolvido pelos
Ticuna. Não é possível afirmar que os indígenas o façam de maneira consciente, assim como
também seria arriscado dizer que Nimuendajú não teria percebido o que estava acontecendo.
As datas das avaliações do etnólogo quanto ao movimento messiânico fortalecem a suspeita
de envolvimento.
Na carta a Carlos Estevão de 23 de maio de 1941, ele traça um perfil psicológico do
garoto-profeta, que ele inclusive chega a conhecer pessoalmente durante suas atividades na
aldeia: “é um curumim bonito com olhos inteligentes e nada tem de patológico. Já começa a

42
Dunaway, p. 16.
43
Nimuendajú, CS, p. 294.
44
Ibid. p. 297.
45
Igarapé da Rita, 09/05/1942, CS, p. 307.
285

criar um pouco de confiança, mas por ora evitei cuidadosamente qualquer referencia ao
messianismo”.
Também constata que a descrição que Nóran faz do filho de Dyói “(...) não é aliás
absolutamente o representante da cultura antiga dos Tukúna, mas um personagem
completamente civilizado que viaja em [barco a] motor, mata bois para as festas dos seus
companheiros e promete aos Tukúna [sic] caixões cheios de calçados”.46
Nimuendajú parece só enxergar de um olho. Ele conclui, acertadamente, que o
messianismo não acabou, porque os adultos aceitaram prontamente a mensagem de um
menino de 13 anos. Mas, aparentemente, não consegue captar o que poderia significar para ele
pessoalmente a descrição do herói cultural como uma pessoa do século 20.
Meses depois, os Ticuna abrem o jogo. Ele é convidado a visitar o curso superior do
igarape São Jerônimo, onde se localiza o santuário da tribo. É aqui que se desenvolveu o mito
de nascimento dos heróis gêmeos Dyói e Epi e para onde acorreram os Ticuna em janeiro
desse mesmo ano de 1941.47
É um momento raríssimo para qualquer etnólogo. Diferente do messianismo já em
andamento que vivenciou em 1912 no interior de São Paulo com indígenas oriundos do
Paraguai, agora ele presencia a sua gestação.
A avaliação de seu próprio papel aparenta ser meramente profissional: “Aquilo que
me parecia a maior dificuldade, fazer esses indios falar, está agora já de certo modo
removido [sic]: pela minha romaria à terra dos mitos, pela minha atitude afirmativa para
com a cultura antiga e pela minha liberalidade no trato estou certo que já conquistei a
simpatia e confiança da maioria dos Tukúna [sic]”.
Como a visão de Norane apresenta uma pessoa extremamente parecida com
Nimuendajú e em companhia de outros seres mitológicos, ele passa a ser o filho do herói
cultural dos Ticuna. Imediatamente muda seu status.

Enquanto que outras tribos o tinham adotado, batizado e casado, os Ticuna o colocam,
literalmente sem ceremônias, no papel de sábio e líder espiritual: “Onde quer que eu apareça
junta-se a mim imediatamente um bando de indios (o que as mais das vezes para mim não é
vantagem nenhuma!) que interrogam o dono da casa e os indios meus remadores sobre o
que eu fiz e disse; por força querem que eu saiba onde hoje em dia habita o herói cultural
Dyói e consultam-me em matérias tão difíceis como sejam questões de incesto”.

