Você está na página 1de 7

Entrevista

Entrevista concedida por


Martin Heidegger ao Professor
Richard Wisser

(Texto integral da entrevista concedida a Richard Wisser em 24 de setembro de


1969 e transmitida pelo canal 2 da televisão alemã, Z.D.E, por ocasião do
octogésimo aniversário de Martin Heidegger.)'

Wisser: Prof. Heidegger, há em nossa renta anos, em minha aula inaugural


época um número cada vez maior de na universidade de Freiburg, em
vozes que se levantam -e de forma 1929,
cada vez mais insistente- para pro­ Eu ciLO uma passagem da conferên­
clamar que a tarefa decisiva do pre­ cia "O que é Metafisica?: "Os domí­
sente reside na transformação das nios das ciências encontram-se muito
relações sociais e para considerar essa afastados uns dos outros. Sua maneira
transformação como o único ponto de tratar seus objetos é radicalmente
de partida para um ÍULuro promissor. diferente. Essas disciplinas múltiplas
Qual é sua posição, perante uma tal e dispersas devem hoje sua coesão
orientação, acerca cio que se chama o unicamente à organização técnica da
"espfrito do tempo" no que co.ncerne, universidade e das faculdades e só
por exemplo, à reforma universitária? guardam sua significação graças à fi­
Heidegger: Só responderei à última nalidade prática dessas próprias disci­
questão, pois a que o Sr. me fez, de plinas. Pelo contrário, o enraizamento
início, é muito ampla. E a resposta das ciências em seu fundamento es­
que darei é aquela que dei, há qua- sencial está bem morto."

N. do T.: Essa entrevista foi publicada em alemão em Martin Heidegger im Gc5prãclt,


herausgegeben von Richard Wisscr, Vcrlag Karl Alber, freiburg/München, 1970. A presente
versão é traduzida da edição francesa dos Cahiers de L'Herne, dedicados a Heidegger e
organizados pe:lo prof. Michel Haar.

o que nos faz pensar n"IO, vol.l, outubro de 1996


12 1 Entrevista concedida por Martin Heidegger

Penso que essa resposta deverá ser ça da representaçào do mundo e que


suficiente. uma representação do mundo só pode
Wisser: Foram motivos muito distin­ ser obtida por meio de nma inlerpreta­
tos que levaram as tentativas moder­ çdo suficiente do mundo. lsso significa
nas a resultar, no plano social ou no que Marx íundamenta-,;e em uma in­
das relações entre os individuas, na terpretação bem determinada do mun­
reorientação das finalidades e na do para exigir sua "transformação" e
"reestruturação" dos dom[nios de isso mostra que essa sentença é uma
fato. Evidentemente, muita íilosofia sentença não-fundame11tada. Ela dá a
está em jogo aqui, para o bem e para impressão de ser pronunciada resolu­
o mal. tamente contra a filo�ofia, ao passo
O Sr. percebe uma missão social que na segunda parte da sentença a
para a filosofia? exigência de urna filosofia está mesmo,
Heidegger: Não! -Nesse sentido não tacitamente, pressupos1a.
se pode falar de uma missão social. Wisser: De que maneira a sua füoso­
Se se quer responder a esta questão, fia pode hoje agir perante uma socie­
deve-se de inicio perguntar "o que é a dade concreta com seus múltiplos en­
sociedade?" e reíletir sobre o fato-de cargos e preocupações, suas angústias
que a sociedade de hoje é apenas a e esperanças? Ou terão razão aqueles,
absolutização da subjetividade moder­ entre seus criticas, que afirmam que
na e que, a partir dai, uma filosofia Martin Heidegger se ocupa do "Ser"
que ultrapassou o pomo de vista da com tanta intensidade que sacriíicou
subjetividade não tem, de todo, o di­ a condição humana, o ser do homem
reito de exprimir-se no mesmo tom. cm sociedade e como pessoa?
Quanto a saber até que pon10 Heidegger: Essa crltic:i. é um grande
pode-se verdadeiramente falar de mal-entendido! Pois a questão do Ser
uma transfonnaçào da sociedade, é e o desenvolvimento dessa questão
outra questão. A questão da exigtncia pressupõem mesmo urna interpreta­
da lransformação do mundo nos leva ção do ser-ai (Dasein), quer dizer,
a uma sentença muito cilada das Teses uma determinação da �ssência do ho­
sobre Feuerbach de Marx. Eu gostaria mem. E a idéia que está na base de
de citá-la exatamente e, por isso, vou meu pensamento é pn:cisamente a de
lê-la: "Os filósofos somente interpreta­ que o Ser ou o poder de manifestação
ram o mundo de maneiras diferentes; do Ser precisa do homem e que, vice­
trata-se de tran�(ormá-lo." versa, o homem é homem unicamen­
Citando essa sentença e aplicando-a, te na medida em que encontra-se na
perde-se de vista que uma transforma­ abertura (Offenbarheit) do Ser.
ção do mundo pressupõe uma mudan- Por meio disso deveria ser decidida
Entrevista ,,concedida por Martin Heidegger j 1 3

