Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Curt Nimuendaju o Alemao Que Virou Indio No Brasil
Curt Nimuendaju o Alemao Que Virou Indio No Brasil
Capítulo 1
7 Mortes e privações no início da vida
Capítulo 2
22 Como Curt Unckel vira Curt Nimuendajú
Capítulo 3
37 As lendas da criação e da destruição do mundo
Capítulo 4
58 No mato, sem dinheiro, sem apoio
Capítulo 5
100 Criativo, autodidata, pioneiro
Capítulo 6
123 Preservar os indígenas e sua cultura
Capítulo 7
148 O retorno à Europa, o nazismo
Capítulo 8
165 O encontro dos mestres
Capítulo 9
189 Os relacionamentos amorosos
Capítulo 10
205 O eterno gringo na pátria de adoção
Capítulo 11
228 As quatro pré-mortes
Capítulo 12
244 Sete lendas sobre a sua morte
Capítulo 13
264 Cosmogonias indígenas adotam Curt Nimuendajú
295 Bibliografia
302 Documento “Algumas considerações sobre o problema do índio no Brazil”
312 Documento “Sugestões para pesquisas etnográficas entre os índios do Brasil”
317 Fontes iconográficas
320 Sobre o autor
3
Apresentação
Agradecimentos
Abreviações
Biografia resumida
1840 Nasce Julius Unckel, pai de Curt, em Urach, Alemanha.
1853 Nasce Marie Hermann, mãe de Curt, em Gotta, Alemanha.
1877 Julius e Marie, viúva com uma filha, Olga, casam em 17/09.
1883 Nasce Curt Unckel em 17/04 em Iena. É batizado em 05/06.
Pai morre, talvez em Moscou. Mãe fica viúva pela segunda vez.
1884 Mãe morre em 12/12, em Iena. Curt e Olga moram com a avó, em Iena.
1885 Morre a avó. A tia materna retorna de São Petersburgo e assume a educação de
Curt e Olga.
1899 Curt conclui o segundo grau e ingressa na empresa Carl Zeiss, em Iena.
1903 Em 14/5, pede demissão da Zeiss e embarca para o Brasil.
1905 Ajudante de cozinheiro da expedição da Comissão Geográfica e Geológica de
SP ao oeste do Estado. Conhece os Guarani e Kaingang.
1906 Já um ano morando com os Apapokuva-Guarani, é batizado com o nome de
Nimuendajú.
1909 Ingressa no Museu Paulista como pesquisador indígena.
1910 Demite-se do Museu Paulista e ingressa no SPI.
Assina pela primeira vez com o nome de Curt Nimuendajú.
1911 Volta à sua aldeia Apapokuva-Guarani.
1912 Cria reserva para várias tribos Guarani em Avaré (SP) e participa de uma
migração de índios em busca da Terra sem Mal.
1914 Publica sua primeira obra “Die Sagen von der Erschaffung und Vernichtung
der Welt als Grundlagen der Religion der Apapokuva-Guarani”, na revista
Zeitschrift für Ethnologie, na Alemanha.
Muda-se para Belém.
1915 É demitido do SPI enquanto lidera a “pacificação” dos Urubu.
1920 É contratado pelo Museu Emílio Goeldi, em Belém.
1921 Reingressa no SPI.
1922 Adota a nacionalidade brasileira, sob nome de Curt Nimuendajú.
Casa-se com Jovelina do Nascimento, 19 anos mais nova do que ele.
1923 É demitido do SPI.
1926 Publica “Die Palikur – Indianer und ihre Nachbarn”, na Suécia.
1928 Batizado pelos Apinajé como Tamgaa-ti, nome de uma estrela, e, pelos Canela,
com o nome de Kukaipó, um cacique falecido.
1931 Em Iena, morre a tia Berta, que o educou na adolescência.
1933 Registra no SPI seu manifesto “Algumas considerações sobre o problema do
índio no Brasil”, favorável à autonomia indígena.
1934 Única visita à sua cidade natal, Iena, durante viagem à Suécia.
1937 Primeira publicação em inglês, em co-autoria com Robert Lowie: “The dual
organisations of the Ramkokamekra (Canella) of Northern Brazil”, em
American Anthropologist, nos Estados Unidos.
1939 Sai “The Apinayé”, pela Catholic University of America, Eua.
1942 É preso, suspeito de ser espião nazista no Alto Solimões. Sem acusação formal,
é liberado.
1943 Quase cego, é desaconselhado pelos médicos a voltar ao sertão.
1945 Morre numa aldeia ticuna, em São Paulo do Olivença, Alto Solimões.
1952 É publicada a obra “The Tucuna”, em American Archeology and Ethnology,
nos Estados Unidos.
1959 Morre a irmã Olga.
1972 Morre a esposa Jovelina
1 - Mortes e privações no início da vida
Curt Unckel nasceu em 17 de abril de 1883 na cidade alemã de Iena. Pouco se sabe sobre a
infância e a adolescência de Curt Unckel. Mesmo num país que cultiva a tradição de preservar
livros, documentos e imagens como a Alemanha, as poucas informações existentes sobre esse
marcante período de sua vida são fragmentárias e, em parte, contraditórias.
Foto da casa na rua Wagnergasse 31, onde Curt Unckel nasceu em 1883.
Sua cidade natal suportou dois regimes totalitários no século 20. O primeiro foi o
nazismo (1933-1945), que levou a Alemanha e outros países do mundo, inclusive o Brasil, à
Segunda Guerra Mundial. Ao longo de sete anos de combates em vários países, durante os
quais milhões de pessoas morreram, incontáveis bibliotecas e arquivos foram saqueados na
Alemanha.
Parte dos documentos salvos foi confiscada pelas tropas soviéticas, norte-americanas,
francesas e inglesas que ocuparam a Alemanha derrotada. O regime socialista implantado pela
União Soviética na Alemanha Oriental (1945-1989) foi a segunda catástrofe que engoliu
documentos e silenciou pessoas que poderiam fornecer informações sobre Curt Unckel.
Encravada no minúsculo ducado da Turíngia, uma das muitas unidades da monarquia
que existiu até 1918, Iena é um centenário centro universitário. Aqui floresceu o chamado
8
idealismo alemão do século 18 até meados do 19, uma resposta ao racionalismo e iluminismo
dos séculos anteriores.
A arte não se coloca mais a serviço da educação do homem, mas busca a auto-
expressão. Seu objetivo é a elevação do ser criativo ao plano universal e a poetização da vida
pela união do espírito e da natureza, do passado e do presente. Este movimento teve três
centros diferentes: Berlim, Heilderberg e Iena.1
Neste período de mais de cem anos, Jena abrigou escritores e filósofos como Georg
Friedrich Philipp Freiherr von Hardenberg (conhecido como Novalis), Friedrich Hölderlin e
Johann Gottlieb Fichte. A menos de 20 quilômetros de distância, na cidade de Weimar,
residiram Johann Wolfgang Goethe e Friedrich von Schiller. Na segunda metade do século
19, o filósofo Friedrich Schelling pregou em Iena a unidade da ciência, que seria “a
representação do ideal no [mundo] real”. Apoiado no conceito da “polaridade” da filosofia da
natureza de Schelling e na idéia de uma “força natural” de Novalis, o farmacêutico Johann
Wilhelm Ritter detecta, no seu laboratório em Iena, a existência de raios ultravioletas.2
Até hoje não se sabe o que transforma uma cidade comum num centro de irradiação
cultural, como era Iena antes do nascimento de Curt Unckel. Nem mesmo o cientista e
naturalista viajante Alexander von Humboldt desvenda este mistério. Após sua famosa
expedição por rios amazônicos e vales andinos no início do século 19, ele confidenciou à
escritora alemã Caroline von Wolzogen que o “poderoso ambiente de Iena agiu em mim”,
mas sem aprofundar o tema.3
Quando Curt Unckel nasce em 1883, a época de ouro de sua cidade natal constitui
apenas uma lembrança distante. Os poucos dados conhecidos indicam que o pai chamava-se
Julius Friedrich Gottlieb Unckel e a mãe, Marie Unckel. Eles casaram em 17 de setembro de
1880 em Iena, segundo o primeiro biógrafo alemão, Fritz Cappeller.
A mãe de Curt casara-se anteriormente com um cidadão alemão de sobrenome
Ludwig, originário da cidade russa de São Petersburgo, filho de um sapateiro da faustuosa
corte do tzar. O casal Ludwig (com uma filha, Olga Ludwig) viveu em Stuttgart, onde o
marido morreu e a viúva conheceu quem seria o futuro pai de Curt.4
Segundo Cappeller, depois do casamento realizado em 1880, Julius Unckel viaja à
Rússia para trazer a herança deixada pelo primeiro marido de sua esposa. Julius, contudo,
1
Deutsche Literaturgeschichte. Von den Anfängen bis zur Gegenwart. 2008, oitava edição. Stuttgart e Weimar,
Verlag J.B. Metzler p. 182-186.
2
Hübel, Horst in Pleticha, Heinrich, Deutschland, 1815-71, Deutsche Geschichte, Lexikothek Verlag, Gütersloh,
1998. Vol 5, p. 150, minha tradução.
3
Humboldt, Alexander von, carta a Caroline von Wolzogen, de 14/05/1806, cf. Frank Lindner, Curt Unckel-
Nimuendajú, Jenas großer Indianerforscher, Jenaische Blätter, Nr. 5, Quartus-Verlag, Jena 1996, p. 12.
4
Cappeller, Fritz, Der größte Indianerforscher aller Zeiten, edição do autor, Bad Salzungen, 1962, p. 11.
9
morre num hotel de Moscou, em 1883 ou 1884. Assim, Marie Unckel fica viúva pela segunda
vez em menos de quatro anos. Agora com dois filhos pequenos: Curt, com menos de um ano
de idade, e Olga, com pouco mais de seis.
Em busca de apoio familiar, Marie Unckel muda-se com os filhos para a casa da avó
materna de Curt, Louise Weber, também em Iena. No dia 12 de dezembro de 1884, Marie
Unckel morre de tuberculose, possível causa mortis de seus dois maridos.5
Esta é a versão apresentada por Cappeller e repetida por outros biógrafos.
No arquivo do Museu Nacional, existe uma carta de Olga Richter, nome de casada da irmã de
Curt, endereçada ao irmão em 1934. Ela traz informações que contradizem em pontos básicos
a biografia apresentada por Cappeller.
A irmã Olga diz que o pai de Curt “perdeu o seu dinheiro e de nossa mãe”na Rússia.
Assim, os pais de Curt casaram em 1877, antes de Olga nascer, pois o seu pai morrera
nesse mesmo ano. Enquanto a pequena Olga ficava na casa da avó em Iena, o casal mudou-se
para Moscou, onde o pai de Curt “tinha negócios e era respeitado como empresário”. Porém,
5
Ibid. “Um destino comum de muitas famílias” na época, opina Cappeller. O médico Fritz Cappeller, historiador
autodidata de uma cidadezinha próxima a Jena, entrevistou em 1960 amigos e companheiros de escola de Curt
Unckel, bem como a sua única sobrinha, Irmgard Müller, filha de Olga.
10
“(...) numa jogada especulativa mal sucedida, o seu pai perdeu o seu dinheiro e o de nossa
mãe. Por isso, ela voltou a Iena”, conta Olga.6
A informação de que Julius Unckel perdera especulando o dinheiro do casal e que
depois a mãe voltara sozinha a Iena poderia significar que o pai de Curt se suicidou, prática
relativamente comum entre empresários mal sucedidos na Europa daquela época. Pelas datas
apresentadas por Olga, a mãe Marie Unckel teria voltado grávida de Moscou – e talvez já
viúva.
As duas versões coincidem em três pontos: que Curt Unckel não chega a conhecer seu
pai; que ele tinha negócios em Moscou; e que, com menos de dois anos de idade, Curt fica
também órfão de mãe.
Assim, Curt Unckel não conhece as alegrias e os dissabores de uma família estruturada
em torno do pai e da mãe. Cappeller acredita que essa situação teria influenciado sua decisão
de abandonar o seu país de nascimento: “Do ponto de vista psicológico, provavelmente a
ausência de uma verdadeiro lar com ambos os pais, de um ‘ninho quentinho’, e o fato dele,
órfão, não ter conhecido um parente sequer com o sobrenome Unckel, que nem mesmo a irmã
[de Curt] do lado materno tinha, devem tê-lo levado a viajar tão longe”.7
É difícil afirmar que essa relação causa-efeito realmente aconteceu desta forma.
Contudo, possíveis sinais da ausência do convívio com seus pais estão presentes em inúmeras
situações de sua vida adulta. O caso mais claro é quando, ao estudar várias tribos do grupo
linguístico Jê no chamado Brasil Central, Curt simplesmente não consegue abordar o tema da
estrutura familiar. É como se para ele a família não existisse, como se a vida nela fosse
substituída por vivências em outras instituições sociais.
Este complexo panorama familiar já está consolidado antes de Curt completar seu
segundo ano de vida. Companhia inseparável na infância é a irmã Olga, de oito anos. Já
adulta, ela conta ao irmão um episódio da infância que dá pistas sobre as relações entre
ambos:
Certa vez, você fez uma pirueta na mesa onde trocavam sua fralda. Você foi parar de
cabeça atrás do sofá e, depois de dar uma cambalhota, chegou ao chão. A sua inteligência
parece não ter sofrido grandes danos detectáveis no futuro. Mas eu era sempre advertida para
cuidar de você e para que o neném não fizesse mais “piruetas”.8
6
Richter, Iena, 24/11/1934, MN, minha tradução.
7
Cappeller, p. 15.
8
Iena, 24/11/1934, MN.
11
Com a morte da mãe, a avó materna, Louise Weber, assume a educação das duas
crianças. Nem mesmo Cappeller dá pistas sobre a situação econômica ou social da nova
família de Curt Unckel.
Não se sabe até que ponto partilham da miséria generalizada que caracteriza o auge da
industrialização do “Reich” alemão, quando a jornada média de trabalho diário dura 11 horas,
crianças em idade escolar e mulheres ajudam a aumentar a renda familiar. Cerca de 70 por
cento das crianças morrem antes de atingir os 15 anos de idade.9
Ao mesmo tempo, a mobilidade social é quase nula: quem nasce elite continua elite
até a morte, especialmente burocratas, empresários, militares e diplomatas.10 Mas certamente
que a família de Curt Unckel vive um ambiente de rejeição ou no mínimo de incômodo na
conservadora sociedade alemã da época.
Afinal, é uma inusitada constelação familiar: a avó, de mais de cinquenta anos,
provavelmente sem renda própria ou trabalho qualificado, mora com duas crianças órfãs.
Além disso, soma-se o fato de que Luise Weber tinha sobrenome diferente de seu marido,
Karl Hermann. Isto sugere que os avôs de Curt Unckel possivelmente não eram casados.
Em consequência, a sua mãe talvez nasceu fora do matrimônio, embora levasse o
sobrenome do pai. Tudo isso representa um escândalo na sociedade alemã do final do século
19. É significativo que Cappeller apenas cita o nome do avô materno de Curt e de sua cidade
de origem. Nenhuma palavra quanto à posição social de Karl Herrmann.
Quanto a Louise Weber, Cappeller informa que era filha de um artista gráfico da
famosa editora Perthes, da cidade de Gotha.
Outro biógrafo alemão, Georg Menchén, afirma que o ambiente artístico da livraria
teria influenciado a tendência intelectual de Curt Unckel, no mínimo quanto ao gosto pela
Geografia. A Perthes publica neste final de século uma revista de renome internacional, cujo
nome em português é “Informações a respeito de novas e importantes pesquisas de todas as
áreas da Geografia”.11
9
Engelmann, Berndt, Wir, die Untertanen, ein Deutsches Anti-Geschichtsbuch, C. Bertelsmann Verlag, 1974,
Munique. p. 409.
10
Schwind, Margarete, in Pleticha, Heinrich, Deutschland, 1815-1918, Deutsche Geschichte, Lexikothek Verlag,
Gütersloh, 1998, Vol. 5, p. 252.
11
Menchén, Georg, Nimuendajú, Bruder der Indianer, Brockhaus Verlag, Dresden, 1979, p. 24, minha
tradução. O livro foi lançado em 1979, durante a ditadura socialista na República Democrática Alemã, quando só
se publicava o que os dirigentes do partido autorizavam. O Estado espionava os próprios cidadãos, especialmente
jornalistas como Ménchen. Sua filha, Kathrin Ménchen, contou-me que, após a morte do seu pai, ela decidiu
pesquisar nos arquivos do Gauckbehörde (órgão criado em 1991 para investigar os crimes, em especial de
espionagem, na RDA). Lá descobriu que a última mulher de seu pai e também secretária particular, Heidi
Schwarz, era espiã do Stasi (órgão de repressão política). Kathrin resolveu informar Bodo Bake, o diretor de
redação do jornal onde Menchén trabalhara toda sua vida. Para sua surpresa, Bake confessou que ele também
espionara o pai de Kathrin. Entrevista com Kathrin Ménchen, 06/ e 07/02/2006.
12
Em 1895, o ambiente familiar de Curt sofre mais uma transformação radical. Morre a avó
Luise Weber. É a tia materna Berta Weber, irmã de Marie Unckel, quem assume o papel de
mãe e dona de casa. Professora primária em São Petersburgo, ela retorna à Alemanha e vai
morar com seus sobrinhos Curt e Olga na pequena casa número 24 da rua Luther, em Iena,
conforme Cappeller.13
É assim que Curt Unckel com menos de 13 anos passa a viver com sua segunda mãe
adotiva. Do ponto de vista psicológico, talvez menos traumático do que ser encerrado num
dos tenebrosos orfanatos da época, onde a carência do contato familiar multiplicava o peso da
disciplina social prussiana.
Mesmo que a avó e a tia maternas lhe tenham brindado calor humano, Curt Unckel
cresce sem conhecer seus pais. Sem a íntima satisfação de partilhar a alegria de um dia, sem a
tristeza de um outro dia. Não tem nem uma coisa nem a outra diretamente dos pais. Apenas a
ausência do vínculo familiar básico que os pais oferecem aos filhos. Possivelmente essa
carência se espelha em inúmeros aspectos de sua vida adulta. Por exemplo, ao considerar sua
esposa Jovelina apenas uma dedicada e solícita empregada.
Na mesma época da morte da avó materna, um professor de sobrenome Paul recebe a
tutela legal de Curt Unckel. Ele dá aulas na instituição pedagógica Karl Stoy, onde Curt, aos
16 anos, conclui o ciclo básico escolar. Não achei registros da passagem de Curt pel colégio
Karl Stoy. A instituição foi inaugurada em 1883 como internato. O complexo incluía também
área de esportes, sala de trabalhos manuais, hortas, refeitório e dormitório já nos limites
urbanos de Iena, perto da estrada usada por Napoleão em 1812 para invadir a Rússia.
12
Beuys, Barbara, Familienleben in Deutschland, Neue Bilder aus der deutschen Vergangenheit, Rowohlt, 1980,
p. 402, minha tradução.
13
Cappeller, p. 12. Eu não achei uma única menção de Curt à tia Berta Weber, que morreu em 1931.
13
Postal de um prédio do colégio onde Curt estudou até completar o ciclo escolar básico da época.
14
Dunker, Cornelia, Die Stoysche Erziehungsanstalt em http://www.thur.de/org/tlz/ em 03/05/2005.
14
15
Böhm, Winfried, in Pleticha, p. 368, e http://www.herbart-gesellschaft.de/startdeu.html, em 23/05/2006, minha
tradução.
16
Zacarias, Vera Lúcia Camara F. in http://www.centrorefeducacional.com.br/herbart.html, em 23/05/2006.
17
Dungs, Günther, Die Feldforschung von Curt Unckel Nimuendajú und ihre theoretisch-methodischen
Grundlagen, Holos Verlag, Köln, 1991. p 15, minha tradução. Dungs, descendente de colonos alemães que
voltaram do Brasil à Alemanha no início do século 20, concluiu aos 75 anos de idade seu mestrado na
Universidade de Colônia, cuja tese constitui seu livro.
18
Petermann, Werner, Die Geschichte der Ethnologie, Peter Hammer Verlag, Wuppertal, 2004, p. 525, minha
tradução. Durante aproximadamente 25 dos seus 79 anos de vida, Bastian (1826-1905) viajou por todos os
continentes, escreveu 80 livros e cerca de 300 artigos. Fundou também o museu etnológico de Viena e a famosa
publicação especializada Zeitschrift für Ethnologie (Revista de Etnologia). É nela que Curt Nimuendajú publica
seu primeiro trabalho etnográfico. Bastian acreditava na existência de pensamentos primordiais, comuns a todos
os povos, mas também com algumas particularidades culturais. Cf. Wilhelm Seidensticker, Enzyklopädie des
Märchens, volume I, Berlim, 1977, p. 1324.
15
da cultura material dos povos ditos primitivos do mundo inteiro. Outros museus da Europa
seguem essa tendência. O zoológo e filósofo Ernst Haeckel contesta Bastian. Ele diz que o
processo de seleção natural é inevitável. Os povos mais fortes acabam subjugando os mais
fracos. A polêmica entre ambos dura décadas. Haeckel torna-se famoso no meio acadêmico
pelas suas pesquisas no campo da biologia marinha, especialmente de medusas.19
A opinião pública o conhece mais pela sua defesa da teoria da evolução das espécies
de Charles Darwin, a quem visitou várias vezes na Inglaterra. Mas Haeckel dá-lhe um
conteúdo filosófico diferente, pois essa evolução prova, na sua opinião, a existência de uma
entidade superior ao ser humano. Ele defende o monismo, segundo o qual Deus e a natureza
têm a mesma origem. Logo, o espírito permeia toda a matéria.
Vizinhos de rua em Iena, o velho Haeckel e o menino Curt Unckel provavelmente se
conheceram. Durante certo tempo, Curt Unckel terá visto quase diariamente Ernst Haeckel.
Ele morava com sua avó Luise Weber até a morte desta em 1895 na rua Widermannsweg
número 505 casa “d”, não muito longe do local onde Haeckel mandou construir, em 1883, a
vila Medusa, hoje o Museu Ernst Haeckel, na rua que leva o seu nome.
Embora não existam documentos provando um encontro entre ambos, Menchén relata
uma conversa que poderia ter acontecido no alto das montanhas que cercam a cidade. Curt
está sentado num platô, daqui pode-se ver o vale do rio Saale, o descampado de Coppanz, a
escura floresta de Turíngia. Ao seu lado, Ernst Haeckel desenha a paisagem numa folha de
papel. Ménchen dá vazão à sua imaginação e coloca o jovem sonhador respondendo a uma
observação do velho cientista sobre o homem e a natureza:
“Goethe diz que é preciso lutar e não se entregar”. Tropeça inseguro no que disse,
continua, porém: “mas eu não consigo entender muito dessa poesia toda [do Goethe]. Em
comparação, Alexander von Humboldt era bem diferente, ele não ficou preso ao seu lugar de
origem”. Haeckel sorri interiormente e fica admirado com a ligação dos dois nomes feita pelo
jovem. A seguir, Haeckel lhe faz uma confidência. Goethe pintou um quadro que mostrava a
unidade dos diversos aspectos da natureza e o dedicou a Humboldt. O jovem Unckel olha para
o alto, mas no lugar do falcão voando em círculos enxerga imagens do seu passado: o dia em
que viu Haeckel observando numa rua de Iena uma placa dedicada a Humboldt, os livros que
ele Curt leu desse explorador que foi até o rio Orinoco, que desemboca no Amazonas, e [os
19
Haeckel, Ernst, Die Welträtsel, 1899, Berlin, nova edição, 1961. Suas obras História natural da criação,
Antropogenia e, finalmente, Enigmas do universo despertaram a ira da igreja católica alemã. O clero não aceitou
a teoria de Haeckel de que a criação do mundo não aconteceu como consta na Bíblia. Atualmente, o ensino de
Biologia na escola pública alemã está mais próximo do darwinismo materialista do que o creacionismo católico
ou o monismo de Haeckel.
16
livros] dos pesquisadores alemães Johann Baptist Spix e Carl von Martius que também
estiveram lá. Mas também revê o seu rigoroso tutor, o professor Paul, reclamando com a sua
envelhecida tia Berta que o chefe da oficina da Carl Zeiss deu um cascudo no jovem porque
ele fica sonhando com essas viagens.20
Vista do platô Haeckelstein, ao fundo a floresta de Coppanz, onde Curt brincava de índio.
Cappeller não informa se algum dos amigos de Curt Unckel que ele entrevistou sequer
sugeriu um encontro com Haeckel. Se tivesse acontecido, teria sido uma sensação para esses
jovens de Iena. Ex-colega de banco escolar, Guilherme Rüdiger disse que “todos nós éramos
grandes admiradores de Ernst Haeckel”.21
Ainda menino, Curt Unckel lidera seus amiguinhos em brincadeiras pelas florestas de
pinheiros e coníferas dos arredores de Iena. Juntos, constroem casinhas de madeira no alto das
árvores num lugarejo das redondezas. Seu conhecimento sobre os índios impressionou tanto
o companheiro de brincadeiras Fritz Sander, que, mais de sessenta depois, em 1961 ainda
lembra: “Como eu também gostava de me informar a respeito dos índios e o Unckel já sabia
muito a respeito, criamos um pequeno grupo, sendo que ele era o chefe”.
20
Menchén, p. 22 e 16. Na verdade, o rio Orinoco deságua no oceano Atlântico.
21
Contado por Rüdiger em carta enviada em fevereiro de 1970, quando Rüdiger teria 83 anos, cf. Menchén, p.
23. Segundo a artista plástica mineira Lotus Lobo, Rüdiger trabalhou de 1918 a 1968 numa gráfica de Belém,
onde Curt Nimuendajú também morou. Daí em diante, Rüdiger trabalhou como artista gráfico para a empresa
União e Indústria, em Juiz de Fora (MG). Entrevista com Lotus em 9 de junho de 2005. Cappeller, p. 14 e 36.
17
Procurada por Cappeller, a única sobrinha de Curt, Irmgard Müller, confirma: “Desde
a mais tenra idade, ele mexia com tudo o que tivesse a ver exclusivamente com mapas e
índios. Quando a minha mãe lhe pagou a passagem [para viajar ao Brasil], cumpriu-se o seu
acalentado sonho de infância”. O colega de banco escolar Friedrich Artmann revela uma
simpatia que, se aprofundada, teria mudado radicalmente a vida do jovem estudante: “Nós
brincávamos com soldadinhos de chumbo, depois como índios e caçadores. Nessa época, Curt
tinha mais a tendência de emigrar para a Rússia e chegou a estudar russo. Mais tarde, recebi
um cartão [dele] do Brasil”. Seus vínculos familiares com a Rússia poderiam explicar esssa
atração juvenil. Afinal, o pai de Olga (sua irmã por parte da mãe) era oriundo de lá, seu
próprio pai provavelmente morreu em Moscou e sua tia Berta voltara de São Petersburgo a
Iena para assumir sua educação. A atração pelos índios no Brasil, contudo, seria mais forte.
Aos 16 anos, Curt conclui em 1899 o segundo grau no Instituto Karl Stoy. O colega
Roderich Stintzing fornece sua única descrição física desta época: “Ele era um pouco maior
[do que eu], tinha a pele um pouco mais bronzeada do que os outros alunos e uma testa
própria de pensadores. Eu fiquei com a impressão de que se tratava de uma pessoa que sabia
qual era o seu caminho”.
Em Iena, Curt Unckel treinou com armas, que levou ao Brasil, mas não as usou contra os índios.
18
Olhando uma foto de Curt já adulto apresentada por Cappeller nos anos sessenta do
século vinte, Stintzing acrescenta: “na minha lembrança, ele tem feições mais suaves, de um
jovem alto, pele levemente escura e um olhar meio sonhador. O nariz pronunciado certamente
ainda não tinha essa forma, assim como os rasgos enérgicos em torno da boca e do queixo,
sem falar do perfil de formato arrojado. Mas a testa, sim, já era alta e larga”.
Em 1899, Curt Unckel ingressa na Carl Zeiss, na época a mais famosa empresa de
ótica de precisão da Europa.22
Mesmo antes de entrar na Zeiss, Curt Unkel ja frequenta a Sala Pública de Leitura de
sua cidade. Financiada pela Zeiss e pelo fabricante de vidros Otto Schott, a Sala Pública de
Leitura em Iena foi inaugurada em 1 de novembro de 1886 pela Sociedade Comenius, que
almejava oferecer à população uma doutrina moral independente das religiões.
A biblioteca se propunha contar com publicações de bom nível literário de várias
correntes de pensamento e credo. O acesso dos interessados era livre e gratuito de 10 a 22
horas, inclusive aos domingos e feriados.23
O diretor de Carl Zeiss, Ernst Abbe, queria que as pessoas que moravam sozinhas
contassem com um local de leitura e entretenimento. Abbe estava mesmo à frente de sua
época. Ele introduziu cláusulas sociais pioneiras na Zeiss: jornada de trabalho de oito horas
diárias (que só se tornaram oficiais na Alemanha em 2006), férias pagas, direito dos operários
a organização sindical, salário/hora e direito a aposentadoria.24 Após 1945, o regime socialista
estatizou a Carl Zeiss, que, com a reunificação alemã em 1989, foi privatizada e virou parte da
atual Jenoptik.
Abbe determinara ainda que o acervo da biblioteca da Sociedade Geográfica da
Turíngia, criada em 1882, fosse transferida para a biblioteca popular. ”Este seria um ponto de
atração muito especial para o jovem Unckel”, afirma Lindner.25
Certamente, a sala de leitura foi uma fonte inesgotável de tesouros para Curt Unckel.
Provavelmente é aí que ele lê as obras do escritor alemão Karl May, que escreveu mais de 60
livros, traduzidos em 33 línguas. Esses relatos fictícios teriam atingido uma tiragem geral
estimada em 200 milhões de exemplares. May descreveu a vida de povos exôticos,
especialmente da América do Norte e da Ásia, a partir da ótica alemã. A principal personagem
é Winnetou, o apache que se torna amigo do explorador Oldshatterhand.
22
Na ficha funcional da empresa, até hoje consta a informação: “Curt Unkel, nascido em 17/04/1883 em Jena,
solteiro, residente em Jena, ingressou em 10/04/1899 como aprendiz de mêcânico, saiu em 14/05/1903”. Cf.
Wolfgang Wimmer, chefe do arquivo da empresa Carl Zeiss, em E-Mail de 10/12/2004.
23
Lindner, Frank, Curt Unckel-Nimuendajú, Jenas großer Indianerforscher, Jenaische Blätter, nº. 5, quartus-
Verlag, Jena, 1996, p. 7.
24
Menchén, p. 23.
25
Lindner, ibid.
19
May até hoje exerce influência na cultura alemã infanto-juvenil. Mais do que atual são
frases quase proféticas como “O indígena também é uma pessoa e possui direitos humanos. É
um grave pecado declarar que [ele] tem direito à existência e [ao mesmo tempo] tirar-lhe aos
poucos os seus meios de subsistência”.26 Esta idéia, ligeiramente modificada, consta do
manifesto de Curt a favor da autonomia indígena, escrito em 1933.
No atlas da biblioteca de Iena, Curt localiza o bairro paulistano de Cambuci, onde anos
mais tarde iria morar, conforme carta enviada em 1904 ao amigo Ernst Reinhardt: “De São
Paulo, Curt Unckel escreve ao seu amigo ‘Max’, [dizendo que] ele vai achar certinho no mapa
da ‘sala de leitura’ o bairro de onde ele escreve [Cambucy] e a cidade de Ipiranga, onde está o
museu”.27
Seu entusiasmo pelos índios cativa também seus companheiros de trabalho. Um deles,
Fritz Sander, conta: “durante a minha formação de aprendiz na fábrica da Carl Zeiss, conheci
por ocasião de uma visita à sala de leituras um jovem chamado Unckel. Ele se interessava
muito pela América do Norte e do Sul, especialmente pelos índios. Naquela época, ele pegava
da biblioteca tudo o que encontrava sobre esses temas”.
Depoimento parecido é o de Guilherme Rüdiger: “Nós chamávamos [a sala de leitura
de] de sala quente, porque era lá que nos encontrávamos no frio inverno ou quando chovia.
Pegávamos os livros nas estantes e era Unckel, junto com Max, quem explicava [o conteúdo
dos livros]”.28
Os jovens mais atentos percebiam algo diferente nele. O colega de trabalho Paulo
Märzer relembra que, quando Curt Unckel ainda era aprendiz de mecânica no Departamento
de Medidas da Carl Zeiss, alguém disse: “presta atenção nele, é um revolucionário”.
Em menos de três anos, Curt Unckel passa de aprendiz a funcionário da área de
medições. Contudo, esse “revolucionário” nada tem a ver com a técnica e a mecânica
empresariais. Em 1903, ele surpreende seus amigos com a lacônica notícia de que não dava
valor ao serviço militar obrigatório e que iria abandonar a Alemanha.
Em maio desse ano, pouco depois de completar vinte anos, pede demissão da Carl
Zeiss. Na ficha funcional da empresa consta que ele “emigrou para o Brasil”.29
26
May Karl Friedrich (1842-1912), Ein Ölbrand, Verlag Neues Leben, 1985, Berlim, p. 3, minha tradução.
27
Não se sabe a data exata da carta, podendo ser de 06/01/1904 ou de 10/01/1904, cf. Cappeller p. 15 e 14.
28
Menchén, p. 23.
29
Zeiss, mail do diretor de Pessoal da empresa, Wolfgang Wimmer.
20
que lhe deu a capacidade de trabalhar de maneira segura e precisa. Por outro lado, as
iniciativas sociais lhe permitiram iniciar-se na auto-educação. O fato da empresa ser de
propriedade dos funcionários por iniciativa do dono também contribuiu para sua visão de
justiça”.30
De uma perspectiva mais ampla, Dungs aponta a bagagem cidadã que Curt Unckel
leva para o Brasil: “Uma boa instrução escolar, uma visão humanista, vontade de saber, amor
pela literatura científica e a vontade construtiva de se elevar”.
Nesta início de século vinte, a Prússia ainda vive o apogeu do seu poder, mesmo uma
década após a morte do “chanceler de ferro” Otto von Bismarck. Entre 1870 e 1871, de uma
tacada só Bismarck lançou as bases para uma nova Alemanha. Após ocupar militarmente
Paris, criou, no Palácio de Versailles, junto com outros estados, ducados e cidades livres, o
Império Alemão, o “Reich”. Guilherme I reinava, mas quem mandava mesmo era von
Bismarck.31 Em poucos anos, seu governo transformara a Alemanha agrícola numa potência
industrial, ainda hoje responsável pelo maior produto interno bruto da Europa.
Antes disso, já tinha crescido a sua influência militar no continente. De 1864 a 1871, o
Reich alemão derrotou a Dinamarca, França e Áustria. As despesas militares absorveram em
1870 quase 70% do orçamento do império. Negócios escusos grassavam entre militares,
parlamentares e empresários do aço e do carvão, tais como Krupp e Thyssen. Concluídas as
guerras na Europa, o “Reich” lançou-se a uma política expansionista fora do continente. Sem
colônias até 1870, passou em 1884 a ser a terceira maior potência colonial do mundo, apenas
atrás da Inglaterra e da França.
Os valores morais prussianos impregnam as pessoas: vida pública ascética, costumes
rigorosos, culto à autoridade e à obediência, o pudor de não externar sentimentos em público.
Estes elementos certamente influenciam Curt Unckel, cuja forma ríspida e direta de falar
destoaria dos padrões brasileiros vigentes. Suas feições austeras e a vigilante discrição quanto
a si mesmo não convidariam ao diálogo fácil na terra dos papagaios.
Ao mesmo tempo, a imaginação do jovem de Iena vê-se inflamada pela obra do
geógrafo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904), que marcaria gerações de cientistas e políticos
do mundo inteiro. Ratzel afirma que as civilizações assemelham-se aos seres humanos, que
passam pelas etapas do nascimento, crescimento, apogeu, declínio e morte. As migrações
30
DU, p. 15 e 17.
31
Até meados do seculo 19, a Alemanha ainda era uma economia agropastoril. A extração de carvão aumentou
de apenas 1,5 milhão de toneladas em 1820 para 3,5 milhões de toneladas em 1840. Já na Inglaterra, no mesmo
período passou de 12,5 milhões para 30 milhões de toneladas. A produção de minério de ferro seguiu a mesma
tendência. Estas duas matérias-primas eram a base da nascente industrialização européia. Somente no final do
século 19 é que a Alemanha desenvolve uma estrutura manufatureira, baseada nas indústrias têxtil, siderúrgica e
química. Cf. Engelmann, p. 261 e 409.
21
seriam um elemento dinâmico nesse processo, pois a mudança geográfica alteraria o padrão
étnico de um povo.
Ratzel tornou-se mundialmente famoso pelo seu conceito de Lebensraum (espaço
vital). Como o Estado também vive um ciclo que vai do seu nascimento até a decadência, ele
deve lutar pelo seu espaço vital, uma área geográfica e cultural que lhe permita continuar
existindo. Inclusive através da expansão pacífica de suas fronteiras, a exemplo da colonização
chinesa em séculos passados. No século 20, a ideologia nazista apropriou-se deste conceito.
Em sua monumental obra Völkerkunde lançada em 1880, Ratzel confessa não entender os
motivos que levaram os Tupi-guarani a migrar.32
Este livro constava da biblioteca da Sala de Leitura, patrocinada pela Carl Zeiss. Será
que, instigado por esse enigma, Curt Unckel atravessa o oceano Atlântico já com a intenção
de contatar os Tupi-guarani?
32
Ratzel, Friedrich, Völkerkunde, 1885, Bibliographisches Institut, Leipzig, Vol. 1, p. 8.
2 - Como Unckel virou Nimuendajú
A última informação conhecida sobre Curt Unckel ainda residindo na Alemanha é o seu
pedido de demissão da Carl Zeiss em maio de 1903. É uma atitude inusitada. Ele troca o
emprego garantido numa grande empresa de tecnologia de ponta pelas incertezas e riscos de
um país desconhecido e de contatos com habitantes exóticos para o olhar europeu.
Nada se sabe quando e onde ele embarca rumo ao Brasil, nem quando chega. A
exemplo de outros milhares de alemães, deve ter aportado de navio no Rio de Janeiro, naquela
época ainda a entrada oficial de imigrantes no país. Certamente ele adentra um – mas nem
sempre admirável – mundo novo. É igualmente desconhecido porque ele decide morar em
São Paulo.
23
Fritz Cappeller, seu primeiro biógrafo, dá uma idéia da feérica impressão que o recém
chegado, sem experiência anterior com outra cultura, terá tido percorrendo as ruas de São
Paulo naquele início do século 20:1
Certemente que o ideal alemão de república e o Brasil do início do século vinte pouco
tinham em comum. As diferenças formais começam pelo fato de que a monarquia na
Alemanha só chega ao fim com a sua derrota na Primeira Guerra Mundial, em 1918. Mas não
é o tipo de regime político vigente no Brasil que abala Curt Unckel. Ele vive situações
completamente novas, como a mistura racial de negros, índios, caboclos, mulatos, cafusos e
europeus convivendo em aparente harmonia.
Curt Unckel busca adaptar-se à sociedade brasileira. A duras penas, consegue trabalho
de vendedor de ferramentas na loja de um filho de alemães, Ricardo Nashold, na rua
Florêncio de Abreu, em São Paulo.2
No paraíso sonhado, Curt Unckel depara-se com problemas bem mundanos: o calor
abrasador, os eternos mosquitos, a displicência dos moradores, especialmente na hora de
pagar dívidas e salários. Ele conta a um amigo de Iena que comprara uma mula, “cujo
pagamento não foi nada fácil, porque no Brasil reina a mais absoluta exploração, onde as
pessoas trabalham sem ver a cor do dinheiro”.3
Escrever é sua forma de buscar um novo equilíbrio num universo mutante e
incompreensível. Mas torna-se também o jeito de comunicar momentos agradáveis, como
conta, em 1960, o amigo da distante Iena, Walter Habel: “Eu também recebi logo após a sua
chegada a São Paulo uma longa carta, na qual ele me conta que a [mulher] preta que lhe lava a
1
Cappeller, p. 17
2
Menchén, p. 31, sem citar a fonte. Segundo ele, uma foto de Unckel com o fuzil nos ombros foi fornecida por
Habel. Em 10 de fevereiro de 2005, Ricardo Naschold Neto me informou por E-Mail que sua mãe sabia muito a
respeito da loja do avô. Ela, contudo, morrera algumas semanas atrás e o pai de Ricardo falecera em 1998. Entre
os documentos da mãe, Ricardo achou uma carta do diretor do Museu de Leipzig, Fritz Krause, dirigida ao seu
avô. Ambos se conheceram em São Paulo, durante a expedição de Krause ao rio Araguaia no início do século 20.
3
Cappeller, p. 17. Aparentemente, Capeller é uma das poucas pessoas que leu essa carta.
24
roupa canta uma música muito bonita. Ele me mandou a partitura da melodia e como entre
nossos amigos [em Iena] um deles era músico logo aprendemos a música”.
Na mesma carta de 6 de janeiro de 1904, Curt Unckel informa que já tinha participado de uma
expedição pelo interior, possivelmente de São Paulo, sem dar maiores detalhes por onde
andara. Apenas que teve que abortar essa primeira expedição “em consequência do calor
estorricante e da dor nos olhos, provocada pela luz deslumbrante no chão sem vegetação, que
não deixa ver mais nada”.4
Uma segunda carta, de 10 de janeiro, mostra que os fatos se precipitam. Depois de
poucos meses em São Paulo, ele finalmente está prestes a realizar seu sonho que o levara a
deixar a Alemanha: “Vou participar de uma expedição do engenheiro Lacerda, que quer
explorar o rio Feio e libertar um missionário capturado pelos índios Coroado. Eles precisam
de gente armada e eu sou um desses”.5
Esta notícia deve ter caído como uma bomba em Iena, desorientando amigos e
familiares. Na gelada Alemanha (em janeiro é rigoroso inverno), a atitude de Curt só poderia
ser vista como prova de que o calor tropical efetivamente acirra as mais simples contradições
humanas: Não é que Curt Unckel acalentou anos a fio nas florestas de Iena o ideal
humanitário de conhecer a vida indígena, deixou família, amigos e emprego garantido para
cruzar o oceano Atlântico e agora vai participar de uma expedição punitiva contra os
indígenas?
Dois dias depois, envia um cartão postal ao amigo Fritz Töpfer. Ele confirma sua
decisão de participar da expedição. Fica claro que Curt Unckel tem consciência de estar diante
de fatos completamente novos. Fatos que mudariam sua vida. Por isso, não quer prender-se a
um lugar. Ele prefere ser fiel à sua ânsia de correr aventuras com desenlaces imprevisíveis.
Principalmente numa sociedade onde a volatilidade das convicções constitui a única
possível certeza: “De São Paulo, um último cumprimento à família Töpfer e ao noivo Müller.
Provavelmente ainda nesta semana deixo SP e vou ingressar em Lençóis num grupo armado
de uma expedição que vai explorar o rio Feio. É incerto se eu retorno a São Paulo”.6
4
Ibidem. Anos mais tarde, pouco antes de morrer foi diagnosticado que Nimuendajú tinha glaucoma.
5
Curt Unckel embarcara para o Brasil levando uma pistola e um fuzil M88, cf. Cappeller p. 16.
6
Uma cópia digital deste cartão endereçado ao ótico Fritz Töpfer foi entregue em novembro de 2005 ao prof.
Joachim Born, da Universidade de Iena, que em dezembro desse ano organizou um seminário internacional
alusivo aos 60 anos da morte de Curt Nimuendajú.
25
Em janeiro de 1904: “Talvez esta semana deixe São Paulo (...) meu retorno é incerto”.
7
Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, Dossiê da expedição do Rio Feio/Aguapeí, em
http://memoria.fundap.sp.gov.br/memoriapaulista/publicacao/conquista-do-sertao-paulista/dossie-da-expedicao-
do-rio-feioaguapei acessado em 23/03/2011.
8
Carta a Harald Schulz, 26/06/1944, MN.
26
índios que defendem seu território. Curt Unckel é um dos guarda-costas. À noitinha, o chefe
das obras volta a São Paulo depois de inspeccionar o local. Em torno da vendinha, juntam-se
os exaustos trabalhadores.
À falta de diversão, fabula Menchén, eles começam a incomodar um índio bêbado:9
O livro de Menchén foi publicado em 1979 na Alemanha, narrando o que poderia ter
acontecido no início desse século em São Paulo. Em 20 de abril de 1997, a ficção tornou-se
realidade em Brasília. Cinco jovens, um deles o filho do juiz federal Novély Vilanova da
Silva Reis, atearam fogo a um indígena pataxó, que dormia numa parada de ônibus. Galdino
Jesús dos Santos, que tinha viajado do Espírito Santo a Brasília para comemorar o Dia do
Índio, foi assim assassinado.
A juíza Sandra de Mello determinou que o crime fosse julgado não como homicídio
doloso, mas como lesão corporal grave, seguida de morte. Em função disso, a pena máxima
9
Menchén, p. 46, minha tradução.
27
de trinta cairia para doze anos de prisão. Em 2001, porém, os jovens foram condenados por
homicídio doloso pelo júri popular a 14 anos de prisão.10
Logo no primeiro contato com os índios, o jovem Curt Unckel mostra de que lado
está, conta um amigo de Jena: “Ele [Curt] voltou de sua primeira viagem aos índios, que
durou vários meses, com o lábio inferior furado como símbolo de pertencer a uma tribo, e por
isso usava barba comprida”.11
Nimuendajú nunca revelou quando exatamente aconteceu esse primeiro encontro com
indígenas no Brasil. No seu primeiro trabalho científico, ele apenas enumera: “Vim a
conhecer os Guarani em 1905, no oeste do estado de São Paulo; vivi então, com poucas
interrupções até 1907, como um deles, na sua aldeia no rio Batalha”.12
Nesse início do século 20, a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (atual Novoeste) se
aproxima da área do rio Batalha, ameaçando as tribos desta região ao noroeste de Bauru. É
preciso abandonar a área do rio Avari e procurar novas terras para evitar o confronto com os
brancos.
Mesmo essa empreitada tem riscos, conta Curt Unckel: “Numa excursão de
reconhecimento, empreendida a cavalo ao Rio Feio em Maio de 1906, quase caímos (Ponõchi
e eu) nas mãos dos Coroado, verificando assim que a terra dos Guarani à margem do [rio]
Lontra ainda não era habitável para nós”.13
Este sucinto trecho de poucas linhas descortina o início de uma mudança radical na
vida de Curt Unckel. Como num passe de mágica, o jovem ex-funcionário da empresa de
tecnologia da ponta na Alemanha passa a morar entre os índios talvez materialmente mais
pobres do Brasil.
Seus relatos de 1913 sobre o dia-a-dia na aldeia desmentem radicalmente hipóteses
formuladas quase cem anos mais tarde de que ele queria conhecer a romântica vida indígena.
Aceito pelos Apapokuva-Guarani, Curt Unckel acompanha o rumo errático desses
indígenas, acossados por implacáveis fazendeiros e seus ferozes capangas. No início do
século vinte, os Apapocúva moravam perto de Bauru, SP, e, depois de algum tempo de
10
Rede Globo, Assassinato do índio Galdino completa 10 anos, 19/04/2007,
http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL23764-5598,00.html acessado em 04/04/2011.
11
Cappeller, p. 17. Ele não cita o nome da pessoa que deu a informação.
12
Nimuendajú Unkel, Curt, As lendas da criação e a destruição do mundo como fundamentos da religião
Apapokuva-Guarani, p. 3.
13
Nimuendajú, Curt, Apontamentos sobre os Guarani, separata da Revista do Museu Paulista, 8, São Paulo,
1954, p. 28. O livro, escrito em 1908, só foi editado após a sua morte, com tradução e notas do etnólogo Egon
Schaden.
28
perambulação, Joguyroquý, filho de Araguyraá, funda uma nova aldeia na foz do Avari, no
meio do rio Batalha. A situação é insustentável, lembra Curt Unckel14:
A miséria não é uma imagem poética, mas parte da nova vida inexplicavelmente
escolhida pelo alemão. Outras vivências decorrentes dessa opção são igualmente difíceis de
explicar a europeus, como aquela na qual os pajés evitaram a sua morte: “(...) a terapia
indígena me salvou quando, em 1907, no Araribá, abatido pela desnutrição, febre palustre e
disenteria, já me considerava desenganado, tendo até participado do começo do meu próprio
ritual fúnebre, um tanto prematuramente iniciado”.15 Mas não dá detalhes que expliquem a
sua recuperação.
Outro exemplo da dura existência desses Guarani é a história da menina que virou
prostituta. Francisco da Costa Ribeiro, conhecido por Chico Mestre, era o dono de uma
fazenda perto da aldeia do Avari. Ele se apaixonou pela menina de 13 anos Maria Tacoapuarã
e, por isso, encheu de presentes o pai, o kaiowá Uembe. Ele resistiu ao assédio até que um dia
aceitou a oferta de Chico Mestre e, acompanhado da filha, foi morar na fazenda. “Foi ai que
durante um mutirão Chico Mestre procurou apoderar-se da menina, mas esta gritou, o capitão
Avacauju [o cacique] interveio e, embora Chico Mestre armado de garrucha o fizesse recuar,
a tentativa tinha falhado desta vez. (...) Uembe tornou a mudar-se para a aldeia”.16
Astuto, Chico Mestre mandou mulher e filhos para a casa dos sogros em Agudos (SP),
espalhando que se separara da mulher para casar com Maria Tacoapuarã. Como esta manobra
também falhou, ameaçou exigir de volta todos os presentes que dera a Uembe. Maria
Tacoapuarã mudou-se de novo para a fazenda e virou companheira de Chico Mestre.
Uma semana depois, ela apareceu na aldeia com sinais de violência física. Contra os
conselhos de Curt Unckel, os índios foram junto com a menina a Bauru dar queixa ao
14
As Lendas, p. 13.
15
Ibid., p. 92.
16
Nimuendajú, Apontamentos, p. 34.
29
delegado de polícia local. Ao chegar lá, já encontraram Chico Mestre, acompanhado de duas
testemunhas de que Maria Tacoapuarã se prostituíra há mais de um ano.
Chico Mestre deu ordens para que um jovem Guarani, Jesuino Eiju, que trabalhava na
fazenda casasse [sic] com Tacoapuarã. O próprio Chico Mestre foi uma das testemunhas,
quando Eiju e Tacoapuarã se casaram no civil em Bauru. Não somente pagou as despesas da
formalidade, mas, para para festejar o acontecimento, comprou também carne, cachaça e
foguetório. Eiju não viveu um dia sequer em companhia da mulher que lhe fora imposta e
faleceu no ano seguinte. Atualmente, Tacoapuarã é de fato prostituta, recebendo ainda, de vez
em quando, a visita de Chico Mestre.17
O batismo indígena
Após morar um ano com os Apokokuva-Guarani, dá-se uma reviravolta fundamental na vida
de Curt Unckel, já então adotado como filho pelo cacique e pajé Avacauju, que ele, às vezes,
também chama nos seus escritos de Joguyroquy. Na noite de 14 a 15 de julho de 1906,
dezenas de indígenas se reúnem em torno da tapera do seu amigo Ponõchi, à beira do rio
Batalha.
Como o filho recém nascido de Avacauju seria batizado, todos os membros da tribo
acorrem para participar. Portanto, Curt Unckel descreve no início somente a cerimônia do
batizado do seu irmão indígena:
A noite era luarenta e fria. Em toda parte, no terreiro e na beira da mata, reluziam as
pequenas fogueiras dos Guarani e em torno estavam deitados os vultos escuros dos índios
embrulhados em cobertas e roupas; não se ouvia o menor ruido e somente de vez em quando
surgia no raio luminoso da fogueira um rosto amarelado, soprando de olhos fechados as
brasas, para avivar o fogo.18
Por volta de meia-noite, mulheres e crianças entram numa casinha, onde cantam e
dançam horas seguidas. As crianças deitam no chão e dormem, enquanto os adultos dançam.
17
Ibid, p. 36.
18
Ibid, p. 36. Esta aldeia foi transformada em posto indígena em 1946, batizado com o nome de Curt
Nimuendajú. Atualmente, é composto de quatro localidades, uma delas é a aldeia Nimuendajú.
30
Avacaujú se pôs bem diante de mim e exclamou, hesitante e excitado, mas em voz
bem alta e clara: “Muendajú-ma-nderey! — Nandereyigua nde! — Nandéva nderenoi
Nimuendajú!” (“Muendajú é teu nome! — Tu fazes parte da nossa tribo! — Os Guarani te
chamam Nimuendajú!”). E então, apontando para Poñochí e sua mulher: “Cova-ma
ndeangá!” (“Eis teus parentes”, quer dizer padrinhos de batizado). Depois recomeçou, para
meu pavor, a cantar de cabeça erguida diante de mim, mantendo as mãos sobre a minha
cabeça, abençoando-me. Ainda demorou um bom tempo até que ele, deixando os braços
caírem, desse um passo atrás, ao que o canto cessou e a cerimônia foi encerrada.
Quando o sol, cerca de meia hora depois, nasceu atrás da floresta, iluminava um novo
companheiro da tribo dos Guaranis [sic] que, apesar da sua pele clara, compartilhou com eles
lealmente no curso de dois anos a miséria de um povo agonizante.19
É a manhã do dia 15 de julho de 1906 – sua mãe alemã, Marie Unckel, nascera 53
anos atrás quase na mesma data, em 8 de julho de 1853.
É assim que Curt Unckel transforma-se em Curt Nimuendajú, filho adotivo do casal
Apokokuva-Guarani Joguyroguý e sua mulher, Nimõa.20
O jovem alemão de 23 anos finalmente encontra no sertão de São Paulo o lar que não
conhecera em Iena. A alegria de ter, pela primeira vez na vida, uma família transparece na
maneira carinhosa com que Curt Nimuendajú escreve sobre seus pais indígenas.
Afinal, ele pode ouvi-los, conversar com eles a qualquer momento. São eles que o
guiam pelos meandros de uma cultura ainda desconhecida para quem três anos atrás ainda
morava na Alemanha. Estes sentimentos aparecem na sua descrição dos preparativos para a
pajelança anterior à sua empreitada de matar um jaguar, que recebera a alma em pena de um
indígena assassinado:
Minha mãe adotiva, Nimõa, teceu uma faixa larga com longas borlas nas pontas e
bordadas por um rico enfeite de penas. Joguyroquý [seu pai], entrementes, fez três flechas
comuns de caça, de cana de cambaúva, ponta dentada de madeira e penas de jacu como guias.
Ele convocou então mais dois homens e, como parecia ser necessária a presença de uma
mulher, também minha madrinha. Esa veio com sua melhor amiga, trouxe-me ainda uma
testeira e me pintou com urucu [urucum] para a luta iminente.21
19
Nimuendajú, Curt, Nimorangaraí, revista Mana vol. 7 nr. 2, Rio de Janeiro, outubro de 2001, p. 148. O
original foi publicado no jornal paulistano Deutsche Zeitung, de 13 de julho de 1910. O tom deste relato é
irônico, distante. O livro Apontamentos traz uma versão ligeiramente modificada e a abordagem é quase solene.
A diferença poderia ser explicada pelo fato de que Nimorangaraí é dirigida à comunidade de língua alemã no
Brasil, ao passo que Apontamentos constituem anotações que, segundo seu editor Egon Schaden, não foram
aproveitadas na primeira obra de Nimuendajú, a As Lendas.
20
Ele demorou para escolher o nome que usaria definitivamente. Ele assina o primeiro capítulo do livro
Apontamentos sobre os Guarani, concluído em 2 de dezembro de 1908, como Curt Unckel. O segundo, como
Curt Unckel Nimuendajú, e sua primeira obra As Lendas como Curt Nimuendajú Unckel. Em 1922, ao adotar a
nacionalidade brasileira, decidiu-se pelo nome Curt Nimuendajú.
21
Nimuendajú, As Lendas, p. 43.
32
apresenta a sua família guarani ao mundo ocidental. Uma foto mostra o cacique e sua esposa,
além de seus irmãos Guyrapéjú e o Aavajoguyroá, e sua cunhada Mangaayjú. 22
É uma singularidade possivelmente sem paralelo no mundo acadêmico: o europeu que
adotou o status de indígena divulga a sua nova situação familiar num periódico especializado
em Etnografia.
Mais ainda. No apêndice do livro Apontamentos sobre os Guarani, ele esboça o que
certamente é a primeira árvore genealógica de uma família indígena.
Pacientemente, ele rastreia dados dos mais velhos membro de seus antepassados
através de seis gerações. Chega até um índio cujo nome ninguém mais sabe, mas ainda é
lembrado como o “capitão dos Guarani de Iguatemi [SP], morto pelo ano de 1830 numa
expedição [guerreira] contra os Avavaí. Casou com ? [sic], raptada pelos Avavaí”.
Na árvore genealógica de sua família indígena, ele também incluiu ▲o seu nome.
Um dado fundamental nessa árvore genealógica é que ele próprio se incluiu: “Curt
Unckel Nimuendajú, adotado em 1906”. Ele não é, contudo, o primeiro alemão na tribo. O
mesmo documento revela ainda que sua tia Apopokuva casou-se com o alemão Georg
Grütken e passou a se chamar Amélia Niapery Grütken.23
Quem traduziu para o português e publicou Apontamentos sobre os Guarani é um
outro irmão indígena de Curt e igualmente de origem alemã. Trata-se do antropólogo Egon
Schaden, nascido em Santa Catarina.
