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de uma data: o sete de setembro” (Correio o signo do “Dia da Pátria”, a multidão, que
da Manhã, 5/6/1920). se espremeu para gritar impropérios contra
o STF e o Congresso, instituições basilares
ue o 7 de setembro é um do Estado democrático, aproveitou a data
lugar de memória (Nora, magna que marcou a liberdade da nação
1984) da nação brasileira, para clamar pela liberdade de negar a demo-
sabemos todos. Afinal, cracia e de exaltar uma intervenção militar
não nos esquecemos dos no país. Estranha associação... Foi um tiro
desfiles embandeirados de n’água, felizmente.
verde-amarelo nas esco- Ao contrário do que parece hoje, a
las, das paradas militares elevação do 7 de setembro como “Dia
ao longo das principais da Pátria” resultou de um delicado pro-
avenidas das cidades, do cesso simbólico que envolveu disputas
feriado aproveitado para entre várias outras datas. A República,
passeios ou descanso. Cer-
tamente as comemorações
dos cem anos, em 1922,
na vigência de Estado de MARLY MOTTA é professora aposentada
da FGV/RJ e autora de, entre outros,
sítio, ou do Sesquicentenário, em 1972, em A nação faz cem anos: a questão nacional no
plena ditadura militar, foram marcadas pelo Centenário da Independência (Editora FGV).
por exemplo, não viu com bons olhos o Por coincidência – ou não –, o primeiro
grito do Ipiranga proclamado pelo príncipe chamamento, em ambos os casos, veio
português. Afinal, o novo regime teria com uma antecedência de seis anos. Em
que lidar com a projeção de uma arquite- 2016, o então presidente Michel Temer
tura simbólica do nacional, que marcasse instituiu a Comissão Ministerial Brasil
a República como a verdadeira entidade 200 anos, sob a coordenação do hoje
representativa da sociedade como um todo. extinto Ministério da Cultura. Atualmente
Apesar de o calendário cívico de inspira- ela se encontra nas mãos da Secretaria
ção positivista guardar o 7 de setembro da Cultura, a qual tem sido cobrada por
como o dia da “Independência”, ao 15 de “não fazer nada”, ou, melhor dizendo,
novembro foi destinado o lugar especial por ainda não ter lançado “nenhum brado
de dia da “comemoração da pátria”. No retumbante para dar início aos festejos
entanto, o grito do Ipiranga acabou se do Bicentenário da Independência”. A
impondo como data maior da naciona- demanda comemorativa veio por meio
lidade por um conjunto de fatores: pela da imprensa, e partiu de setores que se
necessidade de conciliação com os monar- identificam como “nacionalistas” por
quistas, pela inviabilidade do 7 de abril aí perceberem uma excelente oportuni-
de 1831, que marcou a saída de d. Pedro dade para “valorizar os símbolos e as
I do Brasil, de se consolidar como marco datas nacionais”. O Senado, por sua vez,
da ruptura com a metrópole e, sobretudo, criou também uma comissão do Bicen-
pela maior habilidade da intelectualidade tenário, esta entregue a um senador de
monarquista de impor o “seu passado”. esquerda, Randolfe Rodrigues (Rede/AP),
De uma maneira ou de outra, o fato é que que adiantou: “O Bicentenário não pas-
o 7 de setembro ganhou agora um relevo sará em branco. Se [o governo federal]
excepcional, que cresce à medida que, não quiser comemorar, nós o faremos” 2 .
agora, em 2022, celebra-se os 200 anos O secretário nacional de Cultura passou
da Independência. Não por acaso, torna- recibo e, dias depois, anunciou o lança-
-se cada vez mais pertinente o interesse mento de um edital para projetos audio-
pelos festejos do primeiro centenário, em visuais com o objetivo de “resgatar a
1922. Em meu caso particular, há um memória de todos os grandes heróis da
interesse ainda maior, já que este foi o nossa Independência” 3.
tema de minha dissertação de mestrado, A primeira chamada para a comemora-
defendida em 1991 junto ao Programa de ção do Centenário ocorreu em janeiro de
Pós-Graduação em História da UFRJ1. 1916, quando a Revista do Brasil, em seu
Podemos começar comparando as res- primeiro número, anunciou a necessidade
pectivas convocações para os festejos de se celebrar festivamente esse “primeiro
comemorativos, os de 1922 e os de 2022.
chia foi explícito: nesse novo cenário, não fazer frente à celebração do Centenário
haveria lugar para a “consciência ‘peri’, da Independência foi o da desqualifica-
a arte ‘peri’ [...] símbolos da superstição ção do Rio de Janeiro como “cabeça da
pelo passado, que não pode(ria) continuar nação” e sua substituição por São Paulo,
na era do automóvel e do aeroplano”. A lócus de produção de uma nova identidade
incorporação do país centenário à ordem nacional. Litoralista, desligada dos valo-
moderna, compreendida como urbana e res autenticamente nacionais, passadista,
industrial, precisava se afastar do “nacio- dependente do Estado, a capital federal
nalismo carro-de-boi, com Jeca, canto de estaria associada a uma República taxada
cambaxirra e regato sussurrante...” (Del como falida e corrupta. Já São Paulo seria
Picchia apud Motta, 1992, p. 39). As refe- o resultado de uma perfeita simbiose das
rências ao romantismo “peri” de José de qualidades da vida rural com as do pro-
Alencar e ao naturalismo do “Jeca” de gresso urbano, solução para conjugar a
Lobato eram claras. De Mário de Andrade vitória do industrialismo com os valores
partiu o brado “fujamos da natureza”, a “profundos e autênticos” da nação. No
alertar que não seria nas matas ou no ser- entanto, o sucesso desse empreendimento
tão que se encontraria o tipo representa- dependeria da elaboração de uma argu-
tivo da nacionalidade. O Parnasianismo, mentação sólida e abrangente, de caráter
taxado de ultrapassado por aprisionar a político, econômico, social e, sobretudo,
linguagem nos cânones rígidos da métrica cultural, capaz de garantir a São Paulo o
e da rima, era o alvo a ser atingido, liber- lugar privilegiado de formador do “espí-
tando a palavra das amarras estéticas e dei- rito nacional”. Que momento seria mais
xando que ela circulasse em um universo adequado para lançar esse projeto ambi-
de formas novas produzidas pela realidade cioso do que o da comemoração do Cen-
urbano-industrial, pontuada pela presença tenário da Independência?
