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12a Edição

.Cham. 30 I H 167m 12. ed.


Autor: Haguette, Teresa Maria Frota, I
Título: Metodologias qualitativas na so

11111111111111111111111111111111111111111111111111
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lSi~llmr!'l i~l~r ~RESA MAKIA FROTA HAGUETTE
9 788532 6 O 8 5 43
o livro trata de algumas
metodolpgias de pesquisa
de cunho qualitativo,
confonne se tem
observado na sociologia Metodologias qualitativas na sociologia
nos últimos anos.
Entende a autora que as
fonnas de abordagem do
real não estão
desvinculadas das
concepções abstratas que
tentam explicá-lo, razão
por que parte do trabalho
discute os fundamentos
teóricos do
interacionismo simbólico,
da etnometodologia e da
dramaturgia social.
Apresenta os
fundamentos teóricos de
algumas metodologias
qualitativas na sociologia,
a crítica e a alternativa
aos métodos tradicionais.
As técnicas de coleta de
dados mais usuais nas
ciências sociais são
apresentadas
didaticamente: A
Teresa Maria Frota Haguette

METODOLOG1AS
QUAL1TAT1VAS
NA SOC10LOG1A

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)
Haguette, Teresa Maria Frota
Metodologias qualitativas na sociologia /
Teresa Maria Frota Haguette. - 12. ed. - Petrópolis, RJ :
Vozes, 2010.
ISBN 978-85-326-0854-3
Bibliografia.
1. Interacionismo simbólico 2. Observação
participante 3. Pesquisa-ação 4. Pesquisa qualitativa 5.
Sociologia - Metodologia I. Título.
• EDITORA
07-0643 CDD-301.01
Y VOZES
Índices para catálogo sistemático:
1. Sociologia: Metodologias qualitativas 301.01 Petrópolis
-
Sumário

Prefácio à terceira edição, 11


Introdução, 13
PRIMEIRA PARTE: Fundamentos teóricos de algumas metodologias
qualitativas na sociologia, 23
1. A interação simbólica, 25
1. Introdução, 25
2. George Herbert Mead, 25
2.1. A sociedade, 27
2.2. O self, 29
2.3. A mente, 31
2.4. Considerações críticas, 32
2.5. A natureza da interação simbólica, 34
2.6. Princípios metodológicos do interacionismo simbólico, 39
2.7. Variações na orientação interacionista, 43
2. A etnometodologia, 47
1. Origem e objeto, 47
3. A dramaturgia social de Goffman, 51
4. Conclusões teóricas, 54
SEGUNDA PARTE: Metodologias qualitativas, 57
5. O objeto das metodologias qualitativas, 59
6. A observação participante, 62
1. Origens, 62
2. Definição e objeto, 64
7. A história de vida, 74
1. Origem e desenvolvimento da história de vida e suas funções, 74
2. A utilização da história de vida no Brasil, 78
8. A entrevista, 81
9. A história oral, 87
1. Características e limitações, 87
--
2. A técnica, 90
10. Conclusões, 95
Prefácio à terceira edição
TERCEIRA PARTE: A crítica e a alternativa aos métodos de pesquisas
tradicionais, 101
11. Pesquisa-ação e pesquisa participante, 103
Metodologias qualitativas na sociologia, publicado ao final de 1987,
1. A pesquisa-ação, 105
representou a minha tese para professor titular em Sociologia, na UFC.
1.1. A enquete operária, 112
Foi escrito em poucos meses, dada a premência exigida pelo Edital do
1.2. A intervenção sociológica, 123
concurso, realizado em 1986. Muitas de minhas preocupações ficaram
1.3. A pesquisa-ação institucional, 134
ausentes da discussão por absoluta falta de tempo. Uma delas, referida
2. A pesquisa participante, 141
nas considerações finais do livro, destaca a importância de uma análi-
2.1. Definição e características, 141
se das teorias marxistas vis-à-vis a uma questão crucial que, há décadas,
2.2. Fundamentos teóricos, epistemológicos e metodológicos da
perpassa muitas das polêmicas teóricas na sociologia, ou seja, as relações
pesquisa participante, 149
entre estrutura e ação individual.
QUARTA PARTE: Holismo e individualismo metodológico no marxismo
Na oportunidade da publicação desta terceira edição, pareceu-
recente, 169
me conveniente a inserção de um capítulo que trouxesse esclarecimentos
12. O individualismo metodológico na confluência da estrutura e da
sobre o estágio atual dos debates em torno desse tema.
ação individual, 171
Incluo, pois, um texto inédito que se intitula O individualismo me-
1. Introdução, 171
todológico na confluência da estrutura e da ação individual, que representa uma
2. O pós-marxismo, 174
prestação de contas comigo mesma, cujo compromisso eu, silenciosa,
3. O novo marxismo estrutural, 175
mas pertinazmente, contraíra em 1986.
4. O marxismo analítico, 177
O pressuposto neoclássico de que os indivíduos agem em função
5. Algumas origens, 182
de escolhas racionais decididas em situações diferenciadas, assumido pelo
6. O individualismo metodológico, 186
marxismo analítico, restabelece o trânsito entre o individual, o coletivo
7. O problema do reducionismo na sociologia, 192
e o estrutural, abrindo amplas possibilidades para a explicação de fenô-
8. A teoria da escolha racional, 198
menos sociais antes obnubilados pelas várias ortodoxias que cerceavam a
9. Últimas questões, 204
imaginação sociológica, tão cara a Marx quanto a Wright Mills.
13. Conclusões, 207
Não obstante, o esforço delineado até aqui não deve ser entendi-
14. Considerações finais, 209
do como indicativo de satisfação arrematada de minhas dúvidas e preocu-
Bibliografia, 216
pações sobre o conhecimento das formas e dos mecanismos de manuten-
ção da sociedade e da ligação entre as micro e as macroestruturas.
Se, por um lado, as teorias são construídas a partir da observação
do real, por outro, o real só é conhecido através do emprego de métodos
científicos rigorosos. O individualismo metodológico, expresso na proposta

11
do marxismo analítico - que reconhece no método da escolha racional
capacidades para desvendar os meandros que configuram muitas de suas
1ntrodução
preocupações políticas -, merece um crédito de confiança da comunidade
científica, ou seja, deve ser conhecido e utilizado para verificação de sua
eficácia. Deve ser submetido a um teste de validade, conforme preten- A ciência moderna com seus quatro séculos de desenvolvimento,
dem fazer os próprios adeptos do Marxismo Analítico com algumas das responsável pelo progresso material atingido pelas sociedades avançadas
proposições marxianas. Só que, neste caso, testa-se o método. de hoje, não se mostrou capaz de exterminar as desigualdades sociais e os
sofrimentos humanos delas decorrentes. Na maioria das vezes tem ela
Fortaleza, 26 de junho de 1992 funcionado como instrumento do poder, como aliada da opressão e coa-
Teresa Maria Frota Haguette tora das liberdades humanas. Isto porque, sendo social, ela representa um
processo social como tantos outros, sujeito às vicissitudes das formas de
organização societária e aos percalços da influência dos produtores sobre
o uso de seus produtos; apesar de seus ideais de neutralidade e objetivi-
dade, ideais que refletem a racionalidade do ser humano, a ciência está
presa à contradição de ser uma produção do homem, de sua grandeza e
de suas misérias.
Mas também é certo que a boa-fé e a boa vontade habitaram em
muitos daqueles que lutaram pela geração de um conhecimento mais exa-
to, mais fidedigno, mais livre de erros. Bacon representa um marco his-
tórico na fundamentação e instrumentalização da forma de fazer ciência.
Dele é a convicção de que o conhecimento humano só é possível através
da mediação dos sentidos, sendo a consciência, ou a mente, uma tabula
rasa na qual são impressos os dados do real. A esta visão convencionou-
se chamar empirismo porquanto pretende condicionar o conhecimento à
aproximação direta com o real mediante regras rígidas que limitariam as
tentativas metafísicas de explicação da realidade. Por isto, o método in-
dutivo que levaria o pesquisador à montagem gradual da coleção de casos
passados pelo efeito da triagem que os identificaria como semelhantes
e dessemelhantes permitir-lhe-ia generalizar sobre o real ao perceber a
ocorrência constante dos fenômenos. Adepto desta corrente (ou convic-
ção), foi também Locke que introduziu novas argumentações ao método
empirista, enriquecendo-o.
Entretanto, com Descartes, o método empirista foi contestado na
tentativa de restaurar o papel da razão e da reflexão de certa forma relegadas

12 13
-
e a dialética marxista, desdobramento da dialética hegeliana; esta, bem
a segundo plano na visão baconiana: a razão precede a convivência dos
sentidos com o dado empírico uma vez que o homem foi agraciado por próxima do racionalismo cartesiano enquanto defensora da primazia da
razão sobre os sentidos, embora introduzindo relevantes modificações
Deus com um aparato que lh.e confere o poder de ter ideias a priori, ou
nas concepções sobre o processo do pensamento: a ideia de totalidade, de
seja, prescindindo de contatos diretos com o real através dos sentidos.
movimento (história) e da contradição. Entretanto, a diferença marcante
Isto significa que certas ideias são inatas. A crença neste pressuposto
entre os dois residia no fato de que Hegel enfatizava a teoria - ou contem-
levou Descartes a desenvolver com maestria as técnicas da reflexão e , em
consequência, a descuidar daquela aproximação do pesquisador com o plação do mundo - enquanto que Marx estava preocupado com a práxis.
real, pré-requisito do conhecimento defendido por Bacon e Locke. AssimNesse momento, a dialética não estava "politizada"; ela se politiza com
Marx que, insatisfeito com as aplicações etéreas da dialética hegeliana,
sendo, a maneira apropriada de fazer generalizações sobre a realidade seria
dá-lhe uma inflexão brutal, colocando-a de cabeça para baixo, ou seja,
pelo método dedutivo: através da razão descobre-se princípios gerais sobre
retira-a do mundo das ideias e aplica-a ao processo de desenvolvimento
a realidade que serão confirmados mediante, também, o conhecimento de
social: o materialismo histórico e o materialismo dialético.
fatos particulares. A crença na razão e no poder de conhecer propiciou, na
Esta violenta inflexão empreendida por Marx propiciou um en-
história das ideias, a rubricação da visão cartesiana de racionalismo.
contro da dialética hegeliana com o real e, consequentemente, com o pos-
Percebe-se, pois, que a questão principal do confronto entre em-
pirismo e racionalismo residia na disputa sobre quem melhor garante o tulado empirista de que o conhecimento não pode prescindir dos sentidos,
domínio do real: a razão ou os sentidos, o que, consequentemente, con- distanciando-a do princípio cartesiano das ideias inatas. O materialismo
duz a uma ponderação maior ou menor alocada pelos pensadores à neces- histórico, pedra angular do marxismo, propugna que não é a consciência
sidade de uma aproximação maior ou menor com o real em consequência. do homem que determina sua existência, mas, ao contrário, é sua exis-
também, de crenças divergentes sobre a própria constituição do homem tência social que determina sua consciência. Desta forma o materialismo
enquanto ser pensante. O problema era, pois, de ordem ontológica. histórico, ao enfatizar a determinação das condições materiais de existên-
cia sobre a consciência do homem, traz implícita a ideia de que o contato
Como sempre acontece, as ideias ou convicções polares são sem-
pre contestadas, dando surgimento a propostas ecléticas que sabiamente com o real - trabalho produtivo ou intelectual - é fator sine qua non do
retiram daquelas o que têm de melhor, ou de convincente. Foi o que fez conhecimento, seja este conhecimento consubstanciado sob a forma de
uma "falsa consciência" ou de uma produção científica que pretende re-
Kant que, cético sobre a possibilidade de conhecimento do real, limita-se
constituir e explicar este real. Para a dialética marxista e para o materialis-
~ observação de seu comportamento e de suas relações, ou seja, do ob-
mo histórico, pois, o concreto real é a base do conhecimento!.
Jeto fenomenal. Concebendo o homem como um ser que dispõe de um
Enquanto o materialismo histórico representa o veio teórico que
~para.to mental sui generís que o qualifica como ser consciente, mostra que
explica o andamento do real, ou da sociedade, a dialética representa o
I~pnme as leis ao real. Estava bnçada a grande controvérsia epistemoló-
gIca moderna. método de abordagem deste real esforçando-se por compreender o fato
da historicidade humana, por analisar a prática efetiva do homem empíri-
Até o século XVIII as discussões epistemológicas parecem se si-
co e por fazer a crítica das ideologias. Em suma, a dialética diz respeito à
tuar em campo neutro, onde as preocupações com a objetividade do co-
nhecimento ocupam o maior espaço.
1: Foge aos nossos propósitos discutir outros aspectos da oposição entre a dialética mar-
É contudo no século XIX que, ao se inaugurar a individualização
d 'A •
XIsta e o empirismo e, posteriormente, o positivismo, vez que nosso interesse se prende
as ClenCIas sociais, se instaura o "problema político" dentro das meto- ao aspecto específico da afinidade entre os dois em termos da imprescindibilidade de
dologias em v ' o pOSItIVIsmo
oga. . .. d e Comte, caudatáno. do empirismo. convivência com o real para fins da produção de conhecimento.

15
14
compreensão dos processos que comandam a análise científica2 da socie- as determinações inevitáveis da pobreza e da dominação. Ao positivismo
dade a partir da luta de classes e d~ prática coletiva pela emancipação do restoU o apego à quantidade, sempre mais facilmente obtida, e à vigi-
homem, contra a exploração, em prol da igualdade social. O positivismo, lância epistemológica que, apesar de tudo, tem prestado inquestionáveis
ao se distanciar das questões metafísicas, debruçou-se sobre o método de beneficios às ciências humanas. O apelo marxista tem levado quase sem-
conhecer, concebendo o fato como autônomo e verdadeiro levando a um pre ao compromisso político (ou é o compromisso político que leva ao
parcelamento do real nas investigações de problemas passíveis de serem marxismo?) enquanto o apelo positivista se restringe aos aspectos aparen-
percebidos e constatados. Ao fazê-lo, descurou do sujeito cognoscente, temente neutros da objetividade no ato de conhecer. É esta omissão de
privilegiando o fato que se tornou soberano; descurou também da teoria compromisso com ajustiça e a equidade que faz do positivismo um servo
prévia que sempre informa o objeto do conhecimento. Coube ao grupo da injustiça e da opressão. Se não há, pelo menos assim acreditamos, uma
de Viena, aos neopositivistas, a recuperação lógica do sujeito, problema- ciência social descompromissada, não pode haver teoria omissa que não
tizando seu papel e as consequências deste no ato de conhecer. Ambos, implique em aceitação de um status quo.
marxismo e positivismo, guardam em comum, entretanto, a herança do Ao situar a causa das desigualdades sociais no movimento expan-
iluminismo que exige o uso da ciência, ou seja, que a ciência tenha apli- sionista do sistema capitalista mundial, Marx abdica do indivíduo e dos
cações práticas e que se coloque em benefício do homem. O século XXpequenos grupos como objeto de análise3 , embora acredite na sua força
presenciou um brutal desenvolvimento das chamadas metodologias de como membros de uma classe social. Se o sistema capitalista já traz em si
pesquisa, envolvendo discussões relevantes sobre formas de controle do a semente de sua destruição, resta ao homem, ou à consciência, esperar
erro na captação da realidade, partindo quase sempre do pressuposto de que isto aconteça, dizem alguns, pois ao indivíduo não cabe um papel
que ela é cognoscível. Aqui também, marxismo e positivismo estão acor- na história. Se, por outro lado, aceitarmos que as macroestruturas sejam
des: o real é objetivo. Objetivo e contraditório, diz o primeiro; objetivo formadas pelas microestruturas, evitando o determinismo paralisante da-
e não problemático, afirma o segundo. O forte componente humanista quelas em relação a estas e dando margem ao indivíduo para agir como
da teoria marxista - além, obviamente, de seu poder explicativo - atraiu protagonista da história, não há dúvida que, como cientistas sociais, valo-
os cientistas sociais comprometidos com a justiça e a equidade, quando rizaremos a dinâmica da sociedade consubstanciada nos grupos de bair-
o método positivista se adaptava como uma luva à análise das sociedades ros, nas comunidades, nos sindicatos, nas instituições, enfim, nos loei de
opulentas mascarando conflitos e enfatizando o consenso como cimento convivência e interação social, onde as "definições de situação" estão em
entre as micro e as macroestruturas sociais. Tal não era possível crer em constante mutação obedecendo ao próprio ritmo da dinâmica societal,
outras realidades. Urgia a busca das causas da desigualdade e da opressão levando seja à acomodação, seja ao protesto, face as experiências iníquas
na maior parte dos países do globo. Eram causas estruturais, permanentes a que estes grupos estão sujeitos. É preciso destacar que as "margens de
no movimento periférico, que iludem, mantendo as bases e agitando gen- manobra", ou o poder de decisão da maioria, se chocam com o poder
tilmente a superfície. Ao expor em toda a sua crueza os mecanismos de constituído _ poder econômico, poder do saber, e outros poderes - que
funcionamento do sistema capitalista, Marx desnudou as imagens "mo- molda as consciências e os imaginários, anulando a ação contestadora em
dernizantes" de seu percurso de exploração e miséria, apontando para busca de uma real'd d d 'd ll'b rtá'no.
1 a e e 1 ea 1 e
.

2. Cf. François Chatelêt (Questions Objections, à la recherche des Vraies Semblances. Paris, Édi- - - -_ __
tions Denoel, 1979, cap. II, Le Plaisir de la Definition, p. 67-144) para uma discussão dos 3. Vale salientar que desdobramentos posteriores, e mais recentes, da visão marxiana per-
conceitos de alienação, comunismo/socialismo, dialética, ideologia, marxismo, materialis- mitem uma abordagem de microprocessos societais, conforme atestam os trabalhos de
mo, ocidente, progressismo, reformismo, república, revolução, soberania e tecnocracia. Castoriadis, L. Goldmann e H. Lefebvre.

16 17
Entendemos que as questões epistemológicas e me~odoló~cas consequências do exacerbado poder de poucos sobre muitos, não é, a
nas ciências sociais estão, por definição, subordinadas às teonas exphca, nosso ver, o domínio dos métodos e técnicas de pesquisa social, mas o
tivas que o pesquisador elege como responsáveis pelo funcionamento d, escrutínio de sua própria visão de mundo, pré-requisito fundamental
sociedade. Por trás delas situa-se, e,m última instância, sua visão de mun, daquilo que dela decorre, a atividade de analista do real, de intérprete das
do (T#ltanschauung)4, ou sua ideologia, que fornece~á o ~ub~t~ato da sU'experiências alheias e de protagonista ativo das transformações que lhe
crença na forma como a sociedade se mantém, na mevItablhdade dest, parecerão necessárias, mas que nem sempre serão as melhores. O "arbítrio"
5
manutenção ou na possibilidade e necessidade de uma transformaçã0 . do pesquisador representa sua mais pesada carga de responsabilidade se
Neste sentido, pois, entendemos que as teorias devem ser ava'admitirmos a complexidade e incomensurabilidade do real e o fato de
liadas em termos de seu poder explicativo sobre alguns aspec~o~ da rea' que ele apenas faz uma "leitura" deste real; se admitirmos que a captação
lidade. Dizemos "alguns aspectos" porque não nos parece eX1stIr na sO'do real como um "retlexo" é uma utopia; se aceitarmos que a reprodução
ciologia uma teoria suficientemente abrangente para comportar todos o~e a interpretação da realidade são problemáticas e que a multiplicidade de
fenômenos sociais e muito menos fornecer todas as respostas passíveis d(formas de convivência social juntamente com o intenso movimento das
serem levantadas; mesmo que esta teoria existisse, nada asseguraria qU(sociedades dificulta e, talvez, impossibilita a generalização dos achados de
suas explicações fossem as "verdadeiras", isto porque não há forma d(uma investigação e, consequentemente, a descoberta de regularidades.
comprovar a veracidade absoluta de um enunciado. O que, com efeito As chamadas metodologias qualitativas na sociologia são exem-
acontece, é que aderimos a certas explicações em termos de sua plausi'plos de reação contra o paradigma estrutural, quase sempre associado a
bilidade. Aqui também, o tipo de questão que vai interessar ao soci6modelos quantitativos de análise, com algumas exceções, tais como o mo-
logo depende de tudo aquilo de que já falamos acima. No nosso casodelo marxista que, embora estrutural, se apoia com veemência nos dados
explicitamos o que mais nos interessa e atrai a fim de fornecer com clahistóricos, específicos e únicos em sua qualidade reconstitutiva do passa-
reza ao leitor uma ideia dos parâmetros que regem nossa preocupaçã(do. Há que considerar que esta reação não representa um repúdio cabal às
no presente trabalho. Interessa-nos descobrir: a) como uma sociedade slmacroanálises e, sim, o reconhecimento de que a sociedade é constituída
mantém e se transforma, quais os mecanismos que ligam as micro e ade microprocessos que, em seu conjunto, configuram as estruturas maci-
macroestruturas; b) qual o papel da ação humana na história; c) quais °ças, aparentemente invariantes, atuando e conformando inexoravelmente
fatores principais que dinamizam a história; d) como fazer para conhecea ação social individual. É esta a crença que acalentamos, responsável pela
a sociedade e obter indícios de respostas para (a), (b) e (c). opção que agora nos apresenta as metodologias qualitativas, não como
As técnicas, na verdade, são secundárias no sentido de qUalternativas aos modelos quantitativos, oposição frequente na literatura
poderão ser sempre justificadas dentro do método científico. A grandespecializada que reflete uma visão maniqueísta que é de certa forma nor-
questão que se coloca hoje para o cientista social, especialmente nCmativa, ao asseverar as vantagens sumárias de um modelo e os defeitos
países periféricos onde sua atuação o aproxima com mais violência dÓcongênitos do outro, mas como uma necessidade e uma urgência dentro
da sociologia para aqueles que estão convencidos de que a sociedade é
4. Empregado aqui no sentido que lhe aloca Sombart (1964: 18) "[ ... ] o significado dupluma estrutura que se movimenta mediante a força da ação social indivi-
do conceito de Weltanschauung, isto é, que por um lado implica nossas ideias fundJjual e grupal. O desprezo por este aspecto do social implica, a nosso ver,
. b 'd outro nossos valores fundamentais na vida" [traduzido ( _. . fi I . . d
mentais so re a VI a e, por , .m uma concepçao determmlsta que u mma, na ongem, a esperança e
espanhol pelo A.]. 'lu d' ld d - d' b . 'd
. - ela nao
5. Embora esta visão de mundo contenha elementos de determmaçao, - ,e absolut., e a eSlgua
. a . e e a opressao possam um la ser su stltm. as por es-
podendo ser reformulada ou modificada através da autocrítica. truturas dignas e Justas. Não há dúvida que as estruturas eX1stem e devem

18
19
Entendemos que as questões epistemológicas e metodológiaS . consequências do exacerbado poder de poucos sobre muitos, não é, a
nas ciências sociais estão, por definição, subordinadas às teorias explica- nosso ver, o domínio dos métodos e técnicas de pesquisa social, mas o
tivas que o pesquisador elege como responsáveis pelo funcionamento da escrutínio de sua própria visão de mundo, pré-requisito fundamental
sociedade. Por trás delas situa-se, em últi;'a instância, sua visão de mun- daquilo que dela decorre, a atividade de analista do real, de intérprete das
do (l#ltanschauung)4, ou sua ideologia, que fornecerá o substrato da sua experiências alheias e de protagonista ativo das transformações que lhe
crença na forma como a sociedade se mantém, na inevitabilidade desta parecerão necessárias, mas que nem sempre serão as melhores. O "arbítrio"
manutenção ou na possibilidade e necessidade de urna transfonnaçã0 5. do pesquisador representa sua mais pesada carga de responsabilidade se
Neste sentido, pois, entendemos que as teorias devem ser ava- admitirmos a complexidade e incomensurabilidade do real e o fato de
liadas em termos de seu poder explicativo sobre alguns aspectos da rea- que ele apenas faz uma "leitura" deste real; se admitirmos que a captação
lidade. Dizemos "alguns aspectos" porque não nos parece existir na so- do real como um "reflexo" é uma utopia; se aceitarmos que a reprodução
ciologia uma teoria suficientemente abrangente para comportar todos os e a interpretação da realidade são problemáticas e que a multiplicidade de
fenômenos sociais e muito menos fornecer todas as respostas passíveis de formas de convivência social juntamente com o intenso movimento das
serem levantadas; mesmo que esta teoria existisse, nada asseguraria que sociedades dificulta e, talvez, impossibilita a generalização dos achados de
suas explicações fossem as "verdadeiras", isto porque não há forma de uma investigação e, consequentemente, a descoberta de regularidades.
comprovar a veracidade absoluta de um enunciado. O que, com efeito, As chamadas metodologias qualitativas na sociologia são exem-
acontece, é que aderimos a certas explicações em termos de sua plausi- plos de reação contra o paradigma estrutural, quase sempre associado a
bilidade. Aqui também, o tipo de questão que vai interessar ao soció- modelos quantitativos de análise, com algumas exceções, tais como o mo-
logo depende de tudo aquilo de que já falamos acima. No nosso caso, delo marxista que, embora estrutural, se apoia com veemência nos dados
explicitamos o que mais nos interessa e atrai a fim de fornecer com cla- históricos, específicos e únicos em sua qualidade reconstitutiva do passa-
reza ao leitor uma ideia dos parâmetros que regem nossa preocupação do. Há que considerar que esta reação não representa um repúdio cabal às
no presente trabalho. Interessa-nos descobrir: a) como uma sociedade se macroanálises e, sim, o reconhecimento de que a sociedade é constituída
mantém e se transforma, quais os mecanismos que ligam as micro e as de microprocessos que, em seu conjunto, configuram as estruturas maci-
macroestruturas; b) qual o papel da ação humana na história; c) quais os ças, aparentemente invariantes, atuando e conformando inexoravelmente
fatores principais que dinamizam a história; d) como fazer para conhecer a ação social individual. É esta a crença que acalentamos, responsável pela
a sociedade e obter indícios de respostas para (a), (b) e (c). opção que agora nos apresenta as metodologias qualitativas, não como
As técnicas, na verdade, são secundárias no sentido de que alternativas aos modelos quantitativos, oposição frequente na literatura
poderão ser sempre justificadas dentro do méto~o científi.co. A grande especializada que reflete uma visão maniqueísta que é de certa forma nor-
questão que se coloca hoje para o cientista socIal, especIalmente nos mativa, ao asseverar as vantagens sumárias de um modelo e os defeitos
países periféricos onde sua atuação o aproxima com mais violência das congênitos do outro, mas como uma necessidade e uma urgência dentro
da sociologia para aqueles que estão convencidos de que a sociedade é
4. Empregado aqui no sentido que lhe aloca Sombart (1964: ?8) ~[ ... ] o sign~fic:mo duplo uma estrutura que se movimenta mediante a força da ação social indivi-
d o conceito e we I tansc h auung , I'Sto é , que por um lado Implica nossas Ideias funda-
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dual e grupal. O desprezo por este aspecto do social implica, a nosso ver,
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em uma concepção determinista que fulmina, na origem, a esperança de
espanhol pelo A.].
5 . E m b ora esta vlsao undo contenha elementos
. - de m de determinação, ela não é,
absoluta que a desigualdade e a opressão possam um dia ser substituídas por es-
podendo ser reformulada ou modificada através da autocrítica. truturas dignas e justas. Não há dúvida que as estruturas existem e devem
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ser conhecidas, mas é a ação humana, a interação social, que constitui o trabalho está dividido em quatro partes; na primeira expomos
o motor da história. Àqueles que poderão argumentar que a única ação os fundamentos teóricos do interacionismo simbólico, elegendo George
efetiva é a ação de classe, respondemos que a classe social é, com efeito, Herbert Mead como elemento exemplar da concepção interacionista. A
uma entidade fundamental na análise da sociedade capitalista, mas que etnometodologia de Harold Garfinkel e a dramaturgia social de Erving
sua ação se inicia nos pequenos grupos, nos sindicatos, nos bairros, nos Goffman são elaborações particulares da mesma corrente, ilustrando
partidos; ou seja, as decisões são tomadas por indivíduos e grupos que aplicações concretas dos princípios interacionistas. A segunda parte trata
interagem e decidem sobre uma ação comum. Não vemos incompatibi- de alguns métodos ou técnicas qualitativas de captação de dados que se
lidade entre as duas coisas. prestam à análise da ação social, tais como: a observação participante, a
Acreditamos, pois, que tanto as estruturas quanto os micropro- história da vida, a história oral e a entrevista. A terceira parte apresenta
ces sos de ação social devem ser conhecidos, analisados e interpretados, a proposta alternativa aos métodos da pesquisa tradicional consubstancia-
cabendo a cada um a metodologia apropriada, a metodologia que melhor da na pesquisa-ação e pesquisa-participante. Como exemplos de pesqui-
se adequa ao problema que se deseja investigar. Por outro lado, conforme sa-ação tomamos a enquete operária, conforme foi exposta por Michel
já referimos, existe um substrato teórico, uma visão de como a sociedade Thiollent, a intervenção sociológica de Alain Touraine e a pesquisa-ação
funciona, por trás das metodologias, aparentemente "neutras". As meto- institucional de René Barbier. O capítulo sobre a pesquisa-participante
dologias qualitativas derivam da convicção de que a ação social é funda- foi composto como uma síntese de vários trabalhos. Dada a falta de uni-
mental na configuração da sociedade. É nosso propósito neste trabalho formidade e de homogeneidade entre os diferentes autores, ensaiamos
apresentar o embasamento teórico dos dois tipos de metodologias quali- uma apresentação ideal típica sem muita segurança de estar atingindo o
tativas que reputamos mais relevantes para a sociologia, ambos apoiados objetivo de colocar com clareza seus fundamentos teóricos básicos e suas
na crença da importância dos aspectos subjetivos da ação social: o intera- coordenadas metodológicas mais comuns.
cionismo simbólico e a pesquisa - ação-pesquisa-participante. Enquanto A quarta parte retoma um tema apenas lembrado nas Conclusões
a primeira vertente exibe contornos teóricos sólidos e uma metodologia das edições anteriores. Ao mesmo tempo em que atualiza os debates em
já curtida pela experiência científica de mais de meio século, a segunda torno de algumas correntes marxistas contemporâneas, especialmente o
é jovem e ainda imatura em seus princípios teóricos e metodológicos, marxismo analítico, explicita certas desavenças e controvérsias sobre a va-
pretendendo-se uma alternativa aos métodos da ciência social tradicional, lidade de utilização do individualismo metodológico face aos postulados
marxianos.
incapaz de resolver os problemas e as injustiças sociais dos países perifé-
Ao final de cada parte introduzimos comentários críticos que re-
ricos. Com razão, argumenta sobre a necessidade de uma tomada de po-
fletem as dificuldades de ordem epistemológica e metodológica que nos
sição política da parte do investigador, de sua "intervenção" no ambiente
parecem mais evidentes. Este não pretende ser um trabalho exaustivo
de pesquisa, quebrando com os limites artificiais entre sujeito e objeto
sobre os temas tratados, mas uma contribuição à reflexão sobre a forma
do conhecimento em nome da objetividade e da nt:\.1tralidade científicas.
ou formas possíveis de produção do conhecimento dentro do espírito
Cônscia do poder inexorável de poucos sobre muitos na realidade socie-
sugerido por Carlos Rodrigues Brandão, de que faz falta na literatura
tal, a segunda vertente adota a instância moral de opção pelos oprimidos,
especializada uma crítica científica e uma crítica política das diferentes
dando um passo além do interacionismo simbólico, ainda "despolitiza-
propostas de pesquisa participante, ao que acrescentaríamos: uma dis-
do", embora, a nosso ver, com todas as possibilidades de se tornar um
cussão que exiba as angústias e impotências de um cientista social que se
aliado da ciência compromissada.
pretende compromissado com a justiça e a equidade, mas que se sente

20 21
preso aos imperativos do rigor científico. Como fazer a união das duas
preocupações é uma questão sobre a qual apenas tateamos respostas, em-
bora estejamos mais propensos a crer que o problema epistemológico nas
ciências humanas não tem solução, re·stando a instância moral da opção
pelos oprimidos.

Somente os homens que creem


apaixonadamente nos valores
e põem em jogo uma vontade
apaixonada podem chegar a ser PRIMEIRA PARTE
grandes cientistas (Sombart).
Fundamentos teóricos de algumas
metodologias qualitativos no sociologia

22
L
A interação simbólica

1. Introdução
A escola da interação simbólica se reporta em origem a clássicos
da sociologia do fim do século XIX tais como Charles Horton Cooley
(1864-1929), WI. Thomas (1863-1947) e George Herbert Mead (1863-
1931)6, embora o termo interacionismo simbólico tenha sido cunhado
por Herbert Blumer em 19371. Os pontos comuns aos três envolvem as
concepções da sociedade como um processo, do indivíduo e da sociedade
como estreitamente inter-relacionados e do aspecto subjetivo do com-
portamento humano como uma parte necessária no processo de forma-
ção e manutenção dinâmica do self social e do grupo social (PSATHAS,
1973: 5). Alguns de seus conceitos já se incorporaram à terminologia
sociológica como a "introspecção simpatética" de Cooley, a "definição
de situação"g de Thomas ou "o outro generalizado" de Mead. A obra de
Mead, entretanto, foi aquela que mais contribuiu para a conceptualização
da perspectiva interacionista. Por esta razão nos deteremos sobre ele para
um melhor exame dos fundamentos desta escola.

2. George Herbert Meod


Mead não publicou uma obra completa e sistemática sobre sua
teoria. Todos os seus quatro livros são póstumos e organizados por edito-

6. COOLEY, Charles H. Human Nature and the Social Order. Nova York: Schoken, 1964
[originalmente publicado em 1902]. COOLEY, Charles H. "The Roots of Social Kno-
wledge". ln: The American Journal of Sociology, vol. 32 Oul. 1926), p. 59-79. COOLEY,
Charles H. ''A Study ofthe Early Use ofSelf-Words by a Child". Psychological Review, vol.
15 (nov. 1908), p. 339-357. THOMAS, William r. On Social Organization and Social Perso-
nality: Selected Papers. Chicago: University of Chicago Press, 1966 [com uma introdução
de Morris]anowitz]. MEAD, George Herbert: nota sobre o autor, adiante.
7. CE BLUMER, H. 1969: 1, nota de rodapé.
8. Muito utilizada na literatura especializada é a frase de Thomas: "Se os homens definem
situações como reais, elas são reais nas suas consequências".

25
2.1. A sociedade
res a partir de palestras, aulas, notas e manuscritos fragmentários. Seu De acordo com Mead, toda atividade grupal se baseia no compor-
sistema de psicologia social, entretanto, é apresentado de forma completa tam~nto cooperativo. Embora algumas sociedades infra-humanas ajam
em Mind, Self and Society9, um dos mais importantes e influentes livros
conjuntamente, fazem-no levadas pelas características biológicas de seus
na área da interação simbólica, onde ~ autor explora não somente a
membr~s. O comportamento cooperativo dos insetos, por exemplo, é
complexa relação entre a sociedade e o indivíduo, como expõe a gênese
determmado fisiologicamente sem que seus padrões de associação se al-
do self, o desenvolvimento de símbolos significantes e o processo de
terem mesmo ao longo de inúmeras gerações, enquanto que a cooperação
comportamento da mente. Apesar de sua obra como um todo exibir
huma_na, com sua diversidade de padrões, atesta que os fatores fisiológi-
uma orientação filosófica, ele preocupou-se em ilustrar suas proposições
cos nao podem explicá-la. A associação humana surge somente quando:
a partir de fatos da vida cotidiana. Mead, o arquiteto por excelência do
a) cada, ~tor in~ivi~ual percebe a intenção dos atos dos outros e, então, b)
interacionismo simbólico, ensinou na Universidade de Chicago no perío-
constrol sua propna resposta baseado naquela intenção. Isto significa que,
do de 1893 a 1931, quando faleceu. Ele próprio se referia à sua teoria
par~ haver cooperação entre seres humanos, é necessário que alguns me-
em termos de "behaviorismo social"lo, entendendo por isto a descrição
camsmos estejam presentes de forma que cada ator individual: a) possa
do comportamento do nível humano cujo dado principal é o ato social
entender as linhas de ação dos outros e b) possa direcionar seu próprio
concebido não só como o comportamento "externo" observável, como
comportamento a fim de acomodar-se àquelas linhas de ação. O compor-
também a atividade "encoberta" do ato. Neste sentido, sua teoria se opõe
tamento humano não é uma questão de resposta direta às atividades dos
ao behaviorismo radical de John B. Watson, que reduz o comportamento
outros, mas envolve uma resposta às intenções dos outros, ou seja, ao fu-
humano aos mesmos mecanismos encontrados ao nível infra-humano e
turo e intencional comportamento dos outros, não somente às suas ações
onde a dimensão social é vista como uma mera influência externa sobre
presentes (MELTZER, 1972: 6). Estas intenções são transmitidas através
o indivíduo. Enquanto Watson insiste no estudo estritamente científico
de ges.tos que se tornam simbólicos, isto é, passíveis de serem interpretados.
do comportamento aparente, Mead permite uma instintiva investigação
A SOCIedade humana se funda, pois, na base do consenso, de sentidos
compreensiva de aspectos do comportamento, ausente na perspectiva
compartilhados sob a forma de compreensões e expectativas comuns.
de Watson. A lógica natural do pensamento de Mead parece indicar a
Quando os gestos assumem um sentido comum, ou seja, quando eles
precedência da sociedade sobre o self e, por último, a mente, invertendo,
adquirem um elemento linguístico, podem ser designados de "símbolos
assim, a ordem do título de sua principal obra: Mind, Self and society
significantes". O componente significativo de um ato ll , que representa
(MELTZER, 1972: 5; TROYER, 1972: 321). uma atividade mental, acontece através do role-taking: o indivíduo deve
colocar-se na posição de outra pessoa, deve identificar-se com ela 12 . Para
9. As quatro obras publicadas são: Philosophy qf the Present (1932) que contém as palestras Mead a relação dos seres humanos entre si surge do desenvolvimento de
de Mead na Paul Carus Foundation, sobre filosofia da história dentro de uma perspectiva
pragmática; Mind, Seifand Society. Chicago, U niversity of Chicago Press, 1934, que, apesar
sua habilidade de responder a seus próprios gestos. Esta habilidade permi-
de ser a principal publicação de Mead, representa uma coleção de aulas ministradas no te que diferentes seres humanos respondam da mesma forma ao mesmo
curso de psicologia social na Universidade de Chicago; Movements ofThought in the 19 th
[entury. Chicago: University of Chicago Press, 1936, foram aulas proferidas sobre a his- 11. Que Mead chama "meaning".
tória das ideias e, finalmente, Philosophy of the Act. Chicago: University of Chicago Press,
12. Este
, proces so ocorre nao - somente em termos da assunção do papel de uma pessoa
1938, que representa afirmações sistemáticas, sobre a filosofia do pragmatismo (MELT-
espeCifica
. como d o pape I d e um grupo, o que Mead chamageneralized other. Além do con-
ZER, 1972: 4). ceito ~~ Taking the role qf the other Mead se refere à conversat;on qfi?estures ou "conversação de
10. Behaviorismo social, distinto do behaviorismo radical de John B. Watson, fundador gestos , no mesmo sentido.
do behaviorismo em psicologia.
27
26
gesto, possibilitando a compartilhar de experiências, a incorporação entre A ação comum, contudo, ocorre em relação a um lugar e a uma
si do comportamento. O comportamento é, pois, social e não meramente situação. Toda e qualquer unidade de ação - um indivíduo, uma família,
uma resposta aos outros. O ser humano responde a si mesmo da mesma uma escola, uma igreja, uma firma, um sindicato, um legislativo, assim
forma que outras pessoas lhe respondem e, ao fazê-lo, imaginativamente por diante a ação em si - é feita à luz de uma situação específica. Logo, a
compartilha a conduta dos outros (MELTZER, 1972: 8). De acordo com ação é construída através da interpretação da situação, consistindo a vida
a interpretação de Blumer (1969: 82), são estas as características da análise grupal de unidades de ação desenvolvendo ações para enfrentar situações
de Mead, baseada na interação simbólica l3 . Elas pressupõem: nas quais elas estão inseridas (BLUMER, 1969: 85)14.
que a sociedade humana é feita de indivíduos que têm selves
(isto é, que fazem indicações para si mesmos); que a ação 2.2. O self
individual é uma construção e não um dado, erigida pelo Ao afirmar que o ser humano possui um self, Mead quer enfatizar
indivíduo através da percepção (noting) e interpretação das que, da mesma forma que o indivíduo age socialmente com relação a
características das situações nas quais ele atua; que a ação outras pessoas, ele interage socialmente consigo mesmo. Ele pode tornar-se
grupal ou coletiva consiste do alinhamento de ações indivi- o objeto de suas próprias ações. O self, assim como outros objetos, é for-
duais trazidas pelas interpretações que os indivíduos alocam mado através das "definições" feitas por outros que servirão de referen-
às ações dos outros ou consideram em termos da ação de ciai para que ele possa ver-se a si mesmo l5 . Assim sendo, o ser humano
cada um (T. do A.). pode tornar-se objeto de suas próprias ações dentro da sociedade que, de
A sociedade humana deve ser vista como consistindo de acordo com Mead, precede a existência do self. A sociedade representa,
pessoas em ação e a vida da sociedade deve ser vista como pois, o contexto dentro do qual o self surge e se desenvolve. Este desen-
consistindo de suas ações. As unidades atuantes podem ser volvimento tem início em um estágio de imitação por parte da criança,
indivíduos separados, coletividades cujos membros agem sem qualquer componente significativo. Em seguida ela passa a "assumir
conjuntamente com vistas a uma ação (quest) comum, ou o papel de outros" em relação a si própria; exemplos destes papéis são a
organizações atuantes em benefício de uma constituência
(constituency). Respectivos exemplos são compras individu- 14. Paralelamente ao trabalho de Mead, Willian I. Thomas elaborava o conceito de "defi-
ais em um mercado, um grupo que joga ou uma banda mis- nição de situação": "preliminar a qualquer ato de comportamento autodeterminado existe
sionária, e uma cooperação de negócios ou uma associação sempre um estágio de exame e deliberação que nós podemos chamar de 'definição de
situação'. Na verdade, não apenas os atos concretos são dependentes da definição de si-
profissional nacional. Não existe nenhuma atividade empi-
tuação, mas gradualmente uma completa política de vida e a personalidade do próprio
ricamente observável em uma sociedade humana que não indivíduo seguem de uma série de tais definições". The Unadjusted Gir!. Boston: Little,
surja de alguma unidade de ação (T. do A.). Browand Company, 1931, p. 41.
15. Este aspecto foi desenvolvido concomitantemente por Charles H. Cooley através do
conceito "looking glass self": muna larga e interessante classe de casos a referência social
~oma a forma de alguma imaginação definida de como o self de alguém - isto é, qualquer
13. Ao fazer a explanação do pensamento de Mead, Blumer critica a sociologia convencio- Ideia que ele se aproprie - aparece muna mente particular, e o tipo de autossentimento
nal por acreditar que o comportamento das pessoas como membros de uma sociedade é (self:feeling) que alguém sente é determinado pela atitude dirigida a isto, atribuída por esta
uma expressão do jogo de forças societais sobre elas, como sistema social, estrutura social, outra mente. O self social deste tipo poderia ser chamado de vidro refletido ou "looking-
cultura, costume, instituição, normas, valores, etc. Blumer alega que esta abordagem ignora glass self" CE COOLEY C.H .. Looking-Glass SelE ln: MARIS J.G. & MELTZER B.N.
que as ações sociais dos indivíduos numa sociedade são construídas por eles através de um (org.), 1972. De acordo com Manford H. Kuhn (1972), Cooley representa um dos inte-
processo de interpretação. lectuais que antecederam a "teoria do papel".

