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O AUTOMATISMO CONCORDO-DISCORDO

E AS ARMADILHAS DO REDUCIONISMO
Humberto Mariotti

Comecemos falando sobre a nossa adversários, e portanto sente-se sempre


tendência a reduzir. Trata-se de um ameaçado por eles. Por isso, pensar
processo natural, e como tal necessário segundo modelos predeterminados
para que possamos perceber e tentar e buscar apoio em referenciais que
entender o mundo. Reduzimos sempre julgamos inquestionáveis (pressupostos)
o que percebemos à nossa capacidade tornou-se uma forma de remediarmos a
de entendimento, ou seja, à forma como nossa fraqueza. É um modo de pôr em
é estruturada a nossa mente. prática o ponto de vista empiricista, que
diz que existe uma realidade externa
O reducionismo é como o ego: que é a mesma para todos.
indispensável mas questionável. Diante
de um determinado fenômeno, nós Se essa tese fosse correta, a cognição
o percebemos e reduzimos o que seria um fenômeno passivo. Assim sendo,
foi percebido à nossa estrutura de todos entenderiam o mundo da mesma
compreensão — ao nosso conhecimento, maneira. Nessa ordem de idéias, quem
portanto. Mas, como é óbvio, reduzir não percebesse a “verdade” universal
algo ao nosso conhecimento é o mesmo estaria com problemas e portanto
que reduzi-lo à nossa ignorância. Daí a precisaria de ajuda para alcançar o nível
necessidade de um segundo passo de percepção dos outros. Isto é: para
— a reampliação —, que consiste em perceber as coisas como “todo mundo”
conferir o que foi percebido. Fazemos — o que equivaleria a entender a vida
isso comparando-o com compreensões e pautar a conduta segundo as normas
pessoais prévias e, a seguir, cotejando-o do senso comum. Entretanto, sabemos
com a compreensão dos outros, por que percepções padronizadas levam a
meio do diálogo e outras formas de comportamentos estandardizados. Esse
interação e convivência. Dessa maneira, é o principal problema da redução não
procuramos reampliar o que havia sido seguida de reampliação.
reduzido.
Nossa tendência a eliminar é mais forte
O problema é que nem sempre é fácil que a necessidade de integrar. Não
voltar a ampliar depois da redução inicial. sabemos ouvir. Quando alguém nos diz
Isso se dá porque tendemos a reduzir alguma coisa, em vez de escutar até o
nossas compreensões às dimensões do fim logo começamos a comparar o que
nosso ego, que é frágil, medroso e teme está sendo dito com idéias e referenciais
a reampliação. Teme-a porque ela o põe que já temos. Esse processo mental —
à prova, isto é, leva-o a confrontar as que chamo de automatismo concordo-
suas percepções e entendimentos com discordo — quando levado a extremos
os dos outros. Como está socialmente é muito limitante. Ouvir até o fim, sem
preparado para ser competitivo, o ego concordar nem discordar, tornou-
invariavelmente vê os outros como se extremamente difícil para todos

