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Marina Knup

Anarquismo e Infiltração Policial


nos anos 30

Imprensa Marginal
Editora e Distribuidora Anarcopunk | 2011

Capa | fragmento de ilustração de A Plebe # 76, de 24 de


novembro de 1934

Índice

- Anarquismo e Infiltração Policial nos anos 30


O anarquismo na década de 30 | pág. 03
Anarquismo e discurso policial | pág. 06
As infiltrações | pág. 15
Bibliografia | pág. 24
Notas | pág. 26

- Uma breve apresentação


da Imprensa Marginal | pág. 28

2
Anarquismo e Infiltração Policial
nos anos 30
Marina Knup

O anarquismo na década de 30

Registros da movimentação anarquista de fins do século XIX até


os dias de hoje podem ser encontrados em abundância, tanto na
produção libertária – livros, periódicos, artigos, relatos
biográficos, etc. – quanto na historiografia.
A bibliografia a este respeito é bastante rica e numerosa. Grande
parte dos estudos sobre anarquismo centra-se, contudo,
principalmente nas duas primeiras décadas do século XX,
momento de grande influência dos ideais anarco-sindicalistas nas
movimentações operárias. Neste período encontramos uma
infinidade de registros das manifestações, greves, experiências
comunitárias, centros de cultura e ateneus, palestras, comícios,
grupos de teatro social, grupos de estudo, escolas racionalistas e
universidades populares, ligas e sindicatos de caráter anarco-
sindicalista, congressos operários, federações, editoras, e intensa
propaganda através de periódicos e publicações diversas ligadas à
questão social.
A partir da década de 30, o anarquismo passa a ser abordado pela
historiografia de forma indireta, em análises voltadas a outros
temas, estando o PCB e a atuação partidária no foco central dos
estudos referentes às movimentações operárias.

3
Somente nos anos ulteriores a 1945, após o período de vigência
do Estado Novo, implantado em 10 de novembro de 1937, é que
se aponta um ressurgimento do movimento anarquista, porém,
segundo Jaime Cubero1, já sem a presença do anarco-
sindicalismo, apesar da atuação individual de alguns anarquistas
em sindicatos.
Se à implantação do Estado Novo se atribui um dos golpes de
morte proferidos ao anarco-sindicalismo da época, soma-se ainda
a influência da repressão estatal, presente desde o início do século
e intensificada no início dos anos 30; da concorrência ideológica
no interior do sindicato, que se intensifica com a fundação do
PCB em 1922, com propaganda internacionalmente financiada; e
da interferência do Estado corporativo no que se refere à
regulamentação sindical e oferecimento de benefícios em troca de
tutela ou, em outras palavras, da perda da autonomia sindical, que
começa nos anos vinte, durante o governo Artur Bernardes, e
ganha força total com Getúlio Vargas, com a criação de uma
estrutura oficial para comportar os sindicatos.
No início da década de 30 os anarquistas ainda se fazem
presentes, notadamente pela recusa às medidas do governo
provisório de Vargas no que se refere aos sindicatos e legislação
social. Alguns registros de atuação ainda se encontram na criação
em São Paulo de um Comitê Operário de Organização Sindical,
para reativar os sindicatos fechados e a federação operária;
rearticulação do periódico A Plebe em 1932, então quinzenal,

4
tendo publicado 101 números; e tentativa, lançada por José
Oiticica, de criação de uma federação anarquista brasileira
inspirada no exemplo espanhol da FAI (Federação Anarquista
Ibérica). Desta tentativa surge o Comitê de Relações dos Grupos
Anarquistas de São Paulo.
Um dos poucos momentos, antes do Estado Novo, em que o
anarquismo teve ainda uma aparição pública expressiva, se não o
último, conforme Alexandre Samis2, foi a “Batalha da Praça da
Sé”, em outubro de 1934, marcada pelo conflito dos antifascistas
com manifestantes integralistas.
Com o levante comunista de 1935, a repressão atinge ainda mais
duramente a todo o movimento operário. Assim, com sindicatos
não-oficiais fechados, diversas fábricas e navios adaptados para
receber presos políticos, deportações, e uma consequente baixa no
número de militantes, o movimento anarquista - junto ao anarco-
sindicalismo, mergulhará em um longo momento de depressão,
antes que volte a florescer mais adiante.