28 29
"mãe", a "professora", o "bandido", o "mocinho" etc. Quando a criança tem a possibilidade de dirigir e controlar seu comportamento, ao invés de

é capaz de fazer o jogo de diferentes papéis ela já constrói ~ ~ue Mead tornar-se um agente passivo dos impulsos e estímulos.

chama de generalized other ou papel coletivo, o que ele adqumU no ~ur­ Neste sentido, Mead (1936: 389-390 citado por TROYER, 1972)

so de sua associação com os outros e cujas expectativas ela internahzou afirma que o organismo social
(MELTZER, 1972: 10). Meltzer, ao interpretar o pensamento ~e ~ead, [ ... ] não é um protoplasma sensitivo que está simplesmente

enfatiza que o self representa um processo social no interior do mdlVlduo recebendo estes estímulos de fora e, então, respondendo a
eles. Ele está primariamente procurando certos estímulos ...
envolvendo duas fases analíticas distintas:
O "Eu" é a tendência impulsiva do indivíduo. Ele é o aspecto ini- Qualquer coisa que estejamos fazendo determina o tipo de
cial, espontâneo e desorganizado da experiência humana. Logo, estímulo que desencadeará certas respostas que estão mera-
ele representa as tendências não direcionais do indivíduo. mente prontas para expressar-se, e é a atitude em termos de
O "Mim" representa o "outro" incorporado ao indivíduo. Logo, ele ação que nos determina que estímulo será (T. do A.).
compreende o conjunto organizado de atitudes e definições, com-
preensões e expectativas - ou simplesmente sentidos - comuns ao 2.3. A mente17
grupo. Em qualquer situação o "Mim" compreende o outro gene- Mead considera indispensável o aparato fisiológico do organismo
ralizado e, raramente, um outro particular (não grifo do A). para o desenvolvimento da mente (sistema nervoso central e córtex). É
Todo ato começa na forma de um "Eu" e geralmente termina na através dele que a gênese das mentes e dos selves se torna biologicamente
forma de um "Mim". Porque o "Eu" representa a iniciação do possível em indivíduos humanos através dos processos sociais de experiên-
ato antes dele cair sob o controle das definições e expectativas dos cia e comportamentos, dentro de uma matriz de relações sociais e intera-
outros (Mim). O "Eu", pois, o dá propulsão, enquanto o "Mim" ções. O cérebro é necessário para a emergência da mente, mas ele sozinho
dá direção ao ato. O comportamento humano, então, pode ser não faz a mente. É a sociedade-interação social que, usando os cérebros,
visto como uma série perpétua de iniciações de atos pelo "Eu" forma a mente. O comportamento humano inteligente é "essencialmente
e de ações retroativas sobre o ato (isto é, direcionarnento do ato) e fundamentalmente social" (TROYER, 1972: 324 - T. do A.).
l6
pelo "Mim". O ato é a resultante desta interação (T. doA). Como um self pode surgir somente em uma sociedade onde
A formação do self, assim como o ato humano, tem uma fun- haja comunicação, da mesma forma a mente só pode emer-

damentação social. Entretanto, nem o self nem o ato social são estáticos. gir em um self ou personalidade dentro da qual esta conver-

Eles evoluem ou se modificam de acordo com as mudanças nos padrões sação de atitudes ou participação social toma lugar. É esta
conversação, esta interação simbólica, interposta como uma
e nos conteúdos das interações que o indivíduo experiencia, não só com
os outros, como consigo mesmo. Por que o indivíduo poss~i um parte integral do ato, que constitui a mente (MEAD, 1936:

seif, é capaz de ter uma vida mental: ele pode fazer indicaç~s para SI pró- 384-385, citado por TROYER, 1972: 324 - T. do A.).

pno _ o que constitui a própria mente. Por que ele pOSSUi uma mente, A mente é concebida por Mead como um processo que se mani-
festa sempre que o indivíduo interage consigo próprio usando símbolos
significantes. Esta significância ou sentido é também social em origem,
16. Meltzer (1972: 11, nota 3) discute a aparente semelhança existente entre os conceitos
do "Eu" e do "Mim", de Mead, e aqueles do "ID", "EGO" e "Superego" de Freud. Ele
afirma que, enquanto o Superego age de forma frustrante e repressiva sobre o "ID", o 17. Por considerarmos os aspectos propriamente fisiológicos da mente fora dos propósitos
"MIM" proporciona a direção necessária e, muitas vezes, gratificante aos Impulsos desor- da presente discussão, não nos referiremos a eles. Remetemos, entretanto, o leitor a Mead
(1936).
denados do "EU". Outras comparações menores são elaboradas.

30 31
..
de clareza e à ambiguidade de certos conceitos relacionados com a natureza
conforme já referimos anteriormente. Da mesma forma a mente é social dos "impulsos"; falta de consistência no uso dos conceitos de "sentido"
tanto em sua origem como em sua função, pois ela surge do processo e "mente"; ambiguidade nos conceitos de "Eu" e "Mim", assim como de
social de comunicação. Dentro deste processo, o organismo seleciona self, simplificação no uso do conceito de "outro generalizado"18.,ouso lm- "
aqueles estímulos que são relevantes para suas necessidades, rejeitando preciso dos conceitos de "obieto"
"J e "imagem" , e , finalment e, a am b""
19u1-
outros que considera irrelevantes. Todo comportamento implica em uma dade no uso dos conceitos de "atitude", "gesto" e "símbolo" ao tratar do
percepção seletiva de situações. A percepção não pode, assim, ser conce-
comportamento infra-humano. Outra parte da crítica de Meltzer se dirige
bida como uma mera impressão de alguma coisa do exterior no sistema
às omissões da teoria de Mead: falta de poder explicativo por negligenciar
do indivíduo. o " porqueA" da con duta e restringir-se ao "como"; sua missão quanto ao
Por outro lado, o ser animal vive em um mundo de "objetos"
papel dos elementos efetivos no surgimento do self e da interação sociaP9:
que constituem seu ambiente circundante. Entretanto, o ser humano,
omissão, também, quanto à natureza (ou até eXl"steAncl"a) d" "
o mconSCiente
diferentemente do animal irracional, é capaz de "formar" seus próprios
ou subconsciente e dos mecanismos de ajustamento. Finalmente, Meltzer
"objetos", ou seja, através de sua atividade ele estabelece seu ambiente e
chama a atenção para a ausência de uma proposta metodológica na obra
os objetos sociais que dele fazem parte. O "objeto" é destacado pela men-
de Mead - o que será retomado por Blumer e discutido mais adiante - e
te através da percepção, possibilitando ao indivíduo planejar suas ações.
da falta de evidência sistemática para seus posicionamentos.
A atividade mental necessariamente envolve sentidos que são atribuídos
Quanto às contribuições, Meltzer (1969: 21-22) relaciona a in-
aos objetos, definindo-os. "O sentido de um objeto ou evento é simples-
flu~ncia de Mead na sociologia sobre Cooley, Thomas, Park, Burgess, E.
mente uma imagem do padrão de ação que define o objeto ou o evento"
Fans e Blumer, além de outros na área da psicologia sociapo; sua ênfase
(MELTZER, 1972: 18). nos aspectos encobertos, subjetivos do comportamento; sua crença de
Finalmente, depois da apresentação sumária e, certamente, sim-
~ue o comportamento humano é comportamento em termos do que as
plificada do pensamento de George Herbert Mead, pretendemos ter
slt~ações simbolizam e de que a mente e o self são sociais ao invés de bio-
mostrado a vinculação e a unidade orgânica existentes entre os principais
logt.camente dados; a importância que ele aloca à linguagem como me-
conceitos do autor, tais como a interação simbólica, a assunção de papéis,
camsmo ~e emergência da mente e do self; sua definição de self como um
o sentido, o self e a mente que caracterizam o ato humano. agente atlvo; sua concepção de "ato" enfatizando a tendência dos indiví-
duos de construir seu comportamento no curso da atividade e descobrir
2.4. Considerações críticas ~s ~bjetos e seu ambiente circundante; sua discussão da maneira como os
A obra de Mead, embora original e coerente, apresenta algumas
md~víduos constroem seu mundo comum; e, finalmente, a forma como
deficiências e incompletudes, fruto da forma como o autor elaborou seu e.le dumina o caráter da interação social, concebendo-a como o compar-
pensamento e da não intencionalidade de publicação de seus escritos na tdhar
, de comp ortamentos, ao mves " ' de ve-
A Ios como resposta passiva a um
época. Conforme já referido anteriormente, eles representavam, na sua estímulo externo.
maioria, apontamentos fragmentários e esquemas das aulas ou palestras
que ministrava e que foram selecionadas e editadas postumamente sem 18. Limitação
"d re me d"lad a, h" 0Je, pelos trabalhos sobre "grupo de referência" que criaram o
muita preocupação quanto à organização, justificando-se, assim, as repe- co
do"ncelto ""fi!Cantes " , aclarando a concepção de Mead de "outro generaliza-
e "outros Slgnl
(MET'T'
tições e as ideias mal-acabadas ou vagas. Meltzer (1972: 18-21) empre- LIZER, 1969: 20)"
ende uma avaliação crítica detalhada, dentro da perspectiva da psicologia 19. Problema superado por Cooley"
20 L" d "
social, do pensamento de Mead, especialmente no que diz respeito àfalta
~14;'h; ~n~'~1 T. No::omb, W con~~~JM
32 "T-lCH /U13(;
Muitas das críticas, acima referidas brevemente, têm como re- fundamental ao sentido que as coisas têm para o comportamento humano.
ferencial a psicologia social, perdendo, pois, seu impacto dentro de uma Ignorar isto sigrtifica "falsificar o comportamento em estudo" (BLUMER,
avaliação propriamente sociológica. Desta forma, não podemos perder de 1969: 3). Por outro lado, o interacionismo simbólico também se diferen-
vista que os insights de Mead foram de uma importância fu~damen~l. :~ra cia de outras abordagens quando concebe o sentido como emergindo do
o desmembramento do interacionismo simbólico em teonas SubsIdIanas processo de interação entre as pessoas, ao invés de percebê-lo seja como
tais como, entre outras 21 , o dramaturgismo de Goffman e a etnometodologia algo intrínseco ao ser, seja como uma expressão dos elementos consti-
de Harold Garfinkel que discutiremos mais adiante. tuintes da psique, da mente, ou de organização psicológica.
A utilização de sentidos, entretanto, envolve um processo inter-
2.5. A natureza da interação simbólica pretativo que acontece em duas etapas. Primeiramente o ato r indica a
Apesar da relevância dos estudos clássicos acima referidos, além si mesmo as coisas em direção das quais ele está agindo; ele aponta a si
de outros, eles não exibem uma sistemática capaz de representar com mesmo as coisas que têm sentido. Isto representa um processo social in-
clareza os pressupostos básicos da abordagem interacionista. Coube.a ternalizado no qual o ato r interage consigo mesmo de uma maneira bem
Herbert Blumer fazê-lo através de seus escritos iniciados em 1937, CUJa diversa daquela na qual interagem os elementos psicológicos - represen-
maioria está reproduzida em sua mais importante publicação, Symbolic tando a instância da pessoa engajada em um processo de comunicação
Interactionism, Perspective and Method (New Jersey: Prentice-Hall, Inc. / consigo mesma. Em seguida, em virtude deste processo, a interpreta-
Englewood Cliffs, 1969). . ção passa a significar a forma de manipulação de sentidos, ou seja, o ator
Blumer apresenta e discute os mais importantes aspectos da m- seleciona, checa, suspende, reagrupa e transforma os sentidos à luz da
teração simbólica tentando ser fiel ao pensamento de Mead, abordando situação na qual ele está colocado e da direção de sua ação. A interpreta-
sobretudo a natureza da interação simbólica, a natureza da sociedade e da ção é, pois, um processo formativo, e não uma aplicação sistemática de
vida em grupo, a natureza dos objetos, da ação humana e a ação conjun~a. sentidos já estabelecidos.
Vejamos seus pontos básicos. De acordo com este autor, são três premIS- Ao fundar-se nestas premissas, a interação simbólica é levada ne-
I

I sas básicas do interacionismo simbólico: cessariamente a desenvolver um esquema analítico da sociedade humana
I
, I
1. O ser humano age com relação às coisas na base dos sentidos que elas e da conduta humana que envolve certas ideias básicas 22 relacionadas com
têm para ele. Estas coisas incluem todos os objetos nsicos, outros seres a natureza das seguintes matérias: grupos humanos ou sociedades, inte-
humanos, categorias de seres humanos (amigos ou inimigos), institui- ração social, objetos, o ser humano como ato r, a ação humana e as inter-
ções, ideias valorizadas (honestidade), atividades dos outros e outras situ- conexões entre as linhas de ação. Em uma visão de conjunto estas ideias
ações que o indivíduo encontra na sua vida cotidiana. representam a forma como o interacionismo simbólico vê a sociedade
2. O sentido destas coisas é derivado, ou surge, da interação social que humana e a conduta.
alguém estabelece com seus companheiros. A sociedade humana ou a vida humana em grupo é vista como
3. Estes sentidos são manipulados e modificados através de um processo inter- consistindo de pessoas que interagem, ou seja, pessoas em ação que de-
pretativo usado pela pessoa ao tratar as coisas que ela encontra (grifo do A). senvolvem atividades diferenciadas que as colocam em diferentes situa-
Ao contrário das posturas encontradas em muitas abordagens das ções. O princípio fundamental é que os grupos humanos, assim como a
ciências psicológicas, o interacionismo simbólico aloca uma importância sociedade, "existem em ação" e devem ser vistos em termos de ação. É

21. Outras vertentes do interacionismo simbólico podem ser identificadas nos trabalhO'>
22 . Ou root Images,
. como prefere Blumer (1969: 6).
sobre "teoria do papel", "grupos de referência" e "teoria do self"·

34 35
a si mesmo, ou seja, o ser humano pode ser um objeto de suas próprias
através deste processo de constante atividade que estruturas e orgamza-
ações. Como outros objetos, o self surge do processo de interação social
ções são estabelecidas. Logo, a vida do grupo necessariamente pressup.õe
no qual outras pessoas estão definindo alguém para si mesmo. A fim de
a interação entre os membros do grupo ou, em outros termos, a SOCle-
tornar-se um objeto para si mesma a pessoa deve ver-se a si mesma "de fo-
dade consiste de indivíduos interagindo uns com os outros, e cujas ativi-
ra", ou seja, colocando-se no lugar ou no papel dos outros e vendo a si
dades ocorrem predominantemente em resposta de um a outro, ou em
própria ou agindo para si mesma daquela posição. Consequentemente,
relação de um a outro. Torna-se, pois, evidente que a interação não pode
nós vemos a nós mesmos através da forma como os outros nos veem
ser tratada _ embora admitida - meramente como um meio através do
ou nos definem.
qual as determinações do comportamento passam a produzir o próprio
O ser humano difere do animal porque ele é capaz de fazer "in-
comportament023 . dicações" para si mesmo. Isto significa que, ao confrontar o mundo de
Tomando um outro aspecto do pensamento de Mead, Blumer
objetos que o rodeia, ele deve "interpretá-lo" a fim de agir, construindo
discute a necessidade das partes interagentes "assumirem o papel do ou-
um "guia de ação" à luz desta interpretação e não somente "responder" aos
tro", a fim de que as indicações dirigidas à(s) outra(s) parte(s) sejam feitas
fatores que sobre ele atuam. A ação da parte do ser humano "consiste em
a partir do ponto de vista desta outra parte, de modo que sua intenção seja
tomar em consideração as várias coisas que ele nota, construindo uma li-
percebida. A mútua assunção de papéis é uma condição sine qua non da
nha de conduta na base de como ele as interpreta" (BLUMER, 1969: 15).
comunicação e da interação efetiva de símbolos. Quando uma pessoa faz
A perspectiva interacionista, pois, está em completo desacordo
indicações a outra, ela o faz indicando objetos significativos para ela, que
fazem parte de seu "mundo". Um objeto é visto, então, como qualquer com certas visões dominantes, tanto na psicologia como nas ciências so-
ciais que ignoram o processo de autointeração, através do qual o indi-
coisa que pode ser indicada ou referida.
O sentido dos objetos para uma pessoa surge fundamentalmente víduo manipula o seu mundo e constrói sua ação. Ao contrário, estas
da maneira como eles lhe são definidos por outras pessoas que com ela visões concebem a ação como originando-se de ou combinando-se com
interagem, consistindo o meio circundante de qualquer pessoa, unicamen- (motivos, atitudes, complexos inconscientes, configuração de estímulos,
te dos objetos que esta pessoa reconhece. Assim, para que se compreenda demandas de status ou de situação, etc.). Sumariando o processo de for-
a ação das pessoas, é necessário que se identifique seu mundo de objetos. mação da ação, Blumer (1969: 16) enfatiza:
Os objetos _ em termos de seus sentidos - são criações sociais, ou seja, são Nós devemos reconhecer que as atividades dos seres hu-
formados a partir do processo de definição e interpretação através da manos consistem no enfrentamento de uma sequência
interação humana. A vida de um grupo humano dentro da perspecti- de situações nas quais eles devem agir, e que suas ações são
va interacionista representa um vasto processo de formação, sustentação construídas à base do que eles notam, de como eles avaliam
e transformação de objetos, na medida em que seus sentidos se modifi- e interpretam o que eles notam, e do tipo de linhas de ação

cam, modificando o mundo das pessoas. projetadas que eles mapeiam.


Para ser capaz de interagir, o ser humano deve possuir um self. Ele As normas de ação humana se aplicam tanto para a ação indivi-
representa um organismo que não somente responde aos outros como dual como para a ação coletiva e, neste ponto, Blumer discute um último
~pecto do processo de interação simbólica, que se refere à "ação con-
23. Blumer (1969: 7) critica certas perspectivas psicológicas e sociológicas que ignoram Junta" (jomt
. actton)
. . Da mesma forma que a ação individual,
ou coletlva.
que a interação não pode ser concebida como interação de elementos psicológicos ou
societais, tais como: a interação entre atitudes, a interação de papéis sociais ou de compo-
a ação conjunta pode se constituir em objeto de estudo, não perdendo o
nentes do sistema social. Ele enfatiza que a interação social representa uma interação entre caráter de ser construída através de um processo interpretativo, quando
atores e não entre fatores que sobre eles atuam.
37
36
que sempre se utilizam de seu "mundo de objetos", de seu "conjunto de
a coletividade enfrenta situações nas quais é chamada a agir. A ação con- sen~idos" e d.e seus "esquemas de interpretação" que já possuem. A ação
junta, apesar de ser composta da atividade de diferentes linhas de ação conjunta, pOlS, representa não somente um "vínculo horizontal" com as
dos indivíduos componentes, tem um caráter sui generis, isto é, um caráter atividades dos participantes, como um "vínculo vertical" com suas ações
que torna a articulação ou a vinculação das ações individuais diferente do conjuntas prévias.
somatório destas ações24 • É assim que se pode falar de casamento, de tran-
sações comerciais, de família, de universidade ou de nação. Apesar de seu 2.6. Princípios metodológicos do interacionismo simbólico
caráter distintivo, a ação conjunta tem sempre que operar através de um Apesar de basear-se sobretudo em Mead na formulação e explici-
processo de "formação", ou seja, embora certas ações conjuntas aparen- tação dos princípios da interação simbólica, Blumer chama a atenção para
temente exibam formas estabelecidas e repetitivas de ação, cada uma de o fato de que um posicionamento metodológico definido está ausente
suas instâncias deve ser formada novamente. Estas formas decorrentes nos escritos daqueles que representam a tradição intelectual do interacio-
de ação permitem ao indivíduo partilhar sentidos comuns e preestabele- nismo simbólico, tais como Mead, Dewey, Thomas, Park,James, Cooley,
cidos sobre as expectativas de ação dos participantes e, consequentemen- Znaniecki, Baldwin, Redfield e With. Assumindo inteira responsabilida-
te, cada participante é capaz de guiar seu próprio comportamento à luz de ele se propõe a identificar os princípios norteadores da metodologia no
destes sentidos. caso da ciência empírica e a tratar especificamente com a postura metodo-
Aqui, Blumer novamente critica as visões dominantes na litera- lógica do interacionismo simbólico.
tura de ciências sociais que entendem estas formas repetitivas da ação Sua perspectiva, ao invés de filosófica, pretende-se empírica, ou
conjunta como a essência ou a forma natural da vida humana em grupo. seja, designada a prover um conhecimento verificável sobre a vida humana
Elas acreditam que a sociedade humana existe sob a forma de uma ordem em grupo e sobre a conduta humana. Consequentemente, algumas exi-
estabelecida de vida através da aderência a um conjunto de regras, nor- gências devem ser preenchidas. O primeiro pressuposto básico, que, na
mas, valores e sanções que especificam como os indivíduos devem agir verdade, representa uma redundância, é que uma ciência empírica pres-
em situações específicas. Exemplos disto são os conceitos de "cultura" e supõe a existência de um mundo empírico disponível para observação,
de "ordem social". O fato é que, por detrás da fachada da ação conjunta estudo e análise. Este mundo empírico deve representar sempre o ponto
percebida objetivamente, o conjunto de sentidos que sustém esta ação central de preocupação do pesquisador, o ponto de partida e o ponto de
conjunta tem sua vida própria. Não é verdade que são as regras que criam e chegada da ciência empírica. A "realidade", para a ciência empírica, existe
sustentam a vida em grupo, mas, ao contrário, é o processo social de vida grupal que somente no mundo empírico e somente lá pode ser procurada e veri-
cria e mantém as regras. ficada. Entretanto, é necessário que não se confunda esta posição com
As instituições, por exemplo, representam uma rede que não fun- outras de corte positivista. Ao contrário delas, esta postura se aproxima e
ciona automaticamente por causa de certa dinâmica interna ou sistema de aceita um dos postulados idealistas de que "o mundo da realidade" existe
requerimentos; funciona porque as pessoas, em momentos diferentes, fa- somente na experiência humana e que ele aparece somente sob a forma
zem alguma coisa, como um resultado da forma como definem a situação de como os seres humanos "veem" este mundo. A ciência empírica tem
na qual são chamadas a agir. Por outro lado, a ação conjunta necessaria- por fim captar imagens do mundo empírico sob estudo e testá-las através
mente surge e se configura a partir das ações prévias de seus participantes do escrutínio acurado do próprio mundo empírico. Assim sendo, a meto-
dologia se refere aos princípios que estão subjacentes e que direcionam o
24. Percebe-se aqui a semelhança entre a perspectiva interacionista com relação à "ação
processo global de estudo do caráter persistente de determinado mundo
conjunta" e os conceitos de "multidão" de Mannhein e de "consciência coletiva" de
Durkheim, no sentido de considerar seu caráter sui generis.

38
&1

empírico. Esta concepção de metodologia implica em tr~s i~portant~s a busca de dados, a tentativa de relacioná-los, assim como a interpretaião dos
pontos: 1) a metodologia compreende a inteira busca cIentIfica e nao resultados.
apenas alguns aspectos selecionados desta busca; 2) cada par~e da busca Com referência ao segundo aspecto de sua concepção de meto-
científica, assim como o ato científico completo em si, deve ajustar-se ao dologia - de que cada parte da busca científica, assim como do ato cien-
caráter persistente do mundo empírico sob estudo; logo, os métodos de tífico como um todo, deve moldar-se ao caráter persistente do mundo
estudo estão subservientes a este mundo e devem ser testados por ele; 3) empírico sob estudo e de que, consequentemente, os métodos de estu-
o mundo empírico sob estudo, e não os modelos da investigação cientí- do devem submeter-se a este mundo devendo também ser testados por
fica, provê a última e decisiva resposta a este teste (BL~MER., 196~: 24). ele -, Blumer critica a metodologia convencional por utilizar meios de
Percebe-se que esta concepção de metodologIa se dIstancIa da- estabelecer a validade empírica de certos estudos através de esquemas
quelas comumente usadas pelas escolas quantitat~vis.tas para quem a me- inadequados para captar o caráter específico do objeto de estudo. Estes
todologia se resume na discussão de métodos e tecmcas. . . meios seriam: a) a aceitação do protocolo científico; b) o desenvolvimen-
Blumer (1969: 24-26) identifica os 6 pontos maIS Importantes to de estudos baseados em réplicas; c) a crença no teste de hipóteses; d)
da investigação científica que são indispensáveis à ciência empírica e que o emprego de procedimentos operacionais. A utilização deste processo,
merecem ser conhecidas na sua inteireza: diz ele, não oferece qualquer segurança de que as premissas, os dados, as
a) A possessão e o uso de uma visão prévia ou esquema do mundo e~­ relações, os conceitos e as interpretações sejam empiricamente válidos.
pírico sob estudo. Representa um pré-requisito inevitável,já que é est~ vtsa.o Estes procedimentos mostram, a priori, que as premissas estabelecidas so-
que orientará aformulaião de problemas, a escolha dos tipos de dados, e a tdentl- bre a natureza do mundo empírico realmente o refletem, sem que um
ficai ão das premissas que caracterizam o mundo em estudo. _ exame acurado destas premissas seja empreendido. A tarefa do estudo
b) A elaboração de questões do mundo empírico e a conversao das científico, ao contrário, deveria se limitar a "levantar o véu" que cobre a
questões em problemas. Este é o passo que caracteriza propriamente o ato da área ou a vida do grupo que alguém se propõe a estudar. Isto só pode ser
investigaião , pois são os tipos de questões e os tipos de problemas colocados que efetuado mediante uma aproximação com a área e de uma "escavação"
nortearão o desenrolar da pesquisa. profunda através de um estudo cuidadoso. Esquemas metodológicos, que
c) A determinação dos dados a serem coletados e os meios que serão encorajam ou permitem aquele tipo de procedimento, traem o princípio
utilizados para fazê-los. É óbvio que é o problema que diftne o tipo de dados cardeal de respeito à natureza do mundo empírico.
a serem coletados, e que os meios usados dependem da natureza dos dados. Blumer (1969: 40) tenta fundamentar sua opinião perguntando:
d) A determinação das relações entre os dados. Pode-se chegar a isto seja Como pode alguém aproximar-se da área e escavá-la? Isto
através de um processo de niflexão acurada sobre as conexões existentes entre os não é uma questão simples de aproximar-se de determinada
vários tipos de dados, seja através de procedimentos estatísticos mecânicos como a área e olhar para ela. É um trabalho exaustivo que requer
análise de fator ou um esquema de correlaião . uma ordem elevada de (probing) tentativa cuidadosa e ho-
e) A interpretação dos resultados. É nesta fase final que o pesquisador ex- nesta, imaginação criativa e disciplinada, recursos e flexi-
trapola o âmbito dos resultados empíricos propriamente ditos e se debruia sobre bilidade no estudo, uma ponderação dos resultados e uma
o riferencial teórico ou sobre concepções que transcendem o âmbito de um estudo. constante disposição para testar e reorganizar as visões e
atentando para ofato de que se o riferencial teórico for falso ou não comprovado. imagens da área.
suas interpretações também o serão. Este processo não é específico das ciências sociais, mas também
f) O uso de conceitos. Os conceitos são fundamentais para o ato de investigação
das ciências naturais, como atestam os trabalhos de Darwin. Suas partes
e devem ser diftnidos a partir da colocação dos problemas. São eles que guiarão

40
&2

os atores notam, interpretam e avaliam as situações que eles


fundamentais são a "exploração" e a "inspeção" que distinguem clara- confrontam; e 4) a intervinculação complexa dos atas que
mente as formas de investigação naturalista do mundo, daquelas caracte- compreendem organizações, instituições, divisão de traba-
rísticas das metodologias em voga. A explora~ão, diz Blumer, é, por defini- lho e redes de interdependência são questões moventes e
ção, um procedimento flexível, no qual o estudioso passa de uma à outra não estáticas (1969: 50).
forma de investigação, adota novos pontos de observação, à proporção Finalmente, podemos dizer, com Blumer, que o interacionismo
que seu estudo progride, toma novos direcionamentos previamente não simbólico luta pelo respeito à natureza do mundo empírico e pela organi-
pensados e muda seu reconhecimento do tipo de dados mais relevantes zação de procedimentos metodológicos que reflitam este respeito.
quando ele adquire mais informação e melhor compreensão. Já a inspe~ão
representa um exame mais intensivo e focal do conteúdo empírico de 2.7. Variações na orientaçõo interacíonista 2S
todos os elementos analíticos usados para fins de análise, assim como o Embora tenhamos apresentado de forma mais extensiva a pers-
mesmo tipo de exame da natureza empírica das relações entre estes ele- pectiva de Blumer, devemos esclarecer que os deslocamentos tomados
mentos. A exploração e a inspeção representam, pois, os elementos car- pelos seguidores dos clássicos - Cooley, Mead, Thomas - levaram o sur-
deais da investiga~ão naturalista do mundo, ou seja, a investigação dirigida gimento de duas orientações diferentes: a Escola de Chicago e a Escola
para o mundo empírico tal qual ele se apresenta, ao invés de simulações de Iowa. A primeira tem em H. Blumer seu mais renomado expoente,
ou abstrações ou, ainda, substituições através de imagens preconcebidas. enquanto que a segunda segue a orientação de Manford Kuhn, falecido
O interacionismo simbólico, cujos fundamentos metodológicos em 1963. Ambos, entretanto, aceitam os principais postulados do intera-
foram discutidos acima, vale a pena insistir, é uma abordagem "terra a cionismo simbólico discordando, especialmente, com relação aos pontos
terra" do estudo científico da vida humana em grupo e da conduta hu- que passamos a discutir brevemente.
mana. Mas como é possível entendê-los? Vários são os procedimentos A divergência fundamental entre as duas escolas é, provavelmen-
que têm sido utilizados para fazê-lo e que consideram de uma forma ou te, no campo metodológico. Enquanto Blumer insiste na necessidade de uma
de outra os dois processos de exploração e inspeção, como a observação metodologia distinta no estudo do homem, conforme vimos anterior-
direta, o trabalho de campo, a observação participante, o estudo de caso, a ~ent,e, Kuhn enfatiza a comunalidade do método em todas as disciplinas
entrevista, o uso da história de vida, o uso de cartas e diários assim como CIentificas. Trata-se, aqui, da interminável e não acabada oposição entre os
de documentos públicos, painés de discussão e conversas. Blumer, em- pontos de vista humanístico e científico. Blumer procura tornar a socie-
bora reconheça a realidade destes procedimentos, está mais preocupado dade moderna inteligível, enquanto Kuhn busca as previsões universais
em ressaltar as implicações metodológicas da visão interacionista sobre da conduta humana através da tentativa de operacionalização das ideias
o grupo humano e a ação social que ele sumariza em quatro concepções centrais do interacionismo simbólico. Um exemplo disto é sua técnica
centrais: ~ captação das auto atitudes (selfattitudes), o teste TST 26, ou o "Teste das
1) as pessoas, individual ou coletivamente, estão preparadas
vmte afirmações". Kuhn acredita na possibilidade de transformar os
para agir à base dos sentidos dos objetos que compreendem conceitos • t as em vanavels
interac I· oms . , . empregadas para testar proposi-
_
seu mundo; 2) a associação das pessoas se dá, necessaria-
çoes empíricas . J'a BI umer lazJ:. ob·~eçao- a este tipO
. de operacionalização por
mente, sob a forma de processo no qual elas estão fazendo
indicações uma à outra e interpretando as indicações uma
da outra; 3) os atos sociais, não importa se individuais ou 25. Este tOpICO
'· e, baseado em Meltzer e Petras (1972: 43-57).
coletivos, são construídos através de um processo no qual - usa do teste para IdentIficar
26. Twenty Statement Test , o mais -- e mensurar as autoatitudes_

43
42
Até o momento, tratamos das subteorias que exibem limi-
acreditar que a realidade social não pode ser percebida através de "con- tes muito ambíguos. O mesmo é certamente verdadeiro
ceitos definitivos", mas sim através de "conceitos sensibilizantes" que são sobre a teoria do selJ com a qual tenho identificado minhas
mais capazes de expressar o caráter processual da realidade. próprias pesquisas. Era minha intenção em 1946 ou 1947
Nos dizeres de Meltzer e Petras (1972: 49): empregar um termo que não divergisse muito de um ponto
Enquanto a imagem de Blumer sobre o homem levou-o a
de vista emergente das ideias mais ou menos ortodoxas da
uma metodologia particular, as predileções metodológicas
interação simbólica e pudesse, por outro lado, possibilitar
de Kuhn levaram-no a uma imagem particular do homem.
uma distinção entre um corpo de orientação conjectural e
Estas diferentes perspectivas nos encaminham para a segunda
dedutivo como representado por Cooley, Dewey e Mead - e
diferença entre as duas escolas. Trata-se da questão sobre a natureza do
um conjunto de generalizações derivado, mas em desen-
comportamento humano em termos de liberdade ou determinação, ou,
volvimento, testado pela pesquisa empírica. Achei, mais ou
em outras palavras, sobre a questão: é o comportamento humano de-
menos na mesma época, que Carl Rogers havia denomina-
terminado ou indeterminado? Obviamente, a compreensão de Blumer
do suas noções na clássica psicológica como teoria do selJ
a respeito do caráter processual da interação leva-o a conceber este com-
tratando as várias discrepâncias entre o selJ real ou percebido
portamento como imprevisível e indeterminado. Em contraste, a Escola
e o selJideal. Desde então, o termo tem sido usado de forma
de Iowa rejeita não só o indeterminismo da conduta humana como a
variada, muitas vezes como nome guarda-chuva, para co-
explicação da inovação social baseada nos elementos emergentes e criati-
vos da ação humana. Consequentemente, o comportamento é visto como brir várias ou todas as subteorias consideradas aqui. , !

determinado pelas definições do autor, inclusive suas autodefinições que, O trabalho empreendido pelos estudiosos da interação sim- .1.\,
I

por sua vez, podem ser previstas na base das expectativas internalizadas. bólica na Universidade Estadual de Iowa seguiu em muitos
A terceira divergência diz respeito ao aspecto mais amplo da con- aspectos as proposições programáticas do sumário monográ-
cepção do self e a da sociedade, como processo ou como estrutura. Aqui fico em psicologia social dos anos 30 por Leonard CottreU
também é evidente a predileção de Blumer pela concepção dinâmica tan- e Ruth GaUaglier e do discurso presidencial de CottreU na
to do self como da sociedade, enquanto que, para Kuhn, os dois represen- Sociedade Americana de Sociologia; isto é, tem havido uma
tam estruturas cujos padrões são estáveis e previsíveis. atenção considerável com relação ao "selJ em si", e ao "role
Finalmente, Blumer e Kuhn diferem quanto aos níveis da intera- taking" (tomar o papel do outro) (p. 65-66).
ção humana. Blumer, fiel a Mead, admite a existência da interação simbó- No mesmo artigo, Kuhn critica o modelo dramatúrgico de
lica, característica dos humanos e da interação não simbólica, ou "conversa- Goffman por não permitir "generalizações testáveis" (p. 67).
ção de gestos", de caráter essencialmente baseado em estímulo-resposta, Pelo exposto até o presente, é evidente a existência de uma zona
característica tanto dos infra-humanos como dos humanos. A Escola de de interação significativa entre os trabalhos desenvolvidos sob a ótica da
Iowa ignora este último tipo de interação, tratando apenas dos aspectos psicologia social e aquela do interacionismo simbólico, especialmente
cognitivos e não afetivos do comportamento humano. aquelas que tratam da formação do self, dos papéis sociais, da linguagem
Reconhecendo a magnitude destas divergências, Kuhn decide dar e, até certo ponto, dos grupos de referência. Percebe-se assim a fluidez e
um outro nome à sua orientação, no sentido de distingui-lo do interacio- a artificialidade dos limites entre certas disciplinas ou áreas de conheci-
nismo simbólico, passando a chamá-lo de "teoria do self"· Ao analisar as mento, ao mesmo tempo em que se é chamado a refletir sobre a neces-
principais tendências do interacionismo simbólico, Kuhn (1972: 57-76) sidade de evitar certos chavões na sociologia como "psicologismo" ou
esclarece:

44
"reducionismo psicológico" ao se tratar do comportamento humano ou
ação social que não pode prescindir do aparato psicológico do ser huma- 2.
no e, como tal, deve ser levado em consideração. A etnometodología

1. origem e objeto
O termo etnometodologia foi cunhado por Harold Garfinkel
na década de quarenta quando empreendia um estudo sobre ')urados" na
Universidade de Chicago. Durante dois anos ele e Saul Mendlowitz
examinaram o material coletado sobre "o que os jurados sabiam sobre o
que eles estavam fazendo quando executavam seu trabalho de jurados"
(GARFINKEL, 1974: 16). A forma como estes descreviam suas ativida-
eles levava a crer que eles as definiam não em termos de "senso comum",
tampouco, em termos de "ciência", mas como algo ambíguo entre os
dois. Eles se preocupavam com a descrição "adequada" e em prover evi-
dência "adequada" para suas decisões; queriam desenvolver um trabalho
honesto, desejavam agir dentro da lei, serem legais; por outro lado, ti-
nham dificuldade de definir o que significa "ser legal". É certo que eles se
submetiam a uma metodologia peculiar que dificilmente se enquadrava
nos parâmetros definidos para a ciência convencional.
Ao descobrir a existência de termos como etnobotânica, etnofi-
siologia e etnofísica, Garfinkel entendeu que "etno" referia-se de alguma
forma à maneira como um membro de uma comunidade baseada em
conhecimentos de senso comum desenvolve estes conhecimentos sobre
seu mundo circundante. Seria a maneira peculiar de buscar, de dissecar,
de sentir, de ver, finalmente, certa realidade, porém, não somente ver,
mas "ver-relatando", porque a fala é uma parte constituinte do mesmo
ambiente sobre o qual se fala. A etnometodologia referir-se-ia, pois, a
"um estudo sobre a organização do conhecimento de um membro sobre
suas atividades ordinárias; sobre seu próprio empreendimento organiza-
do, onde o conhecimento é tratado por nós como parte do mesmo am-
biente que ele também organiza" (p. 18).
Naquele momento, etnometodologia significava mais um objeto
de estudo que um aparato científico. Entretanto, com os estudos desen-

46 47
volvidos não só por Garfinkel, mas sob sua influência, em meados da dé-
-.
..