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nós. Não sabemos ficar — mesmo de é, ligou-se ao pensar e esqueceu-se
modo temporário — entre o conhecido do existir. Ao analisar o sujeito a partir
e o desconhecido. Confundimos o de sua dimensão de existente (o sum),
desconhecido com o nada e por isso o o propósito de Heidegger foi proceder
tememos. A frase do escritor americano ao que chamou de analítica existencial.
William Faulkner, “entre a dor e o nada Em obras posteriores a Ser e tempo, ele
eu prefiro a dor”, traduz nosso apego a se preocuparia mais especificamente
esse tipo de repetição. com a questão da técnica. Questionaria
a transformação desta e da ciência
Faça você mesmo a prova: tente escutar positivista em objetos de adoração e
até o fim, sem concordar nem discordar, culto por nossa cultura, tudo isso em
o que o seu interlocutor está dizendo. função da prevalência do racionalismo e
Procure evitar que logo às primeiras do pensamento quantificador.
frases dele você já esteja pensando
no que irá responder. Veja como isso Assim, o projeto da modernidade fez
é difícil — e então constatará que o com que o homem se julgasse senhor do
automatismo concordo-discordo é uma mundo natural. Por meio da técnica (que
das manifestações mais poderosas do corresponde à colocação em prática do
condicionamento de nossa mente pelo pensamento linear), ele vem tentando
pensamento linear, isto é, pelo modelo investigar, desvelar esse mundo.
mental ou/ou, — a lógica binária do sim/ Contudo, os fatos vêm mostrando com
não. uma freqüência cada vez maior que esse
projeto não vem dando os resultados
O Mundo Desencantado esperados e anunciados. De fato, a
observação revela que em muitos casos
Em sua obra Ser e tempo — por muitos a técnica tem criado mais problemas do
considerada um dos trabalhos filosóficos que soluções. A devastação e a poluição
mais importantes deste século —, da natureza pelos dejetos industriais é
Martin Heidegger afirma que a história apenas um exemplo disso.
da metafísica ocidental é a história do
esquecimento do Ser, porque esse De acordo com Heidegger, o
pensamento configurou um modelo desvelamento do mundo por meio
lógico, objetivo e tecnicista. da técnica reprime esse mesmo
desvelamento por meios não-técnicos.
Em outras palavras, Heidegger Em outras palavras, a consciência
sustenta que a razão instrumental lógica (linear) reprime a consciência
ignorou o Ser. Para ele, ao longo da poética (não-linear). Eis o resultado
história da metafísica ocidental deu- do condicionamento de nossa cultura
se privilégio ao pensar — e ao pensar por esse modelo mental. Para o
segundo a lógica linear de Aristóteles. filósofo, ao reprimir outros modos de
Se tomarmos a frase cartesiana Cogito desvelamento da realidade (ou seja, ao
ergo sum (penso, logo existo), é fácil unidimensionalizar essas tentativas de
observar que a filosofia ocidental se descobrimento), o racionalismo excluiu
ateve aos padrões lógico-metafísicos também muitas das possibilidades de
do cogito e esqueceu-se do sum, isto compreendermos a nós próprios —

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passo indispensável para a investigação mostrar que o automatismo concordo-
do mundo real. Além disso, esse modo discordo é um dos instrumentos básicos
de pensar não se deixa questionar desse modelo mental.
facilmente, o que por sua vez o torna
limitado. Tanto faz discordar ou concordar: o
que é realmente limitante é a reação
Leitor dos grandes poetas — em especial instantânea, automática, linear, do tipo
Hölderlin —, Heidegger costumava sim/não. É ela que fecha a nossa razão, que
citá-lo: “Lá onde há perigo, ali também faz com que não possamos suspender,
cresce o que salva”. Dessa maneira, nem mesmo momentaneamente,
chegou a acreditar na salvação pela nossos pressupostos e julgamentos.
poesia (no sentido amplo do termo). Desse modo, impede-nos de fazer
Depois, entretanto, tornou-se cada vez escolhas além das programadas.
mais cético a esse respeito: em vez de
uma salvação pela consciência poética, Concordar logo que percebemos que o
ele previu o desencantamento cada vez interlocutor está tratando de algo sobre
maior do mundo pelo racionalismo. o qual já temos opinião formada também
é uma forma de não querer ouvi-lo até
Como se sabe, o desencantamento o fim: “Já sei do que você está falando:
do mundo — ou racionalização por isso, não vou me dar ao trabalho de
— é a manifestação básica do escutar mais”. Dessa forma, utilizamos
condicionamento da civilização algumas das variantes do “já conheço”,
ocidental pelo pensamento linear. Antes do “isso é antigo” — como se o outro
de Heidegger, Max Weber já havia não tivesse o direito de pensar e expor o
abordado esse tema. Weber caracteriza que pensa à sua maneira, sendo ou não
a história do Ocidente como um período original o seu ponto de vista.
no qual a visão de mundo mágica, extra-
racional, foi substituída pelo método, O mais comum, porém, é que logo
pelo cálculo e pela quantificação. O que alguém começa a expor uma
processo se estendeu a todas áreas da determinada idéia comecemos a
atividade humana, inclusive ao âmbito buscar formas de contradizê-lo. Em
do Estado moderno. Essa circunstância qualquer das hipóteses, no fundo o
produziu o fenômeno da dominação que pretendemos é desqualificar o
baseada em determinantes abstratas, interlocutor. Discordando, concordando,
traduzidas em normas e leis concebidas ou mesmo fingindo concordar, nosso
e aplicadas por uma casta de técnicos imediatismo acaba negando-o
e especialistas — eis o universo da existencialmente.
burocracia.
Outro artifício é o chamado argumento
A Mente Desencantada ad hominem. Trata-se de dar destaque
a quem argumenta, e não ao que está
Como Weber, Heidegger também sendo argumentado. E uma manobra
denuncia a dominância de nossa cultura muito usada para rejeitar uma idéia ou
pelo pensamento linear e analisa alguns concepção só porque vem de alguém
de seus resultados. Este ensaio pretende de quem não gostamos ou com quem