22
Nimuendajú, Die Sagen..., original em alemão, p. 387.
23
Nimuendajú, Apontamentos, apêndice.
33
Schaden acrescenta:
Uma vez que irmão e sobrinho são sinônimos em guarani, Nimuendajú é txerykeý, ou
seja, meu irmão mais velho. Como tal o tenho considerado também no campo dos estudos
etnológicos e, em particular, na investigação da cultura guarani contemporânea.24
A sutileza na história de Egon Schaden é que ele informa espontaneamente o seu nome
indígena - Avanimondyiá. Mas, curiosamente, não revela o seu significado, atitude
inicialmente inexplicável num cientista. O manto de mistério que cerca os nomes indígenas
torna-se evidente na cerimônia de batizado, o ñeengaraí, feito pelo pajé para conhecer a
região espiritual de onde provém a criança e identificar seu nome. Íntimo conhecedor desses
rituais, Curt Nimuendajú explica:
24
Egon Schaden, Notas sobre a vida e obra de Curt Nimuendajú, Revista de Antropologia 1967-8 v. 15-16, p. 79.
Egon Schaden nasceu em Palhoça (SC) em 1913, neto de avôs alemães. Aluno de Claude Lévi-Strauss na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, em 1941 assumiu como professor assistente a cadeira de
Antropologia nessa faculdade. Em 1953, lançou a Revista de Antropologia. Sua área de maior interesse era a
cultura, religião e língua dos Guarani. Morreu em 1991, cf. Borges Pereira, João Baptista, Emilio Willems e
Egon Schaden na história da Antropologia, Estudos Avançados, volume 8, número 22, 1994, p. 249-253.
25
DU, p. 21.
34
O nome determinado deste modo tem para o Guarani uma significação muito superior
ao de um simples agregado sonoro usado para chamar o seu possuidor. (...) O Guarani não “se
chama” fulano de tal, mas ele “é” o nome. O fato de malbaratar o nome [usá-lo
indevidamente] pode prejudicar gravemente seu portador. É por este motivo que pais
cautelosos, especialmente quando vivem com seu filho entre estranhos, guardam segredo
sobre o verdadeiro nome da criança, atribuindo a esta um apelido qualquer. Conheço vários
índios que não sabiam seus próprios [verdadeiros] nomes, porque seus pais morreram cedo
sem havê-los confiado a ninguém. (...) Eles acham profundamente ridículo que o sacerdote
cristão, que sempre se julga superior ao pajé pagão, pergunte aos pais da criança como esta se
deveria chamar. Pretende [o sacerdote] que é padre e sequer é capaz de saber determinar o
nome certo da criança? Daí o menosprezo do Guarani ao batismo católico e aos nomes
portugueses.26
(...) aventa a hipótese de que o final jú [sic] derivaria do u correspondente a pai. Com
recurso à doutrina da reencarnação aceita pelos Apapokúva, traduz então “Nimuenda (é seu)
pai, ou melhor: descendente de Nimuendá”. Na pessoa do Nimuedajú teria, assim, renascido
Nimuendá, hipotético personagem da mitologia, assim denominado porque “soube abrir o seu
próprio caminho neste mundo e conquistou o seu lugar, talvez de chefe entre os
contemporâneos” (op. cit. p. 2).27
Egon Schaden aceita, com restrições, essa interpretação:
26
As Lendas, p. 31.
27
A opinião de Egon Schaden está em Apontamentos sobre, p. 56. No final de sua vida, Nimuendajú manteve
uma discussão azedíssima com Baldus e com Juan Francisco Recalde, primeiro tradutor para o espanhol do seu
livro As Lendas. Uma segunda tradução ao espanhol foi publicada em 1978 pelo Centro Amazónico de
Antropología y Aplicación Práctica, de Lima, Peru, de autoria de J. Barnadas, cf. Viveiros de Castro, Eduardo, e
Charlotte Emmerich, in As Lendas, p. xxxix.
35
Na opinião de Recalde, a cor amarela que em guarani se diz jú [sic] ou djú, não tem
“valor mitológico” em que se possa fundar outra interpretação. Mas na realidade é esse o
sentido que a maioria dos Guarani dá ao final djú, não tradução vulgar de amarelo, mas como
termo religioso, em que o “amarelo” equivale a “áureo” como a luz do sol e, de modo geral,
ao celeste, sublime ou sagrado. O valor deste djú é de natureza muito mais emotiva e mística
do que representativa, e mais de uma vez me disseram que [o djú] evoca sentimentos que só
um Guarani pode ter. As almas humanas vêm do além, são, pois, djú, e daí a frequência desse
final nos nomes próprios.
(...) Identificação tão intensa que (...) torna-se difícil distinguir entre a mistura de
obstinação e desencanto daqueles Guarani que Nimuendaju acompanhou em suas migrações
na busca de um sonho, e o pessimismo do próprio Nimuendaju quanto à sorte final dos índios
e ao resultado de seus esforços em favor deles. (...) Se jamais recuou de sua empresa,
entretanto, é porque este desencanto não era dos que se resolvessem em imobilismo ou em
autonegação; ao contrário, ele sempre foi dobrado de uma afirmação insistente quanto ao
valor dos próprios valores e à certeza de uma vocação.29
28
Schaden, Notas sobre a vida e obra de Curt Nimuendajú, p. 78.
29
Viveiros de Castro Eduardo, As Lendas ... p. xviii.
36
Nisso mais que em tudo Nimuendaju se assemelhou aos seus Guarani; e por isso
mesmo sua memóravel conclusão sobre a melancolia e o pessimismo histórico Apapocúva –
que outros autores estenderam aos demais Guarani –, enquanto sintoma de que este povo
perdera a vontade de viver, deve ser avaliada com olhos de hoje. Contra todos os vaticínios
sobre o fim iminente de sua cultura, os Guarani continuam, e continuam como são: não
apesar, mas talvez por causa de tudo [isso].
30
Belém, 25/05/1939, DU, p. 194. Montoya é o padre jesuíta Antonio Ruiz de Montoya, um dos primeiros
estudiosos da língua guarani. Suas obras mais conhecidas são El Tesoro de la lengua guaraní (publicada em
1639), El Arte y Bocabulario de la lengua guaran“ (1640), e El Catecismo de la lengua guarani (igualmente
1640), cf. Meliá, Bartomeu, Etimología y semántica en un manuscrito inédito de Antonio Ruiz de Montoya, in
Amerindia: revue d'ethnolinguistique amérindienne, La "découverte" des langues et des écritures d'Amérique,
Paris, 1995, p. 331.
3 - A criação e a destruição do mundo
A convivência com os Apapocuva-Guarani é o ponto de inflexão para Curt Unckel tornar-se
Curt Nimuendajú. É quando ele faz uma opção de vida. “Aqui nasceu, no sentido literal da
palavra, o homem que até hoje ocupa um lugar de honra entre os etnológos e pesquisadores”,
diz Menchén.1
É entre esses Guarani, concorda Dungs, que “em 1905 esse jovem de 22 anos decidiu
assumir sua futura vida indígena”.2 Dungs atribui a decisão às leituras em Iena, especialmente
de relatos de exploradores europeus em outros continentes.
1
Menchén, p. 38.
2
DU, p. 20.
38
(...) o canto já durava horas e Cuperý permanecia inerte nos braços de sua mãe.
Ñeẽnguei derramava e soprava o que podia do seu poder mágico sobre jovem; finalmente,
passada a meia-noite, ele pareceu ver a doença. Pegou-a cuidadosamente como se fosse um
pano estendido sobre o enfermo, começando com uma mão pela cabeça e com a outra pelos
pés; em seguida o enrolou em volta de sua mão direita, levantou-se, foi à porta da casa e
atirou a doença para longe; soprou então as mãos, assoviando, enquanto as batia com estalos.
Retomou seu lugar no preciso momento em que o enfermo se virou gemendo, abriu os olhos e
perguntou, erguendo levemente a cabeça, enquanto olhava interessado em torno de si:
“Mbaéva pã? (O que está acontecendo?)”. Em seguida bebeu água, virou-se e dormiu
tranquilamente até a manhã seguinte.5
Situações como estas deixam marcas indeléveis no jovem nascido na Alemanha. Ele
descobre que os tratamentos xamâmicos são uma expressão da cosmogonia que alimenta a
3
Schaden, Notas sobre a vida…, p. 79. Nimuendajú deu a Schaden o livro, que, por isso, não consta do seu
espólio, feito em 7 de agosto de 1946, conforme microfilme 322 do Museu do Índio. Berghaus foi professor de
Etnologia em Berlim, cujo livro em dois volumes foi lançado em 1868 em Berlim. Ele apresenta os diversos
povos do mundo, inclusive grupos indígenas da América do Sul. Só disponível em antiquários pelo preço médio
de US$ 4.500,00.
4
Nimuendajú, As lendas, p. 92.
5
Ibid.
39
vida dos Apapocuva-Guarani. Ao receber um novo nome, a pessoa torna-se uma outra
individualidade, porque a doença está ligada ao doente por meio do nome.
Curt Unckel também vivencia a perseguição a que são submetidos os indigenas. A
construção da Estrada de Ferro Noroeste, que iria ligar Bauru a Corumbá (MS), provoca
massacres de famílias e extermínio de tribos. Os indígenas, por sua vez, atacam povoados e
fazendas, matando pessoas e roubando gado.
Esses sangrentos confrontos não se limitam ao sertão paulista. Em outras regiões do
país, a situação é muito parecida. O pesquisador Julio Cesar Melatti cita os Xokleng no
Paraná e em Santa Catarina, que defendem suas terras, que seriam dadas a colonos alemães e
italianos, mas também os Botocudo de Minas Gerais e do Estado de Espírito Santo.6
Efetivamente, Curt Unckel não se encontra num país povoado apenas por europeus e
seus descendentes. O interior do Brasil é ocupado não somente por caboclos, mas também por
índios. Não existem terras vazias, mas terras habitadas por indígenas nômades.
O choque no sertão entre índios, caboclos e colonos provoca morte e destruição. Seus
reflexos chegam amortecidos às cidades do litoral. Nesse início do século 20, o Brasil assiste
ao debate ideológico sobre o destino dos índios.
Nacionalistas incipientes exaltam qualidades mitológicas da raça, de certa forma
inspirados pelo naturalismo nas artes. Ainda ecoam obras do século 19 como a ópera O
Guarani, de Carlos Gomes, e o romance Iracema, escrito por José de Alencar.
Em contrapartida, os chamados desenvolvimentistas querem explorar as riquezas
naturais do país. Invadir as terras indígenas e expulsar ou exterminar seus habitantes aparenta
ser a maneira mais rápida, eficiente e barata de atingir esse objetivo.
O “extermínio de índios”
6
Melatti, Julio Cesar, De Nóbrega a Rondon, Revista de Atualidade Indígena, ano 1, no 3, p. 38, Brasília, Funai,
1977.
40
interrogação. Prudentemente, o sócio von Ihering deixa de assistir por um tempo às reuniões
da douta instituição paulistana.7
Três anos depois, von Ihering afirma que nunca sugerira algo parecido. Num curto
estudo sobre os indígenas do Estado de São Paulo, apenas apresentara o “aspecto científico da
questão, mencionando, entretanto, as relações entre indígenas e inmigrados [sic], e o
extermínio dos elementos em guerra com os sertanejos. A frase deu lugar a um comentário
desfavorável do sr. dr. Silvio de Almeida, que comunicou aos leitores do [jornal O] Estado de
S. Paulo a sua importante descoberta de recomendar eu ‘o extermínio dos índios’. Protestei
imediamente nunca ter proferido semelhante coisa, mas o admirável achado do sr. dr. Silvio
corria mundos, ecoando triunfal pelos jornais, numa ansia sentimental de lances
emocionantes”.
Pode ter sido apenas um mal-entendido. Ou mesmo uma manobra dos tímidos
defensores dos indígenas da época. Fato é que o zoólogo alemão torna pública uma distinção
entre “índios mansos” e “índios bravios”. Ele propõe claramente que a missão do governo
deveria ser a de proteger a vida e a propriedade dos “civilizados” dos ataques dos “bravios”,
como já se fazia nos Estados Unidos e na Argentina.
Já os “mansos” seriam catequisados por religiosos e apoiados pelo governo. A atitude
perante o outro grupo deve ser diferente: “os índios assaltantes, que impedem o
desenvolvimento regular da civilização, serão aldeiados [confinados em aldeias] mesmo à
força e até por meio de bandeiras, como já há muito o recomendava José Bonifacio, ainda que
se devam o mais que possível evitar recursos extremos”.
Mesmo com apenas quatro anos de permanência no Brasil, Curt Unckel coloca-se
decididamente contra as idéias do seu patrício, ilustre intelectual da época. A questão para ele
é indígena, não alemã. Num artigo publicado no jornal em alemão Deutsche Zeitung, em
novembro de 1908, mostra que as propostas de von Ihering eram impraticáveis.
Ao mesmo tempo, critica a atitude do governo, que promove expedições con fins
punitivos contra os indígenas. Ironia é que, em 1905, ele quis participar armado da “expedição
do dr. Lacerda”, cujo objetivo teria sido resgatar um sacerdote sequestrado por indígenas.8
7
Ihering, Hermann von, A questão dos índios no Brazil, Revista do Museu Paulista, v. 8. p 114, 1911. Ele
chegou ao Brasil em 1880 e se dedicou à observação de pássaros no litoral gaúcho. Diretor do Museu Paulista de
1894 a 1916, morreu em 1930. Avaliando sua atuação no cargo, Ulpiano T. Bezerra de Meneses, professor do
Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, afirma: “Trata-se do
casamento mais perfeito que jamais existiu entre museus e um determinado campo do saber, estabelecendo-se,
no caso, relação simbiótica entre a forma institucional e as ciências naturais e suas práticas”. Cf.
http://www.iea.usp.br/iea/revista/online/revista22/museupaulista.html.
8
O artigo Ainda a questão indígena, edição de 03/11/1908 do Deutsche Zeitung, foi também o seu primeiro
trabalho escrito sobre os indígenas. Ele teria reagido ao artigo Die Indianerfrage – A questão indígena, publicado
no Deutsche Zeitung em 1908, de autoria de Walter Fischer, cf. Welper, p. 40.
41
Não achei registros de discussões públicas entre Curt Unckel e von Ihering, que acaba
contratando-o para liderar expedições pelo interior do Estado em nome do Museu Paulista.
Afinal, poucas pessoas têm o conhecimento direto da vida dos índios como esse alemão
adotado pelos Apapocuva-Guarani.
Assim, dois adversários com posições filosóficas diametralmente opostas passam a
trabalhar no Museu Paulista. Uma das primeiras expedições já mostra as diferenças entre
ambos. Em 1909, von Ihering encomenda uma pesquisa etnográfica entre os Xavante ao “sr.
Kurt [sic] Unckel, amigo dos índios, o qual já vivera dois anos entre os Guaranys do Rio
Batalha. O resultado foi quase nulo. Os Chavantes, [Xavantes] numerosos até há poucos
decênios, não existem mais hoje. Restam tão somente quatro indivíduos, assimilados à
população sertaneja e esquecidos em grande parte do seu idioma”.9
A avaliação desta pesquisa mostra que origem comum alemã constitui um elo frágil
demais para vencer o abismo que separa ambos na questão indígena. Curt Unckel dá nome e
vida a três desses quatro “indivíduos” citados pelo seu chefe:
Luiza Chavante é uma mulher ainda moça, vive amasiada com um caboclo. (…) Foi
aprisionada numa “dada” [ataque], tendo levado um tiro nas costas. Maria Chavante, já de
certa idade, é casada com um oleiro italiano, do qual tem dois filhos. (…) Diz o marido que
prefere esta índia a qualquer mulher branca.
José Chavante, homem robusto, ativo e corajoso. (…) Foi, como os demais, capturado
em uma “dada”, perdendo nessa ocasião pai e mãe. Sua vida é uma rosário de sofrimentos.
Basta dizer que José Chavante já foi vendido uma vez e outra [vez] trocado por uma vaca,
tendo vivido sempre escravizado. (...) É esse o último Oti.10
Nesse ano de 1910, acirra-se o debate público sobre a política governamental para os
índios. Desde a chegada dos portugueses ao Brasil, os assuntos indígenas eram um quase
monopólio de fato da igreja católica.
As reduções jesuíticas, tanto no sul quanto no nordeste, são exemplos de um modelo
9
von Ihering, p. 135.
10
Nimuendajú, Os Nossos índios – O extermínio da tribu dos Otis, 9/11/1911, O Estado de S. Paulo, Filme 397,
MI. Em 1944, Nimuendajú relembra a expedição, cf. Cartas Etnolinguísticas, Curt Nimuendajú e R. F. Mansur
Guérios, 1948, Revista do Museu Paulista, n. 2, p. 215.
42
A grande mudança veio com a República. Ela teve no seu bojo um núcleo militar e
não-religioso: os positivistas. Desenvolvido pelo francês Augusto Comte em meados do
século 19, o positivismo se autodefine como uma corrente filosófica que se apoia em valores
éticos, rejeitando tanto a religião quanto a metafísica.
Esse núcleo propõe em 1910 uma Inspetoria Federal de Proteção Fraterna dos
Indígenas do Brasil. Estes receberiam tratamento bondoso, garantia de posse da terra e
proteção contra violências e abusos. O líder é o então tenente-coronel Cândido Rondon.
Nascido em 1865 no atual Mato Grosso do Sul, Rondon é descendente, por parte
materna, de indígenas das tribos Bororo e Terena e, pelo lado paterno, de Guaná. Formado
pela Escola Militar do Rio de Janeiro, participa do movimento abolicionista e das
conspirações a favor da proclamação da República. Em 1898, ingressa na Igreja Positivista do
Brasil. De 1881 a 1906, dirige a construção de estradas e linhas telegráficas entre o Mato
Grosso e Goiás, e entre Corumbá e Cuiabá.11
No conceito positivista-indigenista, não existe espaço para ensino religioso ou
catequese. O cientista von Ihering discorda da “catequese oficial”, mas critica também o
poder de polícia do órgão proposto perante a população branca:
É natural que compita à inspetoria fiscalizar o modo pelo qual os indígenas são
tratados nas colônias e estabelecimentos particulares, mas duvidamos que lhe caiba
igualmente “tornar efetiva a punição dos crimes que se cometem contra os indígenas”. Não se
precisa de domador para lidar com a boiada.12
Ainda em 1910, é criado o órgão federal Serviço de Proteção aos Índios e Localização
de Trabalhadores Nacionais (SPILTN). A meta declarada é atrair indígenas e dar-lhes
proteção temporal durante sua passagem para o estágio de trabalhadores agrícolas.
O fato do tenente-coronel Cândido Rondon ser seu primeiro diretor e de ter tomado
11
Cf. http://www.brasil.gov.br/sobre/historia/personagens-historicos/marechal-rondon-1865-1958.
12
Ihering, p. 127.
43
posse no dia 7 de setembro indica claramente que facção venceu os embates pelo controle do
novo órgão estatal.13
O antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima afirma que o SPILTN foi idealizado
pela mesma entidade que montou o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio – a
Sociedade Nacional de Agricultura.
A SNA, segundo ele, “assoma como aparelho não estatizado responsável pela
sistematização de interesses de distintos segmentos agrários regionais, sobretudo fluminenses,
com menos peso político e econômico, face à dominação exercida pela grande burguesia
cafeeira paulista (composta pelos produtores de café associados aos empreendimentos
urbanos e à burguesia mercantil internacional)”.14
Esta dicotomia é utilizada por Lima para explicar a permanente falta de recursos do
SPI ao longo de sua história, pois os influentes cafeicultores paulistas controlam o estratégico
Ministério da Fazenda. Independente das divergências entre fluminenses e paulistas, na
chamada questão indígena, a proteção laica, estatal e militar do SPI subsistui a igreja católica
e sua catequese religiosa.
Ciente da mudança política, Curt Unckel troca o Museu Paulista de von Ihering pelo
SPI de Rondon no mesmo ano da fundação do órgão federal.15 O antropólogo Luís Donisete
Benzi Grupioni informa que o próprio Rondon convidou Nimuendajú para ser um dos
primeiros funcionários, sem citar a fonte desta afirmação.16
Além do seu ingresso no SPI, outro fato significativo acontece em 1910. Quatro anos
depois do seu batizado entre os Apapocuva, Curt passa a usar oficialmente o nome Curt
Nimuendajú. Como se fosse um rito de passagem, justamente ao ingressar no SPI, órgão
criado para assumir a causa dos seus irmãos indígenas.
Nimuendajú leva ao SPI o seu mais precioso capital – sua experiência pessoal na
difícil e dolorosa existência dos indígenas. Num artigo de um jornal alemão de São Paulo, ele
escreve que:
13
O SPILTN foi criado pelo Decreto-Lei nº 8.072, de 20 de junho de 1910. A partir de 1918 é só SPI e em1967,
durante a ditadura militar, foi substituído pela Funai, cf. funai.gov.br/quem/historia/spi.htm em 24/08/2006.
14
Lima, Antonio Carlos de Souza, Um Grande Cerco de Paz. Poder Tutelar, Indianidade e Formação do Estado
no Brasil, Vozes, Petrópolis, p. 104,1995.
15
Carta a Herbert Baldus, Belém, de 25/05/1939, cf. DU, 194.
16
Cf. Grupioni, Luís Donisete Benzi, Coleções e expedições vigiadas: Os etnólogos no Conselho de
Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, Hucitec, SP, 1998, p. 176.
44
pueris,teimosos e obstinados [é] de tal modo insuportável que um criminoso fugitivo deveria
estar positivamente [efetivamente] maluco para submeter-se a tudo isso espontamente (...).17
17
Nimuendajú, A questão dos Coroado, publicado no jornal Deutsche Zeitung, 19/07/1910, São Paulo.
45
Coroado, que queimam o acampamento. Sem liderança, os trabalhadores contratados pelo SPI
se dispersam pela mata.18
Depois da catástrofe vem a mudança. Um novo inspetor assume a direção do SPI em
São Paulo e passa a chefia do acampamento no Ribeirão dos Patos a um sargento aposentado,
Bandeira de Mello.
Nimuendajú recebe uma espinhosa missão adicional, a de responder pelos Guarani
espalhados pelo Estado – os Apapocuva, Oganhviva e os Tauyngúa. Certo dia, conta ele, teve
de sair do acampamento em Ribeirão dos Patos “muito apressado para a aldeia no Araribá,
pois os componentes do grupo [indígena] do qual faço parte estavam fazendo danças rituais
mágicas noturnas para amaldiçoar o meu substituto com o qual não se conseguiam
relacionar”.19
Enquanto ele acalma seus companheiros na reserva de Araribá, em Ribeirão dos Patos
a aproximação corre por conta própria. No dia 18 de março de 1912, o cacique dos Coroado e
mais seis índios ficam três dias no acampamento. Nimuendajú lamenta não ter assistido a esse
primeiro encontro pacífico: “Eu, que fui o primeiro que em São Paulo colocou suas forças em
prol desse objetivo, infelizmente não pude estar presente neste momento maravilhoso.”
Mas também tem o seu momento de glória pessoal. Os Coroado querem conhecer a
pessoa que abrira a primeira picada na mata e deixara presentes. Em meados de abril de 1912,
Nimuendajú chega ao acampamento, onde 58 índios erguem uma nova aldeia.
Após uma ceremônia, acontece uma inesperada homenagem dos indígenas: “O
guerreiro é jovem, baixo e tem duas mulheres belíssimas. Não fala com ninguém e chega a
virar o rosto para não ser interrogado. Porém, quando eu em certo momento me encontrava a
sós com os índios, puxou-me ao encontro dele, colocando minha cabeça no seu regalo [talvez
regaço, colo], passando suas mãos sob [pelos] meus cabelos”.
Este sinal de aceitação certamente faz bem a Nimuendajú, que expressa sua satisfação
pelo sucesso da empreitada: “(...) o essencial de minhas observações é [que] a luta racial
nojenta que envergonhava o sertão paulista agora teve fim, se não for cometida outra
burrada”.
A “pacificação” deve ter tido um impacto muito forte neste alemão que desembarcara
18
Araribá, 14 de abril de 1912, Cf. Nimuendajú a Hugo Gensch, p. 2, filme 322, MI. É uma carta em alemão,
traduzida por Dagmar Schneider em maio de 1974. Hugo Gensch era médico em Blumenau (SC) e tentara várias
vezes pacificar os Kaingang no Estado. Menchén afirma, sem citar fontes, que Curt Unckel, apenas chegado da
Alemanha, teria conhecido em São Paulo o recém formado médico Hugo, que trabalhava num hospital e juntava
dinheiro para abrir um consultório no sul do Brasil. Cf. Menchén, p. 36.
19
Nimuendajú a Hugo Gensch, p. 3, 4 e 7.
46
nove anos atrás no Brasil com a difusa idéia de conhecer os índios. É por isso que, muito a
contragosto, obedece a ordem do SPI de São Paulo e retorna para continuar na chefia da
reserva de Araribá.
Mal poderia imaginar que essa obediência prussiana iria levá-lo a vivenciar eventos
que o tornariam mundialmente famoso no mundo da Etnologia.
Eram autênticos índios da floresta, com o lábio inferior perfurado, portando arcos e
flechas, sem conhecimento do português e falando apenas algumas palavras em espanhol.
Eles queriam atravessar o mar em direção ao leste. Tamanha era a confiança no sucesso desse
plano que quase me levou ao desespero. (...) Não dava para argumentar com eles (...) e, no
entanto, em hipótese nenhuma poder-se-ia deixá-los entregues à sua [própria] sorte.20
Autorizado pela Inspetoria de Índios de São Paulo, Nimuendajú junta-se a eles. Depois
de três dias de caminhada para vencer 70 quilômetros, chegam a Praia Grande, ao sudeste de
Santos.
Cansados, decidem acampar à beira do mar. Nimuendajú descreve a primeira noite,
quando chove sem parar e o fogo se apaga, e o dia seguinte:
(...) ficamos sentados, tristes, sem abrigo, sob as nossas cobertas. Mas, pela manhã, a
chuva parou e o sol se levantou radiante e esplendoroso do mar. Ensimesmados e mudos os
paraguaios estavam ao meu lado sobre a duna. Visivelmente, a situação lhes parecia
extremamente lúgubre. Eles haviam, aparentemente, imaginado o mar de forma totalmente
diferente, sobretudo não tão terrivelmente grande. Sua confiança tinha sofrido um golpe
violento. Eles se mostravam bastante abatidos, especialmente à noite, e o canto de pajelança a
Tupacý, que eu aguardava com grande expectativa, não progredia, embora eu também tivesse
trazido o meu maracá e procurasse ajudar com todas as minhas forças.
20
As Lendas, p. 105, 106 e 108.
47
No princípio do século XIX começou entre as tribos Guarani [da margem direita do
baixo Iguatemi, atualmente MS] um movimento religioso que até hoje ainda não está
completamente extinto. Pajés, inspirados por visões e sonhos, constituíram-se em profetas do
fim iminente do mundo: juntaram à sua volta adeptos em maior ou menor número e partiram
em meio a danças rituais e cantos mágicos, em busca da “Terra sem mal”; alguns a julgavam
48
situada, conforme a tradição, no centro da terra; mas a maioria a punha no leste, além do mar.
Somente deste modo [pela migração] esperavam poder escapar à perdição ameaçadora.
21
Metreaux, Alfred, The Guarani, South American Indians, B.A.E. Bulletin 143, v. 3, Washington, 1943.
22
Clastres, Hélène, Terra sem mal, Profetismo tupi-guarani, Editora Brasiliense, São Paulo, 1978.
23
Noelli, Francisco Silva, Curt Nimuendajú e Alfredo Metreaux, a invenção da busca da ”terra sem mal“,
Suplemento Antropológico Universidad Católica del Paraguay, Revista del Centro de Estudios Antropológicos,
v. XXXIV, nº.2, dezembro 1999, Asunción, p, 126.
24
Meliá, Bartomeu, A Terra sem Mal dos Guarani, Revista de Antropologia, v. 33, São Paulo, 1990, p. 44.
49
Não conheço qualquer resposta às questões levantadas por Noelli. Ele coloca em
questão a competência e seriedade de dezenas de pesquisadores posteriores a Nimuendajú,
citando alguns papas da antropologia latino-americana: Alfred Metreaux, Egon Schaden,
Maria Isaura Pereira de Queiróz, Hèlenè Clastres e Branislava Susnik:
Noelli também discorda do conceito lançado por Nimuendajú de que os Guarani que
queriam atingir o paraíso deviam realizar peregrinações até atravessar o mar. Ele interpreta
um livro do pesquisador paraguaio León Cadogan, que:
(...) mostra claramente que a ascensão ao yvy maraneý cruzando o mar se dá através
de exercícios espirituais e jejuns que vão livrando o corpo das imperfeições humans e que
livram a pessoa da “prova da morte”. (...) Cadogan deixa claro que o ingresso se dá sem a
necessidade da migração terrena.
25
Noelli, p. 133.
26
Cadogan, León, Ayvu Rapyta, textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá, Biblioteca Paraguaya de
Antropología, v. XVI, 1992, p. 229.
27
Ladeira, Maria Inês, O caminhar sob a luz, o território Mbya à beira do oceano, PUC, São Paulo, 1992.
50
Assim como em 1912, a mítica migração dos Guarani para a “Terra sem Mal” tornou-
se um marco na vida de Nimuendajú, outros fatos no ano seguinte lhe abririam novos
horizontes. Um sinal vem pouco antes do seu encontro com os Guarani oirundos do Paraguai.
Na sede paulista do SPI, ele fica sabendo que logo seria transferido para Santa Catarina,
conforme confidenciou a Hugo Gensch.28
De fato, Nimuendajú iria abandonar São Paulo, mas geograficamente em direção
oposta. Ainda em território paulista, Nimuendajú consegue um feito: criar um espaço protetor
para sua tribo e outras aparentadas como os Oguauíva e Kayguá. Assim, em 1912 é
inaugurada a reserva de Araribá, perto de Bauru. Atualmente, uma aldeia da reserva leva seu
nome, uma das poucas homenagens oficiais prestadas no Brasil a Nimuendajú.29
Irriquieto, entre janeiro de 1912 e março de 1913 Nimuendajú percorre o noroeste de
São Paulo e o sul do atual Mato Grosso do Sul. Ele tenta convencer o SPI da necessidade de
pacificar os Ofaié, ameaçados pela construção de uma estrada ligando São Paulo ao atual
Mato Grosso do Sul. Para isso, é preciso fazer viagens de localização e pacificação das tribos
da região. Após enfrentar as copiosas chuvas de março de 1913, Nimuendajú propõe ao SPI:
“As viagens devem ser feitas fora da temporada das chuvas. Eu me coloco à disposição para
realizá-las”.30
28
Cf. Carta a Gensch, p. 8. Naquele ano, houve sangrentos confrontos entre bugreiros, colonos de origem alemã
e os povos indígenas Kaingang e Xokleng. O primeiro contato pacífico com este último grupo só aconteceu em
1914, graças ao trabalho do funcionário do SPI, Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, missivista de Nimuendajú,
cf. Flavio Braune Wiik, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina, Xokleng, história do contato em
socioambiental.org/pib/epi/xokleng/hist.shtm, dia 13/06/2006.
29
Os Oguauíva e os Kayguá integram a longa lista de povos extintos. Entre 1930 e 1940, vários grupos Guarani
foram levados de Araribá para a atual Terra Indígena Laranjinha (PR), cf. Rita de Cássia de Araújo e allii,
Memórias, conhecimentos e literatura na Escola Indígena Guarani Nhandewa, 2009, Universidade Estadual de
Maringá, http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/3173_2161.pdf acessado em 14/01/2011.
30
DU, p. 205.
51
Os mitos de que vou tratar inúmeras vezes os ouvi contados parcialmente (mas raras
vezes na íntegra). Não somente os ouvia, contudo, como eu próprio também os contava. (...)
Eu procurava de preferencia a companhia dos velhos, principalmente a dos pajés, deixando-
me instruir por eles, durante muitas horas, sobre sua velha religião. Ainda hoje eles se
orgulham de seu discípulo.31
31
As Lendas ..., p. 4.
52
A primeira frase do livro soa enigmática, irônica: “Os índios Guarani são tão
conhecidos que pareceria supérfluo escrever ainda mais alguma coisa a seu respeito”. Depois,
seguem-se mais de 100 páginas com informações inéditas sobre religião, cultura, língua,
deslocamentos geográficos e vida material desses indígenas. A retomada do tema das
migrações à “Terra sem Mal” não é a única grande novidade que Nimuendajú apresenta ao
mundo ocidental.
Em poucas linhas, ele também revela a impressionante cosmogonia apopocuva,
representada pela lenda da criação e a destruição do mundo:
Ñanderuvuçú (“Nosso Grande Pai”) surge como primeiro [deus] e o faz de modo
verdadeiramente imponente: como uma luz resplandescente no peito ele se descobre, sozinho,
em meio às trevas. Meu informante ditou-me cuaraý – sol , em lugar de endý, luz; mas que
isto não se referia ao sol propriamente dito, e sim a uma outra luz, depreende-se do fato de
que Ñanderuvuçú carrega ainda hoje tal luz em seu peito, ao passo que o sol surge
independentemente.
Ele acrescenta:
Sobre um suporte em forma de cruz, “ele dá à terra o seu princípio” e a provê de água.
Então o criador “acha” de repente ao seu lado seu auxiliar Ñanderú Mbaecuaá [“Nosso Pai,
o Conhecedor das Coisas”]. O papel que esta personagem desempenha na solução do
problema da criação da mulher já demonstra que ele tem muito menos poder e importância
[do] que Ñanderuvuçú: “achemos uma mulher!” exige o criador e Mbaecuaá não sabe fazer
nada senão [formular] outra pergunta: ”como podemos achar uma mulher?” – “Na panela!”
decide Ñanderuvuçú. Ele faz uma panela, cobre-a e passado algum tempo ordena a
Mbaecuaá que vá verificar. Este encontra de fato uma mulher e a traz consigo. Assim, há
agora três pessoas sobre a terra: Ñanderuvuçú, Ñanderu Mbaecuaá e a mulher Ñandecý
(Nossa Mãe).32
32
Ibid, p. 47. Ele narra também como se deu o surgimento de outros deuses, demônios, heróis e grandes pajés.
53
33
Ibid, p. 33.
34
Ibid, p. 61.
35
Ibid, p. 101.
54
(...) antes de criar a terra, Ñanderuvuçú fez a yvy-itá, a escora da terra. Colocou uma
viga no sentido leste-oeste e outra, por cima, no sentido norte-sul. Pisou então sobre o ponto
de cruzamento deste yvyrá joaçá recoypý (cruz eterna de madeira) e encheu os quadrantes da
terra. Quando a terra tiver que ser destruída, Ñanderyqueý tomará a extremidade oriental do
braço inferior da cruz e a puxará lentamente para leste, enquanto o braço superior
permanecerá na sua posição original. Com isso a terra perde o seu suporte ocidental. Ao
mesmo tempo, um fogo subterrâneo começa a devorar o subsolo a partir da beira ocidental da
terra; um pouco adiante, suas labaredas alcançam a superfície e o trecho que ficou atrás
desmorona com estrondo. De início lenta, depois cada vez mais rapidamente, a destruição
avança de oeste para leste.36
36
Ibid., p. 67.
55
Muita coisa nele, naturalmente, soa “datada”: certas escolhas vocabulares e escolhos
conceituais, certas ideias e juízos; certo compromisso (jamais profundo, e que depois
desapareceria) com a etnologia alemã de seu tempo, marcada pelo difusionismo e a
problemática dos estratos e círculos culturais. Os excursos [disgressões] comparativos por que
o autor envereda parecem hoje “selvagens” e, (...) atestam aqui, sobretudo, um domínio
incompleto do campo e uma formação errática, que se socorre de toda espécie de analogias
para buscar um fundo cultural pan-americano arcaico.37
37
Viveiros de Castro, p. xxi.
38
As Lendas, p. 70.
56
assim também clama a água ao criador (...) e assim todo o resto da natureza. Diariamente se
espera que Ñanderuvuçú atenda as súplicas da sua criação [de suas criaturas]”.
Esta postura espiritual-existencial dos apapocuva tem dupla origem, afirma
Nimuendajú. A primeira seria que “o germe da decadência e da morte da raça” já teria
existido antes do contato com os europeus, sugerindo com isso a existência de um processo de
transformações independendente das influências de cristãos.
A segunda começa justamente a partir desse encontro de culturas: “não devemos
esquecer quem, durante mais de três séculos, fez [determinou] a história dos Guarani:
conquistadores espanhóis, aventureiros de todos os países do mundo, jesuítas com seu sistema
que sufocava qualquer livre iniciativa, caçadores de escravos paulistas e seus aliados, os Tupi
do litoral; epidemias devastadoras e, finalmente, os Mbajá [no original, provavelmente os
Mbyá] e Kaingýgn [Kaingang] com suas campanhas bélicas – os Guarani sempre foram a
parte sofredora”.39
39
Ibid, p. 131.
40
Schaden, in Apontamentos... p.11.
57
Ele conclui que “não importa: aqui, ao contrário do que fez em trabalhos posteriores,
Nimuendaju não se furtou a interpretar; suas descrições são carregadas de pathos, ele ousou
pensar o pensamento Guarani, refletir sobre ele com simpatia e emoção. Com isso, arrisca-se;
mas este é um risco que vale a pena”.41
Viveiros de Castro estabelece uma ligação direta entre a postura existencial de
Nimuendajú e o “pessimismo” Guarani. Ponto de partida constitui a adoção do nome
indígena, que significaria o abandono da origem europeia. Em troca, abraça a cosmogonia
indígena e sua tradução prática no dia-a-dia, uma amálgama que torna quase impossível
separar a obstinação e o desencanto dos Guarani do pessimismo de Nimuendajú.42
41
Viveiros de Castro, p.xxiv.
42
Ibid. p. xviii.
4 - No mato, sem dinheiro, sem apoio
1
GR, Coleções e expedições vigiadas: Os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e
Científicas no Brasil, Hucitec, São Paulo, 1998, p. 187.
59
Prioritariamente indigenista
O primeiro período vai desde os contatos iniciais com os Apapokuva-Guarani (no interior de
São Paulo em 1905) até a “pacificação” dos Parintintins, no rio Madeira, em 1923: “(...)
Nimuendajú é, antes de tudo, um indigenista, ora ligado diretamente ao SPI, ora
movimentando-se por conta própria, embora contando já com algumas obras publicadas e
com algumas coleções depositadas em museus”, avalia Grupioni.
Em meados de junho de 1913, Nimuendajú ainda se desloca pelo sertão paulista e
matogrossense. Um dos seus principais feitos é a coleta dos mitos dos Apapokuva-Guarani,
que deram origem a As lendas da criação e a destruição do mundo segundo a religião
Apapokuva-guarani.
Outro resultado prático de suas expedições é a reserva criada em 1912 de quatro
aldeias Apapoucuva-Guarani e outros grupos indígenas em Avaí (SP). Em 1913, Nimuendajú
“é transferido para o Rio de Janeiro, servindo por alguns meses no Ministério da Agricultura e
de lá é enviado para Belém do Pará”.
Belém é a porta de acesso à Amazônia e ao cerrado, onde se localizam mais tribos
desconhecidas do que no Sudeste. Tudo indica que a mudança a Belém é uma decisão pessoal.
Cerca de 16 anos mais tarde, ele explica que a “(...) adaptação ao meio [ambiente] constitui
para o êxito dos trabalhos uma vantagem sobre as pessoas que, residindo em meios diferentes,
só vem à Amazonia para visitas de demora mais ou menos limitada e sempre preocupadas
com a sua volta. A Amazônia apresenta a particularidade de possuir para as suas empresas
[etnológicas] um único ponto de partida: esta capital [Belém], para onde convergem todas as
vias de comunicação”.2
Além disso, lá funciona desde 1871 o Museu Emilio Goeldi (atualmente conhecido
como Museu Paraense Emilio Goeldi). O início em Belém é duro para quem tinha vivido com
os Apapokuva-Guarani no sertão paulista.
Na mesma carta a Roquete Pinto, conta que “d [D]esde setembro do ano passado
[1913] me mantiveram absolutamente inativo [sem função], em Belém até que eu solicitei
transferência para um lugar qualquer onde precisassem os meus serviços de contatos com
indígenas”.
2
Carta ao diretor do Museu Nacional, Edgard Roquete Pinto, de Belém, 22/02/1928, cf. Welper, p. 44. A carta é
publicada conforme a ortografia atualmente em vigor. Nascido no Rio de Janeiro em 25 de setembro de 1884,
Roquete Pinto participou de uma expedição junto com Rondon, resumida no livro Rondônia, antropologia
etnográfica. Na década de 30, criou a Rádio Mec. Membro da Academia Brasileira de Letras, morreu no Rio de
Janeiro em 18 de outubro de 1954.
60
O ano de 1914 traz mais uma mudança geográfica: “Fui então deslocado para o
Maranhão, mas tenho certeza de que lá não me irá melhor [do que em Belém]”. Nimuendajú
faz levantamentos linguísticos das tribos Manaé do rio Ararandiu, Tembé do rio Acará
Pequeno e Turiwára do rio Acará Grande, todas no Pará. Mas também dos poucos Crengêz
residentes na aldeia Timbira Bacury, em Bacabal (MA). Estes vocabulários são publicados
junto com sua primeira obra em 1914 no prestigioso jornal Zeitschrift für Ethnologie.
Em 1915, ele adentra pela primeira vez uma aldeia canela, a Aldeia do Ponto, na
região do rio Corda (MA), assim como também a aldeia dos Timbira Bacaba, em Cajuapára,
nas nascente do rio Gurupy, e em Araparityua, na margem esquerda do Gurupi. Ele vai visitar
novamente a Aldeia do Ponto nos anos 30.
Nesse ano de 1915, é comissionado pela Inspetoria de Índios do Maranhão a realizar a
“pacificação” da tribo Urubu, mas acaba sendo demitido do SPI no mesmo ano (veja o
capítulo 6 – Preservar os indígenas). Esse é um divisor de águas na vida do indignado
Nimuendajú, que até então só ganhava um magro salário de funcionário público.
3
GR, p. 177.
4
Declaração assinada por Nimuendajú em 02/05/1921 e arquivada no livro de coleções do Museu de
Gotemburgo em 22/08/1922. Uma outra coleção é vendida ao Museu de Stuttgart, da Alemanha, diz Grupioni.
61
Afazares burocráticos são demais para quem gosta da vida na floresta. Mestre em
cultivar relações estratégicas, ele sugere ao diretor geral do SPI, Luiz Bueno Horta Barbosa,
que gostaria de deixar o cargo recém assumido: “Há dois meses [05/1920] ocupo no Museu
Paraense o posto de chefe da seção etnográfica. Isto nada impede de estar pronto para o S.P.I.
quando o sr. de mim precisar, conforme já declarei”. Dito e feito. Em 1921, sai do Museu e
retorna ao SPI.8
Esse ano traz uma outra virada para Nimuendajú. Um engenheiro sueco sediado em
Belém, Gunnar Pira, aciona seu primo, Adolf Pira, em Estocolmo para oferecer ao Museu de
Gotemburgo peças arqueológicas.
É Adolf Pira quem intermedia por carta o primeiro contato com o diretor do museu,
Erland Nordeskiöld: “Conforme combinado, envio pela presente a lista de objetos embarcados
5
Nimuendajú, Relatório ao diretor geral do SPI, Luiz Bueno Horta Barbosa, Belém 23/07/1920, MI, filme 397.
p. 2. Veja também Sarney, José, e Costa, Pedro, A nova ocupação, pg. 229 em
http://www.senado.gov.br/senadores/senador/jsarney/Historia_Amapa/sarney_12_novaOcupacao.pdf
6
Oficio de Emilia Snethlage ao secretário-geral do Estado do Pará, em 19/12/1919, depositado na Biblioteca do
Museu Goeldi, GR, p. 178. Existem paralelos entre ambos: ela estudou história natural em Iena, cidade natal de
Nimuendajú, e veio ao Brasil em 1905, dois anos depois dele, cf. Corrêa. Em 1925, ela a elogia: “Eu não paro de
admirar e valorizar a modéstia e a coragem desta cientista”, cf. carta de 11/07/1925 ao diretor do Museu de
Gotemburgo, Erland Nordenskiöld, MG. Ela era tia do etnólogo Heinrich Snethlage, que conheceu Nimuendajú
pessoalmente em Belém em 1935, cf. carta de Nimuendajú ao diretor interino do Museu de Gotemburgo, Walter
Kaudern, Belém, 21/01/1935, MG.
7
Benchimol, Alegria, Nimuendajú, do “coração verde“ da Alemanha às matas verdes do Brasil, XI Encontro
Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, outubro de 2010, p. 13. Ela diz ainda que, em 1939/1940,
Nimuendajú trabalhou novamente no Museu. Nessa ocasião, ele reconheceu que enviara por engano ao Museu
Nacional peças pertencentes no acervo do Goeldi, oferecendo em troca outros objetos, cf. CS, p. 282.
8
Nimuendajú, Relatório ao diretor geral do SPI, Luiz Bueno Horta Barbosa, Belém 23/07/1920, MI, filme 397.
p. 7. GR, p. 178.
62
da coleção de Unkel, além de um mapa confeccionado por ele. Unkel chama-se Nimuendajú,
que é o seu nome entre os [índios] Guarani (...)”.9
9
Estocolmo 24/06/1921, MG, traduzida do sueco para o espanhol pela antropóloga argentina Gloria Esteban
Johansson e por mim para o português.
63
Antes mesmo de começar, ele rompe a tradição que mandava criar um posto longe da
aldeia indígena: “O pacificador tem de estabelecer-se permanentemente no território della [da
aldeia] e obrigá-la com esta medida a entender-se pouco a pouco com elle [o “pacificador“],
depois de ter se convencido da inexpungabilidade da sua posição e das vantagens que a
permanência delle traz para a tribo toda”.10
A inovação leva-o a entrar em choque com capitão Eduardo Amarante, que anos atrás
fracassara ao montar uma base entre os indígenas Mura-Pirahã, adversários dos Parintintin.
Este confronto com a burocracia brasileira será mais perigoso para Nimuendajú do que o
contato com os arredios indígenas, pois Amarante é genro do criador do SPI, o então tenente-
coronel Cândido Rondon 11.
Em março de 1922, Nimuendajú instala o posto às margens do igarapé da Traíra,
afluente do rio Alto Maicy-Mirim. Exatamente como queria, pois, na outra margem, está a
maloca dos Parintintin. O segundo passo de sua estratégia é levantar um posto resistente a
invasões. Essa incomum construção consistia em uma casa com teto de zinco à prova de
flechas, cercada com arame farpado e, curiosamente, dotada de uma porteira aberta.
10
Nimuendajú, Curt, Os índios Parintintin do Rio Madeira, Journal de la Societé des Américanistes de Paris,
Nouvelle serie, XVI, p. 213, 1924, Paris.
11
Lima, p. 170.
64
No dia 12 de junho de 1922, ele passa a direção do posto ao ajudante Amaro, que fica
com mais cinco homens, e retorna a Belém, “afim de tratar da minha saúde e dos meus
negócios particulares”.12
Dois meses depois, Nimuendajú volta às pressas ao posto avançado. Na sua ausência,
os contatos resvalaram para relações sexuais dos funcionários do SPI com as indígenas. Os
homens eram achincalhados e ridicularizados pelos sertanistas. Nimuendajú disciplina os
funcionários e, ao mesmo tempo, demonstra sua autoridade perante os indígenas.
Ao explicar a estes que o chefe que ordenou a expedição não quer guerra, mas sim
paz, os Parintintin acorrem em bandos ao posto para selar o fim das hostilidades.
A crise, porém, espreita bem longe do posto do rio Maicy. Oficialmente, os louros da
pacificação ficam com o antecessor de Nimuendajú, afirma o cientista Manoel Nunes Pereira.
Além disso, o general Rondon mandara um telegrama a Manuel Lobo, seringalista instalado
perto do posto de pacificação: “Peço-vos aceitar com bondade mais vivos agradecimentos
pelo valioso concurso continuais nos prestar na pacificação indios parintintin chegando a
termo com tamanha felicidade de um sonho pt tão longa campanha cheia de peripécias
assombrou desde manobra dirigida pelo capitão [João] Portátil acaba finalmente alcançar
immorredouro triunfo para glória do Brasil e sossego da população laboriosa Madeira abraço-
vos efusivamente pela vitória final em que colaboraste com sábio patriotismo e amor ao
indio”.13
Nunes Pereira, encarregado em 1946 de investigar o falecimento de Nimuendajú no
Alto Solimões, reclama do que considera uma omissão de Rondon: “Mas nenhuma palavra a
Nimuendajú!”.
Independente da atitude de Rondon, o SPI tem orçamento estreito, as despesas do
posto e os presentes para os indígenas são pagos justamente pelo seringalista Manuel Lobo.
Nimuendajú vê-se acuado e propõe a retirada organizada, no que é prontamente apoiado pela
direção do SPI.
Assim, no início de 1923, termina a inacabada “pacificação” dos Parintintin.
Nimuendajú é demitido pela segunda vez do SPI. Em 1924, revela o seu estado de espírito ao
antropólogo alemão Hermann Dengler: “Nunca mais eu vou participar da pacificação de uma
tribo, disse-me Nimuendajú em [Belém do] Pará”.14
12
Nimuendajú, Os índios Parintintin, pp. 217-219. Entre outros “negócios particulares”, casar com Jovelina
Nascimento.
13
Pereira, Manoel Nunes, Curt Nimuendaju: síntese de uma vida e de uma obra, Belém, 1946, p. 35. Ele não
informa a data do telegrama.
14
Dengler, Hermann, Eine Forschungsreise zu den Kavahib-Indianern am Rio Madeira, Zeitschrift für
Ethnologie, Vol. 59, 1927, p. 15.
66
Preferencialmente colecionador
15
Manaus, 12/09/1922, MG.
67
SPI, no ano seguinte rejeita a sua contratação pelo Museu Nacional, mas tenta conseguir um
contrato com Gotemburgo. Nordeskiöld não se pronuncia.16
No segundo semestre de 1924, ele exige com dureza germânica clareza do granítico
etnólogo sueco: “Eu repito mais uma vez: não tem a ver se eu recebo sumas pequenas ou
grandes, mas a exata definição da minha relação de trabalho. Após cada expedição, a situação
torna-se cada vez mais aguda para mim e por isso não posso mais protelar uma decisão, a
menos que eu vá empobrecer definitivamente se continuar com este método de trabalho, o que
certamente não é a sua intenção. EU QUERO SABER CLARA E EXATAMENTE O QUE É
MEU E O QUE É DO MUSEU. [sic]”.17
A resposta tem o mesmo teor das anteriores. O barão evita assumir uma posição clara:
“Dias passados enviei ao senhor 1 mil coroas suecas. (...) Eu lhe envio o máximo que eu
posso, mas confesso que são valores insignificantes”.18 Na mesma carta, Nordeskiöld conta
orgulhoso que o museu gastou 1 mil coroas exclusivamente para publicar um único artigo
16
Carta de Nimuendajú sem data, que segundo anotação a lápis seria de 8/9/1923, MG. A de Nordenskiöld é de
27/10/ 1923, MG.
17
Belém, 06/07/1924, MG.
18
Gotemburgo, 01/12/1924, MG.
68
numa revista sueca. É o mesmo valor que remete a Nimuendajú para viajar, pesquisar e tirar
seu sustento. Ele, porém, aceita o jogo. Só que em junho de 1925, em meio dos Palikur, na
região do Oiapoque (AP), pede, desesperado, quinhentos mil-réis (500$000) a Carlos Estévão
de Oliveira, amigo e diretor do Museu Emilio Goeldi.19 Em setembro, retorna a Belém,
trazendo uma malária que o deixa prostrado quatro meses na rede.20
Quando Nordeskiöld sugere a realização de outras pesquisas sem pagar mais, ele
explode: “Se eu for arruinar definitivamente a minha saúde na minha idade [ele tem 43 anos]
mantendo as atuais expedições, onde é que está o ganho material para mim para poder viver o
resto da minha vida? Sim, eu vivi muito modestamente durante os três anos que trabalhei para
o Museu de Gotemburgo, mas não possuo nada. (...) A escolha de um trabalho de campo
nunca foi influenciado pelo temor da febre [malária] (...) Mas se agora eu escolhesse a área
dos índios Kasuenã no [rio] Trombetas isso seria suicídio”. 21
A resposta do barão sueco é igualmente virulenta: “Eu pensei que o senhor tivesse
mais interesse em indígenas vivos do que nos restos dos mortos. Por isso, sugiro que o senhor
mesmo escolha a tribo que deseja visitar. Isso quem escolhe é o senhor. Eu não posso avaliar
daqui [da Suécia] qual é a melhor região”.
Gunnar Pyra, o engenheiro sueco que intermediou o contato entre ambos, escreve a
Nordenskilöd, intercedendo por ele: “(...) Apesar do seu modo quase ascético de viver, até
hoje [Nimuendajú] não tem desviado um centavo sequer do dinheiro que recebeu do
senhor”.22
Nem o relato do seu patrício de Belém muda a postura do barão. Ou talvez até
precipita a clara posição que, finalmente, Nordenskiöld assume em março de 1926: “Não
existe a menor possibilidade de o museu contratá-lo ou de dar-lhe alguma garantia futura. Se
o senhor quiser continuar trabalhando conosco, posso lhe garantir 3 mil coroas para janeiro do
próximo ano e mais 3 mil em junho. Isto também poderia ser feito nos anos seguintes, mas
não tenho a coragem de fazê-lo, porque para isso deveria procurar [doações de] pessoas
físicas”.23
A justificativa é surpreendente. Na década de vinte, a industrialização tardia da Suécia
cria a riqueza material que a tira da posição de um dos mais miseráveis países europeus do
início do século vinte. Nimuendajú lê a carta num hospital em Manaus. Sob os efeitos de
19
Aldeia do Uaçá, 23/06/1925, p. 81, CS.
20
Belém, 25/09/1925, MG.
21
Belém, 19/11/1925. A carta do barão é de 22/10/1925. Ambas no MG.
22
Gotemburgo, 17/12/1925, MG. A carta de Pyra é de Belém, 17/02/1926, cf. Ryden, In Pursuit... p. 10.
23
Gotemburgo, 12/03/1926, MG.
69
elevadas doses de quinino para combater a nova malária, adquirida durante a estadia de três
meses entre os Mura, informa que deseja continuar coletando para o Museu.
A resposta do barão a essa carta traz mais uma desagradável surpresa para
Nimuendajú: “Em dezembro, eu viajo junto com o dr. Linneé e a minha mulher para o
Panamá e de lá para Maracaibo, para realizar pesquisas na Colômbia e na Venezuela. Eu
espero encontrar lá o elo entre a curiosa cultura que o senhor conheceu em Santarém e a
cultura indígena na América Central”.24
A mensagem não poderia ser mais clara: Nordeskiöld quer ficar com os louros se a
hipótese formulada por Nimuendajú for confirmada. A idéia do barão é que Linneé chegaria
até o rio Amazonas a partir da Venezuela, enquanto que Nimuendajú deveria dirigir-se à área
povoada pelos índios Uaupés e Uraricoera, no rio Negro, pois o etnólogo alemão Koch-
Grünberg teria achado lá cerâmica muito curiosa.
O papel reservado a Nimuendajú é o de menino de recado, fornecendo cerâmica para
fundamentar a teoria que agora passou a ser de Nordenskiöld. Conscientemente ou não, o
pesquisador lança mão de um ditado prussiano “Fale sim, mas faça não”, na medida em que
responde: “É uma enorme alegria saber que eu ainda posso ajudar e com prazer irei pelo Rio
Negro pesquisando em sua direção”. Este é o “sim”.
O “não” é que, em dezembro, condiciona a pesquisa pelo Rio Negro ao recebimento
até janeiro seguinte das 9 mil coroas que Nordenskiöld prometera no lugar de 3 mil iniciais. A
carta é enviada à Universidade de Berkeley, Estados Unidos, onde Nordenskiöld prepara a
viagem à Colômbia.25
O cenário para o rompimento que se aproxima está montado. Ao receber um minguado
cheque de 3 mil coroas, Nimuendajú coloca Nordenskiöld contra a parede: “Como o valor
recebido [3 mil coroas] mal dá para a viagem prevista ao Rio Negro, ainda considerando que
não posso contar com a prometida subvenção do SPI, peço ao senhor a gentileza de me
informar com a maior rapidez possível a validade da frase „9.000 coroas em Janeiro e em
Junho“. 26
O desencontro é completo. Neste final de janeiro de 1927, Nimuendajú sobe o Rio
Negro, rumo à Venezuela. Pela programação montada unilateralmente por Nordenskiöld, o
barão deveria encontrar-se em algum lugar entre os Estados Unidos e a Colômbia. E o único
24
Gotemburgo, 20/07/1926, MG. A carta de Nimuendajú é datada de 11 de junho.
25
Belém, 04/08/1926 e Belém, 02/12/ 1926, ambos no MG. Em Berkeley, Nordenskiöld mantém contato com
Robert Lowie, personagem fundamental na vida de Nimuendajú anos mais tarde.
26
Belém, 20/01/1927, MG.
70
elo de ligação entre ambos está na Suécia, do outro lado do Oceano Atlântico, a milhares de
quilômetros.