É sobre a questão da repressão policial que antecede este


momento, caracterizada por intensa infiltração de agentes
policiais junto ao movimento anarquista e operário, que
debruçaremos nossa análise. Procuraremos estabelecer um
panorama geral do tipo de discurso utilizado pela polícia no
período em relação ao movimento anarquista e verificar o caráter
e grau de infiltração dos investigadores junto ao operariado.

5
Entretanto, se fará necessária, posteriormente, uma pesquisa mais
aprofundada dos periódicos e documentos anarquistas, e dos
próprios documentos do DEOPS/SP, dos quais faremos uso neste
artigo.

Anarquismo e discurso policial

A atividade repressiva desenvolvida pelos órgãos policiais surgia


da necessidade de controle das classes trabalhadoras e repressão
de supostos subversivos da ordem, e se pautava em uma
legislação que, desde o fim do século XIX, ia aos poucos
regulamentando a expulsão de estrangeiros considerados “nocivos
à ordem pública”, a repressão ao anarquismo e aos agitadores
sociais, através de leis como a “Adolpho Gordo”3 de 1907, o
Decreto no. 4.247 de 1921, ou as leis de repressão ao anarquismo
de 19214 e 19275.
Pouco mais de um ano após a criação da Quarta Delegacia
Auxiliar, especificamente voltada ao controle social e político, no
governo de Artur Bernardes, é criado o Departamento de Ordem
Política e Social, em dezembro de 1924, que terá, a partir de
então, intensa atuação de vigilância e repressão.

Se a grande imprensa se esforçava em sustentar o estereótipo do


anarquismo como "planta exótica", "idéia fora de lugar" e
"calamidade social"6 a ser combatida, e do indivíduo anarquista

6
como perigoso, indesejável, agitador das classes operárias e
causador de greves, subversivo da ordem social, demagogo,
desordeiro, criminoso, terrorista e violento, o discurso utilizado
pela polícia se mantinha plenamente afinado com tais conceitos,
não só em relação aos anarquistas, como também ao estereótipo
de "trabalhador pacato" vulnerável à ação do suposto "agitador
subversivo".
É possível identificar, nos periódicos veiculados pela grande
imprensa, bem como nos registros policiais, a construção de um
imaginário do anarquismo que, longe daquele difundido pelos
libertários através de sua própria imprensa e discurso, destacava
um aspecto negativo, que o colocava em um âmbito de
agressividade e violência. É neste imaginário, pautado no
terrorismo, violência exacerbada e ameaça à ordem que se
encontrava o fundamento do discurso policial e da ação repressiva
frente ao movimento anarquista. O porte das “bombas de
dinamite” e outras armas e atentados às autoridades eram
considerados peculiaridade dos anarquistas, e embasavam a
legislação de repressão existente e as constantes buscas policiais
em invasões aos locais de moradia e atuação dos militantes
libertários.
Menções diversas à violência permeiam quase todos os relatórios
pesquisados. Além do destaque às ações violentas, era comum
nos relatórios policiais a menção à violência dos discursos, artigos
e adjetivos dispensados contra os governos, patrões, políticos,

7
clero e autoridade nas diversas reuniões, periódicos e atos
públicos.
Sobre uma conferência de Florentino de Carvalho em outubro de
1933, por exemplo, se relatam “(...) longa serie de ataques aos
poderes constituídos, com a linguagem violenta com que
costumam expressar-se os seus companheiros de credo, sempre
que se fazem ouvir.7”
O discurso de Hermínio Marcos é considerado, em outro
relatório, como “agressivo até o último limite contra os poderes
constituídos8”, e Pedro Catallo, em relato sobre uma exposição
sobre anarquismo feita em um comício interno da F.O.S.P., é
adjetivado como “violento, como sempre”.9
Esta imagem violenta encontrava reforço ainda em uma série de
relatórios que apontavam os anarquistas como indivíduos
perigosos e intolerantes nas disputas internas do sindicato, em
especial para com os comunistas, sendo comum o relato de brigas,
discursos e conflitos. Essas divergências entre as diversas
correntes eram intensamente investigadas, sendo verificadas
possíveis alianças entre anarquistas e os comunistas que, na
década de 30, em plena campanha anticomunista, eram então
considerados uma ameaça internacional.