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não concordamos — ou o contrário. certas experiências.

Um exemplo disso pode ser observado Dessa maneira, pomos de lado a vida
na bibliografia de certas publicações. e a substituímos por pressupostos. O
Pondo em prática o preceito “quem não que antes era experiência se estilhaçou
está comigo está contra mim”, muitos e agora só restam fragmentos de
escritos são julgados sem leitura. De percepção, dos quais escolhemos os
acordo com os autores citados (ou não) que nos parecerem mais convenientes.
em uma determinada bibliografia, o texto Essa é a essência do julgado. Nossa
é de saída julgado e rejeitado no ato (ou cultura é predominantemente orientada
aceito sem análise, conforme o caso). desse modo. Somos propensos a colocar
Parte-se do princípio de que ao incluir o que deve ser no lugar do que é. Eis o
uma determinada referência o autor universo da regra e do julgamento, que
concorda com ela ou vice-versa. Logo, mesmo sendo necessário em muitos
para que dar-se ao trabalho de ler? casos é simplesmente devastador em
inúmeros outros.
O automatismo concordo-discordo
é típico da lógica da nossa cultura A Arte de Esperar
patriarcal, que faz da desconfiança
uma reação automática. Com efeito, No dizer do matemático Claude
numa cultura competitiva e reativa Shannon, os fatos que acontecem
como a que vivemos, gostar dos desordenadamente e sem significado
outros e confiar neles não é nada fácil. constituem ruídos de comunicação.
O argumento ad hominem está na Contudo, o que para nós é ruído para
gênese dos preconceitos, e continuará outros pode ser informação e vice-
existindo e predominando enquanto versa. Além disso, o que num primeiro
durar a hegemonia desse sistema de instante percebemos como ruído pode,
pensamento. algum tempo depois, ser percebido
como informação. Esse intervalo é o
O primeiro passo para a formação do que se chama de tempo de defasagem
preconceito é a separação entre o fato ou tempo de espera dos sistemas.
e o juízo que fazemos dele, isto é, pôr o A incapacidade de respeitá-lo é um
julgado no lugar do dado. Sempre que dos fatores que mais contribui para o
isso acontece, ficamos com uma idéia- estreitamento e o obscurecimento do
padrão, à qual recorreremos quando nosso horizonte mental. É por isso que
estivermos em situações semelhantes. a diversidade de opiniões precisa ser
O preconceito precisa da repetição, respeitada: ela é a melhor forma de
de referenciais passados, e abomina evitar a redundância e gerar informação.
a diferença, as situações mutantes e A redundância uniformiza. A informação
a criatividade. Dessa maneira, o que forma por dentro, isto é transforma. A
antes podia (ou não) ser concebido, redundância gera condicionamentos.
agora é preconcebido. Trata-se de A informação produz aprendizagem,
uma espécie de mecanismo de defesa educa.
contra a realidade, por meio do qual
nos dispensamos do incômodo de viver Os processos do mundo natural não

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são imediatos, como quer a ansiedade consiste em prestar especial atenção
da nossa cultura. Exigem um tempo àquilo com que menos concordamos
de evolução — o tempo de defasagem e aproximarmo- nos do que mais nos
sistêmico —, que pode durar uma desafia. Isso não quer dizer, porém, que
fração de segundo ou ser muito longo. tenhamos ficar eternamente ouvindo ou
Para nós, é muito difícil lidar com essa observando sem tomar uma posição.
imprevisibilidade, e por isso estamos Repito que o automatismo concordo-
sempre querendo atropelá-la, o que discordo é a reação reducionista
quer dizer que tendemos a não respeitar imediata, automática, limitante, não
as dinâmicas da natureza. seguida de reampliação.