a questão de saber em que medida eu quecimento do Ser -e o esqueci­


só me ocupo do Ser, esquecendo-me mento deve ser pensado sempre aqui a
do homem. Não se pode pôr a ques­ partir do grego, da lethe, quer dizer,
Lão do Ser sem pôr a da essência do do fato de que o Ser se oculta, se sub­
homem. trai-, pois bem, o signo mais carac­
Wisser: Nietzsche disse um dia que o teristico do destino que é o nosso, é
filósofo era a má-consciência de seu -na medida em que posso percebê­
tempo. Pouco importa o que Nietzs­ lo- o fato de que a questão do Ser que
che entendia por isso. eu ponho não tenha sido até agora
Mas se se considera sua tentativa de compreendida.
ver a história filosófica do passado Wisser: . Há duas coisas que o Sr. sem­
como uma história do declfnio do Ser, pre põe em questão e das quais subli­
e portamo, de "destrui-la", poder-se­ nha o caráter problemático: a preten­
ia ficar tentado a chamar Martin Hei­ são da ciência à dominação e urna
degger de "a má-consciência da filo­ maneira de conceber a técnica que só
sofia ocidental". vê nela um meio útil de alcançar mais
Em que consiste, a seus olhos, o si­ rapidameme o propósito a cada vez
nal mais caracterlstico, para não dizer desejado. Precisamente em nossa
o simbolo mais caracterlstico, do que época, unde a maior parte dos ho­
o Sr. chama de "esquecimento do Ser" mens e�pera tudo da ciência e onde se
e de "abandono do Ser"? lhe deillonstra, por meio de transmis­
Heidegger: De infcio, eu devo corri­ sões televisivas mundiais, ou seja, ex­
gir um aspeclO de sua questão, quan­ tra-terrestres, que o homem alcança
do o Sr. fola da "história do declfnio". por meio da técnica aquilo a que ele
Essa expressão nã<> é empregada em se propõe nessa época, suas idéias so­
sentido negativo! Não falo de uma his­ bre a ciência e sobre a essência da téc­
tória do declínio, mas somente do nica tornam-se quebra-cabeças para
destino (Gcschich) do Ser na medida muitas pessoas. Em primeiro lugar, o
em que ele se retira cada vez mais em que o Sr. entende quando afirma que
relação à manifestação do Ser entre os a ciência não pensa?
Gregos -até que o Ser torna-se uma Heidegger: Comecemos pelos que­
simples objetividade para a ciência e, bra-cabeças: penso que eles são imei­
hoje, um simples fundo de reserva ramente salutares! O fato de que há
(Bestand) para a dominação t�cnica ainda muito poucos quebra-cabeças
do mundo. Assim, nós nos encontra­ hoje no· mundo e também uma gran­
mos não em uma história do decllnio, de ausêrlcia de idéias é, precisamente,
mas cm uma retração do Ser. função do esquecimento <lo Ser. E
O sinal mais caracterlstico do es- essa sentença: a ciência não pensa,
14 1 Entrevista concedida por Martin Heidegger