O mito da “planta exótica” também se destacava como recurso


da argumentação policial. A origem da agitação dos trabalhadores
não era tida devido a sua condição como socialmente oprimidos

8
ou a uma “luta de classes”, mas atribuída à ação de elementos
externos, que com suas idéias “fora de lugar” e inadequadas ao
cenário nacional, provocavam conflitos entre os trabalhadores
pacatos e seus patrões. É perceptível a existência neste tipo de
discurso de uma dicotomia entre um trabalhador pacato e um
elemento estrangeiro e sedutor que poderia aliciá-lo à agitação,
provido de inteligência e de caráter manipulador.
A existência de elementos estrangeiros nos meios sindicais
fundamentou, muitas vezes, o fechamento de sedes, e outras
tantas ações policiais. Em 18 de novembro de 1937, por exemplo,
a enorme presença estrangeira, junto à ação subversiva ali
desenvolvida, foi apontada como motivo para o fechamento da
Federação Operária de São Paulo.10
Ao mesmo tempo em que se enfatizava o caráter alienígena das
propostas anarquistas, consideradas estranhas à realidade
nacional, e a violência dos militantes anarquistas, os
investigadores percebiam o potencial de sedução das mesmas, em
um meio caracterizado por grande quantidade de imigrantes que,
em contato com tais idéias, tinham maior propensão à
identificação do que ao estranhamento. As qualidades individuais
de oratória e inteligência dos anarquistas eram expressamente
destacadas nos relatórios e o anarquista era colocado como uma
ameaça à ordem e ao trabalho. Considerava-se que
“O trabalho vagaroso e intelligente de alguns elementos
mais cultos do meio operario, (...) ao lado da força

9
sugestiva e exaltada de outros, vai tomando um caráter
verdadeiramente educativo dos seus principios e idéias, o
que não deixa de constituir serio perigo para a nossa
sociedade, para o Estado e para o Paiz.”11

Alguns relatórios nos apresentam, também, uma preocupação


muito maior com o ambiente produzido pela propaganda
anarquista, do que com a ideologia em si, a partir do momento em
que passava a tocar nas questões sociais, indo além da difusão dos
ideais libertários:
“Esta organização, apesar de combater o bolchevismo, está
criando inegavelmente um ambiente de rebeldia e indisciplina
nos meios trabalhistas, com sua imprensa legal, assim como
ampla liberdade de reuniões e propaganda. (...) Observa-se
agora que as comissões de propaganda, creadas nas padarias,
oficinas, etc., não são compostas exclusivamente de elementos
com ideologia formada, mas, de elementos influenciados pela
propaganda extremista, que si limitam a “pregar” contra o
actual estado de cousas e pela “solução revolucionária” das
várias questões. A ideologia anarquista “em si” não oferece
perigo algum, mas é preciso observar o ambiente criado pela
propaganda metodizada, (ou organizada) que não se limita a
fazer secamente a propaganda anárquica, mas agitar as questões
mais sentidas pelas massas”.12

10
De forma a rastrear os possíveis elementos perigosos à ordem,
eram produzidas pela polícia diversas listas de trabalhadores que
possuíam posição de liderança nos sindicatos e indústrias ou
demonstravam atitude subversiva. Uma destas listas, intitulada
“PESSOAL PERIGOSO DA LIGHT”13, reunia nomes dos
Trabalhadores da Light nos tópicos Comunistas militantes com
experiência de luta, coragem e decisão; Simpatizantes
Comunistas, de coragem, decididos, sem experiência de luta; e
Simpatizantes Comunistas.
Em setembro de 1926 o DOPS elaborou uma “Relação de
Anarquistas”, descrevendo atividades terroristas, fabricação de
bombas, e agitação dos trabalhadores. A forma como são
apresentadas tais informações, através de síntese, sem
investigações completas, faz com que Raquel de Azevedo14
acredite serem estas forjadas, para que se justificasse a expulsão
dos militantes estrangeiros na época.

Se uma das principais formas de difusão do ideário anarquista se


encontrava em seus periódicos, livros, panfletos e outros materiais
impressos, ao combate à disseminação destas idéias, perigosas à
ordem, se somava a censura e apreensão destas publicações, o que
ocasionou, em diversos momentos, a prisão de pessoas pelo
simples porte de material anarquista e a investigação das
tipografias e apreensão de material naquelas em que fossem
produzidos os periódicos libertários.