É claro que diminuir a prevalência do Já sabemos que é extremamente difícil


automatismo concordo-discordo não reampliar o que reduzimos. É bem mais
implica ter de concordar com tudo nem fácil declarar que o horizonte mental
discordar de tudo. O que é importante de nosso interlocutor é estreito e que o
é não concordar ou discordar logo de nosso é amplo. A esse respeito, convém
saída, porque essa atitude trava o nosso relembrar aqui uma curiosa espécie de
entendimento e fecha a nossa razão. reducionismo — a que pretende reduzir
Precisamos aprender a transformar o tudo a uma totalidade ideal: tudo é o
reducionismo em aliado, tirando-o de “cosmos”, tudo é a “totalidade” e assim
condição de armadilha que tende a nos por diante.
aprisionar nos limites de nossa visão
imediatista de mundo. Trata-se, obviamente, de uma forma
de idealizar a compreensão, reduzir
Aprender a ouvir até o fim, sem concordar os seres humanos a espectadores de
nem discordar de imediato, é antes de suas próprias vidas, evitar o convívio
mais nada uma postura de respeito ao com as diferenças e incertezas e tentar
outro. Talvez ele demore a entender eliminá-las por absorção. Como todo
isso, e daí nem sempre nos retribua com reducionismo radical, esse também
o mesmo respeito. Mas não podemos constitui uma forma de autoritarismo.
depender dessa condição para Traduz a falta de respeito à diversidade
exercer a nosso própria postura ética. de opiniões e, portanto, à legitimidade
No entanto, concordar nem sempre humana do outro.
significa que devamos nos colocar à
mercê das opiniões e preconceitos do Existe outra variante do automatismo
outro, e discordar nem sempre significa concordo-discordo, que consiste em
que devamos colocar-nos à mercê de a todo momento tentar estancar o
nossas próprias opiniões e preconceitos. discurso do interlocutor por meio de
advertências, ressalvas e constantes
Em meu livro As Paixões do Ego, proponho recomendações de cautela, aconselhá-
um método dialógico a que dou o lo a “pensar bem”, adverti-lo de que deve
nome de “reflexão inclusiva”. Ele busca estar ciente dessa ou daquela exceção
ser um dos meios de tentar diminuir a etc. Essas são observações que, quando
dominância do automatismo concordo- colocadas nos momentos oportunos,
discordo. Um de seus pontos básicos são em geral sensatas e pertinentes.