Uma dramática carta de Nimuendajú a Nordenskiöld em março de 1927 mostra outra
escorregada do barão: “As últimas [notícias suas] recebi ainda dos Estados Unidos. Portanto,
não sei até aonde o sr. Linné estende suas pesquisas; eu li no jornal S.A.P. [Societé des
Americanistes de Paris] que ele queria voltar COMIGO [sic] do Orinoco via Rio Negro”. 27
Nimuendajú ignora que Nordenskiöld já denunciara o acordo verbal que existia entre
ambos. Em junho, só lhe resta passar recibo: “Hoje recebi a sua carta de 24/02/27, na qual o
senhor me desliga dos trabalhos para o museu. Para poder mandar as coleções da atual viagem
ao Uaupés e Içaná é preciso que eu receba algum dinheiro, porque apesar da subvenção do
SPI esta viagem me dá novamente prejuízo e não estou em condições de pedir dinheiro
emprestado para pagar o transporte [até Belém], o empacotamento e o envio [à Suécia]”.
O drama humano continua. A aparente calma de Nimuendajú em nada delata seu
profundo abatimento. Ele retorna doente da expedição ao Rio Negro e fica inativo quase um
ano até junho de 1928 em Belém. Possivelmente, sofre as primeiras manifestações da
depressão psicológica que se tornará visível no final de sua vida.
Enquanto isso, Nordenskiöld interrompe a expedição da discórdia porque, conforme
conta seu substituto em Gotemburgo, Gösta Montell, o barão “sofreu uma infecção sanguínea
maligna, foi operado no Panamá e assim que melhorar vai voltar à Suécia”.28
É o feitiço se virando contra o feiticeiro: em fevereiro o sueco rompera relações com
Nimuendajú porque este não atingira os resultados esperados e, meses depois, é Nordenskiöld
quem se encontra em idêntica situação. Mas, claro, continua no cargo de diretor do museu.
Os museus alemães
Antes de embarcar para o Rio Negro em dezembro de 1926, Nimuendajú pressente o fim da
cooperação com Gotemburgo. Em busca de alternativas, pede então ao pesquisador suíço
Felix Speiser que o apresente a museus alemães. Speiser escreve ao diretor do museu de
Dresden, elogiando os conhecimentos etnológicos e os baixos custos das expedições de
Nimuendajú. Interessado, Fritz Krause, agradece a Speiser, mas pede primeiro informações a
Nordenskiöld.29
27
São Gabriel da Cachoeira,17/03/1927, MG.
28
Belém, 03/06/1928, e Gotemburgo, 01/09/1927, MG.
29
Carta de Speiser, sem data, p. 243. Krause Leipzig, 18/02/1927, cf. DU, 245.
71
Aqui fica claro que Nimuendajú não consegue achar o ponto de equilíbrio entre o
aspecto financeiro (pagamento de despesas mais seu ganho pessoal) e a faceta científica. Esse
fugidio meio-termo só iria atingir uma única vez anos mais tarde.
Em julho de 1927, Nimuendajú assina um contrato com três museus alemães (das
cidades de Leipzig, Dresden e Hamburgo). O objetivo é realizar uma única expedição para
explorar a vazante do Tocantins ou a jusante do Rio Negro, a critério do pesquisador. Ele
receberá 9 mil Reich Mark pelo trabalho, a ser feito em 1928. Se faltar dinheiro durante as
viagens, ele deve solicitar um adicional e, diante de uma resposta negativa, poderá
interromper as pesquisas sem sofrer prejuízos financeiros.32
É a primeira vez que ele assina um contrato, inclusive com cláusulas prevendo uma
eventual rescissão. Possivelmente isto faz surgir um Nimuendajú bem humorado na sua
30
Gotemburgo, 15/11/1927, p. 241, DU; e Belém, 22/02/1928, MN.
31
Carta a Fritz Krause, de 24 de abril, talvez de 1927, p. 235, DU.
32
Carta de Krause a Nimuendajú, Leipzig, 19/07/1928, DU, p. 237.
72
primeira expedição para os museus alemães. No caminho até os grupos Jê no Maranhão, ele
faz uma curta crônica dessa inusitada viagem:
Essa expedição inicia uma série de viagens a áreas habitadas por índios Canela e
Ramkokamekra, marcadas pela complexidade logística. Nimuendajú coleciona até para seis
museus ao mesmo tempo (os três alemães, mais Gotemburgo, Goeldi e Museu Nacional) e
pesquisa para escrever três obras fundamentais sobre as tribos do grupo linguístico Jê.
Ponto, a aldeia dos Remkókamekra, é o maior povoado indígena que até agora tenho
visto: compõe-se de 31 casas com mais de 300 habitantes. As casas formam um círculo de
300 m de diámetro. A aldeia divide-se em dois partidos (mehakrá) exogâmicos e matriarcais:
os Harákateye (= Gente do Levante) e os Küikateye (Gente do Poente), dos quais os primeiros
formam o semicírculo oriental e os segundos o ocidental. Com intervalo de 3-5 anos
celebram-se simultâneamente em ambos os Mehakrá as cerimônias da iniciação dos moços,
33
Barra do Corda, 14/10/1928, CS, p. 119.
73
que duram diversos meses, ficando os moços durante todo este tempo separados do resto da
população. Os iniciados formam para o resto da sua vida, casados ou solteiros, uma turma
organizada com um “primus” e um comandante que é um homem mais velho.34
Aí estão algumas linhas da primeira descrição da vida social de uma tribo Jê. Isto é, vários
anos antes de Nimuendajú conhecer Lowie, que, segundo alguns estudiosos, o teria induzido
aos estudos sociológicos.
Muito impressionado pela aldeia do Ponto, ele oferece uma visão panorâmica de sua
localização no sertão maranhanse: “Sobretudo na época de festa, estando limpos todos os
caminhos e praças, a aldeia apresenta um aspecto muito bonito e pitoresco. Qual uma roda
enorme com raios e cubo, avista-se ela, estendida na chapada, quando, vindo de Barra do
Corda, o viajante alcança a última elevação ao norte, enquanto a Serra dos Alpercatas cerra os
fundos do quadro”.35
34
Carta sem data, enviada a Krause, cf DU, p. 238. O texto é idêntico à carta de Barra do Corda, 01/04/ 1929,
CS, p. 140.
35
A Habitação dos Timbira, Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro,
vol 8, p. 77, 1944. Ele atribui enorme importância à estrutura das aldeias do grupo Jê. Na publicação The dual
Organisations of the Ramkokamekra (Canella) of Northern Brazil, ele divulga o desenho que fez da aldeia
Ramkokamekra – que se assemelha ao que seria uma célula humana. Ja a aldeia Xerente é comparada a uma
ferradura, cf. The Associations of the Apinaye.
74
36
DU, p. 239.
75
pedidos de socorro do viajante, que chegou doente e sem dinheiro ao Maranhão [sic], foram
atendidos em sete dias pelos museus e em mais nove [dias] fora essa suma a ele enviada.37
Koppers tenta agradar a gregos e troianos numa carta do número seguinte da revista.
Mas Nimuendajú deixa de publicar em Anthropos. A nível de resultados materiais, contudo,
no final, entre mortos e feridos, salvam-se todos: o Museu de Dresden recebe a coleção
principal dos Ramkokamekra; o de Leipzig, a dos Apinayé; e o de Hamburgo, peças do grupo
Pukóbye.38
No segundo semestre de 1929, Nimuendajú está no Alto Solimões, na fronteira com o
Peru e a Colômbia. É o primeiro contato com a tribo dos Ticuna, à qual ele dedicará suas
últimas expedições e onde virá a falecer em 1945.
Em janeiro de 1930, Nimuendajú retorna às tribos Jê do sertão maranhense, financiado
pela segunda e última vez pelos museus alemães. Rompendo sua tradição, durante os oito
meses desta expedição, Nimuendajú só se queixa uma única vez da falta de dinheiro.39
A tranquilidade econômica e a boa organização acabam logo. Pouco antes do Natal de
1930, os museus alemães denunciam o contrato, o que leva Nimuendajú a voltar a oferecer
coleções.
Ele escreve inclusive a Nordenskiöld: “(...) o professor Reche [substituto de Krause]
informou via telegrama que não dispõe mais de recursos para financiar a coleção. Vou assistir
à cerimônia de iniciação de jovens e comprar um total estimado de 500-600 peças, entre elas
máscaras da dança ritual dos Apinaye, que passarão a ser da minha propriedade. O senhor
teria eventualmente interesse em comprar a coleção?” 40
O contrato com os museus alemães, contudo, cria problemas, mesmo depois de
denunciado unilateralmente. Em janeiro de 1932, Nimuendajú envia a monografia Os Timbira
à Alemanha, mas sem fé de vê-la publicada. Ele propõe fixar um prazo para sua publicação,
após o qual teria liberdade para usá-la, mas nunca teria recebido resposta.41 Surge assim a
lenda etnográfica de que o manuscrito sobre os Timbira teria desaparecido. Nos anos 40,
cansado de esperar, ele simplesmente readapta o original em alemão e o publica em inglês.
37
Carta Nimuendajú, de 02/04/1929, é divulgada em Im Gebiete der Gê-Völker im Inneren Nordost Brasiliens,
Anthropos, v. XXIV, 1929, p. 672. A carta de Krause, Leipzig, 19/10/1929, in Anthropos, v. XXV, 1929, p 1104.
38
Indianer Brasiliens – Ausstellung des Staatlichen Museums für Völkerkunde Dresden zum 100. Geburtstag des
Jenenser Indianerforschers Curt Unckel-Nimuendajú, 1983-1984, Dresden, p. 25.
39
Carta de Belém, 16/12/1929, MG. Apesar do grave desentendimento do ano anterior, Krause propõe essa
expedição, cf. Indianer Brasiliens, p. 25. Nimuendajú pede a Carlos Estevão uma remessa de “dois contos de
réis”, cf. Barra do Corda, 05/08/1930, p. 176, CS.
40
Belém,17/12/1930, MG. Em novembro do ano seguinte, Nordenskiöld recebe 1246 objetos dos Apinayé e
Ramkokámekra, pagos em janeiro de 1932, cf. MG.
41
Belém, 16/01/1932, MG.
76
42
Indianer Brasiliens, p 25.
43
Gotemburgo, 07/04/1932 e Boa Vista, 13/05/ 1932, ambas MG. Em 1927, após o rompimento, os dois ficaram
doentes ao mesmo tempo.
44
Trata-se de A vida sexual dos salvagens, de Bronislau Malinowski, cf. Gotemburgo, 19/07/1932, MG. Esse
cientista é tido como pai do método de observação participante, na verdade lançado e praticado pela primeira vez
por Nimuendajú, cf. capítulo 5 - Criativo, autodidata, pioneiro.
45
Barra do Corda, 03/06/1930, MG.
77
No mesmo dia, escreve uma longa e atenciosa carta ao etnólogo sueco Karl Gustav Izikowitz,
que lhe solicitara informações sobre instrumentos musicais, e pede “o grande favor“ de lhe
enviar uma foto do falecido barão.46
Talvez tenha ficado ressentido com Wasen, pois, um mês depois, confessa a Carlos
Estévão: “o que eu não sabia era que Nordenskiöld morreu em consequencia de paludismo
[malária]”, doença contraída na viagem de 1927 até o Panamá. Três meses depois da morte do
barão sueco, Nimuendajú também pega mais uma vez malária, a doença que matara seu
amigo Nordenskiöld.47
A virada norte-americana
46
A duas cartas são de Belém, 13/08/1932, MG.
47
Manaus, 24/09/1932, MG.
48
Aldeia do Ponto, 10/07/1933, CS, p. 196.
49
Lisboa, Araci Gomes, O Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, Ciência,
patrimônio e controle, Universidade Federal Fluminense, 2004, p. 72.
50
Belém, 08/02/1935, cf. DU, p. 261. A idéia de contatar Lowie partira do etnólogo sueco Karl Izikowitz. É ele
quem recebera Nimuendajú na estação ferroviária de Gotemburgo (“gordo, alegre e amável: um puríssimo
judeu!”, o descreve Nimuendajú a Estevão de Oliveira, em Gotemburgo, 10/05/1934, CS, p. 210). É
igualmente Izikowitz quem sugere a remessa do artigo “A corrida de toras dos Timbira”, cf. Gotemburgo,
10/07/1934, CS, p. 210. O artigo só foi publicado em português em 2001, na revista Mana, 7 (2), p.151-
194, Museu Nacional, 2001.
78
Ele não espera resposta e visita os Canela, onde se manifesta de novo o já conhecido
problema da falta de dinheiro. Só que desta vez o déficit é muito maior do que antes, pois ele
se comprometeu a comprar peças para quatro museus (Paraense, Nacional, de Berlim e de
Gotemburgo).
Ao recorrer a quatro amigos em São Luiz, onde se encontra, dá cada vez com a cara na
porta. Disposto a qualquer coisa, implora ao amigo e diretor do Paraense: “No desespero
destes insucessos venho agora bater à porta do Snr. Não me incomodo absolutamente que eu
tenha de pagar os juros, fossem eles lá quais fossem. Preferia não tirar por fim nenhum lucro
monetário desta viagem, contanto que pudesse cumprir o meu compromisso com o Museu
Nacional. Quero perder tudo, mas não quero ficar desmoralizado pela falta de palavra”.
Um mês depois, quando chega uma remessa de Carlos Estevão, ele já conseguira
empréstimo em São Luiz e sente-se confiante para voltar às aldeias. Mas no fundo é o seu
medo de voltar a sentir o fracasso que lhe faz agir dessa maneira.51
Claro que meu trabalho sofreu sob condições extremamente desfavoráveis. É uma
tortura moral para ambos os lados [dele e dos indígenas] barganhar e discutir preços [numa
aldeia] onde fui recebido como o salvador.
Assim, é obrigado a privilegiar alguns museus e colocar outros na fila de espera. Dos
700 objetos coletados, destina 500 ao Museu Nacional e 200 ao de Berlim. Já os que só
compram coleções prontas, os museus Paraense e de Gotemburgo, ficam de mãos vazias.52
51
São Luiz do Maranhão, 13/04/1935, p. 226 e Barra do Corda, 25/05/1935, p. 228, CS.
52
Barra do Corda, 25/06/1935, MEB, Microfilme 175-31. A Kaudern, diretor do Museu sueco, confessa que
“não sei como pagar minhas dívidas com o Museu de Gotemburgo. Após este segundo fracasso, estou sem
dinheiro e não tenho a menor idéia onde poderia consegui-lo. (...)”, cf. carta de 25/06/1935, MG.
79
Tratei de vender aqui o que possuo: cavalo, sela, rifle, máquina fotográfica, mas não
achei quem me quisesse dar por qualquer destes objetos a quarta parte sequer do que valem;
quando veem uma pessoa em apertos só querem se aproveitar dessa circunstância.
Por pouco Nimuendajú teve de vender o cavalo, ou melhor, a mula, a sela e o rifle.
53
Barra do Corda, 30/07/1935, CS, p. 234.
80
De volta a Belém, recebe uma excelente notícia dos Estados Unidos: o etnólogo da
Universidade de Califórnia, Robert Lowie, promete US$ 100 mensais durante cinco meses,
oriundos de um fundo da universidade para estudos sobre parentesco e organização social.
Além disso, a propriedade dos resultados das pesquisas está contratualmente definida,
pois Lowie tem direito a usar com exclusividade os achados de Nimuendajú em seus
trabalhos, citando o autor, que, por sua vez, poderá publicar de maneira independente.54
Assim avança o longo período de passagem do Nimuendajú prioritariamente
colecionador para o preferencialmente estudioso. Esta transição começara com a viagem a
Gotemburgo, em 1934, exclusivamente para pesquisar no museu sueco as coleções feitas por
ele. Agindo na mesma direção, Lowie, diferente dos parceiros anteriores, dá prioridade à
redação de monografias e livros, o trabalho de campo tem importância menor. Isto irá influir
no método até então empregado por Nimuendajú, arredio a escrever, mas sempre disposto a
empreender uma expedição.
Em meados de 1936, Lowie anuncia uma verba de US$ 1 200,00 até junho de 1937,
do jeito que Nimuendajú queria.55 São recursos garantidos para um ano inteiro de trabalho,
algo que ele não conheceu dos museus europeus. Ele comemora a nova situação filmando os
Canela. Depois de esperar um mês, no dia 4 de agosto ele recebe os rolos de celuloide. No dia
seguinte, estréia com a câmara na mão, rodando filmes cujo paradeiro atual é desconhecido:
É durante esta viagem que, pela primeira vez, Nimuendajú decide priorizar o trabalho de
gabinete: “Eu acho necessário escrever o material sobre os Rakmkokamekra, Apinaye e
54
Berkeley, 22/08/1935, DU, p. 263.
55
Berkeley, 03/06/1936, CS, p. 269.
56
Pedreira, 01/09/1936, CS, p. 257.
81
Xerente. O material [colhido] aumenta de tal forma que eu não saberia mais o que fazer se
[esse material] aumentar ainda mais. Eles têm de ser registrados em papel, antes que a viveza
das impressões mais recentes apague as mais antigas. Eu gostaria mesmo é de viajar de novo,
mas tenho certeza [de] que [a qualidade] do material [escrito] seria prejudicado”. 57
Logo, porém, Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional, lhe faz uma
tentadora proposta de contratação exclusiva: “A coleção dos Canela coletada pelo Sr.
despertou o maior interesse e um alto funcionário do governo se mostrou interessado em
arranjar recursos para contratá-lo no museu. (...) A sua incumbência seria o prosseguimento
dos seus trabalhos e [a] elaboração de outros, vindo ao Rio ao cabo de cada coleção feita, afim
de obter melhores elementos bibliográficos para ultimar cada um dos seus estudos. (...). A
perspectiva desse contrato me agrada imensamente, mas nós precisamos assentar previamente
com segurança todas as condições.”
No final, uma despedida inusitada, escrita a mão: “Aqui fico apresentando os meus
cumprimentos afetuosos”.58
Na resposta, Nimuendajú avalia o seu acordo com Lowie como sendo uma
“combinação bastante vantajosa para ambos. (...) A soma de 100 dólares mensais provou
porém ser insuficiente especialmente porque sou o parente ‘rico’ de 300 Canela pobres e seria
desmentir todo o meu passado se eu deixasse de socorrer índios necesitados enquanto [eu]
ainda possuisse alguns recursos”.
Faz então duas perguntas, que já deixam entrever a conclusão: “A primeira questão é
portanto saber se o contrato com o Museu Nacional conservaria a minha situação financeira
pelo menos ao mesmo nível da atual. A segunda é a da continuidade (...). Uma pessoa
importante do governo se propos auxiliar no caso. E se esta pessoa não estiver mais em
condições de prestar esse auxílio, como provavelmente mais cedo ou mais tarde acontecerá,
visto tratar-se de uma pessoa do governo?”
Para concluir, explica que o contrato exclusivo com o Museu Nacional o obrigaria a
romper as ligações com Lowie e com o museu Emilio Goeldi: “(...) estas minhas atuais
relações não se baseiam em contrato nenhum, são meras combinações estabelecidas sobre a
base da confiança recíproca. Mas precisamente por causa disto: com que cara poderia eu
depois eventualmente procurar reatá-las?”.59
De março a junho de 1937, as mesmas tribos Jê visitadas ano passado acolhem
Nimuendajú. Acolher é um eufemismo. Os indígenas deixam que Nimuendajú chegue. Ele
57
Boa Vista (Goiaz) [sic], 07/08/1936, p. 271, DU.
58
Rio de Janeiro, 25/09/1936, MN.
59
Belém, 27/10/1936, MN.
82
fica abismado com a situação dos 300 habitantes que sobreviveram dos 500 que ele contara na
sua última visita em 1930. A descrição que ele faz do aspecto físico desses sobreviventes tem
traços dantescos:
Prioritariamente estudioso
O não a Kaudern é também uma consequência do fato de que, alguns meses antes, Lowie
comunicara a Nimuendajú que poderia contar com US$ 1.200,00 para suas pesquisas, até
junho do ano seguinte. Consolida-se assim o início da sua fase de etnólogo prioritariamente
60
Boa Vista (Goiás), 18/06/1937, p. 264, CS.
61
Belem, 20/07/1937, MG, e GR, p. 189. Kaudern só confirma um ano depois: “embora seja difícil estimar o
valor econômico das peças, a sua dívida com o museu está quitada”, cf. Gotemburgo, 08-01-1938, MG.
62
Gotemburgo, 21/06/1937, MG.
63
Belém, 27/09/1937, MG. Este é o mesmo conteúdo de sua carta de agosto do ano passado a Lowie.
83
estudioso.64 Esses dois elementos – a garantia, pela segunda vez, de um orçamento anual para
as pesquisas e a declaração de querer refletir e escrever mais do que antes – caracterizam o
novo Nimuendajú.
Como na natureza humana às vezes avanços e recuos se manifestam paralelamente,
nessa mesma carta a Kaudern Nimuendajú mostra como ainda lhe custa simplesmente sentar-
se à escrivaninha: “Lowie deu-me a opção de utilizar o financiamento deste ano [fiscal] para
continuar o trabalho de campo (eu tinha sugerido ir aos Kamakan no sul da Bahia) ou concluir
o trabalho do manuscrito. Devido à minha preguiça de escrever, decidi-me, a contragosto,
pela primeira [palavra riscada] e assim que eu acabar com o empacotamento das últimas
coleções começarei sem demoras com os rabiscos [escrever]”.65
Para encerrar o frutífero ano de 1937, Nimuendajú tem dois motivos de satisfação
intelectual: ele recebe as provas tipográficas de sua obra The dual organisation e cópia de
teses de graduação de três estudantes da Universidade da Califórnia, “que já trabalham com
inteira desenvoltura a organização dos Ramkokamekra”.66
64
Berkeley, 03/06/1937, p. 275, CS.
65
Belém, 27/09/1937, MG.
66
Belém, 13/12/1937, p. 281, CS. Logo em janeiro, Lowie elogia o seu trabalho sobre os Xerente, cf. Berkeley,
07/01/1938, p. 281, CS.
67
Belém, 19/01/1938, MN.
84
às incertezas ainda não plantaram sequer um pé de milho, eu teria que responder pela
alimentação de centenas de famintos indígenas e isso durante cinco meses. Foge à minha
compreensão saber onde eu poderia conseguir os recursos para a compra e transporte desses
alimentos (...) Peço ao senhor para pensar se existe uma possibilidade de resolver esses
problemas ou eu deveria começar o trabalho com os Kamakam. Talvez eu possa acompanhar
um inspetor do SPI que vá aos Gorotire (...).
68
Berkeley, 27/01/1938, p. 283, CS.
69
Documento número 940, GR, p. 189.
70
Belém, 18/02/1938, MG.
71
Belém, 30/03/1938 p. 285, CS.
72
Berkeley, 16/05/1938, p. 287, DU.
85
É agora que Nimuendajú parece tomar consciência do valor da relação com Lowie.
Eles não se conhecem pessoalmente, mas se relacionam de maneira harmoniosa. É justamente
neste época que a cooperação pode chegar ao fim. Lowie conta que o jovem etnólogo norte-
americano Alfred Metreaux conseguiu recursos para pesquisar no Gran Chaco [regiões do
Paraguai, Bolívia e Argentina] e pensa em convidar Nimuendajú, “porque [Metreaux]
considera o senhor, assim como eu, o pesquisador da América do Sul que mais se
desenvolveu, mesmo que o senhor se considere apenas um autodidata”.75
Embora a proposta de Metreaux seja muito tentadora - uma expedição renderia
economicamente o equivalente a quase três anos de pesquisas com Lowie -, Nimuendajú
permanece fiel ao seu parceiro. Detalhes deste singular momento estão relatados no capítulo 8
– O encontro dos mestres.
Paralelamente, Nimuendajú prepara-se para a expedição à Bahia, a Minas Gerais e ao
Espírito Santo. Essa viagem marca um ponto de inflexão geográfica, mas também temática de
suas pesquisas. Isso, em grande parte, porque o insucesso de achar tribos Jê naqueles Estados
irá determinar o fim dos estudos deste grupo línguistico.
73
Belém, 16/06/1938, p. 289 DU.
74
Ibidem.
75
Berkeley, 27/06/1938, p. 290, DU.
86
Mas também porque será a última expedição a render coleções a museus estrangeiros.
Dessa data em diante, as instituições brasileiras serão as destinatárias exclusivas das coleções
feitas por ele.76
Nimuendajú chega dia 22 de setembro de 1938 ao posto Paraguaçu do SPI, perto de
Ilhéus (BA). As pesquisas se prolongam até 29 de novembro e são descritas a Carlos Estevão
como um “completo fracasso”.77 A carta, porém, permite um olhar privilegiado sobre um
instante concreto das pesquisas de Nimuendajú. Aqui ressalta o trato humano e digno por ele
brindado a Jacinta Grayirá, tida como última descendente dos Kamakan sem mistura com
brancos ou caboclos.
A descrição de Jacinta feita por Nimuendajú é antológica: “Parecia ter muito mais de
70 anos, era cega de um olho e surda de ambos os lados [ouvidos] e já bastante esquisita, se
bem que ainda não apresentava sinais de demência senil. Falava um português péssimo com
uma fonesia puramente Kamakã, de maneira que muito custei a compreendê-la”. Nimuendajú
ainda tem dúvidas se valeria a pena dedicar tempo à coleta do vocabulário desta tribo. A
certeza que esta poderia ser a última chance de registrar nem que seja alguns elementos dessa
língua fala mais forte.
Disposto a levantar a árvore genealógica dela, Nimuendajú improvisa uma estratégia
para facilitar a comunicação com essa senhora que aparente ter 70 anos, é cega de um olho e
parcialmente surda:
76
GR, p. 190. A tendência já é visível nesta expedição: Gotemburgo fica com uma magra coleção dos Maxakali
de 58 itens, enquanto que o Goeldi recebe 144 e o Museu Nacional 87 unidades, p. 194,GR.
77
Ilhéus, 08/01/1938, p. 191, GR.
87
- “A JUANA!!!”
- “Hm, a Juana”.
- Quando Antonio fala com a Juana: Como é que trata ela?”
- “Antonio diz: Xecáxkara”.
(Tinha porém para duvidar da exatidão desta informação e pergunto portanto:)
- “Será mesmo xecáxkara que ele diz?”
- “É, Antonio diz para Anna xecáxkara”
- “Mas isto não é Anna, é JUANA!!!”
- Ah, sim, Juana!” (Durante um minuto a velhinha olha para o boneco de bocar aberta
abobalhadamente. De repente vejo como a sua imaginação se anima: o rosto toma uma
expressão amável e, imitando a grossa voz masculina do finado Antonio ela diz):
“Kecaxkédseda”.
“E como falava Juana a Antonio quando respondia?”
-“Juana?!” – Esta nunca aprendeu a nossa língua!”.
- “E se tivesse aprendida a língua, como ele teria dito?”
- “Qual! A Juana não tinha cabeça para isso! Ela nunca aprendeu uma palavra!
Etc. Tive de determinar tudo por meio de exemplos concretos. Não admitia relações
hipotéticas nem as mais claras e plausíveis: “se A tivesse casado com B...”.
“- Mas ela nunca casou!”
78
Colatina (ES), 04/04/1939, MG e Gotemburgo, 11/08/1939, MG. Segundo Grupioni, citando carta de
Nimuendajú a Estevão de Oliveira de 22/04/1939, ele queria saldar o compromisso assumido com o finado
Nordenskiöld de arranjar uma coleção da “região dos Botocudo”, p. 196, GR.
88
transporte. Seu veredito: “(...) é melhor destruir aí em Gotemburgo do que mandar de volta”,
mas pede para Kaudern tomar o cuidado de evitar que qualquer peça chegue a mão de
colecionadores particulares.
O tira-teima transatlântico se alastra ainda mais com a informação de Kaudern de que
não será possível destruir os objetos. Ele ainda tenta mandar de volta em 1940, mas a
insegurança no tráfico marítmo nas rotas atlântics devido à Segunda Guerra Mundial impede
o transporte.79 Os objetos Maxakari possivelmente ainda estão encaixotados no depósito do
museu em Gotemburgo e endereçados a Curt Nimuendajú.
Continuidade é fundamental
79
Belém, 11/08/1939, MN e Gotemburgo, 25/09/1939, MG.
80
Rio de Janeiro, 20/06/1939, MN, p. 198, GR.
81
Belém, 27/06/1939, p. 198, GR.
82
Carta de 30/06/1939 ao Conselho, p. 198, GR.
89
83
Belém, 26/03/1940 a Estevão de Oliveira, p. 201, GR.
84
Curt Nimuendajú, Viagem de reconhecimento aos índios Gorotire-Kayapó do Rio Xingu, 1939-1940, entregue
ao SPI em 18/04/940, cf. microfilme 115, MI.
90
para se levar a sério. Os testes mostraram que não tenho nem sífilis nem lepra. Resta a terceira
hipótese, não muito importante”.
Mesmo doente, fica avaliando se a próxima viagem seria para rever os Krahô, que
estão sendo dizimados, ou para a área dos Gaviões, onde os latifundiários são contra ele.
Salomônico, acaba escolhendo os Ticuna, do Alto Solimões.85
O obrigatório pedido de licença ao Conselho de Fiscalização é para realizar estudos
sociológicos e religiosos desses indígenas. O delicado e nevrálgico relacionamento com este
órgão vai torna-se mais complexo ainda. O Conselho exige agora a remessa de todas as
coleções para o Rio de Janeiro, onde serão avaliadas e partilhadas entre museus nacionais e
estrangeiros.86
Como se tudo isso fosse pouco, a incerteza financeira ronda a expedição. Nimuendajú
escreve desesperado para informar a Lowie que os US$ 200 prometidos não chegaram e que
ele precisa de 500 dólares para empreender a viagem.87
Lowie percebe a seriedade da situação. Envia então uma ordem de pagamento pelo
telégrafo de US$ 100 dos 200 recebidos pelo artigo sobre os Jê do Nordeste que assinou
sozinho na publicação Handbook of South American Indians.
É o único caso documentado em que Lowie contribui do seu próprio bolso para pagar
parcialmente uma expedição, da qual ele é também beneficiário.88
Com o financiamento garantido e já instalado entre os Ticuna, Nimuendajú conta as
dificuldades e as alegrias da alagada floresta dessa região amazônica:
Em Tabatinga lutei com grande dificuldade para comprar uma canoa: o Solimões traz
uma enchente já um tanto extraordinária. Todas as margens estão alagadas, e mesmo em
Tabatinga só se vai de casa em casa por água. (...) Finalmente comprei uma canoa, mas receio
que ela dê muito malmente para a viagem projetada. Em todo caso mandei consertar e
prepará-la, e espero que ate 1.° de abril tudo esteja pronto. (...) Com grande espanto de certa
gente daqui, para quem esses Tukuna são o verdadeiro simbolo da velhacaria, malandragem,
preguiça, etc. etc., com os quais hoje nada mais se pode fazer, dentro de 3 dias tive eles todos
andando atrás de mim: deram-me de comer nas casas deles, fizeram-me presentes e se
ofereceram espontaneamente para [como] remadores na viagem pelo Solimões abaixo.89
85
Belém, 06/10/1940, p. 302 e Belém, 04/11/1940, p. 304, ambos DU.
86
GR, p. 211.
87
Belém, 24/01/1941, p. 306, DU.
88
Berkeley, 12/02/1941, p. 308, DU. O artigo de Lowie só foi publicado em 1946, um ano depois da morte de
Nimuendajú.
89
Leticia, 27/03/1941, p. 288, CS.
91
Outra calamidade que aqui não deixa à gente uma hora sequer de sossego, nem de dia
nem de noite, é a terrivel praga de mosquitos, maruins e matucas. Pescoço, orelhas e pulsos
coçam e ardem e os ouvidos estão me zunindo dos tapas constantes que sou obrigado a dar a
mim mesmo. Escrever é quase impossível, porque no [dentro do] mosquiteiro se sua em bicas,
pelo menos durante o dia, quando dois se metem dentro para trabalhar. É o meu velho defeito
de me convencer sempre que semelhante bagatela como um inverno amazônico PARA MIM
[sic] não tem importância. De fato, estou fazendo o trabalho assim mesmo, mas – hm [sic].90
A intermitente chuva diária incomoda até na realização das mais simples necessidades
biológicas: “Devagar, mas irresistivelmente a água preta do igapó vem se aproximando da
casa de Calixto. De três lados já tem apenas 4 metros e na frente uns 8 metros - de terra? não!
De lama! Quem quer fazer as suas necessidades tem de embarcar na canoa e remar para a
mata que está alagada com 5-6 metros de fundura. O que numa noite de chuva escura como
breu já representa um emprendimento de certo vulto“.
90
Perpétuo Socorro, Rio Solimões, 23/05/1941, p. 290 e 296. CS.
91
Igarapé da Rita, 28/07/1941, p. 298, CS. Aracu é um peixe presente em várias regiões amazônicas.
92
Eu preciso urgentemente um ingresso constante para [sair da] minha pobreza. É triste
quando a pessoa, depois de oito meses de trabalho, volta para casa e vê como esta está caindo,
sem poder mudar essa situação. Eu tive a esperança de que os 300 dólares [que receberia pelo]
do mapa [etno-histórico] e o 240 dólares pela colaboração para o Handbook iriam pelo menos
me tirar desta situação. Eu vejo com horror chegar o fim do trabalho de campo [a próxima
expedição].92
92
Belém, 09/10/1941, p. 312, DU.
93
Berkeley, 03/10/1941, p. 311, DU.
94
Dungs, p. 312 DU.
95
Ibid, p. 313.
96
Berkeley, 18/10/1941, p. 313, DU.
93
Lamento não poder satisfazer seu pedido de considerar como se sua “expressão
conscientemente” não tivesse sido pronunciada. Pelo contrário, enquanto mais eu analiso,
mais firme é a minha convicção de que ela é a única possibilidade no momento, pois em
março de 1942 eu DEVO [sic] voltar aos Ticuna CUSTE O QUE CUSTAR [sic]. Quero dizer,
que não se deve adiar o fim do trabalho de campo nessa tribo até a época de chuvas de 1943.
O que eu vivenciei deve ser complementado enquanto as impressões continuam frescas. Eu
não sei como será entre os Tucuna [sic] em 1943. Nada de trabalhos intermediários! Eu devo
sacrificar minhas necessidades particulares e usar o dinheiro disponível para a viagem.97
Ele faz uma complexa projeção da entrada e saída de recursos previstos até o fim da
expedição de 1942 para concluir: “Mesmo que o senhor não consiga mais dinheiro até essa
época [o início da expedição], MESMO ASSIM [sic] a viagem vai ser feita. Com isso eu vou
ficar na pior depois do trabalho de campo. Minha esperança é que o senhor pelo menos
NESSE MOMENTO [sic] possa me ajudar”.
97
Belém, 26/10/1941, p. 313, DU.
94
Creio que, através de todas essas dificuldades, aprendi que DEUS DO CÉU [sic] me
fez pequeno para que eu não precise mais me abaixar. Estou em permanente estado de defesa
com o Museu Nacional, que me quer só para si. Eu não [sic] devo trabalhar para o estrangeiro,
mas somente para o Museu Nacional. Todo e qualquer elogio do exterior gera para mim mais
problemas do que traz alguma vantagem. O pior é quando se fazem referências ao meu
trabalho para o Museu de Gotemburgo. Apesar da minha naturalização em 1922, ainda sou
um estrangeiro.
Em abril de 1942, embarca para o Alto Solimões. Cinco meses mais tarde, é preso por
militares sem qualquer justificativa. Já em liberdade, sofre uma crise depressiva que não o
deixa voltar tão cedo ao trabalho de campo nem retomar a redação de monografias e artigos.
Para complicar ainda mais, Lowie comunica que, devido ao custo da guerra dos Estados
Unidos contra a Alemanha, a Itália e o Japão, a Universidade da Califórnia cortou os
financiamentos de pesquisas.101
98
Rio de Janeiro, 08/01/1942, p. 223, DU.
99
Belém, 13/01/1942, p. 224, DU. Nesses dias, ele recebera 7 contos de réis do Museu Nacional pela coleção já
entregue dos Ticuna. É com este dinheiro que realiza mais uma viagem ao Alto Solimões.
100
Belém, 12/01/1942, p. 318, DU.
101
Berkeley, 10/10/1942, p. 319, DU.
95
mal pagos (260 dólares). A iniciativa representa mais um apoio psicológico do que
propriamente uma folga econômica para o pesquisador.102
O esforço anímico e físico para escrever os artigos é grande demais para ele: “Até
agora escrevi 81 páginas, não posso cortar [reduzir os artigos]! Aliás, é três vezes maior do
que o exigido. Não tenho dinheiro para fazer fotos (...)”.103
A resposta de Steward soa dura, mas realista: “(...) devo ficar firme no que diz respeito
à redução [do tamanho dos artigos], porque o dinheiro é limitado. A administração diz: uma
palavra, um centavo [de dólar]”.104
No segundo semestre de 1943, as sequelas de 40 anos de sertão o impedem de assumir
a direção do Serviço Etnológico do Conselho Nacional de Proteção aos Índios. Sem
alternativas, assina contrato com o Museu Nacional para traduzir para o português suas obras
e colaborar com o já promovido general Cândido Rondon no CNPI.
Isto lhe proporciona um minguado salário mensal, mas também proteção contra as
perseguições dos “nativistas”, informa a Steward.105
Nimuendajú já intuíra em novembro de 1941 que a fase de trabalhos de campo está
chegando ao fim. Atendendo ao pedido de Carlos Estevão de Oliveira, toma uma atitude
inédita: estrutura algumas de suas experiências de vida com os indígenas e as repassa de
maneira didática. Nimuendajú dá aulas a cinco mulheres, entre elas à filha de Carlos Estevão,
Lygia.106
Nada fica registrado dessas palestras em Belém. Já Harald Schultz, com quem
Nimuendajú se recusara a fazer expedições devido à enorme aparelhagem cinematográfica
que o jovem etnólogo queria levar, age de maneira mais prática: ele anota suas conversas com
Nimuendajú no Rio de Janeiro em 1943.
Alguns dos conselhos caracterizam claramente o autor: “Indagar e tomar nota não só
da presença [sic], mas também da ausência [sic] dos diferentes traços da cultura material e
não-material. (...) Se possível, adoecer [sic] e submeter-se a tratamento, pelo menos [durante]
dois dias. Antes disso, porém, pedir descrição do processo (cautelosamente, sem aparentar
102
Steward, Washington, 27/02/1943, p. 331, DU.
103
Belém, 05/05/1943, p. 331, DU. Numa carta anterior, de 17/04/1943, ele agradecera a Steward o convite para
participar do Congresso de Americanistas no México, mas informa que não vai porque não tem dinheiro, ibid.
104
Washington, 10/05/1943, p. 332, DU.
105
Ibidem. Dona Heloisa teria tentado que ele fosse transferido para o Museu Nacional, mas a idéia foi rejeitada,
informa Grupioni, à página 232, sem dizer, contudo, quem impediu a medida que satisfaria a antiga vontade de
dona Heloisa de trabalhar lado a lado com Nimuendajú. O contrato com o CNPI tem um filhote inesperado: a
publicação dirigida a crianças “Brinquedos de nossos índios”, adaptação de Alba Maria de Carvalho, Série
Infantil nº. 1, Conselho Nacional de Proteção aos Índios, 1958.
106
As aulas se sucedem até agosto de 1944, cf. Nunes Pereira, p. 59.
96
107
Sugestões para pesquisas etnográficas entre os índios do Brasil, Sociologia, v. III, nº 1, 1946, pp. 36-44, São
Paulo. Segundo Baldus, as anotações em alemão foram revisadas por Nimuendajú e traduzidos ao português por
Egon Schaden.
108
Belém, 29/10/1943, p. 225, DU.
109
Belém, 10/11/1943, MN.
110
Belém, 14/12/1943, p. 225, DU.
111
Rio de Janeiro, 19/07/1944, p. 227, DU.
112
Belém, 21/08/1944, MG. É a última carta conhecida remetida à Suécia.
113
Belém, 22/12/1944, MN.
97
Nimuendajú: a viagem aos Ticuna e a conclusão da redação das 300 lendas indígenas por ele
coletadas.
Porém, a questão profissional e o aspecto existencial estão embolados. Ambas as
pessoas espelham o mútuo desencontro de visões de como agir para chegar à meta comum.
Quando dona Heloisa diz que vai mandar de 30 mil a 40 mil cruzeiros até abril para a
expedição aos Ticuna, ele rebate que 40 mil é o mínimo.114 Quando Nimuendajú explica que
não pode concluir as 300 lendas porque faltam as narrativas dos Ticuna que ele ainda tem de
colher, mas não consegue viajar, dona Heloisa silencia.115
Na mesma carta que solicita esse apoio a dona Heloisa, ele critica a demora no uso de
sinais diacríticos para a impressão de um trabalho linguístico. Este são elementos gráficos
auxiliares da escrita que servem para indicar a pronúncia de uma palavra. Nimuendajú exige a
confecção de sinais especiais para esse trabalho.
Isso é demais para dona Heloisa. Ela dá uma bronca como nos bons velhos tempos:
“Eu realmente não entendo as suas preocupações quanto aos símbolos diacríticos usados pelo
Sr. EU [sic] já lhe disse em seis cartas que estou de acordo com suas sugestões, que eu lhe
pedira que fizesse uma comparação desses símbolos, mandei fazer os novos linotipos [para
impressão], lhe enviei uma cópia dos mesmos, mas o sr. volta novamente ao tema, que já se
resolveu faz tempos. O senhor deveria me conhecer, e saber que eu cumpro o que
prometo”.116
Antes de partir para o Solimões, dona Heloisa faz um novo arranjo institucional em benefício
de Nimuendajú, que permanece no Rio de Janeiro de 29 de julho a 9 de agosto para conversar
com João Alberto Lins de Barros, diretor da Fundação Brasil Central. O acordo é relatado a
Baldus, o sociólogo alemão residente em São Paulo:
Ficou combinado com o Museu Nacional que trabalharei uma parte do ano para este e
a outra para a “Fundação”, fazendo eu a divisão [do tempo] como achar melhor. O que ele
[João Alberto] quer é que as possibilidades etnográficas da “Fundação” sejam por mim
aproveitadas, os resultados publicados pela “Fundação” e as coleções reunidas num museu
regional em Aragarças. Isto de eu ficar assim rachado pelo meio eu acho bem desvantajoso, e
114
Rio de Janeiro, 16/02/1945, e Belém, 25/02/1945, ambas MN.
115
Belém, 23/02/1945, p. 229. DU.
116
Rio de Janeiro, 17/08/1945, p. 230, DU.
98
não tenho lá muito entusiasmo pela empresa. Em todo caso, farei primeiro, desde setembro, a
minha planejada estada de seis meses entre os Tucuna, e depois ainda elaborarei os resultados
dela. De maneira que só pelo mês de agosto de 1946 poderei começar os trabalhos para a
“Fundação”.117
O uso de aspas ao citar a Fundação sinaliza a sua desconfiança quanto à seriedade do
empreendimento: “Isto é, se até lá o avanço da expedição Roncador-Xingu já não tiver dado
em massacres e expulsão das tribos da bacia dos formadores do [rio] Xingu. Nesse caso,
ninguém conta mais com a minha colaboração – isto cá muito entre nós!”.
Dois meses depois da conversa, Nimuendajú denuncia o acordo. Bem informado,
conta a dona Heloisa que funcionários da FBC preparam um massacre, sob direção de um
homem de confiança de João Alberto, o engenheiro Carlos Telles, que teria feito um discurso
no sentido “ou acaba-se com os índios ou estes acabam com a civilização”. A prova dessas
intenções é fornecida por José Maria Malcher, inspetor-chefe do SPI em Belém, que
apreendera caixas chegadas do Rio de Janeiro para Telles, contendo bombas e granadas.118
Nimuendajú comunica a dona Heloisa a sua única decisão possível: “Considero-me
definitiva e imediatamente incompatiblizado com a FBC”. O mesmo jeito decidido utiliza ao
dirigir-se ao seu discípulo Harald Schultz: “Não gostei que o senhor deu a foto a Baldus, que
quer publicá-la. Isto seria muito desagradável para mim.”119
Antes de iniciar sua última viagem a uma tribo indígena, Nimuendajú se desvencillha
das obrigações profissionais que ainda o ligam ao mundo “civilizado”: rompe com a
117
Belém, 13/08/1945, p. 201, DU.
118
Belém, 14/10/1945, p. 236, GR.
119
Belém, 10/10/1945, p. 219, DU. Schultz também pedia conselhos pessoais, como quando sua mulher o
abandona em 1943, deixando-o sozinho com uma filha de dois anos, mesma idade quando Nimuendajú ficou
órfão de ambos os pais, p. 217, DU.
99
Fundação Brasil Central, rejeita um contrato com o Museu Paraense e considera o contrato
com o Museu Nacional quase extinto. É como se ele somente quisesse estar em contato com
os indígenas.
Não se sabe que dia de novembro Nimuendajú se despede da mulher, dona Jovelina, e
deixa a casinha comum em Belém. No dia 12 de dezembro de 1945, Curt Nimuendajú é
enterrado em São Paulo de Olivença, cidade próxima ao igarapé da Rita. O SPI de Manaus
instaura uma investigação sobre a morte de Nimuendajú cuja conclusão é desconhecida até
hoje – veja o capítulo 11 - As mortes de Nimuendajú.
Dona Heloisa entrega-se à tarefa de resgatar os trabalhos quase concluídos, deixados
por Nimuendajú na casa em Belém. Ela argumenta que o Museu Nacional havia pagado
antecipadamente pelo catálogo de peças arqueológicas, encomendado pelo Serviço do
Patrimônio Histórico, pelas 300 lendas indígenas e pela monografia dos Ticuna. Todos,
portanto, pertencem ao museu e, em consequência, o dinheiro achado no local do falecimento
de Nimuendajú corresponde à viúva, dona Jovelina.120
A diretora do Museu Nacional quer ainda evitar que o espólio intelectual de
Nimuendajú seja enviado ao exterior e, ao mesmo tempo, apoiar financeiramente dona
Jovelina:
Dona Jovelina morreu em 1972, 104 das 300 lendas foram publicadas em 1986 e o
espólio de Curt Nimuendajú está depositado no Museu Nacional.
120
Rio de Janeiro, 07/02/1946, enviada ao inspetor do SPI em Belém, José Malcher, MN.
100
Nenhum intelectual gosta de ser chamado de autodidata. Mas quer ser pioneiro, inovador,
destacar-se de seus contemporâneos.
Nimuendajú realiza a quadratura do círculo: é pioneiro na Etnologia justamente por ser
autodidata. Por acreditar na sua capacidade de observação, estar focado no chamado “objeto
do estudo” (o indígena, que ele eleva à condição de sujeito) e por recusar-se a demonstrar
pressupostos teóricos. Ele troca permanentemente informações e críticas com outros
estudiosos, mas especialmente consulta os indígenas.
O próprio Nimuendajú revela não ter frequentado a universidade. Em 1939, resume
para o sociólogo Herbert Baldus o que passou a ser conhecido ironicamente entre os
antropólogos como o seu currículo acadêmico: “O senhor quer saber da minha historia
pessoal? É muito simples: nasci em 1883 em Jena, não recebi nenhum tipo de ensino
acadêmico, em 1903 vim ao Brasil, morei até 1913 em São Paulo e daí em diante o Pará tem
sido o meu acampamento central, o resto [é] uma sequência de expedições quase sem
interrupções (...). Não tenho nenhuma foto minha”.1
1
DU, p. 194.
101
A simplicidade dessa observação esconde o essencial: sua postura ética e moral como
pesquisador, vivida no dia-a-dia. O também etnólogo Egon Schaden encontra nas obras de
Nimuendajú reflexos da linha intelectual do pesquisador: “(...) cada uma de suas páginas
testemunha uma preocupação constante e nunca desmentida em confiar apenas em
observações próprias, uma honestidade espontânea em confessar deficiências e lacunas, em
ser o primeiro a apontar o caráter fragmentário do material colhido”.
Schaden aponta outra característica: “um receio quase doentio de propor ou sugerir
alguma interpetação teórica possivelmente falha. (...) E, em terceiro lugar, a atitude humilde
de quem procurava aperfeiçoar cada vez o seu método de trabalho com auxílio dos que
estivessem mais bem informados no tocante aos requisitos teóricos da etnologia moderna”.2
De fato, não é o método desenvolvido por terceiros e absorvido em centros de ensino
que determina sua atitude e a sua ação como etnólogo. É justamente o contrário. Baseado nas
suas convicções, observações e reflexões, Nimuendajú cria métodos de pesquisa para ser
cientista.
Após estudar três de seus livros sobre tribos do grupo linguístico Jê, o antropólogo
Julio Cesar Melatti esboça um perfil revelador: “A própria personalidade de Curt Nimuendajú
era tão surpreendente quanto as sociedades Jê. Tal como elas, Nimuendajú poderia ser
caracterizado por negações: não tinha curso universitário, não era docente de instituições
acadêmicas, não podia ser definido por nenhuma orientação teórica que então florescia. (...)”.3
É justamente esse conjunto de negativas que revela o seu lado afirmativo: “No entanto,
este pesquisador excêntrico, tal como as sociedades que estudava, então conhecidas como
‘tribos marginais’, se destacava entre os demais por uma série de atributos positivos: suas
frequentes pesquisas de campo, seus insistentes retornos às mesmas sociedades, sua defesa
dos direitos indígenas”.
2
Schaden, Egon, Notas sobre a vida e obra de Curt Nimuendajú, Revista de Antropologia, 1967-8, v. 15-16. p.
82.
3
Os livros de Nimuendajú são The Eastern Timbira, The Apinayé e The Serente, até hoje inéditos em português,
cf. Melatti, 1985, pp. 10 e 18.
102
Seus métodos de coleta estão isentos do viés imposto por uma corrente de pensamento
acadêmico vigente na época de suas pesquisas, afirma a arqueóloga norte-americana Anna
Curtenius Roosevelt: “Como Nimuendajú não coletava seletivamente a exemplo de todos os
outros acadêmicos, suas coleções são algumas das poucas existentes em museus que incluem
amostras de utensílios domésticos (…), que documentam a presença de residências em locais
catalogados equivocadamente como locais ceremoniais vazios”.4
4
Roosevelt, Anna Curtenius, Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaelogy on Marajó Island, San
Diego, Academy Presse, 1991, p. 165, minha tradução.
5
Viveiros de Castro, in As Lendas, 1987, p, xxiii.
103
Nas suas pesquisas posteriores, Nimuendajú mantém a prática de dar a palavra aos
membros da comunidade visitada. Esta postura teve décadas mais tarde seus seguidores. Nos
anos 50, o antropólogo norte-americano William Crocker ampliou o protagonismo indígena.
Seu colega, Charles Wagley, explica que Crocker reunia seus assistentes Canela e
colocava questões ligadas à estrutura social, às ceremônias e à ideologia da tribo:
A segunda ação inédita é que Nimuendajú foge do até então tradicional anonimato da fonte,
pois mata a cobra e mostra o pau. Ele cita expressamente as pessoas que forneceram as
informações, na linguagem acadêmica até hoje inexplicavelmente ainda chamadas de
informantes, e uma sintética avaliação de cada uma destas pessoas: “Meus informantes foram
três bons amigos da horda [do grupo] dos Apapocúva, à qual eu também pertenço:
Guyrapaijú, velho e conservador; Tupãjú, muito viajado; e principalmente Joguyrovyjú, o
místico religioso”.8
6
Ibidem. Quase 20 anos mais tarde, este professor do Museu Nacional retoma em 2005 o papel central dos mitos
para propor, em caráter exploratório, uma filosofia indígena, cf. Viveiros de Castro, em A Onça e a Diferença.
7
Prefácio de Charles Wagley do livro The Canela (Eastern Timbira), I: An Ethnographic Introduction, de
William Crocker, Smithsonian Institution Press, 1990.
8
As Lendas, p. 4.
104
O livro, editado em 1914, é seguido por obras sobre outras tribos – nelas consta a
mesma clara identificação dos transmissores das práticas e dos conhecimentos indígenas.
Nimuendajú é, portanto, quem dá início ao atual padrão acadêmico do pesquisador revelar os
nomes de seus interlocutores.
Sua postura é, mais uma vez, aperfeiçoada por Crocker, diz Wagley: “(...) ele recusa o
uso do termo ‘informante’ aos indígenas que instruíram e ensinaram o pesquisador de campo.
No seu livro, ele usa a expressão ‘assistente de pesquisas’. Ele o faz movido pelo respeito
perante eles [os indígenas] e para evitar as implicações negativas desse termo em inglês [em
português também tem atualmente sentido pejorativo]”.9
Nos seus livros, Crocker publica dezenas de fotos de seus assistentes de pesquisa,
dando assim também rosto a esses indígenas Canela. Aliás, Nimuendajú fotografou não
somente seus assistentes Apapocuva e Canela, mas também seus parentes nestas tribos.
A terceira inovação é que Nimuendajú não esconde o fato de ter sido adotado pelos indígenas
e se considerar um deles. No seu livro sobre os Apapocuva-Guarani, ele historia mais
detalhadamente seu inusitado currículo de indígena adotado: 10
Em 1906 fui incorporado com todas as formalidades na tribo, recebendo o meu nome
índio. Passei a maior parte dos anos seguintes, porém entre as tribos Kaingýgn, Coroados,
Ofaié (Xavantes) e Chané (Terenas), vendo os Guarani só ocasionalmente. Em 1911, voltei,
pelo Serviço de Proteção aos Índios do governo brasileiro, para a minha aldeia durante alguns
meses, passando depois quase todo o ano seguinte com as diversas hordas do Estado de São
Paulo, em 1913 também no sul de Mato Grosso [atual MS]. Tenho sempre vivido como um
índio entre índios: aprendi assim o Guarani, certamente com imperfeições, mas talvez melhor
que muitos que escreveram mais sobre a língua do que eu.
9
Wagley, Charles, ibid.
10
As Lendas, p. 4 e 3. No século 19, houve uma situação parecida de convivência integral. O cientista húngaro-
alemão Johan Stanislau Kubary viveu entre os nativos da ilha Palau, no Oceano Pacífico. Casado com uma
mulher da região, transformou-se no portavoz dos palauenses perante os europeus, que o rejeitaram. Como seus
escritos não foram entendidos pelos etnólogos da época, virou capataz de escravos numa fazenda de Palau,
passou a beber e acabou se suicidando. Cf. Werner Petermann, Die Geschichte der Ethnologie, Peter Hammer
Verlag, Wuppertal, 2004, p. 536.
105
Contra os cânones acadêmicos, Nimuendajú publica uma foto de sua família indígena.
Em 1914, Nimuendajú propõe que os etnólogos aprendam a língua do grupo étnico que
pretendem visitar, do jeito que ele fez com os Apapocuva. A principal vantagem dessa medida
11
Viveiros de Castro,p. xxiv.
106
12
As Lendas, p. 110. Iñypyrû é a narrativa da Era do Morcego, anterior à criação do sol e da terra, na cosmologia
apopokuva. Anos depois, ele emprega o mesmo método na coleta de lendas em outras tribos.
13
Berkeley, 17/07/1939, DU, p. 295.
14
Berkeley, 17/08/1939, DU, p. 296.
107
Grande é o número de fábulas de animais. Estes são os elementos que mais facilmente
se obtêm do índio, que ele menos teme comunicar ao estranho. Por isso, este tipo de mito foi
mais frequentemente observado e detalhadamente registrado. Disto decorre facilmente a
impressão de que a religião dos índios consiste apenas nestas fábulas ou que, pelo menos, elas
constituem seu elemento principal. Se, contudo, o observador tivesse sempre sido considerado
pelos índios como companheiro de tribo e de crença, e tivese tido o domínio de sua língua, o
quadro das religiões sul-americanas originais ter-se-ia configurado, provavelmente, como
diferente sob muitos aspectos, e menos primitivo e rústico na sua totalidade, do que hoje é em
geral o caso, devido à forma da observação empregada.
A ênfase neste longo parágrafo está justamente no final da última frase: “devido à
forma da observação empregada”. Este texto faz parte do livro As Lendas, publicado em 1914,
que é de fato a primeira aplicação do método científico posteriormente conhecido como
“observação participante”. Nimuendajú simplesmente publica os resultados do método
elaborado e aplicado com sucesso nos anos anteriores. Sem alarde, sem ostentação. Ou talvez
sem ter consciência da sua própria descoberta.
15
DU, p 64.
16
Nimuendajú, As Lendas, p. 110.
17
Malinowski (1884-1942) realizava suas pesquisas na Nova Guinea quando teve início a primeira guerra
mundial. Por ter passaporte austro-húngaro, foi confinado pelos ingleses nas ilhas Trobriand, no Oceano
Pacífico, cf. Kramer, Fritz W., Schriften zur Anthropologie / Bronislaw Malinowski, Eschborn bei Frankfurt am
Main: Klotz, 1999.
108
Sua metodologia, redigida em 1921, baseia-se em três pontos: “(...) em primeiro lugar,
naturalmente, o estudante deve possuir objetivos realmente científicos e conhecer os valores e
os critérios da moderna Etnografia. Em segundo, ele deve criar para si boas condições de
trabalho, isto é, em geral, viver sem [entrar em contato com] outros homens brancos,
diretamente entre os indígenas. Finalmente, ele tem de aplicar uma série de métodos especiais
de coleta, de manuseio e fixação das evidências”.18
Lá estão a teoria e a prática de Nimuendajú de 1908 a 1914, espelhadas na obra de
Malinowski, publicada em 1922: conhecimento científico, convivência com os indígenas,
coleta e processamento adequado do material recolhido.