11
Apesar de, a partir da década de 30, o olhar das autoridades estar
voltado sobretudo à “ameaça comunista”, a movimentação
anarquista na Espanha trouxe ainda uma preocupação específica
com os anarquistas. Neste momento, já com Getúlio Vargas no
poder, as notícias referentes ao conflito e às posturas
revolucionários dos anarquistas eram censuradas, devido ao poder
de inspiração de novos conflitos que poderia ter por aqui.
Mesmo com toda a repressão e as prisões de militantes
encontrados distribuindo material relativo à situação espanhola, as
notícias chegavam aos anarquistas através de periódicos, cartas e
contatos internacionais, injetando ânimo nos militantes libertários.
O jornal A Plebe de janeiro de 33 dedicou uma edição sobre os
acontecimentos na Espanha, e na Federação Operária eram
distribuídos boletins diariamente e o tema era parte de fervorosos
discursos, debates, palestras e assembléias que ocorriam. Em
muitos registros policiais, o movimento operário brasileiro foi
comparado ao espanhol, entendendo-se ser necessário máximo
cuidado para que a experiência revolucionária não se produzisse
em solo nacional. O investigador Antônio Ghioffi, em análise da
situação, concluía que
"O proletariado paulista tem todas as características
do proletariado hespanhol, apezar do seu menor grau de
cultura. É individualista por indole ou por educação.
Traz por isso em si o espirito de organização, sem estar

12
organizado. Os movimentos de 1906, 1913 e 1917
produziram-se sem que houvesse qualquer organização
de pé. A organização veio depois. Assim um movimento
de massas pode depender mais de factores externos, á
margem mesmo da organização, factor de ordem moral,
economico social ou politico, determinado por
condições circunstanciaes. Desta maneira se produziram
os movimentos proletarios de São Paulo, os de maior
alcance e repercusão."15
A partir de 1935, muitos investigadores começam a noticiar um
elevado grau de desorganização na Federação Operária, já com
poucos sindicatos oficialmente integrados, e a presença de poucos
sócios nas assembleias, se destacando apenas os antigos
militantes. Dizia José Vidotti que
“Essa federação que reunia antigamente diversos syndicatos
livres da Capital, está passando por um período de grande
desorganização. Actualmente somente dois syndicatos, não
reconhecidos, a integram oficialmente: O syndicato dos
Sapateiros e o dos Padeiros. Os demais está quase todos
esfacelados, não mais aparecendo na sede os seus sócios. Esta
está para ser mudada, não tendo sido ainda escolhido o novo
prédio onde funcionará. Os elementos que presentemente se
destacam ainda são PEDRO CATALLO, LUIZ PAPERO e
MARCOS CORTI, dos sapateiros, e RODOLPHO FELIPPE,
diretor proprietário do jornal ‘A PLEBE’”. 16

13
Mesmo sendo ainda presente a repressão aos militantes e
organizações anarquistas, alguns destes investigadores já
declaravam em seus relatórios o acentuado grau de
inexpressividade que percebiam nas mesmas.
Nesta mesma época, Vidotti declara ter se surpreendido com a
aparição da Polícia em uma reunião, onde alguns militantes foram
detidos, pois considerava que naquele momento, a Federação
Operária não oferecia o mínimo perigo.
“Posso adiantar com segurança, que aquella agremiação está
virtualmente falida; tirando dalli LUIZ PAPERO e PEDRO
CATALDI, a sede terá fatalmente as suas portas fechadas. Alli
não se tem cogitado de atentados terroristas pessoaes ou
collectivos. Quando JOÃO PEREZ PARADA (que actualmente se
acha foragido) e NATALINO RODRIGUES frequentavam aquella
séde,estes planos ali se concertavam, para serem postos em
pratica em ocasiões oportunas.”17

Embora seja comum a busca por lideranças e indivíduos de


destaque dentro da organização operária que possam ser
responsabilizados, emergindo assim no discurso dos documentos
policiais pesquisados a existência de indivíduos apontados como
peças-chave, cabe aqui ressaltar que tais organizações de caráter
anarco-sindicalista e anarquista se estruturam de forma horizontal.
Assim, para além dos indivíduos aqui citados, é importante que se
lembre que havia todo um conjunto de pessoas que dava forma as

14
movimentações da época, sem a existência de lideranças.