Considerando que a etnometodologia se baseia no "fato relata-


cada de cinquenta, a etnometodologia adquiriu vida própria, consistência do", a linguagem ou a fala desempenha um papel fundamental no seu
e visibilidade dentro da sociologia. esquema analítico; assim sendo, Garfinkel afirma (1967: 11):
A perspectiva de Garfinkel é fruto da influência da fenomenolo- Eu uso o termo etnometodologia para referir à investigação
gia sobre ele exercida através de Alfred Schutz e Eduardo Husserl, entre das propriedades racionais das expressões indexicais e ou-
outros, que o levaram a posicionar-se contra certas versões durkheimia- tras ações práticas como resultado contingente e contínuo
nas que ensinam que a realidade objetiva dos fatos sociais é o princípio da prática artesanal da vida cotidiana.
fundamental da sociologia. Ao contrário, afirma Garfinkel (1967: VII): Esta prática da vida cotidiana é "interpretada" pelos atores; ou
A realidade objetiva dos fatos sociais como um contínuo seja, dentro da tradição de Mead, os atores sociais alocam "sentidos" aos
desenrolar das atividades da vida cotidiana, com as manei- "objetos" circundantes, através do processo de interação uns com os ou-
ras ordinárias e artesanais deste resultado sendo conhecidas, tros e consigo próprios, passando, então, a interpretar seu mundo signi-
usadas e reconhecidas por seus membros, é para aqueles ficativo. O conhecimento que os indivíduos adquirem sobre este mundo
que fazem sociologia um fenômeno fundamental. Porque e sobre si próprios é um conhecimento do dia a dia, um conhecimento
elas são o fenômeno fundamental da sociologia prática, elas ordinário que os leva a estabelecer o que é a realidade para eles.
representam o tópico predominante para os estudos etno- Para Garfinkel a sociedade é constituída de uma estrutura de re-
metodológicos. gras e conhecimentos compartilhados e tácitos que tornam a interação so-
A etnometodologia estuda e analisa as atividades cotidianas dos cial possível e estável. Para ele, o mundo social é possível por causa desta
membros de uma comunidade ou organização, procurando descobrir a densa estrutura coletiva de entendimentos tácitos de atividades mundanas
forma como elas as tornam visíveis, racionais e reportáveis, ou seja, como ordinárias e comuns do dia a dia. Ao contrário de Parsons, Garfinkel nã~
eles as consideram válidas, uma vez que a reflexidade sobre o fenômeno parece acreditar que a estabilidade social exija a internalização de normas
é uma característica singular da ação. Os estudos sobre o enfoque da etno- e valores; ela é, ao contrário, precária, frágil e ilusória. Entretanto, ele
metodologia, consequentemente, são dirigidos para a tarefa de detectar não está preocupado em mostrar como e por que as estruturas mudam,
como as atividades ordinárias dos indivíduos consistem de métodos para mas em demonstrar apenas que as regras tácitas existem e que elas repre-
tornar analisáveis as ações práticas, as circunstâncias, o conhecimento ba- s~ntam um respaldo seguro para a interação social. As regras sociais são
VIStas mais como convenções ou como regras de jogo, em todas as áreas da
seado no senso comum sobre as estruturas sociais e o raciocínio socio-
sociedade, incluindo a ciência, e dependem de procedimentos e regras
lógico prático, assim como de entender suas propriedades formais vistas
arbitrárias.
"de dentro" dos ambientes como parte integrante do próprio ambiente.
Muitos dos trabalhos empíricos de Garfinkel representam de-
Em outras palavras, a etnometodologia procura descobrir os "métodos"
monstrações do que acontece quando algumas pessoas, sem informar aos
que as pessoas usam na sua vida diária em sociedade a fim de construir a
o.utros de suas intenções, deliberadamente infringem entendimentos tá-
realidade social; procura descobrir também a natureza da realidade que
°
CItos, que ele chama de "reações das vítimas", que vão desde nervosis-°
elas constroem. mo, à raiva, irritação e medo.
A correção ou modificação do ambiente, entretanto, não é pre-
A "demonstração" etnometodológica, na interpretação de Gouldner
ocupação destes estudos, assim como não o é a busca de teorização. Para (1971: 394),
Garfinkel, as pessoas na sua vida cotidiana são "teóricos práticos" criando
[... ] é, com efeito, uma espécie de microconfrontação com
e modificando sentidos e compreensões das atividades uns dos outros.
uma resistência não violenta ao status quo. Ela é um substituto

48 49

e uma rebelião simbólica contra uma grande estrutura que
3.
a juventude não pode e, muitas vezes, não quer mudar. Ela
substitui a rebelião possível para a revolução inacessível27. A dramaturgia social de Goffman
Gouldner vê ainda o surgimento da etnometodologia de
Garfinkel, assim como da dramaturgia de Goffman, como uma reação
contra a escola estrutural-funcionalista de Parsons e o funcionalismo em
geral. Em ambos os casos, as essências são relegadas e as aparências exal- Erving Goffman, de origem canadense, exibe em seus trabalhos
tadas. Da mesma forma que Parsons, Garfinkel se preocupa com a ordem a influência marcante de WI. Thomas e G.H. Mead, assim como da cor-
social, mas, diferentemente daquele, este não aloca importância especial rente interacionista. Sua atuação maior é dirigida para os microprocessos
nem ao papel das gratificações mútuas nem aos valores morais comparti- societais, tendo contribuído de forma considerável para o desenvolvi-
lhados. Embora preocupado com a maneira como as definições da reali- mento da "teoria do papel" que se baseia, conforme já visto anteriormen-
dade social se estabelecem, ele não se interessa em saber como uma defi- te, especialmente quando analisamos Mead, no uso dos conceitos de self e
nição da realidade social se torna predominante em certo tempo, espaço de "assumir o papel do outro" (role taking). A originalidade de Goffman se
ou grupo; as diferentes definições não são vistas como competitivas em prende ao fato de ter criado um modelo de dramatização através do qual
termos dos grupos que as definem nem, em consequência, a concepção descreve e interpreta a ação social dos indivíduos na sociedade. Seu tra-
do mundo do senso comum é vista como tendo origem nas instituições balho mais conhecido, The Presentation cif Self in Everyday Life, escrito em
protegidas por diferenças de poder. A sociologia de Garfinkel é típica do 1959, tenta demonstrar a importância que as aparências exercem no com-
ativismo universitário americano da década de sessenta, sendo vista pelos portamento dos indivíduos e dos grupos levando-os a agir no sentido de
estudantes da época como uma rebelião contra a ordem das convenções transmitir certas impressões aos outros e, ao mesmo tempo, de controlar
sociais (GOULDNER, 1971: 390-395). seu comportamento a partir das reações que os outros lhe transmitam a
Apesar do avanço da etnometodologia como uma alternativa não fun de "fazer passar" uma imagem que difere do que eles realmente são.
só à teoria funcionalista como aos métodos quantitativos de modo geral, ~a isto, ele se utiliza de conceitos tais como palco, desempenho, audiên-
não está claro se ela representa uma área especial dentro da sociologia, CIa, observadores, peça, papel, ato etc. que caracterizam a forma como os
uma metodologia, ou uma escola. Talvez um pouco de cada ... É certo, indivíduos interagem, ou melhor, como eles desempenham seus papéis
porém, que ela se insere dentro da tradição do interacionismo simbólico no palco da vida. Esta visão aparentemente cínica da sociedade encobre
ao tentar ver o mundo através dos olhos dos atores sociais e dos sentidos sua repulsa das hierarquizações convencionais e sua crítica à sociedade
que eles atribuem aos objetos e às ações sociais que desenvolvem. utilitarista do século XX. Os homens estão constantemente lutando no
sentido de projetar uma imagem convincente aos outros. Eles são vistos
não como fazendo alguma coisa, mas fingindo ser alguma coisa.
Para Gouldner (1971: 381-385), a dramaturgia de Goffman mar-
ca a transição da ordem económica baseada na produção para uma nova
ordem centrada em um mercado de massas e promoção, incluindo o
mercado do self.. E m uma economIa .terClana
" . os h omens estão produzindo
mais "desemp en h os "d o que mercad onas.. Em uma economia e em uma
política sem alt ernatIvas
' " f ilCantemente dIferentes,
sIgm ' .
a vanedade de esti-
27. Cf. Studies in ethnomethodology. New Jersey: Prentice-Hall. / Englewood Cliffs, 1967.

50 51
tion RituaPl, em seguida, Relations in Public32 (1971), Strategic Interaction,
los susta a ilusão da escolha. A dramaturgia representa, pois, uma solução
a fascinating study of the espionage game people play 3 (1971) e, finalmente,
para o problema de como preencher a vida com excitamentos renováveis
Frame Analysis34 (1974). Os livros subsequentes ao The Presentation of Self,
mesmo quando não há esperança real em um futuro melhor.
Por outro lado, Goffman não está preocupado com a forma como conforme os títulos sugerem, tratam ainda da interação humana nas
suas variadas formas, embora neles esteja ausente a utilização do quadro
os homens tentam modificar as estruturas perniciosas da sociedade, mas
conceptual básico do primeiro. Seus pressupostos sobre o comportamen-
apenas com a forma como eles se adaptam a elas. Exemplo disto sã~ .os
to humano, entretanto, são os mesmos.
seus trabalhos sobre hospitais de doenças mentais, onde ele constrO! o
A segunda vertente, iniciada concomitantemente com a primeira,
conceito de "instituições totais"28, através do qual analisa a modificação
é fruto da experiência do autor adquirida através de seus estudos sobre
e quase destruição do self em internos sob a pressão das "rotulações" (la-
hospitais mentais. Fazem parte desta fase: Asylums, Essays on The Social
belling) , e das regras administrativas. No caso deste tipo de estudo, ele
Situation cif Mental Patients and Other Inmates 35 (1959), cujo conceito fun-
foge da dramaturgia e se limita ao uso da "teoria do rótulo"29 anterior-
damental é o de "instituição total", referindo-se a lugares de residência
mente desenvolvida por Edwin Lemert (1951) e cunhada por Howard
fechados, como manicómios, conventos, prisões etc., e de sua influên-
S. Becker em 1963 (1977: 575) em seus estudos sobre comportamento
desviante. O ponto fundamental desta teoria é a afirmação de que algué~
cia sobre o self. Outro livro característico desta fase é Stigma, Notes on the
Management cif Spoiled Identitr6 (1963), que também trata do self.
só se torna socialmente um louco, um ladrão ou um homossexual a partir
Tudo indica que Goffman deu prioridade ao primeiro tipo de
do momento em que é assim "rotulado". A importância desta descober-
enfoque, se utilizarmos como indicador suas publicações mais impor-
ta reside em ter desviado a atenção do comportamento desviante em si,
incluindo o daqueles que fazem as regras que designam alguém como tantes.
'"

desviante. Assim sendo, o ato desviante não pode ser somente compreen-
O valor de sua obra é inestimável tanto para a sociologia como J
para a psicologia social, vez que a segunda vertente tem um cunho mais
dido em termos do comportamento dos desviantes, mas através de uma
análise sociológica que admite que qualquer ato social envolve relações psicológico.
interativas; logo, o processo de interação dos desviantes com aqueles que
lhe são' próximos deve ser considerado.
A obra de Erwing Goffman exibe duas vertentes distintas; a
primeira, e mais conhecida, é a vertente dramatúrgica iniciada com sua
publicação The Presentation of Self in Everyday lifC (1959)30 que, c.o~forme já
nos referimos, analisa os "desempenhos teatrais" dos atores sOClais em suas
ações do dia a dia. Oito anos depois, em 1967, Goffman publica Interac-
31. Interação ritual.
32. Relações em público.
, estra t"eglca, um estu dofi'
33. Interarão ascmante d'
oJogo de espIOnagem
. que as pessoas jogam.
, . t s nte notar que M. Foucault (1977) desenvolve um conceito semelhante
28 . E m eres a - 34. Cuja melhor tradução seria Análise dos quadros de riferênâas sociais.
(instituições completas e austeras) sem ter conhecimento dos trabalhos de Goffman; el.
35.~ilos, ensaios sobre a situação social de pacientes mentais e outros internos, publicado em por-
E. Goffman (1959). tugues sob o título de Manicômios, convênios e prisões.
29. Cf GOFFMAN, E., 1963.
36. Estigma, notas sobre a manipulação da identidade espoliada.
30. A apresentação do self na vida cotidiana.
53
52
u
partes interagentes "assumam o papel do outro" e entendam seu "ponto
4. de vista". Só assim sua intenção será percebida. Da mesma maneira, os
Conclusões teóricas indivíduos se veem a si próprios através da forma como eles percebem
que os outros os estão vendo e definind0 38 • A partir daí eles elaboram suas
próprias "definições de situação" que vão influir em sua política de vida
assim como em sua personalidade. "Se as pessoas definem uma situação
Do exposto segue-se que: como real, ela é real nas suas consequências39 ".
a) O interacionismo simbólico concebe a sociedade como uma O meio circundante de qualquer pessoa consiste unicamente dos
entidade composta de indivíduos e grupos em interação (consigo mesmo objetos que essa pessoa reconhece. Para se compreender as ações das pes-
e com os outros), tendo como base o compartilhar de sentidos sob a forma soas é necessário a identificação de seu mundo de objetos4o •
de compreensões e expectativas comuns. O processo interativo é dinâ- d) A realidade existe somente na experiência humana e ela só
mico , variando de acordo com as diferentes situações que os indivíduos aparece sob a forma de como os seres humanos veem este mundo, ou
e grupos enfrentam. A sociedade humana consiste, pois, de pessoas em seja, são os aspectos objetivos e subjetivos observáveis que compõem a
ação. Toda atividade humana empiricamente observável surge de alguma realidade concreta41 •
unidade de ação. Da mesma forma, é através do processo interativo, no e) A forma mais apta à captação da realidade acima definida é
processo social de vida em grupo, que as regras são criadas, mantidas e aquela que propicia ao pesquisador "assumir o papel do outro" e ver o
mundo através "dos olhos dos pesquisados". Assim sendo, a observação
modificadas 37 .
b) A ação grupal ou coletiva consiste de unidades de ação (indiví- participante é o método por excelência dos estudos interacionistas.
f) O interacionismo simbólico é omisso com relação a vários :~ !
duos, família, escola, igreja, sindicato etc.) que desenvolvem ações para
enfrentar situações nas quais elas estão inseridas. Estas situações são per- aspectos concernentes não só à ação social, quanto à própria sociedade. O
cebidas de forma seletiva, ou seja, de acordo com as necessidades que, por conteúdo da interação social não é discutido, não parecendo importante
sua vez, são definidas a partir dos sentidos que as coisas têm para aquela se ela é conflitual ou basicamente acomodatícia. A existência, assim como
unidade de ação e que são derivadas da interação. A vida em grupo repre- os efeitos do poder dentro da sociedade e, consequentemente, sobre os
senta um processo de formação, sustentação e transformação de objetos, indivíduos e os grupos, não são abordados, o que nos parece uma lacuna,
cujos sentidos se modificam através da interação, modificando, conse- haja vista a influência que o poder pode exercer sobre "as definições de
quentemente, o mundo das pessoas.
38. CE NEMMI: O retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, assim como
c) A ação individual é uma construção e não um dado. Por esta
Fontenele (1982) e seu conceito de "aitíase". Os dois autores enfatizam a personalidade
razão, o comportamento humano é imprevisível e indeterminado. O ser dominada das populações subdesenvolvidas como fruto da experiênca de dominação so-
humano age com relação às coisas na base dos SC'lfidos que elas têm para bre elas exercidas através de séculos.
ele. Os sentidos são manipulados mediante um processo interpretativo 39. Vale aqui destacar a semelhança entre a "definição de situação" de Thomas e a "falsa
onde os indivíduos interagem consigo próprios usando símbolos signifi- consciência", de Marx, em termos das consequências que elas implicam no que concerne
à ação, seja ela individual, grupal ou de classe.
cantes. Para compreender o sentido das ações dos outros é mister que as
40. Percebe-se aqui a afinidade entre esta concepção e aquela de Paulo Freire, especial-
mente na concretização de seu método de educação/conscientização.
37. Posição oposta àquela defendida pelo estrutural-funcionalismo de Parsons que enfa-
tiza a subserviência dos indivíduos e dos grupos às normas e valores societais. Não são as 41. Aqui também é evidente a semelhança de concepção daquilo que constitui o real, entre
regras que criam e sustentam a vida em grupo, mas ao contrário é o grupo que as cria. Paulo Freire, juntamente com outros participacionistas, e o interacionismo simbólico.

54 55
situação" das unidades interativas e sobre sua ação social. Assim sendo, o
bem-estar do indivíduo e dos grupos, fruto de uma organização societal
equitativa e justa, não é cogitado, o que implica que as ações sociais de-
liberadas com vistas à mudança não são preocupações primordiais dos
interacionistas, não obstante as formas de contestação consubstanciadas
nas correntes etnometodológica e dramatúrgica ao status quo da sociedade
capitalista industrial.
A concepção interacionista não parece considerar os efeitos mútuos
entre os microprocessos de ação individual e grupal e as macroestruturas
societais que, a nosso ver, funcionam em termos de feedback constante.
A reação contra as análises estruturais que descuram os microprocessos SEGUNDA PARTE
levou ao extremo oposto, ou seja, ao negligenciamento da consideração
das influências exercidas por aquelas em relação a estes. Metodologias qualitativas

56

5.
O objeto das metodolog ias
qualitativas

Ao contrário do que muitos supõem, o método etnográfico não


é o único a possuir as características do método qualitativo. Uma delas
se refere à existência de obstáculos que impedem a observação direta e a
mensuração de certas variáveis. As razões para a utilização deste ao invés
dos métodos quantitativos, entretanto, podem divergir dependendo da
orientação metodológica básica do pesquisador. Enquanto os quantita-
tivistas justificam seu uso sob o argumento de impossibilidade de gera-
ção de dados estatísticos ou por razões de custo ou rapidez na pesquisa
(BOUDON, 1971, LAZARSFELD, 1969), os qualitativistas afirmam,
seja a superioridade do método que fornece uma compreensão profunda
de certos fenômenos sociais apoiados no pressuposto da maior relevância
do aspecto subjetivo da ação social face à configuração das estruturas so-
cietais, seja a incapacidade da estatística de dar conta dos fenômenos com-
plexos e dos fenômenos únicos. Entrementes, os dois estão acordes sobre
o tipo de método mais adequado para cada tipo de objeto de estudo: os
métodos quantitativos supõem uma população de objetos de observação
comparável entre si e os métodos qualitativos enfatizam as especificida-
des de um fenômeno em termos de suas origens e de sua razão de ser.
Lazarsfeld (1969: 169) identifica três situações onde se presta
atenção particular a indicadores qualitativos: a) situações nas quais a evi-
dência qualitativa substitui a simples informação estatística relacionada
a épocas passadas42 ; b) situações nas quais a evidência qualitativa é usada
para captar dados psicológicos que são reprimidos ou não facilmente arti-
culados como atitudes, motivos, pressupostos, quadros de referência etc.;
c) situações nas quais simples observações qualitativas são usadas como
indicadores do funcionamento complexo de estruturas e organizações
complexas que são difíceis de submeter à observação direta.

42. Ou a "fenômenos únicos", como chama Boudon (1971: 91).

59
c
Considerando que a história oral adquiriu apenas recentemente o
Exemplificam bem o primeiro tipo de situação os estudos de
Weber sobre o capitalismo moderno (A ética protestante e o espírito do capita-
status da técnica dentro do método científico, sendo, além disso, subsidiá-
ria da entrevista e da história de vida, inverteremos a ordem da discussão,
lismo), o de Lucien Goldman sobre o romance (La Sociologie du Roman) e
abordando em primeiro lugar a observação participante, que nos parece
o de Robert Merton sobre a máquina política americana (Social Theory and
mais abrangente, para, em seguida, tratarmos da entrevista e da história de
Social Structure)43. O segundo tipo está evidenciado em todos os estudos
interacionistas baseados na análise de documentos pessoais, entrevistas e vida, deixando para o final a apresentação da história oral.
observação participante sobre diferentes objetos, tais como: delinquência
juvenil, prostituição, relações raciais etc. O terceiro tipo de situação é ti-
pificado nos estudos de unidades sociais naturais, tais como: organizações
(empresa, hospital, prisão) e comunidades, também fortemente apoia-
dos nos pressupostos teóricos do interacionismo simbólico e das técnicas
referidas na descrição do segundo tipo. Da mesma forma estariam aqui
incluídos os estudos sobre um aspecto social particular como a estratifi-
cação ou a mobilidade social44 •
A segunda parte do presente trabalho trata, pois, de algumas téc-
nicas adequadas à captação de informações características de cada uma
das situações acima referidas. Complementar à documentação histórica,
a dados agregados etc., que permitem a reconstituição de um fato úni- ,
")
co, situa-se a história oral, apta a fornecer subsídios dentro dos limites da
dimensão contemporânea, uma vez que se baseia em depoimentos gra-
vados de atares sociais que recorrem à sua experiência e memória para
recompor fatos acontecidos no âmbito de sua temporalidade. A observação
participante, a história de vida e a entrevista, se prestam tanto a situações do
segundo como do terceiro; dependendo da problemática definida pelo
estudo, maior ênfase pode ser alocada a um ou a outro instrumento, em-
bora, na maioria das vezes, os três sejam utilizados.

43. Cf BOUDON, 1971.


44. BOUDON. Op. cit., refere-se a tipos de métodos qualitativos, como da pesquisa das
homologias estruturais, ou seja, da comparação entre componentes estruturais e a tentativa de
estabelecimento de parentesco entre eles. O trabalho de Weber já citado e o de Toquevillc
(L:Ancien Regime) teriam percorrido as duas etapas que caracterizam o método das homo-
logias estruturais: a) a constituição de tipos ideais e b) a pesquisa de correspondências
estruturais entre estes tipos. A análise funcional na etnologia e na sociologia também é
discutida e exemplificada como um método qualitativo que vem preencher a lacuna dos
métodos quantitativos e históricos, incapazes de fornecer uma explicação para certos as-
pectos das sociedades modernas que demandam análise sociológica.
61
60
a
"interação simbólica" do dia a dia. A sociedade quase que se confunde
6. com a interação simbólica que representa seu próprio substrato.
A observação participante A antropologia, nas suas origens, é subsidiária de Morgan, Spencer
e Durkheim, antropólogos e sociólogos, preocupados com a classificação
e análise funcional de estruturas sociais (EVANS-PRITCHARD, 1980:
225)45. Já a corrente interacionista se desenvolveu através dos emprés-
timos que fez à psicologia social, de orientação fenomenológica, que
1. Origens
O método ou técnica da observação participante tem sido visto abriu a porta dos Estados Unidos a Husserl (BRUYN, 1966: 90). Logo,
por alguns como se originando na antropologia, a partir dos estudos e ex- o interacionismo simbólico tem origem, mais na psicologia social que na
periências de campo de Malinowski (DURHAM, 1978: 47) e, por outros, própria sociologia, sendo posteriormente adaptado e desenvolvido, con-
como tendo sido iniciado pela Escola Sociológica de Chicago, na década tribuindo com resultados relevantes para a compreensão e explicação da
de vinte (DOUGLAS, 1973: 86). Este aspecto, aparentemente sem re- ação humana e da sociedade.
Considerando que nossa preocupação se dirige às correntes inte-
levância, vai explicar o surgimento de importantes concorrentes dentro
da sociologia nos Estados Unidos, que concorreram concomitantemente racionistas na sociologia, não trataremos de desenrolar ulterior da obser-
com os estudos antropológicos das primeiras décadas do século xx, espe- vação participante, dentro da antropologia.
cialmente na Inglaterra. Refiro-me ao interacionismo simbólico, à etno- Dois grupos importantes cresceram na sociologia americana,
metodologia, ao dramaturgismo social, à teoria do rótulo, entre outras. dentro desta perspectiva, desenvolvendo estudos de natureza diferente:
Os termos gerais, "trabalho de campo", "pesquisa de campo", "es- a) os sociólogos que faziam "trabalho de campo" concentrados nos estu-
tudo de campo", eram usados tanto por antropólogos, para se contrapor dos de comunidade e de pequenos grupos usando a observação participante;
aos trabalhos que utilizavam o método comparativo dos "antropólogos b} os interacionistas simbólicos que concebiam os "sentidos" das ações
de gabinete" (RADCLIFF-BROWN, 1980: 196), como por sociólogos dos indivíduos e grupos como problemáticos, também praticando a ob-
americanos que reagiam à crescente influência da teoria funcionalista, na servação participante. Os primeiros eram associados com o tipo de "so-
sociologia, que sofreu um vertiginoso crescimento no período compre- ciologia naturalista" que enfatizava o trabalho de campo e a observação
endido entre as décadas de trinta e cinquenta. As duas áreas, antropolo- direta. Estes estudos foram frutos da preocupação sociológica americana
gia e sociologia, lançaram mão de técnicas semelhantes na abordagem com o declínio das antigas formas de comunidade46 • A partir da década
do real, especialmente no valor que alocaram à participação do pesqui- , de cinquenta a preocupação teórica deste grupo passou a ser "as organi-
sador no local pesquisado, e à necessidade de ver o mundo através dos zações" que substituíram as comunidades como local onde os indivíduos
olhos dos pesquisados. Parece-nos, entretanto, que existe uma diferença viviam a maior parte do seu tempo (DOUGLAS, 1973: 88). Percebe-se
fundamental entre as duas disciplinas no que tange à razão da utilização
da observação participante como técnica de coleta de dados. Enquanto 45. ~ antropologia linguística também trata do "sentido", mas somente no que tange ao
a antropologia busca o "sentido das coisas" para melhor compreender o senudo dos termos ou semântica, e não do sentido da ação social.
funcionamento de uma sociedade primitiva, ou de um grupo humano, 46. Exemplo de estudo de comunidade é o magnífico trabalho dos Lynds: LYND, R.S. &
LYND, H.H. Middletown. Nova York: Harcourt/Brace, 1930. Dos mesmos autores Midd-
a sociologia - em sua vertente interacionista - fá-lo porque acredita que
~ in Traitsition. Nova York: Brace, 1937. Exemplo de estudos de pequenos grupos é o,
toda a organização societal está assentada nos "sentidos", nas "definições" hOJe, clássico Street Comer Society de William Foot Whyte. Chicago: University of Chicago
e nas "ações" que indivíduos e grupos elaboram ao longo do processo de Press, 1943.

63
62
aqui como a escolha dos objetos de estudos está estreitamente vinculada
• diverge dos seus antecessores por entender que a observação participante
à problemática social, variando no tempo e no espaço. Em outras pala- representa um processo de interação entre a teoria e métodos dirigidos
vras, as preocupações sociológicas são de certa forma condicionadas pela . pelo pesquisador na sua busca de conhecimento não só da "perspectiva
realidade histórica na qual vive o sociólogo. Retornaremos a este ponto humana" como da própria sociedade.
mais adiante. A seu ver, o requisito cardeal de uma ciência empírica é o respeito
Os interacionistas simbólicos, em razão da sua própria preocu- pela natureza do objeto pesquisado. Ao invés de aplicar à vida humana
pação em descobrir o "sentido" que as coisas têm para a ação humana, esquemas importados dos procedimentos científicos, ele enfatiza a ne-
julgavam que as técnicas convencionais não eram capazes de captar este cessidade de se reconhecer em primeira instância o caráter peculiar dos
sentido, acreditando ser a observação participante a mais apropriada para seres humanos, seu comportamento e sua vida em grupo. Para isto, é
fazê-lo. Embora ambos os grupos tenham-na adotado, foi o primeiro que necessário que a própria metodologia que se pretende adotar na busca de
mais contribuiu para a discussão e sistematização da observação partici- conhecimento sobre o homem e sua vida seja informada por uma teoria
pante enquanto técnica de captação de dados, especialmente através da sobre a própria natureza deste homem; uma metodologia que ajude na
formulação das categorias subjetivas da teoria sociológica, como 'justi-
experiência de Whyte (1943)47.
Recentemente a expressão "trabalho de campo" passou a incluir
ça", "liberdade", "confiança", "comunidade" e "propósito", que são fun-
damentais para a natureza da sociedade e que não podem ser explicados
não somente a observação participante como a entrevista, a história de
através de categorias tais como "estrutura", "função", "ação", "sistema" e
vida e, às vezes, todo o processo metodológico de um estudo empírico.
"expectativas de papéis" (BRUYN, 1966: 8)48.
Passemos a examinar cada uma.
2. Definição e objeto Segundo Bruyn (1966: 13 nota 21) Florence Kluckhohn tem sido
A observação participante não tem gozado de uma definição cla-
referida na literatura sobre observação participante como a primeira a ter
ra nas ciências sociais. Pode-se dintinguir, entretanto, diferenças básicas
utilizado o termo e a ter definido a regra de que o observador participante
entre algumas concepções em termos de suas grandes linhas de aborda-
deve compartilhar nas atividades de vida e sentimento das pessoas em ter-
gem. No intuito de evidenciar estas diferenças, propomo-nos a analisar mos de relações face a face, regra derivada de seu trabalho de campo em
as definições clássicas de observação participante, contidas em Eduard C. uma vila mexicana. Ela descreve a observação participante como:
Lindeman, Florence Kluckhohn, Morris S. Schwartz e Charlotte Green (... ] um compartilhar consciente e sistemático, conforme as
Schwartz e, finalmente, Severyn T. Bruyn. circunstâncias o permitam, nas atividades de vida e, eventu-
Conforme veremos a seguir, os dois primeiros exibem a convic- almente, nos interesses e afetos de um grupo de pessoas 49 •
ção de que a observação participante se resume a uma importante técnica Entretanto, diz Bruyn, a utilização do conceito tem precedentes.
de coleta de dados, empreendida em situações especiais e cujo sucesso '&ata-se de Eduard C. Lindeman da Universidade de Columbiaso , prova-
depende de certos requisitos que a distinguem das técnicas convencionais
de coleta de dados, tais como o questionário e a entrevista. Schwartz e
48. Apesar de reconhecer a importante contribuição de Talcott Parsons para a compreen-
Schwartz concebem a observação participante não só como um instru- são da "ação social", Bruyn critica a ausência de uma metodologia naquele autor, assim
mento de captação de dados, mas também como instrumento de modifi- como a inadequação de certos conceitos por ele utilizados.
cação do meio pesquisado, ou seja, de mudança social. Finalmente, Bruyn 49. KLUCKHOHN, Florence. "The Participant - Observer Technique in Small Comu-
ninities".AmericanJournal ofSociology, 46,1940,331.
47. Cf um excerto de Street Comer Society (Appendix), p. 298-309, em Alba Zaluar Guima- SO. LINDEMAN. Eduard C. Social Discovery: An Approach to the Study ofFunctional
rães [org.]. Desvendando máscaras sociais, sob o título Treinando a observação participante. Groups. Nova York: Republic Publishing Co., 1924.

64
mesmo tempo modifica e é modificado por este contexto.
velmente o primeiro americano a divisar e descrever o papel do observa- O papel do observador participante pode ser tanto formal
dor em estudos científicos sobre grupos humanos: como informal, encoberto ou revelado, o observador pode
Para fins experimentais os observadores que cooperam têm
dispensar muito ou pouco tempo na situação da pesquisa;
sido chamados de "observadores participantes". O termo
o papel do observador participante pode ser uma parte in-
implica não que os observadores estejam participando do
tegrante da estrutura social, ou ser simplesmente periférica
estudo, mas que eles estão participando nas atividades do
com relação a ela (p. 19)52.
grupo sendo observado [... ] Existem muito poucas pessoas
Percebe-se que cada definiçã0 53 aqui examinada acrescenta um
disponíveis e aquelas que o são devem ser treinadas. Este
novo componente especificador à anterior. Enquanto Lindeman enfatiza
treinamento contém suas próprias dificuldades. De obser-
a necessidade da presença constante do observador nas atividades do grupo
vador participante ser treinado para olhar exatamente os
pesquisado a fim de que ele possa "ver as coisas de dentro", Kluckhohn
mesmos fatores que são vistos por um observador do lado
utiliza os termos compartilhar consciente e sistemático nas atividades do grupo
de fora? Este método levaria inevitavelmente ao erro, pois
c nos seus interesses e afetos, o que implica, em primeiro lugar, que a ob-
o observador participante deve ser livre para ver muitas coi-
Servação participante não se concretiza apenas através da participação do
sas que um observador de fora jamais pode ver (op. cit., p.
pesquisador, mas que essa participação deve significar um envolvimento
191). 51 Riaior do pesquisador, um compartilhar, não somente com as atividades
Já em 1955, Morris S. Schwartz e Charlotte Green Schwartz , a
dltternas do grupo, mas com os processos subjetivos - interesses e afetos -
partir de um estudo em um hospital de doentes mentais, apresentara~
ciue se desenrolam na vida diária dos indivíduos e grupos. Neste sentido,
uma sistematização da observação participante dentro de três perspectI-
notamos a semelhança entre o que sugere Kluckhohn e a concepção
vas: 1) uma apresentação operacional do processo, na forma como ele é
de Mead sobre a necessidade dos indivíduo~ (assim como de qualquer
experienciado do ponto de vista do observador; 2) uma descrição das par-
pesquisador) "assumirem o papel do outro" para poder atingir o sentido
tes componentes do processo em termos das transações do observador no
campo social que ele está observando; e 3) uma avaliação do instrumento
52. É esta a def~nição usada por A. Cicourel em "Teor;a e métodu em pesquisa de campo".
humano e as consequências de sua utilização na cole ta de dados. Dentro
ln: GUlMARAES, A.Z. (org.). Desvendando máscaras sociais [Capítulo II do livro Method
deste contexto, a observação participante é definida: andMeasurement in Soci%gy. Nova York: The Free Press, 1969 (do mesmo autor)].
Para nossos fins (grifo no original), definimos a observação 53. Um outro exemplo de definição da observaçãú participante muito referido na litera-
participante como um processo no qual a presença do ob- ~especializada é a de Howard Becker e Blanche Geer (1969: 322-331), e de McCall-
servador numa situação social é mantida para fins de in- Sunrnons (1969: 1-5). "Por observação participante nós entendemos aquele método no
vestigação científica. O observador está em relação face a qual. o observador participa na vida diária das pessoas sob estudo, seja abertamente, no pa-
peI d~ pesquisador, seja de forma encoberta, através de um papel dissimulado, observando
face com os observados, e, em participando com eles em
as COISaS que acontecem ouvindo o que é falado e questionando as pessoas no espaçr de
seu ambiente natural de vida, coleta dados. Logo, o obser- algum tempo" (Becker e Geer).
vador é parte do contexto sendo observado no qual ele aO [...] .A observaça-o part··
IClpante e,mais
. sensItivamente
.. .
Vista, operacionalmente, como um
coryunto
hre situ de
_ m't
e od.os e tecmcas
,. q~e sao
- caractenstlcamente
.. empregadas em estudos so-
a açoes sociais ou orgamzaçoes sociais complexas de qualquer tipo ... Nós vemos
51. SCHWARTZ, Morris S. & SCHWARTZ, Charlotte Green. "Problems in Partici- ~rvação participante, não como um método único, mas como um tipo de empre-
pant Observation". Ameruan Journal oi Sociology (1955) 60, 343-354 [publicado novamente ~ento de pesquisa, um estilo de combinação de vários métodos dirigidos a um fim
em McCall-Simmons. Issues in Partuipam Observation, a Text anti Reader. Massachusetts.
P3nicular" (McCall-Simmons).
Addison-Wesley Publishing Company, 1969, p. 89-104].
67
66
J
de suas ações. Desta forma, o compartilhar os aspectos subjetivos das dentro da situação social que observa participativamente, sugerem que a
ações das pessoas pesquisadas parece-nos um requisito fundamental na escolha de um ou de outro tipo depende da natureza dos dados desejados,
compreensão da ação humana. Certamente que, em se tratando de um embora tenham constatado que se o observador participante trabalha por
pesquisador que aceita os princípios convencionais do método científico, um longo período na mesma situação, ele desenvolve a tendência de par-
ele deve se esforçar por captar o dado com um mínimo de intervenção de ticipar mais ativamente (1969: 96-98).
sua parte, fazendo o possível para manter certa distância entre si mesmo Referindo-se ao "observador ativo" os autores esclarecem:
e os pesquisados, daí por que este envolvimento sugerido por Kluckhohn Em nosso segundo caso de observação participante ativa,
acarreta riscos de obliteração de percepção por parte do observador e, ob- o observador, em seu papel formal de investigador, plane-
viamente, de vieses na interpretação dos dados. Voltaremos a este ponto ja intervenções na estrutura social [... ] com o propósito de
desenvolver um ambiente mais terapêutico. Ele tenta de-
mais adiante.
A definição de Schwartz e Schwartz, a mais completa, aceita não senvolver uma base empírica para introduzir mudança social
só a presença constante do observador no contexto observado como a (grifo nosso) na estrutura social 54.

interação face a face como pré-requisitos da observação participante, já Pelo exposto, constata-se que os autores não veem incompati-
constantes das definições anteriores. Estes autores incorporam, entretan- bilidade entre "objetividade" e "intervenção", ao contrário, a natureza e
to, quatro aspectos novos: a) o fato de que a observação participante tem qualidade dos dados se aperfeiçoam quando o pesquisador desempenha
como finalidade a coleta de dados; b) esclarecimentos sobre o papel do ob- um papel ativo na modificação de certas condições do meio, em benefí-
servador, que pode ser revelado ou encoberto, formal ou informal, parte cio dos observados. Suspeitamos que podemos encontrar na definição de
integral ou periférica quanto à estrutura social; c) referências ao tempo Schwartz e Schwartz afinidades com a pesquisa-ação e pesquisa-participante,
necessário para que a observação se realize, o que pode acontecer tanto que discutiremos na terceira parte deste trabalho.
em um espaço de tempo curto como longo; d) chamam a atenção para Finalmente, Bruyn (1966: 12) encara diferentemente a observa-
o papel ativo do observador enquanto modificador do contexto e, ao mesmo ção participante:
tempo, como receptáculo de influências do mesmo contexto observado. Para nossos fins (grifo nosso), examinaremos a observação
Enquanto os três primeiros pontos fornecem especificações no- participante como uma metododologia, isto é, em termos
vas sobre os procedimentos e características ligados à observação partic- de seus princípios e sua filosofia, como uma orientação bá-
ipante, o último, aparentemente, transgride o princípio da "objetivi- sica para o estudo da sociedade humana.
dade" por admitir uma atuação ativa do observador no meio. Coloca-se Desta forma, o autor amplia a concepção da observação partici-
aqui o problema da inteiferência inevitável do observador, pelo simples fato pante, que ao invés de ser vista como uma simples técnica de coleta de
de ele representar alguém "de fora" - quando desempenha o papel de dados, como nas citações anteriores, passa a ter uma vinculação estreita
pesquisador revelado - e da inteiferência deliberada em instâncias, onde o pes- com a teoria que direciona a própria prática da observação participan-
quisador tem por objetivo, não somente a coleta de dados, mas também a te, fundamentando-a e justificando-a como a melhor forma de captar
modificação do meio, ou seja, a introdução de mudanças sociais no ambi- o sentido encoberto da ação humana bem dentro da tradição de Mead,
ente. Schwartz e Schwartz, ao distinguirem os papéis do "observador passi- Cooley, Thomas e Znaniecki e, por que não dizer, de Weber. Esta con-
vo"- aquele que interage com os observadores o mínimo possível- e do cepção envolve também o pressuposto de que a sociedade é construída a
"observador ativo", que maximiza sua participação, no sentido de obter
uma melhor qualidade dos dados, e integra seu papel com outros papéis 54. Os autores desenvolvem seu trabalho em um hospital de doenças mentais.

68 69
partir do processo interativo de indivíduos e grupos que agem em função de uma dialética entre o ideal teórico do método científico e a prática
dos sentidos que o seu mundo circundante representa para eles. Ela se possível de sua utilização, desenvolveram uma crítica interna que levou à
baseia, pois, em um princípio sobre a própria natureza do homem e da sistematização de cada um dos passos da observação participante, sempre
sociedade. Esta perspectiva se opõe frontalmente àquelas que concebem a respeitando o princípio do rigor científico. Além desta crítica interna,
ação social como uma consequência de fatores estruturais atuantes sobre também a crítica externa, oriunda dos aspectos dos adeptos de correntes
o indivíduo e que, consequentemente, descartam ou minimizam o papel quantitativas, contribuiu para o seu aperfeiçoamento.
do homem na história, ou seja, a liberdade humana •
55 É importante enfatizar que não foi a observação participante a
Bruyn continua, pois, a exposição de sua perspectiva sobre a ob- responsável pelos importantes estudos que a utilizaram, mas, ao contrá-
servação participante, definindo o que chama de "axiomas" e "corolários" rio, foram as problemáticas oferecidas pelos estudos que geraram a ne-
relacionados com o papel do observador participante: cessidade de sua utilização. A técnica surgiu da natureza do problema.
Axioma 1: O observador participante compartilha da vida Não fosse o surto de problemas sociais nos Estados Unidos nas décadas
ativa e dos sentimentos das pessoas em termos de relações de vinte e trinta ou, talvez, melhor dizendo, o surto de conscientização de
face a face. problemas - por parte não só dos cientistas sociais como, algumas vezes,
Corolário: o papel do observador participante requer ao por parte do próprio Estado - tais como delinquência juvenil, prostitui-
mesmo tempo desprendimento e envolvimento pessoal. ção e crime, e outros, a técnica da observação participante não teria flo-
Axioma 2: O observador participante é uma parte normal rescido e não teria causado o impacto que causou ao desvendar aspectos
da cultura e da vida das pessoas sob observação. da estrutura social e de sua dinâmica, levando à reformulação e criação de
Corolário: o papel científico do observador participante é novos conceitos para explicar a realidade social.
interdependente com seu papel social na cultura do obser- Pode-se dizer que as preocupações do método científico con-
vado. vencional com a neutralidade e objetividade por parte do pesquisador, a
Axioma 3: O papel do observador participante reflete o pro- validade e credibilidade dos dados, os níveis de qualidade dos resultados,
cesso social de vida em sociedade (p. 13-20). os tipos de vieses introduzidos pelo pesquisador e pelos instrumentos de
O autor evidencia, assim, a importância que aloca ao papel do c:oleta etc., eram comuns para aqueles que praticavam tanto a metodolo-
observador participante, insistindo que ele representa o cerne da meto- gia quantitativa quanto a qualitativa, embora, na maioria das vezes, fosse
dologia nas Ciências Sociais (p. 22). constatada uma enorme distância entre o ideal e a prática científica. O
À proporção que a observação participante se torna uma téc- reconhecimento da inevitabilidade de interferência da ideologia de classe
nica crescentemente adotada por cientistas sociais em suas pesquisas, do pesquisador, por exemplo, não deveria impedir que se buscasse a neu-
também gradualmente foram sendo evidenciados não só os problemas tralidade e a objetividade.
que sua utilização desencadeava, como também suas vantagens como O calcanhar de Aquiles da observação participante, entretanto,
instrumento capaz de captar certos tipos de informação. Foi assim que parece situar-se, principalmente: a) na relação observador/observados e
a Escola de Chicago, com cientistas sociais de outras orientações, dentro na ameaça constante de obliteração da percepção do primeiro em conse-
~uência do seu envolvimento na situação pesquisada, envolvimento este
55. A. Giddens comenta a este respeito: "A história não é recuperada como um projeto Inerente à própria técnica, que lhe confere a natureza que a distingue de
humano; mas ela também não é compreensível senão como um produto de projetos hu- Outras técnicas; b) na impossibilidade de generalização dos resultados;
manos" (p. 171) ("History is not retrievable as a fiuman project, but neither is it compre- por ser uma técnica que busca mais os sentidos do que as aparências das
ensible except as the outcome ofhuman projects").