Viveiros de Castro ja chamou a atenção, cuidadosamente, para este fato em 1986:
“Temos um texto de 1914 - ano em que ainda se gestava o mito do ‘trabalho de campo’ com o
exílio de Malinowski - que testemunha a prática de uma demorada ‘observação participante’
integral e consciente (sobredeterminada, como que para maior modernidade, por funções de
mediação inserida no indigenismo positivista que então nascia); que demonstra o controle e o
emprego da língua nativa enquanto ao mesmo tempo condição necessária, instrumento
principal e objeto privilegiado de análise (...)”.19
Há, contudo, uma divergência essencial entre ambos. Malinowski propõe que o
cientista pense as teorias antes de contatar os indígenas: “(...) enquanto mais problemas ele
levar consigo para o campo, mais ele terá o hábito de moldar suas teorias de acordo com os
fatos e de ver os fatos agindo sobre a teoria, e melhor preparado estará para o trabalho”.20
Nimuendajú, ao contrário, abandona a visão eurocêntrica e quer revelar o indígena por
ele mesmo: “Para que eu, porém, mesmo inconscientemente, não introduzisse meu próprio
estilo e minhas opiniões pessoais nos textos originais, fiz com que pessoas competentes me
ditassem as lendas. A estas narrativas não acrescentei nem diminui uma só palavra, se bem
que às vezes isto pudesse ter sido necessário, mesmo segundo a opinião dos índios. Assim,
estes textos são um testemunho, não de como os Guarani deveriam falar, ou talvez pudessem
falar, mas como de fato o fizeram a mim”.21
18
Malinowski, Bronislaw, Argonauts of the Western Pacific, E. P. Duton & Company, New York, 1960, p. 6,
minha tradução.
19
Viveiros de Castro, p. XXII.
20
Malinowski, p. 9.
21
Nimuendajú, As Lendas, p. 4.
109
análise psicológica dos pensadores alemães [ele somente cita Bastian] trouxe uma abundante
colheita de informações muito valiosas dos resultados obtidos pelas recentes expedições
alemãs na África, América do Sul e no Pacífico (…)”.22
Uma análise cronológica de suas expedições mostra que ele chegou à sua versão do
método após a publicação da obra de Nimuendajú. Ele mesmo confirma esta sequência
temporal (causal?), mas sem citar de maneira alguma Nimuendajú. A primeira expedição de
Malinowski é realizada de agosto de 1914 a março de 1915, na ilha de Woodlark. Ele visita
periodicamente a aldeia acompanhado por um guia “branco”.
Os resultados são parcos, lamenta: “Eu bem sabia que o melhor remédio para isso
[falta de diálogo com os indígenas] era coletar dados concretos e por isso fiz um censo na
aldeia, levantei quadros genealógicos e termos de parentescos. (...) Nada avançava em termos
de obter [acesso] às suas idéias religiosas e mágicas (...)”. Más é só Malinoskwi ficar sozinho
entre os indígenas que começa a ter acesso “à magia do etnógrafo que o leva a evocar o
espírito real dos indígenas, a imagem real da tribo”. Porém, ele só a aplica meses depois (a
partir de maio de 1915) na sua segunda expedição, em outra comunidade, na ilha de
Trobriand. Os resultados: “Passei a sentir que estava em contato com os indígenas”.23
Mesmo o início da Primeira Guerra Mundial em julho de 1914 não teria impedido que
a revista Zeitschrift für Ethologie, onde Nimuendajú publicara sua obra, chegasse às mãos de
Malinowski, que mantinha contato com a London School of Economics, de Londres. A leitura
da monografia em alemão não seria problema – afinal, ele estudara inicialmente Economia na
Universidade de Leipzig, antes de se mudar a Londres.
Os indícios de um possível plágio são fortes. Mas indícios não constituem provas. No
final do século 19, o etnólogo norte-americano Frank Hamilton Cushing já tinha morado com
indígenas Zuñi daquele país. Desconheço se Nimuendajú soube disto ou, quem sabe, talvez
inspirou-se em Cushing.
Já foram documentadas situações parecidas de pessoas que tiveram idéias semelhantes
demais ou inventaram aparelhos ou métodos quase na mesma época. Uma explicação desta
“coincidência” seria a existência de campos morfogenéticos, ou seja, certas idéias, princípios
em estado puro, se tornam acessíveis a algumas pessoas, em lugares diferentes e épocas
semelhantes, independente de contatos entre elas.24
Curioso é que, até no Brasil, Malinowski é tido como o precursor do método da
observação participante.
22
Malinowski, pp. 9 e 5.
23
Ibid, p. 7 e 6. A terceira expedição vai, com interrupções, até setembro de 1918.
24
Church, Dawson, Die neue Medizin des Bewusstseins, VAK Verlag, 2008, p. 168.
110
Ele [Nimuendajú] dizia que muitos etnólogos trabalham de maneira superficial e que
não chegam ao miolo das questões. Nas suas palavras, devido à situação em que nos
encontramos, devemos chegar ao fundo. Ele sempre ia fundo. (...) Ele estudava para entender
e aprender. Identificava-se com seu trabalho e seus amigos, os indígenas. Falava sempre de
NÓS [sic], ou seja, sentia-se um indígena, batia no peito e dizia NÓS [sic]. (...) Ele não falava
de política [indigenista], [ele] era indígena dia e noite.26
25
DU, p. 65.
26
DU, p. 164.
27
Ibid, p. 166.
28
Schaden, Egon, Quarenta anos de Curt Nimuendajú a serviço do índio brasileiro e ao estudo de suas culturas.
1973, p. 86.
111
Outra inovação de Nimuendaju é que ele lança um tema que, até então, não existia – a
influência do cristianismo, mais especificamente da congregação dos Jesuitas, na religião das
tribos do grupo linguístico Tupi-Guarani. A chegada dos portugueses ao Brasil no início do
século dezesseis é seguida pelo envio dos primeiros missionários em 1548. Como a conversão
dos indígenas à religião cristã requeria o conhecimento de suas crenças, muitos sacerdotes
dedicaram-se a aprender a língua e a religião, com destaque para o jesuíta Antonio Ruíz de
Montoya.
Viveiros de Castro afirma que a questão da influência cristã é inevitável “diante de um
sistema de pensamento fundado numa visão dual da pessoa onde ‘verbo’ e ‘carne’ se opõem,
onde a noção da divindade é concebida como um Logos [sic] criador, onde o apocalipse – o
apocalipse e não a gênese, o futuro e não passado – constitui-se como pólo orientador da vida
religiosa”.29 Ele opina que, neste tema, Nimuendajú rompe sua postura neutral e toma partido,
pois ele “descarta firmemente qualquer marca jesuítica apreciável na religião dos Apapocúva
-como fará Leon Cadogan mais tarde para a teologia Mbyá-Guarani -, abrindo com isso um
debate que perdura”.
Nimuendajú mostra também o outro lado da medalha: são justamente os religiosos
cristãos, jesuítas e de outras congregações, que descaracterizaram as divindades indígenas.
Ele discorda assim da centenária afirmação de que Tupã é o equivalente ao Deus cristão: “Sua
viagem para (a morada de) Ñandecý é representada de modo tão autenticamente Guarani,
que não pode haver dúvida quanto à genuidade de Tupã enquanto personificação do
trovão”.30 O mesmo acontece com Añá, o ser divino que, segundo os jesuítas, representava o
demônio: “Ele não tem nenhuma relação com Tupã, de quem – conforme o uso da linguagem
missionária – deveria ser o antagonista”.
Embora fossem conhecidos desde a chegada dos portugueses ao Brasil, nem religiosos nem
pesquisadores conseguiram tomar conhecimento da existência de uma visão cosmológica
eescatológica dos Tupi-Guarani. Mesmo as migrações de fundo religioso eram sucintamente
apresentadas nos relatos feitos a partir do século 16 pelos sacerdotes europeus. Segundo
29
Viveiros de Castro, p. xxvi.
30
Nimuendajú, As Lendas, p. 55.
112
Viveiros de Castro, a obra As Lendas mudou isso, pois ela mostra um verdadeiro achado
etnológico – que o complexo profético-migratório Tupi-Guarani continua existindo:
É com este ensaio também que se introduz na literatura [etnológica] o tema da “Terra
sem Mal” (e a propria expressão, hoje célebre). É aqui que se encontra a primeira descrição da
escatologia Guarani, a qual articula um dualismo espiritual do ser humano (alma-palavra
celeste, alma-animal terrestre) a uma lógica da sublimação da corporalidade, e que gira em
torno do tema de uma aniquilação cósmica da qual é possível escapar pelo acesso hic et nunc
[sic] ao paraíso – uma escatologia que afirma a finitude humana mas ao mesmo tempo
persegue a superação imediata desta condição pela ascese ou pelo excesso.31
31
Viveiros de Castro,p. xxvi.
113
32
A família linguística Jê é formada por tribos como os Canela, Krahô, Apinaye, Xavante, Xerente, Kaingang,
Gavião e Krikiti, entre outros. No início do século 21, a maioria delas contavam com menos de cinco mil
habitantes, cf. Povos Indígenas no Brasil, Línguas, Introdução, Instituto Socioambiental,
http://pib.socioambiental.org/pt 2010.
33
Wagley, Charles, prefácio ao livro de David Maybury-Lewis, Dialectical Societes, The Gê und Bororo of
Central Brazil, Harvard Presse, 1979, p. ix, minha tradução.
34
Belém, 14/06/1929, carta a Krause, DU, p. 239.
35
Wagley, p. ix.
114
É justamente o autodidata Nimuendajú quem elabora sozinho o primeiro mapa das etnias
residentes em território brasileiro, publicado em 1981 pelo então IBGE. Os dados nele
incluídos impressionam: são citadas 972 tribos, 889 fontes bibliográficas38 e em torno de
500 rios.
36
Melatti, 1985. p. 19, e Roberto da Matta, Um mundo divido, Vozes, Petrópolis, 1976, p. 133, citado por
Melatti, p. 19.
37
Maybury-Lewis, Cultural Categories of the central Gê in Dialectical Societes, Cambridge, Hardvard
University Press, 1979, p. 232 in Melati, p. 19.
38
Arnaud, DU, p. 138.
115
Tudo isso, compactado num mapa que, na versão original, utilizava várias cores e,
impresso, ocupava um espaço de dois metros de comprimento por dois de largura.39
Ninguém sabe ao certo quantas versões elaborou Nimuendajú desse mapa único em
seu gênero. Em 1935, ele faz a primeira referência conhecida sobre o futuro mapa.40 Dungs
afirma que o segundo exemplar foi enviado ao antropólogo Julian Steward, do Smithsonian
Institution, em 1942, e o terceiro entregue ao Museu Nacional no mesmo ano.41
A antropóloga Berta Ribeiro dá uma versão diferente: “O Mapa, refeito três vezes, a
primeira em 1942 para o Smithsonian Institution, que o publicou no Handbook of South
American Indians (...); o segundo, elaborado para o Museu Goeldi, e o terceiro, para o Museu
Nacional (…)”.42
Em palestra na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 2009, um dos
responsáveis pelo mapa publicado pelo IBGE, George Zarur, cita mais um exemplar, que teria
sido entregue ao então inspetor do SPI em Belém, José Maria da Gama Malcher, e destruído
no incêndio da sede do SPI em 1968.43
Independente dessas divergências quanto à confecção do mapa, ele é um documento
de valor inestimável. Paradoxalmente, passaram-se quase quarenta anos até que alguns
intelectuais brasileiros e a burocracia reconheceram a potencialidade encerrada nesses poucos
metros quadrados de papel colorido a mão.
Na apresentação do mapa impresso em 1981, Berta Ribeiro mostra os possíveis usos
do mapa. A partir dele, seria possível explicar “a grande atomização de etnias (1.400 no Brasil
e países limítrofes), a imensa pulverização lingüística (40 troncos com centenas de línguas e
dialetos)”. Também poderia contribuir para entender os efeitos da penetração de frentes de
colonização em territórios indígenas e as reações das populações locais. Mas também saber
mais a respeito da ecologia cultural indígena.44
Quanto ao produto impresso, Zarur dá a entender que a técnica gráfica em 1981 ainda
não estava em condições de reproduzir fielmente o trabalho de Nimuendajú: “As
classificações não foram alteradas, mas certos sinais do mapa, alguns de difícil leitura e de
quase impossível tratamento gráfico para impressão, foram alterados”.45
39
Ribeiro, Berta, O mapa etno-histórico de Curt Nimuendajú, Revista de Antropologia, Separata do volume
XXV, São Paulo, 1982, p. 178. Dungs diz que a primeira versão media 2,40 por 1,80 metros, Dungs, p. 178.
40
Carta de 22/01/1935 a Estevão de Oliveira, CS, p. 221 e rodapé 164, p, 378.
41
DU, p. 138.
42
Ribeiro, p. 178., hipótese adotada por Thekla Hartmann, em CS, rodapé 164, p. 378.
43
Zarur, George, palestra em 2009 na SBPC in www.georgezarur.com.br acessado em 29/03/2011.
44
Ribeiro, p. 179. A linguista Charlote Emmerich, que traduzira a primeira obra de Nimuendajú, conferiu a
notação fonética e a ortografia dos nomes das tribos.
45
Zarur, Ibidem.
116
Nada disso seria novidade para Nimuendajú, se ainda estivesse vivo. Suas anotações
testemunham que as condições objetivas para o levantamento das informações em campo
também estavam longe do ideal. Faltavam dinheiro e infraestrutura de apoio, sobravam
perseguição política e ataques ideológicos e físicos.
Fiel ao seu autodidatismo, ele viaja sozinho, levando seu equipamento, diz Dungs:
“Toda vez que adentrava um território ou navegava um rio, Nimuendajú desenhava um
croquis a mão na sua caderneta de campanha. Os trajetos eram medidos com o relógio em
minutos e segundos, calculando ainda a velocidade de deslocamento da canoa. Com a bússula
determinava as variações do rio, os pontos de referência e a distância [entre estes]. Às vezes
incluía coordenadas astronômicas”.46
O trabalho solitário de desenhar, escrever, conferir nomes e localizações em sua casa
de Belém também exige tempo e dedicação. Afinal, todos os mapas foram desenhados e
pintados a mão, lembra Berta Ribeiro: “(…) no dizer de Nimuedajú, [ o mapa] quase ocupava
o espaço [todo] do seu local de trabalho, impedindo-o de trabalhar mais de 5 horas seguidas
em sua elaboração, pelo desconforto que representava seu manuseio”.47
46
DU, p. 137. Nimuendajú também levava uma máquina de escrever e um fuzil nas suas expedições.
47
Ribeiro, p. 178.
48
Belém, 25/01/1942, DU p. 329.
49
DU, p. 137. Posteriormente ele desenha um mapa da localização do Terena, anexado ao seu relatório de 1913
ao SPI, mas também cartas para efeitos de desapropriação de terras para grupos indígenas.
50
Ribeiro, p. 178.
117
Igualmente autodidata em Arquelogia, ele contribuiu com duas hipóteses, ambas confirmadas
décadas depois, além de mais duas, tidas como prováveis. Para chegar a isso, ele examina
cuidadosamente as peças achadas pelo cientista Emilio Goeldi, existentes no Museu do
mesmo nome. Ex-diretor desse museu, Nimuendajú também estuda os documentos daquele
cientista. Mas principalmente realiza escavações na Amazônia em condições de trabalho hoje
consideradas impossíveis.
51
Esta frase não foi traduzida, cf. original Streifzüge in Amazonien, Ethnologischer Anzeiger, p. 95, II, 2, 1929.
118
52
Nimuendajú, Excursões pela Amazônia, Revista Antropológica, vol. 44, no.2, p. 3, São Paulo 2001.
53
Carta de Pracutuba, Caviana, 29/8/1924, CS, p. 62.
54
Neves, Eduardo Goes, The relevance of Curt Nimuendajus Archeological Work, em In Pursuit of a past
Amazon, Curt Nimuendajú, Gotemburg, 2004, p. 7, minha tradução. O casal de arqueólogos Betty Meggers e
Cliff Evans pesquisou intensamente a Amazônia de 1950 a 1990.
55
Santarém, 20/04/ 1923, CS, p. 35, a Carlos Estevão.
56
Nimuendaju, Curt, Os Tapajó, Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, vol x, p. 90 a 106, 1949, p, 102. O
trabalho foi concluído em 1939.
119
Tapajó, é preciso mesmo contar com uma fantasia muito fabulosa, pois pode-se esperar tudo
de quem teve a louca idéia de combinar os pés de uma taça ou um relógio de areia com os pés
em forma de lâmina ou tripés”. 57
57
Santarém, 18/01/1925, MG.
58
Santarém, 18/01/1925, CS, p. 73.
59
Neves, p. 6.
120
estilo cerâmico no território brasileiro apresenta tantos elementos em comum com os estilos
da parte meridional da América Central (Chiriqui, Darién) como o dos Tapajó.(...). O caminho
pelo qual chegou este conjunto de elementos até a foz do Tapajós ainda não foi determinado,
devido à grande falta de material proveniente das regiões intermediárias. Parece porém que a
via não foi pela costa e pelo Amazonas acima, porque na região do foz deste rio falta a
maioria daqueles elementos”.60 Meggers e Evans confirmaram essa hipótese em 1957.61
Outra descoberta refere-se à cerâmica por ele achada na região habitada pelos Palikur,
nas proximidades do Oiapoque (AP). A partir da análise desses objetos, Nimuendajú propõe
em 1926 que estes indígenas teriam mantido contato com tribos localizadas nas terras
alagáveis do Amapa e da Guiana francesa. Neves diz que “em 1994, o francês Stephen
Rostain afirma que a cerâmica de Aristé data do século quatro. Se a hipótese de Nimuendajú
for correta, os Palikur e seus antecessores seriam quase o único exemplo [de indígenas] na
área não andina da América do Sul que ocuparam continuamente a mesma área geográfica ao
longo de 17 séculos”.
Nos anos 30, Nimuendajú propõe que diversos pesquisadores façam seus trabalhos na mesma
tribo. Isto permitiria comparar métodos e resultados. Mas essa não é uma sugestão teórica,
lançada ao acaso para que os outros a realizem.
Ele mesmo se joga na fogueira. Em 1937, escreve a Baldus:
(...) Porque o senhor quer desistir por minha causa do seu plano de pesquisar entre o
Kamakan? Na minha opinião, nós dois podemos muito bem pesquisar a mesma tribo, depois
seria duplamente interessante comparar os resultados. Com quase absoluta certeza, não
iriamos nos encontrar em campo (...). Se a proposta não for do seu interesse, peço que
mantenha seus planos, como se nada tivesse ouvido de mim.62
Sem papas na língua, Nimuendajú comenta o episódio com Lowie. A resposta deste é:
“Seria muito bom se a mesma tribo fosse visitada por dois sérios pesquisadores de formação
acadêmica e abordagens diferentes”.63
60
Nimuendajú, Os Tapajó, Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, v. x, p. 105, Belém, 1949.
61
Neves, p. 6 e 7.
62
Belém, 22/11/1937, MN.
63
New Haven, 03/12/1937, DU, p 280.
121
No país dos bacharéis, Nimuendajú recusa várias vezes o convite de entrar na vida
acadêmica. Em 1939, disse não à idéia de virar professor da USP, aventada por Baldus:
“Desculpe-me por não seguir o seu conselho bem intencionado. Não vou me candidatar a um
64
São Paulo, 20/02/1938, MN. Em carta de 16/03/38 a Lowie, Nimuendajú lamenta a decisão: “Ele tem
infelizmente uma abordagem diferente da de nós dois (Nimuendaú e Lowie)“. Na transcrição dessa carta no seu
livro, Dungs erra ao informar que Baldus teria pedido a Nimuendajú que desistisse de sua expedição, DU, p. 285.
65
Carta a Nimuendajú, São Paulo, 01/06/1942, MN. Aparentemente, esta expedição conjunta de Baldus e
Wagley não chegou a acontecer.
66
Melatti, 1985, p. 19. A obra de Jules Henry chama-se Jungle People, New York, J.J. Augustin, 1941.
122
lugar! Eu não caibo numa cátedra [jogo de palavras, pois em alemão, como em português, a
palavra cátedra é a mesma para designar a cadeira]. Eu me acostumei demais a sentar na
esteira dos indígenas. Também tomei a firme decisão de, enquanto me for possível, não
ingressar no serviço público. Não tenho a menor vontade de me submeter a chutes ‘nativistas’
[integralistas] para poder ensinar Etnologia no Brasil. Sou muito intransigente PARA [ser]
COMO ELES QUEREM [no original]”.67
Mesmo em plena crise existencial em 1942, Nimuendajú, aos 59 anos, não é picado
pela mosca azul de vir a ser professor na Escola Livre de Sociologia, em São Paulo, dirigida
pelo seu amigo Baldus.68
67
Belém, 25/05/1939, DU, p. 193.
68
DU, p. 196. Contudo, de novembro de 1941 a agosto de 1944, ele deu aulas, no Museu Paraense Emilio
Goeldi, a cinco moças, entre elas a Lygia Estevão de Oliveira, filha de Carlos Estévão, amigo de Nimuendajú e
diretor do Museu, cf. Nunes Pereira, 1946, p. 59.
6 - Preservar os indígenas e sua cultura
Tanto as pesquisas etnolingüísticas quanto a coleta de lendas e objetos da cultura material são
instrumentos de Curt Nimuendajú para realizar a sua missão: a preservação física dos índios
em suas terras e o incentivo à prática da religião e da cultura da tribo.
Essa é a sua resposta prática ao emocionado apelo do etnólogo alemão Adolf Bastian
(capítulo1) de que é preciso acumular dados sobre povos do mundo inteiro antes de que esses
venham a ser extintas pela evolução da cultura europeia.
Perante a tribo, Nimuendajú é iniciado pelo cacique Bruẽ nos segredos dos Xerente.
Só que Nimuendajú vira a equação pelo avesso: coleta objetos do uso cotidiano e
registra o conhecimento das tribos justamente para evitar o seu desaparecimento compulsório.
É esse contexto que torna compreensível a sua resposta a Fernando de Azevedo. Em outubro
124
1
Belém, 26/02/1936, MN.
2
Viveiros de Castro, As Lendas, p. xx.
125
3
Nimuendajú, Reconhecimento dos rios Içana, Aiari e Uaupés. Relatório apresentando ao Serviço de Proteção
ao Índios do Amazonas e do Acre. 1927, filme 340. MI, p. 106.
126
O manifesto
Durante pouco mais de duas décadas, Nimuendajú observa, acompanha e sofre com as
tragédias tribais e pessoais de indígenas e “neo-brasileiros”. Em 1933, parte da ação prática
para a elaboração de uma política indigenista. Sem pertencer a qualquer partido político ou
corrente de pensamento, ele faz um solitário proselitismo a favor dos indígenas.
Surge, então, o manifesto Algumas considerações sobre o problema do índio no
Brazil, um documento pungente, realista, que vai ao fundo da questão.
São suas reflexões a partir de quase 30 anos de experiência prática que o levam a
afirmar:4
As tribos que hoje ainda conservam o seu equilíbrio primitivo ou são francamente
hostis ou inacessíveis pela natureza do seu território. Não existe em todo o Brasil uma única
tribo que tivesse conseguido restabelecer o seu equilíbrio sobre a base da civilização moderna.
(...) Uma vez que o mero contato com a civilização ASSIM COMO ELA NA REALIDADE É
[sic] causa o desequilíbrio e subsequente desmoronamento das culturas indigenas, nada é de
admirar que todas as tentativas de catequese religiosa, social ou cívica tivessem fracassado
lastimosamente e com total prejuízo para o índio, porquanto elas tiveram por princípio e fim
por o índio em contato mais íntimo possível com esta civilização.
Disso resulta, acrescenta Nimuendajú, que: “(...) nenhuma nação mesmo civilizada
poderá se desfazer das suas normas tradicionais religiosas, morais e sociais sob pena de sofrer
o mesmo desequilíbrio e cair em decadência. Só do índio exige-se o milagre de ele abandonar
toda a sua cultura própria para ‘abraçar a civilização’ sem que isto dê o resultado desastroso
para ele que de fato deu”.5
Ele se coloca contra as duas tendências que, especialmente a partir da proclamação da
República, disputam a hegemonia pelo (des)trato com os indígenas – a ação estatal-militar e a
catequisação religiosa.
Afinal, ambas são reflexos diferenciados do mesmo fenômeno de desconhecimento da
cultura indígena. Somente nos anos 70 do século vinte surgem etnólogos e, posteriormente,
4
Nimuendajú, Algumas considerações sobre o problema do índio no Brazil, MN, p. 1, 21/10/1933, eu mudei a
pontuação para facilitar a leitura.
5
Ibid. p. 2. Quase vinte anos mais tarde, a pensadora alemã naturalizada norte-americana Hannah Arendt
descreve a situação dos judeus na Europa dos séculos 18 e 19 com uma imagem muito parecida: “A
desmoralizante exigência [feita a judeus] de se afastarem do seu próprio povo estava ligada à condição, que só se
realizaria como mentira, de serem diferentes e melhores do que os outros [membros da sociedade]”, cf. Arendt,
p. 146.
127
as Ong como novas forças políticas que entram, parcialmente, em choque com esses poderes
estabelecidos há séculos.
Nimuendajú pode ser considerado o precursor dessa terceira alternativa: a alternativa
civil, desligada de uma religião e do Estado, mas, principalmente, alimentada por uma visão
que considera central o elemento “indígena”, que não é necessariamente nem cristão nem
ocidental.
Dentro dessa perspectiva, torna-se cristalina sua corajosa e inédita posição no Brasil
dos anos 30, que mexe em duas feridas do nacionalismo:
É preciso reconhecer às tribos de índios o direito de [a] uma existência étnica própria.
Enquanto todos se chegam ao índio só com a preocupação estulta de querer corrigi-lo em tudo
o que difere do civilizado, os fracassos e as decepções continuarão. Ao Brasil compete
exercer um protetorado sobre as tribos que ainda existem encravadas no seu território. Com a
usurpação das terras dos índios pelos portugueses e seus sucessores, os brasileiros, recaiu
128
sobre o Governo do Brasil a obrigação moral e histórica de velar pela sorte dos que foram
espoliados em proveito da nova nacionalidade que se formou e de protegê-los contra a
decadência em que os lançou o choque das culturas. Esta fatalidade que os índios sofrem por
si só impõe ao Governo a obrigação de cuidar da sua conservação e de considerar esta uma
questão de honra, sem visar lucro material qualquer.
Os militares
Seu manifesto contraria aqueles que ditam e aplicam a política estatal na questão indígena na
primeira metade do século 20. Em meio a uma complexa rede de tendências civis, religiosas,
intelectuais, nacionalistas, fascistas e liberais, a hegemonia é claramente militar.
O seu representante é um descendente de indígenas, o militar Cândido Rondon. É ele
quem, após tornar-se famoso pela construção das linhas telegráficas de Mato Grosso a Goiás,
cria em 1910 o Serviço de Proteção ao Índio. É um poder tutelar militar, sendo Rondon o seu
símbolo, afirma, em 1995, o antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima:6
A imagem do grande cerco de paz revela-se em toda sua complexidade nas palavras do
militar [Rondon], sumarizando numerosos mecanismos ainda hoje em ação: técnica militar de
pressionamento e forma de manter a vigilância, ao mesmo tempo assédio de um inimigo
visando cortar-lhe a liberdade de circulação, os meios de suprimento e a reprodução social
independente (sem implicar o ataque dos sitiantes), além de defesa contra os de fora do cerco,
como num cercado para as crianças, estabelecendo limites e constrições aos por ele
6
Lima, Antonio Carlos de Souza, Um Grande Cerco de Paz. Poder Tutelar, Indianidade e Formação do Estado
no Brasil, 1995. Vozes, p. 131.
129
Este parecer do coronel Távora leva a data de 30 de outubro de 1933. Uma semana
antes, Nimuendajú tinha protocolado o seu manifesto no SPI. Nele, contesta diretamente o
dogma da existência do “índio brasileiro”, defendida pelo coronel: “Existem tribos de índios
dentro dos limites [territoriais] do Brasil, mas não índios brasileiros, porquanto tudo as
distingue profundamente da população neo-brasileira que forma e mantém a Republica dos
Estados Unidos do Brasil”.8
As diferenças no aspecto físico, na cultura, na língua, na religião e organização social
fazem que as tribos formem “pequenos enclaves de povos estranhos ao povo dominante,
povos minúsculos mas muito bem caracterizados como tais”.
Nimuendajú ousa formular nesse manifesto algo que soa impossível e indesejável a
muitas pessoas – que os indígenas localizados no Brasil tenham uma outra pátria. O exemplo
concreto apresentado em 1933 é algo que, mesmo hoje, alguns setores da opinião pública
brasileira consideram ser um ato de lesa-pátria: “Desde dos tempos da descoberta habita a
tribo Tukuna [Ticuna] no Rio Solimões. A fronteira entre o Brasil e o Peru que parte de
Tabatinga cortou pelo meio o seu território. O tratado Salomon-Lozano entregou outra fatia
do seu território à Colombia. Haverá quem acredita que estes Tukuna, em cumprimento
7
Sedoc, m. 334, f. 411-414, cf. Lima, p. 302. Em seus 57 anos de existência, o SPI passou por quatro
Ministérios: da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC, 1910/30); do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC,
1930/34); da Guerra (1934/39); e da Agricultura (1939/67). Em 1967, foi substituído pela Funai.
8
Nimuendajú, Algumas considerações, p. 3.
130
daqueles tratados de cujas conveniências eles nem sabem nem entendem, se tornaram
brasileiros, peruanos e colombianos?”.
A resposta de Nimuendajú, de 1933, pode ser conferida ainda hoje por quem visitar a
região do Alto Solimões:9
A patria amada deles é e será sempre o território antigo da sua tribo de qualquer lado
daquelas fronteiras. Os seus patrícios serão os que falam a mesma língua e seguem os mesmos
costumes em qualquer das três repúblicas, e brasileiros, peruanos e colombianos são para eles
três qualidades de invasores tão terrivelmente parecidos entre si que, para todos os três, a
língua Tukuna [sic] só possui um termo. Em toda parte as fronteiras internacionais foram
traçada sem a menor consideração dos limites das tribos. (...) Mas é prova de muita
ingenuidade esperar patriotismo da parte dos membros das tribos assim divididas e de querer
constitui-los em guardas de fronteira, como consta que agora se esteja projetando.
Cioso de seus princípios, Nimuendajú mantém, ao longo dos seus 40 anos dedicados aos
índios, uma instável relação dialética com o todo-poderoso SPI.11
9
Ibidem. Em 1938, o tenente-coronel Cândido Rondon iria intermediar, com sucesso, a disputa de limites entre
os governos do Peru e da Colômbia na área ticuna.
10
Lima, p. 267 e 286.
11
Em 1910, ano da criação do SPI, ingressa na Inspetoria de São Paulo. Cinco anos depois, é demitido. Volta em
1921, novamente demitido dois anos mais tarde. É contratado pela terceira vez em 1944 pelo general Rondon. A
131
Ao mesmo tempo, justamente por conhecer o órgão por dentro, enumera os seus
problemas: “Um deles é congênito: o SPI nasceu como uma cruzada patriótica, desprezando a
base científica que poderia ter facilitado o conhecimento do universo indígena. O segundo é
que o órgão não contava com a solidariedade dos índios, porque estes sabiam intuitivamente
que os brancos não estavam de acordo com sua religião e seus costumes”.
No seu manifesto de 1933, ele resume as carências do SPI, antevendo algumas das
mazelas do seu futuro sucessor institucional, a Funai: “a falta de conhecimento da cultura dos
índios da parte dos seus funcionários; a falta de autoridade e [de] força executiva para
defender os índios contra os seus inimigos que muitas vezes são pessoas de influência local no
sertão; a falta de recursos materiais para poder agir em zonas de difícil accesso”.
Ele faz um claro e doloroso diagnóstico do SPI, que inclui fatores estruturais da
sociedade brasileira e decisões político-ideológicas tomadas pelos grupos que usufruem do
poder. Nimuendajú enumera a inestabilidade das instituições republicanas, as “idéias erradas
e atrasadas” que a opinião pública tem dos indígenas, a insuficiência de recursos financeiros,
a dispersão das tribos e “a deficiência geral da realização do Direito nos sertões”.13
última se dá em 1945, como Delegado de Índios no Alto Solimões, cf. Oliveira Filho, p. 261, citando portaria
05, de 11/45, da 1a. IR, MI. Nimuendajú morre portanto sendo Delegado de Índios contratado pelo SPI.
12
Algumas considerações, p. 6.
13
Ibidem. Quanto ao último item, Darcy Ribeiro escreve anos mais tarde que o SPI representou „a criação de
uma instituição de imposição da lei, exatamente nos sertões mais ermos onde ela jamais pudera imperar“, cf.
Darcy Ribeiro, Os índios e a Civilização, Editora Vozes, 1982.
132
Tukuna [Ticuna] que Rondon libertou da servidão por ocasião da sua estada em Leticia
[Colômbia]. A primeira pergunta que eles me fizeram foi pelo General. É impressionante
como este homem, onde quer que passe, trata de beneficiar os índios”.14
Mas também o critica, em 1935, por ocasião da discussão de um novo regulamento
para o SPI, que fora incorporado à Inspetoria de Fronteiras do Ministério da Guerra: “fiquei
desapontadissimo! Em vez de focar com nitidez e resolutamente os pontos mais necessários
para a garantia da existência do índio, encheram linguiça com futilidades administrativas;
até se lembraram de mandar introduzir o uso de fósforos entre os índios! O projeto é tão
bonitinho - fica-se enlevado com tanto patriotismo e humanidade!”.15
O novo regulamento seria, de fato, aprovado no ano seguinte. Antes disso,
Nimuendajú já adverte que tudo é fogo de palha:
Mas ele [o regulamento] nunca será executado porque a sua realização exigiria
somas fabulosas [de dinheiro] que o S. P. I. nunca terá à disposição, e mais empregados do
que os índios existem em todo o Brasil. As poucas emendazinhas que o Rondon fez
referem-se a outras tantas futilidades! E ainda, num telegrama anexo, ele fala de boca cheia
dos ‘20 anos de experiências que o S. P I. tem!’ Se é isto o que a experiência lhe ensinou é
porque ele tambem é daqueles que são incapazes de corrigir os seus erros: marca Rabelo.16
Durante anos, Nimuendajú evita qualquer contato sequer epistolar com Rondon, como
fica patente na sua carta de 1920 enviada ao diretor do SPI, Luiz Bueno Horta Barbosa. Nela,
o pesquisador diz não dirigir-se diretamente a Rondon para pedir informações sobre os
indígenas de Rondônia porque não saberia “qual [é] a opinião que ele [Rondon] formou a
respeito da tal de espionagem minha”.17
A referência a uma suposta “espionagem” de Nimuendajú se refere, possivelmente, ao
fato da Alemanha, seu país de nascimento, ter invadido a Bélgica em 1915, durante a Primeira
Guerra Mundial. Na época no SPI, ele foi demitido, segundo Nimuendajú por esse motivo.
14
Letícia, (Colômbia), 27/03/1941, p. 288, CS.
15
São Luiz do Maranhão, 21/08/1935, CS, p. 239.
16
Ibid. Trata-se de Manuel Rabelo, que Nimuendajú já criticara durante a “pacificação” dos Kaingang, em 1912.
Depois de um ataque dos Coroado, o acampamento foi abandonado e o SPI arquivou o projeto “As dívidas
acumuladas pela comissão sob a miserável administração de Rabello somavam muitos contos de réis”, in
Nimuendajú, Carta a Hugo Gensch, p. 3, MI. Em 1932, Rabelo teria articulado uma reunião de ministros para
viabilizar a transferência do SPI ao Ministério da Guerra, o que aconteceu dois anos mais tarde, cf. Donald
O’Reilly, Rondon: biography of a Brazilian republican Armee commander, dissertação de douturado na
University of Michigan, in Lima, p. 272. Em 1939, ele é apresentado pelo jornal O Radical como general e chefe
do SPI, cf. López Garcés.
17
Belém 23/07/1920 p. 3, MI, microfilme 397.
133
Quase quinze anos mais tarde depois de mandar a carta a Horta Barbosa, sua atitude
permanece a mesma: “Aqui tivemos notícia que Rondon virá de Leticia para se encontrar com
a família em Belém, Como eu mesmo estou sujo com ele, dei ao meu amigo Carlos Estevão
todos os dados necessários para fazer uma exposição sobre os índios (...)”.18
Porém, em 1943, o cenário já é outro. Nimuendajú dirige-se a Rondon em tom
amistoso: “É com grande satisfação que aceito o seu chamado para colaborar pela quarta vez
[com] o SPI, de cujos princípios nunca me afastei, mesmo que existam intervalos entre as
minhas atividades [no SPI]. (...) Tenha a gentileza de me esclarecer a composição da
expedição e que funções pensa me atribuir”.19
No lugar de uma expedição, é convidado por Rondon para assumir a direção das
investigações etnológicas do Conselho Nacional de Proteção aos Índios. O reencontro pessoal
com Rondon acontece em julho de 1943, no Rio de Janeiro. Porém, sua saúde precária o
impede de seguir participando de expedições e de ser o primeiro etnólogo trabalhando no SPI.
Mesmo profundamente desiludido com a situação, Nimuendajú cita uma boa nova:
18
Carta a Marcelino Miranda, funcionário do SPI em Barra do Corda, 20/01/1936, Welper, p. 93.
19
A data está incompleta, legível é apenas 8/6/, mas, devido à temática, deve ser de 1943, DU, p. 214.
134
“Isto [a sua não participação no CNPI] atingiu com igual dureza o general Rondon, que nessa
época tornou-se um verdadeiro amigo meu”.20
Em 1945, pouco dias antes de morrer, ele cita Rondon numa carta ao jovem etnólogo
Harald Schultz, responsável pela Seção Etnográfica do CNPI: “Quanto ao vocabulário do
general Rondon, digo-lhe que, pelo amor de Deus, não vá por algo assim logo (bater à porta
do) ao coronel Amilcar toda vez que que lhe escrevo a respeito!”21
A derradeira amizade que Nimuendajú atribui a Rondon não se vê espelhada na
memória histórica brasileira. Um sinal disto é o fato de que o nome de Nimuendajú não
aparece oficialmente em nenhuma das três “pacificações” por ele empreendidas.
Até hoje, historiadores e estudiosos atribuem estas ações ao então general Rondon,
genericamente ao SPI ou a outras pessoas. Um ex-chefe de Nimuendajú, Luiz Bueno Horta
Barbosa, cita duas dessas empreitadas (a dos Coroado e dos Parintintin), mas os louros vão
“para a escola e para o fundador”, em alusão a Rondon, que, em 1955, recebeu a patente de
marechal, a mais elevada do exército brasileiro.22
A primeira “pacificação” se dá com os Coroado, no interior de São Paulo.
Mal chegado ao recém cirado SPI, Nimuendajú inicia os contatos no final de 1911,
mas durante o desenrolar da ação vê-se obrigado a reassumir a direção do posto indígena de
Araribá (SP). Assim, não leva até o fim a mútua aproximação amistosa. A pedido dos
Coroado, porém, em abril de 1912, vai ao acampamento destes indígenas, que queriam
conhecê-lo pessoalmente.
Ele começa uma segunda “pacificação” em 1915, quando, a pedido da Inspetoria de
Índios do Maranhão, procura os membros da tribo Urubu. O episódio é praticamente
desconhecido. Uma das poucas referências existentes é do próprio Nimuendajú numa carta
que achei no Museu de Gotemburgo, na Suécia.
Seu relato da pacificação às margens do rio Gurupi é sucinto: “(...) No momento em
que esses indígenas estavam contentes ao ponto de, através de sinais, me pedirem facões, fui
convocado urgentemente [à sede da Inspetoria], demitido e responsabilizado pelo ataque
alemão à Bélgica!!!”.23
20
Belém, 06/11/1943, DU, p. 323. É, contudo, nessa ocasião contratado para colaborar com o general Rondon no
CNPI. Este órgão fora criado em 1939 para planejar e estudar “as questões que se relacionam com a assistência e
proteção aos selvícolas, seus costumes e línguas”, cf. Lima, p. 286.
21
Santa Rita do Weil, 07/12/1945, DU, p.219.
22
Barbosa, Pelo Índio e pela sua proteção oficial, exposição feita ao ministro da Agricultura, Miguel Calmon du
Pin e Almeida, em 1923 e publicada pela Comissão Rondon nº 86, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p. 4,
1947.
23
Belém, 07/02/1925, carta a Nordeskiöld, MG. Em 1915, o SPI sofrera reformas, resultantes das consequências
econômicas da Primeira Guerra Mundial, incluindo demissão de funcionários, cf. Lima, p. 110.
135
O “pecado da pacificação”
A terceira e última “pacificação” é documentada por ele mesmo. Desde finais do século 19, os
Parintintin habitam uma região de aproximadamente 22 mil quilômetros quadrados entre os
rios Madeira, Machado e Marmelos, no Amazonas. Ao longo desses anos, sucedem-se
ataques de seringueiros, que invadiram as terras indígenas, que se defendem, ganhando fama
de cruéis entre os moradores da região.
24
Nimuendajú, Os índios Parintintin do rio Madeira, Journal de la Societé des Américanistes de Paris, Nouvelle
serie, XVI, p. 218.
25
Mais de 30 anos depois, o escritor português Ferreira de Castro narra um diálogo fictício entre Nimuendajú e o
médico carioca Bonifácio, que o aconselha a voltar para casa e tratar-se da “anemia”, cf. Ferreira de Castro, O
instinto supremo, Editora Civilização Brasileira, 1968, p. 199.
26
Nunes Pereira, Curt Nimuendaju: síntese de uma vida e de uma obra, Belém, 1946, p. 35.
136
Antes de tudo, expliquei aos índios que nós formávamos uma empresa particular,
avulsa, mas que havia trás de nós um poderoso chefe, cujas ordens cumpríamos e que era o
senhor de todas estas coisas que eles estavam recebendo de nossas mãos e de muito mais, e
que este chefe não queria que fizessemos guerra uns aos outros. Levei-os ao portão e aí
expliquei-lhes, in loco [sic], porque, naquele assalto de 28 de maio de 1922, não fiz fogo
sobre eles quando avançavam contra a casa, mas saí ao encontro deles com presentes nas
mãos. Eles ouviram tudo com a maior atenção (…) e depois prometeram solenemente:
acabou-se a nossa guerra contra vos! Com grande rapidez a notícia percorreu a tribo toda.
Índios que eu nunca tinha visto chegavam ao posto, levaram-me para o terreiro e diante de
todos pediam: “Conta do nosso chefe! Tu mesmo falaste com ele? O que foi que ele te disse?
O que ele manda dizer a nós?”.27
Em 17 de janeiro [de 1923] deixei novamente o posto, ainda com grandes esperanças
para o futuro. Mas enquanto eu no sertão ainda estava trabalhando, em Manaus e no Rio de
27
Nimuendajú, Curt, Os indios Parintintin, p. 291.
28
Nunes Pereira, Curt Nimuendaju: síntese de uma vida e de uma obra, pp. 36 e 35.
137
Janeiro está [já fora] decidida a sua sorte. Sem recursos para concluir a obra de pacificação, o
inspetor Bento Lemos pediu-me, como meu último serviço, que desse as disposições
adequadas para a retirada da guarnição do posto, e com isto me vi dispensado.29
Nos bastidores, sua indignação não conhece limites. Em carta a José Garcia, sertanista
que assumira o comando do posto para concluir a retirada, ele confessa a sua amarga
desilusão: “Cada vez mais admiro a sua tenacidade. Eu não teria aguentado nem a centésima
parte disto. Mas não se iluda. Não espere jamais recompensa pelos sacrifícios! Ninguém lhe
fará justiça; pelo contrário, você será o bode expiatório e servirá para desculpar os erros dos
outros. Por mais que me entristeça a sorte dos meus pobres companheiros não posso ir em
socorro deles, porque já me convenci que o maior mal da pacificação foi este de ter sido eu, o
alemão, [sic] o chefe dela. Portanto, é preciso que eu desapareça. E desapareci”.
Curiosamente, diz acreditar no senso de justiça do general Rondon: “Faço, no entanto,
todo o possível para que a sua situação desesperada, com todas as minúcias, chegue ao
conhecimento do general Rondon. Talvez... Ele já me fez um dia justiça, a mim.”30 Será que
“a justiça” que Rondon fez foi readmiti-lo, em 1921, no SPI, depois da “suspeita de
espionagem” de 1915?
Nunes Pereira fala dos remorsos de Nimuendajú, sugerindo que a esperteza do já
calejado sertanista na tentativa de “pacificação“ desses indígenas teria gerado um inesperado
efeito psicológico: “Curt Nimuendajú (…) tinha arrependimento de haver aproveitado, com
incrível tática, a rebeldia dos jovens Parintintin que percebera vir se avolumando contra os
velhos da tribo”.31
29
Os índios Parintintin, pp. 220 e 211.
30
Nunes Pereira, p. 36.
31
Ibid. p. 38.
138
32
Carta a Nordenskiöld, Belém, 22/10/1925, MG.
33
Rydén, Stig, introdução do livro In Pursuit of the Past Amazon, Curt Nimuendajú, 2004, Gotemburgo, p. 9.
34
Gusinde, Martin, Beitrag zur Forschungsgeschichte der Naturvölker Südamerikas, Archiv für Volkerkunde, v.
I, Viena, 1946, p. 61.
139
Mesmo assim – ou por isso mesmo – persiste no objetivo. Ao longo de seis anos,
utiliza outro método com outra tribo em outra região do Brasil. Ele quer garantir as terras dos
Canela no Maranhão, que consegue mensurar pessoalmente para facilitar uma futura
demarcação. Os detalhes estão no capítulo 13 – Cosmogonias indígenas adotam Nimuendajú.
Mesmo em meio a tantos dissabores que se acumulam ao longo dos anos, Nimuendajú
também vivencia momentos excepcionais entre os indígenas.
À margem de um afluente do rio Madeira, na região dos Lagos do Sampaio, ele assiste
como os Múra: “(...) queriam à fina força que me demorasse entre eles para ajudá-los na
defesa dos seus direitos contra os intrusos. Chegaram mesmo a me oferecer a pouca criação
que tinham, queriam me dar castanhas, etc. e iam para Manaus para reclamar na Inspetoria
dos Indios a minha volta para o meio deles!”36
Anteontem e ontem assisti a uma dança em casa do pajé Lexan Yuyú (fotografado de
frente e de lado, sentado no seu banquinho em forma de pássaro). Cachiri muito! Bebi um
bocado e estava bom - bom mêmo [sic]. Mas o resultado foi que depois, quando o ar se
encheu com o cheiro do cachiri misturado com o aroma do urucu fresco, quando os maracás
tiniam nas pontas das varas compridas e o terreiro estremeceu ao ritmo da dança, me voltou
tão vivamente a recordação daquele tempo quando eu fiquei homem entre os Guarani que não
pude mais resistir: tirei os sapatos e entrei no meio. (Que vergonha para os meus cabelos
brancos!). Ainda hoje estou cansado. Mas foi bonito.37
35
Lima, p. 175.
36
Borba, 10/04/1926, CS, p. 92.
37
Arucauá, 23/05/1925, CS, p. 78.
140
(…) toda a população estava trabalhando na roça; só a velha mãe do capitão com a
irmã dela, mais velha ainda, me apareceram. Ela colocou um banquinho para mim e eu me
sentei. As duas velhas acocoram-se na minha frente e começaram a chorar: “Meu filho, eu
estou com pena de você! Você está magro, meu filho! Você passou mal, meu filho?”. Depois
38
Barra do Corda, 01/04/1929, CS, p. 141. O nome Seliemtói leva um til no segundo i, cf. CS. p. 158.
141
falou-me da morte de uma neta e ambas as velhas romperam em novos prantos. Finalmente,
ela perguntou: “Você chegou, meu filho?” “Cheguei, minha mãe, vim para ver vocês”.39
Em Santa Rita do Weil, visita o lugar sagrado dos Ticuna – um igarapé que é o palco
da lenda dos heróis gêmeos e onde um vidente na mesma época anunciara uma profecia. Logo
após, é tido como representante do herói cultural Dyoé e colocado para dirimir complexas
questões ligadas, por exemplo, à prática do incesto entre membros da tribo.40
Sua visão dos valores da cultura indígena leva-o a vetar, com sucesso, o envio pelo
SPI de uma professora a uma aldeia Ticuna. Nimuendajú argumenta que, antes de querer
ensinar o alfabeto e o hino nacional, ela deveria aprender com os indios “para chegar àquela
compreensão apreciativa da cultura deles que eu considero indispensável para o
estabelecimento da solidariedade entre ela, professora, e os indios, sem a qual todo o mais o
trabalho seria perdido”.41
Por compreender a alma indígena, ele mantém o convívio amistoso, mesmo correndo o
risco de ser devorado no sentido mais concreto da palavra:
Não vi os Parintintin comerem carne humana, mas, das maneira que os conheço, acho-
os muito capazes de o fazer, e ocasionalmente ouvi de sua própria boca coisas que tornam
provável a existência deste costume entre eles. Assim me perguntavam com a maior
naturalidade se não comíamos os [indígenas das tribos] Múra, Pirahá e afirmavam, sem o
menor escrúpulo, que eles mesmo o faziam. (...) Tawari, um moço muito amável e amigo
nosso, zangou-se um dia, na saída do posto, sem razão explicável [aparente] e, sentado ao
meu lado, me disse baixinho, mas com um olhar cheio de ódio: “Os teus pés eu quero comer!
Os teus olhos eu quero comer! É bom!”.42
Os religiosos
Nimuendajú discorda frontalmente da catequese religiosa. Logo nos seus primeiros contatos
com indígenas, em 1913, conhece um padre capuchino no interior de São Paulo. Este mostra-
39
Carolina, 09/03/ 1930, CS, p. 149.
40
Igarapé da Rita, 28/07/1941, DU, p. 310.
41
Igarapé da Rita, 09/05/1942, CS, p. 306. O “Dr. Xerez” é Sebastião Martins Xerez, inspetor regional do SPI
em Manaus nessa época, cf. Lima, quadro 2, s. n.
42
Nimuendajú, Os índios Parintintin do rio Madeira, p. 233. Com os Xipaia, tem experiência parecida: “Desde
que eu lhes dei a entender que eu considero a antropofagia algo perfeitamente natural e evidente, nenhum Sipaia
negou a sua antiga forma de viver; pelo contrário, eles têm me contado vários casos, sem eu ter pedido”.
Nimuendajú, Brückstücke aus Religion und Überlieferung der Sipaia-Indianer, Anthropos, v. 14-15, 1919-1920,
p. 1023.
142
se “visivelmentre contrariado e com bastante medo de febres e dos indios (...) A opinião que
ele faz dos Ofaié e que só pode ser a dos seus colegas, visto ele não ter experiência própria
nenhuma, é péssima, e parecia ele estar convencido de que nada se conseguiria com estes
‘bugres”.43
Anos mais tarde, relata o que acontece entre os indígenas Paiguy-piranga, do rio
Maracá, afluente da margem esquerda do rio Amazonas, ao sudeste do Estado do Amapá:
“Um padre, patrício meu, cometeu a horrenda estupidez de batiza-los e de casar a 2 mulheres
da tribu com seringueiros, sem que cada uma das duas partes entendesse uma só palavra da
língua do outro”.44
Ao mesmo tempo, reconhece os elementos positivos da ação missionária. Às margens
do rio Uapés, afluente do rio Negro, no atual município de São Gabriel da Cachoeira,
Nimuendajú elogia os padres.
Além de não usarem a violência contra os índios Tarianá e libertado vários deles das
mãos dos seus opressores, os salesianos “pagam aos índios pelos gêneros e serviços que estes
fornecem pelo menos melhor do que os outros negociantes e patrões, tanto que nunca lhes
faltam braços, queixando-se os negociantes já amargamente que nas vizinhanças da missão
hoje se torna difícil a cobrança [pagamento] pela taxa (...). Junte-se a isso o ensino primário e
profissional e a assistência médica que lhes fornecem aos indios gratuitamente, forçoso é
reconhecer que numa zona onde o índio só recebe ultrajes de toda parte a missão salesiana
representa uma enorme vantagem para este”.45
Nessa missão salesiana, contudo, o indígena sofre um tipo muito mais sutil de
perseguição.
Ele vê-se prejudicado pela “comprovada incapacidade [do missionário] de
compreender e fazer justiça a uma cultura qualquer que não seja a pretensa cultura ‘cristã’. A
intolerância inerente ao seu ofício, que os obriga a ver em cada índio um objeto de conversão
religiosa, incompatibliza-os com o cargo de protetor da individualidade indígena. (...) O índio
no seu estado de cultura primitiva causa-lhes medo e nojo”.
43
Porto Tibiriçá, 08/01/1913, carta ao diretor do SPI em SP, Luiz Bueno Horta Barboza, MI.
44
Relatório ao diretor geral do SPI, Luiz Bueno Horta Barbosa, Belém 23/07/1920, promovido ao cargo em
1919, cf. p. 2, MI, filme 397. Como Nimuendajú só adota a nacionalidade brasileira em 1922, o “patrício” é um
sacerdote alemão.
45
Relatório à Inspectoria do SPI/Am e AC, Belém, 27/09/1927, MI, p. 102, filme 340. Na década de 40, o SPI
adota essa política de criar postos de vendas de produtos alimentícios para os indígenas. No mesmo relatório, ele
cita o livro Missões Salesianas no Amazonas, do monsenhor Pedro Massa, que conta a situação de um sacerdote
que perdera num naufrágio os gêneros alimentícios que levava a bordo: “E o heróico salesiano [sentado] de
cócoras fazia camaradagem com os pobres indígenas, servindo-se daquela nauseante [nojenta] refeição servida
numa vasilha comum!”.
143
Eram mais de 120 índios. Não me fartei de observá-los durante toda a noite nas suas
danças ao clarão da fogueira em redor dos possantes esteios da enorme maloca. Quase chorei
de raiva, indignação e impotência quando me lembrava [sic] que seria a última festa. Porque
eu ia embora e o “padre João” ficava.46
A ordem de Cristo – “ide e ensinai” – é executada por MIM [refere-se a Banner] (ou
por NÓS), onde, em quem, mesmo com que resultados [isso se realiza] não importa, porque
EU [Banner] recebo por isso as graças divinas, tanto se eu viver e obtiver um bom resultado
como também se eu morrer num fracasso. (...) esta orientação me parece por demais
egocêntrica, e a indiferença para com o resultado prático – que não sejam as graças divinas
concedidas a MIM [Banner] – é a sua consequência natural. Também Horace via nos Gorotire
pouco mais do que um mero pano de fundo para a sua experiência religiosa DELE. Tinha-os
em conta de seres humanos e não de “bichos”, mas as manifestações da cultura indígena lhe
pareciam na melhor das hipóteses absursidades [sic] caprichosas que não mereciam atenção
46
São Gabriel, 22/06/1927, CS, p. 112. Ele propõe a criação de um posto do SPI na área para acabar com essa
situação. A educação religiosa é coisa suspeita para Nimuendajú. Ao tuxuá (cacique) ticuna Nino Ataíde, ele
sugere que mande seus filhos estudarem entre os padres, mas não os deixe em conventos ou claustros, cf. carta a
Nino, Belém, 15/04/1944, p. 184, DU.
47
Nimuendajú, Viagem de reconhecimento aos índios Gorotire-Kayapó do Rio Xingu, 1939-1940, 18/04/1940,
filme 115, p. 11, MI. Na igreja metodista de Grappenhall, na Inglaterra, existe um mural em memória de Horace
Banner e sua esposa, Eva, cf. http://www.grappenhall-im-church.org.uk, acessado em 06/02/2011.
144
nem a serem tomadas a sério, sendo preferível varre-las quanto [antes] para o lixo do passado
tenebroso destes futuros cristãos.
Tem uma questão, que nem a religião cristã nem a civilização ocidental resolvem, e
que indigna Nimuendajú muito profundamente: o alcoolismo que se espalha entre os
indígenas. Sua atitude durante a festa de iniciação de adolescentes numa aldeia apinajé ilustra
isso. Os vendedores de cachaça sitiam o rancho onde se achavam os rapazes em reclusão, que,
embriagados, ameaçam as moças que também participam da ceremônia tribal.
O bom etnólogo dessa época é aquele que, em nome da ciência supostamente isenta,
não toma partido na vida da tribo. Mas ele decide romper esta tradição:
48
Barra do Corda, 03/07/1936, CS, p. 256. Refere-se à circular 2970 da Repartição dos Assuntos dos Indios,
Ministério do Interior dos Estados Unidos, de 03/01/1934, cf. rodapé 186, p. 379. CS.
49
Barra do Corda, 30/06/1930, CS. p. 167. Kokaipó é o seu nome entre os Apinayé.
145
(...) pouco a pouco acordou neles o antigo sangue cherente [sic] e eles começaram a
demonstrar prazer nas cerimônias dos tempos passados. Tiravam a roupa, pintavam-se e
faziam outra vez corridas de tora, também as mulheres e moças. E as mais afoitas entre estas
últimas eram duas que tinham sido educadas pelas freiras em Conceição do Araguaia. A
princípio sempre salientavam que faziam tudo exclusivamente para mim e com grande
sacrifício; agora tudo já corria por si mesmo, e quando uma vez fui à [aldeia] Piabanha
continuaram as corridas na minha ausência.
As contradições de Nimuendajú
50
Boa Vista, 29/03/1932, CS. p 185. Nesse ano, a aldeia era parte do Estado do Maranhão. Hoje está localizada
entre os municípios de Goiatins e Itacajá, TO.
51
Boa Vista, 18/06/1937, CS, p. 265.