As infiltrações

O caráter da atividade policial de investigação dos anarquistas,


que alimentava as centenas de prontuários, se pautava na presença
de agentes em frente às sedes das associações operárias, que por
vezes abordavam os “suspeitos” e os convidavam a dar seus
nomes e prestar contas ao Delegado de Ordem Social; realização
de rondas, geralmente noturnas, para verificação de atividades
subversivas; acompanhamento de atos públicos, reuniões,
assembléias e outros; e na infiltração de policiais disfarçados
como operários.

A prática da infiltração era conhecida pelos militantes


anarquistas. Em 1932, um informativo da Federação Operária de
São Paulo reproduzia uma circular da Diretoria da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo onde se informava que a
Delegacia de Ordem Social estava enviando para as fábricas da
cidade grande número de agentes em missão especial, e
requisitava que estes fossem bem alimentados e alojados para
maior eficiência do trabalho realizado. Ante ao documento
reproduzido, a F.O.S.P declarava não serem necessários maiores
comentários, visto que o próprio confirmava o “entendimento”
entre a Federação das Indústrias e a Delegacia de Ordem Social.18

15
Uma das medidas colocadas em prática para evitar a presença de
infiltrados nas reuniões foi a criação de carteiras individuais que
restringissem a participação nestas apenas aos operários de fato.19
Um policial relatou também ter tido dificuldades para assistir a
uma assembléia geral da União dos Trabalhadores da Light por
haver um indivíduo na porta identificando as pessoas por meio de
assinaturas.20
Alguns militantes inclusive discursavam nas reuniões,
mostrando-se cientes da existência de infiltrados, enfatizando seu
destemor para com eles e mandando ainda recados às autoridades
policiais. O anarquista Pedro Catallo, em uma reunião na sede da
Federação Operária de São Paulo, em que falava sobre as prisões
de alguns militantes, declarou que:
(...)“Si a canalhada policial pensa que nós, com isso, ficamos
inactivos, engana-se; pois é esse o papel dessa corja de crápulas:
quem sabe se lá fóra estão me esperando os cachorros da Ordem
Social para que eu vá fazer companhia ao camarada Hermínio?”
“Talvez esses miseráveis julgam que Hermínio é principiante?
Não... Hermínio é veterano e não se intimida com pouca coisa”.
Neste mesmo relatório, o agente informa que Catallo
Falou ainda contra o General Waldomiro, a polícia, o clero, o
Ministro do Trabalho, etc. e, terminando, disse que tudo quanto
acabava de affirmar era para mostrar que não tinha medo, pois
sabia que dentro da reunião se encontrava lacaios da polícia,
para, em relatórios e a troco de miseraveis ordenados, tudo

16
communicarem ás autoridades policiaes.21

Também se manteve a prática de enviar cartas à Polícia. Quanto


aos policiais que circulavam nas imediações das sedes dos
sindicatos vigiando a entrada e saída dos militantes, em agosto de
1934 a Federação Operária de São Paulo enviou carta dirigida ao
Chefe de Policia da Capital, relatando que
“Há uma semana, sem que haja algum motivo que justifique tal
situação, a séde social desta organização (...) vem sendo vigiada
por inspetores de policia que tomam para com os trabalhadores
que freqüentam diariamente a séde atitudes inconvenientes,
chegando até a prostar-se á entrada da porta e olhar com ares
provocadores e impertinentes para as pessoas que entram e saem.
(...) No intuito de assegurar a tranqüilidade dos trabalhadores
organizados e filiados a esta Federação; para evitar que se
produza algum atrito desagradável, esta organização, em nome
dos sindicatos que dela fazem parte, faz sentir a V.Excia. que a
continuarem as provocações dos senhores inspetores, não será
responsável por qualquer atitude mais violenta que os
trabalhadores tomem no sentido de defesa de seus direitos.”22
Em outro documento, em que se relata uma reunião realizada na
Federação Operária em abril de 33, mais uma vez encontramos
respostas dos anarquistas à vigilância a que se viam submetidos:
“Na sessão de hontem, houve protestos, sendo atacada a polícia
de todos os nomes injuriosos, tendo um dos oradores dito que na

17
reunião passada, dois inspetores de policia tinham tido a ousadia
de entrarem na sede da Federação, mas se eles fossem homens
que aparecessem outra vez, que lhe sahiriam mal, a
brincadeira.”23

