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estima em 6,77% os brasileiros falantes da norma culta nos anos 2000; na década
de 1970, este número era infinitamente menor. Uma descrição de norma baseada em
uma amostra com esta constituição, como é o caso das gramáticas contemporâneas
do Português Brasileiro (cf. Castilho, 2010; Bagno, 2013), realiza um movimento
de troca de normas: da norma lusitana que foi codificada nas gramáticas brasileiras
no final do século XIX (Faraco, 2008) para uma norma urbana culta e elitista, que
é codificada nas gramáticas da virada do milênio, em suma, WEIRD.
Assim, o que é descrito como “Português Brasileiro” substancialmente
dependente da amostra linguística selecionada para tal descrição. A prática de
pesquisa em relação ao dimensionamento de amostras para a descrição linguística
de natureza sociolinguística advém de práticas dialetológicas em busca do falante
“puro”, NORM. A Sociolinguística urbana, tal como delineada por William Labov
(2006) para o estudo do inglês de Nova Iorque, considera uma amostra de natureza
probabilística. Na prática brasileira, no entanto, a amostragem sociolinguística
é por voluntariedade e conveniência, por meio do modelo “bola de neve” (um
amigo que indica um amigo), formando bolhas de segmentos da comunidade que
compartilham de traços comuns, e que são assumidas como se fossem homogêneas
a toda a comunidade (Freitag, 2018). Por outro lado, as gramáticas contemporâneas
do Português Brasileiro são essencialmente baseadas em descrições da amostra do
projeto NURC, cujo perfil dos falantes se aproxima ao máximo do que conhecemos
por WEIRD.
Hipóteses de polarização do Português Brasileiro, em uma norma culta e uma
norma popular, são baseadas em evidências advindas de amostras igualmente
polarizadas. Os padrões de concordância identificados no projeto Competências
Básicas do Português, com participantes do Mobral, são diametralmente opostos
aos padrões identificados na amostra do NURC, com participantes com diploma
de nível superior. Do ponto de vista das descrições sociolinguísticas, embora se
reconheça que os perfis NORM e WEIRD são extremos na sociedade brasileira,
mas que, por finalidade prática (e restrições orçamentárias), são assumidos como
polarizados e pareados, e que, por isso, levam a uma distorção sobre o que é o
Português Brasileiro. É preciso, pois, pensar em abordagens para o preenchimento
de informações descritivas do português brasileiro nos entremeios NORM e WEIRD
da sociedade atual. Por outro lado, conceitos precisam ser reconsiderados quando as
investigações passam considerar outras realidades que não somente as comunidades
urbanas e monolíngues (Meyerhoff, 2019).
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concordância. Não há razão no mundo para que “a lua” tenha que ser do gênero
gramatical feminino e “o sol” tenha que ser do gênero gramatical masculino, mas
há uma razão na gramática que requer uma marca morfológica, e esta marca é
binária: masculina ou feminina. Sem esta marca, outros níveis de organização da
língua são afetados.
é usado para se referir ao gênero de corpos que não se identificam com o binário,
e a regra de gênero neutro, em que o não binário é usado para referência genérica,
substituindo o padrão genérico masculino.
As mudanças na língua acontecem acima ou abaixo do nível de consciência.
Quando a sociedade toma consciência de uma mudança linguística, especialmente
quando ela está associada à identidade e representação de grupos minoritários, os
grupos hegemônicos, WEIRD, reagem. E a reação a esta mudança linguística tem
sido forte: no início de 2021, havia seis projetos para criar uma lei para criminalizar o
uso de “linguagem neutra em termos de gênero”, e somente em nível federal. Como
podemos entender esta reação ao nível da criminalização do uso linguístico? Como
entender esta reação forte e repressiva através de leis que proíbem e criminalizam um
uso linguístico senão pela hegemonia do masculino dominante sentir-se ameaçada
e reagir a ela com as armas que dispõe? A observação do processo durante o tempo
pode mostrar como estas regras conflitantes serão resolvidas.
7.3 CONCLUSÕES
A heterogeneidade sistemática é uma premissa da Sociolinguística, mas,
por razões metodológicas, acaba se transformando em uma homogeneização
padronizadora, em alinhamento ao perfil WEIRD. Este problema não é exclusivo da
Sociolinguística brasileira (cf. Eckert, 2003; Meyerhoff; Stanford, 2015; Meyerhoff,
2017; Freitag, 2018), mas, no cenário brasileiro, a premissa da heterogeneidade
sistemática está presente nos documentos orientadores dos currículos da educação
básica, que enfatizam a importância do tratamento da diversidade e da variação
linguística. A escola explora a consciência linguística de modo particular no
aprendizado inicial da leitura, com a consciência fonológica e morfossintática,
que contribuem para a automaticidade na decodificação e compreensão leitora.
A consciência sociolinguística, no entanto, é ainda pouco explorada, mesmo nos
estudos sociolinguísticos.
Todos os falantes de uma língua desenvolvem consciência sobre ela, em
diferentes níveis: a) estrutura e gramática (isso é português, isso não é português);
b) aspectos pragmáticos, como os ajustes entre falante e audiência e suas intenções
comunicativas, como a língua pode ser deliberadamente manipulada para efeitos
persuasivos; c) aspectos sociais de uma língua (falante jovem vs. idoso, mais ou
menos escolarizado, morador da capital vs. interior) e o reconhecimento de como
padrões sociais e discursivos são mutualmente constitutivos, e como os falantes estão
amplamente imersos e condicionados por estes padrões linguísticos da comunidade,
a consciência sociolinguística.
A consciência sociolinguística é formulada entre o NORM e o WEIRD, mas a
postulação da norma codificada é baseada mais alinhada ao WEIRD, mesmo em
abordagens sociolinguísticas. Podemos ver evidência deste pareamento nos estudos
de descrição da variação, em especial pelos processos de amostragem e segmentação
de grupos. Mas é nos estudos de percepção das regras variáveis que as diferenças
ficam mais evidentes.
Os perfis NORM e WEIRD são extremos na sociedade brasileira, mas que, por
finalidade prática (e restrições orçamentárias), são assumidos como polarizados e
pareados, e que, por isso, levam a uma distorção sobre o que é o português brasileiro.
Faltam abordagens para o preenchimento de informações descritivas do português
brasileiro nos entremeios NORM e WEIRD da sociedade atual. Mais tarefas para
uma agenda de pesquisa já engajada na compreensão dos mecanismos cognitivos
pelos quais a variação sociolinguística é processada, bem como nas ligações entre os
diferentes níveis da gramática e informações sociais. Torna-se latente a necessidade
de incrementar métodos de coleta de dados e de análise para suprir essa lacuna
descritiva.
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