46
CS. p. 295.
47
Igarapé da Rita, 28/07/1941, CS, p. 297.
286

Sua situação lembra algumas peças teatrais da Grécia antiga, que sugerem a
impossibilidade do ser humano de lutar contra o destino, conforme pode-se inferir de sua
avaliação desse cenário: “Tudo isto se dá apesar de eu ter evitado tudo que possa dar
margem para mistificações, afirmando aos indios constantemente que NADA [sic] sei e que
vim para aprender!”.
Em meados de agosto de 1941, Nimuendajú desce o rio Solimões rumo a Manaus,
onde toma o navio para Belém. Ele está satisfeito com as vantagens etnológicas que tem
como o primeiro não-indígena a liderar os Ticuna em busca da salvação. Mas terá suspeitado
o preço que iria pagar por essa honraria? Terá pensado em utilizar seu novo status entre os
Ticuna para, com ajuda do SPI, tirá-los da opressão exercida pelos seringalistas?
Em janeiro do ano seguinte, pergunta ao informante Nino Atahyde o que ele gostaria
de ganhar de presente quando voltar ao Solimões. Como Nino não sabe ler nem escrever, a
carta é, surpreendentemente, enviado ao “neo-brasileiro” Nilo Müller, descendente de alemães
e comerciante no Igarapé Preto. A este Nimuendajú informa que chegaria em maio ao Alto
Solimões.48
Em abril de 1942, adentra novamente a sede do SPI de Manaus. Nos cinco dias de
permanência, Nimuendajú age como se fosse funcionário do SPI da área na tarefa de
dissuadir seu chefe da idéia de criar o primeiro posto no Igarapé Belém.
Segundo o etnólogo Oliveira Filho, esta é “uma tentiva de manipulação do SPI por
parte de Antonio Roberto Aires de Almeida, ‘patrão’ deste seringal”.49 O posto é,
finalmente, implantado perto de Tabatinga, conforme sugestão de Nimuendajú.
No barco que o leva a Santa Rita do Weil, Nimuendajú ouve falar de boatos
difundidos pelos seringalistas após sua saída da região em 1941.
Instalado dia 2 de maio na casa de Nino Athayde, fica sabendo dos “detalhes”: que
fora preso por viajar sem licença [do Conselho de Fiscalização] e depois morto por ser espião
alemão. Outra versão garantia que ele fora preso e degolado.50
É o passado remoto e recente que revisita Nimuendajú: a acusação não provada de
espião o persegue desde 1915 e, em fevereiro de 1942, realmente o Conselho de Fiscalização
das Atividades Artísticas e Científicas do Brasil declarara que ele não possuía autorização
para realizar expedições.

48
Carta de Belém, 24/01/1942, MN. Nimuendajú manda lembrança a Laureano e Carlos, irmãos de Nilo, e a
Henrique Geißler. Dois destes irão testemunhar, em 1957, a exumação do cadáver de Nimuendajú.
49
Oliveira FIlho, p. 76.
50
Igarape da Rita, 09/05/1942, CS, p. 308.
287

O cacique Calixto conta a Nimuendajú que o “patrão”, Antonio Roberto, lhe dissera
que ele tinha feito um mapa dos igarapés para que aviões alemães bombardeassem a área.51

Calixto: o “patrão” disse que aviões alemães atacariam a aldeia.

Como somente a Inspetoria de Manaus e o próprio Nimuendajú sabiam da existência


do mapa dos igarapés, pode-se concluir que os seringalistas tinham espiões no próprio SPI.
Esses boatos e calúnias geram uma curiosa reflexão de Nimuendajú, que afirma, até a eclosão
desses acontecimentos, ter acreditado na sinceridade dos seringalistas:

Evitei desde então [frequentar] as casas dos Mafras: Quirino tinha me tratado, como
nunca deixei de reconhecer abertamente, com muita hospitalidade. Tinha eu a ilusão que essa
hospitalidade fosse a manifestação de algum sentimento nobre, e que eu lhe devia gratidão por
ela, mas foi engano meu: é apenas um gesto oco e convencional, como por exemplo, aquele
de se tirar o chapeu quando se passa por uma igreja, e perfeitamente compativel com ódio e
hostilidade contra o mesmo hóspede.52