70 71
ações humanas, ela coloca seus próprios limites; por exemplo, não pode que são fontes de vieses e que emanam do exterior, ou seja, da própria
pretender a abrangência do survey embora o supere em termos de profun- situação da observação (inibições provocadas pela presença de um estra-
nho ao meio, o pesquisador, por exemplo). Por causa de sua extrema fle-
didade dos dados. Sua força é, também, sua fraqueza ...
Tendo a observação participante adquirido status científico a des- xibilidade, ela é ameaçada constantemente por fatores de contaminação
peito de não preencher certas normas, como a da generalização, coloca-se que podem provocar distorções dos próprios dados adquiridos, levando a
a questão de saber se outros postulados do método científico poderão interpretações errôneas sobre o fenômeno estudado. Alguns destes fato-
ser violados por outras técnicas sem que a própria natureza científica do res externos são: 1) o viés sociocultural do observador, ou seja, o viés de
partilhar a perspectiva e valores de sua própria cultura de seu tempo e
método seja ameaçada.
Outra questão seria saber até que ponto o respeito ao método de seu meio com o desempenho do papel de pesquisador; 2) o viés pro-
estaria coagindo a emergência de outros tipos de conhecimentos, conven- fissionaVideológico, que induz à seletividade da observação, dependendo
cionalmente não incluídos no seu domínio. No âmago destas questões si-
do quadro de referência ou do tipo de treinamento recebido pelo pesqui-
sador; 3) o viés interpessoal do observador que moldará, a partir de suas
tua-se uma outra bem mais profunda, que coloca dúvidas não mais sobre
emoções, defesas etc., o que ele "verá" como significativo e a maneira como
a natureza da ciência, mas sobre sua finalidade. Se aceitarmos o suposto
ele perceberá a interação humana; 4) o viés emocional do observador com
de que o sentido da ciência reside no benefício que ela aporta ao homem,
relação às próprias necessidades como pesquisador; em outras palavras,
questionar este benefício significa, em consequência, questionar o mé-
todo. Como sair, então, deste impasse? Seria um retorno aos ditames do anecessidade de confirmar suas hipóteses, de "estar certo", pode levá-lo a
senso comum? Ou o abandono do método como propõe Feyerabend?56 i>rçar uma "adequação" do real a suas teorias prévias sobre o fenômeno;
Ou, ainda, a adoção de uma outra via que leva mais rápido e eficiente-
5) o seu viés normativo acerca da natureza do comportamento humano
mente o conhecimento ao homem em circunstâncias especiais que pro- pode conduzi-lo a juízos de valor que prejudicarão não só sua coleta de
dados como sua análise e interpretação.
picie sua ação afetiva, na transformação de suas condições de vida? Mas
Não foi nosso propósito discorrer sobre os procedimentos prá-
não estaríamos assim falando de ação política e não mais de ciência ou de
método? Onde situar as fronteiras entre ciência e política? Será a vida do ticos da observação participante, mas apenas distinguir sua natureza para
homem composta de compartimentos estanques que a própria ciência lhe tomar possível certas comparações entre as diferentes técnicas que dis-
impôs? Deve toda a ciência ser questionada em termos de sua finalidade cutiremos ao longo deste trabalho. Neste momento, outros pontos serão
elucidados. Estas outras técnicas são a história de vida, a entrevista e a
ou somente aquela que trata do homem? E se assim for, qual dos aspectos
história oral. A nascente pesquisa participante pode servir também como
da vida do homem deve eliminar a ciência ou relativizá-la? Estas questões
não serão respondidas aqui, mesmo porque não temos as respostas.
um bom exemplo dentro destas preocupações. Trataremos deste aspecto
oportunamente.
Finalmente, a observação participante pode ser considerada como
a técnica de captação de dados menos estruturada nas ciências sociais.
Ela não supõe nenhum instrumento específico para direcionar a
observação, tal como um questionário ou um roteiro de entrevista, e, por
esta razão, a responsabilidade e seu sucesso pesa quase que inteiramen-
te sobre os ombros do observador, salvo obviamente naqueles aspectoS

56. FEYERABEND. Against Method. Londres: NLB, 1975.


73
72
a ela na sua forma narrativa, do ponto de vista pessoal e na sua instância
7. subjetiva. Também não é ficção. A história de vida se diferencia daquelas
A história de vida não só em termos da perspectiva adotada para o desenvolvimento do tra-
balho, assim como nos métodos utilizados. A ficção não respeita os fatos,
nem a fidelidade ao mundo existente; a autobiografia, na maioria das ve-
zes, representa um material seletivo que o autor exibe no sentido de apre-
1. Origem e desenvolvimento da história de vida e suas funções sentar aos outros uma imagem de si mesmo da forma como ele prefere.
A nosso ver a história de vida pode ser enfocada, pelo menos, Já a história de vida atende mais aos propósitos do pesquisador que do
dentro de duas perspectivas. A primeira, a mais usual, é tratá-la como autor e está preocupada com a fidelidade das experiências e interpretações
documento e, a segunda, como técnica de captação de dados. Tentaremos, do autor sobre seu mundo. Neste sentido o pesquisador deve tomar cer-
neste capítulo, dar os dois tratamentos de forma sucinta, uma vez que üs medidas para assegurar que o ator sociaJ59 cubra todas as informações
os dois estão intimamente relacionados. Para este fim, desmembraremos de que ele necessita, que nenhum fato seja omitido, que as informações
nossa discussão em três segmentos: a) origens e desenvolvimento, b) his- recebidas sejam checadas com outras evidências e, finalmente, que as in-
tória de vida e suas funções, c) a utilização da história de vida no Brasil. térpretações do autor sejam honestamente fornecidas. O sociólogo man-
Na introdução à edição de 1966 do clássico de Clifford Shaw, tEm-no orientado para as questões sociológicas nas quais está interessado,
The Jack Rol/er, Howard Becker traça as origens da utilização da história fÍlterroga sobre fatos que requerem esclarecimentos, tenta confrontar a
de vida na sociologia americana ao mesmo tempo que tenta responder à ffistória contada com outros tipos de material, como relatórios oficiais e
questão: Quais são algumas das funções que podem ser desempenhadas SUtros fornecidos por pessoas familiarizadas com o ato r, com os fatos
com utilidade pelo documento de história de vida? é com os lugares descritos. Assim fazendo, o investigador torna o seu
Antes de nos determos nas funções, passemos às origens. Segundo Jogo honesto. Embora o trabalho seja apresentado a partir de seu enfoque,
Becker, a primeira obra publicada que utilizou a história de vida socio- êle enfatiza o valor da perspectiva do ator por aceitar que a compreensão
lógica foi a de Thomas e Znaniecki 57 , em 1927, seguida de uma série de ao comportamento de alguém só é possível quando este comportamento
Clifford Shaw e outros58 • ~visto _sob o ponto de vista do ator. Como vemos, a história de vida na sua
Becker enfatiza que a história de vida não representa nem dados ~rigem é claramente subsidiária do interacionismo simbólico de Mead
convencionais da ciência social - embora partilhe algumas de suas carac- em termos teóricos e de Thomas e Znaniecki em termos práticos.
terísticas por contribuir para a formulação de uma teoria sociológica geral-, Becker, ao descrever os estudos da Escola de Chicago da década
nem é uma autobiografia convencional - novamente assemelhando-se de vinte, chama a atenção para a heterogeneidade das fontes de informa-
ção e dos tipos de dados utilizados em diferentes trabalhos e que eram
57. THOMAS, Wl. & ZNANIECKI, F. The Polish Peasant in Europe and America. 2. ed.
Nova York: 1927. Entretanto, outra referência (BOGDAN, 1972: 2) situa a data da publi-
confrontados uns com os outros na busca de maior evidência possível.
cação desta obra entre 1918 e 1920 por tratar-se de cinco volumes. Segundo ele, somente considerando-se o empreendimento total da esco-
58. SHAW, Clifford A., The Natural History of a Delinquent Career. Chicago: University la de Chicago pode-se avaliar sua contribuição:
of Chicago Press, 1931. Brothers in Crime. Chicago: University of Chicago Press, 1936.
CONWELL, Chic & SUFHERLAND, Edwin H. The Professional Thiq. Chicago: Uni-
versity ofChicago Press, 1937. HUGHES, Helen McGill (org.). The Fantastic Lodge. Bos- 59. O termo entrevistado é às vezes usado na falta de um melhor. Não deve, entretanto,
ton, 1961. WILLIAMSON, Henry. Hustler. Nova York: Garden City, 1965. [KEISER, R. ser COnfundido com aquele que simplesmente responde às questões de uma entrevista.
Utilizamos o termo "ator social" para distingui-lo daquele.
Lincoln (org.)].

74
Nós não podemos esperar que em um programa de pesqui- estagnante por ter exaurido a busca de novas variáveis sem conseguir,
sa amplo e diferenciado cada peça de trabalho nos forneça com isto, incrementos de conhecimento. A história de vida pode sugerir
todas as respostas, ou mesmo todas as respostas de cada um. novas variáveis, novas questões e novos processos que podem conduzir a
O que deve ser julgado é o empreendimento total em todas uma reorientação da área.
as suas partes [ ... ] não existem até hoje critérios para deter- 5. Por trás destas contribuições específicas que a história de vida
minar quanto uma peça de mosaico contribui para as con- é capaz de fornecer, jaz uma outra que é fundamental: ela pode, mais do
clusões que são garantidas pela consideração do todo, mas que qualquer técnica, exceto talvez a observação participante, dar sentido
estes são exatamente os critérios que são necessários. à noção de "processo". Apesar dos sociólogos frequentemente se utiliza-
Na ausência de tais critérios, ele se propõe a fazer uma "aprecia- rem deste conceito, raramente usam os métodos necessários para captar o
ção simpatética" de algumas das funções que podem ser desempenha- "processo em movimento" de que tanto falam. Este "processo em movi-
das pela história de vida enquanto documento. Tomamos a liberdade de mento" é observável, mas não facilmente. Ele requer uma compreensão
abstrair a singularidade do exemplo tomado de The Jack Rol/er, tentando íntima da vida dos outros, assim como uma técnica, como a história de
apontar para o caráter mais generalizante de cada função: vida, que nos fornece uma riqueza de detalhes sobre referido processo,
1. A história de vida serve como ponto de referência para ava- cujo caráter só seríamos capazes de especular na ausência de uma técnica
liar teorias que tratam do mesmo problema para cujo propósito as infor- adequada. Para a sociologia é fundamental que as questões sobre determi-
mações foram tomadas. Isto não significa que os resultados obtidos da nados problemas sociais, como delinquência, crime, droga, prostituição
análise daquela vida em particular tenham um caráter generalizante, mas (e, se pudéssemos, introduziríamos a corrupção, o roubo e outros), sejam
que ela pode significar um caso negativo que eventualmente colocará sob levantadas do ponto de vista do delinquente, do criminoso, do corrupto
suspeita a teoria em questão, levando a novos estudos. ou do ladrão, para que, assim, conheçamos suas táticas, suas suposições,
2. A história de vida também nos ajuda em áreas de pesquisa que seu mundo e os constrangimentos e as pressões aos quais estão sujeitos.
tratam dela apenas tangencialmente. Exemplos de áreas de pesquisa afins Lamentavelmente, a utilização da história de vida nos Estados
à delinquência juvenil seriam relacionadas com a cidade, a família, a es- Unidos decaiu em consequência de vários fatores, diz Becker (p. XVI): a)
OS sociólogos tornaram-se mais preocupados com a teoria abstrata e, cor-
cola. Ela pode servir de base sobre a qual as suposições podem ser feitas
realisticamente, aproximando a direção onde a verdade se situa. respondentemente, menos interessados em um relato completo e deta-
3. A história de vida pode ser particularmente útil em fornecer- lhado de organizações específicas e de comunidades; b) eles procuravam
nos palpites (insights) sobre o lado subjetivo de muitos estudos, no que dados formulados em termo das categorias abstratas de suas próprias teo-
diz respeito aos processos institucionais sobre os quais suposições não rias, e não em termos daquelas categorias que pareciam mais relevantes
verificadas são muitas vezes elaboradas. Embora as teorias digam respeito para a população estudada. Como a história de vida era mais adequada e
mais à ação institucional 60 que a experiência individual dentro destes pro- a este último tipo, ela foi relegada a segundo plano; c) os sociólogos ini-
cessos, esta última é de certa forma considerada. Estas teorias, em última ciaram a separação entre o campo da psicologia social e da sociologia pro-
instância, levantam questões sobre a natureza da experiência individual. priamente dita, criando duas disciplinas, ao invés de duas ênfases dentro
4. A história de vida, em virtude de sua riqueza de detalhes, pode do mesmo campo; d) talvez a principal razão para o uso tão infrequente
ser importante naqueles momentos em que uma área de estudo torna-se desta técnica se situe no fato dela não produzir o tipo de resultados que os
SOciólogos esperavam. Com a profissionalização da sociologia, o "estudo
60. Para Mead e Blumer, conforme já vimos, não faz o menor sentido falar de ação institu-
cional uma vez que, para eles, os macroprocessos são formados pela ação individual.

77
76
Quanto ao segundo aspecto - a natureza dos livros de metodolo-
único" (single study)61 passa a ser adotado nas universidades como ideal
do trabalho científico, na maioria das vezes baseado no modelo de expe- gia publicados no Brasil- é ainda mais evidente a inexistência de manuais
rimento controlado. Considerando que a história de vida não produz re- éSpecíficos sobre metodologias qualitativas. Predominavam as traduções
sultados definitivos que aqueles critérios exigem, ela foi desprezada como estrangeiras, sobretudo americana, dentro de uma perspectiva nitidamen-
uma técnica na qual não valia a pena investir tempo e esforço. te quantitativista onde a pesquisa do tipo survey é privilegiada63 . O que
observamos sobre a história de vida também é válido para a observação
2. A utilização da história de vida no Brasil participante, talvez mais ignorada no Brasil. Vale ressaltar, entretanto, al-
É importante, aqui, que façamos uma análise do caso brasileiro gumas modificações ocorridas no final da década de setenta e, sobretudo,
para que possamos situar a história de vida dentro do contexto de nossa início da década de oitenta, referentes à publicação de alguns livros de
prática científica. Primeiramente, a história de vida nunca gozou do pres-
metodologia de pesquisa: a) originários da área de psicologia64 , mas muito
tígio que usufruiu no caso dos Estados Unidos. Esta afirmação é inferida 65
de dois indicadores que nos parecem significativos: a) sua utilização den- utilizados na sociologia - na falta de outros; b) de cunho antropológico ;

tro da produção científica na sociologia brasileira; b) a natureza dos livros c) mais especificamente dirigidos à pesquisa na sociologia. Enquanto
sobre metodologia da pesquisa publicados. os tipos a) e b) apresentam as características convencionais da pesquisa, os
No primeiro caso pode-se constatar que no período clássico ,pItimos são mais inov~dores e criativos66 , além de alguns deles serem de
da sociologia brasileira, ou seja, nas suas origens que remontam, quan- cunho nitidamente crític0 67 •
do muito, à década de cinquenta, os nomes representativos desta época
Finalmente, vale salientar a produção científica do CPDOC/
pautavam-se mais pelos cânones positivistas, embora em um segundo
Fundação Getúlio Vargas 68 que vem desenvolvendo um esforço significa-
momento tenham reformulado suas convicções teóricas e aderido à pers-
pectiva marxista de análise da realidadé2 •
É certo que a história de vida era uma técnica usual de coleta 63. Citaremos, como exemplo, algumas das publicações mais usadas no Brasil, décadas
atrás: Selltiz et aI. (1965), Ackoff (1967), Pierson (1962), Goode WJ. e Hatt, P.K. (1969),
de dados, mesmo posteriormente, nos trabalhos de Fernando Henrique
"Boudon (1971), Kaplan (1975), Phillips (1974), Kauffman (1977), Mann (1975).
Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues, entre outros. O que diferencia
64. CE Marinho (1980) e Rudio (1983).
seu uso nos Estados Unidos e no Brasil era, e ainda é hoje, o fato dela
ser usada aqui apenas como técnica subsidiária, enquanto lá a história de 65. CE Guimarães (1980), uma bem montada coletânea de textos de autores estrangeiros,
e Durham (1978), uma importante monografia sobre Malinowski e seu método.
vida representava o principal instrumento, dando origem a importantes
66. CE Nunes (1978) e Hirano (1979), coletâneas de textos metodológicos de cientistas
monografias, conforme já referimos anteriormente. sociais brasileiros, com importantes discussões sobre as peculiaridades, limitações e adap-
tações das várias técnicas às condições brasileiras. Demo (1980), mais preocupado com os
61. O tipo de projeto de pesquisa concebido como autossuficiente e autônomo apresenta aspectos epistemológicos da pesquisa social, oferece importantes contribuições.
toda a evidência necessária para se aceitar ou rejeitar as conclusões apresentadas e cujos
67. CE Thiollent (1980), um misto de discussão crítica das técnicas de coleta de dados
resultados devem ser usados como um tijolo a mais na construção do grande muro da
COnvencionais _ especialmente o questionário e a entrevista - e de coletânea de textos de
ciência. O estudo único está integrado no corpo do conhecimento da seguinte forma: ele
autores franceses e italianos; Brandão (1983 e 1985), também coletâneas de textos que
deriva suas hipóteses através da inspeção do que já é conhecido; depois de terminada a
pretendem oferecer uma alternativa aos métodos convencionais, consubstanciados no
pesquisa, se as hipóteses forem comprovadas, elas se juntarão ao corpo cientifico e servi-
que o próprio título sugere: pesquisa participante; Fundação Carlos Chagas (1980) criti-
rão como base para futuros estudos. O ponto importante é que as hipóteses são testadas
ca especificamente as metodologias quantitativas; Barbier (1985) sobre pesquisa-ação no
em um único estudo. Becker: 1966: CVII.
âmbito da instituição e, novamente, Thiollent (1985) que apresenta os princípios básicos
62. CE os textos de FERNANDES, Florestan; BASTIDE, Roger; IANNI, Octávio; HI-
de pesquisa-ação da forma mais sistematizada que as outras publicações.
RANO, Sedi et aI. ln: HlRANO, Sedi (org.). Pesquisa social, projeto e p/anejamento. São
68. CE Camargo (1977,1978,1982).
Paulo: BBCS, 1979.
79
78
tivo no sentido de situar a história oral dentro das técnicas qualitativas de
coleta de dados, apontando suas especificidades e limitações e, especial-
8.
mente , valorizando sua utilização no campo de reconstituição histórica A entrevista
das elites políticas brasileiras69 •
Trataremos da perspectiva metodológica crítica assim como da
história oral em capítulos específicos a seguir.
A entrevista pode ser definida como um processo de interação
social entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por ob-
jetivo a obtenção de informações por parte do outro, o entrevistado. As
iDformações são obtidas através de um roteiro de entrevista constando de
ttma lista de pontos ou tópicos previamente estabelecidos de acordo com
uma problemática central e que deve ser seguida. O processo de interação
tontém quatro componentes que devem ser explicitados, enfatizando-se
Suas vantagens, desvantagens e limitações. São eles: a) o entrevistador; b)
O· entrevistado; c) a situação da entrevista; d) o instrumento de captação
ele dados, ou roteiro de entrevista.
A problematização destes componentes é necessária para que se
conheça as virtualidades do dado que é obtido através deste processo e
fê possa, ao mesmo tempo, minimizar as possibilidades de desvio através
de mecanismos de controle que poderão ser impostos aos elementos que
ronstituem a entrevista, acima referidos. Embora, para fins heurísticos,
procedamos a esta compartimentalização, deve-se ter em mente que
nenhum dos elementos "faz sentido" separado da totalidade. Cada um está
á~ relação" a um outro. Por outro lado, enquanto instrumento de coleta de
dados, a entrevista, como qualquer outro instrumento, está submetida aos
cinones do método científico, um dos quais é a busca de objetividade, ou
seja, a tentativa de captação do real, sem contaminações indesejáveis nem
da parte do pesquisador nem de fatores externos que possam modificar
aquele real original. Aqui, alguns pontos merecem esclarecimento. O
fato de não crermos que a ciência tenha sido historicamente neutra,
não nos convence de que a objetividade como um ideal não deva
ser perseguida. Segundo, estamos cônscios de que a objetividade é
um ideal inatingível, mas que, mesmo assim, o cientista deve tentar
a aproximação. Terceiro, também não acreditamos que o real possa
ser captado "como num espelho", ao contrário, assumimos a postura
69. CE Camargo e Goes (1981): é exemplo de produção centrada em estudos biográficos. relativista, de cunho weberiano, de que fazemos "leituras" do real. Esta
CE também Bosi (1979) que reconstrói parte da história de S. Paulo a partir da história de POStura, entretanto, não nos exime de dedicar atenção a todas as possíveis
vida de oito autores das mais variadas origens.

80 81
limitações inerentes ao método científico nas ciências sociais porque nos ptundo, cabendo a nós, pesquisadores, avaliar o grau de correspondência
parece que é a partir da aceitação de cada limite do método que o cientista .de suas afirmações com a "realidade objetiva", ou factual.
social pode ter condição, também, de entender os limites do dado que , As afirmações de natureza subjetiva estão sempre imersas em rea-
ele colhe do real. Endossamos a afirmação de Myrdal: 70 "Não existe çóes que devem ser levadas em conta: o estado emocional do informante,
outra forma para excluir os vieses nas ciências sociais do que enfrentar ~as opiniões, suas atitudes, seus valores que devem ser confrontadas ou
as valorações introduzindo as premissas valorativas de forma explícita, 50mplementadas com comportamentos passados e expressões não ver-
específica e concreta". Segue-se daí que o viés é um fenômeno universal ~ais, igu~lmente. A co.nstatação de afirmações conflitantes não deve levar
e que é tarefa do pesquisador conhecê-lo em todas as suas nuanças para ~ pesqUIsador a conSIderar o depoimento inválido, uma vez que estas
poder prevenir - quando for possível - sua ocorrência. .fPesmas contradições podem levar a importantes descobertas. As pessoas
Na entrevista, a fonte de viés se localiza tanto nos fatores externos nem sempre exibem um comportamento racional em suas atividades di-
ao observador, tais como o próprio roteiro e o informante ou entrevis- ~as e por esta razão o pesquisador não pode exigi-lo do informante em
tad0 7 !, como na situação interacional entre entrevistador e entrevistado, ~a situação de entrevista.
i

'I, I
acrescidos dos vieses já mencionados72 e que se originam na pessoa do f, Outro ponto a considerar na interpretação de dados subjetivos
II pesquisador. Estes últimos, é claro, irão influir na forma e no conteúdo refere-se ao fato de que o informante, nesta circunstância, está transmitin-
~.

da entrevista, exercendo ora o papel de coator seletivo, ora o de coator ..to sentimentos ou atitudes relacionados com o passado, e não sentimen-
omitivo na construção do instrumento formal de captação de dados, o rPs presentes. Como podemos então nos prevenir contra determinados
roteiro de entrevista73 • ~tores que podem influenciar uma situação de entrevista? A primeira e
Com relação às fontes de vieses oriundos do informante, é pre- JPelhor forma é conhecer estes fatores. A literatura especializada (DEAN,
ciso distinguir entre as informações de caráter subjetivo e aquelas de ca- li & WI-NTE, WF., 1969; ANGYRIS, 1969; McCALL, 1969) apontam
ráter objetivo emitidas por ele ao longo de uma entrevista. Ambas são !W;uns que discutiremos a seguir.
igualmente importantes para o pesquisador, embora ele deva ter sempre (t Como vimos, inúmeros são os fatores que representam fontes
em,mente que "as afirmações do informante representam meramente sua potenciais de contaminação ou distorção, tanto na observação participan-
percepção, filtrada e modificada por suas reações cognitivas e emocionais ~ como na entrevista, na história de vida e na história oraF4. Entretanto, o
e relatadas através de sua capacidade pessoal de verbalização" (DEAN,].P.
& WHYTE, WF., 1969: 105-106). Ou seja, temos que reconhecer que ~. Thi.ollent (1980: 35) distingue vários tipos de entrevista: "a) a entrevista dirigida ou
~romzada, que consiste na aplicação de um questionário predeterminado com uma
estamos recebendo meramente o retrato que o informante tem de seu
~ria de perguntas fechadas e sem nenhum papel ativo do entrevistador; b) a entre-
VISta semiestruturada, aplicada a partir de um pequeno número de perguntas abertas; c)
70. MYRDAL, Gunnar. An American Dilemma. Nova York: Harper and Bros, 1944: 1043 a entrevista centrada ([ocused interview) na qual, dentro de hipóteses e de certos temas, o
[apud SCHWARTZ & SCHWARTZ, 1969: 103]. en~evistador deixa o entrevistado descrever livremente a sua experiência pessoal a res-
71. Zelditch Jr. (1969: 9) prefere distinguir entre o informante e o entrevistado. O pri- peito do assunto investigado; d) a entrevista não diretiva, ou entrevista aprofundada, na
meiro seria aquele que presta informações presumidamente corretas sobre outros ao invés qual a conversação é iniciada a partir de um tema geral~em estruturação do problema por
de si mesmo e cujas informações acerca dos acontecimentos são informações sobre acon- parte do investigador; e) a entrevista clínica, eventualmente conduzida de maneira não
tecimentos dos quais não participou. Já o entrevistado fala sobre si mesmo. A entrevista d.ire~va cuja especificidade está na sua orientação em função do objetivo da interpretação so-
durante a observação participante é considerada como sendo sua parte. CIOpsicológica da situação ou da personalidade dos sujeitos através de suas verbalizações".
Adiscussão que aqui empreendemos exclui tanto os tipos a) e b), por preferirmos chamá-
72. Deixamos de comentar os aspectos técnicos da construção de questões (perguntas du-
~ de questionários, ao invés de entrevista, já que eles possuem especificidades que fa-
plas, induzidas, ambíguas, incompreensíveis para a população estudada, indiscretas etc)
~nte os distinguem da entrevista, como a inatividade do entrevistador, e o tipo e) por
por julgarmos que eles já foram suficientemente discutidos nos manuais convencionais considerá-lo mais típico de estudos psicológicos e psiquiátricos, embora ele se assemelhe
sobre a pesquisa social. ~Uele do tipo d) (não diretiva) em termos das possíveis fontes de vieses, tanto por parte
73. CE capítulo sobre observação participante. do entrevistador, do entrevistado, como da própria situação interativa entre os dois.

82 83
ponto-chave no controle de qualidade dos dados em todos os casos situa-se no J.r, A descoberta de lacunas ou omissões, especialmente na entrevis-
uso sistemático de dados de outras fontes relacionadas com o fato obser- ta, SÓ se evidencia mediante a comparação entre as entrevistas.
vado a fim de que se possa analisar a consistência das informações e SUa Além dos aspectos abordados acima, devemos estar atentos para
a própria situação da entrevista e para a situação peculiar do entrevista-
validade.
Os aspectos que podem interferir na qualidade dos dados por p~r- do que também pode influenciar a natureza das informações prestadas.
te do informante podem ser relacionados com: a) motivos ulteriores, ou seja, Argyris (1969: 115) apresenta algumas especificidades da situação da en-
quando ele pensa que suas respostas podem influenciar positivamente sua trevista que podem levar os entrevistados a um estado de nervosismo e
situação futura (dentro de uma fábrica ou de uma organização, por exem- ansiedade: 78
plo); b) quebra de espontaneidade, como a presença de outras pesso~s ~or 1) As entrevistas representam situações psicológicas novas para
ocasião da entrevista ou inibições ocasionadas por certas caractensucas O entrevistado. Como tal, ele não percebe bem seus objetivos nem sabe
do entrevistador, como sexo, raça, educação ou classe social (fatores reati- bem como se comportar;
vos); c) destjo de agradar o pesquisador, especialmente quando ele 'percebe 2) embora conhecendo os mecanismos de uma entrevista, alguns
suas orientações ou posicionamentos; d) fatores idiossincráticos taIS como
entrevistados não gostam da natureza autoritária do relacionamento entre
fatos ocorridos no intervalo entre as entrevistas75 , que eventualmente al-
ele e o entrevistador, pois se sentem de alguma forma subjugados;
teram a atitude do entrevistado com relação ao fenômeno observado. Por
3) outros entrevistados, especialmente aqueles que fazem parte
outro lado, faz-se necessário considerar que o informante é também um
observador, no sentido de que ele relata aquilo que viu ou sentiu ao lon- ele organizações como comunidades, sindicato etc., percebem a entrevista
go de sua experiência. Assim sendo, ele também está suj~ito a fa.lhas de eomo uma armadilha para "fazê-los falar" sobre coisas ou pessoas, o que
observação que podemos incluir dentro dos aspectos aqUI descuudos; e) Jklde comprometê-los;
conhecimento sobre o assunto da entrevista76 , habilidade de relatar os even- 4) os pesquisadores, na maioria vinculados a universidades, são
tos, que pode estar relacionada tanto à capacidade de lembrar (memória) muitas vezes percebidos como indivíduos sofisticados e de alta educa-
77
os fatos passados como à fluência ou facilidade de expressão • . çio, o que pode criar uma reação de defesa por parte dos entrevistados.
Além das possíveis "falhas por cometimento", temos que COnsI- Dependendo do tipo de percepção, os entrevistados podem recorrer a
derar aquelas "falhas de omissão" (McCALL, 1969: 135), passíveis de ser mecanismos de defesa, tais como: colaboração aparente, recusa em res-
cometidas tanto pelo pesquisador (na observação participante) como pelo ponder, silêncios ostensivos, desvios no direcionamento da entrevista,
informante (na entrevista). Ambos podem praticar omissão de dados por -esquecimento" protetivo, ou mesmo preparando-se de antemão para a
falha de percepção ou mesmo pelas razões já discutidas. entrevista através de informações colhidas junto a outros entrevistados
anteriormente.
75. Referimo-nos aqui à entrevista de longa duração onde os encontros acontecem com A observação participante como a entrevista, a história de vida
intervalos de dias ou semanas, caso muito comum na história oral. e a história oral são, pois, técnicas de coleta de dados que trazem em si
76. Chamamos a atenção para a importância da identificação de um "bom informante".
nos trabalhos de campo, aquele que conhece tudo e se dispõe a falar. Para uma caracten-
zação dos diversos tipos de informante, cf Cicourel, 1980: 113. 78. Percebe-se que esta caracterização retrata muito bem situações de pesquisa junto à
77. Por exemplo, em entrevistas temáticas em história oral: em entrevistas sobre a situaçãL' classe trabalhadora, comunidades de bairro, enfim, aquelas pesquisas muito comuns jun-
de um bairro, de uma comunidade, de um sindicato ou partido. Lembramos que mult0
5 to aos que não reconhecem ainda seu direito de não serem entrevistados. Por outro lado, há
questionários ou roteiros de entrevista apresentam questões que o entrevistado não teI11 exemplo de indivíduos que se sentem orgulhosos e vaidosos em prestarem seus depoi-
condições de responder, o que pode levá-lo a falsear os dados, e, obviamente, a interpre- Illentos, não só nas classes baixas como altas, conforme constatamos em entrevistas de
tação do fenômeno estudado.
história oral com lideranças políticas.

84 85
limitações sobre as quais o pesquisador deve estar atento a fim de evitá-las '" 9.
quando for possível e de aceitá-Ias quando inevitáveis, embora consciente
das distorções que podem provocar. A história oral 79

1. Características e limitações
A utilização da técnica de história oral na produção de documen-
tos históricos é relativamente recente, embora tenha tomado um vigoro-
so impulso na década de sessenta nos Estados Unidos.
Ao contrário de outros instrumentos de coleta de dados usados
nas ciências humanas, tais como a observação participante, a história de
vida e a entrevista, a história oral exibe uma complexidade bem maior
que dificulta sua definição clara, precisa. Por esta razão, é mais fácil des-
crevê-la que defini-la. Em termos gerais poder-se-ia dizer que tudo que é
"ORAL', gravado e preservado pode ser considerado história oral. Neste
sentido, os discursos, as conversas telefônicas, as conferências ou qual-
quer outro tipo de comunicação humana que pode ser gravada, transcrita
e preservada como fonte primária para uso futuro da comunidade cientÍ-
fica estaria dentro do rótulo da Ho. O sentido que aqui adotamos é mais
limitado e preciso, conforme veremos a seguir. Da mesma forma, o con-
teúdo da HO pode variar na proporção da variedade ocupacional daque-
les que a praticam. Um historiador pode estar interessado em recuperar
certo período contemporâneo ou certo evento; um sociólogo, na origem
e desenvolvimento de uma favela ou de uma sociedade; um cientista po-
lítico, na caracterização de elites políticas, empresariais ou populares; um
antropólogo, na reconstituição de estruturas de uma sociedade primitiva;
um jornalista, na descrição de um terremoto. Enfim, a utilização da HO
como técnica de coleta de dados é muito ampla.
No entanto, precisa-se considerar que a HO está preocupada com
o que é relevante e significante para a compreensão da sociedade e não na

79. Este capítulo foi baseado: a) em MOSS, William W , Oral History Program Manual.
Nova York: Praeger Publishers, 1974; b) nas publicações do CPDOC, especialmente de
Aspásia Camargo; c) cm nossas experiências com o programa de história oral do Nudoc -
NÚcleo de Documentação C ultural - da UFC do qual somos a coordenadora.

86 87
acumulação anárquica de supostas peças de evidência que não acrescen-
=b) porque se funda na memória do depoente e, sendo a memória huma-
tam nada aos dados já existentes. Como afirma Moss (1974: 9): ''A HO na falha e deficiente, os acontecimentos ou impressões relatados podem
oferece um meio para a gravação acurada e preservação de fontes pessoais ser distorcidos, episódios deslocados ou elementos omitidos. A recons-
para preencher as lacunas dos documentos escritos. Ela não é uma ino- tituição "de memória" pode estar imersa em reinterpretações, seja pela
vação moderna. Ela é antiga, e seu emprego moderno representa uma distância existente entre o fato passado e o depoimento presente que já
resposta à crescente procura de informação e à crescente apreciação de incorpora possíveis mudanças de perspectiva ou de valores do ator social,
°
onde a evidência pode ser encontrada. que é novo é a gravação magné- teja porque o fato pode ser reinterpretado à luz dos seus interesses.
tica, usada em larga escala para capturar exatos relatos literais,juntamente Não há dúvida de que estas críticas são pertinentes, e que repre-
com sotaques, entonações e inflexões, sem a intervenção interpretativa de sentam reais limitações para a HO, mas é importante notar que elas não
estenógrafos e anotadores. Novo também, talvez, é o uso frequente desta si<> privilégio da HO. ° componente ideológico permeia todo tipo de
técnica para gravar não apenas lembranças do passado, mas as reflexões e informação coletada, seja através da HO, da história de vida, da entrevista
opiniões daqueles cujas vidas estão ainda comprometidas com atividades ÔU de observação participante. Já a limitação do fator memória com certe-

públicas". !ta atinge mais a primeira do que as últimas, por tratar a HO, basicamente,
Este último tipo de HO lança mão da memória como fator dinâ- de fatos passados. É preciso considerar, entretanto, que os três primeiros
mico na interação entre passado e presente, fugindo ao aspecto estático instrumentos - a HO, a HV e a entrevista - não podem ser vistos em
do documento escrito que permanece o mesmo através do tempo. Se, por termos de suas peças individuais, ou seja, da informação de um único
um lado, a entrevista gravada representa uma busca de evidência histórica, depoente, mas em termos do conjunto de depoimentos que informam o
ela, como fonte, possui potencialidades ao mesmo tempo que limitações. todo de um determinado projeto de pesquisa. Desta forma os dados po-
Ainda Moss (1974: 9) enfatiza: ''A memória não é simplesmente um reser- dem ser checados não só internamente - entre os depoimentos - como
vatório passivo de dados, cujo conteúdo pode ser esvaziado e escrutinizado externamente, confrontando-os com todos os dados disponíveis através
à vontade. Ela está empenhada e integrada com o presente - com atitudes, de outras fontes.
perspectivas e compreensões que mudam continuamente - trabalhando e Outro ponto a considerar é que a compreensão de uma época, ou
retrabalhando os dados da experiência em novas reformulações, opiniões de um evento, passa necessariamente pelo entendimento das ideologias,
e, talvez, até novas criações. ° que é capturado pela HO é raramente daí por que saber se o relatado é verdadeiro ou não e, em certos casos, se-
um estudo exaustivo de todos os dados relevantes, mas, ao contrário, um cundário. Do contrário, poder-se-ia arguir que a simples descrição de um
segmento da experiência humana - a interação do entrevistador com o fenômeno é insuficiente para atingir a compreensão de suas causas, ou
entrevistado - no contexto de um passado relembrado, de um presente seja, para que se possa explicá-lo. Qualquer objeto de estudo dentro das
dinâmico e de um futuro desconhecido e aberto". ciências humanas pode ser abordado de forma estática, onde a permanên-
Por basear-se no depoimento pessoal e na memória, a HO está cia e a sincronia são enfatizadas, ou de forma dinâmica, privilegiando-se o
sujeita a críticas a respeito da validade dos dados que ela obtém (cf movimento e a diacronia. A orientação em uma outra direção vai depen-
CAMARGO, 1981). Assim sendo, acusa-se a HO de não ser confiável: a) der muito do profissional responsável pela prática da Ho. Aqui, estamos
porque se baseia no depoimento de um ator social que é, por definição. tratando do papel do pesquisador como possível fonte de viés. Sua posi-
um depoimento parcial. Ele transmite sua versão dos acontecimentos e ção de classe, sua ideologia etc., podem influir desde o início na sua opção
não a reconstituição dos próprios acontecimentos. Sua visão pode ser detur- por um tipo de "objeto de reconstrução", acrescida do fato de, em caso
pada e enganadora pela força de sua ideologia, ou até mesmo mentirosa; de ser ele um dos "produtores" - juntamente com o entrevistado - de

88 89
uma peça de evidência, como uma ,é,;e de en"evi"" gnvad", a ocgan;_"""- A e'colha do, enttevi,tado, não pode "r aleat6ria, ou ,eja, não
zação do roteiro e sua própria postura por ocasião da entrevista poderão,'fo<le obedecer aos parâmetros da amostragem probabilística. Embora a
eventualmente, distorcer as informações obtidas. Consequentemente, afiraontagem do universo -listagem dos atores que poderão fornecer con-
prática da HO deve envolver toda a "vigilância epistemológica" para con- áribuições úteis ao desvelamento de certo tema - seja fundamental, sem-
trole do erro e preservação da fidedignidade dos dados, conforme já nos 1« existem alguns personagens cuja contribuição é imprescindível, daí
, I referimos em capítulos anteriores. jíor que sua inclusão na lista de entrevistados é intencional. Por outro
,I i
Do exposto conclui-se que: a) a HO é uma técnica de cole ta de lido, a montagem da lista deve ser efetuada a partir da indicação de es-
[I,"
dados baseada no depoimento oral, gravado, obtido através da interação fecialistas no tema e de informações contidas em dados secundários. A
, ~ i "I ' entre o especialista e o entrevistado, ator social ou testemunha de aconte- ptir desta listagem exaustiva, proceder-se-á à triagem dos nomes mais
,II" cimentos relevantes para a compreensão da sociedade; b) a HO tem por jtgnificativos; os mais idosos deverão ter prioridade na ordem das en-
"' ' 'I
'II finalidade o preenchimento de lacunas existentes nos documentos escri- treVÍstas, dado o risco maior de doença ou outros fatores que impeçam
1'11 tos, e, assim, prestar serviços à comunidade científica através da sociali- .,as depoimentos. A aplicação da entrevista exige profissionais de alta
80
"I zação de seu produto; c) a HO é interdisciplinar, interessando à história, «m1petência no assunto. Algumas instituições têm utilizado os serviços
ill!ili à sociologia, à antropologia, à ciência política e mesmo ao jornalismo; d) te voluntários, embora o mais aconselhável seja que os entrevistadores
,'III
!I'(i embora caracterizada como uma técnica, ela não prescinde da teoria que Içam parte do staff da casa. Outras alternativas envolvem a contratação
informa o objeto a ser reconstituído; e) como instrumento de captação • profissionais para entrevistas sobre assuntos específicos de sua espe-
de dados ela sofre de algumas limitações comuns a outros instrumentos cia1idade e a utilização de estudantes de pós-graduação, eventualmente
de coleta. piabalhando com o mesmo tema de interesse do programa.
li, O tipo de entrevista, ou o enfoque histórico a ser adotado, pode
envolver a decisão entre a entrevista biográfica ou a entrevista temática.
2. A técnica
A utilização da técnica da HO pressupõe, primeiramente, a exis- ka o primeiro tipo incluir-se-ão os personagens que, ao longo de suas
tência de um programa de reconstituição histórica sobre algum tema es- tidas, desempenharam um papel relevante, seja na política, na adminis-
tração, nas artes, na economia etc. Já aqueles cuja vinculação ao objeto da
pecífico, preferencialmente vinculado a uma instituição. A definição do
tntrevista se limita a uma participação mais restrita como, por exemplo,
tema normalmente surge de um grupo de profissionais interessados em
odesempenho em um cargo de direção no Dnocs que o qualifique como
evidenciar algum aspecto desconhecido ou nebuloso da realidade socie-
~ente em uma entrevista sobre a seca no Nordeste etc., deverão fazer
tal, considerado relevante. A escolha do tema depende também do nível
parte do bloco de entrevistas temáticas. Na maioria dos casos, este último
de especialização e da qualificação da equipe. Após este primeiro passo,
âpo é mais fácil que o primeiro.
várias questões devem ser resolvidas: quem deve ser entrevistado? Quem
~: A organização do roteiro da entrevista pressupõe uma série de
deve fazer as entrevistas? Que tipo de abordagem histórica será melhor?
procedimentos tais como o conhecimento profundo do tema em ques-
Como organizar o conteúdo ou roteiro de entrevista? Como planejar e
do, obtido através de todas as fontes disponíveis (livros, jornais, docu-
escalar as entrevistas? Como processar as fitas? Quais os procedimentos lIlentos, anuários), para qualquer tipo de entrevista; já para a entrevista
legais envolvidos na doação da entrevista? Embora não esgotem o assun- biográfica é necessário o domínio do contexto histórico no qual viveu o
to, estas questões fornecerão boas indicações sobre os aspectos técnicos
envolvidos na prática da HO. Trataremos deles a seguir. -80. Kennedy Library. CE MOSS, 1974.
91
90
personagem, assim como de sua vida e de sua obra (através do curriculum de contribuição que o personagem pode fornecer, de sua habilidade
vitae). Será este conhecimento prévio que orientará o entrevistador na : . comunicação, de sua memória, de sua boa vontade em participar do
elaboração do roteiro que deve pretender captar não somente os dados já ,rograma e, obviamente, do adestramento e competência do entrevistador.
conhecidos, mas, especialmente, aqueles que são nebulosos ou mesmo ~ mesmo pesquisador pode conduzir duas ou até três entrevistas (com

lacunosos. Além dos dados "previstos" para obtenção através do roteiro, JtOres diferentes) concomitantemente por um período de alguns meses,
existem muitos outros, talvez até mais importantes, que poderão ser cole- jltque, habitualmente, é raro conseguir que o depoente esteja disponível
tados mediante a habilidade e o sexto sentido do entrevistador para apro- .-ais de duas vezes por semana. Além disso o pesquisador necessita
veitar os "pontos cegos" e as "deixas" do entrevistado. Algumas questões de tempo para rever as entrevistas anteriores e avaliar seus resultados,
úteis podem ser "por que", "como", "onde", "quem", "descreva", "fale ilac0rporando questões para o próximo encontro ou retornando a assuntos
mais sobre isto", "qual sua opinião", "quais suas impressões sobre" etc. pdiscutidos e que necessitam de esclarecimentos.
Além das questões relativas ao próprio ator, deve-se agregar outras sobre Ao se encaminhar ao local da entrevista o pesquisador deve estar
organizações, instituições, outros atores, impressões, opiniões, o grupo, ~ro de que o gravador funciona e de que dispõe de fitas cassete sufi-

objetivos, obstáculos, oposições, sucessos e fracassos etc., que, de alguma cientes. Antes de iniciar a entrevista a fita deve conter o nome do entre-
forma, se vinculam ao tema ou ao personagem. l'istado, a data e o nome do entrevistador ou entrevistadores (no máximo
O planejamento e o escalonamento das entrevistas devem cIois). As fitas devem ser numeradas no local à proporção que a entrevista
obedecer à ordem dos contatos preliminares estabelecidos pela instituição cdesenrola.
à qual o programa está afeto ou pessoalmente pelos entrevistadores. f;' A parte mais técnica do processo diz respeito aos procedimentos
Nossa experiência tem demonstrado que os contatos individuais são mais posteriores ao término de cada entrevista. O primeiro passo a seguir é o
valiosos que o contato formal através da instituição. O contato individual arquivamento das informações contidas na fita cassete, para a fita do rolo,
pode incluir não só relações de amizade existentes entre o entrevistador a.fim de garantir o acervo de possíveis extravios ou danos da fita cassete
e alguns membros da família ou amigos do entrevistado, assim como original. Em seguida, procede-se à transcrição da fita e à conferência de fide-
aquela que é estabelecida por entrevistadores anteriores que fazem "a Ijtlade, ou seja, o texto transcrito em forma datilográfica é cotejado com
ponte" entre o novo entrevistado e o pesquisador. Na maioria das vezes os a fita para possíveis correções. O terceiro passo envolve a "limpeza" do
entrevistados demonstram grande disponibilidade, espírito cooperativo e texto, ou copidesque, onde são abolidas as repetições e corrigidos eventuais
orgulho em contribuir de alguma forma para a história. Após os primeiros erros de português e de pontuação, sem que o sentido do texto seja de
contatos, o entrevistado faz a opção pelo local onde gostaria de prestar qualquer forma alterado. A quarta etapa é o resumo de cada fita para pos-
o depoimento (residência, local de trabalho ou na própria instituição), tlerior publicação do conteúdo das entrevistas. Finalmente, encaminha-se
define o dia e a hora da entrevista, assim como o número de horas que G texto para a datilografia final, cuja cópia deve retornar ao entrevistado

tem disponíveis. A entrevista temática pode envolver poucas horas de para uma última avaliação.
diálogo. É aconselhável que não ultrapasse duas horas seguidas, uma veZ Por ocasião do último encontro o pesquisador deve levar con-
que depois disso o cansaço de ambos pode trabalhar contra os objetivos do sigo o documento de doação da entrevista à instituição, para que o en-
empreendimento. No caso da entrevista biográfica o número de horas de trevistado assine. Na maioria das vezes eles não objetam a adoção neste
81 lIlornento, embora outros prefiram ler a transcrição da entrevista antes
cada entrevista pode variar de duas a cem ou mais horas , dependendo do
da assinatura. Vale lembrar que um programa da HO deve prever um
81. Como no caso da entrevista com o Marechal Cordeiro de Farias para o CPDOC dispositivo de "embargo da informação" por parte do entrevistado. Isto
conduzida por Aspásia Camargo e Walder de Goes.