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Mas sua repetição compulsiva funciona mecanismo atinge a todos nós, sejamos
como trava e produz um efeito censório ‘práticos’ ou “espirituais’”.
e repressivo.
É evidente que a capacidade de ouvir sem
Para que o diálogo dê bons resultados, é discordar nem concordar de imediato
preciso que respeitemos a legitimidade (isto é, ouvir de modo fenomenológico),
humana do outro. O que isso quer dizer? pode ser aprendida, embora não seja
Para o biólogo Humberto Maturana, um processo fácil. Vimos, com Shannon,
significa que o outro é legítimo por si que fatos que se reproduzem com
mesmo: seu valor é intrínseco, e por regularidade são redundâncias. Já os
isso ele não precisa justificar-se por sua eventos portadores de novidade, de
existência. É por essa razão que não surpresa, são informações. Ao acionar
devemos negá-lo por meio de artifícios o automatismo concordo-discordo,
como o automatismo concordo- visamos reduzir a informação a um
discordo. referencial conhecido, isto é, tiramos
dela o efeito surpresa, a aleatoriedade.
Mas, como vimos anteriormente, não Essa redução tem a “vantagem” adicional
podemos superar esse automatismo sem de fazer com que não pensemos.
pôr o nosso ego à prova. As dificuldades
implicadas nesse processo são imensas. É por isso que as pessoas nos cobram
Um exemplo do cotidiano ilustra esses sempre opiniões fechadas. A dúvida e o
obstáculos. Sabemos que os homens talvez são circunstâncias assustadoras
“práticos” costumam não levar a sério para nós. Em geral, assumimos uma
a “espiritualidade”. De outra parte, os posição preconceituosa diante dos
homens “espiritualizados” desprezam a indivíduos que nos dizem que ainda
prática, como alguns dos antigos faziam não têm opinião formada sobre um
com os trabalhos manuais. determinado assunto. Costumamos
chamá-los de indecisos, porque estamos
Dessa maneira mantém-se a divisão, que convencidos de que todos devem ter
nada mais é do que uma manifestação sempre posições imediatas e definitivas
do automatismo do qual estamos sobre tudo.
falando. Ela pode ser expressa assim:
“Estou sempre prestando o máximo Preocupação e Cuidado
de atenção à pessoa com quem falo,
mas não para verificar o efeito que o Não tomar posição imediata, respeitar
conteúdo do que ela diz produz em mim. a defasagem dos sistemas, ouvir até o
Em vez disso, o que faço é ficar vigilante, fim sem concordar nem discordar (isto
com a finalidade de surpreendê-la é, sem fazer juízos imediatos de valor) —
numa falha. Estou sempre alerta, para tudo isso nos ameaça. A sociedade nos
no momento ‘certo’ concordar ou cobra o uso sistemático do automatismo
discordar automaticamente, ou seja, concordo-discordo. A atitude de espera,
julgar essa pessoa a partir do que ela de observação inicial não-julgadora,
está dizendo agora. Para isso, uso a é vista como estranha, como algo a
unidimensionalidade da minha primeira ser combatido, um verdadeiro perigo.
impressão”. Em nossa cultura esse Se olharmos com cuidado, veremos

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que o ato de ouvir sem concordar nem comportamentos que mais nos irritam.
discordar de imediato significa renunciar
a traçar uma fronteira e ficar de fora dela. 9. Mas isso não quer dizer que
estejamos obrigados a aceitar tudo ou
Penso que agora é possível resumir a concordar com tudo: significa apenas
alguns dos pontos que podem ajudar na que o contato com a diversidade é
prática da reflexão inclusiva: fundamental para a aprendizagem e
para a abertura de nossa mente.
1. A mente faz parte do cérebro; o
cérebro faz parte do corpo; o corpo faz 10. Do mesmo modo, é fundamental
parte do mundo. Logo, a mente não é dar a mesma atenção (no sentido
separada do mundo. de reavaliar constantemente) aos
pontos de vista com os quais mais
2. A realidade de um indivíduo é a concordamos, isto é, às crenças e
visão de mundo que sua estrutura lhe pressupostos que nos deixam mais
permite perceber num dado momento. confortáveis, mais acomodados.

3. Tal estrutura muda continuamente, Pode-se também dizer que a reflexão


de modo que essa compreensão, que inclusiva busca mais a sabedoria do que
num dado instante nos parece fora de o conhecimento, pois o conhecimento
dúvida e definitiva, pode não sê-lo mais procura definir e — em casos extremos
tarde. — rotular os fenômenos, como se isso
pudesse explicá-los em sua profundeza
4. Enquanto permanecer apenas ou substituir sua naturalidade e
individual, qualquer compreensão de originalidade. Chamar uma percepção
mundo será precária. Por isso, é que não conseguimos explicar de “ilusão
de ótica” é um exemplo. Rotular (que
preciso ampliá-la por meio do diálogo. é um exagero do diagnosticar) é bem
mais rápido e exige menos esforço do
5. Com quanto mais pessoas que experienciar e compreender. Neste
conversarmos sobre nossas percepções último caso, como já foi dito, é preciso
e compreensões, melhor. aprender a lidar com o tempo de espera
dos sistemas, coisa que nossa ansiedade
6. Quando maior a diversidade de torna muito difícil.
pontos de vista dessas pessoas, melhor
ainda. Daí a tendência a superdiagnosticar,
que vem sendo denunciada, por
7. Se uma conversa produzir em exemplo, na medicina atual: grande
nós uma tendência a achar que não ênfase no diagnóstico (que implica
estamos ouvindo nada de novo, é bem muita tecnologia, muito trabalho
provável que estejamos na defensiva. mecânico) e comparativamente poucos
resultados no tratamento. Este exige a
8. É muito importante dar especial complementação do trabalho mecânico
atenção aos pontos de vista com do diagnóstico pela compreensão da
os quais mais discordamos e aos pessoa como um todo: a preocupação,