51
CS. p. 311.
52
Igarapezinho,12/06/1942, CS, p. 312.
288

Nesse momento de extrema tensão, Nimuendajú revela uma desconhecida faceta de


sua personalidade: “Como sempre quando tenho uma desilusão semelhante, fico de certa
maneira envergonhado de ter sido tão ‘trouxa’ e agora não sei com que cara eu hei de olhar
para essa gente, e por isso os evito”.
Chega o instante em que Nimuendajú toma a atitude que se poderia esperar de um
líder espiritual. Um ticuna chamado Isidoro é acusado de, usando poderes mágicos, ter
matado dois parentes de Nino Atahyde e jogado praga em outros dois. Certo dia, Nino e dois
irmãos matam Isidoro e dois de seus filhos menores. Duas outras famílias, temendo a
vingança dos parentes da vítima, vendem suas casas e fogem do local. Nimuendajú fica
sabendo de tudo ao chegar ao povoado de Santa Rita e se dirige ao igarapé da Rita. A seguir,
acontece uma romaria improvisada pelas águas do igarapé:53

Como ia passando de casa em casa, os indios foram se juntando em suas canoas,


acompanhando-me em número cada vez maior, e reunimo-nos todos na casa de Nino,
inclusive os três matadores, horrivelmente pintados de preto da cabeça aos pés. O ambiente
era bastante angustioso, mas melhorou rapidamente com a minha presença. A satisfação,
sobretudo do Nino, de me ver assim inesperadamente, foi grande. Calma e claramente Nino
relatou o que tinha acontecido. “Tivemos de fazer isto; mas agora está feito, não quero mais
bulir com ninguém e quero viver em paz”, disse ele.

Nimuendajú comunica os crimes ao SPI de Manaus por carta, ignorando o delegado


local, Carlos Correa. E dá um salvo-conduto, prometendo aos índios foragidos proteção se
retornarem ao igarapé: “O mesmo portador [da carta] levará tambem ao Custódio e Genesio o
meu convite de voltarem para os seus lugares sob garantia minha, onde os ajudarei a levantar
casas novas”.
Com atitudes como essa, ele se coloca claramente a favor dos índios, age em nome do
SPI e assume o confronto aberto com os serigalistas.
Nimuendajú utrapassa assim os limites daquilo que o antropólogo João Pacheco de
Oliveira Filho chama de “reciprocidade”: o relacionamento entre o etnólogo e os Ticuna tinha
por base o intercâmbio de mercadorias como terçados, panos e miçangas por artesanato e lendas
indígenas. O que até então eram laços de amizade transformam-se em destinos entrelaçados.

53
CS. p. 315. O grau de empatia entre Ticuna e Nimuendajú repercute inclusive a nível científico. Em 1978, o
pesquisador Ari Pedro Oro só usa dados sobre a religião do Ticuna levantados por Nimuendajú, que ficou ao
todo menos de onze meses entre eles, ao passo que não inclui uma única informação do frei Fidelis de Alviano,
que morou 30 anos na área, cf. Oro, Ari Pedro, Tükúna: vida ou morte, p. 73, Editora Vozes, 1977.
289

Oliveira Filho detectou no início dos anos oitenta do século vinte a continuidade da
imagem altamente positiva de Nimuendajú entre os Ticuna. Este era visto como um líder, a
quem se poderia atribuir o título de aegacü.
Sua explicação deste nome esclarece o caráter especial que Nimuendajú acabou
assumindo para os indígenas dessa tribo amazônica:

O termo aegacü é usado para indicar um chefe que ocupa um lugar intermediário entre o
to-eru, o líder ou cabeça de um grupo local, situado no tempo cronológico, e os üüne, os
imortais ou encantados, que, por serem de um domínio superior, têm a capacidade de interferir e
determinar a existência dos mortais, mostrando-lhes o caminho da salvação.54

Do conflito aberto à guerra declarada

Os seringalistas não precisam conhecer as sutilezas da cosmologia ticuna para captar as


transformações que estão acontecendo. Quando novamente um membro da família Mafra
acusa Nimuendajú, os indígenas o defendem. Na troca de agressões verbais, os ticuna agora
revidam as ameaças de morte dos “patrões”.
É o próprio Nimuendajú quem relata o clima de agressividade:55

O principal motivo é por certo a alta das mercadorias, na qual A. R. [Antônio


Roberto] só tem culpa parcialmente, mas que ele tambem se tornou antipático aos Tukúna
[sic] pelo modo como se referia constantemente junto deles à minha pessoa, atribuindo-me
precisamente aqueles crimes que o Snr. citou na sua carta. Contou o Tukúna que A. R. se
enfureceu contra os indios, ameaçando-os que ainda havia de matar alguns deles, ao que lhe
responderam que, neste caso, o matariam tambem.