92 93
significa que é possível que ele não deseje que determinada informação
venha a público imediatamente, exigindo que ela seja liberada somente
10.
algum tempo depois, dez anos, por exemplo. Neste caso, esta entrevista Conclusões
ou parte dela não pode ser colocada à disposição da comunidade durante
o período que durar o embargo.
Depois de transcritas, as fitas, juntamente com o catálogo de re-
sumos, devem ser encaminhadas à biblioteca da instituição ou ao órgão Vejamos agora o que dizem Dean, Eichhorn e Deart (1969: 19)
competente para catalogação e uso futuro dos interessados. sobre as vantagens dos métodos (ou técnicas) não estruturadlJs (observa_
Como vimos, o processo que envolve a utilização da HO é longo ção participante, entrevista, história de vida e história oral) comparadas
e oneroso, além de exigir paciência e dedicação dos pesquisadores e do com aqueles chamados estruturados ou quantitativos. Antes. porém, de
pessoal de apoio. iniciar esta discussão, queremos enfatizar mais uma vez que Itão fazemos
Uma última palavra deve ser dita sobre as afinidades entre a HO, parte daqueles que creem na falsa oposição que muitas vezes se coloca
a entrevista e a história de vida. Deve ter ficado evidente que a HO repre- entre métodos qualitativos e quantitativos.
senta um tipo de entrevista, já que é produzida através do contato direto Acreditamos com Trow (1969: 132-136) que diferentes tipos de
entre duas pessoas: uma delas coloca as questões enquanto a outra forne- informação sobre o homem e a sociedade, são coletadas em maior pro-
ce informações. No caso da entrevista biográfica, ela representa também fundidade e de forma mais econômica de maneiras diferentes, e que o
uma história de vida, já que as questões são orientadas em função do problema sob investigação é que dita o método de investigação; e ;ânda, que a
percurso histórico do entrevistado, embora seja mais flexível em termos contribuição que os cientistas sociais podem acrescentar à Cl)mpreensão
da liberdade que concede ao depoente. Cada uma tem suas vantagens e da sociedade é mais um produto da forma como ele define setl problema,
limitações, mas não resta dúvidas que, quando obedecendo ao rigor cien- das questões que ele coloca sobre os dados e da adequação elos meSmos
tífico, todas contribuem com uma parcela na produção da ciência. às perguntas colocadas e à geração de novas questões, do q\le da maior
proximidade física que ele mantém com a vida social. Em outras palavras,
o fato da observação participante propiciar um conta to íntimo entre o
pesquisador e o meio observado não é garantia de compreetlsão e illter,
pretação válidas do fenômeno observado. Da mesma forma que é impos,
sível fazer observação participante junto a uma população de U111 milhã(J
de habitantes, é impossível (ou muito difícil) descobrir sigtlificados dt
ações e relações não aparentes e não verbalizadas em uma pesquisa d(J
~ tipo survey.
A aceitação de que os métodos não estruturados representam um
único método nos parece simplista. Apesar de suas especifÍcidades, na
maioria das vezes o pesquisador trabalha com vários métodoS aO mesm<J
tempo, como a observação participante, a entrevista e a hist6ria de vida,
dependendo dos propósitos que tem em vista. Da mesma forma, aque-
le que empreende uma pesquisa do tipo survey, onde () questionário é ()

94 95
principal instrumento de coleta de dados, pode utilizar a entrevista em . perigo de obter impressões errôneas nos seus primeiros contatos em campo
uma subamostra no intuito de aprofundar alguns aspectos que ficaram e de orientar seus questionamentos de forma viesada82 • Por outro lado,
nebulosos no estágio exploratório da pesquisa, ou mesmo na reconstitui- certas características do observador (sexo, raça, idade) podem aproximá-lo
ção da biografia de um líder comunitário. roais de certos informantes que de outros, por questões de afinidade. A
Em termos mais específicos, a observação participante, a entre- vantagem de maior flexibilidade dos métodos não estruturados é também
vista, a história de vida e a história oral, são mais frequentemente usadas: fonte de sua fraqueza.
a) em teses de hipóteses, quando os métodos estruturados não podem ser Em compensação, a observação não estruturada, assim como a
empregados; b) na reconstituição de um evento ou de uma série de even- entrevista etc., têm uma série de vantagens sobre o survey. O pesquisador
tos; c) na história de vida dos indivíduos, organizações ou mesmo de uma ~; não está preso a pré-julgamentos, uma vez que tem a possibilidade de
comunidade; d) em estudos pilotos sobre novas áreas do conhecimento, l' reformular o problema ao longo do tempo. Já o survey está manietado

onde o objetivo principal é a geração de hipóteses mais do que sua verifi- pelos supostos definidos antes da coleta de dados. Por causa de seu ín-
cação. Passemos, então, ao confronto entre os dois tipos de métodos: timo contato com a situação de campo, o observador participante pode
1) A primeira característica do survey é a estandardização nos pro- evitar questões irrelevantes ou sem sentido, enquanto que o questionário
cedimentos de coleta de dados, enquanto que a primeira característica de survey muitas vezes contém perguntas desnecessárias ou sem sentido,
dos métodos não estruturados é a não estandardização. O primeiro prima pelo próprio fato do pesquisador que o construiu ter menos familiaridade
pela comparabilidade dos dados, enquanto os últimos estão mais preo- com o problema estudado.
cupados em descobrir rumos novos e novas luzes, muitas vezes redire- - As impressões do observador de campo são muitas vezes mais
cionando a linha de investigação a partir das informações adquiridas ao acuradas quando se trata de classificar os respondentes do que um índex
longo da pesquisa. rígido de duas ou três perguntas de um questionário.
2) Os métodos não estruturados valorizam o tipo de interação es- - A observação participante, a entrevista etc., comumente usam
tabelecido entre pesquisador e informantes, onde o primeiro tem neces- pesquisadores mais qualificados que o survey, cujos "pesquisadores" são
sidade de ser aceito pelo grupo, de gozar da confiança de seus membros. meros aplicadores de questionários. O coordenador de um survey geral-
Por outro lado, as duas características destes métodos mencionados acima mente está longe de campo e frequentemente desconhece as dificuldades
geram dois tipos de limitação: de comunicação que suas questões evocam quando perguntadas por um
a) Por causa da forma não estandardizada como os dados são pesquisador menos qualificado.
coletados, eles geralmente não são úteis para tratamentos estatísticos. A - Usando métodos não estruturados o observador pode com mais
quantidade de informações obtidas, sobretudo, através da observação par- fàcilidade impor sua presença na área a um ritmo apropriado, evitando as
SUrpresas desagradáveis que certas questões de um questionário podem
ticipante é tão grande que a própria escolha das variáveis significativas se
SUscitar.
torna problemática. Os métodos mais estruturados requerem uma de-
- O observador participante pode constantemente modificar suas
finição operacional das variáveis e uma especificação das relações entre
.' categorias tornando-as mais adequadas ao problema, enquanto o pesqui-
elas, coisa que as técnicas quantitativas não fazem, necessariamente.
. sador de um survey está preso às categorias ou variáveis criadas na origem
b) A outra limitação se origina do tipo de relacionamento que o
da concepção do problema.
pesquisador estabelece em campo, isto é, a possibilidade maior de viés.
Desde que o direcionamento da investigação obedece, de certa forma. . 82. CE As falhas de observação por parte do observador já referidas anteriormente. Pode-se
aos dados que emergem no dia a dia da observação, o pesquisador corre o aqui certos desvios ocasionados por posicionamentos políticos ou ideologias
f,lIlIdi,eais de certos pesquisadores que levam à obliteração dos dados.

96
~ERGAMUM
97 "RCH/UFC
- A consideração de motivos ou intenções de uma ação é sempre Um questionário jamais poderia captar informações que o entrevistado
algo de problemático nas ciências sociais, apesar de muitas vezes essencial; não quisesse fornecer. Isto para não falar nos casos onde ele sequer
o observador de campo pode geralmente alocar motivos e/ou intenções aquiesce em responder.
com maior chance de validade pela oportunidade que tem de contrastar - Finalmente, os surveys são sempre mais dispendiosos do que a
ideais afirmados com comportamentos, podendo descrevê-los na forma observação participante ou a entrevista, embora mais rápidos.
como eles se lhes impõem, para futura corroboração ou modificação.
Não esqueçamos, entretanto, que as comparações feitas não têm
- O observador de campo tem a possibilidade de selecionar in-
o propósito de sugerir a observação, a entrevista etc., como alternativas
formantes a qualquer momento da pesquisa, desde que supeite que possa
para o survey. Como já enfatizamos antes, cada tipo de instrumento de
iluminar certos aspectos nebulosos do fenômeno estudado, enquanto o
cole ta deve se adequar ao problema da pesquisa. A questão que se coloca
pesquisador de um survey está preso aos limites de sua amostra.
- O observador de campo pode, geralmente, obter dados "delica- deve ser: Qual deles melhor ajuda na compreensão do fenômeno a ser
estudado?
dos" mais facilmente que um observador de survey, por não estar forçado
a consegui-los em um único momento. Como ele dispõe de tempo, pode
adiar certas questões, enquanto aguarda o momento propício para fazê-las.
- O volume de informações que um pesquisador absorve durante
a observação participante é tão grande, que parte delas é considerada in-
significante. Entretanto, à proporção que ele cria uma certa distância entre
elas e si próprio, descobre, muitas vezes, que elas são de grande valia. Já o
pesquisador de survey só pode se limitar aos aspectos que foram concebidos
como importantes antes da fase de aplicação do instrumento de coleta.
- É bem mais fácil para o pesquisador de campo selecionar infor-
mantes habilidosos que podem fornecer ínsíghts sobre muitos aspectos do
fenômeno quando se lhes dá liberdade de falar livremente. O pesquisador
de survey só permite que o informante fale sobre o que ele, pesquisador,
previamente definiu.
- As variáveis de difícil quantificação são provavelmente menos
viesadas pela observação e entrevista que pelas tentativas, às vezes infrutÍ-
feras, de mensurá-las em um survey. Os números não são mágicos; quan-
do usados de forma imprópria, eles confundem mais do que esclarecem.
- O observador de campo tem uma grande vantagem sobre o
pesquisador de survey em situações onde a pesquisa encobertaS3 é essencial.

83. A pesquisa encoberta já despertou discussões sobre o problema ético de "enganar"


o entrevistado, quando o pesquisador fazia-se passar por "operário", "favelado" etc., no
intuito de obter informações, mas zeloso de minimizar os efeitos inibidores de sua pre-
sença na área de estudo. Esta postura foi criticada por ser considerada um desrespeito para
com os informantes. Tudo indica que a posição mais correta seria a observação declarada.
onde o pesquisador fornece sua real identidade. Nos casos de pesquisa junto à classe
dominante, pensamos que, quando encoberta, pode ser tolerada, todas as dificuldades c
barreiras que o pesquisador enfrenta para "descobrir" fatos e mecanismos utilizados que
são danosos para a comunidade e, assim, poder denunciá-los.

98 99
, I,

TERCEIRA PARTE
A crítica e a alternativa aos métodos
de pesquisas tradicionais
11.
Pesquisa-ação e
pesquisa participante

Os termos pesquisa-ação e pesquisa participante têm a mesma


origem, a psicologia social de Kurt Lewin, e alguns pontos comuns
como a crítica à metodologia da pesquisa tradicional das ciências
sociais, especialmente no que se refere à sua falta de neutralidade e
objetividade; a recusa de aceitação do postulado de distanciamen-
to entre sujeito e objeto de pesquisa, o que remete à necessidade
não só da inserção do pesquisador no meio, como de uma par-
ticipação efetiva da população pesquisada no processo de geração
de conhecimento, concebido fundamentalmente como um pro-
cesso de educação coletiva; finalmente, o princípio ético de que a
ciência não pode ser apropriada por grupos dominantes conforme
tem ocorrido historicamente, mas deve ser socializada, não só em
termos do seu próprio processo de produção como de seus usos,
o que implica na necessidade de uma ação por parte daqueles en-
volvidos na investigação (pesquisador e pesquisado) no intuito de
minimizar as desigualdades sociais nos seus mais variados matizes
(desigualdades de poder, de saber etc.). Não obstante, estes elemen-
tos unificadores, as situações concretas e as diferentes estruturas e
conjunturas que caracterizam e diferenciam os países avançados
economicamente e aqueles subdesenvolvidos e dependentes, leva-
ram ao surgimento de alternativas diversas na aplicação deste tipo
de proposta. Assim é que na Europa, especialmente na França, a
pesquisa-ação se direcionou para as instituições sociais, concebidas
como portadoras de uma "violência simbólica", e para movimentos
sociais de libertação (ecológicos, estudantis, de minorias), enquan-
to que na América Latina, onde as desigualdades materiais são mais
ostensivas e a participação da maioria da população no "poder do
saber" representa um privilégio de poucos, esta alternativa de in-
vestigação dirigiu-se para os oprimidos ou dominados, aqueles que

103
estão situados na base da estrutura social (campesinos, operários, latino-americanos adotaram uma postura crítica com relação às
índios). Libertando-se teoricamente da corrente psicossociológica, metodologias tradicionais como consequência do descrédito que
este tipo de proposta ancorou-se em princípios humanistas - reli- a "ciência" tem provocado por ter-se mostrado incapaz de resolver
giosos e marxistas - adquirindo dinamismo próprio, especialmen- os problemas de pobreza, de subdesenvolvimento, da falta de
te através da vertente educativa de Paulo Freire, compartilhada e democracia, enfim, o problema das desigualdades sociais. No sentido
orientada por sociólogos colombianos e venezuelanos, para uma de apontar as diversidades de enfoques dentro destas perspectivas,
ação político-partidária, cujo papel do intelectual orgânico é enfati- incluiremos em nossa análise algumas práticas de pesquisa-ação
zado (GAJARDO, 1985: 37-38). (PA) , representadas pelos trabalhos de MicheI ThiolIent: Enquete
° estilo participativo de pesquisa e de planejamento, en- operária, de Alain Touraine: Intervenção sociológica e de René Barbier:
tretanto, não representava o monopólio desta corrente libertadora, Pesquisa-ação institucional. Da vertente latino-americana, a pesquisa
já que era amplamente praticado na América Latina por governos participante (PP), tentaremos elaborar uma síntese das diferentes
autoritários que, ao incorporar as populações no processo de inves- propostas. Antes, porém, de discutir os trabalhos individuais, fare-
tigação, visaram também o seu controle através de ações paliativas e mos uma caracterização da PA e, posteriormente, da PP.
assistencialistas e, consequentemente, a manutenção e permanên-
cia do status quo, ou seja, das estruturas básicas de dominação. Assim 1. A pesquísa-ação 86
sendo, os termos pesquisa participativa e planejamento participati-
vo deveriam ser distinguidos da nova proposta, através de maior
° termo pesquisa-ação se ongmou na psicologia social,
tendo sido cunhado por Kurt Lewin na década de quarenta, nos
rigor na definição, caracterização e explicitação de suas etapas de
Estados Unidos. Juntamente com a pesquisa-ação e, talvez, em
realização. Ao longo das décadas de sessenta e setenta, a América
decorrência dela, este autor criou também a dinâmica de grup087,
Latina vivenciou o desenvolvimento das mais variadas práticas de
pesquisa libertadora, surgindo a década de oitenta como o período técnica de suporte da primeira (BARBIER, 1985: 37). Ele, assim,
se refere à Action Research:
da pesquisa participante, conceituaI e metodologicamente definida.
É aí que a pesquisa participante assume a primazia sobre termos Quando falamos de pesquisa, estamos pensando em
pesquisa-ação, isto é, uma ação em nível realista,
correlatos e nem sempre precisos 84 .
sempre acompanhada de uma reflexão autocrítica
É nosso propósito discutir alguns exemplos destas experiên-
I I objetiva e de uma avaliação dos resultados. Como o
cias preferindo reservar o termo pesquisa-ação para as práticas de
objetivo é aprender depressa, não devemos ter medo
origem europeia, e pesquisa participante para aquelas que tiverem
de enfrentar as próprias insuficiências. Não quere-
a América Latina como loms de investigaçã085 . Cientistas sociais
mos ação sem pesquisa, nem pesquisa sem ação 88 .
Como diz Barbier (1985: 38):
84. Observa-se na literatura especializada referência e uso de termos tais como:
investigação alternativa, investigação participativa, autos senso, pesquisa popular, A pesquisa-ação de Lewin pode ser definida como
pesquisa dos trabalhadores, pesquisa confronto, investigação militante, pesquisa- uma pesquisa psicológica de campo, que tem por
ativa, estudo-ação, pesquisa-ação, intervenção sociológica, enquete-participação. objetivo uma mudança de ordem psicossocial.
85. ThioIlent distingue a pesquisa-ação da pesquisa participante: "A PA é uma
forma de Pp, mas nem todas as PP são PA [... ], os partidários da PP não concen-
tram suas preocupações em torno da relação entre investigação e ação dentro da 86. Para a caracterização geral da pesquisa-ação baseamo-nos fundamentalmente
situação considerada. Éjustamente esse tipo de relação que é especificamente des- em Barbier (1985), tradução do original francês publicado em 1977.
tacado em várias concepções da PA. A PA não é apenas Pp, é um tipo de pesquisa
centrada na ação" (1985: 83). Divergimos da distinção proposta pelo autor por 87. CE LEWIN, K Resolving Social Conflicts (1948) [Tradução brasileira, A dinâmica
termos constatado que muitas das experiências de PP introduzem o componente degrupo. São Paulo: Cultrix, 1974J.
"ação". 88. Apud MARROW, A.J. Kurl Lewin. Paris: ESp, 1972. ln: BARBIER, 1985: 38.

104 105
4

Posteriormente, com o desenvolvimento que sofreu, es- desenvolvimento de princípios mais gerais, como foi
pecialmente nos países anglo-saxônicos, ela passou a ser concebida demonstrado pela medicina clínica.
como tendo - A pesquisa-ação experimental que exige um estudo
por finalidade contribuir simultaneamente para o controlado da eficiência relativa de técnicas diferen-
alívio das preocupações de ordem prática das pessoas tes em situações sociais praticamente idênticas. É a
que estão em situação problemática, e para o desen- que possui maior potencial para fazer progredir os
volvimento das ciências sociais através de colabora- conhecimentos científicos dentro da perspectiva da
ção que as reúne de acordo com um esquema ético cientificidade tradicional (BARBlER, 1985: 39).
mutuamente aceitável 89
• É, pois, com Kurt Lewin que o conceito de intervenção 90 na
Os trabalhos de Lewin e seus discípulos se orientaram para vida social, com o objetivo de traniformá-la, toma corpo e a metodo-
a solução de problemas sociais que a sociedade americana expe- logia própria começa a se firmar e aperfeiçoar. Entretanto, o tipo de
rienciou durante e depois da Segunda Guerra Mundial envolvendo intervenção proposta pela escola de Lewin não pretende a transfor-
desde o problema judeu, como problemas práticos de fábricas e mação das estruturas da sociedade de classes como, depois, outras
indústrias vinculados à "decisão de grupo", à "auto-organização" correntes intervencionistas mais ligadas à sociologia terão por obje-
etc. A partir desses estudos, pôde-se distinguir quatro tipos de pes- tivo. É este o divisor de águas entre a psicologia social americana e
quisa-ação: as ciências humanas aplicadas europeias que, apesar de subsidiárias
A pesquisa-ação de diagnóstico que procura elaborar pIa- daquela, fazem uma nova proposta de ciência libertadora.
nos de ação solicitados. A equipe de pesquisadores Vale aqui lembrar a discussão de C.W Mills sobre a distin-
entra numa situação existente (revolta racial, ato de ção entre a sociologia pura e a sociologia aplicada, distinção neces-
vandalismo), estabelece o diagnóstico e recomenda sária para a compreensão da importância desta última como ciência
medidas para sanar o problema. que se ocupa dos problemas sociais que se impõem ao sociólogo e
- A pesquisa-ação participante que, desde o início, en- dão sentido à sua atividade na busca de soluções. Parece-nos que é
volve no processo de pesquisa os membros da co- dentro desta tradição que podemos enquadrar a pesquisa-ação na
munidade ameaçada, como foi feito, por exemplo, sociologia, embora ela tenha sofrido desdobramentos a partir da
no projeto de pesquisa sobre o autoexame das atitu- sua origem e influenciado outras áreas das ciências humanas como
des discriminatórias de uma comunidade (estudo de educação, economia, antropologia e a própria filosofia.
Horthtown, perto de Nova York, 40.000 habitantes, Avançando um pouco mais no sentido da vinculação entre
1948). teoria e empiria, Barbier (1985) propõe a utilização da noção de
- A pesquisa-ação empírica que consiste em acumular
dados de experiências de trabalho diário em grupos
90. A ideia de intervenção se opõe frontalmente à perspectiva do método não di-
sociais semelhantes (ex-clubes de rapazes). Esse tipo retivo proposto por Carl Rogers, psiquiatra americano de inspiração psicanalítica,
de pesquisa-ação pode levar de maneira gradual ao c~a influência na sociologia europeia se faz sentir especialmente na discussão
epistemológica sobre a entrevista como instrumento de coleta de dados. Rogers
89. REPPORT, R.N. "Les Trois Dilemes de la Recherche-Action". Conexíons. é Contemporâneo de Kurt Lewin e teve uma grande influência teórica no Brasil,
EPIIArip, 7, 1973 [apud BARBIER, 1985: 38]. sobretudo nos campos da psicologia e psicanálise, educação e religião.

106 107
"clínica" em ciências humanas, definindo o método clínico como dinâmica de grupo, técnica por excelência da pesquisa-ação, em
englobando "todo procedimento de observação direta e minuciosa, todas as suas dimensões, que exige do pesquisador um alto nível de
usado em entrevista ou em situações experimentais definidas (situ- qualificação no seu papel de "analisador", "moderador", "intérprete",
ações de teste)" (p. 45). Neste sentido geral ele se aplica às situações "animador", na ausência dos procedimentos intervencionistas
de terapia, de profilaxia, de aconselhamento ou similares. Nas ci- que podem levar ao fracasso do projeto que, não importando a
ências humanas, "o método clínico serve-se da abordagem quali- temática, deverá sempre levar ao desvelamento dos mecanismos
tativa, monográfica, e é aplicado de preferência no próprio terreno de exploração, à consciência libertadora e à luta pela transformação.
de investigação. A intenção é de explorar o comportamento e as Muitas das propostas da pesquisa-ação desenvolvidas no Brasil são
representações de um sujeito ou de um grupo de sujeitos diante de motivadas pelo desejo de mudança e aparentemente não levam na
uma situação concreta, para compreender-lhes o sentido (grifos nossos) devida consideração o papel do pesquisador, em termos não só de
colocando-se alternadamente na perspectiva de observador e na de suas habilidades92 como de sua qualificação específica para o tipo de
sujeitos-atores e de sua vivência" (p. 46). Foi dentro desta pers- intervenção que se propõe a fazer. Além de possuir um profundo
pectiva que certas correntes da pesquisa-ação se direcionaram para conhecimento do método científico tradicional, de suas vantagens
os estudos do fenômeno organizacional, ou seja, para a análise das e limitações, ele deve dominar as técnicas de dinâmica de grupo e as
instituições sociais, como expressão da própria sociedade91 , embora teorias subjetivas que a informam. A propósito da "implicação" do
algumas tenham se voltado para os fatores psíquicos e emocionais, pesquisador junto ao objeto pesquisado, Barbier (1985) distingue
outras para a abordagem sociopolítica. Assim: três níveis: o nível psicoafttivo, já que "na pesquisa-ação o objeto
É a consideração das estruturas de organização social - de investigação sempre questiona os fundamentos da personalidade
escreve J. Ardoino - e a análise das linhas de força profunda"; o nível histórico existencial, que remete ao questionamento da
do campo institucional que vão mostrar as novas existência do pesquisador, quanto a seus fundamentos, sua orientação,
formas, cada vez mais epifenomênicas, das relações suas opções afetivas e racionais fundamentais, e, finalmente, o nível
humanas e do jogo intersubjetivo: aqui a psicosso- estrntural-pnftsSional que se refere ao trabalho do pesquisador e seu
ciologia não está de acordo com a orientação inicial enraizamento socioeconômic093 •
da psicologia social [... ] Se invertida a polarização, Como decorrência, a implicação no campo das ciências
convirá falar de uma sociopsicologia das organiza- humanas é definida como "o engajamento pessoal e coletivo do
ções e das instituições (BARBIER, 1985: 165).
Por outro lado, parece evidente que todas estas corren- 92. Estamos convencidos que o bom pesquisador possui habilidades inatas que
não são supridas através de treinamento; quando muito, ele chegará a ser um bom
tes, independente da área, guardaram intactos os princípios da
técnico. A pesquisa-ação, pois, exige muito mais do pesquisador que a pesquisa
convencional pelo fato de, por definição, requerer um nível de interação maior
91. O autor lamenta a "morte da instituição" na sociologia contemporânea e se
entre pesquisadores e pesquisados, baseada em uma dinâmica dirigida por ele e
rejubila com o ressurgimento do conceito proposto por C. Castoriadis (cEA insti-
que pode levar a riscos de desestruturação dos grupos quando mal-executada. Por
tUÍ{ão imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, tradução do original
outro lado, pode levar também a interpretações errôneas sobre a situação do grupo
francês publicado em 1975) propiciado pelos movimentos estudantis de 1968, o
que reforçou a tese de que a gênese social do conceito precede sua gênese teórica. e sobre o real.
Há que lembrar também a importância alocada por Durkheim à instituição como 93. CE o capítulo 7, segunda parte, sobre o conceito de "implicação" na pesqui-
objeto da sociologia. sa-ação em ciências humanas (p. 105-128).

108 109
pesquisador em e por sua práxis científica, em função de sua his- tem como referencial teórico certos postulados do marxismo e do
tória familiar e libidinal de suas posições passadas e atual nas re- existencialismo sartriano.
lações de produção e de classe, e de seu projeto sociopolítico em A pesquisa-ação, como método de abordagem do real, tem
ato, de tal modo que o investimento que resulta inevitavelmente sido informada pelos mais variados matizes teóricos. Sua princi-
de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda atividade de pal característica, a intervenção, se presta tanto a ações integradoras
conhecimento" (p. 120). Assim sendo, o pesquisador, na pesquisa- que levam à autorregulação do objeto de estudo (grupo, instituição,
ação, precisa estar consciente não só de sua implicação no campo movimento social, indivíduo), e a mudanças não radicais, como a
de intervenção, como da dificuldade de analisar a prática dos gru- contestação das estruturas, e à luta por transformações revolucio-
pos sociais com o "máximo de objetivação e de rigor indispensá- nárias. Entretanto, no campo das ciências sociais, especialmente
veis a qualquer ciência" (BARBIER, 1985: 165). Contra a habitual na América Latina, é a sociologia crítica engajada que mais tem
objeção de que objetivação e intervenção representam elementos questionado o método científico convencional em nome do ideal
contraditórios, o autor argumenta que o risco da implicação não é da libertação dos povos e da igualdade social que a objetividade e
privilégio da pesquisa-ação, insistindo sempre que se trata de exa- neutralidade - fundamentos históricos daquele método - não têm
minar os homens em interação; logo, onde houver ciência huma- conseguido atingir.
na, haverá necessariamente a interferência do pesquisador com sua É também dentro desta tradição que se coloca o método de
"multidimensionalidade simbólica e imaginária". conscientização de Paulo Freire, no Brasil (1970), a pesquisa parti-
Se, como pensava Bachelard (citado por Barbier), o risco cipante de Orlando Fals Borda (1983)94, na Colômbia, e de Oliveira
existe em qualquer método científico, é preciso assumir este risco e Oliveira (1983) na África. Vale destacar os esforços dispendidos
na empreitada coletiva que é a pesquisa-ação em ciências humanas, por estes educadores que, como Paulo Freire, estão convencidos da
onde o "Trágico epistemológico está nisso: à exigência de clareza racio- necessidade de transformação social nos países subdesenvolvidos
nal se opõe a exigência inevitável da totalidade em atos. Com o reconhe- e consideram a educação como uma das instituições mediadoras
cimento da totalização, a cientificidade muda de maneira radical,
mergulhando na hipercomplexidade da natureza e da cultura. As 94. Fals Borda (apud BARBIER, 1985: 97) propõe algumas técnicas para trabalhos
regiões parceladas do saber se ressecam como palha ao sol: o ho- de pesquisa de campo:
"1. A observação-participação, de respeitável tradição, requer do pesquisador uma
mem voltando a ser natural compreende que a natureza é cultural
atitude 'de simpatia', sensível à personalidade das pessoas.
e que a cultura não pode estar separada da natureza" (p. 167). 2. A observação-intervenção, que implica a experimentação com os elementos
Para ele, é preciso que haja "homens-conectores" que pos- culturais no âmbito de uma situação, a fim de observar os efeitos das mudanças
sam representar a totalidade representada pelo real e pelas diferen- produzidas e induzidas dentro de certos limites.
tes regiões do saber como entre o pensamento e o real, cujo único 3. A observação-inserção, técnica apropriada para períodos de crise, que supõe
a utilização das duas técnicas anteriores e a 'necessidade de ir mais além' para se
denominador comum é a práxis social e histórica. Fora da práxis, obter uma visão interna completa das situações e dos processos estudados, uma
não há conhecimento possível. Assim sendo, a pesquisa-ação, por visão da ação presente e futura. Isso exige que o pesquisador em ciências sociais
ser uma práxis, esclarece e alimenta o processo de conhecimen- se envolva como agente, dentro do processo que está estudando, o que supõe que
to. É dentro desta perspectiva que Barbier propõe a pesquisa-ação ele tomou posição a favor de determinadas alternativas. Aprende não somente
pela observação que realiza, mas também pelo trabalho que executa junto com os
institucional, que analisaremos detalhadamente mais adiante e que
sujeitos com os quais se identifica".

110 111
que mais se adequam a esta tarefa, dado seu papel de transmissora 3. a interpretação, feita pelo próprio investigador, seria apre-
de conhecimento, formadora do pensar e socializadora de jovens sentada e discutida;
e adultos. Aqui o componente didático-pedagógico da educação 4. a utilização dos resultados seria coletivizada.
arrefece os pruridos epistemológicos relativos à interferência do edu- O que isto significa no desenvolvimento concreto de uma
cador-pesquisador junto ao polo pesquisado, justificando-a como situação de pesquisa? Em primeiro lugar, o pesquisador, ou grupo
função inerente ao próprio processo educativo. A função transmis- de pesquisadores, deverá eleger uma problemática de investigação
sora, entretanto, é reformulada no sentido da ação-reação levando atentando para o fato de que sua posição de classe e sua ideologia
à dinâmica do conhecimento, diferentemente da concepção con- podem interferir, seja ao nível da própria escolha da problemática,
servadora (Durkheim) que menospreza o "retorno" dos jovens seja ao nível da elaboração das questões do instrumento de coleta.
em termos da contribuição à inovação e à mudança social. Como A cautela deve estar presente através da "reflexividade" e do "rela-
interferência premeditada, a ação educativa deverá levar à transfor- tivismo cultural" a fim de que seja evitada a "imposição de proble-
mação libertadora, dentro de um processo endógeno que se alarga, mática", numa perspectiva de questionamento, mais que de observação
atingindo as estruturas sociais emperradas pelo capitalismo depre- unilateral". Obviamente, em se tratando de uma enquete operária,
dador das sociedades dependentes subdesenvolvidas. como o próprio título sugere, a problemática dever estar relaciona-
Já a sociologia engajada, referida anteriormente, obedece da com a condição operária.
aos princípios teóricos marxistas, embora quase sempre crítica das As questões devem ser elaboradas mais dentro de uma
posições ortodoxas e dogmáticas. Exemplo desta postura é a pro- perspectiva de questionamento do que de obtenção de resposta. Na
posta de Thiollent (1980). verdade elas se destinam à produção de um efeito de conhecimento
dentro da atividade mental dos respondentes e de uma avaliação
1.1. A enquete operária crítica sobre sua condição. O questionário deve obedecer a certos
fins didáticos, ou seja, deve levar os respondentes a produzirem
Ao invés de expor a argumentação de Thiollent a favor da
enquete operária como forma de pesquisa-ação, iniciando pela crí- suas próprias explicações. Embora se reconheça que isto implica
tica aos métodos (positivista-empiricista) e técnicas (questionário não só em certa "imposição de problemática" como em indução
e entrevista diretiva) da pesquisa convencional para, no final, apre- nas respostas 95 , elas se justificam, pois quebram a passividade e im-
sentar suas características, como faz o autor em seu livro, optamos pedem as respostas fáceis, de conteúdo vazio ou sem compromis-
pela sequência inversa. Iniciaremos, mostrando o que é a enquete so. A enquete operária pode ser planejada com amostras, mas os
operária: critérios de representatividade estatística não são determinantes (p.
1. a enquete operária seria uma "proposta particular de 113): Talvez o mais importante sejam os critérios qualitativos, ou
pesquisa-ação adaptada aos objetivos de autodescrição da condição seja, de representatividade política.
operária e capacidade de atuação" (p. 132). Ela se desenvolve em
95. "Para alcançar o objetivo de captar informação ou verbalizações situadas na
duas etapas: uma fase de investigação e uma fase ou campanha de
fronteira da ideologia dominante, o dispositivo de questionamento deve levar aos
sensibilização, bem mais ampla que a anterior;
respondentes uma informação dirigida (grifos nossos), que produza diversos efeitos
2. "[ ... ] o polo investigado seria capaz de controlar a obten- de desbloqueio ou de deslocamento de perspectiva" (p. 109). "O problema não
ção dos dados" através de sua coparticipação no próprio processo parece ser o de eliminar todo tipo de influência, impossível em última análise.
de pesquisa; Trata-se de dirigir e controlar a influência em função de certos objetivos de inves-
tigação" (p. 112).

112
113
A equipe de intelectuais (pesquisadores) desempenha o pa- só na crítica aos métodos e técnicas de produção de conhecimento
pel de vanguarda das massas e, como tal, cabe-lhe a direção política no sentido de identificar seus desvios, mas no constante controle
e atividade ideológica de conscientização, uma vez que "a enquete para minimizá-los, dentro da perspectiva da "vigilância epistemo-
operária é um instrumento de conhecimento da realidade concreta e lógica" de Bachelard; acredita que os dados não possuem evidência
um meio de ação de base que consiste em estabelecer contato com os intrínseca, mas que devem ser interpretados à luz de uma teoria;
trabalhadores" (grifos nossos) (p. 124). Logo, a prática da enquete crê na função coletiva da ciência, no seu valor para a humanidade e
operária não pode se tornar um fim em si, não exclui a necessidade não somente para alguns e na socialização de seus frutos 97 •
de um trabalho teórico nem substitui uma efetiva prática política. O autor parece não estabelecer distinção entre o que seja a
A importância da definição política dos objetivos da en- falsa neutralidade da ciência, a nosso ver relacionada com a discrimi-
quete operária não elimina as exigências metodológicas da investiga{ão. nação de seus usos e a falsa neutralidade dos métodos e técnicas utili-
Assim sendo, dois pontos são de fundamental importância: a) a zadas na produção da ciência. A constatação do primeiro aspecto não
conjuntura e a capacidade de definição política e ideológica do leva, como consequência, ao segundo. Em outras palavras, consi-
grupo; b) as exigências tecnocientíficas da investigação. "Para que derando que os instrumentos de produção de conhecimento não
ambas sejam dominadas, o grupo deve possuir uma grande homo- são neutros - levam a distorções -, logicamente se deveria contes-
geneidade política, reunir pessoas de grande competência metodológica e tar a própria ciência enquanto "explicadora" de fenômenos. Se seus
definir de modo realista os caminhos de acesso aos lugares onde a métodos são falhos, sua explicação também seria necessariamente
entrevista dos trabalhadores seja possível" (grifos nossos) (p. 126). falha. Por outro lado, pode-se aceitar a não neutralidade da ciência
Do exposto, torna-se claro que: em termos de seus usos e, ao mesmo tempo, buscar a neutralidade
A enquete operária é um tipo de investiga{ão, associada a uma dos métodos e técnicas de investigação.
a{ão política. Porque acredita na não neutralidade dos instrumentos de
Enquanto tipo de investigação, a enquete operária exibe captação do real, embora, ao mesmo tempo, insista na necessidade
certas especificidades que, a nosso ver, aceita alguns dos cânones do de um maior controle dos desvios, o autor parece decidir-se pela
método científico tradicional, modifica uns, rejeita e acrescenta ou- aceitação da inevitabilidade de alguns propondo, entretanto, uma
tros. Ela aceita, por exemplo, que todo problema empírico é, antes modificação na direção do "favorecimento" deles para as classes
de tudo, um problema teórico. Para conhecer o real é preciso que menos favorecidas. O raciocínio parece organizado da seguinte
o pesquisador ou grupo de pesquisadores articulem a teoria com forma: A pesquisa convencional não é neutra, ela sempre favorece
a empiria; acredita na necessidade de um rigor metodológico no aqueles no poder. Ela não é neutra, também, porque seus métodos
processo de captação dos dados 96 ; este rigor deve ser buscado não e técnicas são falhos. já que os desvios são inerentes à pesquisa
convencional, não importa que os mesmos, ou outros desvios, se-
96. "A radicalidade, a relevância sociopolitica de uma pesquisa não é determinada jam incorporados à busca de conhecimento, contanto que o polo
pelo simples fato de se relacionar à classe operária, ao proletariado rural, ao mo-
favorecido seja, agora, os desfavorecidos - os operários.
vimento sindical ou a qualquer outro movimento social. As condições de obten-
ção dos dados e os processamentos aos quais são submetidos - numa palavra, o
97. Vale, aqui, a distinção entre a concepção de ciência como ideal buscado e a
dispositivo metodológico - constituem o elemento determinante do que se pode
pretender alcançar" (p. 131). "Quando submetida às exigências do rigor observa- prática científica histórica. Se a segunda nunca conseguiu realizar a primeira, não
cional, a pesquisa sociológica pode contribuir para afastar o subjetivismo e até o p~e,. tampouco, eliminá-la. Neste sentido, a constatação da não neutralidade da
'misticismo' que, muitas vezes, existem entre militantes, acerca da classe operária clencla, mais aceita que negada dentro da comunidade científica, não pode ser
e de sua missão histórica" (p. 117). encarada como uma rejeição do ideal de neutralidade.