Nos prontuários do DEOPS encontramos relatórios sobre a


movimentação cotidiana de militantes, como entrada e saída
destes de locais diversos, endereços de “suspeitos de
anarquismo”, relações de divergência ou aproximação entre as
correntes sindicais, relatos de manifestações e eventos públicos,
informes sobre as possibilidades de greve e agitações operárias,
descrições detalhadas das reuniões e discursos proferidos,
resumos sobre as atividades, formas de atuação, posições
ideológicas e quadro de militantes dos diversos grupos, entre
outros tantos materiais, como atas, jornais e livros apreendidos.
Muitos relatórios eram acompanhados, ainda, de notas finais, em
que o agente policial fazia recomendações a despeito da situação,
propondo medidas e ações concretas de vigilância e repressão ou
apontando nomes de agitadores que deveriam ser "segurados".24
Um dos anarquistas cujo nome encontramos neste tipo de
recomendação foi o de José Oiticica, elemento que o agente
policial não considerava prudente deixar que falasse ao
operariado de São Paulo.25
A avaliação da eficácia das medidas adotadas era feita
constantemente. Em maio de 1933, um manifesto da F.O.S.P.

18
informava que na noite do dia 19 a polícia havia invadido a sede
da Federação, tendo depredado as salas e biblioteca, rasgando
livros, jornais e documentos e, por fim, detido 80 operários de
várias classes.
Esta batida é parte de uma série que teria ocorrido, na mesma
época, na Federação Operária. A frequência com que se dava este
tipo de ação foi apontada, pelo investigador José Vidotti, como
motivo do desânimo que ali se notava e, sobretudo, do
esvaziamento das assembleias.26
Ante a detenção de militantes previamente determinados,
percebia-se resultados favoráveis, como o esvaziamento das
reuniões e o enfraquecimento dos sindicatos. Em outubro de 34,
um investigador avaliava positivamente este tipo de ação policial:
“Reina agora a maior desorganisação no seio da Federação
Operaria, pelo desapparecimento de seu chefe e de outros. E a
séde da rua Piratininga n 2, fechou as suas portas por falta de
dirigentes. Si PEREZ for expulso desta vez, julgo que a grande
cellula de anarchistas desta Capital ficará, assim, acephala.”27

Além de diversos relatórios sobre as diferenças ideológicas e


práticas, eram constantes os informes sobre as divergências entre
as diversas correntes sindicais e as possíveis alianças. Para que os
sindicatos fossem enfraquecidos, o combate à união entre estes
era fundamental. Assim, a Delegacia de Ordem Social procurava
desenvolver táticas de forma a provocar uma guerra de

19
tendências no seio do movimento operário.
Em julho de 1931, um policial relatava ao seu superior a
possibilidade de um acordo entre trotskistas e membros do
Partido Comunista. O agente considerava ser a informação
sugestiva, pois, segundo ele, “A união desses elementos
fatalmente derrotará á corrente syndicalista e anarchista”.28

Atrapalhar o andamento dos debates e incentivar as divergências


era parte também da prática dos agentes infiltrados. Uma
discussão na assembléia da União dos Trabalhadores da Light,
ante a proposta de filiação à Federação Operária, abriu espaço
para que o policial Antonio Mendes, ali presente, se aproveitasse
da situação, insinuando-se na discussão e desviando a atenção dos
presentes para a lei, tendo conseguido “(...) com essa manobra
perturbar inteiramente o funcionamento da assembleia, que se
dissolveu sem nada ter rezolvido, de util e conforme os desejos
dos elementos agitadores”.29

Um caso interessante é o do agente Guarany, responsável por


muitos dos relatórios reservados sobre o movimento operário até
meados da década de 30. Uma breve análise de seus relatórios
demonstra como, no decorrer dos anos, o investigador conseguiu
não apenas se envolver no seio do movimento sindical como,
também, conquistar uma posição de confiança junto ao mesmo.
No início de 1933, Guarany já notificava seus superiores, com