A crescente tensão leva um seringalista a incitar os indígenas a matá-lo, diz


Nimuendajú: “Desde ontem estou outra vez morando com o Nino no Igarapé da Rita. (...)
Quirino Mafra não parou mais nunca com a sua campanha de mentiras e difamação. Por último
já estava aconselhando os indios que me matassem antes de eu sair do Igarape ‘dele”.
Assim, o conflito aberto transforma-se em guerra declarada. Mas unilateralmente,
porque Nimuendajú ainda evita, mais uma vez, o confronto direto que se anuncia, no qual ele,

54
Oliveira Filho, p. 93.
55
Manaus, 01/10/1942, CS, p. 330.
290

possivelmente, levaria a pior. Segundo ele mesmo relata, um indígena pedira que intercedesse
junto a Quirino Mafra para que deixasse sua filha sair do barracão onde trabalha há anos.
Nimuendajú nega-se.56
Nada disso diminui a expectativa dos Ticuna quanto ao papel de Nimuendajú:57

Nos últimos tempos recebi na casa do Nino visitas sobre visitas de indios Tukuna,
alguns deles vindos de bem longe. Familias inteiras de 10 a 15 pessoas chegavam e deixavam-
se ficar, só saindo quando eu parti para esperar o vapor [para voltar a Belém]. Não me pediam
nada, mas queriam estar ai, como quem está esperando por alguma coisa. Na cara, tratavam-
me simplesmente de “kári” = patrão, mas notei que entre eles usavam o termo “bui” quando
se referiam a mim, que é o titulo que dão ao Dyói, o seu herói de cultura.

Na viagem de retorno a Belém via Manaus, Nimuendajú é preso dia 25 de setembro de


1942 a bordo do navio Aimoré por dois militares, seu desafetos pessoais de Tabatinga. Um
deles já tentara meses atrás, numa roda social, apresentá-lo como espião, “alemão”, claro.
Aparentemente, somente os militares de baixa patente do Exército na região do Alto
Solimões participam da conspiração contra Nimuendajú. Ao chegar em Manaus, ele é
imediatamente liberado pelo comandante do Exército, que, por intermédio de Carlos Estevão,
recebera instruções da chefia da Região Militar em Belem.
Enquanto Nimuendajú, intimamente ferido pela prisão, fica três anos em Belém, no
Solimões as mudanças se sucedem. A substituição do inspetor Carlos Correia pelo agente
Manuel Pereira Lima altera radicalmente a relação do SPI com os seringalistas. Enquanto o
inspetor buscara um modus vivendi com os “patrões”, seu sucessor coloca-se decididamente
a favor dos índios.
Oliveira Filho aponta duas linhas de atuação de “Manuelão”, como era chamado no
Solimões.58 A primeira dá-se na medida em que o agente do SPI instala um posto de
abastecimento em Tabatinga, onde compra farinha de mandioca dos Ticuna, pagando à vista
preços superiores aos dos donos de barracões. Ao mesmo tempo, vende mercadorias com a
mesma variedade oferecida por esses. Oliveira Filho afirma que isto era do interesse direto
dos Ticuna, fornecendo a chance de “se ver como o tutelado reconstrói o seu tutor [no
original], procurando moldá-lo segundo suas necessidades e expectativas”.