114 115
Percebe-se isto quando o autor argumenta contra a "impo- trismo para o desvirtuamento dos dados coletados. Pensamos que
sição de problemática" das pesquisas convencionais, justificando-a este também está sujeito a todas as i~unções maléficas que atacam
na enquete operária. Enquanto no primeiro caso a "imposição" aquele. Não fosse assim, a crítica deveria recair na má-fé do pri-
ocorre como consequência das interferências ideológicas e da fal- "

• meiro, ao lado da pureza de intenções do segundo, o que julgamos


ta de relativismo cultural do polo investigador, no segundo, ela se não ser o caso do autor.
justifica como instrumento didático de conscientização do polo Por outro lado, a crença implícita na possibilidade de uma
investigado. vanguarda burguesa, com pontos de vista do proletariado, de intelec-
Também com relação à função "indutiva" das questões do tuais orgânicos do proletariado, pode ser questionada de dentro dos
dispositivo de investigação, o autor a reconhece e critica quando usa- próprios postulados marxistas. Como diz Gouldner (1979: 58).
da na pesquisa convencional, mas aceita-a e justifica-a na enquete De acordo com Marx e Engels, pois98, alguns intelectuais
operária por seu caráter de questionamento, que enfatiza a dimensão são radicalizados pela sua "contemplação" e compreensão
cognitiva e política das relações de classe. Como diz o autor: teórica da história. É surpreendente quão idealista é a vi-
No contexto da enquete operária, ou de outras são de Marx e Engels sobre o processo. Claramente isto
concepções de pesquisas comparáveis, a influência contradiz a assunção fundamental do marxismo de que
exercida pelas perguntas tem por objetivo tornar "o ser social determina a consciência". Como pode a cons-
os interlocutores capazes de ultrapassarem o plano ciência de um proletariado revolucionário emergir entre
da resposta estereotipada, ou resposta condicionada aqueles cujos seres sociais eram da classe dominante?99
pela conformidade à ideologia ou à moral dominan- Obviamente o autor comunga com Marx e, sobretudo,
te como no caso de escalas de atitudes [... ] para che- com Lenin, sobre a necessidade de uma vanguarda intelectual na
garem ao plano da autodescrição de uma situação. É condução da luta; com eles, devemos dizer, também concordamos.
claro que tal deslocamento de perspectiva não resul- Nossa dissonância com o autor situa-se na não problematização,
ta apenas da formulação das perguntas. Deve-se le- ou melhor, na insuficiente problematização da condição do
var em conta os modos de comunicação e a inserção pesquisador da enquete operária que, aparentemente, estaria isen-
não artificial do dispositivo de investigação dentro to das interferências que caracterizam o pesquisador da pesquisa
da população ou classe privilegiada. Consideramos convencional. O autor aloca demasiada importância ao controle
não artificial esta inserção quando os grupos inves- sobre os dados que pode ser exercido pelo pesquisado, o que nos
tigados têm iniciativa e controle dentro do processo parece também insuficiente para coibir a prática do dogmatis-
de investigação, concebido em ligação com a prática
efetiva do grupo, como é o caso na enquete operária
98. Refere-se ao Manifosto comunista.
(p.112).
99. ''According to Marx and Engels, then, some intellectuals are radicalized by
É interessante notar a aceitação, embora apenas implíci-
their 'contemplation' and theoretical comprehension ofhistory. It is striking how
ta, por parte do autor, do papel do pesquisador da enquete que, idealistic Marx and Engels account of the process is. Clearly, this contradicts
diferentemente do pesquisador que se ocupa das pesquisas con- Marxism's fundamental assumption that 'social being determines conciousness'.
vencionais, não contribui com sua ideologia e com seu sociocen- How could the conciousness of a revolutionary proletariat emerge among those
whose social being was that of the 'ruling c1ass"'?

116 117
,
mo, do autoritarismo, do economicismo, do desvio político e da as questões em caso de incompreensões por parte da população
incompetência na enquete operária, apenas referidos. Como na pesquisada 101 . Na verdade a enquete operária parece ser um survey
pesquisa convencional, a enquete operária também joga sobre os intraclasse, ao invés de interclasse como o convencional.
ombros do pesquisador a mesma responsabilidade, ou talvez maior Vejamos agora com mais precisão as críticas que o autor
pelo simples fato do viés consentido e/ou intencional liberar os levanta sobre a pesquisa convencional. Ele inicia afirmando que
limites da vigilância epistemológica, insubstituível. a ciência não é neutra, consequentemente, seus métodos também
A pretensa correção do viés de classe (falsa neutralidade) não o são. Nas ciências sociais as técnicas de coleta de dados são
da pesquisa convencional através da proposta da enquete operária viesadas de várias maneiras (questionário e entrevista).
remete à questão da objetividade do método científico ou, no di- A falsa neutralidade da ciência, a nosso ver, pode ser des-
zer de Demo (1980), à busca de objetivação uma vez que a obje- membrada em dois componentes: a) com relação aos usos dos re-
tividade absoluta é reconhecidamente inatingível. A objetivação é, sultados da ciência; b) com relação às formas de produção de conhe-
pois, substituída pela ação política introduzida dentro do próprio cimento. O primeiro ponto remete à ciência como instrumento de
processo de geração de conhecimento, o que nos parece inapropria- poder e quanto a isto estamos em perfeita sintonia com o autor.
do ou, em outras palavras, esdrúxulo. A questão deve ser colocada Os manuais de planejamento de pesquisa
não em termos da oposição à ação política em si, mas em termos de convencional apresentam a utilização de resultados
sua adequação como elemento do método científico. A ação polí- como uma questão de ética, rapidamente solucionada
tica é, inegavelmente, necessária dentro da prática sociológica, mas com o argumento da pretensa neutralidade técnica,
ou como estilo de exposição adaptada, quer ao grande
a nosso ver não é necessária nem desejável dentro da prática de
público, quer ao público restrito dos decision makers.
produção de conhecimento do tipo enquete. Entendemos não ser
Este tipo de tratamento não parece enxergar que to-
a enquete o tipo de método que melhor se presta a uma interação
dos os eventuais utilizadores não são iguais, ou, mais
íntima entre pesquisador e pesquisado, nem à captação de dados
ainda, que cada tipo de conhecimento é funcional
qualitativos de natureza subjetiva, qual sejam aqueles que explicita-
dentro de certas relações de poder (p. 130).
riam e desvendariam elementos de falsa consciência dos operários
Uma vez reconhecida a não neutralidade na utilização
ou suas "definições de situação"lOO com todas as consequências que dos frutos da ciência, ou seja, a diferenciação e discriminação
elas acarretam. de certas classes que se beneficiam mais ou menos daqueles re-
Pela exposição de Thiollent, o tipo de interação entre o polo sultados, o autor sugere outro modelo de conhecimento, que visa
pesquisador e o polo pesquisado se concretiza apenas no momento a emancipação:
de aplicação do instrumento de coleta, ou seja, do questionário Este modelo de investigação que prevalece até hoje
(ou entrevista diretiva); por esta razão, pensamos que ele sofre das em matéria de pesquisa social, por racional ou efi-
mesmas limitações da pesquisa de tipo su rvey , no sentido de que está ciente que seja, não pode ser imposta como único
preso à amostra e tem pouca chance ou nenhuma de reformular padrão de legitimidade científica. Apesar de sua ilu-
são de neutralidade, este modelo é requerido pela
100. Como já nos referimos anteriormente a "definição de situação" é um ter-
mo criado por WI. Thomas que o explicita: "Se uma pessoa define uma situação 101. Mesmo depois de um acurado pré-teste, o instrumento de coleta quase sem-
como verdadeira, ela é verdadeira nas suas consequências". pre contém defeitos.

118 119
funcionalidade do saber em relação ao poder, neste
, tionário e o universo dos respondedores. Relativamente
sentido, ele é politicamente "engajado". É possível ima- a cada um dos dois universos, a relevfu1cia e significação de
ginarmos um outro modelo 102 de investigação que seja urna pergunta não são necessariamente comparáveis (p. 48).
associado a uma política orientada em direção à eman- A argumentação do autor é a seguinte: uma problemática
cipação e, nem por isso, menos "científico" do que o de pesquisa sempre existe. Entretanto, o pesquisador deve exercer
modelo convencional ligado ao poder vigente (p. 131). certo controle sobre suas características de membro de uma classe -
O segundo componente embutido na crítica à neutralidade e, como tal, possuidor de uma ideologia através da reflexidade e do
da ciência se refere àsformas de produção de conhecimento e, como relativismo, "concebidos como preocupação de autocontrole das
tal, está dirigido aos aspectos técnicos desta produção, ou seja, aos implicações sociais dos analistas da sociedade" (p. 131).
mecanismos (métodos e técnicas) que possibilitam a captação do O que queremos criticar nas precedentes observa-
real. O autor centra seus ataques especialmente ao questionário e à ções não é a existência de uma problemática de in-
entrevista diretiva, cujas principais falhas seriam: vestigação, sempre necessária, mas sim a dissimula-
a) Os instrumentos de coleta provocam distorções porque são ção de problemáticas ideologicamente marcadas ou
construídos de formasociocêntrica, ou seja, a partir do universo cultural dos socÍocentradas nas formas de representação do social
pesquisadores e não dos problemas e experiência dos respondentes; das classes médias ou de diferentes elites. Logo, o
b) Como consequência do sociocentrismo presente nos dis- que está em jogo é a ausência por parte dos inves-
positivos de investigação, eles manifestam uma imposição de pro- tigadores da autoavaliação da problemática e das in-
blemática que estimula a produção de respostas chamadas reativas; terferências ideológicas que nela têm lugar, inclusive
c) Por outro lado, a distância cultural existente entre os dois na formulação da pergunta [... ] Reflexividade e rela-
universos (pesquisadores e pesquisados): 1) remete à não compara- tivismo cultural são duas qualidades necessárias para
bilidade das respostas quando a população entrevistada é heterogênea. dirigir investigações sem "imposição de problemá-
O argumento é que apenas aqueles grupos (ou sujeitos) compa- tica", numa perspectiva de questionamento mais do
ráveis ao dos pesquisadores poderiam compreender o sentido das que de observação unilateral (p. 51-52).
questões; 2) "induz o pesquisador a interpretações erradas que, regra ge- d) O questionário e a entrevista representam um dispositi-
ral, concordam com sua visão de mundo ou com a de quem enco- vo de investigação unilateral, no sentido de que não são capazes de
mendou a pesquisa" (p. 48). estabelecer uma comunicação recíproca, um sistema de troca entre
O problema de imposição de problemática pelo questioná- entrevistador e entrevistado, tolhendo a criatividade e iniciativa dos
rio consiste no fato de colocar o entrevistado frente a urna entrevistados.
estruturação dos problemas que não é a sua e no fato de Tentemos atingir o argumento:
estimular a produção de respostas que chamamos reativas. A unilateralidade contida no dispositivo da pesquisa
O problema remete à distância socia1 ou cultural que existe convencional já define de antemão o fato de que as
entre o universo dos pesquisadores que concebem o ques- populações implicadas no objeto de investigação não
terão nenhum poder de iniciativa no processo de in-
vestigação, tanto na fase de exploração como na de
102. Este novo modelo será explicitado mais adiante.

120 121
utilização. Sabe-se que os procedimentos aplicados e objetos de investigação um substancial status de
no decorrer da pesquisa terão um efeito de apropria- paridade. Troca e comunicação recíproca. A socio-
ção, monopolização, rotulagem do saber popular, logia como participação. A investigação como coin-
decrevendo, sintetizando, interpretando os seus ele- vestigação. A autogestão operária da investigação, co-
mentos sob formas especiais de apresentação que só mo processo de conscientização e de transformação
interessam a quem dispõe do poder, seja ele real ou objetiva que parte da autodescrição da situação de
simbólico (p. 130). trabalho e chega à interpretação complexa da situação
A nosso ver, o fato de um instrumento de coleta de dados
na fábrica e na sociedade (p. 121-122).
ser unilateral não implica necessariamente que seus resultados não
Percebe-se nos dois autores que a unilateralidade é malé-
possam ser utilizados pelo próprio pesquisado, embora, na prática,
fica, porque não é política. O papel dos intelectuais é, pois, "trazer
isto aconteça.
o que eles sabem de um modo que não prejudique a iniciativa dos
Este relacionamento (entre polo investigador e polo
investigado) deve ser concebido de tal maneira que
trabalhadores, ou melhor, que favoreça as condições de sua criati-
seja concretamente capaz, em cada contexto de in- vidade", "em lugar de levar ao proletariado a ciência com todos os
vestigação, de permitir a iniciativa, a criatividade dos riscos de cientificismo, de autoproclamação e de passividade" (p.
"investigados" e uma comunicação profunda com os 122-123).
investigadores. Mais do que informantes ocasionais,
certos dos indivíduos ou grupos implicados numa 1.2. A intervenção sociológica
determinada situação devem se tomar, no decurso da Iniciaremos a apresentação da concepção de Touraine (1982)
pesquisa, investigadores nesta situação (p. 131-132). sobre a intervenção sociológica pelo fim de seu artigo, onde ele defi-
Aparentemente pode-se pensar que o autor se refere a al- ne, na verdade, seu pensamento político e sua perspectiva sobre
gum problema ético, envolvendo um desrespeito ao entrevistado a razão de ser da sociologia e de seu método. Vale a pena ouvi-lo:
pelo fato de a ele só ser concedida a palavra naquele tipo de assunto [ ... ] é com angústia que nos perguntamos se o espa-
"imposto" pelo pesquisador e que uma intercomunicação seria algo
ço da sociedade civil que conseguimos aos poucos
de mais "humano" ou ético. Cremos que pode ser isto também,
estender no Ocidente no decorrer dos séculos não
mas a crítica se dirige mais ao "padrão positivista-empiricista da
será novamente invadido pela floresta estatal. A ra-
observação convencional" sugerindo o estabelecimento de "uma
nítida ligação entre a dimensão metodológica e a dimensão política zão de ser da sociologia é defender, palmo a palmo,
do processo de investigação" (p. 120). esta clareira e as culturas que as coletividades huma-
No intuito de reforçar seu ponto de vista, o autor faz uma nas nelas desenvolvem. O método de intervenção
longa citação de Ferrarotti lO3 que reproduzimos em parte: está a serviço desta defesa. Uma de suas metas é o
Não há possibilidade de sociologia genuinamente conhecimento, mas procura também elevar o nível de
crítica se não se reconhecer entre investigador ação, proporcionar à ação real uma aproximação cada
vez maior do máximo de ação possível. Procura ajudar
103. FERRAROTTI, Franco. "Uma sociologia alternativa: Da sociologia como os homens a fazer sua história.
técnica de conformismo à sociologia crítica". Crítica e sociedade 6. Porto: Mronta-
mento, 1976, p. 50.

122 123
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Aparece num momento em que, sobre as ruínas ções e sob que forma ele pode ser aplicado a outros campos sociais
das ilusões destruídas ou traídas, essa confiança na e a outras situações sociais". A título de sugestão ele aponta áreas
produção da sociedade recua e, em face dos Estados que não estão necessariamente caracterizadas como movimentos
todo-poderosos, só se procura apoio no mais indivi- de oposição ou populares: a) as condutas dos meios dirigentes, ou
dual e no menos social, na natureza e no inconscien- seja, junto à classe dirigente de grandes organizações industriais
te. Não se pode separar um caminho de pesquisa nas ou não, privadas ou públicas; b) movimentos camponeses ou po-
ciências humanas das razões históricas e sociais que pulistas urbanos de países dependentes e/ou ex-colônias, a fim de
o fizeram surgir. Não é contraditório afirmar que a compará-los com as pesquisas semelhantes nos países centrais; c)
intervenção sociológica tem um valor humanístico e condutas políticas e condutas organizacionais no interior de gran-
reconhecer que ela é, também, o signo de um dese- des organizações de produção, de administração, de educação, de
jo de fazer renascer uma consciência da história, e saúde etc.; d) condutas de ordem, de crise ou de mudança, isto é,
assim difonder e riforçar as chances da democracia (grifos típicas dos países onde a industrialização foi dirigida por Estados
nossos), (p. 45). autoritários que geraram relações sociais recobertas por relações de
Estas preocupações do autor são frutos de sua experiência ordem e por uma dominação estatal; e) condutas de desvio indi-
com o método da intervenção sociológica aplicado à greve estudan- vidual ou mesmo de loucura vistas como expressões individuali-
til (1976), ao movimento antinuclear e ao movimento occitano na zadas de uma "privação da ação histórica"; f) os "antimovimentos
França, embora tenha sido concebido já em 1973. O programa pre- sociais", ou seja, "tudo aquilo que, numa comunidade, estimula o
via uma intervenção no sindicato operário e outra no movimento comportamento defensivo e o consenso contra um inimigo exter-
de mulheres. A questão teórica fundamental dirigida aos cinco es- no". Exemplo disto são os movimentos de defesa comunitários;
tudos é: g) as condutas sociais desenvolvidas sob a dominação absoluta do
em que pode consistir e sob que forma pode manifestar- Estado, como no caso do Brasil, cujas forças sociais aos poucos li-
se o movimento social popular que, numa sociedade mitaram a dominação da ditadura militar e que podem ser con-
pós-industrial ou em via de pós-industrialização, sideradas como lutas contra o Estado, cuja natureza merece uma
ocuparia o papel central que o movimento operário reflexão.
desempenhou na sociedade industrial e que o mo- Touraine afirma que "a escolha de um método não depende
vimento pelas liberdades civis desempenhou nas de considerações técnicas; cada método corresponde a um tipo de
sociedades mercantis pré-industriais (grifos nossos) abordagem, a uma representação da realidade social e, por conse-
(p.44). guinte, à escolha do pesquisador ao privilegiar um certo tipo de
A questão se dirige, pois, a uma sociedade pós-industrial conduta (1982: 37). Assim sendo, aqueles interessados em conhe-
e pretende descobrir os tipos e as formas de movimentos sociais cer a natureza das normas culturais e sociais de uma coletividade
passíveis de desempenharem um papel histórico na construção da colocam-se na posição de observadores (antropólogos e sociólogos;
sociedade francesa. Mas existem também outros campos de apli- aqueles interessados nas determinações sociais das condutas recor-
cação para a intervenção sociológica além dos movimentos sociais, rem ao método de levantamento extensivo (survey); aqueles interes-
e Touraine convida os interessados a examinarem "em que condi- sados pelas decisões, mudanças, relações de influência e de poder

124 125
desenvolvem estudos de caso, tentando reconstruir a história oculta racionalidades limitadas, estratégias e eventos naqui-
de uma decisão 104 ; aqueles que se interessam pelos atores históricos lo que outrora parecera de domínio da organização
recorrem ao método historiogrcifico; enquanto aqueles que pretendem científica do trabalho. Nessas condições, ao invés de
estudar a maneira como uma sociedade se reproduz a si própria, os representarmos a sociedade como um princípio cen-
seus modelos culturais e as suas relações sociais encontram-se des- tral de unidade ao qual se refere o funcionamento
providos de qualquer método. A intervenção sociológica vem suprir das instituições específicas, é importante romper esta
esta lacuna. ligação da análise sociológica com a análise histórica
A importância desta área de estudo deve-se à multiplici- e não mais confundir o Estado com uma sociedade
dade de formas de produção de sociedade, hoje, cuja capacidade produzida por suas orientações culturais e suas rela-
de produção ou de destruição é quase ilimitada. Por esta razão, a ções sociais (p. 38-39).
noção de sociedade é questionada por basear-se nas heranças de O principal problema, entretanto, é que estas relações
séculos passados que enfatizavam a ordem na mudança. Com a sociais não se oferecem à observação imediata; daí a necessidade
presença crescente do Estado nacional a noção de sociedade se tor- de concentrar a atenção sobre os atores em suas condições sociais
na "perigosa". O autor se define: concretas, a fim de que se possa perceber as condutas de produção
Não acreditamos mais na existência de um princípio conflitual da sociedade.
central de ordem assegurando as funções vitais de A simples observação não é suficiente; é preciso criar situa-
toda a coletividade. Acreditamos antes na existência ções quase experimentais, nas quais se possa analisar de forma
de relações sociais de inovação cultural e de meca- aprofundada e duradoura grupos restritos; nas quais o ator fique
nismos políticos através dos quais vai sendo constan- em condições de manifestar o questionamento de sua situação,
temente redefinida a situação social, de modo que seus objetivos e sua consciência a respeito dos conflitos nos quais
ela nos aparece de preferência como evento que não está envolvido. Somente isso não seria suficiente; é preciso que o in-
corresponde a qualquer racionalidade geral, que é vestigador intervenha diretamente:
pouco coerente e que é instável. [... ] é preciso que o ator passe das condições de res-
A análise das organizações desempenham aí um pa- posta e de adaptação para as condutas de projeto e
pel fundamental. Hoje, não podemos mais acreditar de conflito através do pesquisador. Somente a in-
que uma organização possa ser comandada por prin- tervenção ativa e pessoal do pesquisador, ao puxar o
cípios científicos; tampouco acreditamos que, pelo ator para as relações mais fundamentais nas quais se
menos nessas sociedades, ela seja somente a obra acha envolvido, permitirá que ele deixe de se definir
de uma dominação central. Aprendemos, graças so- como respondente da ordem estabelecida (p. 39).
bretudo aos trabalhos norte-americanos, a descobrir Contra o aparente paradoxo entre os estudos dos atores
históricos e dos movimentos sociais através de pequenos grupos, o
104. Lembramos aqui os estudos empreendidos nos Estados Unidos dentro da autor argumenta que é nos pequenos grupos que os atores sociais
perspectiva teórica do interacionismo simbólico através da observação participan- estão habituados a ver a unidade de base de seu movimento, tais
te. CE DALTON, Melville. Men U'ho manage (1959), e GOULDNER, Alvin W,
como: célula política, comunidades religiosas, associações locais.
Patterns cflndustrial Bureaucracy (1954).

126 127

Este tipo de estudo de grupo se distingue daqueles que têm por o verdadeiro objeto da intervenção sociológica não é, pois,
objetivo a captação dos mecanismos subjetivos das relações sociais, o ator, mas a relação social, onde os reais contendores se enfrentam:
a seu ver desprovidos de qualquer fundamento por operar a redu- empregadores e assalariados, colonizadores e colonizados, dirigen-
ção das relações sociais às relações interpessoais. Sua importância tes de Estado e dissidentes etc. !Os
II ' reside no fato de considerar os membros do pequeno grupo como Após cada encontro, pesquisadores e militantes se reúnem
atores históricos, como produtores de sua história, de transforma- em sessões fechadas onde comentam sobre os encontros, inician-
dores de sua situação: do, assim, a autoanalise. O mais importante nesta discussão é a au-
O ponto de partida da intervenção sociológica con- toanálise dos atores, onde são desvendadas a consciência de clas-
siste em constituir tais grupos, formados por atores se 106, meta primeira do pesquisador. No início destes encontros os
os mais estritamente militantes, que assim perma- grupos agem como "grupos exemplares", isto é, reproduzindo os
neçam durante toda a duração da pesquisa, mas que, debates que se processam ao longo da luta ou da ação coletiva. É
como militantes, se engajem também num trabalho preciso, entretanto, operar a transformação destes grupos em "gru-
de análise. pos-figuras" através de uma "reviravolta" que consiste num dis-
Não deve haver contradição entre o papel de mili- tanciamento em relação à prática e na produção de interpretações
tante e o papel de analista, já que o analista está orien- gerais da prática. Esta transformação
tado para a descoberta do sentido mais prcifundo da ação pode-se dar tanto espontaneamente como por inicia-
(grifos nossos) (p. 40). tiva do pesquisador e leva àquilo que se pode chamar
A formação desse tipo de grupo - composto de uns dez de análise ideológica, porquanto ligada à ação - por
participantes - enfrenta, entretanto, a dificuldade que se apresenta isso mesmo ideológica - e, desde já, analítica. Esta
por parte do ator em dissociar a análise de sua ideologia, pelo fato reviravolta é uma fase essencial no caminho que leva
de permanecer "dono de seu sentido". Ao invés de serem interro- à conversão, momento central da intervenção (p. 4).
gados sobre suas opiniões, atitudes ou ideologias, o que represen- A passagem de "grupo-exemplar" para "grupo-figura" ocorre
taria um reforço às condutas de resposta do grupo frente a uma depois da primeira fase de intervenção, quando são reexaminados os
situação dada, adota-se um procedimento oposto, ou seja, relatórios datilografados, fitas cassete ou gravação de vídeo produzidos
os grupos logo que formados são confrontados com durante as confrontações e as discussões fechadas.
interlocutores que são seus parceiros sociais na vida Já a "conversão" representa a passagem "da análise em ter-
real. Substitui-se assim a expressão da ideologia pela mos práticos para a análise em termos de movimento social que
experiência de uma relação social. É mesmo desejá-
vel que os primeiros interlocutores convidados se-
105. Além dos antagonistas na relação social o autor fala na possibilidade de in-
jam os adversários mais evidentes do grupo (p. 40).
corporar um terceiro grupo que representaria o contexto da ação estudada, o que
De preferência, são os próprios grupos que escolhem seus ele chama de "agência de historicidade". Por exemplo, na confrontação entre um
interlocutores. Ao pesquisador cabe o papel de moderador, cuja grupo patronal e um grupo sindical, poder-se-ia acrescentar outro composto de
principal tarefa é evitar que os componentes fujam da discussão ou técnicos que representariam a industrialização.

que dela participem de forma artificial. 106. O autor entende que toda classe tem uma consciência, embora, às vezes,
mesclada com outras consciências.
~...,( ... j\ '1\1'1 M
~k".;or,h". l.._ .
128 129
;~CHíUFC
pode estar presente na prática", mas unicamente o pesquisador
'" o método, entretanto, sofre de algumas limitações que o
autor chama de "problemas". Primeiramente, ele não permite uma
pode realizá-la tentando mostrar ao grupo a imagem do movimen-
previsão histórica, ou seja, ele não analisa as chances que uma ação
to social que confere à prática a sua importância.
coletiva tem de adquirir certa importância histórica. Ele, quando
Ele puxa a prática e sua interpretação para o nível
muito, revela a natureza do "movimento social possível"107 e, a par-
mais elevado possível. Não procura colocar-se em
tir daí, pode-se perceber a distância entre o movimento social real
outro nível que não seja o da ação histórica. Seu pa-
e o possível. A intervenção sociológica, entretanto, não tem a pre-
pel é o de fazer perceber sob que forma e com que
visão como objetivo, e sim, a análise dos mecanismos que permitem a
força as condutas de produção da sociedade estão
formação da ação coletiva e dos movimentos sociais.
presentes nas condutas que podem também ser per-
O segundo problema está vinculado à definição do papel
cebidas em outros níveis da vida social (p. 41).
dos pesquisadores, dadas as duas funções exigidas pela própria
Na verdade, diz o autor, a conversão da análise prática para intervenção: a) de acompanhar a autoanálise dos atores; b) enca-
a análise do eventual movimento social presente na prática, in- minhar o grupo à conversão. A primeira função é desempenhada
terpretada pelo pesquisador, representa uma "hipótese" que ele pelo intérprete e a segunda pelo analista, já que as duas funções não
apresenta ao grupo que a ela reagirá a fim de que seja testada sua podem ser fundidas na mesma pessoa. Ambos devem manter certa
validade, de preferência, também, em outros grupos. Este processo distância em relação ao grupo. O intérprete tenta evitar as rupturas
é parte da "sociologia permanente", ou seja, o conjunto das opera- entre a experiência de luta real do grupo e sua atividade no quadro
ções que ocorrem após a conversão. A experiência do autor levou-o da intervenção. Já o analista procura construir hipóteses sobre a
a refletir sobre a necessidade de criar um research design: ação em questão.
[... ] combinando dois ou três grupos constituídos Quanto mais distinta for a separação entre luta e movimento,
durante a primeira fase de intervenção, com um tanto mais separadas serão as duas funções (intérprete e analista) e
, conjunto de grupos, alguns dos quais estudados tão menos comunicação haverá entre os dois pesquisadores. A crise no
demoradamente quanto na primeira fase, no decor- seio do grupo surgirá como consequência, indicando uma ausência
rer da sociologia permanente. Esses novos grupos de movimento enquanto tal.
devem ser escolhidos de maneira que possam ser Um dos perigos que envolve os pesquisadores é sua exa-
formuladas hipóteses sobre a aplicação possível a es- gerada identificação ao grupo, o que pode ocorrer, seja por razões
sas novas situações. ideológicas, para comprovar sua lealdade, ou no intuito de tornar-
Assim sendo, entre a primeira fase, ou seja, a etapa da se líder.
intervenção até a "conversão", e a segunda, - combinação dos A excessiva identificação é prejudicial ao andamento da in-
vários grupos - deve haver um intervalo de um ano, a fim de tervenção porque pode levar à ilusão de que o grupo é mais autô-
que as hipóteses sejam testadas em circunstâncias novas onde a nomo e ativo do que realmente é, impedindo, assim, a conversão,
influência dos pesquisadores não se fará mais sentir. Com efeito, momento em que a distância entre pesquisadores e pesquisados
a sociologia permanente envolve todas as atividades que os grupos deve ser a maior possível.
desenvolvem entre um período e outro e dispensa a presença dos
pesquisadores. 107, Como um tipo ideal weberiano ou no sentido de L. Goldmann.
Outra crítica à intervenção sociológica - além da falta de grupo. O autor admite que são vários os fenômenos que podem
previsibilidade - é aquela referente ao fato dela não ter valor demonstra- despertar interesse quando se analisa um grupo, tais como a natu-
tivo, ou seja, pelo fato de basear-se na interferência deliberada dos reza do laço social (Freud) ou a maneira como o grupo pode com-
pesquisadores em termos de suas sugestões e interpretações sobre portar-se à mudança e tomar decisões. Na verdade, a intervenção
o grupo, o sucesso estaria praticamente garantido: os pesquisadores sociológica não opõe o futuionamento interno do grupo aos problemas
sempre encontrariam a presença de um movimento social no seio de luta da qual seus membros participam; o que ele se propõe é
da luta. Contra isto o autor argumenta: analisar as relações intragrupo à luz das "hipóteses propriamen-
Essa objeção requer, em primeiro lugar, respostas te sociológicas". Dada a importância das modificações internas, os
gerais. É preciso dizer novamente que a conversão relatórios de pesquisa não são mais exposições sobre as lutas, mas,
não se julga pelo fato de um grupo consentir, num sim, são relatos sobre a história das próprias pesquisas.
determinado momento, em aceitar a hipótese apre- Resumindo, podemos dizer que a intervenção sociológica
sentada pelo pesquisador. A capacidade do grupo de tem as seguintes características:
reinterpretar e orientar sua experiência passada, pre-
sente e futura, em função da hipótese apresentada PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
.é que indica a solidez desta última. É bom lembrar Acredita:
ainda que o dispositivo atual da pesquisa supõe a in- 1) que a sociedade se produz ou reproduz a partir das ações his-
tervenção de vários pesquisadores, sobre vários gru- tóricas (movimentos sociais) dos grupos;
pos e em várias etapas, muitas vezes com intervalo 2) no indivíduo como motor da história através de suas lutas;
de meses (p. 43). 3) na necessidade de uma "vanguarda" intelectual no desenvolvi-
Para comprovar sua argumentação, Touraine se refere à sua mento das lutas populares;
experiência no movimento occitano e à rejeição de sua hipótese, 4) que a sociologia tem por objetivo não só o conhecimento da
assim como de outro pesquisador, apesar do excelente nível de co- realidade societal, mas também a mudança social em beneficio
municação existente no grupo. Este tipo de fracassos, entretanto, do homem;
não significa o fracasso do método: 5) na necessidade de abrir espaços para a sociedade civil, invadida
Prova, pelo contrário, que certos grupos podem fa- pelo Estado;
zer sua conv~rsão, ou seja, colocarem-se do ponto 6) na defesa da democracia;
de vista do movimento social possível e ao mesmo 7) que a mudança social deve ser provocada.
tempo reconhecer que este movimento não pode
PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS
encarnar-se em sua ação, a qual, por conseguinte,
1) A objetividade - separação entre o sujeito e o objeto - não é
não pode atingir objetivos tão elevados. A conversão
necessária no processo de conhecimento;
não consiste em reconhecer a presença dos conflitos
2) o momento de conhecimento pode coincidir com o momento
mais agudos em todas as reivindicações, mas em si-
da mudança;
tuá-los em relação a este nível da ação social (p. 43).
3) a neutralidade não é necessária no processo de conhecimento: a
Uma quarta objeção tem sido levantada: a intervenção não
ciência deve tomar o partido dos homens e não de alguns homens;
considera os fenômenos psicossociológicos que ocorrem dentro do

132 133

4) a generalização na sociedade é problemática: as sociedades mais importantes não estão onde os participantes pensam expli-
atuais são muito diferenciadas e o processo de mudança é muito citamente que elas se situam); mas o que ele vai encontrar, como
rápido. princípio e momento decisivo da organização latente que revelará,
ainda será um magma de significações imaginárias, colocado pela
1.3. A pesquisa-ação institucional formação social-histórica considerada, e que se modifica ao longo
A proposta de Barbier da pesquisa-ação institucional se de uma história - ou, mais exatamente, cuja modificação contínua
apoia em três pilares: a sociologia institucional de Bourdieu e constitui uma dimensão decisiva dessa história e a respeito do qual
Passeron (1970), o marxismo contemporâneo de C. Castoriadis, de a análise não é livre"111.
H. Lefebvre e L. Goldmann108 e no existencialismo de Sartre. Dos De Lefebvre (1961) o autor se apropria do conceito de
primeiros, ele guarda o conceito de "violência simbólica", definida "quotidianidade" ou de "vida quotidiana", que enfatiza o "banal",
como "todo poder que consegue impor significações e impô-las fundamental para a análise da ação institucional de todo dia. A vida
como legítimas, dissimulando as relações de força que são a base quotidiana é definida por Lefebvre como o "conjunto das ativida-
de sua força" e que "acrescenta a sua própria força a essas relações des elementares decorrentes obrigatoriamente dos processos gerais
de força"109. Este conceito levará a dois níveis de análise: o da lógica de desenvolvimento, de evolução, de crescimento, de envelheci-
interna do objeto social estudado e o da função externa dessa lógica mento, de defesa ou de transformação biológica e social, processos
interna. De Castoriadis (1975) 110 ele toma as noções de "instituin- que escapam à observação imediata e que só são perceptíveis nas
te" e "instituído" e de "imaginário social". Em suas palavras: suas consequências"112.
"Consideramos de forma geral o que está no âmago de De Lucien Goldmann (1952), discípulo de Lukács, Barbier
toda formação social-histórica: o complexo, ou melhor, o magma retoma o conceito de "consciência possível"113 no sentido de captar
de significações imaginárias sociais nas quais e pelas quais ela se esse tipo de consciência na classe social que constitui o sujeito
organiza e organiza o seu mundo. Uma formação social-histórica coletivo no momento da pesquisa. A "consciência possível", apesar
é constituída instituindo-se, o que quer dizer, em primeiro lu- de distinta do conceito de "ideal-tipo" de Weber, que é - segundo
gar (embora não apenas), instaurado um magma de significações Barbier - não histórico e formalista, também representa um ideal
(termos e referências) imaginárias (não redutíveis a um 'real' ou tipo, por ser uma construção teórica que, "a partir de determinada
'racional' qualquer) sociais (valendo para todos os membros da situação sócio-histórica, define a consciência de um grupo social
formação, sem que sejam necessariamente conhecidas como tais). num momento de sua história. Ele não compreende forçosamente
A análise teórica poderá efetuar uma série de decomposições e a consciência espontânea que têm os autores sociais envolvidos (o
de recomposições sobre o que manifesta na superfície de vida da "pseudoconcreto" de K. Kosik). Segundo Goldmann, "cada grupo
formação considerada (mostrando, por exemplo, que as conexões social pode ser definido pelo máximo possível de sua consciência,
que ele não consegue ultrapassar e sobre o qual o grupo pode
108. O autor, entretanto, recorre frequentemente a outras fontes como Gramsci,
Lukács, Bachelard e Weber. 111. CASTORIADIS. (apud BARBIER, 1985: 79).
109. BOURDIEU & PASSERON (apud BARBIER, 1985: 144). 112. Apud BARBIER, 1985: 80.
110. Castoriadis inicia por uma análise trotskista da burocracia passando à análise 113. Para uma discussão do conceito de "consciência possível", cf André Haguet-
weberiana da organização em uma perspectiva crítica (cf BARBIER, p. 78). te (1983).

134 135
III

;11'
"
legitimidade da razão dialética, que define uma relação nova
!
formular o seu programa máximo de ação" (BARBIER, 1985: 76).
I entre o pensamento e seu objeto;
Também de Goldmann é a ideia apresentada por Barbier sobre a
- a subjetividade das ciências humanas não é obstáculo aO co-
noção de "diferença", explicitada quando o primeiro fala sobre a
nhecimento; ao contrário, é condição necessária para atingi-lo,
necessidade de "introduzir a diforença até nas obras e nas ideias de
à medida que é a prática social - e não a prática científica -, que
Marx em vez de nele procurar um bloco homogêneo"114.
constitui o ponto de partida e de chegada do processo de conhe-
De Jean-Paul Sartre, o autor destaca a categoria de "exis-
cimento;
tência" que pretende se contrapor ao idealismo absoluto: "não são
- entre a observação da "consciência comum" e o conhecimento
as ideias que modificam os homens, não basta conhecer a paixão
científico não há ruptura [... ] mas sim relação dialética, isto é,
pela sua causa para suprimi-la, é preciso vivê-la, opô-la a outras
oposições e superações;
paixões, combatê-la com tenacidade, enfim, trabalhar a si mesmo". 115
- o marxismo não atribui um status epistemológico privilegiado
É nessa brecha que o autor se respalda para justificar a intromissão
ao corpo de estudiosos dotados de metodologia científica espe-
do pesquisador na práxis da pesquisa, ou seja, que ele faça par-
cializada. A priori ele nega ao conhecimento "erudito", afastado
te do sistema experimental para, através disso, desvelar a situação,
da prática social, a possibilidade de chegar a uma compreen-
modificando-a. Novamente Sartre é citado, agora pleiteando maior
são da realidade social...
respeito pela subjetividade: "há duas maneiras de cair no idealismo:
- o marxismo só concede um status epistemológico privilegiado
uma consiste em dissolver o real na subjetividade; a outra, em negar
I. ao materialismo dialético que constitui a hipótese metodológica
toda subjetividade real em proveito da objetividade. O fato é que
II I e o quadro referencial teórico capazes de fecundar a observação
,r I' a subjetividade não é tudo nem nada; ela representa um momento
1

empírica ...
no processo objetivo (o da interiorização da exterioridade), e esse
I 1
- para o marxismo, a razão, a capacidade de conhecer são produ-
momento se ilumina constantemente para renascer sempre como
tos da história humana tanto quanto as ferramentas, a cultura, a
novo" .116 Estas ideias são reforçadas, obviamente, pela oposição de
linguagem, as produções materiais do homem e também as es-
Sartre à razão analítica, propondo, em seu lugar, a legitimidade da
truturas ocultas da sociedade" (p. 70-71).
razão dialética que permeia toda a epistemologia de Barbier. Além
Uma vez colocados os referenciais teóricos 117 , o autor fi-
da aceitação da base fundamental do marxismo, consubstanciado
nalmente apresenta sua definição da pesquisa-ação passando a ex-
no materialismo histórico, o autor define alguns princípios episte-
plicitar os procedimentos metodológicos aos quais obedecerá em
mológicos, valendo-se de outro autor (Benoit Verhaegen):
sua pesquisa institucional:
_ "o marxismo reconhece a parte da subjetividade nas ciências
"Para mim a pesquisa-ação é uma atividade de compreen-
humánas e ciências da natureza, pela razão fundamental de
são e de explicação da práxis dos grupos sociais por eles mesmos,
que a práxis excede constantemente o saber. A razão analíti-
com ou sem especialistas em ciências humanas e sociais práticas,
ca das ciências da natureza, o marxismo (com Sartre) opõe a

117. É admirável a liberdade com que Barbier manipula os vários autores, e,.;train-
114. GOLDMANN, 1970 (apud BARBIER, 1985: 80). do deles o que lhe interessa, montando um sistema eclético coerente. LembrarTlo-nos
de outras formas de marxismo dogmático que repudiam este tipo de postura, por
115. Ibid., 1985: 81.
estarem manietados pela camisa de força da ortodoxia.
116. SARTRE (1960), ibid., 1985: 82.
137
136
com o fim de melhorar esta práxis. A pesquisa-ação institucional é um
dade que deve ser observado pelos dois polos. Dentro deste pro-
tipo particular de pesquisa-ação cujo objeto refere-se ao campo
cesso o conceito de transversalidade remete à tripla dimensão da
institucional no qual gravita o grupo em questão. Trata-se de des-
luta de classes, económica, política e ideológica, que impõe sobre
construir, através de um método analítico, a rede de significações
a instituição (imaginário social) sua verticalidade consubstanciada
das quais a instituição é portadora, enquanto célula simbólica. A
na hierarquização interna, criando o grupo-objeto, ou dominado,
pesquisa-ação institucional é levada a empregar conceitos funda-
que deve, com a ajuda do analisador (pesquisador), transformar-se
mentais como os de transversalidade, implicação, analisador, gru-
em grupo-sujeito, senhor de sua própria práxis e de seu projeto:
po-sujeito e grupo-objeto" (p. 156-157).
"Em busca incessante, sempre meio caminho de sua totalidade,
Quatro elementos devem ser enfatizados na definição:
i
il',1
o grupo-sujeito é a estrela polar de toda práxis coletiva realmente
I
a) o processo de compreensão; b) de explicação; c) pelo instituinte"118.
II
1:1 grupo; d) para a prática. Quanto à instituição, enquanto objeto de
II Barbier sistematiza sua concepção de pesquisa-ação insti-
estudo: é vista não só como um locus de "violência" (Bourdieu e
! li tucional em sete princípios básicos:
Passeron), mas como um locus do "imaginário social" (Castoriadis)
1°) "a pesquisa-ação institucional tem por objeto o conhecimen-
, III cujas significações são quase sempre ocultas ou não ditas e que devem
to preciso e esclarecido da práxis institucional do grupo (e pelo
II' ser desveladas pelo grupo, através da análise de sua quotidianidade,
"

·grupo), a fim de dar-lhe a possibilidade de saber mais e de poder


da "interiorização da exterioridade e a exteriorização da interiori-
agir melhor sobre a realidade;
dade". Estas significações são mais ou menos apreendidas pelo gru-
2°) toda pesquisa-ação institucional supõe uma relação dialética
po de acordo com sua "consciência possível" (Goldmann) naquele
entre o grupo-pesquisador coletivo - e o objeto de sua pesquisa,
momento. Cabe, pois, ao pesquisador impulsioná-lo para que ele
bem como o esclarecimento de sua rede de implicações;
atinja o "máximo de consciência possível" e, de acordo com ela,
3°) a necessária pesquisa da objetivação na pesquisa-ação ins-
possam ser formulados programas de ação pelo próprio grupo.
titucional está subordinada à práxis do grupo, pesquisador co-
Em termos epistemológicos percebe-se as etapas do conhe-
letivo na instituição. O objeto de conhecimento é construído,
cimento que se inicia com a prática, passa dele para a compreensão,
conquistado e constatado no rastro da práxis institucional e em
depois para a explicação, retornando à prática. Faz-se mister destacar
função dela. O material a ser analisado é, pois, reconstituído pos-
o duplo sentido que a noção de prática contém. Em primeiro lugar
teriormente pela práxis coletiva e conservado pelos mais diversos
trata-se da prática social do grupo enquanto tal e, em segundo, da
meios técnicos;
prática do pesquisador no grupo. As duas práticas se misturam e se
4°) sem excluir o material clássico da pesquisa em ciências hu-
unem, fazendo surgir o conhecimento também para as duas partes,
manas e sociais - como, por exemplo, a estatística - o material
i grupo e pesquisador. A prática, entretanto, não deve ser concebida
I' simbólico ou prático (geralmente rejeitado pela sociologia aca-
',I apenas nos seus componentes externos aparentes, mas deve levar
dêmica positivista), tal como os fenômenos marginais, os casos
em conta a subjetividade dos atores e suas definições ou consciên-
clínicos etc., é considerado de modo privilegiado na pesquisa-
cia possível da situação. Neste sentido a consciência é subjetividade
ação institucional;
e, em certo momento, é captada como um dado objetivo (Sartre).
Existe, pois, um processo dialético entre subjetividade e objetivi- 118. GUATTARI, Felix. Psichanalyse et transversalité. Paris: Maspero, 1972 (apud
BARBIER, 1985: 159).