146
chegam quando a tribo começa a ficar desesperada porque tem que plantar ou senão vai passar
fome meses depois.
Nimuendajú decide filmar a qualquer custo:52
Os indios tinham retardado por minha causa o fim da sua festa anual, que era o Tep-
yarkwa, e assim ainda pude apanhar algumas cenas dela. (…) Assim, acabado o Tep-yarkwa,
cujo final já retardaram em atenção a mim até a chegada do filme, queriam imediatamente
espalhar-se, para cada família tratar da sua lavoura. Por mais louvável e justo que eu achasse
este zelo deles, teria sido um desastre se eu tivesse voltado com dois rolos de filme exposto
apenas. Assim, a peso de 4 bois e mais alguma coisa, mantive-os juntos e em disposição de
festa durante mais uma semana, conseguindo assim mais alguns motivos para a câmera.
ciocoicoi
52
Pedreira, 01/09/1936, CS, p. 257.
147
Em outra aldeia, Nimuendajú reconhece que dar presentes aos índios é negativo:53
Fazer ao índio um presente é quase sempre o meio mais seguro para afugentá-lo.
Como ele não acredita em atos desinteressados do “branco” para com ele, fica logo
atemorizado pela idéia de que novos planos ocultos e traiçoeiros não esteja [o branco]
tramando e que despropósitos e não vai exigir mais tarde ainda em troca do tal presente: e
evita daí diante de aparecer-lhe. Quis tirar a contraprova disso e durante a minha visita na
aldeia Caruru não dei o mínimo presente a ninguém. O desembaraço dos índios deste lugar foi
notavelmente maior do que dos de Yutica, onde eu adotara ainda a praxe da liberalidade.
Para mim pessoalmente, acostumado à convivência íntima com os índios e das tribos e
regiões mais diferentes, a permanência entre os Içana e os Uaupés foi muitas vezes um
verdadeiro martírio, vendo-me sem mais nem menos e com a maior naturalidade tratado como
criminoso, perverso e bruto.
53
Nimuendajú, Reconhecimento dos rios Içana, Aiari e Uaupés. Relatório apresentado ao Serviço de Proteção
aos Índios do Amazonas e do Acre. 1927, p. 96, microfilme 340, MI.
7 - O retorno à Europa, o nazismo
Aos 51 anos de idade, 31 dos quais no Brasil, Nimuendajú volta à Alemanha em 1934. Nos
meses antes de embarcar, não esconde sua profunda insatisfação com as autoridades do país
que adotara voluntariamente. Talvez a perspectiva de voltar pela primeira e única vez à sua
pátria de nascimento teria influenciado o seu estado de espírito.
Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional e sua grande aliada nos
confrontos com o Conselho de Fiscalização, pergunta abertamente: “O Dr. [Alfred] Metreaux
(…) disse-me que (…) o senhor também está pensando em sair do Brasil. Mande-me contar o
que pensa de positivo sobre o caso. Não imagina o quanto tenho pensado nestes últimos três
meses em trabalharmos de comum acordo, mas nada se resolve de definitivo e as
possibilidades nunca passam de mera expectativa”.1
A resposta é igualmente clara: “(…) pelo gosto, ou antes pelo desgosto meu, eu
deixaria quanto antes o Brazil [sic] para procurar novo campo de trabalho no Peru, na Bolívia
ou em qualquer outra republica vizinha, porque preferiria ser um estrangeiro de primeira
1
Rio de Janeiro, 25/01/1934, MN.
149
categoria lá, a ser um cidadão de segunda aqui. Foi o Dr. Carlos Estevão que tenho em conta
de meu melhor amigo que me fez desistir da execução imediata deste plano, mas continuo
‘com o trinco na mão”.2
No dia do embarque em Belém rumo à Alemanha e Suécia, em nova missiva conta a
dona Heloisa que a viagem à Europa é a sua chance de estabelecer novos contatos e se mudar
do Brasil, caso não for possível continuar trabalhando com instituições brasileiras.3
Nimuendajú leva 33 dias para atravessar o oceano Atlântico no navio a vapor até o
porto alemão de Hamburgo.4
Os três primeiros dias na Europa passa visitando o Museu Britânico, em Londres, onde
se queixa da neve e da ausência de coleções etnológicas “significativas” de povos indígenas.
Nesses dias, sua irmã Olga lhe dá as boas-vinda numa curta carta: “Seja bem-vindo em terras
alemãs! De Hamburgo você vem direto para Iena? E você fica umas semanas? Isso é
necessário, depois de 32 anos de separação; não marque outros compromissos! Tudo o que
tem para contar vai ser pessoalmente. O importante é você chegar aqui”.5
A filha de Olga, Irmgard, também escreve ao tio que ainda não conhece pessoalmente:
“Querido tio Curt, que enorme surpresa saber que você vem direto para Hamburgo. Que
alegria especial é para mim, pois, como não posso tirar férias, provavelmente eu não poderia
ver você. Tomara que dê certo e você tenha tempo livre para mim”.6
Em Hamburgo, onde fica de 9 a 17 de abril, Nimuendajú dissimula sua alegria de
sentir-se bem tratado, dizendo que só pagou uma única vez suas refeições. Ele é
sucessivamente convidado pela família Michahelles, representante local da casa bancária
Berringer com filial em Belém, pelos parentes da sua sobrinha e por uma outra família, de
maneira que só se deita de madrugada. São pequenos luxos burgueses na sua pátria de
nascimento, desconhecidos em Belém ou numa aldeia indígena.7
No Museu de Hamburgo, tem o primeiro encontro com a penúria econômica que
atinge a vida cultural alemã. Num prédio espaçoso e bonito, o material de outras partes do
mundo é muito maior do que o da América do Sul. Do Brasil só constam algumas peças
arqueológicas de Santa Catarina e os objetos que ele enviou da cultura Jê, que revê durante
muitas horas. Lamenta ainda que o museu não esteja em condições financeiras para adquirir
2
Belém, 16/02/1934, MN.
3
Carta a Heloisa Alberto Torres, Belém, 05/03/1934, MN.
4
Dresden, 26/041934, CS, p. 201.
5
Iena, 01/04/1934, MN, minha tradução. Na verdade, seriam 31 anos desde que Curt Unckel deixou Iena.
6
Altona-Hochkamp, 29/03/1934, MN, minha tradução.
7
Dresden, 26/04/1934,CS, pp. 202 e 203.
150
coleções de peças Marajó e Aparaí, “pois atualmente não dispõe nem do dinheiro para
comprar um armário que precisava”.
Depois de visitar Hamburgo, aproxima-se o momento do reencontro de Curt
Nimuendajú com o Curt Unckel que viveu em Iena até os 20 anos de idade. Não existem
registros de suas expectativas quanto a esse momento, mesmo porque expressar seus
sentimentos por escrito não é bem a sua especialidade.
Por isso, não é nada surpreendente que a única menção à irmã Olga numa carta ao seu
confidente Carlos Estevão seja uma solitária linha, sem sequer citá-la pelo nome: “De 17 a 22
de abril estive em Jena com a minha irmã, revivendo com ela os tempos da nossa infância
(...)”.
Olga, filha do primeiro casamento da mãe de ambos, é seis anos mais velha do que
Curt. O papel de irmã protetora, com um toque maternal, poderá ter sido uma constante nesta
relação. Ela revela ao irmão que, ainda menina, já tomava conta do irmão menor.8 É
igualmente significativo que foi Olga, trabalhando como professora primária, quem pagou em
1903 a sua passagem de navio ao Brasil.
Não se sabe o que os irmãos conversaram durante a curta estadia de Curt em Iena.
Porém, através das cartas trocadas depois dessa visita é possível saber o que deixou de ser dito
pessoalmente.
A irmã Olga também tem dificuldade de mexer em temas da vida familiar e chega ao
ponto dela “esquecer” de mostrar ao irmão, que revê após 31 anos, um objeto que poderia
reacender lembranças mais vivas desse passado comum. Somente depois que Nimuendajú já
está na Suécia é que, por carta, ela toca no tema: “Você mal lembra da imagem da mamãe?
Infelizmente, enquanto você esteve aqui, eu não atinei que tenho fotos da família num
album”. Os retratos estavam na sua própria casa, em Iena.9
Olga só consegue referir-se a situações concretas do passado por carta, sete meses
depois da visita do irmão Curt, que então já está de volta a Belém, a milhares de quilômetros
de distância: “Penso o tempo todo nos quatro dias bonitos que você nos deu de presente, pena
que não foram quatro semanas. A foto da nossa mãe deve ser entre 1878 e 1882 [antes do
nascimento de Curt]”. A frase sugere que Olga teria enviado uma cópia de um retrato da mãe
de ambos ao irmão em Belém.
As vinte linhas seguintes da mesma carta constituem um relato de datas e situações
narradas “objetivamente”, embora silencie quanto ao seu próprio pai. Somente no final,
8
MN, Iena, 24/11/1934.
9
MN, Iena, 22/07/1934.
151
permite-se insinuar um sentimento: “Após alguns meses, a nossa mãe voltou [à Alemanha] e
você nasceu na casa dos Bechsteiner na rua Wagnergasse. O pequeno chegou!”.10
O retorno de Nimuendajú ao Brasil fecha a janela para o passado alemão. Para trás,
fica a angústia de Olga, perceptível numa carta de novembro do mesmo ano: “Meu querido
jovem, onde é que você se escondeu, que não se ouve mais nada de você? Será que você já
está cheio de sua pátria? Não sabemos se você atravessou sem problemas o oceano [Atlântico,
de navio] ou se ficou no Rio para fazer contatos, como você aguentou a mudança de clima
depois de ‘morrer de frio [na Europa]?”.11
Numa única passagem, Nimuendajú adquire uma loquacidade desconhecida quanto se
trata de sua própria vida. Em carta a Carlos Estevão, expressa a emoção do seu retorno
simbólico à infância, matizada pela percepção de que o passado efetivamente passara:12
(...) e revendo as matas e montanhas onde eu brincava quando era menino. Percorri-as
agora sozinho, saudando as árvores e pássaros e todos os animais da mata, meus antigos
conhecidos. Entrei, como há 31 anos atrás [sic], na taberna da pequena aldeia de Coppanz, nas
montanhas a oeste da cidade, reconheci ainda os bancos e as mesas daquele tempo e me sentei
no meu lugar velho, mas gente estranha veio me servir e, perguntando, soube que da família
do antigo dono ninguém mais existia. E assim por diante.
A inegável melancolia de captar que ele é agora um estranho inclusive na sua cidade
de nascimento deve ter doído. Mesmo revendo a irmã, o ambiente de sua adolescência não
está mais lá. Agora sabe que a Alemanha que deixou em 1903 ficou em algum lugar no meio
do caminho rumo ao Brasil. Só ficam as lembranças, que, com o passar dos anos, tornam-se
cada vez mais ariscas, fugidias, mutantes.
Mas no Brasil ainda é tratado como estrangeiro. A diferença entre a densa floresta de
pinheiros de Iena e a mata rarefeita dos Canela terá aprofundado a pergunta de, afinal, qual é a
sua pátria. Como terá explicado aos amigos da irmã o que significa viver entre indígenas?
Não existem relatos historiando suas conversas com amigos de infância, a quem
possivelmente terá contado o choque cultural que existe entre um fazendeiro e os Canela do
sertão maranhense, algo difícil de avaliar, principalmente se os ouvintes nunca deixaram a
10
Iena, 24/11/1934, MN.
11
Ibid. Olga sofre com a separação, como se lê na sua carta de 22/09/1937: “Meu sentimento de culpa já se
encarnou num pesadelo: eu tinha recebido uma carta com o envelope escrito:‘Susto = Notícia’ com a informação
de que um tubarão tinha devorado você. Meu grande medo era se você tinha ar suficiente na barriga do tubarão”.
MN.
12
Dresden, 26/04/1934, CS. p. 203.
152
terra natal. Nem os seu amigos de infância, ouvidos por Cappeller em 1960, relatam um
reeencontro.
Depois dos seis dias com sua irmã Olga em Iena, Nimuendajú retoma o périplo dos
museus. Em Lepzig, conhece pessoalmente o seu diretor, Fritz Krause, com quem discutira
por carta dois anos atrás, mas de quem agora é convidado para festejar o seu aniversário com
a família. No Museu, porém, não há motivos para comemorações. Há dois anos que as
coleções estão amontoadas sobre bancas provisórias e no chão em salas fechadas ao público
no edifício novo. O dinheiro simplesmente acabou. Ele vê coleções de objetos indígenas da
região do Xingu e do Araguaia, mas dos Jê apenas o que ele enviara e não esconde o orgulho
de ser o único fornecedor dessas peças.
A próxima estação é o museu de Berlim. Sua opinião do material vistoriado é positiva,
assim como do diretor, Walter Krickeberg, em quem não notou “aquele abatimento moral que
tanto me impressionou em outras partes. Parece mesmo que este museu ainda dispõe de
alguns recursos (Snethlage!), pois Krickeberg tratou logo de entabolar negociações comigo
para o futuro, falando de coleções que queria comprar, de trabalho e publicações e mesmo de
subsídios”.13 A sua avaliação equivocada e parcial da personalidade de Krickenberg vai ter
consequências negativas, a curto prazo, para o sociólogo alemão radicado em São Paulo,
Herbert Baldus. E a longo prazo para o próprio Nimuendajú, como se verá mais à frente.
De Berlim, dirige-se à Dinamarca, onde visita, de 4 a 8 de maio, o museu da capital.
Profundamente tocado diante de um quadro do pintor holandês Alfred Eckhout, ele supõe que
os indígenas retratados sejam canela e que o pintor efetivamente presenciou a cena pintada:14
Este quadro pareceu-me, sob o ponto de vista etnológico, o mais importante de todos:
representa ele 8 homens dançando em círculo, batendo com força o pé direito e brandindo na
mão direita a estoleca e as flechas, enquanto a esquerda, pendendo, segura o cacete. Estão
inteiramente nus e sem pintura, o prepúcio amarrado com um fio. Só um deles traz a pedra
verde no beiço e os pauzinhos nos cantos da boca; em outros só se vê os respectivos furos, e o
mais novo dos dançadores nem estes [furos] não apresenta ainda. O corte dos cabelos é
inteiramente identico ao dos Canelas. À direita, ao lado do grupo dos homens que dançam de
boca fechada, estão duas mulheres moças, com um amarrado de folhas metido no cordão da
cintura, uma ao lado da outra, abraçando-se com as mãos por detrás das costas, os pés em
posição de dança, e tapando com a mão livre a boca (e as narinas?). As bochechas parecem
13
Göteborg, 09/05/ 1934, CS, p. 208.
14
Ibid., p. 209. Eckhout esteve no Brasil de 1637 a 1644, cf. Sönke Lundt, Der Blick auf die Neue Welt: Die
Brasilienreise Albert Eckhouts 1637-1644, Kiel Universität, Kiel, 2000.
153
um pouco inchadas: tem-se a impressão que elas estão produzindo algum ronco [som] na mão.
Levei muito tempo diante deste quadro que muito me impressionou.
A segunda está na divisão do tempo de trabalho daqui com a qual não me posso
conformar: esta gente nada faz antes das 9 horas da manhã, e, em compensação, quer fazer da
noite dia. “Da noite” é modo de falar, porque às dez horas da noite o Snr. ainda pode ler sem
luz [artificial] na rua e às duas da manhã outra vez. Isto não é terra para quem nunca esperou
o sol [despontar] na rede! No Pará, às 9 horas da manhã eu já fiz a melhor parte do meu
trabalho. A terceira é que o custo de vida é aqui incomparavelmente mais elevado do que no
Pará, de maneira que, por mais economicamente que eu viva, estou gastando sozinho mais do
que gastaria no Pará em companhia da minha mulher e [em Belém estaria] passando melhor.
15
Göteborg, 09/06/1934, CS. p. 212.
154
esta é a dura verdade. Kaudern da América nada sabe; Ryden, que tem 26 anos, talvez ainda
dê para alguma coisa quando tiver 40. (...) Izikowitz não está mais no Museu porque Kaudern
é anti-semita. Eu tenho a nitida impressão [de] que os dias de glória do Museu de Göteborg já
passaram; Nordenskiöld não deixou quem o substituisse”.16
Curiosamente, a viagem à Suécia nasce marcada por um paradoxo básico: para
escrever sua famosa monografia sobre os Canela, Nimuendajú emprende uma viagem de
navio de mais de seis mil quilômetros até a distante Gotemburgo. Se a evolução social
brasileira tivesse respeitado os indígenas, as peças dessas coleções estariam disponíveis perto
de Barra do Corda, a menos de 500 quilômetros de Belém em linha reta.
Independente disso, Nimuendajú está orgulhoso das coleções que ele fez no Brasil
para o museu sueco: “Felizmente, as únicas culturas convenientemente expostas em sala são
as dos Canelas e a dos Apinaye! O material sobre os índios sul americanos que eu vi no
Museu de Berlim e nos seus armazens é seguramente cinco vezes maior do que o do Museu
de Göteborg, mas o daqui representa maior número de tribos e representa o continente com
maior regularidade de distribuição”.17
É inegável que o Curt Unkel nascido em Iena morreu para abrir espaço ao Curt
Nimuendajú tropical. Órfão pela segunda vez no seu país de nascimento, privado de apoio
intelectual nos museus alemães e suecos, Nimuendajú busca refúgio na sua distante pátria
adotiva: “Estou contando os dias que ainda sou obrigado a passar fora do Brasil e
antegozando o momento da minha volta. Para a Europa, sou um caso perdido”.18 A
melancolia que o invade em pleno verão europeu de 1934 reflete talvez o fato de que já fora
adotado pelos seus neo-compatriotas, os Xerente, os Apapokuva-Guarani, os Apinayé e os
Ramkokamekra. Anos depois, os Ticuna Rio Negro também o incluirão na sua vida tribal.
Além disso, a penúria econômica que conhece no Brasil o acompanha até na rica
Suécia: “Assim que eu estiver de posse das fotos que preciso, voltarei imediatamente para o
Pará, porque se ate lá me restar algum d inheirinho quero gastá-lo no Pará, onde ele durará
mais do que na Suécia. Infelizmente prevejo que os meus recursos nem de longe chegarão
para a conclusão do manuscrito”.19
O tempo passa, o pessimismo cresce: “Voltarei um tanto apreensivo: aqui nada me
facilitaram. As minhas despesas foram muito maiores do que eu calculava. Pagando a
16
CS, p. 213. Nordenskiöld foi diretor do museu até sua morte em 1932.
17
Ibid. Ainda faz um afago em Carlos Estévão, diretor do Museu Goeldi: “A biblioteca do Museu sé e superior à
do Museu do Pará quanto a obras gerais sobre a americanística. Ela é muito menor que esta e ai de mim se eu
não tivesse o material que achei no Pará!”.
18
CS. p. 212.
19
Göteborg, 09/06/1934, CS, p, 214.
155
passagem de volta aqui quase não me restará dinheiro nenhum. O meu trabalho ainda não
está nem pela metade”.20 Como mantendo o ritual de muitas viagens, pede dinheiro
emprestado para poder voltar ao Brasil – desta vez não ao diretor do Museu Emilio Goeldi,
Carlos Estevão, mas ao do Museu de Gotemburgo.21 O retorno a Belém em setembro de 1934
vê-se tingido por um sentimento de fracasso: “Esperava tambem com impaciencia notícias de
Barra do Corda e do Museu Nacional, sendo que estas últimas seriam de certa importância
para a minha orientação aqui”.22
20
Göteborg, 20/07/1934, CS, p, 215.
21
Belem, 20/07/1937, MG.
22
Göteborg, 20/07/1934, CS, p. 215.
23
Göteborg, 10/05/1934, CS, p. 205.
156
Os nazistas ainda não tinham cometido suas maiores atrocidades. Cinco anos antes do
início da Segunda Guerra Mundial, Nimuendajú emite um julgamento que se mostraria
profético: “A tirania intelectual que o nacional-socialismo exerce só pode trazer, mais cedo ou
mais tarde, consequências funestas para a cultura alemã em geral. Causou-me pena o aspecto
das vitrines das livrarias na Alemanha, porque fornecem um índice bastante seguro do nível
intelectual de um povo. Hoje elas foram transformadas em meras agências de propaganda do
nacional-socialismo, formando um desagradável contraste com outros países germânicos,
como a Inglaterra, Dinamarca e a Suécia”.
24
Díaz de Arce, Norbert,Plagiatsvorwurf und Denunziation, Untersuchungen zur Geschichte der Altamerikanistik
in Berlin (1900-1945), dissertação de doutorado em História, na Universidade Livre de Berlim, 2005, p. 183.
minha tradução.
157
Há algum tempo atrás fiquei sabendo, por acaso, pelo conhecido pesquisador
sulamericano Dr. Kurt Nimuendajú (que apesar do nome indígena é um bom alemão), que
Baldus (...) teria se tornado na América do Sul uma pessoa indesejável devido à sua tendência
e ação comunistas; evidentemente ele não tem ocultado a sua inimizade à nova Alemanha
[nazista]. (...) Como eu lanço mão da informação do senhor Nimuendajú, que atualmente se
encontra na Suécia, sem sua autorização, estaria agradecido se, no caso da eventual recusa do
pedido do senhor Baldus, não fosse citado o nome Nimuendajú. Com minha mais elevada
consideração e Heil Hitler.
O mal está feito. Baldus, porém fica sabendo de tudo e exige, de maneira firme e
elegante, que o próprio Nimuendajú resolva o problema com a pessoa que apadrinhou a sua
proposta de filiação à Sociedade, o professor Karl Theodor Preuss.25
25
São Paulo, 20/07/1934, MN.
158
26
São Paulo, 25/10/1934, MN.
27
São Paulo, 17/12/1934, MN.
28
Díaz de Arce, p. 184. Após o fim da guerra, Krickenberg negou a filiação ao partido nazista e afirmou que, ao
contrário, seu nome estava na lista de suspeitos da célula local do partido em Berlim. Perante um tribunal de
guerra norte-americano, porém, não apresentou provas, ibid.
159
Recentemente, Edwart ouviu uma palestra em que se disse que o único povo que
aspira à mistura racial é o brasileiro. Todos os outros são a favor da pureza racial. A
29
Ménchén, p. 186.
30
Schultz-Kamphenkel, Otto, Rätsel der Urwaldhölle, Vorstoß in unerforschte Urwälder des Amazonenstromes,
Deutscher Verlag, Berlin, 1938, p 28.
31
Carta a Herbert Baldus em 17/02/1941, MN.
32
Iena, 12/09/1934, MN. Edwart Richter é o marido de Olga, engenheiro da empresa Zeiss, onde Curt Unckel
trabalhara como aprendiz ótico até 1903.
160
Alemanha agora também é a favor, de tal forma que a partir de primeiro de janeiro de 1936
todas as empregadas domésticas menores de 45 anos devem abandonar as famílias judias. É
assim que, em pleno inverno, milhares de jovens arianas são jogadas no mercado de trabalho
das grandes cidades.33
Ela critica mais uma vez os atos praticados em nome do nacional-socialismo, mas não
a ideologia: “Não é mais possível estar de acordo com tudo o que acontece aqui. O Partido
[nazista] se arroga direitos que não tem e gera descontentamento geral. Espero que essa
política partidária não gere um final infeliz para um movimento que é bom”. Parte das cartas
nesse período é ocupada com temas políticos de ambos os países, que vivem tempos de
agitação popular e tendências totalitárias. Nimuendajú vaticina que, depois da chamada
Intentona Comunista em 1935, viria uma tentativa fascista, o que de fato foi o golpe
integralista de 1937:34
(...) eu fiquei muito contente de ter notícias de vocês, mesmo que estejam usando um
barril de pólvora como sofá. (...) No final do ano passado, tivemos (...) uma revolução
comunista. Ela foi o resultado imediato do tonto socialismo, no qual entraram o líder e os
heróis da grande Revolução de 1930, depois que o poder caiu-lhes na mãos da noite para o dia
e em pouco tempo tiveram que assistir à própria impotência de criar algo nacional-brasileiro,
como realmente desejavam. O líder militar [do levante comunista] era um antigo caudilho, o
comissário político e representante da Rússia era um judeu alemão. A próxima revolução (...)
será provavelmente a fascista, (...) mas para realizar um regime fascista eles são tão
incompetentes quanto [para executar] qualquer outra revolução.
O “antigo caudilho” vem a ser Luiz Carlos Prestes. O “judeu alemão” é Arthur Ernest
Ewert, que não é judeu, e adota o pseudônimo de Harry Berger. Torturado pela polícia
getulista comandada pelo descendente de alemães Felinto Müller, Ewert é deportado à
Alemanha em 1947 e morre, em 1957, num hospital psiquiátrico na então República
Democrática Alemã.35 Na última linha desta carta à irmã, Nimuendajú pergunta se acredita no
futuro do nacionalsocialismo. A resposta, matizada com uma piada anti-nazista, mostra a
crescente militarização do dia-a-dia alemão:
33
Iena, 14/11/1935, MN.
34
Pedreiras, 06/09/1936, MN.
35
Arthur Ewert und die Wandlung von Luis Carlos Prestes zum Kommunisten, Jahrbuch für historische
Kommunismusforschung 1994, Berlin 1994.
161
Em 1937, o tom de crítica de Olga desaparece. Em seu lugar surge uma entusiasmada
nacionalista: “Nos próximos dias, toda a Alemanha será coberta de bandeiras. Agora mesmo
vive-se o rescaldo das festa de aniversário do Reichsparteitag em Nüremberg, e logo vem a
visita de [Benito] Mussolini. Qual é afinal a posição do Brasil perante a nossa pátria?”36
36
Iena, 22/09/1937, MN. Reichsparteitag era o congresso que o partido nazista realizava anualmente de 1922 a
1938, primeiro em Munique, depois em Weimar (perto de Iena) e finalmente em Nüremberg, cf. Urban, Markus,
162
A resposta de Nimuedajú não faz menção à “nossa pátria”, mesmo porque há muito
tempo que ele não se identifica com a Alemanha. Ele prefere falar da mistura racial brasileira:
“Claro que os sucessos de Hitler impressionam os brasileiros, especialmente aqueles ligados
às relações internacionais. Seria bom demais se o Brasil TAMBÉM [sic] assustasse o mundo!
Mas vai demorar ainda até isso acontecer, independente do tipo de regime que nós tenhamos
no futuro. Mesmo Hitler seria aqui um pobre coitado. Tudo fracassaria nas mentiras e no
egoismo do povo. Falar com brasileiros sobre raças é algo impossível porque, devido ao peso
das condições reinantes, se sentem compelidos a elevar o caos racial à categoria de ideal de
Estado”.37
Meses depois, Olga conta que ela mesma já participa de treinos para-militares: “Aqui
ainda ressoa o júbilo pela anexação da Áustria e a propaganda eleitoral mobilizou todas as
forças. Meu treinamento como ‘bombeira’ em caso de ataques aéreos termina semana que
vem. Ontem treinamos o uso de máscaras antigases: ficamos num quarto cheio de gás
lacrimogênico, puxamos cordas, marchamos no pátio do quartel de bombeiros usando
máscaras. Nas últimas duas noites, aprendemos a apagar incêndios”.
Ela faz questão de demonstrar que, mesmo assim, a vida continua normalmente na
Alemanha: “Claro que a gente também ri, especialmente quando mulheres baixinhas e
gordinhas usam roupas antichamas, máscaras antigases e capacetes de aço. Quem não tem
capacete, usa uma panela da cozinha”.38
Nimuendajú coloca a irmã à par do clima de ódio contra alemães no Brasil, que
também o atinge através das brigas com o Conselho de Fiscalização.
Ele atribui isso à propaganda norte-americana, mas critica a ação nazista no país:
Die Konsensfabrik. Funktion und Wahrnehmung der NS-Reichsparteitage 1933–1941, Vandenhoeck &
Ruprecht, Göttingen 2007.
37
Belém 16/12/1937, MN.
38
Iena, 01/04/1938, MN.
163
inimigos da Alemanha ou como do Brasil, o que despertou a desconfiança dos brasileiros. (...)
Certamente que eles [os nazistas] se mantiveram à margem da política brasileira, mas fizeram
como se aqui não existissem brasileiros ou como se agissem em terras conquistadas”.39
Ele diz não haver nenhuma semelhança entre o nazismo e o integralismo, uma
identidade proclamada pelos simpatizantes de Plinio Salgado naquela época.
Mas considera o golpe fascista de 1937 como mais uma ação contra os alemães
residente no Brasil: “(...) eu acho que os brasileiros são absolutamente incapazes de produzir
de maneira fascista. Caso realmente existir um alemão simpatizante do golpe fascista na
crença de que o nacional-socialismo teria algum ponto PRÁTICO [sic] em comum com o
integralismo brasileiro, isto só confirmaria que ele nada entende dos brasileiros em geral e do
integralismo em particular. Isto só aconteceu (...) na bem intencionada vontade de criar mais
motivos para atiçar o povo contra os alemães”.
No final, responsabiliza Getulio Vargas pelo caos no país:
Mas seria falso atribuir isto [o ódio aos alemães] somente aos norte-americanos. A
atual ditadura não se apóia nem ao [no] povo desorganizado nem em partidos organizados. O
povo vive uma completa anestesia política. O que sobrou dos partidos políticos é inimigo do
ditador. Ele precisa se tornar populista imediatamente e isso aqui se consegue da maneira
mais fácil na medida em que atiçar o ódio ao estrangeiro.
A última carta de Olga que eu achei no Museu Nacional é de 1940 e mostra uma
patriota eufórica: “(...) no que diz respeito à nossa guerra, tudo vai para frente a passos
agigantados a nosso favor. O que Hitler tem feito até hoje tem pés e cabeça e os ingleses vão
ter que mudar de idéia daqui a pouco. Nenhum de nossos inimigos tem a disciplina e a força
de nosso exército”.41
39
Belém do Pará, 18/05/1938, MN.
40
Belém, 06/02/1941, DU, p. 307.
41
Iena, 15/05/1940, MN.
164
Alguns dias atrás falávamos que cada pessoa só deveria trabalhar na área em que está
interessada. Assim haveria mais pessoas excelentes no mundo. Mas infelizmente para a
maioria o trabalho é apenas como as tetas da vaca. Você é uma das poucas exceções e, apesar
de algumas desagradáveis experiências de vida, uma pessoa de sorte.43
42
Cappeller p. 12. Ele terá recebido esta informação da filha de Olga, Irmgard, a quem entrevistou em 1962.
43
Iena, 01/04/1938, MN.
8 - O encontro dos mestres
O “não” a Lévi-Strauss
O primeiro cientista é o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que chega a São Paulo em
1935 para dar aulas na recém criada Universidade de São Paulo. E que logo parte para a
pesquisa de campo entre os Bororo.
Francês nascido na Bélgica em 1908, a partir dos 27 anos leciona na USP. Suas
expedições a tribos do chamado Brasil Central renderam material e conteúdo para suas
166
posteriores reflexões. Seu livro Tristes Trópicos (1955, Paris) expandiu a sua fama para além
do mundo acadêmico até hoje. Propôs a antropologia estruturalista – uma tentativa de mostrar
que estruturas básicas de funcionamento da mente se refletem numa enorme variedade de
práticas institucionais e de parentesco na sociedade indígena. Morreu em 01/11/2009.
Não se sabe quando Nimuendajú e Lévi-Strauss começam a curta troca de
correspondência. Aparentemente, Nimuendajú toma a iniciativa em 1936. Nesse ano, Lévi-
Strauss publica dois artigos no Brasil: “Com os selvagens civilizados”, no jornal O Estado de
S. Paulo [publicado em 10/11/1936] e “Contribuição para o Estudo da Organização Social
Bororo”, na Revista do Arquivo Municipal, de São Paulo. Nos arquivos do Museu Nacional,
consta uma carta de 10 de novembro de 1936, na qual Nimuendajú agradece a Lévi-Strauss a
remessa do trabalho sobre a organização social dos Bororo.1
Nela, Nimuendajú conta que, de 1905 a 1912, já havia morado em áreas ocupadas por
povos de língua Jê em São Paulo, Paraná e no atual Mato Grosso do Sul. Mas, mesmo tendo
trocado correspondência com outros estudiosos, uma série de interrogações ainda o atormenta.
É isto que explica a sua expectativa sobre Lévi-Strauss: “Agora toda a minha
esperança é que o senhor ainda tenha ocasião de por o assunto [a organização social dos
Kaingang] em pratos limpos mediante um estudo demorado”.
No dia seguinte, Nimuendajú pergunta a Baldus: “Quem é e o que é Claude Levi-
Strauss? Primeiro vi dele o artigo ‘Com os Selvagens Civilizados', que me interessou pelo seu
posicionamento na questão indigena. Depois vem sua ‘Contribution a 1'etude de
1'organisation sociale des Bororo’ no J.S.A., onde ele, em poucas paginas, traz material muito
valioso, e que chegou para mim como se houvesse sido encomendado. O que se pode esperar
dele a mais no futuro?”2
Imigrante alemão com dificuldades para se estabelecer no Brasil e tido como
simpatizante comunista em pleno Estado Novo, Baldus descreve Lévi-Strauss, sem esconder
uma ponta de ciúmes: “(...) se incorporou muito bem na sociedade [paulistana]. Ele é educado
e gentil, entre 27 e 30 anos, aparentemente abastado, pois tem uma casa elegante, uma mulher
mundana, e foi secretário de Leon Blum. (...) ocupa a cadeira de Sociologia [na USP] e dá
aulas de Etnologia, sua mulher também deu um curso de Etnografia (...)”.3
Nimuendajú intui a futura estatura intelectual do jovem etnólogo francês e comenta
com Baldus: “é notável que esse homem, que só recentemente passou para a Etnologia, tenha
1
Belém, 10/11/1936, MN.
2
Belém, 11/11/1936, DU, p.188. JSA é o periódico especializado Journal de la Societé de Américanistes,
editado em Paris.
3
São Paulo 30/11/1936, DU, p. 189. Blum foi várias vezes primeiro-ministro francês entre 1936 e 1950.
167
se inteirado em tão pouco tempo de uma maneira tal, que ele compreendeu com tanta precisão
as condições sociológicas dos Bororo, que de fato não são simples. Quando penso em como
me esfolei seis anos com a Sociologia dos Canelas!”4
A resposta de Lévi-Strauss, que não fica sabendo dessa avaliação, a Nimuendajú é um
convite, em nome do professor Paul Rivet, o então papa mundial da Etnologia, para participar
de uma expedição aos territórios dos Nhambiquara, no atual Mato Grosso, no final de 1937:
“Da minha parte, desejo vivamente contar com sua alta capacidade e sua experiência, que
seriam uma garantia particularmente preciosa de sucesso de nossa empreitada”.5
4
Belém, 13/01/1937, DU, p. 189.
5
Paris, 02/02/1937, MN, minha tradução.
6
Boa Vista (Goiás), 06/07/1937, MN.
168
Nesse mesmo dia, escreve a Baldus e conta a verdadeira razão da recusa: “(....) Um
dos motivos é que claramente a expedição será dirigida pelo dr. [Jehan A.] Velard. Devido
aos seus métodos de pesquisa de campo, que ele próprio disse ter usado entre os Guayakí
[indígenas residentes no Paraguai], não pode contar comigo (ataque e saque da aldeia e
sequestro de crianças)”.7
7
Ibid, MN. Ele é mais veemente com o diretor do Museu Emilio Goeldi, Carlos Estévão de Oliveira: “Segundo
os seus próprios relatórios publicados no Journal de la Sociéte des Americanistes de Paris, nas suas expedições
aos Guayakí ele [Velard] assaltou os acampamentos destes índios a mão armada, disparando e saqueou-os e
sequestrou uma criança que ele agora está criando”. Belém, 21/11/1937, CS, p. 272.
169
Baldus aproveita a deixa e critica azedamente Lévi-Strauss. Ele garante que o ajudou na sua
chegada a São Paulo, mas depois que o francês criou o Instituto de Etnologia da USP sente-se
por ele injustamente perseguido.
Crítica maior, porém, assesta contra Nimuendajú8:
(...) certos caciques daqui, por exemplo Fernando de Azevedo, me dizem que
exatamente o muito por mim adorado senhor Nimuendajú é quem o colocou na berlinda, ao
citá-lo como um grande etnólogo e apresentar seu artigo sobre os Bororo como uma obra-
prima. (...) Quero lhe dizer, portanto, que o senhor Lévi-Strauss só ficou alguns poucos dias
na aldeia Bororo, nunca tinha visto anteriormente um índio e sua única preparação
bibliográfica foi o que eu lhe disse pessoalmente.
Se o sr. Lévi-Strauss não tinha visto um índio anteriormente, não fora influenciado
pela literatura [existente] e ficara somente alguns dias em Kejara, tudo isso me leva a admirar
ainda mais como ele executou o trabalho. Minha honestidade exije que eu diga: eu não teria
conseguido [realizar o trabalho] nessas mesmas condições (...).9
8
São Paulo, 11/10/1937, MN. Ele cita ainda o caso do protetor peniano “falsificado” e um “índio safado” [em
português, no original] como informante, na opinião de Pedro Cruz, o diretor da Comissão de Proteção aos
Bororo.
9
Belém, 22/11/1937, MN.
170
Essa admiração intelectual não gerou frutos etnológicos ou pessoais para Nimuendajú.
A última notícia conhecida de algum contato, mesmo indireto, com Lévi-Strauss é de 1939.10
O parceiro intelectual de Nimuendajú, Robert Lowie, conta que aprecia o espírito de
independência do francês e, por isso, o recomendara para trabalhar numa universidade norte-
americana. A exemplo do acontecido com Nimuendajú, é esse apoio de Lowie que abre as
portas da academia americana a Lévi-Strauss.
Ironias do destino, é como se a recusa de Nimuendajú a participar da expedição à
Serra dos Pareci tivesse propiciado a Lévi-Strauss o material de base para, após décadas de
mais estudos, lançar sozinho a sua famosa Antropologia Estruturalista. Quem sabe se uma
pesquisa conjunta ou uma comparação dos resultados de cada um teria mudado a feição dessa
importante teoria antropológica? Claro, mera especulação. Mesmo citando Nimuendajú e
outros autores nessa obra, Lévi-Strauss reivindica exclusivamente para si os louros.11
Coerente, mesmo em meio a constantes dificuldades econômicas e logísticas,
Nimuendajú continua suas pesquisas entre as tribos Jê, publicadas em seis trabalhos. Eles são
10
A carta de Lowie deve ser de novembro ou dezembro de 1939, conforme Dungs, p. 297.
11
Lévi-Strauss, Claude, Strukturale Anthropologie, Berlin, 1981.
171
The dual organisations of the Ramkokamekra (Canella) of Northern Brazil, The gamella
Indians, The Apinayé, The Association of the Serente, The Serente e The Eastern Timbira.
Quase 80 anos após o lançamento do primeiro volume desta coletânea, nenhuma das
seis obras foi traduzida para o português. Sua importância e do próprio Nimuendajú
assemelham-se à posição de seus amados Apopokuva-guarani: distantes, quase invisíveis, mas
mesmo assim presentes na sociedade brasileira e na etnologia do continente americano.
A trajetória de Lévi-Strauss obedece a outros padrões. Ele foi um dos poucos
antropólogos do meados do século passado que continua conquistando adeptos e adversários
no mundo academico a nível internacional. Sua passagem pela vida de Nimuendajú foi
meteórica, mas o trabalho deste contribuiu, em parte, para o francês desenvolver sua carreira
antropológica.
Igualmente fugaz foi a permanência de Lévi-Strauss no Brasil, o francês que veio ao
Brasil e continuou francês. Segundo a antropóloga Fernanda Peixoto Massi, sua estadia de
quatro anos significou uma transformação fundamental a nível profissional: “O Brasil
representou (…) um momento de passagem decisivo na construção de sua futura identidade
profissional. Se antes de 1935 Lévi-Strauss era um professor de filosofia no ensino secundário
francês com fortes vínculos com a política, a partir de 1938 transforma-se em um americanista
com pesquisas sobre índios brasileiros, deixando a militância política de lado (…)”.12
É inevitável confrontar Nimuendajú e Lévi-Strauss. O etnólogo Luís Donisete Benzi
Grupioni faz essa comparação. E só encontra diferenças entre ambos, que considera muito
significativas para serem simplesmente deixadas de lado:13
12
Massi, Fernanda Peixoto, Lévi-Strauss no Brasil: A formação do etnólogo, Mana, nº 4, p. 96, 1998.
13
Grupioni, Luís Donisete Benzi, Coleções e expedições vigiadas: Os etnólogos no Conselho de Fiscalização
das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, Hucitec, SP, 1998, p. 166.
172
O parceiro norte-americano
14
Lowie, Robert H., Ethnologist, A Personal Record, University of California Press, Berkeley and Los Angeles,
1959, p. 119. Lowie erra em alguns pontos. Nimuendaju foi batizado como Curt Unckel, não Kurt Onkel, e só
permaneceu cinco meses na cidade sueca de Gotemburgo para estudar as coleções que ele enviara do Brasil.
15
Gotemburgo, 19/12/1934, cf. Welper, p. 61.
173
A corrida de toras canela foi o tema utilizado por Nimuendajú para atrair a atenção de Lowie.
16
Belém, 08/02/1935, DU, p. 261.
17
Berkeley, 04/03/1935, DU, p. 262. Eu desconheço se Lowie sabia dos desencontros entre Nimuendajú e
Nordenskiöld. A carta de Nimuendajú é de 30/03/1935, DU, p. 262.
174
Um mês depois de Nimuendajú botar as cartas na mesa, Lowie assume a tarefa de criar
e administrar uma rede de contatos intelectuais e de fontes de financiamento nos Estados
Unidos. Logo faz uma proposta concreta a Nimuendajú: 100 dólares mensais durante cinco
meses, do Fundo de Estudos sobre Parentesco e Organização Social da Universidade da
Califórnia:
18
Berkeley, 22/08/1935, DU, p. 263.
175
vida familiar, mas não sexual, senão a atitude anímica [dos indígenas] perante seus filhos,
entre os casais, do tio materno com seus sobrinhos, etc”.19
É a primeira vez que Lowie solicita a Nimuendajú que inclua a vida familiar nos seus
estudos sobre tribos da família linguística Jê. Afinal, parentesco como objeto de pesquisa
sociológica se baseia em boa parte na estrutura e na convivência familiares. Numa carta
posterior, Lowie pergunta concretamente porque irmãos têm sobrenomes diferentes .20
Quase um mês depois, Nimuendajú responde: “Estou profundamente grato ao senhor
pelas suas perguntas e sugestões. É isso que tinha faltado até agora. Se desde o início alguém
tivesse me orientado desta forma, meus trabalhos teriam sido provavelmente muito melhores”.
É palpável a alegria de Nimuendajú – 33 anos após o primeiro contato com indigenas
e 24 da publicação do primeiro trabalho acadêmico, ele acha o parceiro que buscava, alguém
com quem pode trocar experiências, aprender, ensinar. A seguir, faz um sincero mea-culpa:
“Confesso que, devido à minha falta de conhecimentos sociológicos, eu simplifiquei a questão
dos irmãos. Agora vejo que não é assim. (...) A apresentação da vida familiar do
Ramkokamekra vai gerar um longo capítulo, que vou concluir, com todos os detalhes”.21
Cinco meses depois, cansado de esperar pela resposta, Lowie volta ao tema, bem mais
incisivo, mais claro: “(...) estou mais convencido do que nunca da enorme importância do
trabalho. O sistema de ceremônias é incrivelmente interessante, a ordem social sugere
inúmeras comparações – mas seria desejável ter mais detalhes sobre a vida familiar [sic]. Com
isso me refiro menos à sexualidade e mais, digamos assim, às relações anímicas na vida do
casal, as ligações emocionais entre pais e filhos, entre irmãos, etc.”.22
Teria evitado Nimuendajú, consciente ou inconscientemente, abordar a vida íntima
familiar dos Ramkokamekra? Mesmo sem saber nada ao certo, Lowie bate no ombro de
Nimuendajú de uma maneira carinhosa, fraternal, quase paternal: “O senhor não precisa se
afligir porque encontra dificuldades com o parentesco. Somente pesquisadores superficiais
afirmam que vão direto à essência”.
Reconfortado pelo apoio de Lowie, Nimuendajú abre o jogo:
É a segunda vez que o senhor me chama a atenção para o fato de que até hoje eu não
relatei nada da vida familiar dessas tribos. À luz de sua primeira observação, conferi o que
tinha coletado e é estranho que eu saiba muito pouco a esse respeito. Nas expedições
19
Berkeley, 24/01/1936, DU, p. 266.
20
Berkeley, 18/02/1936, DU, p. 268.
21
Belém, 03/03/1936, DU, p. 268.
22
Berkeley, 27/08/1937, DU, p. 276.
176
posteriores, prestei atenção para esse aspecto e agora volto a perceber que eu recolhi muito
pouco material”.23
Como entender que um pesquisador minucioso, detalhista e exigente, nascido na
Alemanha prussiana do século 19, enfrenta dificuldades em coletar dados justamente do dia-a-
dia familiar de indígenas no Brasil do século 20? Será que a primeira experiência conhecida
da “observação participante”, realizada por ele entre os Apapocuva-Guarani, não podia ser
aplicada entre os Ramkokamekra?
Na mesma carta, Nimuendajú esboça um resposta a essas indagações. Ele afirma que,
claro, o problema é da organização social das tribos observadas:
Mesmo que eu atribua esses resultados negativos a uma observação deficiente, não
posso fugir do fato de que a vida familiar dos Canela, Xerente, Apinayé não tem um papel
fundamental na sociedade. As outras instituições sociais reduzem a importância da família. E,
através da participação precoce das crianças nessas organizações, elas são afastadas da
família. (...) Mas tenho a impressão de que não somente as ligações entre pais e filhos, mas
também entre os casais, sofrem sob a atual separação das diferentes funções cerimonais e
sociais. O resultado é que a família – NAO POR COMPLETO, MAS DE FATO EM PARTE
[sic] – é rebaixada a uma instituição transmissora de nomes, funções, etc.
Uma história realmente ridícula! Depois que consegui criar um arquivo, não tive
problemas com a raça, tribo, comunidades, parentesco, família. Mas assim que cheguei ao
ponto de trabalhar com os aspectos solicitados pelo senhor sobre a vida familiar eu me
atrapalhei! Durante três dias trabalhei de maneira confusa e desorganizada e foi uma tortura
juntar o material deste capítulo. Vi então que é uma loucura escrever sobre o que não se sabe.
Portanto, apaguei as palavrinhas que tinha escrito desse capítulo e passei para o seguinte.
23
Belém, 30/09/1937, MN.
177
Imediamente, comecei a trabalhar sem problemas. Eu acho que de fato o responsável por esse
fracasso é a minha carência por completo de conhecimentos psicológicos.24
Lowie sente o drama e, solidário, tenta aliviar o fardo: “O senhor tem razão de deixar
de lado esse tema fatal da vida em família, caso não tiver material suficiente. Alguns aspectos
poderão ser recuperados a partir de outros elementos [da vida social dos indígenas
24
Belém, 16/11/1937, MN.
178
25
estudados]”. De fato, o tema “família, vida familiar” é abandonado por Nimuendajú, sob
aprovação de Lowie. Da famosa trilogia Jê, o volume dedicado aos Apinayé é o único que
contém um capítulo sobre a família.26
Esse tom íntimo no relacionamento entre ambos toma, às vezes, o aspecto de um diálogo pai-
filho. Certo dia, Nimuendajú conta que está muito doente – dos rins ou fígado, efeito de várias
malárias contraída na Amazônia – mas que, mesmo assim, pensa em começar a expedição aos
Ticuna. Lowie reage energicamente: “Não me perdoaria se uma viagem patrocinada por mim
gerar maus resultados para o senhor. Se não me engano, embora ambos tenhamos a mesma
idade, eu não me sinto mais tão forte quanto há oito anos”.27
Em suas memórias, Lowie confessa os dramas de consciência que vivia com relação a
Nimuendajú: “Às vezes, me parecia desonesto que eu ficasse comodamente sentado em casa,
enquanto ele tinha que singrar rios perigosos, atormentar-se andando por florestas tropicais ou
visitando infrutiferamente tribos que já foram praticamente dizimadas por doenças. Mas ele
não pedia outra coisa senão estar entre os índios. Tudo o que queria na vida era apoio
financeiro para empreender suas viagens”.28
No meio antropológico brasileiro ainda circula o mito de que Lowie “ensinou”
Nimuendajú a “fazer” Sociologia. Sem saber das discussões que iriam surgir no futuro, na sua
primeira carta a Lowie Nimuendajú já fala da organização social dos Ramkókamekra: “O
aspecto mais interessante [dos Ramkókamekra] é a organização social, a qual eu apresento de
maneira resumida [no texto da] na corrida de toras”.29
Segundo o antropólogo Julio César Melatti, em 1935 Nimuendajú já havia realizado a
maior parte de suas visitas aos Ramkokamekra e aos Apinayé e efetuado uma das duas etapas
da pesquisa de campo entre os Xerente. Até a publicação de sua primeira monografia sobre o
grupo Jê em 1939, fizera outras expedições, além de escrever outras duas obras. Nimuendajú
não teria simplesmente tido tempo para ler cuidadosamente textos acadêmicos e, durante suas
movimentadas expedições, ainda mudar a orientação das pesquisas de campo.30
25
Universidade de Yale, New Haven, 03/12/1937, DU, p 280.
26
Melatti, Julio Cezar, Curt Nimuendaju e os Jê, Serie Antropologia, nº 49, Brasília, DF, 1985, p. 9.
27
Belém, 06/10/1940, DU, p. 302 e Berkeley, 16/11/1940, DU, p. 304.
28
Lowie, Ethnologist, A Personal Record, p. 121, minha tradução.
29
Belém, 08/02/1935, DU, p. 261.
30
Melatti, p. 13.
179
31
Lowie, Ethnologist, pp. 121-120. Ainda em 1936, reconheceu que o ineditismo do material Jê coloca questões
que se estendem muito além da América do Sul, Berkeley, 13/09/1937, DU, p. 277.
32
Lowie, The History of Ethnological Theory, 1937, p. 6, minha tradução.
33
Berkeley, 05/02/1936, DU, p. 267.
180
Assim, The Dual Organisation of the Ramkokamekra (Canella) from Northern Brazil é
publicado em 1937 na revista American Anthropologist, em co-autoria com Lowie.34
Em 1937, Nimuendajú revela sua alegria ao ver pela primeira vez resultados de seus
escritos no meio acadêmico norte-americano: “Recebi as provas [tipográficas] de ‘The dual
organisation’. Tive realmente prazer em escrever o artigo. Chegaram pelo correio cópia de
teses de graduação de três estudantes da Universidade da Califórnia, que já trabalham a
organização dos Ramkókamekra com inteira desenvoltura”.35
Dois anos depois do início da parceria, surge a ameaça de que poderá faltar o apoio financeiro
e institucional. Lowie é criticado pelo órgão que exerce um rígido controle acadêmico na
Universidade da Califórnia – ele não estaria acompanhando os trabalhos de Nimuendajú e,
afinal de contas, somente membros da Faculdade devem ter acesso a financiamentos. Lowie
dá um jeitinho e burla as exigências: ele assina junto com Nimuendajú um curto resumo da
divisão social dos Canela em duas classes, acrescentando algumas notas explicativas.36
34
Lowie, Berkeley, 24/01/1936, DU, p. 266.
35
Belém, 13/12/1937, DU, p. 281.
36
Berkeley, 16/06/1937, DU, p. 275.
181
37
Berkeley, 27/06/1938, DU, p. 290.
38
Belém, 06/07/1938, MN.
39
Belém, 18/07/1938, MN.
182
Nimuendajú parece desculpar-se perante Baldus por não tê-lo recomendado a Metraux para
assumir o seu lugar na expedição ao Chaco paraguaio, região de interesse de Baldus.
A difícil decisão é facilitada pelo fato que, graças a Lowie, seu rumo profissional
mudara ultimamente. A conclusão é uma declaração de fidelidade ao esforço comum:
Eu vou continuar com o trabalho conjunto enquanto der, se o senhor não rejeitar, e
sem fazer novos acordos com ninguém, enquanto existir o menor rastro de esperança de que o
senhor deseja continuar o trabalho. Eu informei ao senhor que, ano passado, recusei uma
proposta do Museu Nacional [de trabalho exclusivo].40
40
Belém, 06/07/1938, MN e DU, p. 291.
41
Berkeley, 14/07/1938, DU, p. 291.
42
Belém, 06/07/1938, DU, p. 249.
43
Lowie, Ethnologist, p. 126.
183
Eu não acredito num fracasso total. O senhor colheu tanto entre os Ramkókamekra
que a diferença é muito evidente, mas acredito que, após exame mais demorado, o material
dos Botocudo não é de maneira nenhuma desprezível. (...) O seu nome não [sic] sofreu
nenhum prejuízo, pois eu sei como são as coisas aqui e, depois de ouvir as explicações de
Metraux, posso imaginar vivamente em que condições se luta na América do Sul.
Para animá-lo ainda mais, conta que ele possivelmente será convidado para o próximo
Congresso Pan-americano de Etnologia e o editor do Handbook of South American Indians,
Julian Steward, deseja sua colaboração.45
Os efeitos da guerra
44
Belém, 26/03/1940, CS, p. 275.
45
Não consta o dia da carta, apenas a data de março de 1940, DU, p. 299. É como se Nimuendajú tivesse
esquecido o elogio que recebera o ano anterior de Lowie: “(...) eu tenho muita mais confiança no senhor do que
numa dúzia desses recém formados doutores e por isso vou continuar me esforçando para conseguir recursos
para o trabalho do senhor”, cf. Berkeley, 29/05/1939, DU, p. 293.
184
46
Belém, 12/01/1942, MN.
47
Berkeley, 10/07/1942, DU, p. 318.
48
Berkeley, 10/10/1942, DU, p. 319.
49
Belém, 26/10/1942, MN.
50
Ambas as cartas de Berkeley, 7 e 25/11/1942, DU, p. 320.
185
51
Belém, 12/02/1943, DU, p. 320.
52
Berkeley, 04/03/1943, MN e Belém, 11/03/1943, DU, p. 321.
53
Berkeley, 31/05/1943, MN.
54
Belém, 14/06/1943, MN.
186
(...) eu devia abandonar de uma vez e para sempre a minha vida de sertão e a minha
convivência com os índios. (...) A mim semelhante solução causou uma grande tristeza. O sr.
bem sabe como eu amava esta vida e como eu estava identificado com os indios. Parece-me
incrível que eu nunca mais hei de ver os campos dos Canella banhados em sol, nem os igarapós
sombrios dos Tukuna. Além de que eu pensava ainda de fazer algumas coisas que agora talvez
nunca mais serão feitas.
55
Belém, 06/11/1943, MN.
56
Berkeley, 06/12/1943, MN.
57
Belém, 02/12/1944, MN.
187
traduzidos para o inglês.58 Sem saber, Lowie age, pela última vez, como conselheiro pessoal e
consultor editorial. Ele sugere a reedição do primeiro livro, o As lendas da criação e a
destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapokuva-Guarani, mas
enriquecido pelas experiências posteriores do autor e publicado na língua que for.59
Contudo, ele mexe na ferida provocada pela desastrada tradução dessa obra para o
espanhol. Sua resposta é uma critica azeda ao tradutor, mas contém já o melancólico anúncio
do provável fim do seu único trabalho atual: “Com o Museu Nacional vou de mal a pior e
creio que o rompimento não se fará esperar mais muito [sic]. O que farei depois não sei”.60
A última carta de Lowie é enviada no final de maio de 1945, depois que o exército
soviético já conquistara a longuínqua Berlim. Com o fim da Segunda Guerra na Europa, ele
sinaliza um futuro para seu parceiro no Brasil: “(...) é chato que o seu mais significativo
trabalho sobre a messiânica religião dos Apapocúva tenha sido muito mal traduzido. Teria
sido melhor publicá-lo na sua forma atual em alemão ou em uma tradução confiável”.
58
Belém, 03/03/1945,MN.
59
Berkeley, 27/03/1945, MN.
60
Belém, 18/04/1945,MN.
188
Na sua derradeira missiva a Lowie, Nimuendajú conta que prepara a quarta expedição
aos Ticuna, que, incluindo a redação do material que seria coletado, o manteria ocupado até
agosto de 1946.61
Desafiando conselhos médicos, Nimuendajú viaja a terras ticuna. No dia 11 de
dezembro de 1945, é enterrado em São Paulo de Olivença, perto do Igarapé da Rita.
Sete anos após sua morte, é lançada sua última obra, em inglês.
61
Berkeley, 24/05/1945 e Belém, 13/08/1945, MN.
62
Lowie, p 124, referência à monografia The Tukuna, enviada a Lowie em março de 1943, publicada em inglês
em 1952, até hoje inédita ao português.
9 - Os relacionamentos amorosos
Atualmente, é conhecida a influência das vivências infantis e da adolescência, bem como das
relações amorosas, na vida das pessoas e na sociedade em geral. Identificar eventuais origens
e possíveis efeitos é tarefa delicada, ainda mais quando as culturas e o espírito da época de um
tempo passado contrastam com as opiniões que, mais tarde, passam a vigorar.
Neste capitulo, busca-se indicar atitudes e atos de Curt Nimuendajú, bem como capta-
los dentro de alguns contextos conhecidos até meados do século 20. Como essas “conexões”
tendem a ser muito mais sutis do que a interpretação de “fatos conhecidos” e a leitura de
documentos disponíveis, elas constituem muito mais hipóteses do que certezas.