56
CS, p. 320 e 329.
57
Manaus, 01/10/1942, CS, p. 331.
58
Oliveira Filho, p. 30. Em 1945, tem início a criação de galinhas, além da compra de um forno para produção
de farinha de mandioca e de engenho de cana-de-açúcar movido a tração animal, ibid. p. 31.
291

O interesse básico de Manuelão – e do SPI – constitui a segunda linha de ação: ajudar


os indígenas a organizar sua própria economia, de forma a se integrarem na sociedade local
com maior autonomia. Para esse fim, ele cria o que os indígenas chamam de “as roças do
posto” – áreas para plantio coletivo de mandioca e cana de açúcar, em regime de pagamento
de diárias e sob supervisão dos funcionários do SPI local.
Isto, acrescenta Oliveira Filho, “permite (...) compreender como o próprio tutor se
constrói enquanto tal [no original], atendendo a objetivos específicos perseguidos pelos
índios, transformando em um conjunto concreto de práticas a ideologia protecionista e
integradora [do SPI]”. O sucesso das roças coletivas patrocinadas pelo governo federal cria
novas áreas de atrito para o SPI, porque a população local não-indígena de Tabatinga também
quer terras do Estado para plantar.
Em abril de 1945, Manuelão informa à Inspetoria em Manaus ter sofrido agressão de
“brancos”, sem dar maiores detalhes. Há meses que Manuelão convida os indígenas a ocupar
as terras próximas ao posto do órgão indigenista em Tabatinga. Em setembro desse mesmo
ano, começam a ser construídas oito casas além das já existentes, porque novas famílias
indígenas iriam chegar para morar nos terrenos do SPI nesta cidade.59
A mensagem faz efeito, porque, pela ótica ticuna, diz Oliveira Filho: “Manuelão foi a
concretização do ’mito do bom patrão’: tinha sempre muitas mercadorias em seu estoque,
pagava-lhes em dinheiro quando solicitado, não enganava nas contas nem impunha
mercadorias. Sobretudo, não lhes ameaçava ou castigava, como faziam os ‘patrões’
seringalistas, mas tratava-os com respeito e simpatia”.
A exemplo de Nimuendajú, Manuelão também recebe dos Ticuna o título de aegacü,
um líder espiritual, num estágio intermediário entre um ser humano e as divindades.60 Só que
o sucesso perante os indígenas significa confrontos ainda maiores com os seringalistas.
Manuelão ameaça abandonar o cargo, a menos que receba apoio concreto da chefia do
SPI. O inspetor-chefe, Alberto Jacobina Pizarro, decide, então, apresentar pessoalmente seus
planos aos militares em Tabatinga, em busca de aliados de peso na área.
De volta a Manaus, ele compra a fazenda Bom Destino da filha do falecido “coronel”
João Mendes, para oferecer mais terras aos Ticuna, afirma Oliveira Filho. Munido do mapa
feito por Nimuendajú, Jacobina Pizarro acerta com militares do Exército e da Marinha os
limites da gleba em Tabatinga. Sem esperar pela oficialização do acordo, determina que um
topógrafo levante a situação fundiária dessas terras, no que é impedido pelos “brancos”.

59
SPI, ofício N° 25, p. 10.
60
Oliveira Filho, p. 38.
292

Mesmo assim, ordena que Manuelão intime as pessoas irregularmente instalados a


abandonar a área, o que provoca mais reações da população não-indígena.61 Assim, o inspetor
Jacobina Pizarro e o indigenista Manuelão praticam, mesmo que de forma diferente, o mesmo
fortalecimento dos Ticuna iniciado por Nimuendajú.
Esse, por sua vez, apesar ficar três anos longe da tribo depois de sua prisão em outubro
de 1942, recomenda por carta ao cacique Nino que não envie suas filhas para estudar no
colégio de freiras de Tabatinga. Quem agora se pronuncia é o líder, cioso da herança espiritual
do seu povo:

(...) dahi [sic] a alguns meses Neves ficará moça e tem de ir para o curral [sítio de
reclusão das moças para o rito de passagem da puberdade] e vocês devem fazer a cantiga de
varëki para ella [sic]. Pois esta [é] a lei que Dyaí deixou para a nação Tukuna e vocês devem
cumpri-la.62

Nimuendajú exige do cacique que a “lei” de Dyaí seja cumprida.