138
139
c

5°) a análise é diacrônica e dialética: supõe uma epistemologia implicações dos membros do grupo", quando as diferenças emer-
clínica da temporalidade para poder aprender a tendência geral gem, as tensões surgem e o perigo de divisão do grupo se torna
de evolução da práxis coletiva ou tendência da práxis; iminente. A terceira fase diz respeito à "confrontação das diferen-
6°) o conhecimento da tendência da práxis impõe o conhecimento ças" quando normalmente ocorrem a passagem do grupo-objeto
de "momentos" significativos, totalidades parciais dialéticas sus- ao status de grupo-sujeito. A quarta fase desvenda as redes de con-
cetíveis de serem analisadas sincronicamente (decodificação). tradições institucionais como um fenômeno "incontornável" que
Esses "momentos" analisados em sua complexidade horizon- deve ser assumido pelo grupo. Finalmente, a quinta fase leva à su-
tal não são o ponto essencial da pesquisa-ação, mas constituem peração das contradições assumidas pelo grupo-sujeito. A primeira
"marcos" indispensáveis à compreensão da dialética evolutiva da fase representa o momento da "unidade positiva", a terceira o da
práxis. Cada "momento" é concebido na análise como uma trama "unidade negativa" e a quinta, o da "singularidade", fechando o
de contradições dinâmicas, estruturada principalmente pelas contra- circuito dialético.
dições de uma totalidade englobante significativa, que o olhar do Os exemplos fornecidos pelo autor indicam que uma pes-
pesquisador coletivo implicado fixa, através de uma convenção quisa-ação institucional do gênero proposto pode se desenvolver
epistemológica e um procedimento de "desdobramento" (como no espaço de vários anos, com sessões trimestrais de vários dias,
se práticas e discursos, objetos de análise, não viessem dele); com a participação de, aproximadamente, trinta pessoas com idade,
7°) o resultado provisório de uma pesquisa-ação institucional só sexo, origem social e organizações diferentes, mas ligadas por um
pode ser explicado por sua inserção numa estrutura englobante vínculo comum: o pertencimento a uma mesma ínstituição 120 .
significativa, que é por sua vez elemento de um conjunto em
via de totalização. O conhecimento da tendência da práxis de um 2. A pesquiso participante
elemento A supõe, portanto, o conhecimento paralelo da ten- 2.1. Definição e características
I
dência de uma práxis de um elemento B ao qual pertence N.'. A pesquisa participante tem sido mais facilmente caracte-
I !

Obedecendo a estes princípios a metodologia adotada para rizada do que definida na literatura especializada. Percebemos de
a análise da instituição desdobra-se em duas partes: a) análise dia- imediato que ela envolve um processo de: investigação, de educação
I ,
I I crônica e dialética do campo institucional nos grupos e nas organi- e de ação, embora alguns autores enfatizem a organização como um
i,
I
zações, ou seja, a socioanálise institucional; b) a análise sincrônica componente fundamental da PP (GIANOTTEN & DE WITH,
do campo dialético da instituição nos grupos e nas organizações: a 1985). Apesar da clareza com que estes componentes são explici-
sociologia institucionaP19. A primeira parte é desenvolvida em cin- tados empiricamente, restam muitas ambiguidades em nível das
co fases fundamentais: A primeira, parte da "serialidade" - agrupa- especificidades da PP quando confrontada com a pesquisa tradi-
mento de pessoas sem organização, integração ou fim comum - a cional, sempre utilizada como referencial, mas sempre no intuito
"fraternidade duvidosa" - artificial - que se instala nos primeiros de apontar "o que não deve ser feito". Pretendemos, ao longo deste
momentos da pesquisa-ação. A segunda chega à "ação implícita das capítulo, apresentar, primeiramente, a PP na forma como ela tem
sido concebida e praticada, em seguida expor os questionamentos
119. Estas duas faces assemelham-se à proposta de Bourdieu e Passeron: a) análise
da lógica interna do objeto social estudado; b) análise da função externa dessa
lógica interna, dialetizadas por Barbier. 120. No caso, o ofício franco-alemão para ajuventude - Ofaj.

140 141
~-
que têm sido levantados pelos próprios adeptos do método e, final- do movimento social com que está comprometido". Demo (1985:
mente, exibir certas inconsistências ou precariedad es que devem 126) reproduz uma definição de PP expressa por Grossi, por ocasião
ser discutidas, não dentro de uma perspectiva negativista, mas, ao de um encontro em Montreal em 1977: "É um processo de pesqui-
contrário, construtiva. Com Brandão (1984: 14) a.creditamos na sa no qual a comunidade participa na análise de sua própria realida-
necessidade da "crítica científica e da crítica política das diferen- de, com 'vistas a promover uma transformação social em benefício
,
tes propostas de PP"; depois de tantos anos de prática no Brasil, i;-,
dos participantes que são oprimidos. Portanto, é uma atividade de
muitas vezes envolta nas brumas da ilegalidade, na década de se- pesquisa educacional e orientada para a ação. Em certa medida, a
tenta o temor da subversão por parte daqueles no poder cerceava tentativa da PP foi vista como uma abordagem que poderia resolver
a possibilidade de uma exposição da prática e de sua. crítica aberta. a tensão contínua entre o processo de geração de conhecimento e
Esta limitação explica em parte o número reduzido de textos pu- o uso deste conhecimento, entre o mundo "acadêmico" e o "real",
blicados sobre as experiências de PP no Brasil. Por outro lado, não entre intelectuais e trabalhadores, entre "ciência" e "vida".
queremos nos restringir a eles, mas pretendemos abarcar em nossa Os elementos enfatizados nas definições citadas que nos
discussão a literatura à qual tivemos acesso e que envolve, basica- parecem mais relevantes são:
mente, os dois livros organizados por Carlos Rodrigues Brandão - a realização concomitante da investigação e da ação;
(1983 e 1985) através dos quais conhecemos a gama diferenciada - a participação conjunta de pesquisadores e pesquisados;
de propostas de pp, assim como os questionamentos e indagações - a proposta político-pedagógica a favor dos oprimidos
geradas na própria prática. (opção ideológica);
Algumas poucas definições foram captadas. Fals Borda - o objetivo de mudança ou transformação social.
(1983: 43) assim se refere à PP: " ... uma pesquisa da ação voltada Enquanto os três primeiros elementos parecem consensu-
para as necessidades básicas do indivíduo (HUYNH, 1979) que ais em todas as propostas, o quarto tem levado a diferentes tipos de
responde especialmente às necessidades de populações que com- prática. Falar de mudança social e de transformação implica na es-
preendem operários, camponeses, agricultores e índios - as clas- pecificação: a) do que está sendo transformado; b) em que direção.
ses mais carentes nas estruturas sociais contemporâneas - levando A ambiguidade do termo conduz à ambiguidade da ação. Assim é
em conta suas aspirações e potencialidades de conhecer e agir. É a que certas experiências de PP se resumem à análise da realidade
metodologia que procura incentivar o desenvolvimento autônomo dos oprimidos pelos oprimidos, com a ajuda dos pesquisadores,
(autoconfiante) a partir das bases e uma relativa independência do à identificação de seus problemas e a sua solução l21 . Este tipo de
exterior". resultado pode produzir efeitos reformistas, conservadores ou até
Oliveira e Oliveira (1983: 26) utilizam o termo metodo- reacionários, pelo fato de deixar intactas as estruturas responsá-
logia de pesquisa-ação concebendo-a como "uma proposta polí- veis pela própria condição de "oprimidos" dos pesquisados. São
tico-pedagógica que busca realizar uma síntese entre o estudo dos ações paliativas que, na verdade, levam à "permanência histórica"
processos de mudança social e o envolvimento do pesquisador na
dinâmica mesma destes processos. Adotando uma dupla postura de 121. Exemplos desse tipo são o planejamento participativo (educação) descrito
observador crítico e de participante ativo, o objetivo do pesquisa- por Argumedo (1985), no interior do Ceará, e a pp desenvolvida por Gianotten e
De With (1985), nos Andes peruanos, em um contexto de economia camponesa
dor será colocar as ferramentas científicas de que dispõe a serviço
onde problemas comunitários ligados à sanidade animal foram resolvidos.

142 143
(DEMO, 1985: 121). Entretanto, devemos admitir quão difícil e, homens e mulheres de lugares e trabalhos servis) serem os produ-
quiçá, até impossível é um trabalho de natureza transformadora
tores diretos ou, pelo menos, os participantes associados do próprio
junto a uma comunidade cuja "consciência possível" não atingiu
saber orgânico de classe, um saber que nem por ser popular deixa
o limite de suas potencialidades. Por outro lado, pode-se também
de ser científico e crítico. Um saber que oriente a ação coletiva e
conceber que a própria criação do saber é uma fonte de poder, o
que,justamente por refletir a prática do povo, seja plenamente crí-
que, a longo prazo, poderia colaborar no projeto de transformação
tico e científico, do seu ponto de vista. Segundo: o poder de deter-
social (DEMO, 1985: 121). Retornaremos a este ponto oportuna-
minação de uso e do destino político do saber produzido pela pes-
mente.
quisa, tenha ela tido ou não a participação de sujeitos populares em
Gianotten e De With (1985: 159) apresentam, para em se-
guida reformular, uma concepção usual de PP como "um processo todas as suas etapas. Terceiro: o lugar e as formas de participação
de investigação, educação e ação onde há a participação da comu- do conhecimento científico erudito e de seu agente profissional do
nidade juntamente com um compromisso intelectual apontando saber, no 'trabalho com o povo' que gera a necessidade da pesquisa,
para a transformação social". Esta definição é incompleta porque e na própria pesquisa que gera a necessidade da sua participação".
trata apenas de certas condições necessárias, mas não suficientes Destaca-se aqui: a) a relação sujeit%bjeto de pesquisa; b) o uso do
para que se identifique uma PP como tal. Para estes autores, o saber produzido; c) o papel do conhecimento erudito no trabalho
componente que precisa ser incorporado é o elemento de orga- popular, os três pilares sobre os quais se tecem as críticas ao méto-
nização político-econômico, instância mediadora, que promove a
do científico tradicional e, por oposição, se propõem alternativas,
passagem do saber popular ao saber orgânico (científico). Vejamos
consubstanciadas nas diversas propostas.
a nova proposta de definição de PP de Gianotten e De With: "PP é
aquela investigação em que existe um trabalho orgânico de asses- Vejamos um outro exemplo de caracterização da PP elabo-
soria para que a investigação se converta em uma investigação orgâ- rada por Gianotten e De With (1985: 169) que tomaram por base as
nica; em outras palavras, quando a participação se situa no processo "proclamações" deste tipo de pesquisa feitas no decorrer dos anos:
orgânico de produção de conhecimento, no qual o conhecimento "1. a investigação não pode aceitar a distância tradicional
popular espontâneo transforma-se em conhecimento popular or- entre sujeito e objeto de pesquisa, por isso deve-se buscar a partici-
gânico (conhecimento científico organizado)". pação ativa da comunidade em todo o processo da investigação;
Devemos proceder agora ao desmembramento das defini- 2. a comunidade tem um acúmulo de experiências vividas
ções de PP para que suas especificidades sejam expostas com clare- e de conhecimentos; existe, portanto, um saber popular, que deve
za. Aqui, também, encontramos na literatura alguns exemplos que servir de base para qualquer atividade de investigação em benefício
merecem ser conhecidos: dela. É a comunidade que deve ser o sujeito da investigação sobre
Brandão (1985: 223-224) enuncia os três princípios funda- sua própria realidade;
mentais da PP que, ao mesmo tempo que representam uma críti- 3. a PP estabelece assim uma nova relação entre teoria e
ca à pesquisa tradicional, servem de justificativa para a própria pp, prática, entendida esta última como a ação para a transformação;
entendida como uma alternativa àquela: "Primeiro: a possibilidade 4. o processo de PP considera a si mesmo como parte de
lógica e política de sujeitos e grupos populares (operários, subo- Uma experiência educativa que serve para determinar as necessida-
perários, lavradores sem terra, posseiros, camponeses, imigrantes, des da comunidade e para aumentar sua consciência;

144
145
5. a pp é um processo permanente de investigação e ação.
pelos pesquisadores, mas tem sua origem nas situações sociais con-
A ação cria a necessidade de investigação. A pp nunca será isolada
cretas que os pesquisadores que participam do processo de pesquisa
da ação, desde que não trate de conhecer por conhecer;
querem estudar e resolver. A tarefa dos pesquisadores consiste em
6. a participação não pode se efetivar sem um nível adequa-
auxiliar os grupos interessados a formular e analisar os problemas
do de organização, ou seja, as ações devem ser organizadas".
que estes mesmos desejam estudar;
Novamente os autores insistem que estas são condições
- existe entre a pesquisa e a ação uma interação permanen-
necessárias, mas não suficientes para especificar a Pp, pois está au-
te. A produção de conhecimento se realiza através da transformação
sente da caracterização a "instância mediadora" ou "organização"
da realidade social. A ação é a fonte do conhecimento e a pesquisa
que garante a pesquisa-orgânica. Assim sendo, podemos incorpo-
constitui, ela própria, uma ação transformadora. A pesquisa-ação é
rar uma sétima característica à PP:
uma práxis, isto é, ela realiza a unidade dialética entre a teoria e a
"7. A PP necessita da presença de uma organização que
prática. Através da pesquisa, produzem-se conhecimentos que são
gera a ação, 'uma vez que a ação em última instância é uma.ação po-
úteis e relevantes para a prática social e política;
lítica'. É a organização que caracteriza o esforço da pesqUlsa como
- a pesquisa-ação intervém em situações reais e não em
um trabalho de assessoria (trabalho do pesquisador profissional)".
situações de laboratório. Trata-se de um trabalho com grupos reais,
Os autores, entretanto; não especificam a natureza da or-
com as limitações e recursos existentes, 'na sua real grandeza', e
ganização, o que cria certa ambiguidade. Referimo-nos ao fato da
não nas condições artificiais em que se dá, por exemplo, a maioria
organização poder ser interna ao grupo, onde a instância decisória
das experiências de 'dinâmica de grupo' oriundas da corrente psi-
reside no grupo ou na comunidade, ou externa ao grupo, como.n.o
cossociológica;
caso de certas agências (igreja) que desenvolvem práticas setorms
e cujo poder de decisão está fora do grupo. No segundo exem- - a intervenção se dá numa escala relativamente restrita
plo, o "profissional erudito" funciona apenas como um "agen~e _de (uma 'coletividade rural', região, organização, ou um bairro etc.).
mediação" entre a agência e a comunidade, presa das contradlçoes Essa limitação voluntária da área de ação deve permitir um contro-
entre as diretrizes do trabalho que realiza e as necessidades das le melhor do processo e uma avaliação mais rigorosa dos resultados
classes populares (BRANDÃO, 1985: 114, nota 1). Neste caso,.a obtidos. Esta característica é acompanhada, aliás, de hipóteses (im-
assessoria prestada pelo pesquisador profissional não se efetuana plícita ou explícita) e da possibilidade de generalização dos resulta-
conforme proposto por Gianotten e De With. dos e do processo a uma escala mais ampla;
Um terceiro exemplo de caracterização da PP se encontra - a PP se coloca a serviço dos grupos ou categorias sociais
em Le Boterf (1985: 72_73)122 que discorre sobre os principais cri- ruais desprovidos e explorados. Ela busca não somente desenca-
térios que a distinguem: dear ações suscetíveis de melhorar as suas condições de vida, mas
- "a escolha dos problemas a serem estudados não se efe- também desenvolver a capacidade de análise e resolução dos pro-
tua a partir de um conjunto de hipóteses previamente estabelecidas blemas que enfrentam ou com os quais convivem cotidianamente.
Torna-se, pois, importante que a PP ou a pesquisa ativa esclareça
122. De origem francesa, o autor muitas vezes utiliza o termo pesquisa-ação ao
invés de pesquisa participante mais referida na América Latina. Consideramos os
°
'para quem' se trabalha. pesquisador não é neutro, pois se coloca
a serviço dos mais oprimidos e 'desfavorecidos'. Esta 'tomada de
termos intercambiáveis para os fins da presente discussão.

146
147
posição', longe de ser fácil, necessita de um trabalho permanente f) o termo pesquisador pode riferír-se tanto à comunidade ou às pessoas en-
de reflexão crítica do pesquisador sobre as implicações teóricas e volvidas no local de trabalho, como àqueles com treinamento especializado;
metodológicas de sua intervenção e do processo de pesquisa-ação. g) embora aqueles com saber-treinamento especializado muitas vezes pro-
Essa função que o pesquisador desempenha constitui determinado venham de fora da situação, são participantes comprometidos e aprendizes
poder que não deve ser mascarado por uma ideologia de orientação num processo que conduz mais à militância que ao distanciamento.
neutra e não diretiva; Aqui O componente transformador da Pp, ou seja, sua fi-
- a pesquisa-ação consiste num processo educativo. Ao nalidade última em transformar as estruturas, é acentuado, embora
participar do próprio processo da pesquisa e da discussão ~~rma­ o autor reconheça também a melhoria de vida da população como
nente dos resultados obtidos, os pesquisados podem adqumr um uma das metas, sem que as condições concretas da categoria
conhecimento mais objetivo de sua situação, assim como analisar estudada ou da comunidade se alterem fundamentalmente. Pode-se
com maior precisão os seus problemas, descobrir recursos de que entender que o fator antecedente da transformação seja o elemento
dispõem e formular ações pertinentes; educativo, o saber popular orgânico gerado no processo de investigação
- os 'pesquisados' participam não apenas da discussão dos que, a longo prazo, poderá levar a transformações estruturais. Neste
resultados da pesquisa, mas, sobretudo, do processo desta. A fun- sentido, toma-se dificil e problemática a avaliação da "validade"l23 da
Pp, uma vez que seus efeitos só aparecem no tempo.
ção da pesquisa-ação não é a de ser 'propriedade privada' dos es~
I L pecialistas. Ela deve ser compartilhada, sendo possível traçar aqUi
I

algumas analogias com a distribuição da função de intelectual de-


2.2. Fundamentos teórícos, epístemológícos e metodológícos
da pesquísa partícípante
sejada por Gramsci".
Entendemos que toda metodologia nas ciências sociais, no
Do exposto percebe-se que a finalidade transformadora da
sentido tatu do termo, tem por trás de si uma série de pressupos-
pp está ausente desta proposta, isto é, seus objetivos são imediatis-
tos de ordem teórica e metateórica, que dizem respeito à natureza
tas, não visando uma mudança estrutural.
da sociedade - aspecto propriamente sociológico -, às facilidades
Finalmente, apresentaremos as características do processo
e dificuldades de obter o conhecimento desta sociedade - aspecto
da pp segundo Budd (1981, apud Demo 1985: 21):
epistemológico - e às formas como este conhecimento deve ser
a) o problema se origina na comunidade ou no próprio local de trabalho;
adquirido - aspecto metodológico. Permeando todos eles estão os
b) afinalidade última da pesquisa é a traniformação estruturalfundamen-
tal e a melhoria de vida dos envolvidos. Os beniftciários são os trabalha-
pressupostos ideológicos que, em última instância, fornecem ao
dores ou o povo atingido; pesquisador a "fé" necessária de que certas explicações sobre a re-
c) a pp envolve o povo no local de trabalho ou a romunidade no controle alidade são mais verossímeis que outras. Assim sendo, a metodo-
do processo inteiro da pesquisa; logia é, de certa forma, determinada pelas visões de mundo que o
d) a ênfase da pp está no trabalho com uma larga camada de grupos pesquisador tem em um dado momento 124 de sua vida profissional.
explorados ou oprimidos: imigrantes, trabalhadores, populações indígenas,
mulheres; 123. Aqui entendida como a compatibilidade entre os resultados obtidos e o real.
e) é central para a pp o papel de rgorço à conscientização do povo de suas
124. Referimo-nos a "um dado momento" porque acreditamos que, sendo parte
próprias habilidades e recursos, e o apoio à mobilização e à organização; 410 social, que é intrinsecamente dinâmico, o investigador está também sujeito a
tnudanças em seu modo de pensar e de agir, através do tempo.

148 149
Quanto mais dinâmica for a sociedade na qual ele está inserido, inatas que a formação sistemática não tem condições de fornecer.
mais exposto estará às causas e efeitos das mutações e, consequen- Assim é que aqueles agraciados "com o dom" da comunicação e
temente, por sua própria formação, um nível mais alto de reflexão da eloquência se tornam excelentes professores enquanto outros,
e de crítica será exigido dele para que "compreenda" a realidade pacientes, curiosos, criativos e pertinazes buscam a investigação e a
que se apresenta à sua frente. Entretanto, conhecer o real não é su- pesquisa como pilar mestre de sua profissão. Raros são aqueles que
ficiente para o cientista social que convive e labuta em um contexto reúnem as qualidades e requerimentos do bom professor e do bom
de desigualdades e injustiças como acontece na América Latina e pesquisador. O bom treinamento pode fornecer as ferramentas,
em continentes subdesenvolvidos. É necessário que ele contribua mas nunca suprirá a vocação inata.
para a minimização, ou mesmo eliminação destas desigualdades e A PP é uma metodologia de abordagem do real que se pro-
injustiças sociais. Porque, enquanto sociólogo, ele é parte do meio - põe a atingir aquele terceiro passo - o agir -, exibindo com certa
de uma classe, de uma religião, de uma etnia etc. Ele não pode se clareza seus pressupostos que passaremos a discutir, tentando agru-
dar ao luxo de simplesmente conhecer, o que representa o primeiro pá-los em categorias como: a) pressupostos sobre a sociedade 126 ;
passo de suas atribuições. Ele tem que denunciar - o segundo passo -, b) pressupostos epistemológicos; c) pressupostos metodológicos.
isto é, divulgar para a sociedade mais ampla os mecanismos da ex- Concomitante com a exposição das posturas adotadas pela PP in-
ploração e da desigualdade. Até aqui, acreditamos, certos cientistas cluiremos não só os questionamentos surgidos no interior desta
sociais latino-americanos e outros têm desempenhado a contento prática, como nossas próprias reflexões sobre ela.
'I
suas tarefas de "fiscais" (no bom sentido do termo) da igualdade, da
justiça, da democracia. O terceiro passo nas atribuições do cientista o) Pressupostos sobre a sociedade
social, passo que muito poucos dão, tem a ver com o agir, com sua A sociedade é constituída por elementos materiais e sim-
interferência deliberada no real, no intuito de apressar as transfor- bólicos que se entrelaçam e se consubstanciam em realidade concreta
mações requeridas para a instalação de uma sociedade mais justa e segundo a percepção que deles tenha a população envolvida; ela é:
mais digna. pois, um misto de aspectos objetivos e subjetivos. Esta percepção,
Traçando o percurso do cientista social na sua prática pro- entretanto, não é homogênea, variando segundo a posição que os
fissional, desejamos expor nossa concepção sobre seu papel, fugin- indivíduos e os grupos ocupam na estrutura social, ou seja, a partir
do da visão maniqueísta: aqueles que só "conhecem" são os maus de sua posição de classe. A divisão em classes sociais é consequên-
enquanto aqueles que "agem" são os bons. Os três tipos existem cia da apropriação das riquezas por poucos, através da exploração
e, de forma diferente, prestam seus serviços125. Acreditamos tam- econômica, o que gera a pobreza e a miséria de muitos.
bém na existência de uma gama de aptidões que, em maior ou me- A condição de opressão a que estes muitos estão sujeitos
nor grau, os cientistas sociais são possuidores. Existem qualidades pode ser modificada mediante lutas libertadoras que devem ser
empreendidas pelas populações oprimidas, com a ajuda dos "in-
telectuais eruditos" que colocarão a serviço delas seu saber e com-
125. Uma vez que entendemos que, por definição, o cientista social compartilha o
petência.
ideal da igualdade, nos eximimos de incluir nesta categoria aqueles que, em se di-
zendo cientistas sociais, prestam serviços aos grupos dominantes. Por outro lado,
admitimos que "consequências não esperadas" possam favorecer o polo negativo
126. Os pressupostos ideológicos estão incluídos neste item.
da igualdade.

150 151
Além do poder econômico, existe o poder do ~'saber" que combina à falsa neutralidade de seu método, ou métodos, espe-
tem se tornado, através dos tempos, monopólio dos grupos do- cialmente nas ciências sociais, que, ao postular sua possibilidade e
minantes. Isto não significa que os oprimidos não possuam saber, desejabilidade, esquecem a condição de classe dos pesquisadores,
eles o possuem, mas não têm consciência do valor que este saber fator de consolidação das situações de opressão e de desigualdade.
representa. Com a ajuda dos intelectuais eng~ados, este saber tra- 1àmbém por ser parte do social, o cientista social não pode ser ob-
dicional pode se transformar em saber orgânico, instrumento da jetivo, nem com relação à escolha de seu objeto de pesquisa, nem
luta contra a dominação que deve obedecer à temporalidade dos
com relação à forma de captação das informações. Elas são plenas
oprimidos, ao ritmo de sua "consciência possível" e das condições de desvios ocasionados por sua ideologia, valores, interesses, enfim,
objetivas de transformação.
por sua subjetividade. Da mesma forma, seus métodos, na maio-
Esta visão é mesclada de valores cristãos e marxistas sobre ria das vezes, negligenciam os aspectos subjetivos (da população
a dignidade do homem, a importância da vida e da ação comuni- estudada), que também são componentes do real, pois são eivados
tárias , a necessidade de "estar do lado dos humildes" e de lutar por dos princípios positivistas que regem os métodos das ciências so-
sua valorização e libertação.
ciais. Um dos aspectos mais negativos deste método é a postulação
de separação entre sujeito e objeto de pesquisa o que, ao invés de
b) Pressupostos epístemológ ícos
propiciar uma maior objetivação na captação do dado, contribui
A ciência é social, isto é, ela é um produto do intelecto para seu conhecimento parcial ou mesmo seu desconhecimento. O
humano que responde a necessidades concretas de determinado envolvimento deliberado do investigador na situação da pesquisa é
momento histórico, necessidades estas definidas pelos grupos não só desejável, como essencial, por ser esta a forma adequada de
no poder. Logo, ela é também histórica, situada. Seus métodos produzir conhecimento. Por outro lado, esta postura não pode ser
- regras e técnicas de produção de conhecimento - são avalia- unilateral. Também a população pesquisada tem que se envolver na
dos por homens que formam a comunidade científica. Enquanto pesquisa, de forma que pesquisadores e pesquisados formem um
homens, os cientistas são possuidores de interesses, motivações, só corpus na busca do conhecimento: o conhecimento só pode ser
emoções e superstições; enquanto membros de determinada clas- gerado na prática participativa que fornece a interação entre o saber
se - a dominante, ou a serviço dela - os cientistas definem o popular e o saber erudito que se fundem no processo educativo
campo "do científico" a partir dos interesses objetivos daquela mútuo e devem levar à ação transformadora da condição de domi-
classe. Consequentemente, nem a ciência é neutra, nem a for- nados. Por esta razão este tipo de produção de conhecimentos se
ma de produzi-la - processo de geração de conhecimento. Não faz entre os dominados e oprimidos.
é neutra porque seus usos e frutos são apropriados por algumas Na verdade, conforme demonstraremos a seguir, os ques-
classes e não por todas; as ciências sociais não são neutras porque tionamentos dos adeptos da PP dirigem-se, com maior ou menor
se transformaram em instrumentos de controle social em bene- intensidade dependendo do autor, a vários alvos: 1) ao princípio da
fício do status quo, ou seja, da manutenção das desigualdades so- neutralidade científica; 2) ao requisito de objetividade na pesqui-
ciais e da submissão dos grupos que questionam o consenso. A sa científica; 3) ao problema ético da utilização das classes baixas
pretensa neutralidade política da ciência não pode servir de Corno "objeto" de estudo; 4) ao papel do pesquisador como fator
garantia de cientificidade. A falsa neutralidade da ciência se de consolidação/transformação da sociedade. Como pressuposto

152
153
básico norteador das críticas está a convicção no caráter político da BORDA, 1983: 45), b) de uma "opção libertadora" (FREIRE,
atividade científica. 1983: 35) ou c) de uma nova metodologia: da "pesquisa-ação"
O princípio da neutralidade científica é combatido nos se- (OLIVEIRA & OLIVEIRA, 1983: 26).
guintes termos: Em que consiste cada uma dessas propostas? A cultura
Na verdade, esta ciência que se queria neutra, apolí- emergente ou "subversiva" representa o outro lado da medalha do
tica e descomprometida acabou sendo utilizada cada conhecimento que favorece os interesses de classe. Seria a valori-
vez mais como uma ferramenta de engenharia so- zação da ciência popular que tanto contribui para o próprio desen-
cial. Empregados por agências governamentais, os volvimento da ciência tradicional. Esta valorização e recuperação,
cientistas sociais contribuíram para a implantação entretanto, só podem ser efetuadas através de uma metodologia es-
gradual de toda uma série de instituições de contro- pecífica que propicie uma interação mais íntima entre pesquisador
le social- desde a escola e o hospital até o asilo e pesquisados. "É preciso, pois, aproximar-se das bases da socieda-
psiquiátrico e a prisão - cuja finalidade é modelar de, não apenas com o objetivo de entender sua própria versão de
o comportame~to de todos pelos padrões de nor- sua ciência prática e expressão cultural, mas também para procurar
malidade definidos pelos donos do poder (OLI- formas de incorporá-las às necessidades coletivas mais gerais, sem
VEIRA & OLIVEIRA, 1983: 22-23). ocasionar a perda de sua identidade e seu teor específico" (FALS
[... ] não pode haver valores absolutos no conheci- BORDA, 1983: 47). A pp é, assim, o instrumento adequado para
mento científico porque este irá variar conforme os fazer a revolução do modelo de submissão da ciência às classes do-
interesses objetivos das classes envolvidas na forma- minantes.
ção e na acumulação de conhecimento, ou seja, na A pp tem, pois, várias pretensões: atender ao desejo ori-
sua produção [... ] Além do mais esta comunidade ginado da urgência "de se ter uma ciência do homem, crítica e in-
científica ocidental exerce uma nítida influência so- tegrada, que seja tanto modesta quanto realista" (p. 60); deslocar a
bre a manutenção do status quo político e econômico pesquisa das universidades para o campo da realidade concreta e
que cerca o sistema industrial capitalista dominan- reduzir as diferenças entre sujeito e objeto de estudo. Assim fazen-
te. Sob essas condições, evidentemente, a produção do, estariam preservados os valores essenciais do homem comum e
de conhecimento nesse "nível acha-se orientada para contribuindo para a proteção de seus interesses.
a preservação e fortalecimento do sistema (FALS Vejamos agora como a perspectiva de Fals Borda com rela-
BORDA, 1983: 44)127. ção à pp se relaciona com os quatro questionamentos referidos no
Acreditando-se, assim, que a ciência se orienta para aten- início desta discussão. Com respeito à neutralidade cientifica está evi-
der aos interesses das classes dominantes, estes autores passam a ar- dente que o autor não a admite, postura, aliás, já quase generalizada
iii'
gumentar sobre a necessidade: a) de uma ciência identificada como dentro das ciências sociais. O requisito de objetividade, entretan-
I "I
uma "ciência" ou "cultura emergente" ou "subversiva" (FALS to, é referido de forma ambígua. Algumas passagens indicam que
o processo revolucionário do modelo de submissão de classe ao
127. "Orlando Fals Borda é reconhecido como o iniciador da 'linha sociológica' conhecimento burguês não prescinde da ciência tradicional, mas
da pesquisa participante na América Latina" (BRANDÃO, 1981: 131 - nota do utiliza-a como arma para a própria revolução:
organizador) "

154 155
Mas essa revolução não implica necessariamente o quisado e que decidem sobre o destino a ser dado ou o uso a ser
abandono de todo conhecimento que possibilitou feito dos resultados da pesquisa. Os grupos "observados" não têm
a dominação burguesa, como se deu anteriormente nenhum poder sobre uma pesquisa que é feita sobre eles e nunca com
com o feudal. Pelo contrário, pode-se antecipar que eles (OLIVEIRA & OLIVEIRA, 1983: 18).
as descobertas tecnológicas realizadas pelos cientis- Como consequência destas práticas, o trabalho científi-
tas burgueses podem ser benéficas para as classes co tem-se dividido em dois lados opostos: "o lado 'popular' dos
proletárias e ajudá-las a fortalecer o seu poder, uma que são pesquisados para serem conhecidos e dirigidos, versus o
vez alcançado através da ação política. Portanto, não
lado 'científico', 'técnico' ou 'profissional' de quem produz o co-
é imperativo destruir o anterior para se empenhar
nhecimento, determina os seus usos e dirige 'o povo' em seu pró-
numa reconstrução de acordo com novos planos
prio nome ou, com mais frequência, no nome de quem trabalha"
científicos revolucionários (p. 46).
(BRANDÃO, 1983: 10). A PP surgiu, pois, da angústia de alguns
Por outro lado, esta própria ciência é desvirtuada em seus
pesquisadores que iniciaram um processo de questionamento so-
resultados por não ser neutra, e esta falta de neutralidade leva-a
bre a finalidade do conhecimento que produziam, sobre os usos
à falta de objetividade com relação à eleição de prioridades de seus
deste conhecimento e sobre os beneficiários deste conhecimento.
objetos de pesquisa e a uma consequente deturpação na compre-
Surgiu da necessidade sentida por eles de incorporar os "pesquisa-
ensão da realidade. A atuação científica deve ser reordenada para
dos" como sujeitos de um trabalho comum de geração de conhe-
tomar-se útil à sociedade como um todo e, para ter certeza disto, o
cimento, onde pesquisadores e pesquisados conhecem e agem em
cientista ativo deve se questionar: "Qual é o tipo de conhecimento
que queremos e precisamos?" "A que se destina o conhecimento busca da transformação de estruturas sociais desigualitárias. Assim,
científico e quem dele se beneficia?" Ser cientista hoje significa es- o problema ético de "utilização" das classes baixas como objeto de
tar compromissado com o presente e com o futuro. É aqui, a nosso estudo se agrega àquele propriamente epistemológico de separação
ver, que se coloca com mais ênfase o papel político da ciência e o entre sujeito e objeto de pesquisa, superação esta que obstaculiza a
compromisso político do pesquisador. produção de conhecimento, já abordado anteriormente.
O terceiro aspecto da crítica à pesquisa tradicional relacio- O quarto alvo das críticas à pesquisa tradicional se dire-
na-se, conforme já referido, ao problema ético da utilização das ciona para o papel do pesquisador como fator de consolidação das
classes baixas como "objeto" de estudo. Neste sentido a pesquisa formas iníquas de organização societal, sob o argumento de que,
tradicional é vista como um mecanismo de intermediação do ao conceber o "conhecimento em si", como finalidade da ciência,
controle exercido pelas classes dominantes sobre as dominadas. o pesquisador tradicional se exime de interferir no ambiente da
As investigações, de modo geral, têm como objeto de estudo os pesquisa numa tentativa de transformar aquelas estruturas. Ainda
"marginais", os "oprimidos", os "contestatórios", que são anali- em nome do postulado da objetividade, que tem como imperativo
sados, quantificados e programados de fora pelo opressor ou por o distanciamento entre sujeito e objeto para que os valores, ideolo-
aqueles que o representam. São sempre aqueles que detêm o saber gias e preconceitos do pesquisador não aportem desvios aos dados
e o poder social que, com o auxílio dos instrumentos científicos, obtidos, o investigador não somente mascara sua interferência que
determinam unilateralmente o que, como e quando deve ser pes- é inevitável, como se acomoda a um tipo de conhecimento incom-

156 157
pleto por não incorporar a população estudada corno "investigadora
componentes constitutivos da própria Pp, ou seja, o processo de
de si própria", o que propiciaria dados mais "reais" e fidedignos.
investigação, de educação e de ação.
Os pressupostos da pp concluem, pois: a) que a ciência
Primeiramente, a ideia de participação indica que a separa-
social não é detentora de valores absolutos por ser produzida por
ção entre sujeito e objeto de pesquisa, propugnada pelos métodos
homens situados historicamente, logo, seus postulados são tão di-
da pesquisa tradicional, não é obedecida, já que a distância entre os
nâmicos quanto a própria realidade que ele estuda e explica; em
dois é vista como prejudicial à própria geração de conhecimento
consequência, b) que os cânones do método científico tradicional
por parte do pesquisador. A intervenção do pesquisador no meio
- neutralidade, objetividade, validade, confiabilidade, poder de ge-
é condição do conhecimento. A visão da população como "objeto
neralização dos resultados, comprovação, refutação etc. - não são
de pesquisa" é rejeitada: a) por razões éticas (desrespeito para com
necessários nem suficientes para definir a cientificidade do méto-
os informantes); b) por razões epistemológicas e metodológicas (o
do. Aqueles podem ser eliminados e outros introduzidos. Assim é
conhecimento "real" sobre a população é produzido quando ela faz
que alguns adeptos da pp argumentam que a linha demarcatória
parte do processo de investigação); c) por razões ideológicas (as po-
entre ela e a pesquisa tradicional não está nem na capacidade de
pulações oprimidas devem gerar seu próprio conhecimento sobre
produzir mudanças (compromissos políticos) neITl na capacidade
sua própria realidade com o fim de tomarem consciência sobre a
de produzir conhecimento, mas na capacidade de solucionar pro-
situação de dominação na qual vivem e, de forma organizada, lu-
blemas de grupos sociais dominados: "Segundo esse critério uma
tarem pela transformação das causas da opressão). Em suma as po-
prática pode ser considerada não científica, na medida em que não
pulações desfavorecidas devem "saber" para "poder". Assim sendo,
tenha capacidade para resolver alguma necessidade social específi-
a ideia de participação envolve a presença ativa dos pesquisadores e
ca" (ARGUMEDO, 1985: 196, comentando OQUIST); c) que a
de certa população em um projeto comum de investigação que é ao
ação é a fonte de conhecimento: o conhecimento adquirido fora
mesmo tempo um processo educativo, produzido dentro da ação 128•
da ação não é reconhecido como conhecimento desde que ele se
A participação é, pois, "uma ação reflexionada em um pro-
dá através da práxis que o gera, práxis aqui entendida como unidade
cesso orgânico de mudança", cujos protagonistas são os pesqui-
dialética entre teoria e prática. Outros aspectos relacionados com
sadores e a população interessada na mudança. Em que consiste,
a pp merecem um tratamento em separado. É o que faremos a se-
pois, a participação? Da parte da população envolvida na PP ela
guir, ao discutir a concepção de participação e suas consequências
se expressa em todo o processo. Na formulação dos objetivos de
em termos epistemológicos.
investigação, na definição de temas e problemas a serem investiga-
dos, na coleta (parcial ou total) dos dados, na análise e interpretação
Participação
das novas informações, na formulação de prioridades para a ação,
O conceito de participação dentro da perspectiva da pp não na identificação de recursos internos e externos à comunidade, na
é unívoco.no sentido de que pode ser concebido tanto com rela-
programação das ações, na avaliação permanente das ações, na co-
ção aos pesquisadores quanto com relação à população pesquisada, locação de novas exigências de informação, formação e ação (DE
ou envolvida no processo. Também é importante saber como ela é
definida, qual sua finalidade, e em que consiste. Por outro lado, ela 128. A ideia de ação também parece ambígua, pois pode ser entendida como açãol
não pode ser definida de forma isolada, sem levar em conta os três investigação ou como ação projetiva, ou seja, uma ação futura, planejada dentro
da investigação.