que causou tanto alvoroço quando a onde tudo e todos são convocados
pronunciei no contexto de uma con­ corno se se apertasse um botão?
ferência em Freiburg, significa: a ciên­ Heidegger: No que concerne à técni­
cia não se move na dimensão da _(ilo.rn­ ca, minha definição da ess�ncia da
_(ia. Mas, sem o saber, ela se enraiza técnica, que até agora não foi aceita
nessa dimensão. em parte alguma é -para dizê-lo em
Por exemplo: a física se move no termos concretos-, a de que as mo­
espaço, no tempo e no movimento. A dernas ciências da natureza se fun­
ciência como ciência não pode deci­ dam no quadro de de;envo1vimento
dir o que é o movimento, o espaço, o da esse:ncia da técnica e não o contrá­
tempo. A ciência não pensa, ela não rio. Eu devo dizer, de inicio, que cu
pode mesmo pensar nesse sentido não sou contra a técnica. Jamais falei
com seus métodos. Eu não posso di­ contra a técnica e tampouco contra o
zer, por exemplo, com os méLOdos da que se chama de caráter "dcmonlaco"
fisica, o que é a fisica. Eu só posso da técnica. Mas tento (ompreender a
pensar o que é a f1sica na forma de essência da técnica. Quando o Sr. evo­
uma interrogação filosófica. A senten­ ca essa idéia do perig1J representado
ça: a ciência não pensa, não é uma re­ pela bomba atômica e do perigo ainda
preensão, mas uma simples constata­ maior representado pela técnica, eu
ção da estrulUra interna da ciência; é penso naquilo que hoje se desenvolve
próprio de sua essênci_a que, de uma sob o nome de bioÍISLCa, no fato de
parte, ela dependa do ·que a filosoíia que, dentro de um tempo previslvel,
pensa, mas que, de outra parte, ela es­ nós estaremos em condições de fabri­
queça e negligencie o que aí exige ser car o homem, quer dizer, construi-lo
pensado. em sua própria essênda orgânica, tal
Wisser: E, em segundo lugar, o que o como ele se fizer necessário: homens
Sr. entende quando diz que, para a hábeis e inábeis, inteligentes e estúpi­
humanidade, maior do que o perigo dos. Vamos chegar lá! As possibilida­
da bomba atômica é o conjunto das des técnicas estão hoje a ponto de
leis (Ge-scrz) de que a té:cnica dispõe, foze-lo e elas já foram objeto de uma
seu "dispositivo" (Ge-stell}, maneira comunicação de alguns prêmios No­
pela qual o Sr. denomina o traço fun­ bel numa reunião em Lindau -sobre
damental da técnica, que é o de des­ esse assunto eu já fal-!i numa confe­
velar o real como fundo de reserva, rência pronunciada em Messkirch, hã
2
como se faz em uma encomenda, alguns anos.

2 Confer�ncin imítulnda ·Gdassenhell, Sérénilé", e:m Q«eslions III, p. 161.


Entrevista concedida por Martin Heidegger 1 15

Então: é preciso, antes de tudo, evi­ maneiras muito diferentes, por exem­
tar o mal-entendido segundo o qual plo, como qualidade, como possibili­
eu seria contra a técnica. dade e realidade, como verdade,
Na técnica, a saber, em sua essên­ como Deus, o Sr. põe a questão de
cia, eu vejo que o homem é poslO sob uma harmoni� (Einhlang) suscetlvel
o domínio de uma potência que o ele ser compreendida, não no sentido
leva a relevar seus desafios e diante da de uma super-síntese, mas como um
qual ele não é mais livre -eu vejo questionamento do sentido do Ser.
que algo se anuncia aqui, a saber, Em que direção se orienta, em seu
uma relação entre o Ser e o homem­ pensamento, a resposta à questão: Por
e que essa relação, que se dissimula que há o ente e não antes o nada?
na essencia da técnica, poderia um dia Heidegger: Devo responder a duas
desvelar-se com toda clareza. questões: Primeirament� devo escla­
Não sei se isso acontecerá! Vejo, con­ recer a questão do Ser. Creio entrever
tudo, na essência da técnica a primeira uma certa falta de clareza na maneira
aparição de um segredo muito mais pela qual o Sr. formula a questão. A
profundo que denomino Ereignis, 3 don­ expressão "questão do Ser" é ambi­
de o Sr. pode deduzir que não se trata gua. A questão do Ser significa, de
absolutamente de uma resistência à téc­ início, a questão do ente como ente.
nica ou de sua condenação. Porém, tra­ Nessa questão define-se o que é o
ta-se de comprfender a essência da téc­ ente. A resposta a essa questão dá a
nica e do mundo técnico. Na minha definição do Ser.
opinião, isso não pode ser feito enquan­ A questão do Ser pode, contudo,
to nos movermos, no plano filosófico, também ser compreendida no seguinte
dentro da relação sujeito-objeto. Isso sentido: sobre o que se funda toda res­
significa: a essência da técnica não pode posta à questão do ente, quer dizer, so­
ser compreendida a panir do marxismo. bre o que se funda em geral o desvela­
Wisser: Todas as suas reflexões fun­ mento (Unverborgenheit) do Ser? Para
dam-se e desembocam na questão dar um exemplo: os Gregos definiam o
que é a questão fundamental de sua Ser como a presença (Anwescnheit) do
filosofia, a questão do Ser. Várias ve­ que está presente. A noção de presença
zes o Sr. observou que não queria adi­ lembra a de atualidade (Gegcnwarl), a
cionar uma nova tese às numerosas atualidade é um momento do tempo, a
teses que existem sobre o Ser. Precisa­ definição do Ser como presença refere.­
mente porque o Ser foi definido de se, pois, ao tempo.