61
Ibid, p. 34.
62
Belém do Pará, 15/04/1944, MN.
293

Nimuendajú viaja pela última vez às terras Ticuna com o cargo de Delegado de Índios
do Alto Solimões. Mas logo ao chegar ao igarapé da Rita morre ou é assassinado (veja
capítulo 12). Algumas semanas depois, torna-se realidade a afirmação feita por Nimuendajú
em 1941 de que o messianismo teria continuidade.
No início de 1946, no Rio Tacana, o adolescente Aprísio Ponciano teve a visão de que
“um imortal“ anunciava que o mundo iria acabar no mês seguinte. Uma enchente de água
fervente mataria todas as plantas e outros seres vivos, só escapando do cataclismo quem
estiver nas terras do Posto Indigena de Tabatinga.
Ao mesmo tempo, surge o boato de que o falecido Nimuendajú já teria aparecido duas
vezes a Manuelão, encarregado do posto – que na verdade estava em Manaus. Aparição
sobrenatural ou não, a notícia aguça o confronto entre seringalistas e indígenas. Uma razão é,
segundo Nunes Pereira, que estes não querem mais trabalhar na extração de borracha, “devido
aos baixos salários”. Em consequência, migram para as terras do Posto em Tabatinga.
A inesperada chegada de 300 indígenas à pequena Tabatinga abriu uma outra – e letal
– frente de conflito para o SPI, agora com o Exército. A nada sutil lembrança do tenente
Dourados de que os recém-chegados “poderão criar sérios problemas nesta fronteira“ é uma
mostra da reação negativa dos militares de Manaus e, possivelmente, da capital federal à ação
do SPI na região. Segundo Oliveira Filho, Manuelão é “substituído por um novo encarregado,
cuja missão era recompor o relacionamento do SPI com militares e seringalistas, promovendo
o translado do posto e dos índios para fora de Tabatinga, para as terras do Igarapé
Umariaçu“.63
Em 1983, quase quarenta anos depois desses acontecimentos, Oliveira Filho escuta
dos Ticuna relatos que reafirmam o duplo papel de Nimuendajú: o do etnólogo que traz
mercadorias, reavivando as tradições indígenas, e o do líder espiritual, chamado de “Tecu-
quira“ (“filho de Ipi”, um herói cultural) e “Tanatü“ (“Nosso pai“).
Ele “se apresentava aos índios sob a forma de um homem branco. Nimuendajú seria
chamado igualmente na língua ticuna por [sic] aegacü, termo que designa o chefe cujo
mandato vem de fora”.
A reflexão de Oliveira Filho é de que, para os indígenas, é inequivoco o papel de líder
espiritual: “seja suposto como um enviado dos imortais ou um desses imortais vivendo sob
forma encantada no meio dos homens, Nimuendajú mantinha estreita conexão com esse
governo dos índios [no original]”.64

63
Oliveira Filho, Ensaios… p. 39.
64
Oliveira Filho , Os Ticuna, p.276.
294

Passaram-se 51 anos após a morte de Curt Nimuendajú até o Poder Executivo


brasileiro reconhecer o território ticuna, onde os indígenas poderiam no futuro criar o seu
próprio governo temporal. Com a publicação no Diário Oficial da União de 13/01/1997 do
despacho da Funai n° 39, de 27 de dezembro de 1996, finalmente foi delimitada a terra
indígena Tukuna Umuriaçu, como é conhecida oficialmente.65
Em 1999, Oliveira Filho afirma que as experiências atuais dos etnólogos brasileiros
estão mais próximas da “situação etnográfica vivida” pelo autodidata Nimuendajú do que das
teorias repetidas nas universidades e recomendações contidas em livros didáticos.66
As conclusões possíveis a partir deste caso concreto de “etnologia à brasileira”,
acrescenta, poderiam:

(...) ainda ajudar a entender um nexo latente (ainda que necessariamente tenso e
crítico) entre pesquisa etnológica e ação indigenista, que se expressa não somente nas
intervenções públicas dos etnólogos (enquanto cidadãos), mas também nas suas relações com
os índios e a sociedade, nas condições de pesquisa e nos esforços interpretativos.