do imigrante: “É o milagre do idioma e o Sendo assim, seria no terreno fluido
contágio das tradições nacionais de que se da memória do passado onde se trava-
impregnam as levas estrangeiras que aqui riam os mais duros combates em favor
aportam, que abrasileiram a nova raça” da “metrópole bandeirante”, justamente
(Del Picchia apud Motta, 1992, p. 40). quando, por força da celebração do cen-
tenário da nação, buscava-se uma nova
TRADIÇÃO E VANGUARDA, matriz capaz de conciliar os valores da
modernidade dos “arranha-céus, for-
TEU NOME É SÃO PAULO
des, viadutos” com os da brasilidade do
“cheiro do café”. Em artigo publicado
“Arranha-céus/Fordes/Viadutos/Um cheiro no Correio Paulistano de 8 de setembro
de café/No silêncio emoldurado” (Oswald de 1922, Júlio Prestes, futuro presidente
de Andrade). do estado de São Paulo, apresentava as
razões pelas quais a capital paulistana
Um dos movimentos que resultaram teria sido o centro das comemorações do
dessa busca de um Brasil moderno para Centenário da Independência:
do monumento residia em dois aspectos: contribuiu para seu ingresso no panteão dos
forjava a imagem dos “bravos paulistas “pais da pátria”, é certo que a defesa que
como a expressão máxima do heroísmo fez da ordem e da centralização como ele-
e da glória da raça brasileira” e, acima mentos básicos da jovem nação, na direção
de tudo, reiterava o caráter da “arte pau- oposta ao “idealismo liberal” que acabara
lista”, a qual, ao conjugar brasilidade e vingando na Constituição republicana de
modernidade, se distanciava da “velharia 1891, agradava àqueles que, nos anos 1920,
e do arcaísmo que costumavam enfeitar foram responsáveis pela formação de um
os salões da capital federal”, aproveitou pensamento autoritário no país 4.
Del Picchia (apud Motta, 1992, p. 105) Mas os “moços de São Paulo” queriam
para espetar os cariocas. mais, muito mais, para este Centenário de
Os bandeirantes eram apenas um dos 22. Desde 1920, Tarsila, Mário, Menotti,
trunfos que São Paulo possuía para se Oswald, entre outros, pretendiam trans-
situar favoravelmente na disputa pela formar essa celebração em algo que fosse
memória da nação centenária. Desde a “expressão do Brasil inteligente”, em
1912, já estavam assegurados os recur- marco inaugural da hegemonia cultural
sos necessários à execução do Monumento de São Paulo. O desafio à supremacia
do Ipiranga, destinado a fixar no bronze até então irrefutável do Rio de Janeiro –
a lembrança do lugar onde o príncipe d. ironicamente chamada de Camelote, em
Pedro havia proferido o grito libertador, referência à corte do rei Arthur – seria
e outorgado ao país a sua maioridade o elo que uniria variadas vertentes do
política. Inaugurado em 7 de setembro, Modernismo paulista na montagem do
ainda que inacabado, o monumento teria evento conhecido como Semana de Arte
cumprido a sua missão, qual seja, a de Moderna, realizado no Theatro Municipal
recuperar a “verdade histórica”, colocando entre 13 e 17 de fevereiro de 1922. Coube
São Paulo no palco principal dos eventos a Mário de Andrade definir a “contri-
comemorativos de 1922. Afinal, para os buição” que São Paulo ofereceria a uma
paulistas a data tinha o duplo caráter de nação centenária que buscava se inserir
uma celebração local e nacional. na modernidade do pós-guerra:
Por meio dos fios da continuidade, São
Paulo tecia a sua tradição (Hobsbawn & “A hegemonia artística da corte não existe
Ranger, 1984). Inventou as bandeiras des- mais [...]. Quem primeiro manifestou a
bravadoras do território nacional, e os ban- desejo de construir sobre novas bases a
deirantes empreendedores e disciplinados,
elevando-os à condição de eventos e per-
sonagens fundadores da história nacional.
4 Sobre José Bonifácio como “patriarca da Indepen-
Transformou o Riacho do Ipiranga em solo dência”, ver: Motta (2011). Esse texto foi apresentado
sagrado da pátria livre, e José Bonifácio no no Colóquio Internacional “A experiência da Primeira
República: Portugal e Brasil”, organizado pelo CEIS-
“patriarca da Independência”: nascido em 20, da Universidade de Coimbra, e pelo CPDOC-FGV,
realizado na Faculdade de Letras da Universidade de
Santos, foi elevado à condição de “mentor” Coimbra e no Arquivo Distrital de Leiria, entre 5 e 7 de
do 7 de setembro. Se o fato de ser paulista maio de 2010.
REFERÊNCIAS