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a solidariedade, o cuidado, a compaixão Não acredito em Deus porque nunca o
— enfim, tudo aquilo que o modelo de vi.
alteridade hoje predominante em nossa Se ele quisesse que eu acreditasse
cultura dificulta ao extremo. nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
Mas sabemos que, infelizmente, a E entraria pela minha porta dentro
ênfase excessiva no diagnóstico nem Dizendo-me, Aqui estou!
sempre ajuda a quem de direito, isto é, (...)
ao doente. Basta lembrar as inúmeras
doenças (e são muitas) diante das Mas se Deus é as flores e as árvores
quais a medicina continua confundindo E os montes e o sol e o luar,
tratamento com explicações “científicas”. Então acredito nele,
Fala-se muito em “controle” e pouco Então acredito nele a toda hora,
em qualidade de vida, e assim a E a minha vida é toda uma oração e
solidariedade que o paciente precisa uma missa,
receber do médico acaba se perdendo E uma comunhão com os olhos e pelos
no labirinto da tecnoburocracia científica ouvidos.
e no hermetismo de seus jargões. Mas se Deus é as árvores e as flores,
E os montes e o luar e o sol,
Por fim, é preciso ter sempre presente Para que lhe chamo eu Deus?
que as sugestões de reflexão acima Chamo-lhe flores e árvores e montes e
enumeradas não constituem receitas, sol e luar;
nem muito menos diretivas. É melhor Porque, se ele se fez, para eu o ver,
considerá-las componentes de uma Sol e lua e flores e árvores e montes,
lista necessariamente incompleta, a ser Se ele me aparece como sendo árvores
questionada, acrescida e melhorada. e montes
Não poderia ser de outra maneira, aliás. E lua e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Daí se segue que a reflexão inclusiva Como árvores e montes e flores e luar e
está também muito longe pretender sol.
resolver, mesmo em parte, o problema (...)
do conhecimento. Seu objetivo é apenas
ajudar a suavizar o rigor cartesiano Sim, eis o que os meus sentidos
do modelo mental dominante em aprenderam sozinhos:
nossa cultura. Ao tentar aproximar as As coisas não têm significação, têm
consciências lógica e poética, ela se existência.
espelha em Heidegger: quer ser uma As coisas são o único sentido oculto
forma de trazer para o cotididano a das coisas.
atitude fenomenológica. Tenta, enfim, (...)
seguir o exemplo dos grandes poetas,
como por exemplo Fernando Pessoa: A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso
me alegra,

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E quanto isso me basta.
(...)

O Universo não é uma idéia minha.


A minha idéia de Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Referências Bibliográficas

HEIDEGGER, Martin. Being and time. Nova York: Harper & Row, 1962.

BOHM, David. Thought as a system. Londres: Routledge, 1994.

BOHM, David. On dialogue. Londres: Routledge, 1998.

MATURANA, Humberto. El sentido de lo humano. Santiago: Dolmen Ediciones, 1993.

MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco J. Autopoiesis and cognition; the


organization of the living. Boston: Reidel, 1980.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1974.

VARELA, Francisco J. Sobre a competência ética. Lisboa: edições 70, s.d.

VARELA, Francisco J., THOMPSON, Evan, ROSCH, Eleanor. The embodied mind;
cognitive science and human experience. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press,
1997.

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