A morte prematura dos pais no final do século 19 priva o pequeno Curt Unkel não
somente da convivência com eles, mas possivelmente também de ter acesso às imagens de
mãe-ser femenino e de pai-ser masculino no ambiente familiar. Segundo os dados existentes,
sua infância e sua adolescência são marcadas pela onipresença feminina: a irmã seis anos
190
mais velha, a avô materna, a tia materna, as professoras na escola. A única figura masculina é
a de um professor do colégio, seu tutor legal na adolescência, que, pela idade, poderia ter sido
seu avô.1
A escassa documentação existente sobre a vida de Curt Unckel na Alemanha não
contém qualquer referência a namoradas. A migração para o Brasil terá sido um choque para
o jovem de 20 anos, que abandona a fria e repressora cultura prussiana do início do século 20
para adentrar, décadas depois, a exuberante floresta amazônica, o quente cerrado maranhense.
Nas aldeias, índios e índias andam nus ou semi-nus. A sensualidade impregna o dia-a-
dia, mesmo das cidades do litoral, criando um ambiente diametralmente oposto ao reinante na
Alemanha, conforme relatos da daquela época. Durante sua permanência em São Paulo e suas
expedições pelo atual Mato Grosso do Sul, ele não registra relacionamentos amorosos em
seus diários de campo, onde costuma anotar os eventos importantes de cada dia.
Em 1922, já morando em Belém, casa-se com Jovelina do Nascimento, nascida em
1903, segundo informação do próprio Nimuendajú. Naquele mesmo ano, aos 39 anos, ele
adota a nacionalidade brasileira, sob nome de Curt Nimuendajú. Dungs a apresenta como
“lavadeira” e especula que o casamento aconteceu para facilitar a sua naturalização, hipótese
não comprovada.2
Meticuloso, ao longo do tempo Nimuendajú guarda exemplares da troca de
correspondência com Jovelina, a quem chama carinhosamente de “Lila”. As cartas
encontradas no arquivo do Museu Nacional, que não cobrem o período que vai de 1922 a
1934, apontam duas fases bem diferentes do que teria sido a vida em comum.
Na primeira etapa dessa correspondência, que parece estender-se de 1934 a 1939,
sente-se calor humano, proximidade anímica entre ambos. Em certas ocasiões, a relação à
distância vê-se tingida pela necessidade do reencontro pessoal, como nestas poucas linhas
enviadas por Jovelina:
Belém, 27-09-34
Eu tornei a recair de febres, mas já fiquei boa graças a Deus (...) O dinheirinho poupei
[o] que pude, mas tu sabes [que] com a doença eu tive mais gastos (...) vou pedindo a Deus
que você venha e as saudades são muitas. (...)
Lila
1
Cappeller, p 12.
2
DU, p. 25.
191
Certa vez, Jovelina envia um romântico cartão postal, que mostra um casal de jovens
brancos, elegantemente vestidos, cercados de rosas vermelhas e com pombas brancas nas
mãos:
Uma carta, enviada por Jovelina anos depois, lembra os sentimentos gerados pelo
romantismo literário que pregou alguns segmentos da sociedade brasileira (e da européia) no
século 19 e, aparentemente, continuam presentes no Pará:
Em 1939, Nimuendajú completa 56 anos; Jovelina, 36. Há quase 15 que ele se ausenta
meses a fio, deixando-a sozinha ou em companhia de conhecidos. A correspondência
disponível no Museu Nacional sugere que, aproximadamente a partir dessa data, muda o tom
da relação do casal.
Passa a vigorar um certo pragmatismo, talvez cansaço, talvez aceitação. Sinal disso é
uma carta, na qual ele conta as pequenas peripécias, como a falta de água em Manaus, o alto
custo de vida, mas também dá práticos conselhos do dia-a-dia, como se escrevesse a uma
amiga, a uma colega de trabalho:
193
Aparentemente, Lila não é o grande amor da vida de Nimuendajú. Ou talvez não ele
consegue – ou acha que não devia – mostrar carinho por escrito. Nas cartas disponíveis,
refere-se à esposa de maneira que surgem imagens nebulosas sobre casamento. Em missiva à
sua irmã Olga, comenta o fato de sua sobrinha, a filha de Olga, ser quarenta anos mais nova
do que o homem com que acaba de casar na Alemanha e conclui que:
[Belém 16/12/1937]
Para um homem primitivo como eu, isso significa pregar uma peça na vida. Eu sou
vinte anos mais velho do que a Lila e naquela época [do casamento] achava que era uma
diferença muito grande. Mas como Lila envelhece mais rápido do que eu essa diferença fica
cada vez menor. (...)
Curt
194
Porém, Jovelina vive 26 anos a mais do que ele. Na mesma carta, Nimuendajú mais
parece um observador participante doméstico do que o marido: “Lila vive comodamente com
suas galinhas, patos, pombas, papagaios, gatos, cachorros e uma penca de afilhados que
esquentam a cabeça da ‘madrinha Lila’ [em português] até que ela os bota para fora de casa”.
Em outra missiva à sua irmã, tem-se a impressão de que Lila ocupa um lugar fugidio,
uma posição indefinida, no mundo de Nimuendajú:
Belém, 24/04/1940
(...) Eu a Lila estamos bem de saúde, ela está forte e gorda. Lila não esquece que você
tem aniversário dia 11 e me encheu o dia inteiro para escrever a você. Ela mesmo fez 37 anos
no dia 10 de abril (?) [sic] e está toda orgulhosa da neta na Alemanha. (...) Continuamos
vivendo bem, mas claro que não vamos ficar ricos. Eu ainda vou aguentar uns anos nesta vida
de sertanista (...)
Curt
Ela é analfabeta, mas uma boa mulher. Você acredita que, se eu tivesse casado com
uma alemã, ela faria o que a Jovelina faz? Quando estou trabalhando à uma ou às duas da
manhã e preciso tomar um cafezinho, a Jovelina se levanta e prepara vários cafezinhos frescos
para mim. E sem resmungar. Ela é mais uma empregada do que uma esposa, mas é boa para
mim.
É difícil aferir, a partir do relato de Malcher, se Nimuendajú disse mesmo que sua
mulher era analfabeta. Uma carta enviada por Lila a Curt sugere que ela sabia escrever:
Belém, 28-05-34
(...) Meu bem, não se aborreça que eu pedi à Roseira para escrever esta [carta] por me
achar um pouco enfraquecida da doença. (...)
Lila
3
O diálogo foi contado por Malcher a Dungs em 1987 em Belém, p. 163, DU.
195
A caligrafia dessa carta, de fato, é diferente das outras existentes no acervo do Museu
Nacional. Só esse detalhe ainda não fornece prova conclusiva, pois naquela época era comum
pagar-se a uma pessoa alfabetizada para escrever cartas, o que, talvez, a Lila fez dessa vez,
devido à “doença”. Mas, se ela ditava a carta para o marido a terceiros, talvez teria tido
vergonha de expressar sentimentos que, sozinha, colocaria no papel. Nimuendajú, por sua vez,
não mostraria um lado íntimo, se alguém tivesse lido suas cartas para a Lila.
Segundo Malcher, Lila não sabia somar nem substrair, situação característica de
muitos analfabetos: “Toda vez que ele [Nimuendajú] preparava uma viagem, colocava
dinheiro em tudo quanto é buraco e fissura na casa para que Jovelina pagasse as despesas e
não gastasse tudo de uma vez só. Ela era analfabeta e não sabia fazer contas”.4
4
Malcher, DU, p. 164.
5
Cf. Laraia, em As mortes de Nimuendajú p. 71. Expedito Arnaud, entrevista em 1987 em Belém, DU, p. 168.
196
trouxe-me essa impressão. Quando vens de novo à nossa Barra? Teremos ainda o prazer de
vernos? (...)
Aceite lembranças minhas e um abraço da amiga
Liosete
Belém, 25-02-36
(...) agradeço-lhe o que tens feito pelos canelas, dando-lhes vestidos para as mulheres
deles. Se eles aparecerem novamente, conta-lhes que eu já sai do Pará e que no começo do
mês de maio estarei com eles. (...) Li, de vez em quando pego a sua carta e levo a encher as
linhas de reticências no fim dela. Quando chegar você me contará o que aí não está escrito?
Lembranças aos seus pais e um abraço e ---ha! --- do teu Curt.
Belém, 18-12-36
Eu sou de fato um sujeito abominável, Li. Sempre lhe disse que eu não prestava, mas
às vezes parece que você duvida. Não só nunca mais lhe escrevi depois de deixá-la em Barra
do Corda, como ainda mais deixei de [sic] passar quase duas semanas depois de receber sua
carta de 29 de novembro e tudo isto porque queria dar-lhe logo a certeza da minha volta.
Em janeiro de 1937, ele pensa em subir o rio Tocantins, passando por Imperatriz,
Porto Franco e Carolina para ficar entre os Xerente perto de Piabanha. Como assim não
passaria por Barra do Corda, ele acha uma alternativa para poder vê-la:
Só se na volta dos cherente [sic] tomo o caminho por terra de Carolina para Barra do
Corda. Isso seria em julho de 1937. Agora, pelo amor de Deus, Li, não fique amuado [sic], e
conta-me, antes de [eu ] seguir para a minha viagem: como foi que você veio parar no Anil?
Como você deixou os seus na Barra e que notícias teve deles? (...) escreva-me como dantes,
você me escrevia! Não se zanga [sic] com seu amigo velho que, na velhice, está ficando
preguiçoso para escrever. Olha, sabe quantas páginas tinha a minha última carta que mandei
para a América do Norte? – 52, escritas a máquina!. (...) Até quando agora, Li?! – Três beijos
sobre o seu coração do seu amigo Curt.
197
Em São Luiz, conhece uma moça chamada Maria Leonarda, que parece muito
afeiçoada a Nimuendajú. A troca de cartas vai de 1934 a 1939:
Meses mais tarde, Maria Leonarda agradece o dinheiro que Nimuendajú enviou:
6
Laraia, p. 71 e Welper, p. 7.
198
No dia 12 de maio de 1939, Curt Nimuendajú retorna a Belém, após dez meses de
expedições. A descrição desse dia é curta: “[ilegível] conta que Lila sabe das minhas relações
com Raimunda”. Nos três dias seguintes, já na sua cidade, ele enumera os seus encontros com
Raimunda.
As informações das cartas e dos diários íntimos fornecem uma visão relativa e parcial
da personalidade de Curt Nimuendajú, mas também quase nada dizem quanto às outras
pessoas citadas nesses episódios. Isso porque faltam documentos que permitam aprofundar os
fatos e contextos apresentados e mostrar as várias facetas dos participantes. Seria arriscado
julgar, segundo parâmetros culturais e morais do início do século 21, pessoas citadas em
contextos sócio-culturais de 70 ou 80 anos atrás.
Eu estava morando na casa do “meu irmão Matuk”, que era feiticeiro, e tinha visões
solares [espíritos ligados ao sol] foi rezar junto com uma moça Apinayé, chamada Irati, que
era tida como minha mulher, no mato e pediram ao Sol para que eu ficasse bom [sic].
Nenhum deles falou nada disso, eu só fiquei sabendo mais tarde através de outros índios.
7
Belém, 20/10/1937, DU, p. 279.
8
Barra do Corda, 02/05/1931, CS, p. 181.
199
da sociedade dos Tamhák, à qual pertenço. Assim fomos levar cada um uma grande cuia com
comida para o senado [pessoas ilustres da tribo] reunido no pátio, enquanto os outros estavam
dançando e, apresentando-nos assim, passamos a fazer outra vez parte da sociedade.
A cena é idílica. Possivelmente, faz bem a muitos “civilizados” saber que os indígenas
vivem não somente em contato íntimo com a natureza, mas que entre eles reina absoluta
harmonia. Tomar conhecimento de costumes que fortalecem o sentimento comunitário
também deve agradar muitos “neo-brasileiros” dos dias de hoje.
Dois anos mais tarde, ao explicar a cerimônia de iniciação dos jovens indígenas,
Nimuendajú volta a colocar Kentapi no centro de uma cena tribal:9
Depois que chegou aqui entre os Canela os índios resolveram dar uma mulher para ele
chamada Ken-taapi, não era menina nova, e em sua primeira relação com Kokaipó, Ken-taapi
não agüentou, os índios ficaram preocupados, ela ficou poucas horas com ele deitada.
Conforme o uso indígena, Kokaipó (nome de Nimuendajú na tribo) sai da casa de seus
pais Canela e vai morar com Kentapi e os pais desta. Depois de um mês, retorna a Belém.
Kentapi segue a tradição de deixar o cabelo crescer na ausência do marido.
9
Aldeia do Ponto, 10/07/1933, CS, p. 198.
10
Silva Júnior, Jonaton Alves da, Os Ramkokamekrá: sociedade em movimento, antes e depois de Curt
Nimuendajú, São Luís-MA, 2004, p. 26.
200
É assim que Nimuendajú a encontra em abril de 1930 quando está de novo na aldeia.
Realiza-se então a ceremônia pela qual se comemora o reencontro do casal. A foto que
Nimuendajú enviou a Carlos Estevão foi tirada durante essa visita.
Em agosto de 1930, Kokaipó deixa a aldeia para voltar a Belém. Em 1933 e em 1935,
ele está novamente pesquisando entre os Canela. Na hora da despedida na cidade de Barra do
Corda, conta Nimuendajú: “(…) os Canela que me acompanharam até aqui se despediram de
mim desconsolados, porque não lhes pude mais prometer que voltaria, como dantes sempre
fazia ao partir”.11 Nessa carta a Carlos Estévão, Nimuendajú não cita Kentapi.
Talvez imaginando que Kokaipó não retornaria, Kentapi decide contrariar o costume
tribal e refaz a sua vida na aldeia, relembra Maria Pyhkàl:12
(…) Ken-taapi gostou de outro homem que se chamava Iloia Tààmi, casou-se com ele,
os parentes de Ken-taapi se zangaram com ela cortando seu cabelo. A lei dos índios é quando
(…) o marido viaja, não deve se pintar e nem cortar o cabelo, assim que mulher [Kentapi]
gostou do Tààmi foi cortado o cabelo.
Kokaipó chegou e perguntou por sua mulher, ninguém não podia dizer para ele que
ela [Kentapi] não havia casado,[os indígenas] falaram a verdade, ele no mesmo momento
pede para os trabalhadores [que o acompanham] colocarem as cargas no jumento novamente e
volta para a localidade chamada Curicaco, onde se arrancha [se instala] na casa do branco
chamado Zaquiel. Sua casa tinha apenas paredes de palha. (…) As lideranças se ajuntaram no
meio do pátio [da aldeia] e chamaram a mãe da Ken-taapi, que se chamava Aykronõ,
encomendou [sic] para ela levar Ken-taapi para fazer as pazes com ele.
Só não houve um confronto entre os dois homens porque, naqueles dias, o marido
indígena de Kentapi estava caçando distante da aldeia.
Mas como Iloia Tààmi poderia voltar a qualquer momento da caçaria, era conveniente
para os indígenas agir com a maior rapidez possível. Portanto, a mãe de Kentapi pede a Maria
11
Barra do Corda, 30/06/ 1935, CS, p. 236.
12
Silva Jr., p. 27.
201
Pyhkàl, que nessa época era uma mocinha, para acompanhá-las até a casa onde Kokaipó se
instalara. Maria Pyhkàl continua narrando o que ela afirma ter presenciado pessoalmente
quase 70 anos atrás:13
Quando Ken-taapi chegou, bateu na porta, ele abriu, e eles se abraçaram, entraram no
quarto os dois. Passadas algumas horas, saiu e despachou a sogra dando facão, machado, pano
e dinheiro. Depois disso Kokaipó passou a raiva, quando deu a tarde ele voltou para Brejo dos
Bois [Nimuendajú chamava-o de Riacho dos Bois] que naquele tempo era aldeia. Antes de ele
chegar na aldeia os índios resolveram dar qualquer outra índia para ele e escolheram Maria
Conceição Muruwrá, mas ele não quis, ela não era tão bonita, e já tinha filhos.
Insatisfeito com a opção dada pelos Canela, Kokaipó decide agir por conta própria,
recorda a única testemunha ocular ainda viva em 2004:
Procurou outras mulheres, escolhendo Korẽ, que foi sua segunda mulher, com ela não
foi para a casa do sogro e da sogra dele, ficando [Kokaipó] na casa de seus pais. Passado uns
meses o pessoal fez uma prisão de Ikhréré [ceremônia de reclusão], e ele depois disso foi
embora para terra dele, não voltando mais, chegando [anos mais tarde] aqui [na aldeia] no
Ponto a noticia do falecimento, que ele tinha morrido na terra dele.
Com tantas relações amorosas, é alta a chance de Nimuendajú ter tido filhos. Nenhum
dos documentos conhecidos registra sequer uma insinuação nesse sentido. A exceção é uma
carta do próprio Nimuendajú a Carlos Estevão, envolvendo justamente Kentapi:14
Uma outra descoberta interessante: os Canelas tambem se dirigem ao Sol com preces!
Vi Kentapi sentada numa esteira em casa da mãe dela. Podiam ser umas 8 horas da manhã e o
sol entrava pela porta da casa até os pés da índia que estava comendo. De repente, ela
estendeu os braços com as mãos abertas rumo ao sol e disse com voz meiga e suplicante: “Pa-
pam, veja, eu aqui estou sentada e comendo só: dá-me um filhinho!” - Quando eu mais tarde
pedi que ela repetisse as palavras, ficou envergonhada e começou a rir, mas vendo que eu
estava [falando] serio, repetiu-as enfim e confessou que não era a primeira vez que assim
fazia e que a sua irmä Iromkre, pedindo um filho a “Nosso Pai”, fôra logo atendida.
13
Ibid. Segundo Nimuendajú, a ceremônia seria o Tep-yarakwa, cf. carta de 01/09/ 1936, CS, p. 257.
14
Aldeia do Ponto, 12/06/1933, CS, p. 195.
202
Casamentos realmente, dentro dos costumes Canelas foi somente com Kentapí, mãe da
ainda viva Pimenta, essa por sua vez mãe de Raimundo Nonato Kaare, ex-vereador municipal
de Fernando Falcão-MA. Os canelas consideram apenas esse como casamento propriamente
dito porque Nimuendajú foi o “primeiro homem de Kentapí”, ele a deflorou e morava na casa
dos sogros quando estava entre os Canela e com Kentapi.
Pela tradição canela, portanto, Pimenta é filha de Nimuendajú, embora seu pai
biológico seja um outro homem. Ela mesma estava convencida da paternidade, conta Silva
Júnior, que descreve um dos seus últimos contatos com Pimenta:16
No ano de 2003 estava eu voltando de campo com meu orientador [William] Crocker,
nosso transporte quebrou e ficamos confinados por mais de meio dia em um setor de roça
onde Pimenta estava plantando sua mandioca. Ela chegou para Crocker e perguntou em Jê:
“Keti sabes noticias do meu pai? ele sumiu e minha mãe morreu perguntando por ele!”.
Crocker me olhou e traduziu o que ela tinha falado, ele então respondeu que
Nimuendajú também já havia morrido, mas que tinha muita paixão pelos Canela e que se
soubesse algo dele no retorno em 2005 falaria com ela. Certa vez, em 2005, levei a foto dele e
de Kentapi que tem no livro “Cartas do Sertão” para ela como lembrança. Ao receber a foto,
ela fez o choro cerimonial dos Canelas para mim.
15
Silva Jr., entrevista em 23 de novembro de 2010. Segundo ele, Nimuendajú teria tido relações amorosas com
uma outra indígena, chamada Colhel.
16
Ibid, entrevista em 8 de fevereiro de 2011.
203
vistas como Curt. O parentesco é algo muito importante para eles, parte da organização da
sociedade e é elemento político”.17 Como Nimuendajú fazia questão de manter contatos
profundos e duradouros nas tribos, não é de admirar que tivesse casado em várias aldeias.
No Alto Solimões, possivelmente ele foi além dos limites fixados pelas próprias
tradições indígenas. E isto teria sido uma das prováveis razões de sua morte em 1945, numa
das muitas hipóteses sobre o seu falecimento.
Em maio de 1942, durante sua terceira expedição aos Ticuna, Nimuendajú visita
aldeias localizadas à beira de igarapés perto de Santa Rita do Weil. Como outras vezes,
hospeda-se na casa do seu amigo indígena Nino Atahyde. Mesmo sabendo das rigorosas
regras que determinam a vida das índias virgens até o rito de puberdade, ele não se contém.
Nimuendajú anota no seu diário íntimo de 1942 os encontros furtivos ao longo de três
meses com mulheres da tribo, citadas por seus nomes “cristãos”. Os registros apontam
relações sexuais com algumas delas; com outras, teria havido trocas de carícias.18
É de se imaginar que Nino Atahyde e outros líderes sabiam das relações de
Nimuendajú com as indígenas. Só que, paradoxalmente, nessa época ele ocupa um papel
central na cosmogonia de várias comunidades Ticuna da área do Igarapé Santa Rita.
Considerado a reencarnação do herói cultural Dyoé, o louro de pele curtida pelo sol e
atitude decidida é inclusive chamado a decidir questões complexas como casos de incesto. Ele
defende os índios contra os “neo-brasileiros” que queriam escraviza-los, constituindo-se em
seu porta-voz perante o governo federal, no caso o SPI.
Contudo, não seria irreal imaginar que, em algum momento, os Ticuna teriam
concluído que Nimuendajú, justamente na sua condição de herói cultural, estaria quebrando a
tradição que proíbe relações sexuais às moças antes da realização do rito de passagem à idade
adulta.
Será que Nino Atahyde teve que escolher entre manter a coesão social imediata da
tribo ou preservar a tradição fundadora do herói cultural? Esta possibilidade é reforçada pela
misteriosa morte de Curt Nimuendajú exatamente nessa aldeia Ticuna onde ele mantinha
relações com várias índigenas. Mas tudo fica a nível de hipótese.
A única herdeira oficial de Curt Nimuendajú foi Jovelina Nascimento, a “Lila”. Ela
passou a ser amparada pelas pessoas mais próximas ao pesquisador. Segundo Arnaud, dona
Heloísa, diretora do Museu Nacional, decidiu comprar o acervo de Nimuendajú e enviava a
dona Jovelina, mensalmente, a importância de Cr$ 1000,00.
17
Depoimento de Arnaud, DU, p. 166.
18
Diário de 1942, MN.
204
19
Arnaud, Expedito, Curt Nimuendaju, Aspectos de sua vida e sua obra, Revista do Museu paulista, XXIX,
1983-4 p. 68 e carta de Heloisa Alberto Torres de 31/12/1947, MN.
20
Arnaud, Ibidem.
21
DU, p. 26 e Ménchem, p. 212, ambos sem citar a fonte.
10 - O eterno gringo na pátria de adoção
Desde sua chegada a São Paulo em 1903 e até a adoção em 1922 da nacionalidade
brasileira, ele tem passaporte alemão. Mas não é o lugar de nascimento ou o documento que o
distingue de “pretos”, “mulatos” e mesmo “brancos” da capital. São a aparência física – louro
de olhos claros – e a maneira de falar e de agir (sotaque carregado, jeito decidido e direto de
conversar) que contribuem para que seja visto como uma pessoa diferente.
Porém, é justamente a sua decidida postura a favor dos índios que o transforma em
“alemão”, uma sutil metamorfose do conceito que designa uma nacionalidade para um termo
206
que descreve uma atitude, um comportamento de quem é assim chamado, mas também
assinala o (pre)conceito de quem o utiliza.
O primeiro confronto com a discriminação vem da hierarquia burocrática do SPI,
conta Nimuendajú. Em 1915, ele é comissionado pela Inspetoria de Índios do Maranhão para
“pacificar” a tribo Urubu, à beira do rio Gurupi, no norte do Estado. Meses de paciente
trabalho de mútua aproximação e criação de confiança acabam, porém, inesperadamente:
“No momento em que esses indígenas estavam contentes ao ponto de, através de sinais, me
pedirem facões, fui convocado urgentemente [à sede da Inspetoria regional], demitido e
responsabilizado pelo ataque alemão à Bélgica!!!.”1
Efetivamente, em 1914, o império alemão atacara a Bélgica e outros países, dando
início à Primeira Guerra Mundial. Mas isso foi na Europa, a milhares de quilômetros do
Maranhão. Para sua tristeza, tem início um estigma que o persegue a vida inteira.
Em 1923, a acusação o alcança entre índios Maué na longínqua Amazônia. Descendo a
pé o rio Maricuã, a cem quilômetros de Parintins (PA), encontra-se com o cacique José Leão,
que o recebe com extraordinária desconfiança. Misterioso, Nimuendajú só informa a Carlos
Estevão de Oliveira, amigo e diretor do Museu Emilio Goeldi, que o mês de permanência na
aldeia foi infrutífero para suas pesquisas etnológicas, “devido a uma estranha circunstância
que lhe contarei pessoalmente”.2
A “circunstância” é realmente estranha. Perguntando com jeito, Nimuendajú fica
sabendo que, em 1918, já no final da Primeira Guerra Mundial, os índios tinham sido
alertados contra espiões alemães. Confrontado em 1923 com essa acusação genêrica, mas
mesmo assim potencialmente letal, ele bate em retirada da aldeia maué: “Proceder a um
estudo etnológico dessa gente em tais circunstâncias era impensável. Minha partida deu-se
sob risco de vida”.3
Os temas “espião”, “alemão” e “espião alemão” são uma constante na sua vida. A sua
segunda demissão do SPI, ocorrida em meio à “atração” dos Parintintin no rio Xingu (PA)
poucos meses antes do episódio com os Maués, tem por base a mesma razão, segundo ele:
“(…) o maior mal da pacificação foi este de ter sido eu, o alemão, [sic] o chefe dela”.4
1
Carta ao diretor do museu de Gotemburgo, barão Erland Nordenskiöld, em 07/02/1925, MG.
2
Santarém, 02/07/1923, CS, p. 42.
3
Nimuendajú, Curt, Streifzüge in Amazonien, 1929, p. 89.
4
Nunes Pereira, p. 36.
207
Sexta-feira, 18: De manhã cedo, sou preso por Lopes, que ameaça me algemar. Depois
da partida de canoa [ilegível] e longas negociações, ele se acalma. Pedro Lopes chega.
Sábado, 19: Lopes me interroga, sou preso como “suspeito”. Pedro Lopes faz as vezes
de secretário. Lopes me trata bem.
Domingo, 20: Encerrado o expediente da minha prisão.
O diário de campo de Nimuendajú registra uma prisão, que ele nunca contou.
5
Nimuendajú, Brückstücke aus Religion und Überlieferung der Sipaia-Indianer, Anthropos, Band 14-15, 1919-
1920, p. 100.
6
Diário de campo de 1918, MN.
208
Inexplicavelmente, ele silencia sobre essa detenção. Não existe qualquer indício de
quem seriam as pessoas citadas nem as circunstâncias da “prisão”. Nem sequer ao fazer um
apanhado parcial das vicissitudes sofridas até 1938 ao seu amigo Herbert Baldus esse
episódio aparece. A sua amizade com os indígenas já tivera como contrapartida dois tiros de
revólver no sertão de Bauru, um ataque em plena rua em Barra do Corda e as mais loucas
acusações em abaixo-assinados e telegramas ao governo federal.7
Mas nenhuma palavra sobre o acontecido na Boca do Bahu. Terá sentido vergonha?
Quem sabe foi adquirindo traquejo à medida que as agressões se sucediam e, assim, algumas
escapam à memória fugidia?
Com o tempo, sua atitude muda. Quase vinte anos depois da “prisão” na região da Boca do
Bahu, ele vive uma situação parecida no sertão do Maranhão. Aqui também vigora a lei do
mais forte. Os latifundiários tentam primeiro o boato desmoralizador contra Nimuendajú, que
pesquisa em aldeias indígenas da área. Membros das famílias Arruda e Cravo espalham em
1933 que ele sumiu devido ao telegrama-denúncia dirigido ao Ministro do Trabalho de que
ele violentara várias índias.
Sua volta em maio de 1935 à aldeia Canela Apanyekra acende a boataria de que ele
rouba gado dos fazendeiros, o que Nimuendajú considera quase um álibi para futuros atos de
“proteção” da propriedade privada. No final de junho, ele é agredido nas ruas de Barra do
Corda e clama por justiça em alto e bom som. Depois de apresentar queixa à polícia local,
passa a receber ameaças diárias de que será assassinado.
Aberto o inquérito, os latifundiários, filhos da terra, mostram sua esperteza, indigna-se
Nimuendajú: “(...) do depoimento do acusado e de suas testemunhas resultou a evidência: que
eu não tinha sofrido agressão nenhuma, antes pelo contrário, tinha provocado estupidamente
o acusado e as testemunhas! Vendo que as outras testemunhas eram da mesma laia daquelas
duas, nem quis mais assistir ao depoimento delas, e retirei-me enjoado - e eles nem foram
mais depôr. (...) Aquele inquerito provou-me como, de fato, depende unicamente da boa
vontade deles de me assassinarem impunemente ou de me meterem na cadeia como ladrão de
gado”.8
7
Belém, 13/03/1938, DU, p. 192.
8
Barra do Corda, 02/07/1935, CS, p. 232.
209
9
Barra do Corda, 30/07/1935, carta a Walter Krickenberg, Museu Berlim.
10
O presidente Getúlio Vargas assina em 11 de maio de 1933 o decreto número 22.698, que autoriza o
Ministério da Agricultura a criar o referido órgão, o que ocorre em 28 de julho do mesmo ano, cf. Araci Gomes
Lisboa, O Conselho de Fiscalização das Expedições Artisticas e Cientificas no Brasil. Ciência, patrimônio e
controle, Universidade Federal Fluminense, 2004, p. 72.
11
Faria, Luis de Castro, A invenção do patrimônio: continuidade e ruptura na constituição de uma política
oficial de preservação no Brasil, 1995, p. 34.
210
12
Belém, 18/10/1933, carta a Walter Kaudern, diretor interino do Museu de Gotemburgo, MG.
13
Ofício reservado no. 26, de 11 de abril de 1932 ao Ministério de Relações Exteriores, p. 66, cf. Lisboa. A carta
a Nordenskiöld é de 03/09/1931, MG.
14
Belém, 17/02/1934, MG.
211
Fiscalização e emprende uma viagem aos Fulni-ô, em Pernambuco. Nos arquivos do órgão
não há registros de autorização. Para realizar a próxima expedição, contudo, é obrigado a se
apresentar ao Conselho.
Nimuendajú escolhe o caminho mais fácil e se dirige à diretora do Museu Nacional, a
cientista Heloisa Alberto Torres. A única mulher entre os sete membros permanentes do
Conselho fora empossada em julho de 1934.
Nimuendajú a conheceu pessoalmente em 1930, quando duas funcionárias do Museu
Nacional do Rio de Janeiro passaram por Belém: “Uma delas, a senhorita Heloise [sic]
Torres procedeu a excavações na ilha de Marajó e voltou ontem. Ainda não vi os resultados
de suas pesquisas”. 15 Em 1934, Nimuendajú pede a dona Heloisa, como hoje é lembrada no
meio antropológico, financiamento para as expedições. A resposta é negativa.
No reencontro epistolar em janeiro de 1935, a linguagem de Nimuendajú mostra uma
espécie de ressentimento, uma tensão que dominará o relacionamento entre ambos, tanto
pessoal quanto institucional.
A carta a dona Heloísa começa irônica: “Peço-lhe desculpas por dirigir-me novamente
à senhora, com manifesto desrespeito ao augusto silêncio com que respondeu às minhas
cartas de 12 de outubro, 26 de outubro e 2 de novembro [de 1934]”.
Seu objetivo é coletar peças indígenas entre os Canela para o Museu de Berlim, o
Nacional e de Goteburgo, além de completar os estudos, “especialmente sociológicos, que
desde 1929 estou procedendo naquela tribo”. Ele coloca a dona Heloísa uma questão que não
consta do vocabulário do Conselho: quem é proprietário das peças coletadas entre os
indígenas? A pergunta tem sua razão de ser. Em 1934, o Conselho determinara que parte da
coleção feita pelo etnólogo alemão Emil Snethlage fosse “devolvida” ao Museu Nacional.
Nimuendajú ouviu em sua casa em Belém o relato pessoal de Snethlage.
Ele diz ainda que tanto ela,diretora do Museu Nacional, quanto o diretor do Emilio
Goeldi, seu amigo Carlos Estévão de Oliveira, se comprometeram a comprar as coleções que
ele, Nimuendajú, fizer. Desafiante, exige clareza: “(...) desejava enfim saber em termos que
não permitam dúvidas se, em português claro, o Museu Nacional comprará a parte das
coleções que pretende ou se a confiscará por intermédio do delegado do Conselho”.16
Seu tom é forte, quase agressivo. Até parece querer ditar condições. Na verdade, ele só
quer saber o nome do delegado do Conselho de Fiscalização em São Luiz (MA) e também do
15
Rodapé 121, p. 373, CS, e carta de Belém, 22/10/ 1930, a Nordenskiöld, MG.
16
Belém, 13/01/1935, MN. Dois anos atrás, ele já vendera uma coleção ao Museu Nacional, cf. carta de
Nimuendajú a Carlos Estevão, de 10/07/1933: “Respondi imediatamente à Snrta. Heloisa Torres, prometendo
remeter a coleção assim que eu voltar ao Pará, cumprindo fielmente as instruções dela”, cf. CS. p. 198.
212
substituto. Sua intenção é esclarecer tudo antes de enfrentar o poeirento sertão maranhense e,
ao voltar carregando coleções, “evitar que a lei se transforme para mim em arapuca graças à
intervenção de uns tantos estranhos ao caso”.
Após informá-lo de que conseguira um empréstimo pessoal para financiar a expedição,
dona Heloisa o enfrenta:17
(...) Para poder ajuizar de certos casos é preciso conhecer-lhes todos os aspectos.
Muito estranhei a precipitação com que o senhor, depois de ter conversado aqui conosco
como conversou, julgou tão severamente as decisões do Conselho. Por conseguinte,
considero de bom aviso que, no futuro, o senhor se informe bem dos fatos antes de manifestar
opiniões a respeito, sob pena de se fazer passar por leviano. É preciso também que o sr. sabia
que não é somente o sr. a única pessoa que cumpre com a [sua] palavra no mundo.
Esse tipo duelo verbal é o núcleo da convivência entre Nimuendajú e dona Heloisa.
Ela, no Rio de Janeiro; ele, em Belém ou em alguma aldeia indígena. Ao longo de dez anos,
depois de cada choque vem a calmaria, que se expressa no tratamento formal, distante,
profissional. É por isso que, na mesma carta de fevereiro de 1935 em que revida o tom
peremptório de Nimuendajú, dona Heloisa responde friamente suas perguntas.
17
Rio de Janeiro, 02/02/1935, MN.
18
Belém, 09/02/1935, MN.
213
Dona Heloisa adverte Nimuendajú que ele pode ser considerado leviano.
19
GR, p. 201.
20
Bethlem, 1939:139 IX, in Giralda Seyferth, A assimilação dos imigrantes como questão nacional, in Mana v. 3
n.1, Rio de Janeiro, abril 1977, p. 1.
215
21
GR, p. 203.
22
Belém,12/04/1940, CS, p. 299. Por lei, ele deve prestar contas ao Conselho de Fiscalização.
23
Nimuendajú, Curt, Viagem de reconhecimento aos índios Gorotire-Kayapó do Rio Xingu, 1939-1940, filme
115, MI , p. 16. O documento leva data de 18/04/1940.
216
‘ninguém assina o papel [intimação judicial] e nem se apresenta. Eu, na minha próxima
viagem a Belém, vou arranjar tudo lá com o chefe de polícia’. E parece que arranjou mesmo.
Nestas condições, a afixação do decreto federal n. 5.484 de 1928 que dá garantias aos índios
torna-se um ato quase ridículo aos olhos dos moradores. A isto alia-se a carência de recursos
financeiros do SPI, o que impede uma ação intensiva e constante em zonas de difícil acesso,
onde o transporte é caríssimo. A ausência de pessoal suficiente para nomerar encarregados
locais do órgão de proteção aos indígenas aumenta a sua ineficiência operacional.
24
GR, p. 204. Filha de pai suíço e mãe inglesa, Berta Lutz tornou-se, aos 25 anos, a primeira funcionária
graduada do Museu Nacional em 1919, cf. http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/feminismo/bertha-lutz.php
acessado em 11 de abril de 2011.Carlos Otávio Flexa Ribeiro nasceu em Belém em 11 de agosto de 1914,
formou-se em Direito no Rio de Janeiro em 1935. Foi diretor de Educação da Unesco e deputado pela UDN e
pela Arena. Morreu em 6 de agosto de 1991 no Rio de Janeiro, cf. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós
1930. 2ª ed. Rio de Janeiro, FGV, 2001.
217
momento. Mesmo favorável à concessão da licença de pesquisa, Flexa Ribeiro propõe que os
futuros relatórios sejam “informes sociológicos exclusivamente [sic] obtidos nos grupos
indígenas”. Sem mencionar as coleções dos Gorotire entregues aos museus Nacional e Emilio
Goeldi, exige de Nimuendajú uma nova coleção. Berta Lutz, mais radical, vota contra a
autorização, que, contudo, é concedida, nos termos apresentados pelo relator.25
Termina assim a hegemonia de dona Heloisa e do Museu Nacional no Conselho de
Fiscalização. Começa o cerco xenófobo contra Nimuendajú. Seu delicado e nevrálgico
relacionamento com o Conselho de Fiscalização vai se tornar mais complexo ainda. Porém,
para ele a realidade do sertão é mais forte do que a das decisões tomadas no Rio de Janeiro.
Cansado de esperar pela autorização para ir ao Araguaia, que só foi dada em 12 de julho de
1940, ele embarca num navio para lá ainda no dia 22 de junho.
25
Reunião de 12/07/1940, GR, p. 204.
218
Caiapós [sic] que existia ao Oeste de Conceição do Araguaya [sic], nos rios Pau d’arco e
Arraias, tive de constatar que ele [o grupo de indígenas] já não existe mais”.26
A relativa cordialidade no Brasil científico-estatal dos anos trinta também deixa de existir
na década seguinte. Agora vigora a nova realidade, a da desconfiança, a do controle. O
Conselho exige que todo material etnográfico coletado por ele seja vistoriado pelo delegado
estadual desse órgão. O consolo da medida draconiana é que está esclarecida, indiretamente,
a pergunta de Nimuendajú a dona Heloísa em 1935 sobre a propriedade das coleções: as
peças serão avaliadas pelo Conselho, que determinará que instituição brasileira receberá
quais objetos.Os museus estrangeiros só poderão receber duplicatas existentes dos
originais.27
Desorientado, consulta a grande aliada, que conta: “Eu não estou mais no Conselho de
Fiscalização”. Dona Heloisa, porém, mantém a política de apoio: “O Museu Nacional poderá
patrocinar sua excursão, solicitando eu mesma a permissão. Para justificar a medida, eu
poderia declarar que o senhor à sua volta forneceria ao Museu Nacional um relatório geral da
viagem e que as coleções me serão oferecidas à venda. (...) Eu tenho facilidade em obter
urgência para a solução do caso”.28
Animado pela resposta, Nimuendajú pede autorização ao Conselho para realizar
estudos de sociologia e religião dos indios “Tukuna” e tribos vizinhas, no rio Solimões, com
financiamento norte-americano via Lowie. Fiel ao seu impulso de esclarecer situações, mas
também disposto a brigar, Nimuendajú decide enfrentar o Conselho.
No mesmo documento, lista os objetos por ele coletados e entregues a museus
nacionais e estrangeiros, de 1934 a 1940. Sua conclusão é que a maioria, em torno de 80 %
de pouco mais de 2 mil 600 itens, encontra-se no Brasil. Depois, declara a inocuidade da
determinação do Conselho de Fiscalização de que as coleções serão divididas pelo delegado
regional: “No mais, o atual delegado do Conselho de Fiscalização no Pará, Dr. Carlos
Estevão de Oliveira, já muito antes de existir um Conselho de Fiscalização, tinha costume de
visitar-me em casa cada vez que eu voltava de uma excursão para discutirmos o material
trazido por mim”.29
26
Belem do Pará, 22/06/1940,CS, p. 200 e GR, p. 206.
27
GR, p. 205.
28
Rio de Janeiro, 19/11/1940, MN.
29
Belém, 26/11/1940, in GR, p. 207.
219
Insatisfeito com tudo isso, ainda ironiza uma decisão do Conselho, numa alfinetada
dirigida diretamente a Flexa Ribeiro. Como a licença para viajar ao Araguaia autorizava a
expedição a deixar o Brasil pelo porto de Belém, ele devolve o golpe: “(...) sendo eu cidadão
brasileiro, estabelecido no país há 37 anos, não tenciono absolutamente deixá-lo”.
30
GR, p. 208. Flexa Ribeiro nada teria pessoalmente contra Nimuendajú, pois apenas seria o porta-voz da nova
tendência ideológica vigente no Conselho de Fiscalização, opina Grupioni, GR, p. 210.
220
Convém ainda rememorar que o livro é de 1930 e que a carta do sr. [Nimuendajú] é
datada do mês passado. E logo nos assalta esta indagação: no interregno destes últimos dez
anos houve completa negligência do pesquisador erudito no tocando a novas remessas? (…)
Pois se há dez anos atrás já o museu de Gotemburgo era o mais rico, na seção arqueológica,
em espécimes amazônicos, como não se encontrará agora, decorrido um decênio? Ou será
que o sr. Nimuendajú, dez anos volvidos, possuía tais exemplares, e de tamanha valia, que
antes de atingirem a soma de 226, já tinham força para fazê-lo o dono do melhor quinhão?
(…) Como aferir o valor intrínseco e extrínseco de um objeto arqueológico pela simples
designação de quantidade?
31
GR, 208. O livro de Nordenskiöld é citado em DU, p. 242.
221
32
Carta de Carlos Estevão ao Conselho, de 15/02/ 1941, GR, p. 212. Nimuendajú pensa que poderia ser
nomeado etnólogo dos museus Nacional e Emilio Goeldi. Com isso, deixaria de ser controlado pelo Conselho.
Se falhar, iria pesquisar os Ticunas na Colômbia e no Peru, Belém, 06/02/1941, DU, p. 307.
33
Parecer de 11/03/1941 e carta de Carlos Estevão, 18/04/1941, ambos em GR, p. 212.
34
GR, p. 214 e 215.
222
35
Belém, 12/01/1942, DU, p. 318.
36
Respectivamente, 8 de janeiro e 4 de fevereiro de 1942, GR, p. 216.
37
GR, p. 216.
223
38
Ibid, p. 217.
224
enviado o relatório que Flexa Ribeiro afirma não ter recebido. À beira de mais um conflito
institucional, dona Heloisa pede ao ministro da Educação, Gustavo Capanema, que interceda
nessa nova briga entre o Conselho de Fiscalização, o Museu Nacional e Nimuendajú.
Em 13 de março de 1942, dona Heloisa explica que o pesquisador enviara de Belém,
em 4 de novembro de 1941, o relatório da viagem aos Ticuna desse mesmo ano. Como o
documento está extraviado, ela solicitou providências aos Correios e coloca a cópia que
possui à disposição dos membros do Conselho. Graças à intervenção de Capanema, em 7 de
abril de 1942, o Conselho de Fiscalização volta atrás e Nimuendajú visita os Ticuna.39
Mais uma vez, a ação política derrota a facção xenófoba do Conselho de Fiscalização.
Mais uma vez, Nimuendajú não espera pela autorização e em 6 de abril de 1942, um dia antes
da concessão ser dada no Rio de Janeiro, já viaja para o Alto Solimões. Lá é ser preso sob
suspeita de espionagem, mas liberado sem provas.
O abatido Nimuendajú volta a Belém e durante três anos não empreende nenhuma
expedição. Somente após a derrota militar do nazismo na Alemanha em maio de 1945 é que o
Conselho de Fiscalização deixa de controla-lo. Ironicamente, sua última expedição aos
Ticuna no final de 1945 acontece inclusive com a rcomendação do Conselho. Mas
Nimuendajú falece justamente durante essa viagem.
39
Ibid, p. 220. Posteriormente, os Correios devolvem o exemplar extraviado, que é entregue ao Conselho de
Fiscalização.
225
Como era visto Nimuendajú pelos alemães de sua época? Além da amizade do
sociólogo Herbert Baldus, o único depoimento que eu achei foi o de August Brückner. Ele
esteve no Brasil em 1929, junto com sua esposa, a cineasta Pola Bauer-Adamara, enviados
pela então famosa distribuidora alemã Ufa, para filmar na Amazônia. O casal contrata
Nimuendajú para ir até as aldeias Ticuna do Alto Solimões. Nas anotações de 20 de julho de
1929 de seu diário de viagem, August avalia Nimuendajú:43
40
Edição de 17/12/1845, GR, p. 241.
41
Amoroso, Marta Rosa, Nimuendajú às voltas com a história, Revista de Antropologia, v. 44, nº 2, São Paulo,
2001, p.1.
42
Faulhaber, Priscila, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 35, julho-dezembro 2005, p. 113 e 121, e Etnografia na
Amazônia e Tradução Cultural: comparando Constant Tastevin e Curt Nimuendaju, no Boletim do Museu
Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 3, nº 1, jan.-abr. 2008, pp. 16 e 26.
43
Brückner, August, 3000 Kilometer auf dem Amazonas, Aus dem Tagenbuch August Brückners, Berlin, sd., p.
69. No dia 14 de agosto, outra anotação: “Os conhecimentos de Nimuendajú são imprescindíveis para a ciência,
que ele conquistou somente porque renunciou a ser europeu. Mesmo que se tenha alguma objeção a esta decisão,
ele deve seu conhecimento [sobre os indígenas] ao fato de ter adotado a língua, os costumes e os hábitos
indígenas”.
226
Não sabemos como ele realmente se chama. No Pará, é apenas conhecido com esse
nome. Certamente que no passado foi alemão, pois domina o idioma sem sotaque. Ele
conhece muito bem as peculiaridades [da cultura e política] alemãs. Mas ele virou índio
mesmo. Sua mulher também é uma indígena. Seu conhecimento etnológico é extraordinário.
(…) Sua vida será sempre um mistério, que ele o levará ao túmulo. É uma pessoa que diz de
preferência o que as pessoas querem saber dele, mas nunca [fala] dele e do seu passado.
No dia 5 de setembro, Nimuendajú diz a Brückner estar preocupado com ele. Sua
febre chega a 38,5 graus, a pele parece seca e fizera um escândalo desproporcional devido a
uma atitude impensada de Josua, acompanhante da expedição.A viagem é interrompida
devido à péssima saúde de August Brückner.
Três meses mais tarde, ele morre de malária e é enterrado em Belém. Pola Brückner
ainda faz tomadas na ilha de Marajó para os filmes que levaram o casal ao Brasil –
Urwaldsymphonie, lançado em 1931, e Die grüne Hölle, em 1930-31. A Carlos Estevão,
Nimuendajú conta que o casal não quis pagar o preço combinado pelo seu trabalho de guia e
intérprete.44
Os únicos registros de reconhecimento ao seu trabalho etnológico ainda em vida
provêm de estrangeiros. Repetindo um comportamento habitual, em 1938 Nimuendajú custa
a aceitar elogios de Alfred Metraux: “Eu sei que os meus resultados estão aquém dos de
Koch-Grünberg e Gusinde. O elogio que o senhor me fez – ‘turning point in the studies [sic]
of American Anthropology’ – não posso nem quero aceitar, na certeza de que (eu tenho esse
desagradável pressentimento) os outros pesquisadores irão rir disso”.
Ao contar o episódio a Lowie, recebe uma inesperada homenagem. O etnógrafo de
Berkeley afirma não conhecer ninguém na América do Sul que tenha produzido trabalhos
comparáveis às suas pesquisas sociológicas.45
Lowie mata a cobra e mostra o pau, numa certeira avaliação:
Não é exagero falar que os trabalhos do senhor marcam época, devido a três razões: 1)
as tribos Gê são decisivas para o estudo da América do Sul; 2) o senhor tem a rara habilidade
de conquisar a confiança dos índios; e 3) o senhor evita enfatizar apenas um [sic] aspecto
mais apreciado pelos mesmos, como a religião, mas atribui a mesma importância a todos os
aspectos da cultura, algo que na prática nem sempre é possível de atingir.
44
Ibid. p. 105, e carta de Nimuendajú p.143, CS.
45
Belém, 24/07/1938, p. 249, e Berkeley, 08/08/1938, p. 291, ambas cartas em DU.
227
Treze anos após a morte de Nimuendajú ocorrida em 1945, seus restos mortais foram
depositados numa igaçaba, na entrada da Seção de Etnologia do Museu Paulista, na
Universidade de São Paulo.
Aí ficou 23 anos. Até que, em 1981, a etnóloga de ascendência alemã, Thekla
Hartmann, venceu a burocracia e conseguiu realizar o enterro na capital paulista, no jázigo de
um amigo alemão de Nimuendajú.
O relato da etnóloga:46
46
Hartmann, Thekla, O enterro de Curt Nimuendajú, Revista do Museu Paulista, São Paulo, 1981/2 p. 190.
11 - As quatro pré-mortes
A primeira pequena morte ocorre durante a sua longa estadia entre os ticunas no Alto
Solimões em 1942.
Ao chegar em maio ao igarapé da Rita, no município de São Paulo de Olivença, ele
fica sabendo que na região comenta-se que ele fora morto e degolado. O boato é espalhado
por Roberto Mafra, subdelegado de policia e primo do seringalista Antônio Roberto. A
campanha de difamação transforma fatos acontecidos em outros lugares em intrigas
locais. A descoberta em abril de um rádio clandestino de alemães que transmitiam dados
229
sobre navios ancorados na baía do Rio de Janeiro, vira peça acusatória em setembro na
floresta amazônica. Assim, pela boca dos seringalistas, Nimuendajú vira espião alemão,
escondido no igarapé da Rita e que usa o rádio para enviar informações secretas a Berlim.
Outra acusação dos seringalistas é que ele teria feito um mapa dos igarapés para os
bombardeios dos nazistas quando atacarem o Brasil e, por isso, o governo getulista estava
prendendo todos “esses alemães que andam se escondendo entre nós” e que no pais só
deveriam ficar “nós, os brasileiros”.1 Ainda em Belém, antes de começar essa viagem,
Nimuendajú pressente uma armação e confidencia ao etnólogo norte-americano Alfred
Metraux seu receio de ser perseguido pela polícia estadual do Amazonas. O golpe contudo
virá de militares de baixa patente.
Ele capta o primeiro sinal numa reunião com oficiais do Exército do destacamento em
Tabatinga, quando um tenente transforma a conversa “num verdadeiro inquerito com o fim
manifesto, não de informar-se sobre a minha pessoa e os meus trabalhos, mas de comprovar
por meio de perguntas maliciosamente insinuantes que eu era aquilo que ele queria que
fosse: um espião alemão”.2 Quatro meses mais tarde, esse militar seria o executor da prisão
ilegal de Nimuendajú.
Enquanto isso, o cenário político brasileiro muda de maneira radical. A ambiguidade
do presidente Getúlio Vargas de apoiar o governo norte-americano na Segunda Guerra
Mundial sem romper com a Alemanha nazista chega ao fim. O pretexto são novos ataques de
submarinos alemães a cargueiros brasileiros. Em agosto de 1942, o Brasil declara a guerra aos
países do chamado Eixo (Alemanha, Itália e Japão).
Pessoas dessas nacionalidades - e seus descendentes - são observadas, vigiadas,
perseguidas, encarceradas, inúmeras confinadas em campos de concentração. No Alto
Solimões, os descendentes de alemães não falam a língua dos antepassados nem cultivam suas
tradições, apenas herdaram sobrenomes como Müller e Günther.
Um juiz de São Paulo de Olivença afasta um policial, alegando que esse não deve
ocupar cargo público por ser de origem alemã. Pelo mesmo motivo, o comandante de um
barco nega o embarque a pessoas em situação parecida. Nimuendajú se pergunta: se isso
acontece com brasileiros nascidos no Brasil, o que seria para quem nasceu na Alemanha
mesmo e fala com sotaque carregado? Será aceito no barco de retorno a Manaus? 3
1
Cartas de Igarapé da Rita, 09/05/1942 p. 308 e Igarapezinho, 12/06/1942, p. 311, ambos CS. Em 1915 e em
1923, ele já se defrontara com o fantasma da suspeita de espionagem.
2
Belém, 01/02/1942, MN. e CS, p. 310. Prevendo dificuldades, Carlos Estevão tinha recomendado Nimuendajú
a Balié Monteiro, chefe do destacamento do Exercito em Tabatinga, cf. CS, rodapé 222, p. 382.
3
Igarape da Rita, 03/09/ 1942 CS, p. 327. Dias antes, lera a carta de Carlos Estevão, de 26/08/1942, onde ele
informa sobre a iminência da guerra, GR, p. 225.
230
(...) pela manhã fizemos escala em Santo Antônio do Içã onde agora se acha o
destacamento federal que no ano passado estava em Tonantins. E estando eu sentado no salão,
apareceu-me o capitão Osvaldo Camargo Novaes, o mesmo com que [quem] tive aquela
entrevista desagradável em Tabatinga, em casa do Ten. Baliú, dando-me voz de prisão e
entregando-me a um sargento para ser conduzido preso a Manaus. Este sargento era o mesmo
cujas exigências descabidas eu tinha me negado a atender em Tonantins, no ano passado, mas
o comandante Amorim telegrafou logo à SNAPP e creio que desta maneira o Snr. [Carlos
Estevão] tambem ficou ciente do ocorrido.
A prisão a bordo dura cinco dias. No dia 30 de setembro, o navio aporta em Manaus.
A violência da detenção no Alto Solimões contrasta com a amabilidade com que é tratado por
militares e policiais. Também pudera: Carlos Estevão, diretor do Museu Emilio Goeldi,
conseguira uma recomendação do comandante da Região Militar de Belém, a quem os
militares de Manaus estão subordinados.
Nimuendajú reencontra um tenente que fora comandante de um batalhão de fronteira
em Tabatinga, o comandante militar de Manaus entrega-lhe pessoalmente as chaves de suas
malas. Na delegacia de polícia, cita seus desafetos e as razões da inimizade dos seringalistas
contra ele. Nimuendajú abandona a delegacia imediatamente depois. Aparentemente tudo está
acabado, sem grandes prejuízos.
Em sua primeira carta em português, devido à censura em época de guerra, ele narra a
Lowie o repúdio que sofre no Brasil: “Minhas perspectivas futuras são muito tristes, não me
vejo em condições de me sustentar com o meu trabalho. Só tenho recursos [econômicos] até o
final do ano. Nos Estados Unidos sou avaliado pelo meu desempenho, aqui sou visto como
um estranho”.5
4
Manaus, 01/10/1942, CS, p 331. SNAPP significa Serviços de Navegação do Amazonas e Administração dos
Portos do Pará.
5
Belém, 26/10/ 1942, DU, p. 320.
231
Ele é tido como espião nazista, a serviço do país onde nascera contra a nação que
escolhera para ser sua pátria. A xenofobia grassa tanto nas grandes cidades quanto no interior.
Mesmo autorizado a trabalhar sem qualquer restrição formal, uma expedição exigiria gastar
mais energia em desfazer suspeitas e se defender de acusações infundadas do que
propriamente dedicar-se a tarefas etnológicas. Com trabalho e recursos garantidos só para dois
meses, confessa a Baldus a sua crise existencial: “A situação em que fiquei (...) é muito triste:
perdi, a bem dizer, a minha razão de ser, e não sei como hei de viver”.6
É demais para ele. Intimamente quebrado, impõe-se um auto-exílio em sua casa, em
Belém. São quatro meses de profunda depressão. De outubro a dezembro de 1942, não tem
forças para conferir anotações ou rever peças coletadas. Ele fica na rede, tentando entender o
desencontro entre seu sentimento de brasileiro e o fato de que alguns setores do país onde
mora 40 anos o tratam como inimigo mortal.
Aos poucos, retoma as atividades que são uma parte de sua razão de ser. No início de
fevereiro de 1943, surge uma nesga de luz no seu escuro túnel existencial: ele recebe o seu
6
Belém, 22/11/1942, MN.
232
recém publicado livro The Serente, enviado por Lowie. Mas não consegue articular uma
resposta ao seu parceiro norte-americano.
No dia 12 desse mês, vence por algumas horas esse estado de prostração e conta a
Lowie que mal consegue avançar com o original sobre os Tucuna. Sim, já tem 200 páginas
escritas a lápis, mas sem prazo de conclusão. Neste mesmo dia, em carta ao antropólogo
norte-americano Julian Steward, diz estar na insustentável e vergonhosa situação de viver uma
vida perdida. Em 10 de março, ele envia o manuscrito de The Tukuna a Lowie e tenta
entusiasmar-se: “são ao todo 146 páginas, com um número enorme de fotos e resumos. (...)
Agora vou escrever alguns artigos para o HSAI [publicação etnológica patrocinada pelo
governo norte-americano]”.7
Mesmo assim, recusa a segunda oferta de Baldus de se mudar para São Paulo. Em
1939, já dissera “não” à hipótese de dar aulas de Etnologia na USP porque não quer ser
acadêmico. Em 1943, tem argumentos bem diferentes para repetir a negativa: artigos pagos
não são uma alternativa real porque no momento nada tem para publicar, mora na sua
modesta casa em Belém, onde conhece o meio social. Mas principalmente paira a quase
certeza de que em São Paulo sofreria o mesmo acosso xenófobo que o atinge na floresta
amazônica. Efetivamente, a caça às bruxas contra descendentes de alemães, italianos e
japoneses acontece em âmbito nacional.