65
Funai, Diário Oficial da União, p. 7, seção 1, despacho do processo Funai/BSB/0416193, em
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/952149/dou-secao-1-13-01-1997-pg-7, acessado em 6 de junho de 2010.
66
Oliveira Filho, Ensaios, p . 91.
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Como Unckel vira Nimuendajú


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Danças apapocuva Nimuendajú, Die Sagen, p. 347.
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A criação e a destruição do mundo


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No mato, sem dinheiro, sem apoio


Parintintin rio Mayci-Mirim 1922 Museu de Gotemburgo.
Parintintin com arco e flecha Coleção Estevão de Oliveira.
Posto SPI no rio Mayci-Mirim Coleção Estevão de Oliveira.
“Indomáveis” Parintintin Museu de Gotemburgo.
Fascímile carta a Nordenskiöld Belém, 06/07/1924, MG.
Aldeia Pedra Branca Indianer Brasiliens, p. 67.
Corrida masculina de toras Indianer Brasiliens, p. 76.
Quase perde cavalo Museu Nacional.

Criativo, autodidata, pioneiro


Retrato durante iniciação canela Museu de Gotemburgo.
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Achada arqueológico Nimuendajú, In Pursuit p. 365.

Preservar indígenas e sua cultura


Iniciado pelo cacique Brue Museu Gotemburgo.
Entre canela montado Cappeller.
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O “pecado” da “pacificação” In Pursuit of the Past Amazon, p, 9.
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O retorno à Europa, o nazismo


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O encontro dos mestres


Elogia o iniciante Lévi-Strauss Belém, 22/11/1937, p. 3, MN.
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Os relacionamentos amorosos
Casal Nimuendajú e Jovelina. Museu Nacional.

O eterno gringo na pátria de adoção


Mesmo morto, continua “alemão” A Tarde, 17/12/1945.
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“Fui muito desastrado e tolo” Belém, 31/08/44, MN.

Sete lendas sobre a sua morte


Nino Atahyde, misteriosa personagem Nimuendajú,The Tukuna, p. 199.
Após quatro meses, voltará a Belém. São Paulo de Olivença,7/12/1945, Welper.
Telegrama morte Nimuendajú Museu Nacional.
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Cosmogonias indígenas adotam Curt Nimuendajú

Nimuendajú e Kentapi Barra do Corda, 2/5/1931, p. 9, CS.


Aldeia invadida Crocker, The Eastern Timbira, ilustração 5.
Calixto,cacique ticuna Nimuendajú, The Tukuna p. 189.
Carta a Nino Belém, 13/04/1944, Welper.

Observação
Mesmo tendo pesquisado com cuidado, é possível que alguma fonte iconográfica
tenha sido apresentada equivocadamente.
Nessa eventualidade, tenha a gentileza de entrar em contato com o autor.
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Sobre o autor

Salvador Pane Baruja nasceu em 1952 em Assunção (Paraguai). Após concluir o


Highschool nos Estados Unidos em 1969, voltou ao Paraguai. Em 1973, formou-se em
Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Quatro anos depois,
adotou a nacionalidade brasileira e trabalhou como jornalista em diversas publicações no Rio
de Janeiro. De 1982 a 1984, foi especialista em comércio exterior da Embaixada do Brasil em
Maputo (Moçambique). Formou-se em 1995 em Pedagogia pelo Institut für Waldorfpädgogik,
em Witten (Alemanha), onde chegara em 1991.
Em setembro de 2012, seu ensaio em castelhano “Curt Nimuendajú y León Cadogan:
Dos Extranjeros Guaraníes“ recebeu o prêmio “Dra. Branislava Susnik“ em Assunção.
Atualmente reside em Bochum (Alemanha).

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