20
base na proximidade que tinha dos grupos operários, a
proximidade de uma greve geral, percebendo a organização dos
trabalhadores de todos os ramos, considerando que a policia
deveria agir com energia desde já.30 Na mesma época insistia em
um relatório, que fosse empregado em uma fábrica de tecidos.31
Em novembro de 1933 se anunciava uma conferência anti-
integralista, que se realizaria no Salão das Classes Laboriosas.
Saindo do Salão, os manifestantes se dirigiram à Praça da Sé,
"(...) dando vivas ao communismo e ao anarchismo" e entoando
A Internacional. Em relatório reservado, o indivíduo Rolando
Henrique Guarany é apontado, junto a Hermínio Marcos, João
Perez, Pedro Catallo e o comunista Aristides Lobo, como um dos
manifestantes de maior destaque, que, segundo o documento,
dirigiram os outros à Praça. Dali os cerca de 150 manifestantes se
dirigiram ao Brás e, "de armas em punho", ante a polícia que os
tentava prender, relata-se que um tiro partiu do centro do grupo.
Por fim forma-se um violento tiroteio que se encerra com a prisão
de muitos anarquistas e comunistas. O anarquista Agostinho
Farina, que portava uma garrucha e um punhal, é ferido na
perna.32
Neste mesmo mês, encontramos um informe da formação de um
batalhão organizado para defender os operários da ação da polícia
e dos integralistas, contando com apoio da Federação Operária.
Mais uma vez, entre outros nomes, figura o de Rolando Henrique
Guarany.33

21
Um ano depois, em maio de 1935, o agente Guarany se
explicaria, em outro relatório, por não ter comparecido a uma
reunião da Aliança Nacional Libertadora. O agente estava "(...)
em serviço na Federação", incumbido de procurar um novo
prédio para a F.O.S.P.34
Cabe aqui ressaltar que não encontramos nos documentos
analisados referências sobre o nome completo do agente Guarany,
porém, pelo grau de infiltração e intimidade com o movimento
operário anarquista que o mesmo expõe em seus relatórios, parece
evidente a associação entre o mesmo e o indivíduo Rolando
Henrique Guarany, citado em outros documentos.

Para muito além da vigilância para controle, prevenção e


repressão eficaz, o grau de infiltração que alguns investigadores,
como Guarany, atingiram dentro das organizações anarquistas,
explicita um papel que vai além de mero espectador, e uma
influência relativa nos rumos que o próprio movimento tomava, a
partir do interesse das autoridades.
Nos parece clara a influencia dos elementos infiltrados no
incentivo às divergências e à fragmentação dos sindicatos, no
atraso ou desvio das discussões para pontos de pouca importância,
e na produção de conflitos entre a polícia e manifestantes em atos
públicos, como podemos deduzir a partir da presença de
infiltrados em diversas manifestações inicialmente pacíficas em
que ocorreram tiroteios e conflitos a partir de depredações ou tiros

22
que misteriosamente partiram da multidão – prática que ainda
hoje se verifica em diversas manifestações públicas.
Enfim, percebemos o uso de diversas práticas estratégicas que,
para além da produção de informação de inteligência, buscaram
de diversas formas o enfraquecimento direto das organizações
sindicais e da movimentação operária da época.
A trajetória destes indivíduos dentro das organizações, seu perfil
e as técnicas utilizadas, são questões que, adiante, se faz
necessário aprofundar para a melhor compreensão deste tipo de
atuação policial no período.

23
Bibliografia

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24
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sindicalismo e anarquismo no Brasil. In: História do Movimento
Operário Revolucionário. São Paulo: Editora Imaginário; São
Caetano do Sul: IMES, Observatório de Políticas Sociais, 2004.

25
Notas
1
Cubero, Jaime. Anarco-sindicalismo no Brasil. São Paulo: Index
Librorum Prohibitorum, 2004, p.17.
2
Samis, Alexandre. Pavilhão negro sobre pátria oliva:
sindicalismo e anarquismo no Brasil. In: História do Movimento
Operário Revolucionário. São Paulo: Editora Imaginário; São
Caetano do Sul: IMES, Observatório de Políticas Sociais, 2004,
p.177.
3
Decreto-Lei 1641 de 8 de janeiro de 1907.
4
Decreto 4.269 de janeiro de 1921.
5
Decreto 5.373 de 12 de dezembro de 1927.
6
Cf. “Notas e Informações”. O Estado de São Paulo. São Paulo,
13 de agosto de 1927, p.3.
7
Relatório de 21 de outubro de 1933. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.4. DEOPS/SP, DAESP.
8
Relatório de 23 de março de 1934. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.
9
Relatório de 30 de janeiro de 1933. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol. 3. DEOPS/SP, DAESP.
10
Relatório de 18 de novembro de 1937. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.1. DEOPS/SP, DAESP.
11
Relatório de 03 de janeiro de 1933. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.
12
Pront. 716 – Federação Operária de São Paulo, vol.2
DEOPS/SP, DAESP.
13
Relatório de 17 de abril de 1933. Pront. 710 – União dos
Trabalhadores da Light, vol.1. DEOPS/SP, DAESP.
14
AZEVEDO, Raquel de – A Resistência Anarquista – Uma
questão de Identidade (1927-1937). São Paulo: Arquivo do
Estado, Imprensa Oficial, 2002, p.266.
15
Relatório de 10 de junho de 1931. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.2. DEOPS/SP, DAESP.
16
Relatório de 09 de maio de 1935. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.
17
Relatório de maio de 1935. Pront. 716 – Federação Operária
de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.