Meses depois, queixa-se a Lowie da sua penúria econômica: “Mal consigo sobreviver
com os pequenos artigos para o Museu Paraense [Emilio Goeldi] e [para] Steward. Não sei
como vai ser daqui em diante. Minha situação tem piorado cada vez mais. No museu não sou
mais tratado como antigamente. (...)”.8 Assim, quando Steward informa que o mapa etno-
histórico será dividido em três seções para publicação e impresso somente em preto e branco,
sua mal-humorada reação é: “Quando às modificações no mapa, faça como o senhor achar
melhor”.
Nimuendajú se revolta com a sua situação em que vive, admite a Metraux: “Dias atrás,
o general Rondon me convidou a assumir a direção de uma expedição aos Bororo, Umatina e
Bakairi. (...) Eu apenas espero a passagem aérea para viajar ao Rio de Janeiro (não
divulgue!!!) Infelizmente empobreci de tal maneira que me falta o básico [de roupa e calçado]
e sinto vergonha de me apresentar desta forma no Rio de Janeiro, além de que minha casa
ficará sem auxílio [econômico]”.9
7
DU, p. 320, GR, p. 226 e Belém, 11/03/1943, DU, p. 321.
8
Belém, 14/06/1943, DU, p. 322.
9
Carta a Steward é de 12/08/1943, p. 332 e a Metreaux de 10/07/1943, p. 253, ambas DU.
233
O segundo choque letal dá-se em meados de 1943, justamente quando aceita o convite do
general Cândiro Rondon de ir ao Rio de Janeiro. Sua antiga tese de que o SPI precisa de
etnólogos em cargos de direção finalmente se impõe entre os militares que mandam no órgão.
Até então, a participação de civis no SPI era muito restrita.
Em carta a Baldus, Nimuendajú conta que um funcionário do governo ficou
impressionado com o fato do órgão norte-americano de assuntos indígenas ter orientação
científica. Mas o SPI negara-se a aceitar a participação de etnólogos e a solução foi criar o
Conselho Nacional de Proteção aos Índios, embora sob a chefia de um militar, o general
Rondon. Como nem o general nem qualquer civil têm experiência em estudos etnológicos,
deixou-se de lado a questão científica. Mas como havia recursos financeiros disponíveis, o
CNPI comprou equipamento de filmagem e enviou uma equipe para a área de origem do
general Rondon, no atual Mato Grosso do Sul.
Segundo Nimuendajú, a chefia ficou a cargo de “Harold Schultz, brasileiro nato de
origem alemã, bastante habilidoso, ativo e inteligente, e que pelo menos conhece as obras de
Steinen e Koch-Grünberg. (...) Apesar do senhor Schultz ter feito mais do que era de se
esperar de um homem inteiramente novato no campo da etnografia, o resultado não podia
justificar de forma alguma a existência de um Serviço Etnológico do CNPI e da respectiva
verba. Só então que resolveram chamar a mim [sic]”.10
Mesmo o honroso convite do general Rondon para chefiar o Serviço Etnológico tem
um laivo de amargura, revela Nimuendajú:
Porque a mim? Ninguém do SPI nem do CPI jamais leu uma linha do que eu escrevi,
nem conhece sequer o título de qualquer publicação minha. Mas o coronel Jaguaribe, membro
do CNPI e chefe do serviço de Acabamento da Carta do Mato Grosso, no Estado Maior do
Exército, quando esteve na França há alguns anos atrás ouviu do boca de (Paul) Rivet um
juízo sobre as minhas contribuições ao Journal de la Societé des Américanistes que foi o
suficiente para convence-lo [a Jaguaribe], e com ele todo o CNPI de que eu era uma sumidade
em etnologia e o único no Brasil capaz de cobrir com o seu renome científico.... a verba!
Mesmo depois de assentado isto ninguém ainda achou que valesse a pena verificar uma vez
em que se baseava semelhante juízo.
10
Belém, 10/11/1943, MN.
234
Sua conclusão sobre o futuro do recém criado órgão é sombria. Ele insinua que a
ênfase na filmagem de indígenas revela mais uma intenção propagandística do que interesses
científicos:11
O que se esperava de mim era que traçasse vistosos programas de trabalhos de largo
fôlego, executados por meio de grandes expedições, mas ninguém tinha a menor idéia como e
em que condições um etnólogo deve trabalhar em campo para obter um resultado que
satisfaça mais ou menos as exigências da etnologia moderna. Julgavam tal resultado garantido
pelo aparelhamento cine-fotográfico que tinham adquirido. (…)
Apesar das dúvidas quanto à viabilidade do trabalho no CNPI, ele quer negociar. Em
julho de 1943 voa ao Rio de Janeiro para decidir a questão. No aeroporto militar do Galeão, é
recebido pelo general Rondon, o coronel Jaguaribe e a diretora do Museu Nacional, Heloisa
Alberto Torres.
11
Ibid. Em 1995, o antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima acentua o lado midiático da ação militar voltada
para os índios, cf. Lima.
235
Nas discussões dos dias seguintes, Nimuendajú coloca claramente sua posição. Não
seria possível fazer nenhum tipo de trabalho etnológico enquanto o jovem etnólogo Harald
Schultz quiser filmar ao mesmo tempo, junto com cinco ajudantes, as tribos visitadas. Seria
gente demais para ganhar a confiança dos índios.
Um coronel presente exige que ele aceite essas condições e ainda leve alguns
estudantes de etnologia juntos. Mas Rondon concorda com Nimuendajú, embora o salário
inicialmente proposto em telegrama fosse reduzido em 20 por cento.
O que seria o coroamento de sua vida não acontece. No lugar disso, sobrevém um
obstáculo intransponível, que inviabiliza tudo o que fora penosamente acordado. Em meio às
negociações no Rio, Nimuendajú tem um ataque de glaucoma, que quase o deixa cego.
Aliás, sua primeira expedição, no agora longuínquo ano de 1904, fora interrompida
exatamente por causa de uma severa inflamação dos olhos. Em 1943, apesar da recuperação
parcial da visão, exames de rotina revelam, por outro lado, agudos problemas digestivos, diz a
Baldus: “(...) os médicos chegaram à conclusão de que o meu estado sanitário [de saúde] era
tal que eu devia abandonar de uma vez e para sempre a minha vida de sertão e de convivência
com os índios”.12
Paradoxalmente, é justamente o desgaste do seu engajamento de exatos 39 anos entre
indígenas em mais de 13 Estados que o impede de transformar sua experiência no mato em
direção estratégica do órgão estatal indigenista. No lugar da almejada influência científica e
civil no SPI através do CNPI, surge um minguado acordo com o Museu Nacional para
traduzir suas obras ao português e colaborar com o general Rondon no CNPI.
Mas pelo menos sente-se protegido contra seus adversários, diz a Lowie: “Isto me
daria um pequeno salário mensal, mas também proteção contra as maldades dos últimos anos.
No Rio não conheci nada das perseguições a que me vejo submetido aqui. Ao contrário, civis
e militares me trataram com grande consideração”.13
A mesma razão que impede a posse de Nimuendajú como primeiro etnólogo em cargo de
chefia no órgão estatal indigenista o obriga a abandonar a vida do sertão. Esta é a terceira
pequena morte. De volta a Belém no dia 15 de outubro de 1943, cai novamente num estado
depressivo, que o impede de comunicar-se com seus missivistas.
12
Belém, 10/11/1943 MN.
13
Belém, 06/11/1943, DU, p. 324.
236
A única exceção é dona Heloisa, que a tudo assistiu no Rio, e a quem agora pede
ajuda: “Não é possível achar [em Belém] o medicamento receitado pelo meu médico [do Rio
de Janeiro]. Lembrando-me da sua cordial proposta, peço a gentileza de me enviar cinco
vidros de piperasina Midy. Até agora estou sobrevivendo à custa de uma dieta à base de leite
e frutas”.14
Somente no início de novembro tem força para expor sua penúria e tristeza a Lowie,
Baldus e Metreaux. Nimuendajú destila tristeza na correspondência com o seu confidente
Lowie:
Por motivos de saúde tive de renunciar para sempre à vida que levei quase 40 anos em
convivência com os índios. (...) A mim semelhante solução causou uma grande tristeza. O sr.
bem sabe como eu amava esta vida e como eu estava identificado com os indios. Parece-me
incrível que eu nunca mais hei de ver os campos dos Canella [sic] banhados em sol, nem os
igapos sombrios dos Tukuna [sic]. Além de que eu pensava ainda de fazer algumas coisas que
agora talvez nunca mais serão feitas.15
14
Belém, 29/10/1943, DU p. 225. Nimuendajú terá certamente conversado com o seu amigo Carlos Estevão de
Oliveira, que também morava em Belém, mas eu não achei qualquer documento a este respeito.
15
Belém, 06/11/1943, DU.p. 323.
237
Se eu realmente não for mais trabalhar, eu vou sentir falta primeiro dos meus indios e
segundo do trabalho com os cientistas norte-americanos, que eu realmente apreciei durante
nove anos. Mas agora chega de choro! Do seu velho amigo. PS: eu também sinto saudades da
compreensão que Lowie e o senhor demonstravam especialmente pelo meu trabalho. Aqui eu
sou julgado somente pelo que ouvem de mim, me vêem como um estranho, eles têm essa
mentalidade que o senhor pessoalmente conheceu. Não posso viver em paz devido às pessoas
de quem eu dependo.
A quarta pequena morte provém da tradução ao espanhol da sua primeira obra As Lendas da
Criação e da Destruição do Mundo como Fundamento da Religião dos Apapocuva-Guarani.
É um drama iniciado em 1937 e que só estoura em 1944.
16
Berkeley, 06/12/1943, MN.
17
Washington, 02/12/43, DU, p. 254.
18
Cartas de Berkeley, 22/11/1944, MN e de Belém, 04/08/1944, DU, p. 332.
238
19
Carta de Baldus de São Paulo, 11/10/1937. Ele omite que Recalde é exilado político. Nimuendajú responde de
Belém, 22/11/1937, ambas no MN.
20
São Paulo, 08/03/1942, MN.
21
Belém, 29/07/44, MN.
239
Nimuendajú explica que, após quase 30 anos da publicação original, haveria correções
a serem feitas. Ele diz que aceita de boa vontade os comentários de Recalde sobre a parte
linguística, mas “(...) ainda não recebi os exemplares que elle [sic] me prometeu. Há pouco
tempo, convicto da necessidade de ser corrigido aquele trabalho, eu tratei com o Museu
Nacional a sua tradução e publicação. Naturalmente, serei agora obrigado, bem contra a
minha vontade, a referências constantes ao trabalho do Dr. Recalde, a não ser que eu prefira
declarar bem alto e publicamente que a tradução dele fora feita sem a minha autorização e
conhecimento e que considero-a inexistente”.
Constrangido, Baldus desculpa-se imediatamente: “Naturalmente trata-se de um
lamentável equívoco. A culpa é exclusivamente minha e peço-lhe perdão”. Ele conta que não
explicara corretamente a Recalde que a tradução seria apenas do texto em guarani.
Tentando desarmar o indignado Nimuendajú, explica que o tradutor “evitou ou
modificou cuidadosamente certas referências e expressões cuja tradução talvez podesssem ser
desagradavel ao Snr, isto é desagradavel não por razões científicas, mas ‘cívicas’ . O Snr.
compreenderá imediatamente a que me refiro, quando recebe [sic] e lê [sic] a tradução”.22
22
São Paulo, 02/08/1944, MN. Baldus argumenta ainda que a tiragem de 100 exemplares não deverá ter grande
divulgação, pois se destinaria exclusivamente a linguistas.
240
A frase de despedida tem algo de ingênuo: “Espero ansiosamente sua resposta, para
saber se a tempestade já passou”.
23
Belém, 31/08/44, MN.
241
No início de 1945, finalmente Nimuendajú lê a tradução. Mais uma vez, o circo pega
fogo. Ele ataca tanto o desconhecido Recalde quanto o amigo e confidente Baldus:24
24
Belém, 08/01/1945, DU, p, 200.
242
Diante do rumo que o problema assume, Baldus confessa que sente vergonha por ter
sido negligente, pois Nimuendajú examinara a tradução com a escrupulosidade que ele
mesmo deveria ter feito. Admite que tentara servir dois amigos, mas que o resultado é ruim.
Segue-se um minucioso mea-culpa, um ato de integridade intelectual:25
Baldus tenta mais uma vez satisfazer as duas partes e propõe uma fórmula salomônica
para agradar Nimuendajú sem prejudicar Recalde: “Basta declarar na versão portuguesa da
mesma obra: ‘Por um mal-entendimento [mal-entendido], o tradutor da versão espanhola
publicada numa edição mimeografada de 100 exemplares não se limitou, conforme a minha
autorização, à tradução dos textos das lendas, mas traduziu inteiramente o texto alemão. Esta
tradução contém numerosos erros, não podendo eu assumir nenhuma reponsabilidade por ela’.
Acho portanto, não ser preciso citar o nome do tradutor”.
25
São Paulo, 16/01/1945, MN.
243
Possivelmente, o mal só não é maior porque a tiragem não passa, de fato, de escassos
cem exemplares mimeografados, dez dos quais Recalde enviou a Nimuendajú. Só que o
próximo parágrafo da carta a Lowie permite imaginar que Nimuendajú talvez tenha jogado
fora os exemplares que recebeu:
Quando o senhor ver um desses exemplares, por favor comunique meu juízo ao dono.
Eu não lhe envio um exemplar porque é volumoso e eu não tenho dinheiro para “uma coisa
assim”.26
Meses depois, esperançoso, sugere a Lowie uma possível tradução para o inglês: “Eu
devo traduzir o artigo [a obra As Lendas] para a língua deste país [o Brasil], mas a Edition
(Auflage) [tiragem] é muito pequena para ter ressonância. O que o senhor acha disso?”.27
Não achei uma eventual resposta de Lowie. Nimuendajú não chega a traduzir sua
primeira obra para o português, nem faz qualquer ressalva à qualidade da tradução ao
espanhol.
Nesse final de 1945, ele está com 62 anos de idade, doente no mínimo cinco vezes de
malária, quase cego de um olho, com problemas cardíacos, submetido a dieta rigorosa e
tomando diariamente remédios que só encontra no Rio de Janeiro.
Em meados de novembro desse mesmo ano, ele desobedece a orientação médica e
embarca para sua última expedição entre os Ticuna, no Alto Solimões, onde faleceu.
26
Belém, 18/04/1945, DU, p. 325. O inventário dos seus bens não registra a existência de sequer um único
exemplar da tradução de Recalde. A relação de quase mil livros e dezenas de mapas e trabalhos ineditos foi
microfilmada, filme número 322, MI.
27
Belém, 13/08/1945, DU, p. 326.
12 - Sete lendas sobre a sua morte
Ao longo de seus últimos anos de vida, em meio às quatro pré-mortes – ou talvez justamente
por causa disso – Nimuendajú só tem olhos para a tribo dos Ticuna do Alto Solimões. Mal
chega a Belém da viagem durante a qual fora preso em 1942, ele já negocia a volta aos
igarapés ticunas. Os objetivos etnológicos foram atingidos, mas sente-se convidado a
empreender futuras expedições.
Um ano depois, insiste, mesmo sabendo que sua saúde não é mais a de trinta anos
atrás. Seus argumentos perante dona Heloisa, a possível financiadora, mudam; porém, a meta
se mantém: “Eu considero as lendas dos Ticunas [sic] muito valiosas porque foram relatadas
por um informante, o índio Nino, como se fossem contadas a um outro Tukuna [sic], sem
adaptações ou mudanças que um civilizado iria fazer”.1
1
Belém 21/10/1942, p. 224 e 04/12/1943, p. 225, ambas DU.
245
Quando dona Heloisa em abril de 1944 afirma que “as lendas dos ticunas que o senhor
me mandou foram as mais belas que eu já li”, ele aproveita a deixa e volta ao tema. Até que
ela concorda: “Se a saúde do senhor permitir e os custos da viagem não forem elevados, o
senhor pode viajar. Mas diga-me a que autoridades devo recomendar-lhe para evitar
obstáculos”. Claro que sua saúde não permite. Nimuendajú evita esse assunto, prefere falar
de custos, das condições da sua última estadia na aldeia. Finalmente, a viagem é autorizada
por dona Heloisa, que quer pagar entre 30 mil e 40 mil cruzeiros.2
Nimuendajú acha uma indignidade: “(...) 40 mil cruzeiros são o mínimo”.
Desesperançado, ele apela para a ironia: “Infelizmente, a solução destas dificultadezinhas em
si bem insignificantes, mas que se interpõe de uma maneira desagradável à boa marcha dos
trabalhos, não depende de mim, e tenho de esperar que a sra. as resolva como e quando
quiser”. A pressão sobre dona Heloisa tem o efeito esperado. Mesmo com seis meses de
atraso, o valor autorizado ultrapassa o mínimo fixado por ele: “Sua expedição aos Ticuna
patrocinada pelo Museu Nacional pode começar em setembro. O Museu Nacional paga 48 mil
cruzeiros (…)”.3
2
Rio de Janeiro, 08/04/1944, 19/07/1944 e 25/02/1945, p 226, 227 e 229, DU.
3
Belém, 16/02/1945, DU, p. 229, Belém, 23/03/1945, MN, e Rio de Janeiro, 15/08/1945, DU, p. 230. O Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional também financia a expedição, GR, p. 239.
4
Pereira, Manoel Nunes, Moronguetá, 1967, Civilização Brasileira, p. 446. Laraia, p.71.
246
Nimuendajú localiza seu paradeiro numa “maloca tucuna”, o que poderia ser a casa do
seu amigo e confidente, o cacique Nino Athayde, no Igarapé da Rita. Mas também uma outra
aldeia dos inúmeros igarapés da região.
Dia 11, Curt Nimuendajú é enterrado no cemitério de Santa Rita do Weil, à margem
esquerda do rio Solimões, no município de São Paulo de Olivença. Não se sabe o dia exato de
5
DU, p. 211 e 219.
247
seu falecimento. Afirma-se que teria sido o 10 de dezembro. A ata de exumação do corpo,
realizada em 1957, só se refere ao sepultamento, ocorrido no dia 11 de dezembro.6
Telegrama afirma que Nimuendajú morreu dia 10, mas “Manuelão” não confirma a data.
A única certeza que existe quanto ao falecimento de Nimuendajú é que isto aconteceu
mesmo. Como teriam transcorrido suas últimas horas de vida, as razões e circunstâncias do
evento dependem dos interesses, ou da visão, de quem conta.
Só se tem conhecimento de uma única testemunha da morte de Nimuendajú: o
cacique Nino Athayde, em cuja casa Nimuendajú se hospedara durante expedições anteriores.
O agente do SPI em Tabatinga, Manoel Pereira Lima, o “Manuelão”, tomou o depoimento do
cacique em janeiro de 1946:7
6
Hartmann, Thekla, 1981-1982, p. 188.
7
SPI, ofício N° 25, de 21/02/1946, Centro de Documentação Etnológica, MI, Rio de Janeiro, p. 4.
248
Depois de uns dois dias que estava naquele igarapé, o professor [Nimuendajú] saiu da
casa e foi dar um passeio. Nesse percurso, tomou uma xícara de café na casa de um civilizado
[que Nino não identificou]. Quando [Nimuendajú] chegou à casa [de Nino], passados alguns
momentos, foi atacado por uma súbita convulsão e quando [Nino] correu para socorrê-lo,
verificou que ele jorrava sangue pela boca. O índio desesperado em ver esse quadro trágico
pegou-se à vítima e perguntou o que sentia, mas foi tarde porque ele [Nimuendajú] não teve
mais tempo de falar. A morte foi-lhe instantânea.
Nunes Pereira, nomeado pelo SPI de Manaus para esclarecer o fim de Nimuendajú,
também interrogou Nino Athayde, mas somente em fevereiro de 1946. Ele apresenta uma
outra versão: “Sua morte, ocorrida na tarde de 10 de novembro de 1945, isto é, no mesmo dia
da sua chegada à casa do tuxuá [cacique] Evanique ou Nilo Ataíde (…)”.8
Esta curta frase de Nunes Pereira contém pelo menos dois erros. Talvez somente de
datilografia.
O primeiro erro consiste em mencionar a data 10 de novembro como o dia da morte,
quando possivelmente queria escrever 10 de dezembro. O segundo é que o “Nilo” citado por
Nunes Pereira vem a ser justamente o cacique Nino.
Mas também traz uma novidade: Nimuendajú teria morrido no dia de sua chegada à
casa de Nino Atahyde, enquanto este dissera, conforme “Manuelão“, que isso aconteceu
“depois de uns dois dias que estava naquele igarapé”.
As duas pessoas que deveriam oficialmente esclarecer este ponto silenciaram. No seu
relatório, “Manuelão”, referiu-se vagamente ao: “(…) falecimento do professor Curt (…), nos
dias do mês de dezembro do ano passado [1945]”.
No mesmo documento, “Manuelão” escamoteu mais uma informação ao escrever
apenas que “(…) chegou o sr. Curt em Santa Rita no princípio de dezembro (…)”.9 É evidente
a contradição com Nunes Pereira.
8
Nunes Pereira, Manuel, Moronguêtá, p. 446. Antropólogo e ictiólogo, foi fundador da Academia Amazonense
de Letras e presidente do Instituto de Etnografia e Sociologia do Amazonas, (*1893 +1985). A opinião de
Nimuendajú sobre Nunes Pereira era péssima: “Este foi para comigo, como sempre, o cientista serio e austero,
em franco contraste com o juizo que outros conhecidos fazem dele. Faz grande ostentação da sua qualidade de
germanófilo, o que em Manaus não é muito vantajoso, dada a atitude do chefe de policia. Frequenta algumas
casas alemãs e vi-o pedir opiniões sobre artigos de jornais, etc. Na casa Berringer trataram-no com fria cortesia,
parecendo admitir a possibilidade de ele agir de acordo com a policia. Talvez seja ele agente provocador e
germanófilo ao mesmo tempo; pelo menos eu acharia nele semelhante incongruencia perfeitamente cabivel”,
carta de Nimuendajú, Igarape da Rita, 09/05/1942, CS, p. 306.
9
SPI, ofício n° 25, p. 4.
249
10
Igarapé da Rita, 09/05/1942, CS, p. 307. Em 1945, o chefe da 1°. Inspetoria Regional do SPI em Manaus,
Alberto Pizarro Jacobina refere-se ao mapa: “Tenho em meu poder um precioso croquis da região dos Ticuna,
com a localização do posto, desenhado pelo (sic) próprio punho do professor Curt”, cf. SPI, ofício número 25, p.
2.
250
Não é nada surpreendente, portanto, que ele tenha sido nomeado delegado de índios do
SPI no Alto Solimões pela Inspetoria de Manaus, possivelmente antes de 1945.11
Sintomaticamente, não consta a data da portaria e muito menos são divulgadas as
diretrizes que Nimuendajú recebeu da inspetoria do SPI. Tudo indica ser uma missão secreta
nessa área de fronteira.
É possível que tenha começado, de maneira sigilosa, em 1941, quando Nimuendajú,
em carta a Carlos Estevão, fala de sua futura atuação na área, mas parece não referir-se
exclusivamente a questões etnográficas: “Uma coisa estou prevendo desde já: a minha visita
atual não resolverá ainda o problema dos Tukuna [sic], e seria muito a desejar que pudesse
repeti-la em fins de 1941 ou em começos de 1942. (...)”.12
Porém, é iguialmente imaginável que os seringalistas locais ficam sabendo que
Nimuendajú não era mais apenas um etnólogo a serviço dos museus Nacional e Goeldi. Isto
explicaria a mudança de comportamento da familia seringalista Mafra, que, em 1940, o
recebera amavelmente e, no ano seguinte, o hostilizara perante os indígenas.
Afinal, ele teria passado a trabalhar para o SPI, com o apoio do Exército. Contudo, os
empresários também têm seus aliados entre os militares, como aqueles que prenderam
Nimuendajú, sem provas, em setembro de 1942.
Esse ano é um divisor de águas na história recente desta região amazônica, quando é
criado o Posto Indígena Ticunas em Tabatinga (PIN), consolidado entre 1943 e 1945,
conforme um documento da Funai de 1996.
O SPI agia de comum acordo com o Exército, revela uma carta do chefe da 1a.
Inspetoria Regional do SPI em Manaus, Alberto Pizarro Jacobina, ao comandante do Pelotão
Independente de Tabatinga, capitão José Maria Cardoso Dourado.
Pizarro Jacobina apresenta Nunes Pereira na sua missão secreta, sem informar
oficialmente os motivos da viagem: “Ele vos dirá de viva voz meus recados relativamente aos
projetos que há um ano atrás tive a honra de vos expor, quando da minha visita a
Tabatinga”.13
É com esse pano de fundo que, transcorridos mais de 60 anos, as circunstâncias do
falecimento de Nimuendajú – morte natural ou assassinato – permanecem pouco claras. Ao
contrário, o passar do tempo tem aumentado a complexidade do caso.
11
SPI, ofício número 25, p. 1.
12
Perpétuo Socorro, Rio Solimões, 23/05/1941, CS, p. 295.
13
Funai, despacho n° 39, de 27 de dezembro de 1996, processo Funai/BSB/0416193, com relação à terra
indígena Tukuna Umuriaçu, p. 7, seção 1 do DOU, de 13/01/1997. SPI, ofício nº 25, p. 7.
251
Morte natural…
A primeira versão é a de morte decorrente de seu estilo de vida. Ela se vê fortalecida pelo
trecho do depoimento de Nino Athayde de que Nimuendajú “foi atacado por uma súbita
convulsão (...) ele jorrava sangue pela boca”. Afinal, o etnólogo estava com 62 anos, doente,
coração debilitado, aorta dilatada, quase cego de um olho, sob rigorosa dieta que não podia
seguir de maneira alguma no mato. Será que seu corpo não suportou mais as consequências de
no mínimo cinco malárias adquiridas ao longo de quase quarenta anos de expedições?
Essa é a hipótese aventada por Roque de Barros Laraia, professor do Departamento
de Antropologia da Universidade de Brasilia. Após lembrar uma carta de Nimuendajú a
Baldus, ele conclui que “as cartas terminaram aí, provavelmente quando seu organismo
desgastado por tantas malárias e envenenado por tanto quinino se recusou a continuar a
luta”.15
Uma pessoa poderia informar sobre a saúde física de Nimuendajú até a sua chegada à
área ticuna: o mestre de obras do SPI, André Tomasi. Ambos viajaram juntos de navio de
Manaus até Tabatinga.
No mesmo dia 18 de dezembro em que os jornais de Manaus publicaram a notícia da
morte de Nimuendajú, Pizarro Jacobina, chefe do SPI de Manaus, enviou ofício ao agente
“Manuelão“, instruindo-o para ouvir André.
14
Oliveira Filho, João Pacheco de, “O nosso governo” – Os Ticuna e o regime tutelar, tese de doutouramento,
Rio de Janeiro, 1986, p. 262.
15
Laraia, p. 71.
252
Dia 8 de janeiro de 1946, novo ofício, onde o chefe do SPI afirma estar “desejando
especialmente informes do mestre André, pois Curt poderia ter-se queixado de alguma
indisposição física, orientadora da causa de sua morte“.
Três dias depois, Jacobina reitera seu pedido porque “acredito que falando ambos em
alemão deviam ter tido oportunidade de conversar intimamente“. Em 16 do mesmo mês,
finalmente chega uma resposta de Manuelão.
Nenhuma palavra sobre André, apenas o misterioso anúncio de que “tenho algumas
informações a prestar a essa Chefia, segundo informações de um indio que viajou até este
Posto, para comunicar a referida morte”. Trata-se de Nino Atahyde. Finalmente, em 23 de
janeiro, Manuelão responde ao pedido de 18 de dezembro. É uma decepção para Jacobina,
pois a conversa entre Nimuendajú e o mestre André foi, segundo Manuelão, exclusivamente a
respeito dos costumes dos indios Ticuna e mais nada.16
O documento de Manuelão choca-se frontalmente com a versão apresentada por Nunes
Pereira no seu livro Moronguêtá. Ele garante que, a bordo do navio Inca rumo a Tabatinga,
Nimuendajú “(...) revelara a André Tomasi que não tinha amigos entre os civilizados e entre
os próprios patrícios – alguns alemães se haviam localizado na costa do Solimões – entre o
Igarapé da Rita e o povoado de Santa Rita do Weil – ‘porque defendia os Tucuna e os pagava
bem’ [grifos no original] a troco dos trabalhos, que lhe prestavam, na suas viagens a pé ou em
canoa pelos sítios por eles habitados”.17
Nunes Pereira não menciona se Tomasi falou a respeito do estado de saúde de
Nimuendajú durante essa viagem conjunta.
A segunda hipótese é a de assassinato. Ela ganha corpo no relato de Nino de que Nimuendajú
morreu após tomar café na casa de um “civilizado”. Mas também nos antecedentes, pois
Nimuendajú narrara a perseguição empreendida contra ele por membros da família Mafra e
outras pessoas da região.
Em 1942, após estabelecer o posto indigenista, a próxima etapa da estratégia do SPI
consistia em criar uma reserva exclusiva para os Ticunas. O responsável pela nova tarefa era
Manuelão, que esteve pessoalmente com Nimuendajú naquele ano: “Tive a oportunidade de
16
SPI, ofício n° 25, pp. 1-3.
17
Nunes Pereira, p. 447. Ainda em Manaus, o próprio Nunes Pereira diz ter notado a intranquilidade de
Nimuendajú antes embarcar para Tabatinga: “Nós o sentimos bastante preocupado com o seu regresso ao Alto
Solimões, revelando-nos pressentimentos”, ibid, p. 446. Mas não diz quais são esses pressentimentos.
253
conhecê-lo em 1942, quando viajei a primeira vez para este posto, de passagem pelo Igarapé
da Rita, onde o referido senhor achava-se no estudo etnográfico com a carta [mapa] daquele
igarapé. Nesta ocasião, tive o ensejo de conhecer as suas qualidades cultas, e ainda mais a
maneira carinhosa e familiar com que vivia entre aqueles selvícolas [sic]”.18
Seringalistas, comerciantes, proprietários de terra e donos de castanhais da região eram
contrários à política indigenista do SPI. Beneficiários de um regime de semi-escravidão,
teriam tramado a prisão de Nimuendajú como “espião nazista”, diz Nunes Pereira: “De há
muito tempo não era vista complacentemente [pelos “civilizados”]a atuação do cientista
[Nimuendajú] entre os índios, atraindo-os em massa (…), despertando neles a consciência de
seus direitos e estimulando-os mesmo contra os metodos desumanos que caracterizam, em
geral, as relações dos patrões e dos trabalhadores rurais nas zonas produtoras de castanha,
madeira e borracha nos altos rios da Amazônia. Conspiraram, portanto, contra ele. E
prendendo-o, com sentinela à vista, prontamente o embarcaram para Manaus (…)”.19
Manuelão registrou no seu informe que “na opinião do índio [Nino Athayde], e de
outros seus parentes, é que o inditoso foi vítima de um envenenamento, pois segundo ele
contou, quase todos os civilizados que moravam naquele lugar não gostavam do professor
porque era um grande defensor dos índios”. Matreiro, Manuelão, deixa uma porta aberta no
seu relatório: “Talvez que isto seja criação de índio…, mas é bom duvidar-se que seja também
verdade. (…) Para um conhecimento concreto do caso, só serviria se fosse uma pessoa fazer o
esclarecimento in loco (…)”.20
Esta era exatamente a missão secreta de Nunes Pereira no Alto Solimões. Em 6 de
fevereiro de 1946, ele viajou de avião a Tabatinga, portando uma carta do chefe do SPI em
Manaus dirigido ao capitão José Maria Cardoso Dourado, comandante do Pelotão
Independente de Tabatinga. O conteúdo é formulado de maneira vaga para camuflar o real
objetivo da viagem: “Tem esta o fim especial de apresentar o Dr. Nunes Pereira, presidente do
Instituto de Etnologia do Amazonas, que se dirige a essa região, em visita ao Posto Indígena
Ticunas, afim de prosseguir seus estudos, como etnólogo e historiador. (…)”.
18
SPI, ofício nº. 25, p. 4.
19
Nunes Pereira, Moronguêtá, p. 445.
20
SPI, ofício nº. 25, p. 6.
21
SPI, ofício n° 25, p. 7.
254
O relatório que Nunes Pereira possivelmente teria produzido não foi encontrado nos
arquivos do SPI. Na sua obra Moronguêtá, ele promete: “Noutra ocasião, em documento que
pretendemos submeter à consideração pública, trataremos circunstanciadamente da morte de
Curt Nimuendaju (…)”.22 Nunes Pereira morreu em 1985, sem ter divulgado o prometido
documento. Porém, parece ter deixado uma pista, difícil de se provar, mas que revela a
complexidade do tema envolvendo o fim de Nimuendajú.
As versões sobre a morte de Nimuendajú teriam acabado aí. Não fosse a atuação de João
Pacheco de Oliveira Filho. Em sua tese de doutoramento “O nosso governo – os ticuna e o
regime tutelar” ele traz a terceira versão. Apresentada em 1986 no Museu Nacional, ela
reproduz trechos de uma conversa que ele teria gravado com Nunes Pereira.
O conteúdo revelado muda tudo o que se conhecia até essa data:23
O que [Nunes Pereira] registrou mais fortemente na memória foi basicamente o que já
relatara naqueles trabalhos [sua palestra em 1946 e seu livro Moronguêtá]. Apenas um ponto
fora ali omitido: o depoimento que recolhera do índio Nino (que com bastante precisão
chamava tanto pelo nome português Nino Ataíde, quanto pelo nome Ticuna, Evanique), no
Igarapé da Rita. Nessa ocasião, ele [Nino] teria dito que Nimuendajú anteriormente se casara
com uma de suas filhas e que agora pretendia casar-se com uma de suas sobrinhas, uma filha
do irmão de Nino. Em consequência da insistência do etnólogo, ele havia decidido envenená-
lo. Nunes Pereira acreditou piamente naquele relato, convencido que já estava de se tratar de
um assassinato e não de morte natural, bem como ainda devido a outros casos que mencionou
de envolvimento sexual do cientista com índios de grupos que pesquisara.
22
Nunes Pereira, p. 448.
23
Oliveira Filho, O nosso governo, p. 270.
255
que imaginavam que poderiam cometer esse crime (o estupro) impunemente contra índias,
tiveram encontros muito desagradáveis com os ticunas”.
Nimuendajú cita dois casos de morte violenta nesse contexto. Isto leva Oliveira Filho a
afirmar:
Entre os próprios índios não há menção a casos de estupro, pois as relações ilícitas
(sic) são sempre vistas como de responsabilidade da mulher, que as permitiu. Um de seus
informantes (de Nimuendajú) conclui enfaticamente: “Se ela não quiser, quem vai possui-
la?”. 24
Fica a incógnita de porque Nunes Pereira teria ocultado durante 40 anos uma
informação/confissão que, se verdadeira, transformaria por completo todo o cenário que
envolve a morte de Nimuendajú. O silêncio público de Nunes Pereira, que deveria ter feito um
relatório ao SPI sobre sua missão secreta, teria a ver com o que ele denomina de uma atitude
de estar “velando pela memória gloriosa do notável etnólogo teuto-brasileiro”.25
O também antropólogo Laraia diz que a hipóteses do cacique e xamã Nino Athayde ter
assassinado Nimuendajú já era comentada há bastante tempo:26
Oliveira Filho escolhe outra direção. Ele sugere que Nino Atahyde, de fato, falou a
verdade quando contou a Manuelão do suposto envenenamento por brancos, mas movido por
outras razões:27
24
Nimuendajú, The Tukuna, 1952, p. 93. minha tradução. Esse livro, publicado somente seis anos depois da
morte do autor, até hoje não foi traduzido ao português. Oliveira Filho, p. 271.
25
Nunes Pereira, p. 449.
26
Laraia, p. 71.
256
Já o depoimento tomado por Nunes Pereira, acrescenta Oliveira Filho, se deu “nas
imediações da casa dos supostos executores do crime. Um terceiro fator: antes de chegar ao
Igarapé da Rita, Nunes Pereira mantivera um relacionamento amistoso com Artheyethe Ayres
de Almeida, filho do seringalista Antonio Roberto e chegara inclusive a viajar no barco deste
último. Um último ponto pode ser mencionado: entre os dois depoimentos de Nino se definira
na cabeça de quem agora conduzia a investigação [Nunes Pereira] a crença na hipótese de
assassinato, bem como paralelamente recrudescia a expectativa geral e a manipulação de
acusações mútuas”.
Efetivamente, na sua correspondência com Jacobina Pizarro, Nunes Pereira não cita
uma única vez a hipótese de morte natural ou acidental: “(...) relativamente à morte do Curt,
tanto o mestre de obras, o austríaco, que veio com ele pelo Inca, como alguns indígenas,
confirmam versão de envenamento. (...) Ouvi o dr. Waldemar Marco, do S.E.S.P., que esteve
como um dos arroladores do espólio do Curt, e com o padre Manoel Albuquerque. Ambos
falaram sempre em assassinato.”28
Oliveira Filho avalia o cenário político-ideológico-indigenista, mas também evita
entrar no mérito de se houve morte natural ou crime. É difícil concordar com a sua conclusão:
“Manuelão dividia-se [sic] entre acreditar na morte por envenamento provocado por regionais
[seringalistas] e a possibilidade de uma morte natural, enquanto Nunes Pereira excluía essa
última hipótese, faltando-lhe apenas estabelecer se os culpados eram os regionais ou os índios.
É muito provável que esses fatores tenham se combinado, de modo que o depoimento do
[cacique] Nino [Ataíde] que era uma denúncia [feita a Manuelão] transformou-se em uma
confissão [a Nunes Pereira] melhor ajustada às pressões do momento”.29
É igualmente possível, porém, que o silencioso Nunes Pereira tenha dado uma resposta
pessoal e conclusiva em linguagem cifrada. Durante a inauguração de uma placa em
27
Oliveira Filho, p. 272.
28
SPI, ofício número 25, p. 8.
29
Oliveira Filho, p. 272.
257
homenagem a Nimuendajú no Museu Paraense Emilio Goeldi em 1946, ele profere uma
palestra sobre a vida e obra do etnólogo falecido.
Num gesto incomum na década de 40, Nunes Pereira envereda, perante uma platéia de
militares, indigenistas e cientistas, pelo espinhoso tema das relações sexuais entre indígenas e
brasileiros: “Poderia referir-me aqui a vários e preciosos elementos recolhidos e estudados
nessa obra por Curt Nimuendajú, tal o que se prende à circuncisão das mulheres (…), tal o
vício nacional da bebedice; tal o rigor com que os Tukuna respeitam as suas leis de exogâmia
e a completa incompreensão que isso encontra da parte dos civilizados (…)”.30
Agora vem o clímax, escamoteado num recurso literário, talvez para apontar que
facção, na sua opinião, teria assassinado Nimuendajú:
(...) intercurso [relação] sexual antes da festa da puberdade parece até hoje para os
Tukuna uma coisa inimaginável; e assim também antigamente o intercurso premarital,
segundo dizem. Hoje tenho razão de [para] supor que as matas e as águas silenciosas dos
igapós, onde as canoinhas de pesca deslizam, velozes e sem deixar vestígios traidores,
encobrem os segredos de muitos namorados cujos pais nada suspeitam.
Numa carta ao seu amigo Carlos Estevão, Nimuendajú traçara, em 1944, um sucinto,
agudo e sugestivo perfil psicológico de Nino Athayde, que os partidários da teoria do cacique
assassino podem interpretar como uma premonição:
[Nino é] um dos índios mais civilizados, mas ao mesmo tempo mais conservador do
que todos os outros.32
30
Nunes Pereira, Curt Nimuendaju: síntese de uma vida e de uma obra, Belém, 20 de junho de 1946 p. 48, 1946.
31
Ibidem. O primeiro texto de Nimuendajú sobre os Ticuna consta do seu relatório de 10/12/1929 ao SPI, filme
397, MI.
32
Belém, 15/04/1944, DU, p. 226.
258
A quarta versão é a acusação dos seringalistas de que Nino teria matado e roubado
Nimuendajú. Ela está registrada no relatório de Manuelão, mas aqui é colocada na boca de
Nino:33 “O comunicante queixou-se que esses senhores [o professor local, Barcellos, e outros
moradores não-indígenas] o caluniaram de ter ele subtraido muitos dos objetos deixado [sic]
pelo referido professor”.
Nino Atahyde também disse a Manuelão que Barcellos e outros vizinhos fizeram o
inventário dos bens de Nimuendajú: “No momento em que [essas pessoas] faziam o espólio, o
índio presenciou conferirem 30 mil cruzeiros que o sr. Curt trazia em sua companhia e muitos
outros objetos que o caboclo não soube explicar direito”.
Oliveira Filho rejeita esta hipótese, sob alegação de que os índios iriam receber de
qualquer jeito as mercadorias, pois Nimuendajú as trouxera para repartir entre eles, em troca
de relatos sobre lendas. O valor de 30 mil cruzeiros foi posteriormente entregue à viúva de
Nimuendajú.
A quinta versão consta de um documento que Nunes Pereira afirma ter visto nas mãos de
Arteiette, filho do seringalista Antonio Roberto, possivelmente redigido por este. Nele consta
que “o alemão que morreu envenenado com timbó, em Santa Rita, já apareceu para o
Manuelão duas vezes!”.
Nesse relatório, acrescenta Nunes Pereira em carta ao chefe do SPI em Manaus, “a
origem da concentração [de ticuna no posto indigenista de Tabatinga] é atribuida a manobras
do Manuelão, a quem mostrei hoje mesmo as acusações que lhe são feitas. Presumo que esse
relatório tenha sido enviado a [o general Cândido] Rondon e ao Banco da Borracha (…)”.34
Manobra de Manuelão ou não, fato é que, logo após o falecimento de Nimuendajú,
centenas de ticuna abandonaram suas terras e se fixaram no Posto Indígena de Tabatinga.
33
SPI, Ofício nº 25, p. 5. Ibidem. Esse valor em dinheiro foi entregue ao SPI em Manaus, sendo que dona
Heloisa intercedeu junto ao órgão para que fosse repassado à viúva de Nimuendajú.
34
SPI, ofício número 25, p. 8. O suposto relatório não foi achado nos arquivos do SPI. O então Banco da
Borracha financiava os seringalistas.
259
Para os Tukuna, foi uma triste época de exploração, escravidão e permanência sob o
tacão dos arrogantes “patrões” (sic), homens ignorantes, mas superiores em força. (...) Ainda
hoje existem indivíduos morando nos igarapés habitados pelos Tucuna, que querem manter os
índios sujeitos ao seu mandonismo egoista. É de se esperar que o SPI, que se estabeleceu
nesta região em 1942, coloque um ponto final a estas visões anacrônicas.
35
Oliveira Filho, p. 284, e SPI, ofício número 25, p. 10.
36
Funai, DOU, p. 7, seção 1, despacho processo Funai / BSB/0416193. Este documento encontra-se disponível
em http://www.jusbrasil.com.br/diarios/952149/dou-secao-1-13-01-1997-pg-7, acessado em 6 de junho de 2010.
37
Nimuendajú, The Tukuna, p. 9, minha tradução, in Nunes Pereira, Síntese de uma vida... p. 46.
260
messiânico, que ele ajudou a plasmar. Nesse mesmo ano, um ticuna teve visões, mostrando
Nimuendajú como o enviado dos heróis culturais da tribo.
É por isso que, a notícia de uma aparição (ou várias) de Nimuendajú após sua morte
poderá ter acelerado a saída em massa de indígenas das terras seringalistas, sugere Oliveira
Filho:
A permanente chegada de mais famílias Ticuna à recém criada reserva nos primeiros
meses de 1946 obrigou o comandante do pelotão em Tabatinga a telegrafar urgentemente a
Jacobina Pizarro em Manaus:39
38
Oliveira Filho, p. 284.
39
SPI, ofício número 25, p. 11.
261
projeto da reserva dos Solimões, que, na sua opinião, daí em diante iria se desenvolver sem
problemas.
Ele rende uma homeagem ao etnólogo recentemente falecido: “Curt Nimuendajú, se
tivesse assistido a isso [a chegada de indígenas à reserva criada], sentiria certamente uma
indizível satisfação, amante que era dos ticunas [sic], vendo agora despontar a aurora de
redenção de uma tribo inteira, em prol da qual empenhou o derradeiro impulso de seu nobre
coração”. Em ofício ao diretor do SPI no Rio de Janeiro, José Maria de Paula, Jacobina
propõe que o posto seja batizado com o nome de Curt Nimuendajú.40
Durante suas pesquisas no Alto Solimões, Oliveira Filho gravou uma conversa com
descendentes de ticunas que conheceram pessoalmente Nimuendajú. Este encontro se deu em
1981 – 36 anos após a morte/assassinato do pesquisador. Euzébio Custódio Ataíde (filho do
cacique Nino Ataíde) e Adércio Custódio (filho do cacique Genésio Custódio, irmão de Nino)
afirmam lembrar-se vivamente dele.
A seguir trechos da conversa, dirigida, gravada e editada por Oliveira Filho: 42
“Adércio: Era em São Paulo [de Olivença], ele [Nimuendaju] chegou lá. E lá que
viram! Viram que ele trazia muita mercadoria. (…) Então, aí… um daí que chamava… não
sei como é o nome dele…
Euzébio: Barcelo.
Adércio: (...) O Barcelo viu ele. Que trazia muito… Ele [Barcelos] morava na vila,
pertinho, em Santa Rita. Chegou lá, [Barcelos] chamou na mesa e deu um cafezinho para ele
40
Ibid, p. 13 e 15.
41
Oliveira Filho, p. 285.
42
Ibid, p. 276.
262
[Nimuendaju]. Deu aquele cafezinho… então ele morreu. Não sei o que botou, um pouco de
veneno, acho… (...).
Euzébio: Foi o finado Genésio que foi buscar ele [Nimuendaju] lá em São Paulo[de
Olivença]. (...) Aí quando, com o Barcelo, aí que deram o cafezinho pra ele. (…) Quando o
finado Côrt [sic] disse ‘Te logo’, ele [Barcellos] disse: ‘Te logo’. Aí quando ele andou,
distante assim pouquinho, aí o Barcelo disse:‘Não sei que hora eu apareço por lá!’. O Barcelo
disse, já mangando, porque parece que ele já estava sabendo… Que estava fazendo mal, né?
Lá que o finado Genésio pegou [percebeu] que foi ele que botou veneno. (…) Quando finado
Côrt [sic] chegou lá na casa do Nino, aí ele passou mal… (…) Chegou aí, quando foi negócio
de umas oito horas da noite, aí ele sentiu dor de estômago, provocou [vomitou], provocou
(…) só sangue, só sangue. Aí quando foi o outro dia [Nimuendajú] morreu. Aí que ele
[Barcellos] apareceu. (...)
Adércio: Foi assim mesmo, Pai contou que foi ele mesmo! (...)
Adércio: Então, aí o Nino e o papai entregaram tudo prá ele… Leva! Devolveram para
ele (…) Ele ficou com todo aquele montão de mercadoria, a caixa (…). Era terçado, era
machado, era tudo. (…) Ficou tudo prá ele. Aí la, em Santa Rita, é que ele distribuiu mesmo
pro povo dele (…)
João [Oliveira Filho]: Nenhum Ticuna ganhou nada?
Adércio: Não. Distribuiu só pros civilizados. E nós ficamos (…) Era por causa disso
que ele [Barcellos] envenenou o Côrt [sic].
João: Não tem uma história de que ele [Nimuendaju] tinha uma mulher? Que casou
com uma ticuna. É verdade?
Euzébio: Não, nunca teve.
Adércio: Nunca teve! Nunca teve, nunca! Na vida nunca, porque papai contava isso.
Nunca!”.
Nesta versão, não se fala da quantia de 30 mil cruzeiros que, segundo Nino Ataíde,
fora achada durante a avaliação dos pertences de Nimuendajú.
Mais significativo ainda é que nenhum dos indígenas que participaram da gravação em
1981 viu o que narraram. Eles repetiram o que uma suposta testemunha teria presenciado (o
cacique Genésio Custódio, irmão de Nino Athayde).
Chama ainda a atenção a vigorosa negação de ambos indígenas ouvidos de que
Nimuendajú tivesse mantido relações sexuais com mulheres ticunas. Duas delas, segundo o
depoimento de Nunes Pereira apresentado por Oliveira Filho, deveriam ser uma irmã de
263
Euzébio (e portanto tia de Adércio) e uma de Adércio (e tia de Euzébio). Fica a impressão
desse ter sido um sangrento drama passional no interior da família ticuna com quem mais
Nimuendajú manteve contato, se é que tudo isso assim aconteceu.
Em 1983, dois anos depois da conversa com os ticuna Euzébio e Adércio, Oliveira Filho
recolhe outra versão. Quem narra é Pedro Inácio, apresentado por Oliveira Filho como “atual
capitão de Vendaval [povoado ticuna], apoiado nas observações de João Laurentino [genro de
Calisto, outro cacique]”.
A sétima versão narra o que teria começa a acontecer à beira de um igarapé e
culminado no desenlace na casa do professor Barcellos:43
Ele (Nimuendaju) chegou lá com muita coisa prá ele (Nino) e outros tuaxawa
[cacique] que mora mais perto (…) Barcellos estava remando na frente, então viu um monte
de coisas. Cheio de caixa, assim, muita caixa com mercadoria que o Cort trazia. (…) Passou
[Nimuendajú] uma semana lá com Nino. Então uma vez o Barcellos foi lá e disse: ‘Olha, você
vem com nóis. Porque você mora com os Ticuna? Lá é coisa … não presta’. (...) Aí ficou
[Nimuendajú] lá [na casa do Barcellos]. Chegô a hora do almoço, almoçaram. Então, antes
disso já estava preparado o veneno, desse Barcelo. Preparô lá, quem sabe como foi. Terminô o
almoço e falô: ‘Pode trazer o café para ele’. Então deu para ele [Nimuendajú], ele tomô. Logo
que acabô de tomar o café, lá se deu o grito e provocou em sangue. Mesma hora Côrt morreu
(…). Assim que foi.
43
Ibid, p. 280.
13 - Cosmogonias indígenas adotam Curt Nimuendajú
Nos casos en que essa ingente tarefa se tornou realidade, os indígenas o haviam
integrado ao cotidiano das aldeias, através de batizados, casamentos e das atividades do dia a
dia. Mas, aparentemente, ele também se deixou integrar. A mútua cooperação foi
particularmente intensa em três das quase quarenta tribos por ele visitadas: Apapocuva-
Guarani (SP), Canela (MA) e Ticuna (AM).
A face mais sutil da profunda abertura indígena nessas tribos é revelada pelo fato de
que Nimuendajú foi incluído na própria cosmogonia, foi tratado como um representante dos
265
deuses. Essa situação impregnou de tal forma os indígenas Canela e Ticuna que, pouco mais
de duas gerações após sua morte em 1945, a passagem de Nimuendajú continua viva na
memória geracional desses grupos.
Nas minhas pesquisas, não achei relatos de indígenas Apapocuva-Guarani que tiveram
contato pessoal com Curt Nimuendajú durante a sua permanência na tribo ou mesmo depois
de sua partida para Belém.1
Os dados dos primeiros anos Curt Nimuendajú no Brasil mostram que, na ausência de
relatos dos Apapocuva, há fatos que apontam para um profundo e íntimo relacionamento com
os indígenas da região:
1903 Curt Unkel, aos 20 anos de idade, chega ao Brasil e se instala em São Paulo.
1905 Conhece os Apapocuva na atual divisa SP-MS.
É adotado pela familia do cacique e pajé da tribo.
1906 É batizado com o nome de Nimuendajú.
1907 Entra em contato com outras tribos da região.
1910 Ingressa no SPI, criado nesse ano pelo coronel Cândido Rondon.
Cria a reserva de Araribá para os Guarani e outras tribos da área.
1911 Retorna a Araribá por alguns meses.
Começa a “atração” dos Kaigang (SP).
1912 Em Araribá, “caça uma alma em pena” que aterrorizava sua aldeia.
Empreende com Mbya-guarani vindos do Paraguai a busca da Terra sem Mal.
1913 É iniciado nas lendas fundadoras dos Apapocuva.
1914 As lendas são publicadas em apapocuva-guarani e em alemão.
Muda-se para Belém e nunca mais volta a Araribá.
1
A exceção constitui o “capitão” Antônio Branco, que, em 1985, afirmou ter conhecido pessoalmente
Nimuendajú. Na verdade, ele só lembrava que o seu pai, um cacique, teria recusado a proposta de Nimuendajú
de ir morar em Araribá, cf. Ladeira , M. & Azanha, p. 50.
266
Só quem fala exatamente o mesmo dialeto é considerado pelos Guarani como membro
da tribo. A menor diferença de sotaque em relação ao dialeto da horda [do grupo] é motivo de
escárnio e caracteriza a pessoa como estrangeira [no original, a palavra em alemão é Fremde,
que corresponde em português a forasteiro, estranho]. Quando se fala em outro dialeto, é
frequente os índios se recusarem a entender, embora pudessem fazê-lo.
Esta observação só aguça o mistério de porque esses indígenas terão despendido tanto
esforço durante tantos anos para instruir um perfeito desconhecido na língua e nos costumes
da tribo. Igualmente enigmático é que ele tem acesso imediato e íntimo à mais alta autoridade,
do grupo, pois é adotado como filho por Joguyroquy.
Curioso é que Nimuendajú chama seu pai de duas maneiras diferentes: Joguyroquy, no
livro As Lendas, e Avacauju, nas obras Nimongaraí e Apontamentos.
Seu pai indígena concentra o poder político como cacique; o religioso, como pajé. A
mãe indígena é Nimoá, ele tem dois irmãos: Guyrapéjú e Aavajoguyroá. Os quatro membros
da família original, mais sua cunhada Mangaayjú, estão retratados numa foto à página 386 da
publicação original em alemão.
Nimuendajú relata uma situação de perigo – caçar um “grande cão” [talvez uma onça]
que incorporara a alma de um Apapocuva assassinado –, onde se torna perceptível, de
2
Nimuendajú, As lendas, p. 7.
267
maneira sutil, o carinho e a preocupação dos pais indígenas pelo filho adotivo, nascido na
Alemanha:3
Convenci afinal um rapaz afeiçoado a mim, mas Joguyroquý declarou não ter
confiança nele e que seria melhor eu mesmo ir. Era só isso que eu estava esperando e
concordei imediatamente. Joguyroquý, contudo, logo encheu-se de dúvidas, temendo que a
coisa acabasse mal para mim, seu ‘filho’. Mas fiquei firme e os preparativos se realizaram.
Minha mãe adotiva, Nimõa, teceu uma faixa larga com longas borlas nas pontas e bordada por
um rico enfeito [enfeite] de penas. Joguyroquý fez três flechas comuns de caça, de cana de
cambaúva, ponta dentada de madeira e penas de jacu como guias.
Outra situação incomum é o seu batizado como membro do grupo. Batizar uma
criança é algo extraordinário para os Apapocuva-Guarani. Nimuendajú explica que, para eles,
o nome escolhido é a própria pessoa e não apenas uma maneira de chamá-la. As crianças são
batizadas depois que o pai conclui a couvade, o período de reclusão de vários dias logo após o
nascimento. Mais extraordinário ainda é que Nimuendajú recebe seu nome indígena aos 23
anos de idade, junto com o irmão nascido dias atrás.
Seu relato é, portanto, único por se constituir em uma observação direta e participação
consciente de uma ceremônia de batizado indígena:4
Avacauju [o pajé que dirige a ceremônia] chegou bem perto de mim, aproximou seu
rosto ao meu e, em estado de êxtase e com voz excitada, disse-me: “Teu pai está falando. Este
(apontando para Ponõchi e a mulher deste) é teu padrinho – esta, tua madrinha. Teu nome é
Nimuendajú. Nimuendajú é como te chama a nossa gente”. “Nimuendajú!”, repetiu com voz
forte, dando um passo para trás e estendendo as duas mãos sobre a minha cabeça, como que
abençoando-me. Ponõchi, que tornara a por a cuia na forquilha, apertou-me sobre o ombro
para que eu me sentasse no banquinho, enquanto o canto recomeçou. Afinal, Avacauju deixou
cair as mãos, a melodia emudeceu e a cerimônia estava terminada.
3
Ibid, p. 43.
4
Nimuendajú, Apontamentos..., p. 39. O tradutor e editor desta obra, o antropólogo Egon Schaden, diz que o
texto provém de anotações feitas por Nimuendajú, não aproveitadas e só divulgadas após sua morte. Na verdade,
o batizado, parcialmente modificado, foi publicado pelo próprio Nimuendajú no jornal Deutsche Zeitung, em
1912.
268
Nesse livro, ele exibe a cosmogonia e a escatologia com a segurança de quem vive nesse
universo, até então simplesmente desconhecida por “neo-brasileiros”. Eu não achei explicação
para o mistério de porque Nimuendajú teve acesso a essa centenária espiritualidade indígena.
Ele apresenta, por exemplo, uma hierarquia divina à qual nem jesuitas nem franciscanos
tiveram acesso em quase quatrocentos anos de contato com os vários grupos Guarani que,
nesse período de tempo, moraram distribuídos pelo Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai.