3 CJ. Qucslions l, p. 270; tradução possivcl (Michcl Haar): "acontecimento de apropriação".


16 1 Entrevista concedida por Martin Heidegger

Se tento, agora, determinar a pre­ Como o Sr. vê, tais questões s..'lo to­
sença a partir do tempo e se busco, na das extremamente diflceis e elas são, no
história do pensamento, o que foi dito fundo, inacessiveis à CQ'11preensão co­
sobre o tempo, descubro que desde mum. Elas exigem um longo "quebra­
Aristóteles a essência do tempo é de­ cabeça", uma longa ex�riência e uma
terminada a partir de um Ser já deter­ verdadeira confrontação com a grande
minado. Então: o conceito tradicional tradição. Um dos grandes perigos de
ele tempo é inutilizável. E é por esse nosso pensamento hoje é precisamente
motivo que tentei desenvolver, cm Ser que o pensamento -eu o entendo no
e Tempo, um novo conceilO do tempo e sentido do pensamento filosófico­
da temporalidade no sentido da abef­ não tem uma relação wrdaclciramente
tura ch-stática (ehstatische Offenheit). originária com a tradição.
A outra questão é uma questão já Wisser: Evidentemente o que importa
o
f rmulada por Leibniz, retomada por para o Sr. é a desconstn.:-ção da subjeti­
Schelling e que eu repito textualmen­ vidade e não o que se e;crevc hoje cm
te no íim de minha conferi!ncia "O letras maiúsculas, "o A11tropológico" e
que é Metafisica?", já mencionada. "o Antropocêntrico" -isto é, a idéia de
Mas essa questão tem para mim 1:1m que o homem já apreendeu, no conhe­
sentido inteiramente diferente. A cimento de si mesmo e na ação que ele
idéia metafisica que se faz habitual­ realiza, a sua própria essência. O Sr.
mente do que está sendo perguntado convida o homem a prcstar mais aten­
nessa questão significa: no fim das ção na experiência do ser-aí (Dasein),
contas, por que o ente é e não antes o onde o homem se reconhece como
nada? Quer dizer: onde está a causa uma essência aberta ao Ser e o Ser se
(Ursache) ou o fundamento (Grnnd) oferece a ele como dcsvclamcnto (Un­
para que o ente exista e não o nada? verborgenheit). Toda sua obra está con­
Eu, de minha parte, pergunto: Por sagrada a provar a necc;sidadc de uma
que o ente existe e não sobretudo o tal transformação cio ser do homem a
nada? Por que o ente tem prioridade, partir de uma experiência cio ser-aí.
por que o nada não é pensado como O Sr. percebe indícios que permitam
idtntico ao Ser? Quer dizer: por que o crer que esse pensarncr.to considerado
esquecimento do Ser reina e de onde necessário tornar-se-á realidade?
ele vem? Trata-se pois de urna questão Heidegger: Ninguém sabe qual será o
inteiramente diferente da questão me­ destino do pensamcnt(l. Em 1964, em
tafísica. Ou seja, eu pergunto: o que é urna conferência que n:lo foi pronun­
a metafisica? Eu não formulo uma ciada por mim mesmo, mas cujo tex­
questão metafisica, mas a questão so­ to foi lido em traduç.io francesa, em
bre a essência da metafisica. Paris, eu falei do "fim da filosofia e a
Entrevista concedida por Martin Heidegger 1 1 7

tarefa do pensamento". Faço pois mos novos como eu pensava outrora;


uma distinção entre a íilosoíia, quer muito mais um retorno ao conteúdo
dizer, a metafisica, e o pensamento, originário da linguagem que nos é
tal qual o entendo. própria e que é vítima de um conti­
O pensamento que, nessa conferên­ nuo perecer.
cia, eu distingo da filosofia -o que se Um pensador futuro, que será tal­
faz sobretudo quando tento esclarecer a vez colocado perante a tarefa de assu­
essência da alelheia grega- esse pensa­ mir eíetivamente esse pensamento
mento é, fundamentalmente, em sua que eu tento preparar, deverá acomo­
relação com a mctaf(sica, muito mais dar-se a uma palavra que Heinrich
simples do que a filosofia, mas precisa­ von Kleist escreveu um dia e que diz:
mente em razão de sua simplicidade, "Apago-me diante de alguém que
muito mais dificil de se realizar. não está ainda aqui, e inclino-me, a
E ele exige um novo cuidado com a um milênio de distância, perante seu
linguagem, e não a invenção ele ter- espírito"

Tradução de Antonio Abranches (da versão francesa, revista e corrigida


por Michel 1-!aar, realizada pelo Serviço Lingülstico do Ministério dos Ne­
gócios Estrangeiros da R. E A.).

Você também pode gostar