26
18
Pront. 716 – Federação Operária de São Paulo, vol. 1.
DEOPS/SP, DAESP.
19
Relatório de 06 de abril de 1933. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.
20
Relatório de 14 de abril de 1934. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.4. DEOPS/SP, DAESP.
21
Relatório de 13 de abril de 1933. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.
22
Prontuário 716 – Federação Operária de São Paulo, vol.3.
DEOPS/SP, DAESP.
23
Relatório de 06 de abril de 1933. Pront. 716 - Federação
Operária de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.
24
Pront. 716 - Federação Operária de São Paulo, vol.1.
DEOPS/SP, DAESP.
25
Relatório de 6 de abril de 1933. Pront.716 - Federação
Operária de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.
26
Relatório de 12 de junho de 1933. Pront. 716 - Federação
Operária de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.
27
Relatório de 19 de outubro de 1934. Pront. 716 - Federação
Operária de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.
28
Relatório de 15 de julho de 1931. Prontuário 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol. 2. DEOPS/SP, DAESP.
29
Relatório de 29 de janeiro de 1932. Pront. 710 – União dos
Trabalhadores da Light, vol.1. DEOPS/SP, DAESP.
30
Relatório de 03 de abril de 1933. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.
31
Relatório de 06 de abril de 1933. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol. 3. DEOPS/SP, DAESP.
32
Relatório de 15 de novembro de 1933. Pront. 377 – Pedro
Catallo. DEOPS/SP, DAESP.
33
Relatório de 27 de novembro de 1933. Pront. 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.1. DEOPS/SP, DAESP.
34
Relatório de 17 de maio de 1935. Prontuário 716 – Federação
Operária de São Paulo, vol.3. DEOPS/SP, DAESP.

 27

Uma Breve Apresentação
da Imprensa Marginal

Há tempos a cultura, a informação e as ideias criadas pelo ser


humano são tratadas como mercadoria geradora de lucros e poder,
se mantendo nas mãos de uma minoria que tem em mãos não só o
conhecimento, mas também os meios de produção e difusão dos
mesmos.
Partimos da ideia de que a informação não é produto, e deve
estar nas mãos de tod@s.
Buscando sair da lógica do lucro e do mercado, do comércio
de idéias e informação, produzimos e difundimos nossos livretos
a baixos custos, cobrando apenas um valor coerente ao seu custo
real – referente à cópia, montagem e auto-sustentação do projeto.
Assim, pensamos e elaboramos nossos livretos como algo
mais do que uma capa envernizada, brilhante e colorida, ou um
papel couché: como algo mais do que um belo produto que seja
sucesso de vendas e esteja nas estantes das melhores livrarias.
Pensamos no livro como difusor de informação, gerador de senso
crítico e questionamentos individuais e coletivos, como propulsor
de novas ideias. Não queremos ser sucesso de vendas, não
queremos nenhum livreto best seller.
Acreditamos que o direito de reprodução e difusão não é
propriedade de quem os cria ou edita. Contra a ideia de
propriedade intelectual, apoiamos a pirataria e a livre cópia.
Informação, ideias, inventos, criações: nas mãos de tod@s, e não
mais propriedade e monopólio de uma indústria cultural!
A Imprensa Marginal é um grupo anarcopunk que traduz,
reedita e difunde materiais libertários diversos.
Para contatos, trocas de ideia, conspirações conjuntas e para
adquirir os livretos ou catálogo, escreva para Imprensa Marginal -
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