Eles são os “deuses masculinos” Ñanderuvuçú, que ocupa papel central, e Ñanderu
Mbaecuaá, o segundo na hierarquia. Também aparece a “deusa” Ñandecý. As duas figuras
máximas apresentadas pelos religiosos cristãos têm papel secundário para os apapocuva,
afirma ele:5
Apenas no capítulo XXX da lenda da criação aparece uma figura cujo nome veio a
ganhar popularidade absolutamente imerecida, pois foi aplicado pelos velhos missionários
como denominação do diabo em todo o Brasil: Añãy, o Anhanga dos Tupi. (…) Eles
[Nimuendajú pluraliza para os Añãy] são, pelo menos no começo [da criação], mortais como
os jaguares, e não só são desprovidos de qualquer força mágica excepcional, como carecem
de qualquer esperteza humana. (…) O papel que a mitologia Apapocuva lhes reserva é [o] de
um burlesco tal que não encontrei equivalente em nenhuma outra lenda indígena.
5
Nimuendajú, As lendas, p. 52.
6
Ibid, p. 55. Curioso é que, na tradução ao português, o apelido de Nimuendajú de Tujá é grafado,
equivocadamente, como Tupá, cf. p. 44.
269
Defrontei-me com esta figura mitológica com certa desconfiança. Primeiro, devido ao
notório abuso que os missionários praticaram com seu nome, fazendo-o significar “deus“ em
todo o Brasil, Paraguai, grande parte da Argentina e Bolívia, e o introduzindo com esta
acepção em tribos que, como os Jüporoka-botocudos ou os Kiriri, são tão aparentados com os
Guarani como os alemães com os árabes. Segundo, fiquei um tanto perplexo com o fato de
que Tupã só aparece no fim do ciclo mitológico Apapocúva, no capítulo XLIII, ao passo que
a ação propriamente dita já termina no capítulo XLI, e que, exceto com Ñandecý, ele não
estabelece relações com nenhuma outra personagem mítica – de tal modo que é fácil ter-se a
impressão de que esta figura teria sido acrescentada posteriormente.
Ninguém tenta corrigir seus desvios [do anguéry] de modo amigável, ao contrário:
procura-se eliminá-lo como a um animal perigoso – isto é, se se ousa tanto, se alguém tem
coragem de embarcar em tão perigosa aventura. Senão, prefere-se simplesmente abandonar o
lugar. Também no Araribá havia um bom número dos que opinavam ser muito melhor largar
7
Ibid. p. 4.
8
Ibid, p. 42.
270
tudo e partir depressa para Mato Grosso [MS], para o litoral ou para qualquer outro lugar. A
eliminação propriamente dita do anguéry não é tarefa própria do pajé principal, recaindo
sobre um ajudante especialmente designado por ele para tal [ação]. Joguyroquý [pajé-chefe e
pai adotivo de Nimuendajú] encontrou as maiores dificuldades, pois ninguém queria assumir
o perigoso encargo.
– Trovejante, o tiro partiu na direção indicada; mas eu obviamente havia mirado mal,
Joguyroquý gritou com maior desespero ainda: “Upépy, Tupá [sic], embopú jevý catú!” –
“para lá, Tujá, atire mais uma vez!” – Mirei, então, com todo cuidado no ponto exato indicado
pelo maracá, e de novo o tiro ecoou no universo. Quando baixei a arma, o pajé suspirou
aliviado: “Aipó catú!” – “Agora, sim!” – Ele estava quase chorando. Os outros, exceto minha
9
Ibid, p. 44. É neste trecho que a tradução ao português troca o apelido de Nimuendajú de Tujá por Tupá.
271
corajosa madrinha, tinham-se valentemente afastado, no momento crítico, uns trinta passos
atrás.
As datas fornecidas por Nimuendajú sugerem que somente após vencer essa prova
iniciática de coragem, que restabeleceu a paz na aldeia, é que lhe são revelados os mistérios
da tribo. Ele não informa se recebeu atribuição de poder espiritual (como se daria depois entre
os Apinayé, no Maranhão) ou a função de sábio da tribo (a exemplo dos Ticuna, no Alto
Solimões).
Seja como for, dois anos antes desse episódio já revelara sua liderança inconteste ao
realizar o aldeamento de sua tribo e de outras próximas na reserva de Araribá. Foi ele quem
solicitou a sua criação ao Inspetor do SPI de São Paulo, Luiz Bueno Horta Barbosa, que
visitou a aldeia, conforme mostra a foto da página 384 da versão em alemão do livro As
lendas.
Nimuendajú foi o primeiro etnólogo que participou de várias manifestações do
messianismo indígena. A primeira vez quando, em 1912, acompanhou os Mbyá-Guarani,
vindos do Paraguai em busca da Terra sem Mal. Ele os encontrou perto da capital paulista e
os guiou até o litoral, pois desejavam atravessar o oceano.
Diante da magnitude do Atlântico, os Mbyá desistiram e, depois de três dias de
discussões, aceitaram a proposta de ir morar em Araribá. Porém, assim que Nimuendajú
voltou ao SPI em São Paulo, eles abandonaram a reserva. O simples fato de Nimuendajú ter
dirigido os Mbyá na sua peregrinação rumo ao paraíso indígena, mesmo que somente por
alguns dias, também terá impressionado positivamente os Apapocuva.10
Um outro etnólogo também foi bem recebido pela tribo. Egon Schaden, de pais
alemães e nascido em Santa Catarina, foi adotado pela mesma família indígena e falava que
era “irmão de Nimuendajú”. O privilégio de ter acesso direto aos segredos fundadores da
tribo, porém, ficou para Nimuendajú, pois, aparentemente, Schaden não recebeu informações
a esse respeito.
Para isso terá pesado ainda o fato de Nimuendajú ter morado (e migrado) vários anos
com os indígenas e ter se empenhado pelos seus irmãos. Nimuendajú contou ao sociólogo
Baldus ter sido baleado em Bauru, perto de Araribá, por membros da população local.
Em 1912, a reserva de Araribá incluía, além da própria tribo de Nimuendajú, membros
dos Oguauíva, Nimombaecatú, Tupãmbei e Nimbiadrapoñý. Ao longo dos anos seguintes,
praticamente todas desaparecem, a composição da reserva muda repetidamente. A
10
Ibid, p. 106. Antes de entrar em contato com os Apapacuva-Guarani, um grupo destes tentara durante mais de
cinco anos chegar à Terra sem Mal, até se recolher, em 1912, à reserva de Araribá, ibid. p. 15.
272
antropóloga Lucia Helena Rangel afirma que “(…) a reserva estava praticamente desabitada
no final da década de 1920, em razão de os Gurani terem sido dizimados por um surto de
gripe espanhola que os atingiu por volta de 1919. No final dessa mesma década, chegam ao
Araribá as primeiras familias terena, procedentes do Mato Grosso do Sul. Existem atualmente
[1983] dois aldeamentos separados: um Terena, outro Guarani”.11
Em julho de 2010, três dos quatro grupos indígenas eram da etnia Terena. Somente a
aldeia Nimuendaju abrigava 25 membros do grupo Guarani, possivelmente nenhum deles era
Apapocuva-Guarani, o que significaria a extinção de sua linha familiar indígena, assim
também como a sua família alemã Unckel deixou de existir.12
O que apenas se esboça entre os Apapocuva torna-se visível em meio dos Canela. A ação
etnológica e a postura pessoal de Nimuendajú têm efeitos inovadores, renovadores, na cultura
desses indígenas do sertão então considerado maranhense. As sementes lançadas por ele de
1929 a 1937 frutificam após sua morte. Em 2004, ainda era lembrado como enviado de uma
divindade, que reside além mar, possivelmente na Europa.
Até a chegada de Nimuendajú à aldeia em 1929, fazendeiros e criadores de gado
pressionavam os indígenas a abandonar suas terras ancestrais nas proximidades de Barra do
Corda. Além de plantar para consumo próprio, também trabalhavam para os sertanejos. A
cachaça e o assédio sexual dos fazendeiros e de seus empregados aumentavam o conflito
cultural e existencial. Aparentemente, os Canela tinham uma atitude defensiva, esquiva,
perante a população local.
É nesse universo adverso que Nimuendajú incentiva os indígenas à prática e à
retomada de antigos costumes e festas religiosas. Um exemplo é a reintrodução da corrida de
toras em determinadas cerimônias. A mudança pacífica que somente décadas mais tarde seria
captada pelos antropólogos foi respondida imediatamente com violência pelos fazendeiros. As
ameaças e agressões de pistoleiros dificultavam a ação de Nimuendajú, mas, ao mesmo
tempo, contribuiam para consolidar sua imagem perante os Canela.
O comprometimento de Nimuendajú levava-o a se hospedar nas aldeias, rompendo
com isso a separação existente entre indígenas e sertanejos/fazendeiros. Desta maneira, ele
começou um movimento que teve continuidade após sua morte. William Crocker, o
11
Rangel, Lucia Helena, Vida em reserva, p. 77.
12
Jornal da Cidade, de 01/07/2010, Bauru.
273
antropólogo norte-americano que visitou a aldeia Canela pela primeira vez em 1957, disse que
o funcionário do SPI, Orículo Castello Branco, instalou-se com sua família em 1938 na aldeia
e enfrentou os criadores de gado da região.
Depois, foi a vez de Olimpio Cruz, que chegou em 1940 e incentivou o trabalho na
roça ao ponto dos Canela atingirem a autosuficiência agrícola por alguns anos. Antes da saída
de Olímpio em 1947, uma professora primária do SPI, apenas conhecida como dona Nazaré,
ensinou seis jovens a ler e escrever em português.13
A linhagem de engajamento teve continuidade através do próprio Crocker, que
morava na aldeia durante suas pesquisas e falava a língua canela. O movimento iniciado por
Nimuendajú gerou uma profunda transformação do universo indígena, afirma o antropólogo
Jonaton Alves da Silva Júnior.
Os não-indígenas passaram a ser agrupados em três “tipos de agentes externos”: o
sertanejo, os moradores das cidades vizinhas (em especial de Barra do Corda) e os habitantes
de cidades grandes (pesquisadores brasileiros, estrangeiros, funcionários do SPI e, atualmente,
da Funai).14
O messianismo canela
13
Crocker, William, The Canela (Eastern Timbira), I, An Ethnographic Introduction. Smithsonian Institution,
Washington, D.C., 1990, p. 17.
14
Silva Jr., Jonaton Alves da, Barra do Corda, Nimuendajú e um esboço da fricção interétnica, em
http://indiosdomaranhao.blogspot.com acessado em 21/11/2010.
274
No dia 10 [de julho de 1963], cerca de 200 fazendeiros e empregados atacam a maior
aldeia (…). Mas os Canela já estavam de sobreaviso devido ao primeiro ataque [três dias
antes a uma aldeia menor] e tinham colocado sentinelas. Comandados pelo jovem líder
Kaapêltùk, os homens levaram as mulheres a atravessar um rio próximo, usando a espessa
floresta ciliar que ligava as duas beiradas. Os homens que ainda possuíam as poucas armas
que não foram vendidas ficaram defendendo esta “ponte” até que as mulheres entraram na
floresta do outro lado do rio. Desta forma, cinco ou seis Canela liderados pelo jovem
Kaapêltùk e escondidos no mato conseguiram resistir [o ataque de] 200 fazendeiros durante as
duas horas que mulheres e crianças precisaram para atravessar em direção ao oeste.
Após sete dias perambulando pelo sertão e graças à intervenção de funcionários do SPI
de Barra do Corda, os Canela se instalaram em outra área. É quando Crocker chega a Barra do
Corda e fica sabendo do movimento messiânico, do qual nem os fazendeiros nem os
sertanistas do SPI tinham conhecimento.15
15
Crocker, p. 18 e p. 19, minha tradução.
275
Silva Jr. diz que a líder do movimento messiânico, Khêê-khwèy, também conhecida
pelo nome de Maria Castelo, foi empregada da família de Orículo Castelo Branco: “Maria
Castelo teve influência enorme de Castelo Branco, (…), ela falava bem o português, morava
na casa do posto [do SPI] e (…) viu Nimuendajú quando tinha 11 a 13 anos, no auge das
pesquisas dele entre os Canela”.16
A influência de etnólogos e sertanistas sobre os indígenas mostra o outro lado dos
contatos interétnicos, pois, entre 1980 e 2003, três tradutores e assistentes de pesquisa de
Crocker se tornaram líderes nessa comunidade Canela.17
Outra prática, iniciada por Nimuendajú e mantida pelos etnólogos posteriores a ele, é a
maneira destes se relacionarem com os indígenas. Nimuendajú costumava pagar com
mercadorias valiosas para os índios (panos, miçangas, machados) o artesanado confeccionado
por estes ou a participação em festas. O interesse de Crocker pelo artesanato, festas, ritos e
mitos indígenas despertava neles “lembranças boas e sadias”.18
Segundo Silva Jr., “Crocker também consolidou o sistema de pesquisa de Nimuendajú
de compensar os índios nas ajudas de pesquisa, pagar os índios pelas informações e depois
disso todos os antropólogos que vieram tiveram que fazer tal processo de alguma forma,
porque ’os antropólogos são fiscais de Awkhê!’, nas palavras dos próprios Canela”.
A identificação da ligação entre antropólogos e Awkhê é possivelmente a maior
contribuição de Silva Jr. para compreender o significado que os Canela ainda hoje atribuem a
Nimuendajú. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que analisou o mito do Awkhê,
afirma que esta figura mítica Canela “seria um índio que, queimado, teria se transformado no
primeiro branco, D. Pedro II (1825-1891) em algumas versões – em todo caso, um fazendeiro
benigno [bom]”.19
Ouvindo três adultos Canela em 2004, Silva Júnior constatou que a imagem de Nimuendajú
como representante de Awkhê ainda se mantém viva na memória desse povo. O indígena José
Pires Cahhàl, que tinha 58 anos ao dar depoimento, não tinha nascido quando Nimuendajú
16
Silva Jr., entrevista em 23/11/2010.
17
Crocker, capítulo final, p. 7. Neste mesmo livro, ele inclui dois outros elementos que agiam na sociedade
Canela no início do novo milênio: o desejo dos jovens de concluir o nível secundário de ensino e a penetração de
duas vertentes do cristianismo, a católica e a protestante, esta última via o Instituto Linguístico Sommers, p. 14.
18
Silva Jr, ibid.
19
Cunha, Manuela Carneiro da, O Mundo aos pés dos Índios, Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 6,
nº 63, de Dezembro de 2010, p. 33.
276
visitou a aldeia e, durante o movimento messiânico de 1963, era adolescente. Mesmo assim,
ele narra que:20
Awkhê ainda esta vivo, ele vive na Europa, ou (...) nos Estados Unidos. Ele era quem
mandava o ‘curto’ (referência a Nimuendajú), ele vinha pegava os artesanatos nossos e levava
para a terra dele, chegava lá Awkhê ficava alegre em vê as coisas do seu povo, perguntava por
todo mundo e então mandava o “Curto” de novo, sempre trazendo dinheiro para nós, só que o
branco ficava com quase tudo, quando o Kokaipó [nome Canela de Nimuendajú] chegava
aqui, até hoje ele manda dinheiro para a gente, só que os brancos ficam com mais da metade.
Um dia ele voltará e vai transformar a gente, vamos viver melhor!
Silva Jr. disse, em entrevista, que para os Canela “Crocker veio do mesmo lugar que
Nimuendajú; mesmo que este [Crocker] diga o contrario, sempre será assim“. Possivelmente,
é essa origem que os indígenas desse grupo linguístico Jê enxergaram em Nimuendajú.
Nas suas visitas a essas tribos, Nimuendajú recebia constantemente provas de
reconhecimento. A exemplo dos Apapocuva-Guarani, ele foi adotado por uma família
indígena dos Apinayé, pela mãe do cacique José Dias, na aldeia de Bacaba.21
Ele foi batizado com o nome de Tamgaa-ti, como esses indígenas denominavam uma
estrela. Dois outros povos da região também renomearam Nimuendajú. Os Xerente da aldeia
Providência “resolveram botar o maior nome que para eles existe: Seliemtói, o nome que
davam a D. Pedro II que ainda hoje vive na memória deles como a personificação da bondade
e sabedoria”. Já na aldeia do Ponto dos Ramkokamekra recebeu o nome de um famoso chefe
já falecido, Kukaipó.22
Sua posição nessa última aldeia citada era singular. Ele foi o primeiro não-indígena
que, casando com uma mulher da tribo, passou a morar com seus sogros, respeitando a
tradição matrilinear da tribo.
Em suas cartas a Carlos Estevão, Nimuendajú cita três vezes sua mulher Kentapi. Nos
seus livros, publica três fotos dela. Maiores detalhes estão no capítulo 9 - Os relacionamentos
amorosos.
20
Silva Jr., Os Ramkokamekrá: sociedade em movimento, antes e depois de Curt Nimuendajú, UFMA, São
Luiz, 2004, p. 16. No relato, fala-se do retorno de Kokaipó, ou seja Nimuendajú, à aldeia canela.
21
CS, p. 127. Nimuendajú chegou a publicar fotos da mãe Apapocuva, mas não da Apinayé. Seliemtói leva um
til no último i.
22
Ibid. p. 141 e 158.
277
Nimuendajú tinha consciência da influência que exercia na vida dos indígenas. Mesmo
assim, a partir do observado na aldeia Bacaba, disse ter ficado surpreso pela profundidade
desse efeito:23
Se eu não tivesse voltado, os Apinaye nunca teriam achado a coragem de cumprir esta
lei dos seus antepassados, tão condenada pelos “cristãos” que sempre se esquecem que as suas
mulheres tambem tem [sic] as orelhas furadas. Sem eu dizer uma palavra a respeito, a minha
mera presença entre eles reanima os costumes antigos: pintam-se imediatamente, reunem-se
de madrugada e à noite no pátio para [realizar] as suas danças e resolvem ate perfurar orelhas
e lábios! “Quando voce vai embora fica tudo triste: ninguem se pinta mais, ninguem dança
mais!” Eu mesmo fiquei espantado de ver esta mudança. Eu nunca pensava que a minha
influencia chegasse a tanto. E agora toda [a cidade de] Carolina me olha horrorizada porque
pela minha cara ainda correm as linhas pretas da pintura de genipapo dos Apinaye!
Esta situação gerou uma anedota, narrada pelo antropólogo Julio Cezar Melatti e por
ele atribuída ao colega Roberto da Matta: “Na sexta-feira de Páscoa, Nimuendajú saiu de uma
aldeia Apinayé para fazer compras em Tocantinópolis. Pintado e ornamentado como um
índio, ele foi repreendido por um comerciante por andar desse jeito num dia festivo dos
católicos. Apontando os adornos Apinayé, Nimuendajú teria respondido:‘Esta é a minha
religião”.24
Lenda indígena ou anedota etnológica, a posição atribuída a Nimuendajú por indígenas
de várias outras etnias sinaliza um aspecto pouco comentado: ele era tido como um ser
humano enviado pelos deuses. Contando sua passagem por tribos perto do rio Uaupés, na
fronteira com a Colômbia, Nimuendajú revela porque ele era frequentemente visto como
padre: “O índio pede o batismo, isto é, a pura verdade, mas não porque compreendesse o
alcance desse símbolo cristão, mas porque vê nele um ato mágico de grande eficiência, tanto
que ele [o índio] já fica satisfeito se qualquer leigo o executa, sendo numerosos os casos em
que nesta viagem pediram a mim o batismo, mesmo na zona já percorrida pelos padres”.25
O “leigo” Nimuendajú recebe constantemente provas de que os indígenas Jê honram
essa representação espiritual. Em Providencia, uma aldeia Xerente na bacia do rio Tocantins
(TO), é iniciado nos mistérios da tribo pelo cacique e pajé Brue: “Ele era seriamente meu
amigo: nunca tentou explorar-me nem mentiu, e no dia antes da minha partida passou-me
23
Carolina, 09/03/1930, p. 150, CS.
24
Melatti, Curt Nimuendaju e os Jê, p. 18.
25
Nimuendajú, Reconhecimento dos rios Içana, Aiari e Uaupés, p. 103.
278
solenemente e perante todo o povo as coisas sagradas que ele tinha recebido da Estrela
d'Alva: a cantiga, a pintura e os pauzinhos que possuem o poder de impedir que um eclipse
solar se eternize”.26
Seria um erro imaginar que Nimuendajú foi aceito nas tribos e recebeu homenagens
somente depois de ter exibido a sua postura a favor dos indígenas. Sem precisar mostrar de
que lado estava, ele foi batizado já durante a primeira permanência de alguns meses nas tribos
Apinayé (1928), Canela (1929) e Xerente (1930).
A demarcação de terras
Para o Snr. tratar direito da questão dos Canelas com o General Rondon, comunico-lhe
o seguinte:
1. Que o Art. 133 da nova Constituição do Estado do Maranhão garante aos índios as
terras que ocupam “nos termos do Art. 129 da Constituição Federal”. Esta ótima medida
devemos ao Dr. João Braulino de Carvalho.
2. Que o mesmo Dr. João Braulino de Carvalho fará entrar no orçamento do ano
vindouro a verba de 15 contos para a demarcação de terras de índios.
3. Que o Dr. Achiles Lisboa me encarregará da parte do Governo Estadual de proceder
ao reconhecimento das terras dos Canelas. Este reconhecimento farei gratuitamente e de
forma que ao engenheiro das Obras Públicas que vier depois de mim tratar do assunto pouco
mais restará a fazer além da legalização do levantamento [topográfico] feito por mim.
Não é a primeira vez que Nimuendajú mobiliza Carlos Estévão em favor desses
indígenas. Em 1934, da longínqua e gélida Europa, ele recorda ao amigo: “E NÃO SE
ESQUEÇA DOS CANELAS! [sic]”.28 É curioso que o fato de Nimuendajú interceder nessa
época pelos Canela durante sua estadia na Europa coincide com a imagem dos indígenas de
26
Boa Vista, 18/06/1937,CS, p. 266.
27
São Luiz do Maranhão, 25/04/ 1936, CS, p. 245.
28
Dresden, 26/0491934, CS. p. 204. Em 10/05/1934 e 09/07/1934 repete a mesma mensagem.
279
que ele é um enviado do deus Awkhê, que mora além mar, conforme depoimento recolhido
por Silva Jr. em 2004.
Já de volta ao Brasil em 1934, pode-se imaginar a sua satisfação ao receber
pessoalmente o apoio do governador para avançar nesse projeto: “Consegui do Dr. Achiles
uma autorização para proceder ao reconhecimento das terras ocupadas pelos Canelas - sem
remuneração, nem ajuda de custas. (…) Achei que devia aproveitar essas boas vontades e
fazer um levantamento expedito, calculando a área total e a área aproveitável para a
lavoura”.29
Ele age sem hesitar, mesmo sem contar com o equipamento técnico indispensável:
(...) três dias desenhando como nunca na minha vida e remeti dois exemplares do
croquis e os dados necessários, um ao Dr. João Braulino e o outro ao Dr. Antônio Lopes, visto
como o Dr. Achiles já tinha entregue o governo ao [interventor nomeado pelo presidente
Getulio Vargas] Carneiro de Mendonça. Calculei a área total em 330.000 hectares, dos quais
malmente a décima parte prestável para a lavoura: as restingas estreitas e muitas vezes
falhadas ao longo dos cursos mais volumosos de água.30
29
Barra do Corda, 03/07/1936,CS, p. 253. Como se verá mais adiante, Nimuendajú banca estas despesas
com seus parcos recursos.
30
Ibid. p. 255.
280
coleta de objetos. Além disso, as despesas realizadas superam as expectativas iniciais. Porém,
ele está satisfeito: “acho que não pude proceder de outra forma sem renegar o meu passado”.
A alquimia de Nimuendajú consiste em usar a sua remuneração dos recursos enviados por
Lowie destinados ao trabalho etnológico para pagar justamente os custos do levantamento
topográfico das terras dos Canela.31
Mas logo tem uma nova decepção: “Sobre a legalização das terras dos Canelas, nem
Antônio Lopes, nem João Braulino me escreveu mais coisa alguma. Provavelmente, com as
reviravoltas da política maranhense, tudo ficou outra vez em águas de bacalhau, e eu fui mais
uma vez o besta”.32
Nimuendajú enganou-se. Hoje os Canela vivem em terras oficialmente registradas pela
Funai no município de Fernando Falcão, no Maranhão.33
Assim como os Apapoucuva contribuem para mostrar o Curt Nimuendajú defensor dos
indígenas e o cientista autodidata, os Ticuna revelam o “branco” que, possivelmente em parte
contra a sua vontade, assume a identidade de representante da divindade Dyói. Essa imagem
da memória tribal é registrada nos anos 80 do século passado e talvez ainda viva até os dias de
hoje.
O alcance dessa transformação (ou simbiose?) é tamanha que, mesmo após a seu
falecimento (seja assassinado por seringalistas ou por indígenas, seja morte natural), sua
lembrança continuou beneficiando os Ticuna do Alto Solimões. É assim que o SPI de Manaus
aproveitou as circunstâncias não esclarecidas de sua morte para consolidar a política
indigenista oficial nesta região amazônica na década de 40.
Nos seus 40 anos de etnólogo, Nimuendajú exibiu uma postura inequívoca perante as quase
40 tribos que conheceu. Igualmente clara era sua atitude diante dos respectivos grupos de
“civilizados” que as agrediam ou exploravam.
31
São Luiz do Maranhão, 25/04/1936, CS, p. 245.
32
Pedreira, 01/09/1936, CS, p. 259.
33
As terras foram homologadas em 1982, conforme decreto 87.960, de 21 de dezembro de 1982 e publicado no
Diário Oficial da União - Seção 1 - 22/12/1982 , p. 23977, cf. Instituto Socioambiental. O município foi criado
em 1994 pela lei número 6.201, de 10 de novembro de 1994, DOU número 215, cf. Famem.
281
Entre os Ticuna, porém, nota-se como se buscara evitar um confronto direto com os
seringalistas do Alto Solimões. A sua primeira expedição já exibe este matiz de “um no prego,
outro na ferradura”. Sem meta etnológica, Nimuendajú empreende em 1929 uma viagem aos
Ticuna, levando ainda um casal de cinegrafistas alemães. Na verdade, ele fora comissionado
pelo SPI do Amazonas.34
Durante os 16 dias que fica na área, Nimuendajú só vai a dois igarapés onde existem
“barracões” de seringalistas e a um outro sem presença de “brancos”. Apesar de seu informe
citar outros atores sociais da área, sua ênfase são os Ticuna e os “patrões”. Ele faz uma clara e
profunda distinção entre a situação observada no barracão Belém do Solimões e no de São
Jerônimo.
Neste último, relata que “(…) notei imediamente com grande satisfação a cordialidade
existente entre a familia do patrão e as dos indios. Muitas vezes encontrei a sala da casa de
morada cheia de mulheres e crianças indias que se agrupavam nos bancos e no assoalho ao
longo das paredes e no meio delas a dona e as filhas da casa, todas na maior harmonia. Em
Belém, cujo arrendatario é solteiro, falta este quadro atraente”.
O consumo de cachaça obedece o mesmo padrão. No barracão Belém, onde a bebida
circula sem restrições, os indígenas “causam a impressão de fracos, menos sadios e
degenerados”, enquanto no São Jerônimo é servida vez por outra e em pequenas quantidades.
O dono do São Jerônimo é Manuel Mafra, membro do clã que controla os seringais do Alto
Solimões e que anos mais tarde vai combater Nimuendajú. O proprietário do barracão Belém
não é identificado.
Mesmo que não tenha presenciado em nenhum dos estabelecimentos cenas de
violência física, os índios estão sujeitos à arbitrariedade dos patrões, denuncia Nimuendajú:
“Ainda hoje sofrem pacientemente a tutela dos donos de barracões que decidem ao seu
belprazer sobre os destinos dos indios, espezinhando, consciente ou inconscientemente as suas
instituições religiosas e sociais“.
Seu relato sobre a atuação do SPI na área em 1929 é devastador, pois até o delegado
deste órgão tem os “seus” índios:
Muitos civilizados da zona somente conhecem o SPI de nome por péssimas [palavra
riscada no original] informações, os indios nada absolutamente sabem da existência dele. O
delegado do SPI ao qual compete a vigilancia da zona em questão, o snr. Mirandolino Caldas
em Tupy, goza em geral estima entre a população, mas nunca vai a aqueles centros nem os
34
Nimuendajú, Curt, Os índios Tucuna, Relatório ao SPI, de 10/12/1929, mcrofilme 397, MI.
282
indios de lá vão ter com ele [procurá-lo] nem toma ele conhecimento das relações dos indios
com os seus patrões. Consta-me que o snr M. Caldas tem na sua propriedade Tupy um
numero de familias de indios hoje já bastante limitado que vivem em condições de agregados.
Segundo o antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho, este trecho do relatório levou
o inspetor do SPI em Manaus, Bento Pereira Lemos, a visitar a área meses depois, em maio de
1930. Após ver os índios reunidos pelo delegado local no barracão de Belém do Solimões, o
inspetor desmentiu Nimuendajú, pois ouviu que eles “fizeram elogios ao delegado, do qual
mostraram ser muito amigos”.35
Depois de 12 anos de ausência, em 1941 Nimuendajú volta ao Alto Solimões. Muita
coisa mudara. A primeira novidade é que os militares, que dão as cartas no SPI, consideram a
região de interesse estratégico. Em 1939, o então general Cândido Rondon estivera em
Tabatinga, como mediador do conflito armado entre o Peru e a Colômbia pelo posse da cidade
de Letícia. Oliveira Filho atribui ao inspetor do SPI e major do Exército Carlos Eugenio
Chauvin a proposta de criar um posto na área ticuna.36
É justamente a situação que os seringalistas menos querem: que o Alto Solimões
entrasse no radar do governo federal. Os sensíveis sismógrafos dos seringalistas, contudo, já
detectam as transformações. Nimuendajú só capta as primeiras reações destes, na medida em
que a matriarca da família Mafra em Manaus, dona Yayá, se recusa a recebê-lo. Mas ele não
entende o porque dessa mudança.37
Por sua vez, Nimuendajú também modificou sua postura. Em 1941, quer fazer um
amplo estudo etnológico dos Ticuna, que o leva a procurar os indígenas fora da área dos
seringais. Ainda fica dois dias no barracão Perpétuo Socorro, de Quirino Mafra, que “apesar
de não me conhecer me recebeu bem”, conta. Dias antes, procurara Antonio Roberto Mafra
no barracão Belém. Dois exemplos de que ele ainda permanece fiel à sua política de contatos
formais e amistosos com a mais poderosa família da região.38
A terceira mudança vem dos Ticuna. Ao chegar ao igarapé São Jerônimo no início de
abril de 1941, Nimuendajú penetra num mundo ao qual até hoje poucos etnólogos tiveram
acesso - a gestação de um processo de fervor espiritual, que gera desdobramentos
profundos e diretos na vida da tribo:
35
Relatório anual da 1ª. Inspetoria do SPI, 1930-1931, cf. Oliveira Filho, João Pacheco, Ensaios em
antropologia histórica, editora UFRJ, 1999, p. 70.
36
Ibid, p. 28. Nimuendajú conhece pessoalmente o major Chauvin em Manaus em 1941, cf. CS, p. 283.
37
Leticia, 27/03/1941, CS, p. 283.
38
Ibid, p. 289.
283
Nora’ne contraiu uma doença durante a viagem e mal podia falar. Na metade do
segundo mês [de chegada], ele anunciou que tivera um sono de mau augúrio: o tempo dos
Ticuna tinha sido adiado, porque alguém tinha casado fora da tribo e Dyai estava furioso. A
insatisfação se espalhou rapidamente. As pessoas diziam que, caso Nora’ne não estivesse
realmente louco, então tinha ingerido yajé, um pó psicodélico usado pelos líderes tribais nas
ceremônias.
Ele não informa quem foi o seu intérprete, se o filho de um missionário norte-
americano instalado na área ou um guia brasileiro apenas identificado como Jorge, que então
teria traduzido da língua ticuna para o portunhol que Dunaway parece entender. A essência,
contudo, confere com o que Nimuendajú anotara em 1941: “o filho de Dyói tinha declarado
ao curumim que estava zangado com os Tukúna por causa de casos de incesto (quebra da
exogamia de moiety) que se tinham dado entre os reunidos”.41
O sumiço inesperado, segundo Dunaway, de 600 a 700 indígenas deixou o “patrão”
Quirino Mafra sem mão de obra para o seringal. Dunaway ouviu do próprio Quirino o que ele
fez no roçado: “Eu cheguei cansado até uma ampla planície e lá estavam os Tukuna, morando
39
Igarapé de Santa Rita, 23/05/1941, CS, p. 294.
40
Dunaway, David, Time of the Tukuna, Mother Jones, June 1976, v. 1, nº 6, Boulder, Colorado, Estados
Unidos, p. 16, minha tradução.
41
Carta de Perpétuo Socorro, 23/05/1941, CS, p. 295. É importante anotar que Nimuendajú se refere a incesto
praticado entre os participantes do movimento messiânico.
284
em pequenas cabanas em torno de uma clareira circular enorme. No centro, tinha uma grande
fogueira. Assim que eu fiquei sabendo porque eles estavam aí, e isso de um garoto que eu
conheci desde pequeno, eu ri sem parar. Eu lhes disse que não aconteceu inundação nenhuma,
que tinham que descer imediatamente até o rio e parar com essa bobagem”.42
Nimuendajú, que falou com os Ticuna da aldeia messiânica imediatamente depois da
volta desses aos igarapés, descreve um Quirino Mafra radicalmente diferente: “(...) ralhou-os
e ridicularizou a profecia como mentira absurda, ameaçou que deportaria o curumim para o
Rio e que ele faria com que o Governo mandasse destruir os indios reunidos por aviões que
jogariam bombas sobre eles (os Tukúna têm disto uma ideia pelas lutas entre os peruanos e
colombianos em 1933)”.43
É em meio a este confronto aberto que Nimuendajú realiza seu trabalho etnológico de
coletar lendas, organizar festas e mandar confeccionar máscaras para as ceremônias tribais.
Mas confessa que o poder dos seringalistas é enorme e, assim que as águas do rio baixam,
abandona seus mal iniciados levantamentos: “(...) logo os patrões dos indios insistiram com
estes [para] que começassem imediatamente a extração de borracha, enquanto durar esse
trabalho não há mais tempo para contar histórias e celebrar festas. E assim tive de retirar-me
sem concluir, pelo menos provisoriamente, as investigações“.44
Ele evita tomar oficialmente partido na disputa, embora seu coração e seu braço
estejam do lado indígena. É por isso que, antes de abandonar a região, levanta os dados para
fazer o mapa dos igarapés que serviria de base para instalar o posto do SPI no ano seguinte.45
É durante essa expedição de 1941 que Nimuendajú começa a ser sutilmente envolvido pelos
Ticuna. Não é possível afirmar que os indígenas o façam de maneira consciente, assim como
também seria arriscado dizer que Nimuendajú não teria percebido o que estava acontecendo.
As datas das avaliações do etnólogo quanto ao movimento messiânico fortalecem a suspeita
de envolvimento.
Na carta a Carlos Estevão de 23 de maio de 1941, ele traça um perfil psicológico do
garoto-profeta, que ele inclusive chega a conhecer pessoalmente durante suas atividades na
aldeia: “é um curumim bonito com olhos inteligentes e nada tem de patológico. Já começa a
42
Dunaway, p. 16.
43
Nimuendajú, CS, p. 294.
44
Ibid. p. 297.
45
Igarapé da Rita, 09/05/1942, CS, p. 307.
285
criar um pouco de confiança, mas por ora evitei cuidadosamente qualquer referencia ao
messianismo”.
Também constata que a descrição que Nóran faz do filho de Dyói “(...) não é aliás
absolutamente o representante da cultura antiga dos Tukúna, mas um personagem
completamente civilizado que viaja em [barco a] motor, mata bois para as festas dos seus
companheiros e promete aos Tukúna [sic] caixões cheios de calçados”.46
Nimuendajú parece só enxergar de um olho. Ele conclui, acertadamente, que o
messianismo não acabou, porque os adultos aceitaram prontamente a mensagem de um
menino de 13 anos. Mas, aparentemente, não consegue captar o que poderia significar para ele
pessoalmente a descrição do herói cultural como uma pessoa do século 20.
Meses depois, os Ticuna abrem o jogo. Ele é convidado a visitar o curso superior do
igarape São Jerônimo, onde se localiza o santuário da tribo. É aqui que se desenvolveu o mito
de nascimento dos heróis gêmeos Dyói e Epi e para onde acorreram os Ticuna em janeiro
desse mesmo ano de 1941.47
É um momento raríssimo para qualquer etnólogo. Diferente do messianismo já em
andamento que vivenciou em 1912 no interior de São Paulo com indígenas oriundos do
Paraguai, agora ele presencia a sua gestação.
A avaliação de seu próprio papel aparenta ser meramente profissional: “Aquilo que
me parecia a maior dificuldade, fazer esses indios falar, está agora já de certo modo
removido [sic]: pela minha romaria à terra dos mitos, pela minha atitude afirmativa para
com a cultura antiga e pela minha liberalidade no trato estou certo que já conquistei a
simpatia e confiança da maioria dos Tukúna [sic]”.
Como a visão de Norane apresenta uma pessoa extremamente parecida com
Nimuendajú e em companhia de outros seres mitológicos, ele passa a ser o filho do herói
cultural dos Ticuna. Imediatamente muda seu status.
Enquanto que outras tribos o tinham adotado, batizado e casado, os Ticuna o colocam,
literalmente sem ceremônias, no papel de sábio e líder espiritual: “Onde quer que eu apareça
junta-se a mim imediatamente um bando de indios (o que as mais das vezes para mim não é
vantagem nenhuma!) que interrogam o dono da casa e os indios meus remadores sobre o
que eu fiz e disse; por força querem que eu saiba onde hoje em dia habita o herói cultural
Dyói e consultam-me em matérias tão difíceis como sejam questões de incesto”.
46
CS. p. 295.
47
Igarapé da Rita, 28/07/1941, CS, p. 297.
286
Sua situação lembra algumas peças teatrais da Grécia antiga, que sugerem a
impossibilidade do ser humano de lutar contra o destino, conforme pode-se inferir de sua
avaliação desse cenário: “Tudo isto se dá apesar de eu ter evitado tudo que possa dar
margem para mistificações, afirmando aos indios constantemente que NADA [sic] sei e que
vim para aprender!”.
Em meados de agosto de 1941, Nimuendajú desce o rio Solimões rumo a Manaus,
onde toma o navio para Belém. Ele está satisfeito com as vantagens etnológicas que tem
como o primeiro não-indígena a liderar os Ticuna em busca da salvação. Mas terá suspeitado
o preço que iria pagar por essa honraria? Terá pensado em utilizar seu novo status entre os
Ticuna para, com ajuda do SPI, tirá-los da opressão exercida pelos seringalistas?
Em janeiro do ano seguinte, pergunta ao informante Nino Atahyde o que ele gostaria
de ganhar de presente quando voltar ao Solimões. Como Nino não sabe ler nem escrever, a
carta é, surpreendentemente, enviado ao “neo-brasileiro” Nilo Müller, descendente de alemães
e comerciante no Igarapé Preto. A este Nimuendajú informa que chegaria em maio ao Alto
Solimões.48
Em abril de 1942, adentra novamente a sede do SPI de Manaus. Nos cinco dias de
permanência, Nimuendajú age como se fosse funcionário do SPI da área na tarefa de
dissuadir seu chefe da idéia de criar o primeiro posto no Igarapé Belém.
Segundo o etnólogo Oliveira Filho, esta é “uma tentiva de manipulação do SPI por
parte de Antonio Roberto Aires de Almeida, ‘patrão’ deste seringal”.49 O posto é,
finalmente, implantado perto de Tabatinga, conforme sugestão de Nimuendajú.
No barco que o leva a Santa Rita do Weil, Nimuendajú ouve falar de boatos
difundidos pelos seringalistas após sua saída da região em 1941.
Instalado dia 2 de maio na casa de Nino Athayde, fica sabendo dos “detalhes”: que
fora preso por viajar sem licença [do Conselho de Fiscalização] e depois morto por ser espião
alemão. Outra versão garantia que ele fora preso e degolado.50
É o passado remoto e recente que revisita Nimuendajú: a acusação não provada de
espião o persegue desde 1915 e, em fevereiro de 1942, realmente o Conselho de Fiscalização
das Atividades Artísticas e Científicas do Brasil declarara que ele não possuía autorização
para realizar expedições.
48
Carta de Belém, 24/01/1942, MN. Nimuendajú manda lembrança a Laureano e Carlos, irmãos de Nilo, e a
Henrique Geißler. Dois destes irão testemunhar, em 1957, a exumação do cadáver de Nimuendajú.
49
Oliveira FIlho, p. 76.
50
Igarape da Rita, 09/05/1942, CS, p. 308.
287
O cacique Calixto conta a Nimuendajú que o “patrão”, Antonio Roberto, lhe dissera
que ele tinha feito um mapa dos igarapés para que aviões alemães bombardeassem a área.51
Evitei desde então [frequentar] as casas dos Mafras: Quirino tinha me tratado, como
nunca deixei de reconhecer abertamente, com muita hospitalidade. Tinha eu a ilusão que essa
hospitalidade fosse a manifestação de algum sentimento nobre, e que eu lhe devia gratidão por
ela, mas foi engano meu: é apenas um gesto oco e convencional, como por exemplo, aquele
de se tirar o chapeu quando se passa por uma igreja, e perfeitamente compativel com ódio e
hostilidade contra o mesmo hóspede.52
51
CS. p. 311.
52
Igarapezinho,12/06/1942, CS, p. 312.
288
53
CS. p. 315. O grau de empatia entre Ticuna e Nimuendajú repercute inclusive a nível científico. Em 1978, o
pesquisador Ari Pedro Oro só usa dados sobre a religião do Ticuna levantados por Nimuendajú, que ficou ao
todo menos de onze meses entre eles, ao passo que não inclui uma única informação do frei Fidelis de Alviano,
que morou 30 anos na área, cf. Oro, Ari Pedro, Tükúna: vida ou morte, p. 73, Editora Vozes, 1977.
289
Oliveira Filho detectou no início dos anos oitenta do século vinte a continuidade da
imagem altamente positiva de Nimuendajú entre os Ticuna. Este era visto como um líder, a
quem se poderia atribuir o título de aegacü.
Sua explicação deste nome esclarece o caráter especial que Nimuendajú acabou
assumindo para os indígenas dessa tribo amazônica:
O termo aegacü é usado para indicar um chefe que ocupa um lugar intermediário entre o
to-eru, o líder ou cabeça de um grupo local, situado no tempo cronológico, e os üüne, os
imortais ou encantados, que, por serem de um domínio superior, têm a capacidade de interferir e
determinar a existência dos mortais, mostrando-lhes o caminho da salvação.54
54
Oliveira Filho, p. 93.
55
Manaus, 01/10/1942, CS, p. 330.
290
possivelmente, levaria a pior. Segundo ele mesmo relata, um indígena pedira que intercedesse
junto a Quirino Mafra para que deixasse sua filha sair do barracão onde trabalha há anos.
Nimuendajú nega-se.56
Nada disso diminui a expectativa dos Ticuna quanto ao papel de Nimuendajú:57
Nos últimos tempos recebi na casa do Nino visitas sobre visitas de indios Tukuna,
alguns deles vindos de bem longe. Familias inteiras de 10 a 15 pessoas chegavam e deixavam-
se ficar, só saindo quando eu parti para esperar o vapor [para voltar a Belém]. Não me pediam
nada, mas queriam estar ai, como quem está esperando por alguma coisa. Na cara, tratavam-
me simplesmente de “kári” = patrão, mas notei que entre eles usavam o termo “bui” quando
se referiam a mim, que é o titulo que dão ao Dyói, o seu herói de cultura.
56
CS, p. 320 e 329.
57
Manaus, 01/10/1942, CS, p. 331.
58
Oliveira Filho, p. 30. Em 1945, tem início a criação de galinhas, além da compra de um forno para produção
de farinha de mandioca e de engenho de cana-de-açúcar movido a tração animal, ibid. p. 31.
291
59
SPI, ofício N° 25, p. 10.
60
Oliveira Filho, p. 38.
292
(...) dahi [sic] a alguns meses Neves ficará moça e tem de ir para o curral [sítio de
reclusão das moças para o rito de passagem da puberdade] e vocês devem fazer a cantiga de
varëki para ella [sic]. Pois esta [é] a lei que Dyaí deixou para a nação Tukuna e vocês devem
cumpri-la.62
61
Ibid, p. 34.
62
Belém do Pará, 15/04/1944, MN.
293
Nimuendajú viaja pela última vez às terras Ticuna com o cargo de Delegado de Índios
do Alto Solimões. Mas logo ao chegar ao igarapé da Rita morre ou é assassinado (veja
capítulo 12). Algumas semanas depois, torna-se realidade a afirmação feita por Nimuendajú
em 1941 de que o messianismo teria continuidade.
No início de 1946, no Rio Tacana, o adolescente Aprísio Ponciano teve a visão de que
“um imortal“ anunciava que o mundo iria acabar no mês seguinte. Uma enchente de água
fervente mataria todas as plantas e outros seres vivos, só escapando do cataclismo quem
estiver nas terras do Posto Indigena de Tabatinga.
Ao mesmo tempo, surge o boato de que o falecido Nimuendajú já teria aparecido duas
vezes a Manuelão, encarregado do posto – que na verdade estava em Manaus. Aparição
sobrenatural ou não, a notícia aguça o confronto entre seringalistas e indígenas. Uma razão é,
segundo Nunes Pereira, que estes não querem mais trabalhar na extração de borracha, “devido
aos baixos salários”. Em consequência, migram para as terras do Posto em Tabatinga.
A inesperada chegada de 300 indígenas à pequena Tabatinga abriu uma outra – e letal
– frente de conflito para o SPI, agora com o Exército. A nada sutil lembrança do tenente
Dourados de que os recém-chegados “poderão criar sérios problemas nesta fronteira“ é uma
mostra da reação negativa dos militares de Manaus e, possivelmente, da capital federal à ação
do SPI na região. Segundo Oliveira Filho, Manuelão é “substituído por um novo encarregado,
cuja missão era recompor o relacionamento do SPI com militares e seringalistas, promovendo
o translado do posto e dos índios para fora de Tabatinga, para as terras do Igarapé
Umariaçu“.63
Em 1983, quase quarenta anos depois desses acontecimentos, Oliveira Filho escuta
dos Ticuna relatos que reafirmam o duplo papel de Nimuendajú: o do etnólogo que traz
mercadorias, reavivando as tradições indígenas, e o do líder espiritual, chamado de “Tecu-
quira“ (“filho de Ipi”, um herói cultural) e “Tanatü“ (“Nosso pai“).
Ele “se apresentava aos índios sob a forma de um homem branco. Nimuendajú seria
chamado igualmente na língua ticuna por [sic] aegacü, termo que designa o chefe cujo
mandato vem de fora”.
A reflexão de Oliveira Filho é de que, para os indígenas, é inequivoco o papel de líder
espiritual: “seja suposto como um enviado dos imortais ou um desses imortais vivendo sob
forma encantada no meio dos homens, Nimuendajú mantinha estreita conexão com esse
governo dos índios [no original]”.64
63
Oliveira Filho, Ensaios… p. 39.
64
Oliveira Filho , Os Ticuna, p.276.
294
(...) ainda ajudar a entender um nexo latente (ainda que necessariamente tenso e
crítico) entre pesquisa etnológica e ação indigenista, que se expressa não somente nas
intervenções públicas dos etnólogos (enquanto cidadãos), mas também nas suas relações com
os índios e a sociedade, nas condições de pesquisa e nos esforços interpretativos.
65
Funai, Diário Oficial da União, p. 7, seção 1, despacho do processo Funai/BSB/0416193, em
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/952149/dou-secao-1-13-01-1997-pg-7, acessado em 6 de junho de 2010.
66
Oliveira Filho, Ensaios, p . 91.
Bibliografia
Cadogan, León - Ayvu Rapyta, textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá,
Biblioteca Paraguaya de Antropología, vol. XVI, Asunción, 1992.
Capeller, Fritz, Der großte Indianerforscher aller Zeiten, edição do autor, Bad
Salzungen, 1962.
Castro, Celso, A trajetória de um arquivo histórico: reflexões a partir da documentação
do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil Estudos
Históricos, nº 36, p. 33-42, Rio de Janeiro, julho-dezembro de 2005.
Clastres, Hélène,Terra sem mal. Profetismo tupi-guarani, São Paulo, 1978.
Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, Dossiê da expedição do Rio
Feio/Aguapeí, em http://memoria.fundap.sp.gov.br/memoriapaulista/publicacao/conquista-do-
sertao-paulista/dossie-da-expedicao-do-rio-feioaguapei acessado em 23/03/2011.
Corrêa, Mariza, A Doutora Emilia e a tradição naturalista, Horizontes Antropológicos,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vol 1, nº 1, p. 37-46, Porto Alegre, 1995.
Crocker, William, The Canela (Eastern Timbira), I, An Ethnographic Introduction,
Smithsonian Institution, Washington, D.C., 1990.
Cunha, Manuela Carneiro da, O Mundo aos pés dos Índios, Revista de História da
Biblioteca Nacional, ano 6, nº 63, p. 33-44, Rio de Janeiro, dezembro de 2010.
Church, Dawson, Die neue Medizin des Bewusstseins, VAK Verlag, 2008.
Famem - em http://www.famem.org.br/2010/10/27/lei-de-criacao-de-fernando-falcao-
5226.htm acessado em 06/02/2011.
Farebee, William, Museum Journal of the University of Pennsilvania, v. 7, 8 e 12, cf.
Handbook South American Indians, vol. 3, Smithsonian Institution, Washington.
Faria, Luis de Castro, A invenção do patrimônio: continuidade e ruptura na
constituição de uma política oficial de preservação no Brasil, Ministério da Cultura/IPHAN,
Rio de Janeiro, 1995.
Faulhaber, Priscila
____O etnógrafo e seus ‘outros’: informantes ou detentores de conhecimento
especializado?, Estudos Históricos, 35, p. 111-129, Rio de Janeiro, julho-dezembro 2005.
____ Etnografia na Amazônia e Tradução Cultural: comparando Constant Tastevin e
Curt Nimuendaju, Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 3, nº 1,
p. 15-29, Belém, jan.-abr. 2008.
Ferreira de Castro, O instinto supremo, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro,
1968.
Franco, Maria Teresa - A pesca na pré-história, UFRJ-IFCS, Rio de Janeiro, 1992.
Funai
____ funai.gov.br/quem/historia/spi.htm em 24/08/2006
____ Funai/BSB/0416193, em http://www.jusbrasil.com.br/diarios/952149/dou-secao-
1-13-01-1997-pg-7, acessado em 6 de junho de 2010.
Kramer, Fritz W., Schriften zur Anthropologie / Bronislaw Malinowski, Eschborn bei
Frankfurt am Main, Klotz, 1999.
Krause, Fritz, Anthropos vol. XXIV, p. 1104, Wien, 1929.
____ A Terra sem Mal dos Guarani, Revista de Antropologia, v. 33, São Paulo, 1990,
p. 44-45.
____Etimología y semántica en un manuscrito inédito de Antonio Ruiz de Montoya, in
Amerindia: revue d'ethnolinguistique amérindienne, La "découverte" des langues et des
écritures d'Amérique, Paris, 1995, p. 331-340.
Menchén, Georg, Nimuendajú, Bruder der Indianer, Brockhaus Verlag, Dresden,
1979.
Metreaux, Alfred - The Guarani, South American Indians, B.A.E. Bulletin 143, v. 3,
Washington, 1943.
___ Os Tapajó, Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi, v. X. pp. 90-106, Belém,
1940.
___ Viagem de reconhecimento aos índios Gorotire-Kayapó do Rio Xingu, 1939-
1940, filme 115, SPI, Museu do Índio, Rio de Janeiro, 1940.
___ The Serente, The Southwest Museum, Los Angeles, 1942.
___ Brinquedos de nossos índios, adaptação de Alba Maria de Carvalho, Série
Infantil nº. 1, Conselho Nacional de Proteção aos Índios, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro,
1958.
___ Serente Tales, Journal American Folklore, v. 57, pp. 181-187, Berkeley, 1944.
___ A Habitação dos Timbira, separata da Revista do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, v. 8, pp. 77-101, Rio de janeiro, 1944.
___ The Eastern Timbira, University of California Press, Berkeley and Los
Angeles, 1946.
___ Sugestões para pesquisas etnográficas entre os índios do Brasil, revista
Sociologia, v. III, nº 1, p. 36-44, São Paulo, 1946.
___ Social Organization and Beliefs of the Botocudo of Eastern Brazil, South-
Western Journal of Anthropology, v.2, p. 93-115, Albuquerque, 1946.
___ Curt Nimuendajú e R. F. Mansu Guérios Cartas Etnolinguísticas, Revista do
Museu Paulista N. S., nº 2, p. 207-241, São Paulo, 1948.
___ The Tukuna, University of California, Berkeley, 1952.
___ Apontamentos sobre os guarani, separata da Revista do Museu Paulista, p. 9-57,
São Paulo, 1954.
___ Relatório ao SPI, em 22/5/1939, publicado sob o título Índios Maxacari,
Revista de Antropologia, v. 7, São Paulo, 1959.
___ Cartas de Curt Nimuendajú a Fernando de Azevedo, Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, v. 9, p. 188-200, Rio de Janeiro, 1970.
___ Curt Nimuendajú: 104 Mitos Indígenas nunca publicados, Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, nº 21, Rio de Janeiro,1986.
___ Cartas do Sertão a Carlos Estévão de Oliveira, edição de Thekla Hartmann,
Assírio & Alvim, 2000, Lisboa.
___ A corrida de toras dos Timbira, Mana, 7 (2), pp. 151-194, Museu Nacional, Rio
de Janeiro, 2001.
___ In Pursuit of a Past Amazon, Gotemburgo, Etnologiska Studier, nº 45, editor Per
Stenborg, Götemborg, 2004.
Nimuendajú Unkel, Curt
___ Die Sagen von der Erschaffung und Vernichtung der Welt als Grundlagen der
Religion der Apapokuva-Guarani, Zeitschrift für Ethnologie, v. 46, pp. 284-403, Berlin, 1914.
___ Vocabulário da Língua Pariri, Zeitschrift für Ethnologie, v. 46, pp. 615-625,
Berlin, 1914.
___Vocabulários da língua geral do Brasil nos dialetos Manaé do rio Ararandiu,
Tembé do rio Acará Pequeno e Turiwára do rio Acará Grande, Estado do Pará e Vocabulário
da Língua Pariri, Zeitschrift für Ethnologie, v. 46, pp. 615-625, Berlin, 1914.
___ Sagen der Tembé-Indianer (Pará und Maranhão), Zeitschrift für Ethnologie, v. 47,
pp. 281-301, Wien,1915.
___ Leyenda de la Creación y Juicio Final del Mundo como Fundamento de la
Religión de los Apapokuva Guaraní, edição do tradutor, San Pablo, 1944.
___ As Lendas da Criação e a Destruição do Mundo como Fundamento da
Religião Apakokuva-Guarani, Hucitec, São Paulo, 1987.
Noelli, Francisco Silva - Curt Nimuendajú e Alfredo Metreaux, a invenção da busca
da “terra sem mal”, Suplemento Antropológico Universidad Católica, Revista del Centro de
Estudios Antropológicos, v. XXXIV, nº2, pp.123-166, diciembre de 1999, Asunción.
300
Raison Timothy, The Founding Fathers of Social Science, London, Scolar Press, 1979.
Rangel, Lucia Helena, Vida em reserva, p. 77 in: Índios no Estado de São Paulo:
resistência e Transfiguração, vários autores, São Paulo, Yankatu/Comissão Pró-Índio de S.
Paulo, 1984, in Silva, Ana Amélia da, Sociedade, Cultura e Política, Universidad Pontifica de
Comillas, Madrid, 2004.
Ratzel, Friedrich, Die chinesische Auswanderung. Ein Beitrag zur Cultur- und
Handelsgeographie. Breslau, 1876.
Rede Globo, Assassinato do índio Galdino completa 10 anos, 19/04/2007,
http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL23764-5598,00.html acessado em 04/04/2011.
Reinisch, Holger; Andreas Diettrich e Dittmar Frommberger, Pedagogia econômica
como disciplina de estudo, em http://www.uni-jea.de/content_page_6662.html em 01.07.05.
Ribeiro, Berta, in O mapa etno-histórico de Curt Nimuendajú, Revista de
Antropologia, Separata do v. XXV, São Paulo, 1982.
Ribeiro, Darcy, Os índios e a Civilização, Vozes, Petrópolis,1982.
Roosevelt, Anna Curtenius, Moundbuilders of the Amazon: geophysical archaelogy on
Marajó Island, Academy Presse, San Diego, 1991.
Roosevelt, Theodor Through Brazilian Wilderness, Charles Scbribner’s Sons, New
York, 1914.
Os relacionamentos amorosos
Casal Nimuendajú e Jovelina. Museu Nacional.
As quatro pré-mortes
Em 1942, “perdi a minha razão de viver” Belém, 22/11/1942, MN.
Casa de Nimuendajú em Belém DU, p. 171.
“Ninguém leu uma linha...” Belém, 10/11/1943, MN.
“Nunca mais hei de ver ...” Belém, 06/11/1943, DU.
Capa de Leyendas Nimuendajú, Leyendas...
Baldus pede perdão São Paulo, 02/08/1944, MN.
“Fui muito desastrado e tolo” Belém, 31/08/44, MN.
Observação
Mesmo tendo pesquisado com cuidado, é possível que alguma fonte iconográfica
tenha sido apresentada equivocadamente.
Nessa eventualidade, tenha a gentileza de entrar em contato com o autor.
320
Sobre o autor