158
159 "RCH/UFC
SCHUTTER, 1981. ln: GIANOTTEN &DEWITH, 1985: 170). tre O observador e o participante (OLIVEIRA & OLIVEIRA, 1983:
Entretanto, esta participação ativa pode-se prestar a manipulações 28). Ele não é um pesquisador comum, pois dele são requeridas
quando certas investigações se contentam em introduzir algumas mais qualidades e mais competência. Dele é exigido "uma grande
pessoas da comunidade no processo de toleta de informações pen- dedicação e simultâneo domínio das questões teóricas e práticas da
sando cumprir as exigências de uma PP. Por outro lado, um projeto investigação" (THIOLLENT, 1985: 101); o respeito l31 para com
sério de PP não deve ter necessidade de "motivar o grupo a parti- as populações imersas nos processos sociais que se deseja estudar
cipar de algo que é útil para ele", nem pode exigir um compromis- (BONILLA et aI., 1985; FALS BORDA, 1983); "maior rigor na ta-
so de participação por parte da comunidade; isto seria a "própria refa do investigador militante que deverá constar de técnicas de es-
negação da legitimidade de um projeto de PP" (GIANOTTEN tudo e ação que permitam apreender a complexa realidade em sua
& DE WITH, 1985: 173-174). Este tipo de participação é típico própria função, sem distorcê-la. Isto implica também a prática de
de trabalhos de cunho assistencialista que desde há muito são de- uma verdadeira ciência social interdisciplinar na qual a sociologia,
senvolvidos em comunidades carentes, e nada têm a ver com a PP. a história, a antropologia, a economia e a geografia se combinem na
O processo aparentemente parcelar da participação de grupos ou figura do investigador militante de forma simultânea" (BONILLA
comunidades se configura em uma totalidade que é representada et aI., 1985: 156); uma formação adequada para esta função que in-
no processo de conversão do "saber popular espontâneo" em um clui do conhecimento, a dinâmica de grupo, a tecnologia (utilizada
"saber popular orgânico" (conhecimento científico). É nesta pers- no meio estudado), os métodos e técnicas de educação popular",
,ii
pectiva que a necessidade de motivar a população a participar perde além de "um bom conhecimento de uma experiência concreta no
.1
consistência, pois é vista como algo exterior ao processo de apren- meio social, econômico e cultural a que pertencem os membros
dizagem. Entretanto, este processo de conhecimento só é possí- do grupo estudado" (LE BOTERF, 1985: 63). O complexo papel
vep29 mediante a contrapartida de participação dos pesquisadores do investigador militante 132 exige também que ele "se coloque no
eruditos que, servindo de assessores 130 ou mediadores, têm "sensi- lugar do outro"!33 para melhor compreendê-lo (Le Boterf).
bilidade para ouvir e compreender o ponto de vista e as razões dos
grupos de base", o que representa o primeiro passo na sua atividade
de envolvimento e de ser "um ouvinte atento das decisões dos mo-
131. Respeito aqui expresso através da "devolução do conhecimento", aspecto
vimentos populares ou de necessidades comunitárias efetivas". O
controvertido entre os adeptos da PP. Gianotten e De With se manifestam ex-
pesquisador deve colocar-se a serviço, não da comunidade, mas "da plicitamente contra esta postura que, a seu ver, é uma exigência de todos aqueles
prática política na comunidade" (BRANDÃO, 1985: 141-251). Ele envolvidos na pesquisa, e não apenas dos pesquisadores eruditos. Por outro lado,
coloca suas ferramentas científicas a serviço desta prática, assumin- estes autores argumentam que a devolução de conhecimentos é muitas vezes usa-
da como justificativa da pesquisa e como legitimação da opção ideológica da in-
do a dupla postura de observador crítico e de participante ativo. Ele
vestigação (p. 172-173).
representa a síntese entre o militante de base e o cientista social, en-
132. Vários termos são usados para se referir ao pesquisador: "agentes eruditos
de mediação" (Brandão), investigador militante (Bonilla et al.), orientador (Le
129. Algumas correntes da pp admitem que o processo de autoeducação, em al- Boterf), assessor (Gianotten e De With), pesquisador participante (Brandão e Fals
guns casos, pode dispensar a presença dos pesquisadores eruditos. Borda), pesquisador (Oliveira e Oliveira), técnico ou facilitador (Argumedo), in-
130. A caracterização do pesquisador como um assessor do grupo ou da comuni- vestigador (Thiollent).
dade é especialmente enfatizada por Brandão e Gianotten e De With, op. cie 133. Aqui lembramo-nos de G.H. Mead.

160 161
c) Aspectos metodológícos educativo ou a trabalhos ligados à luta pela democratização das es-
A metodologia da Pp, coerente com os pressupostos teóri- truturas sociais ou alteração profunda na base da sociedade, a fim de
cos e epistemológicos que a informam, difere em vários sentidos superar as desigualdades sociais e económicas. Nela se inscrevem,
da pesquisa convencional: a) o objeto da pesquisa deve ser definido também, as experiências de formulação de um novo paradigma das
pela população interessada, considerada "pesquisadora", mediante ciências sociais e aquelas vinculadas diretamente às práticas políti-
a assessoria de um ou vários investigadores profissionais de fora co-partidárias, cujas estratégias refletem as variações das políticas
da área, comprometidos com a causa popular; b) os pesquisadores de desenvolvimento vigentes na América Latina e as mudanças nos
profissionais devem tomar conhecimento da realidade na qual vão aparelhos governamentais que podem limitar ou mesmo desarticu-
trabalhar através de estudos prévios, dados secundários e entrevis- lar movimentos ou organizações que buscam espaços para modelos
tas com as lideranças locais; c) a equipe de pesquisa é composta alternativos de trabalho social, político e económico (GAJARDO,
dos pesquisadores profissionais e da população interessada ou seus 1985: 45-47).
representantes; d) o planejamento da pesquisa é elaborado pela Alguns exemplos podem ilustrar o percurso metodológi-
equipe mista; e) os objetivos da investigação são definidos pela po- co de uma PP mediante a explicitação das etapas que devem ser
pulação interessada a partir dos temas que são prioritários para ela; seguidas em uma proposta vinculada a propósitos de desenvolvi-
f) não existe uma fase de "trabalho de campo" como na pesquisa mento educativo como é o caso de Freire (1983: 38-40). Três são as
tradicional, mas uma geração de conhecimento dentro da ação da etapas. Na primeira, a equipe deve: informar-se sobre a existência
pesquisa onde pesquisadores profissionais e população interessada de estudos na zona escolhida, não importando o método utilizado
se beneficiam mutuamente da experiência uns dos outros; g) em por eles; delimitar a área da pesquisa; fazer visitas exploratórias,
alguns casos são usadas as técnicas de coleta de dados da pesquisa anotando tudo que lhe chamar atenção, ao mesmo tempo que deve
convencional, como o questionário, a observação participante e a identificar os organismos privados (incluindo aqueles populares,
entrevista; h) a análise dos dados é feita através de técnicas "dia- como clubes de futebol) e oficiais existentes; fazer posteriormen-
logais" com a participação de todos; i) quando apenas alguns re- te visitas às lideranças dos organismos antes referidos; explicar a
presentantes da comunidade se incorporam à pesquisa, a equipe pesquisa, de como se tem nela o ponto de partida do programa de
procede à "devolução" dos resultados através de reuniões amplas, educação de adultos e seu método participante e crítico; sugerir às
onde se espera um efeito de feedback para validação dos dados e lideranças a necessidade de reuniões mais amplas, onde a interpre-
onde "técnicas simples" de comunicação são utilizadas; j) propos- tação dos objetivos da organização que desenvolve a pesquisa e seu
!
I',
tas de ação são definidas em função das necessidades da população; método de trabalho possa ser feita, em parte, por representantes
k) the last but not the least, a realidade pesquisada deve ser aquela dos populares; sugerir a constituição de grupos de 20 a 30 pessoas que
grupos oprimidos. se reuniriam uma a duas vezes por semana, a fim de discutir livre-
Em termos operacionais, as PPs podem divergir, depen- mente sobre os problemas fundamentais da população; juntar ao
dendo dos propósitos perseguidos e do momento conjuntural no grupo representantes da equipe pesquisadora, cuja "voz", porém,
qual a ação se desenvolve. As práticas da PP podem estar vinculadas jamais poderia ser "superior" à voz dos grupos populares; gravar os
a planificações do desenvolvimento local, a propósitos de desen- debates; eleger um coordenador ou relator de grupo que fará a sín-
I, volvimentos alternativos de organização social e desenvolvimento tese na reunião final com todos os grupos; elaborar um documento
:1

162 163
final por pesquisadores e pesquisados que será de fundamental im- aliados; d) averiguar a existência de grupos políticos e suas formas
portância para a organização do conteúdo programático do projeto de pressão e controle sobre os grupos organizados e suas realiza-
de educação de adultos. ções; e) a tentativa de uma análise primária e provisória das classes
A segunda etapa da pp se refere ao estudo crítico do dis- e da história e natureza de seus conflitos, com base no modelo de
curso popular (sintaxe, semântica, metáforas, níveis de percepção produção predominante, e as relações de produção e troca exis-
de realidade) com a participação de outros especialistas, como os tentes; f) a identificação do tipo e natureza das lutas registradas
linguistas, assim como dos relatores de grupo. A terceira e última na região ou promovidos no passado; g) a análise dos planos de
etapa será a organização de um pré-programa de educação de adul- desenvolvimento socioeconômico; h) um inventário das formas de
tos a ser elaborado a partir da análise da realidade feita pelos grupos controle social diretas ou indiretas pelo sistema vigente; i) um es-
tudo das características culturais e étnicas da região, identificando
populares numa das primeiras fases da pesquisa, e dos estudos do
discurso popular, com a participação necessária dos representantes os elementos que parecem ter desempenhado um papel relevante
nas lutas sociais e reivindicativas. Estes passos resumem a primeira
dos grupos populares. Novos encontros serão feitos com os anti-
fase de conhecimento por parte do investigador, que é provisória,
gos grupos, onde o pré-programa será discutido, cujas unidades e
não definitiva, nem completa. O passo mais importante é o co-
subunidades passarão a constituir-se em objetos de conhecimento
nhecimento de dentro, mediante contatos e relações políticas que
a serem desvendados na posterior prática educativa. Esta, por sua
expressam seu compromisso com a causa dos grupos sociais iden-
vez, se alongará mais adiante em nova pesquisa, na continuidade
tificados como "chaves". O "conhecimento através da ação" exige
dinâmica entre pesquisa e educação, que exige uma flexibilidade
que o investigador militante tenha por objetivo a colocação de suas
dos programas que vão se fazendo e refazendo, em lugar de serem
técnicas e conhecimentos a serviço d;:: uma causa, que é, por defi-
estáticos e imóveis. Segundo Freire, isto significa "inventar méto-
nição, uma transformação fundamental da sociedade maior da qual
dos com os quais se possa trabalhar, de maneira que as pessoas não
o grupo ou comunidade fazem parte. Este compromisso implica
sejam meros objetos" (p. 41). metodologicamente no seguinte itinerário: a) a análise da estrutura
Outro exemplo de coordenadas metodológicas encontra- de classes da região; b) a captação dos temas e enfoques prioritários,
mos em Bonilla et aI. (1985: 143-147) e representa um modelo de através dos grupos-chave, de acordo com seu nível de consciência
pesquisa alternativa àquele modelo tradicional das ciências sociais. ou de ação; c) a busca das raízes históricas das contradições que di-
São duas suas principais etapas, o conhecimento de fora e o conhe- namizam a luta de classes na região; d) a devolução134 (grifo nosso), a
cimento de dentro. O primeiro é chamado de "modo de aproxima- esses setores ou grupos-chave, dos resultados da investigação, com
ção" e o segundo, de "conhecimento através da ação". O "modo vistas a atingirem maior clareza e eficácia em sua ação.
de aproximação" inclui: a) conhecimento da área através de dados Estes procedimentos, segundo os autores, têm várias im-
secundários; b) a inspeção ou reconhecimento da área (visitas aos plicações práticas: a) os trabalhos são concebidos com os setores de
centros de trabalho, consultas a instituições, conversa com profis-
sionais, visitas a sindicatos e cooperativas, entrevistas com sacer-
134. Segundo os autores a "devolução" do conhecimento à população tem não
dotes); c) a identificação das classes, grupos sociais ou pessoas da somente um sentido ético como serve de instrumento de validação dos resultados
região que sejam simpáticos à proposta e que possam vir a ser seus obtidos, momento em que o próprio investigador é objeto de investigação (sua
ideologia, conhecimentos e prática).

164 165
base; b) a produção das técnicas de pesquisa é feita para os setores Lançam mão, outrossim, das técnicas da observação participante e
populares, juntamente com eles; c) são requeridas formas adequa- da entrevista na coleta de dados primários.
das de comunicação dos resultados, estabelecendo-se um novo "idio- A questão que se coloca é a seguinte: se os métodos da pes-
ma" muito mais claro e honesto do que o costumeiramente usado quisa convencional não são capazes de captar o real, por que seus
por cientistas tradicionais; d) os conceitos e hipóteses encontram
resultados "não confiáveis" são utilizados na PP? Se a ciência e seus
sua confirmação ou rejeição através do contato direto e indireto
métodos são criticados, existe uma incoerência em admitir que o
com a realidade e pela utilidade que demonstram ter nas mãos de
pesquisador, formado nos moldes da ciência tradicional, possua
setores e grupos-chave, considerados estratégicos para a transfor-
sequer conhecimentos científicos; se assim é, como poderia ele,
mação fundamental da sociedade. As decisões sobre investigação e pesquisador, colocar suas "ferramentas" a serviço das populações
ação não podem ser tomadas unilateralmente, de cima para baixo, oprimidas?
mas sim em conjunto com os setores-chave efetivos ou potenciais.
O método de estudo-ação leva, geralmente, ao que os autores cha-
mam de "incentivação", ou seja, "quando o pesquisador militan-
te, inserido em uma região ou comunidade, consegue determinar
pontos de partida reais (níveis de consciência) para reivindicações
que podem levar os esforços sucessivos da luta pela justiça (lutas
cívicas, salariais, pela posse da terra, por serviços públicos, esco-
las, postos de saúde etc.) até chegar a conflitos de classe orientados
para mudanças mais fundamentais e estratégicas" (p. 147). Uma
modalidade da técnica de "incentivação" é a "recuperação crítica",
ou seja, a utilização, por parte dos pesquisadores, dos elementos da
cultura tradicional ou de instituições que, no passado, foram úteis
para enfrentar os inimigos das classes exploradas, reativando-os nas
lutas de classe do presente, dentro do princípio de utilização rea-
lista dos recursos disponíveis e de respeito ao nível de consciência
política das populações.
A análise dos modelos metodológicos exemplificados indi-
ca que várias são as técnicas da pesquisa convencional que são utiliza-
das na PP. Assim é que ambos distinguem uma fase de conhecimento
da área, momento que antecede o entrosamento dos pesquisadores
com a população pesquisada (ou "interessada") onde aqueles lançam
mão de estudos existentes, de dados secundários de várias espécies
no sentido de se assenhorearem da realidade que se lhes apresenta.

166
167
QUARTA PARTE
Holismo e individualismo metodológico
no marxismo recente
12.
O individualismo metodológico
na confluência da estrutura
e da ação individual

1. Introdução
Uma proposta aparentemente nova, como a do individua-
lismo metodológico, só pode ser compreendida quando se recorre
aos desdobramentos teóricos que lhe deram origem.
Como dizia Merton, estamos em pé em ombros de gigan-
tes; se, por um lado, é benéfica a criatividade que pretende rever
velhas explicações, consideradas inadequadas vis-à-vis às mudanças
sociais vertiginosas que têm ocorrido em sociedades nos mais va-
riados estágios de desenvolvimento, por outro, a obsolescência dos
conceitos e categorias que perderam seus referenciais empíricos
tem provocado seja o caos teórico, a falta de credibilidade nas teo-
rias, seja o apego desesperado a certas ortodoxias que postulam rea-
lidade independente da subserviência ao tempo e ao espaço sociais.
A questão que nos ocupa se insere dentro do contexto da chamada
"crise do marxismo", por sua vez provocada pela forma como o
percurso histórico do capitalismo e do socialismo afetaram o dis-
curso dos intelectuais de esquerda que, de tempos em tempos, pro-
curam adaptar suas teorias e metodologias às condições cambiantes
do mundo real. Assim aconteceu com Althusser nos anos sessenta
e vem acontecendo desde os anos setenta com as novas tentativas
de revitalização do marxismo consubstanciadas nas propostas do
pós-marxismo, do novo marxismo estrutural e do marxismo ana-
lítico. Chilcote e Chilcote 135 sugerem um quadro no qual situam

135. CHILCOTE, Edward & CHILCOTE, Ronald. "The crises of marxism: an


appraisal of new directions", presented at the Intemational Conference of Marxism
Now: Traditions and differences. University of Massachusetts, Arnherst, novo 30. -
dec.2, 1989-Finalrevision,]anuary, 1991 (p.3).

171
os autores, caracterizando-os de acordo com a matriz teórica à qual vidualismo analítico se originam nos escritos de ju-
estão filiados, ao mesmo tempo que apontam as mudanças de per- ventude de Marx, através de Lukács, Sartre e outros
curso sofridas por alguns deles, fazendo-os passar de uma matriz a até as interpretações recentes que enfatizam o papel
outra na proporção em que suas reflexões os aproximaram mais de do indivíduo e da escolha. Enquanto o coletivismo
uma ou de outra através do tempo. materialista e o estruturalismo derivam dos escritos
da maturidade, através de Lenin, Stalin e Trotsky até
QUADRO 1 as interpretações recentes que continuam a dar aten-
Velhas e novas convicções (Thrusts) teóricas ção especial à estrutura no marxismo.
Filosofismo Individ ualismo Coletivismo
Estruturalismo Do confronto dessas variadas influências, entretanto,
crítico analítico materialista
Chilcote e Chilcote (p. 3) identificam três marxismos. O primei-
Marx Maduro
ro, configurado no trabalho de Lukács, Marcuse e da Escola de
- Lenin, Stalin, -Althusser
Jovem Marx Frankfurt, dos escritores do Leste Europeu, como Adam Schaff e
Trotsky - Poulantzas
(Neo- Kolakowski e do Eurocomunismo. Esta forma se caracteriza pelo
- Lukács, Escola estruturalistas) voluntarismo e o humanismo encontrados na social-democracia e no
de Frankfurt - Resnicke
Sartre - Cohen socialismo democrático e que se opõe ao marxismo dogmático (mar-
(Humanismo) Wolff
(Funcionalista) xismo-Ieninismo) - que representa o segundo tipo - cuja manifes-
(Alienação) (Processo e
determinação) tação histórica se encontra no stalinismo, no Partido Comunista
- Laclau e Mouffe - Cohen
(Pós-marxismo) - Elster
(Individualismo -
1
right
Soviético e no Cominterm. Esta é uma forma de marxismo econô-
mico, determinista e chamado comumente de socialismo científi-
metodológico) co. O terceiro tipo é o marxismo revolucionário que se manifestou
no Maoísmo (depois de Mao Zedong) e na Revolução Cultural
- Bowles e Gintis Chinesa, no Guevarismo (depois de Guevara), na Revolução
Cubana e, de forma conspícua, nos acontecimentos de maio de
-Haberruas
1968, em Paris, e de 74 e 75, em Portugal. Este marxismo repudia
(Pós-liberalismo)
1 o revisionismo soviético, a coexistência pacífica e a transição pací-
fica ao socialismo e é muitas vezes caracterizado de ultraesquerdista
Fonte: CHILCOTE & CHILCOTE, 1991: 3
e coletivista.
Algumas versões contemporâneas (pós-70) representam
o quadro será melhor compreendido nas palavras dos pró-
reações à tentativa althusseriana de revitalizar o marxismo; foram
prios autores (1991: 3-4).
empreendidas pelos pós-marxistas, pelos marxistas estruturais e pelos
A mudança do discurso intelectual é atribuída aos
marxistas analíticos. Embora nosso interesse se prenda ao marxismo
marxismos alternativos relacionados ao pensamento
analítico, apresentaremos um rápido esboço das principais posições
e escritos de Marx e seus seguidores. O quadro 1
dos dois outros grupos a fim de expandir o campo de compreensão
aponta algumas influências históricas emanadas des-
das tendências recentes dentro do marxismo.
ses marxismos. Assim, o filosofismo crítico e o indi-

172 173
2. O pós-marxismo Finalmente, Claude Lefort rejeita a postulação da cientifi-
Depois que Daniel Bell, em 1960, antecipou o fim da ideo- cidade do marxismo, sua ênfase na indeterminação do social e seu
logia, ideia reforçada em Post-Industrial Society (1976), a utilização entusiasmo pelos intelectuais no seio das lutas de oposição.
do termo pós proliferou na literatura: pós-materialismo, pós-mo- O confronto entre a posição marxista tradicional - que a
dernidade, pós-imperialismo e outros. Chilcote e Chilcote fazem classe trabalhadora é essencial, dado seu potencial revolucionário
referência a alguns pós-marxistas apontando não só suas críticas ao por causa de sua posição estrutural como a classe que produz ca-
capitalismo como suas propostas enfáticas para melhorar a qualida- pital- e a posição pós-marxista se revela na recusa de esta analisar
de da vida social. Entre estes destacam-se Bahro, André Gorz, Fred as relações de exploração entre capital e trabalho como central no
Block, Samuel Bowles e Herbert Gintis, Becker et aI. e Laclau e processo de acumulação e reprodução do capitalismo enquanto
Mouffe. modo de produção, categoria, aliás, desprestigiada pelos pós-mar-
xistas. Assim, a classe e a luta de classes foram substituídas pela ên-
As propostas compreendem desde posições anticapitalistas
fase no pluralismo político, nas organizações políticas e nos grupos
e a favor de um socialismo utópico; a busca de um mundo mais
de interesse.
igualitário e democrático; a desburocratização como consequência
Chilcote e Chilcote (1991: 9) finalizam prevendo que,
de uma maior participação do cidadão na regulamentação da vida
como consequência desses estudos, "pode também haver uma ten-
social; a ênfase na prioridade da democracia; a expansão dos direi-
dência a focalizar em uma ou poucas instituições políticas; a seg-
tos pessoais através de formas de democracia representativa e de
mentação das forças políticas pode limitar perspectivas para uma
liberdade industrial e econômica, até a defesa de uma nova política
visão geral da sociedade. Os movimentos políticos na tentativa de
baseada em um projeto de democracia radical.
penetrar na corrente principal (mainstream) podem ficar isolados;
O marxismo também sofre críticas quanto à impossibi-
as estratégias populistas orientadas para ameaçar o establishment po-
lidade de manutenção da concepção de subjetividade e de classe.
dem tomar-se difusas e enfraquecidas pela segmentação de interes-
Miliband chama-os de "novos revisionistas" enquanto Wood os
ses particulares".
qualifica de "novos verdadeiros socialistas".
As raízes do pós-marxismo podem ser encontradas nos 3. O novo marxismo estruturaP36
desdobramentos do eurocomunismo e do eurossocialismo das dé- O novo marxismo estrutural é uma abordagem teórica
cadas de setenta e oitenta. Fernando Claudin e Santiago Carrillo, que vem se delineando nos últimos dez anos, também tentando
marxistas espanhóis, discutiram problemas de superprodução e re- revitalizar o marxismo. Ao contrário do marxismo analítico, os
cessão no Sul da Europa e sobre a necessidade de democratização novos marxistas estruturalistas tendem a rejeitar o individualismo
do aparato do Estado capitalista. metodológico conforme o próprio nome da nova corrente já su-
Poulantzas forneceu importantes contribuições à análise das gere. Assim sendo, embora procurando superar as limitações do
paradigma estruturalista que recebeu o suporte e a contribuição de
classes sociais baseando-se nas experiências da Espanha, Portugal
e Grécia, fazendo-o abandonar a posição leninista de dualidade
de poderes entre Estado e forças populares e aceitar a possibili- 136. Para uma discussão e prognóstico sobre os novos direcionamentos do marxis-
mo propiciado pelas três abordagens (individualismo metodológico pós-marxismo e
dade de uma revolução não sangrenta.
novo marxismo estrutural), cf CHILCOTE, E. & CHILCOTE, R. Op. cit., 1991.

174 175
intelectuais das mais variadas áreas do conhecimento 137 , os novos como a teoria da história e das classes sociais onde as discordân-
estruturalistas guardam o método de análise que pretende trans- cias se acumulam. Como os pós-marxistas e os marxistas analíti-
cender o indivíduo e captar as relações existentes no sistema; em cos, os novos marxistas estruturais lutam pela transcendência das
outras palavras, ele é um método cujo principal objeto de análise limitações de formulações técnicas rígidas, do reducionismo e das
é o próprio sistema, não obstante os adeptos desta corrente atri- políticas intransigentes; mas, em oposição aos dois primeiros, eles
buírem uma ênfase especial aos estudos sobre classes e produção
incorporam um quadro analítico explicitamente estrutural com-
como porta de entrada para a apreensão da estrutura. Esta postura prometido com a abordagem das totalidades, herdada de Althusser.
é consentânea com o pressuposto holista de que o comportamento
Com efeito, existe uma área teórica de interseção entre os novos
individual é o produto das circunstâncias, das relações, mais ou marxistas estruturais e os marxistas analíticos, mas, fora dela, os
menos, persistentes dentro do sistema, que termina por condicio- primeiros têm tratado de problemas diferentes, como movimentos
nar as ações dos atores sociais, em clara oposição ao método da feministas, de gênero e de raça, por direitos civis, pela paz, ecoló-
escolha racional que confere ao indivíduo liberdade de opção em gicos, tentando descobrir os antagonismos não característicos das
sua conduta conforme trataremos mais adiante.
relações de classe como finalizam Chilcote e Chilcote (1991: 17):
As dificuldades que desde as origens da sociologia têm-se
Ao contrário dos pós-marxistas e da orientação
colocado ao sociólogo em termos de uma preferência de exclusi-
geral dos marxistas da escolha racional, os novos estru-
vidade entre as visões holistas e individualistas parecem ser mais
turalistas buscam a compreensão dos problemas con-
cruciais para aqueles que, ao mesmo tempo, atribuem relevância
às duas instâncias, embora exista sempre uma inclinação maior por temporâneos através da análise de classe. Ao invés de
uma das duas; julgo ser este o caso dos adeptos do novo marxis- iniciar pelo indivíduo ou por noções abstratas de ideolo-
mo estrutural. Verifica-se uma certa consonância entre as questões gia, os estruturalistas constroem sua teoria da sociedade
de natureza macro, postas não só pelos marxistas analíticos quanto contemporânea a partir do que eles percebem ser um
pelos novos marxistas estruturais, ainda que os encaminhamentos sistema de estruturas de classes sociais.
finais difiram substancialmente 138 • Entre elas, citamos temas tais
4. O marxismo analítico
137. Na sociologia, além de Marx, temos Althusser, e na antropologia, Godelider; Adam Przeworski, em entrevista à Folha de São Paulo, de 20
os estruturalistas não marxistas são mais numerosos ainda: na filosofia, Derrida, de janeiro de 1990, inquirido sobre o que é o marxismo analítico,
Foucault; na antropologia, Levi-Strauss, sem falar em Lacan na psicologia e nos
linguistas. respondeu:
138. Elster, em Marx hoje, cujo subtítulo é "O que está vivo e o que está morto Marxismo analítico é um rótulo atribuído de fora a
na filosofia de Marx?" (Rio: Paz e Terra, 1989), concede atestado de óbito: a) ao
socialismo científico; b) ao materialismo dialético; c) à teleologia e ao funcio- um grupo de intelectuais que inclui Elster, Cohen,
nalismo; d) à teoria econômica; e) à teoria das forças produtivas e das relações Roemer, Wright, Brenner, Van Parys e eu. Há dez
de produção. "Outras partes da teoria de Marx têm uma posição intermediária:
não podem ser declaradas mortas ou vivas de maneira cabal. As teorias da alie- anos nós nos encontramos uma vez por ano para
nação, da exploração, das classes, da política e da ideologia são em certa medida discutir nossos trabalhos. De tempos em tempos,
viciadas pelo wislifül thinking, pela explicação funcional e pela pura arbitrariedade,
mas apresentam, ao mesmo tempo, intuições cruciais" (p. 213-214). O que está discutimos o que é que temos em comum. Para
vivo?: a) o método dialético; b) a teoria da alienação; c) a teoria da exploração; d) mim, marxismo analítico é um método que consiste
a teoria da mudança técnica; e) a teoria da consciência de classe, da luta de classes
e da política; f) a teoria da ideologia (que está em estado de coma, mas deve ser em tomar algumas suposições da teoria marxista e
ressuscitada) (p. 206-219). em aplicar os procedimentos científicos normais, ou

176
177
seja, dedução e observação empírica, para examinar
Cientistas políticos: KIaus Offe, Adam Przeworski;
sua validade [ ... ] eu acho que a teoria marxista da
Filósofos: A. Levine - norte-americano; E. Sober -norte-
história tem que ser julgada do mesmo modo que
americano; John Elster - norueguês;
qualquer outra teoria, ou seja, pelo argumento da
Historiador: Gerald Allen Cohen - norte-americano.
evidência (Letras - f 4 e 5).
É certo que esta diversidade garantiu a riqueza e a origi-
Os intelectuais que abraçam esta tendência têm sido iden-
nalidade das discussões e propostas que tiveram como objetivo a
tificados também mediante nomes como marxistas da escolha ra-
renovação do marxismo. Autodefinindo-se como marxistas, eles se
cional e marxistas subjetivos.
I
mantiveram fiéis a Marx quanto ao objeto fundamental de suas
As premissas e os fundamentos do marxismo analítico fo-
II análises das configurações históricas do sistema capitalista e das no-
ram estabelecidos de forma mais remota por John E. Roemer, em
1982 (A General Theory cf Exploitation and Class) e J ohn ~~st~r, em vas formas de convivência com outros sistemas, como atestam as
1985 (Making Sense cf Marx), embora Gerald A. Cohen Ja tivesse, experiências europeias com a social-democracia.
em 1978, iniciado o processo de contestação de alguns pressupos- A partir do exame e questionamento da validade de algu-
tos marxistas com seu livro Karl Marx's Theory cf History: a difense, mas suposições marxistas, desencadeou-se também a controvérsia
no qual ele tenta estabelecer a coerência de uma teori~ geral da sobre a adequação do método à análise do desenvolvimento social.
história em M arx139 diferentemente de Elster que, postenormente,
Assim sendo, parece-nos que as postulações dos marxistas analí-
pretende mostrar a "inconsistência de sua teoria geral da história"
(FAUSTO, 1987: 136). ticos envolvem dois elementos de natureza diversa e que parte da
Embora se torne extremamente difícil estabelecer as carac- literatura crítica tende a confundir. Em primeiro lugar, pois, está
terísticas do marxismo analítico, dadas as diferenças e peculiari- presente a questão teórica e, em segundo, a questão do método.
dades individuais dos componentes deste suposto grupo, procu- Os problemas teóricos que provocaram mais polêmica são
raremos apresentar de forma sintética e, certamente, simplificada, os seguintes: a controvérsia a respeito da teoria geral da história de
os principais temas que geraram controvérsia dentro da corrente
Marx, que, embora considerada necessária, é vista como incoerente
marxista mais ortodoxa, vinculando-os aos autores que os desen-
por Cohen e inconsistente por Elster.
volveram.
Antes, porém, algumas informações são necessárias. Trata- Aliás, Elster (1989: 18) faz uma declaração de fé:
se de um grupo heterogêneo em termos de formação acadêmica e Se ser marxista significa manter todas as ideias que
de nacionalidade: o próprio Marx considerava como as mais impor-
Economistas: John E. Roemer - inglês; tantes, inclusive o socialismo científico, a teoria do
Alex Nove - inglês; valor-trabalho, a teoria da taxa declinante dos lucros,
Sociólogos: John Elster - norueguês; Erik Olin Wright - a unidade da teoria e da prática na luta revolucionária
norte-americano; KIaus Offe - alemão; Adam e a visão utópica de uma sociedade comunista trans-
Przeworski - polonês; parente e livre da escassez, então, certamente, eu não
sou marxista. Mas se, por marxista, se entender al-
139. Cf FAUSTO, Ruy. Marx - Lógica e política. São Paulo: Brasiliense, Tomo guém que pode encontrar a origem de suas crenças
II, cap. I, Apêndice II, 1987 [Para comentários sobre a filosofia analítica de Cohen
(1978) e de J. Elster (1985)].

178
179
mais importantes em Marx, então eu sou, de fato, socialismo, levou certos marxistas analíticos a contestarem a abor-
marxista. Para mim, isso inclui principalmente o dagem estrutural até então empreendida pelos adeptos de Marx
método dialético e as teorias da alienação, da explo- como insuficiente não só para captar a ação concreta de certas enti-
ração e da luta de classes, de forma adequadamente dades coletivas, tais como sindicatos, partidos e outros, como para
revista e generalizada. prever esta ação, o que significaria um considerável reforço político
As "revisões" empreendidas pelos marxistas analíticos, en- no processo de transição para o socialismo. A visão histórica de
tretanto, têm sido interpretadas pelos marxistas ortodoxos como Marx cedeu lugar a outra que privilegia o indivíduo como motor
uma deturpação do sentido original atribuído por Marx a certas da história, embora indivíduos dentro de classes sociais.
categorias: Esse novo enfoque, no entanto, não tem convencido a es-
[ ... ] no seu zelo missionário de converter o 'Mar- querda ortodoxa, que vê nele mais um dogmatismo que emerge,
xismo', eles adotaram algumas palavras-chave do pelo fato de o marxismo tradicional não se enquadrar no escopo de
marxismo e mudaram seu sentido. Há poucas dúvi- seu paradigma. A exploração não é mais concebida como a extração
das de que isto lhes permite aparecer como se estives- de parte do dia do trabalhador pelo capitalista, mas como manifes-
sem trabalhando e dirigindo-se a questões associa-
tação da relação desigual de recursos (assets). Da mesma forma, sob
das com o marxismo (CHILCOTE & CHILCOTE,
o marxismo analítico a classe não mais caracteriza o processo no
1991: 12). qual grupos de pessoas tornam-se diferenciadas através do traba-
Entre estas "palavras-chave" estão também os conceitos de
lho, mas, ao invés, se orienta para o desenvolvimento de grupos de
"exploração" e "classe" que foram enriquecidos pelos trabalhos de
pessoas em unidades coletivas. Estas novas significações atribuídas
Roemer, A General Theory oJ Exploitation and Class (1982), de Elster,
pelo marxismo analítico a termos marxistas sugerem um sistema
Making Sense of Marx (1985), de Przeworski, Capitalism and Social
de pensamento bastante diferente, muito próximo da economia
Democracy (1985) e de Wright, Classes (1985)140.
neoclássica e da ciência social liberal, não sendo em nada superior
As reformulações relativas ao conceito de classe social ge-
a estas em termos dos poderes explicativos que ele alega possuir
raram novas convicções não somente sobre as relações de classe
(CHILCOTE & CHILCOTE, 1991: 12).
no capitalismo contemporâneo - e que evoluiu para preocupações
As inquietações teóricas do marxismo analítico têm se
teóricas ligadas à ação coletiva - como sobre a adequação do méto-
orientado preferencialmente para temas relacionados com a teoria
do de análise empírica das próprias classes. A inquietação política,
peculiar aos marxistas de todas as cores com a práxis, no caso, com da historia e com os mecanismos da ação coletiva, conforme tive-
o papel das classes sociais na transformação hi~tórica na direção do mos a oportunidade de expor, dentro do contexto das experiências
do capitalismo avançado e das sociais-democracias com vistas às
possibilidades de transição para o socialismo.
140. A concepção de Wright sobre classe social, em C/asses, difere substancialmen-
Como consequência, o marxismo tem sofrido um proces-
te daquela de C/ass, Crisis and the State, onde são feitos reparos à teoria das classes
de Poulantzas. Em C/asses, o autor se afasta da análise estrutural de classe (locações so extremamente benéfico de revitalização e de concomitante que-
contraditórias de classe) para adotar a teoria da exploração de Roemer, baseada em bra de ortodoxias danosas e estranhas ao princípio marxiano de que
relações de recursos (Assets) que ele distingue entre recursos nos meios de produ- o real é dinâmico.
ção, recursos de qualificação e credenciais e recursos organizacionais.

180 181
Os instrumentais metodológicos utilizados pelos marxistas estado de natureza, onde estava ausente o componente normativo;
analíticos incluem desde análises de natureza qualitativa sobre o e a guerra de todos contra todos era vista como parte da normalida-
comportamento individual e grupal, a sofisticadas versões do mé- de. Sua concepção da natureza humana incluía a presença das pai-
todo positivo com ênfase na estatística e em fórmulas matemáticas , xões como dominadores da razão que lhes era essencialmente servil.
com base na crença de que o marxismo, como qualquer teoria, tem Diante desse caos, a sociedade necessitaria de um monarca justo e
que submeter suas suposições a testes de validade. A exigência com bom - o leviatã - ao qual os indivíduos deveriam delegar poderes
o rigor do método, associada à inflexão na direção de microanáli- para garantia da manutenção da ordem social. Hobbes concebia
ses, tem propiciado críticas por parte da vertente marxista ortodoxa os homens como iguais em termos das faculdades do corpo e da
que afirma a supremacia do método estrutural - que toma o siste- mente conforme a natureza os dotou: as pequenas diferenças não
ma como seu principal objeto de investigação - sobre as variantes seriam consideráveis a ponto de um homem pretender obter be-
positivistas e neoclássicas do individualismo metodológico, con- nefícios para si próprio em detrimento dos outros. Desta igualdade
substanciado na abordagem da escolha racional, de que trataremos de habilidades surge a igualdade de expectativa para o atingimento
a seguIr. de nossos fins. Logo,
[ ... ] se dois homens desejam a mesma coisa que não
5. Algumas origens pode ser usufruída ao mesmo tempo pelos dois, eles
Apesar de certos autores 141 se referirem aos termos "indivi- tornam-se inimigos e no caminho de seus fins sur-
dualismo metodológico", "abordagem da escolha racional" e "eco- girá o propósito de destruir e submeter um ao outro
nomia neoclássica" de forma intercambiável, julgamos necessárias (HOBBES: Leviatã).
algumas distinções. Na ausência de controle, o homem adotará, para conseguir
Quando o pensamento social se secularizou, por vol- seus fins, os meios disponíveis mais eficientes (a força e a fraude).
ta do século XVII, o problema da ordem na sociedade foi o A consciência e o medo do caos, associados ao instinto de
primeiro a emergir como forma particular na esfera da liber- autopreservação (a mais fundamental de todas as paixões), levam o
dade individual e de suas relações com o controle autoritário homem a abrir mão de sua liberdade em benefício de um soberano
e coercitivo do Estado. Antes, porém, a questão da liberda- mediante um contrato social. Será somente por meio da sua autorida-
de individual já tinha sido objeto de discussões religiosas na de que a "guerra de todos contra todos" será controlada e a ordem
cristandade remota, que apelava para motivos normativos de e a segurança mantidas.
liberdade de consciência. Posteriormente, surgiu, em forma se- Com efeito, a teoria social de Hobbes representa uma an-
cularizada, a lei da natureza consubstanciada no conjunto dos tecipação do utilitarismo que predominou nos séculos XVIII e XIX,
direitos naturais absolutos, que moldou de forma determinante especialmente na Inglaterra, com Stuart Mill e Bentham. Por outro
as condições de ação, também assimiladas das teorias sobre a lado, não se poderia falar da ação social individual sem recorrer
natureza física. Hobbes representa o primeiro exemplo do pen- a outro termo, o individualismo, que, enquanto filosofia peculiar à
samento determinista no campo social. Para ele, existia apenas o tradição intelectual da Europa Ocidental, contracenou com muitas
outras teorias de natureza holística, essencialmente aquelas que se
141. PRZEWORSKI, Adam. "Marxismo e escolha racional". Revista Brasileira de direcionavam para as análises orgânicas da sociedade, conseguindo
Ciências Sociais. Anpocs, n. 6, vol. 3, fev. de 1988, p. 5-25.

182 183
sobreviver a duras penas até o início deste século quando teorias
trataram a sociedade como um produto dependente
da ação social individual tiveram lugar no campo das preocupações de indivíduos que se comportam estrategicamen-
das ciências sociais. te. Como salientou Marx em A miséria da filosofia,
O liberalismo, por sua vez, na sua versão política, embora as- "o que é a sociedade, seja qual for sua forma? É o
sentado nos preceitos econômicos do capitalismo do século XVIII, produto da ação recíproca dos homens". Contudo,
cedeu facilmente aos apelos da sociedade por direitos civis que, em alguma época, penso que sob a influência do
por reforçarem princípios individualistas, não ameaçavam as bases naturalismo de Engels, que dominou o marxismo
capitalistas. Já no século XIX, o Estado foi muito mais cauteloso na da Segunda Internacional, os marxistas começaram
concessão legal dos direitos políticos, especialmente o direito de a conceber a história como se não houvesse indiví-
associação, dada sua natureza coletiva. As lutas pelo reconhecimen- duos. Isso levou a uma preocupação com diversos
to dos sindicatos na Europa Ocidental foram constantes e penosas, pseudoproblemas, desde "O papel do indivíduo na
história", de Plekhanov, até "Aparelhos Ideológicos",
apesar de os ganhos dos trabalhadores não conseguirem impedir
de Althusser.
os avanços da acumulação e da concentração das riquezas. A con-
Apresentarei o problema analiticamente: o marxis-
cepção de Adam Smith e de Ricardo sobre este processo, que seria
mo é uma teoria que toma como ponto de partida
conduzido pela "mão invisível" do mercado, levou à crença de que
para a compreensão da história as relações sociais
as ações econômicas eram baseadas nas preferências casuais dos in- "objetivas", ou seja, relações que são, nas palavras
divíduos, contradizendo a visão neoclássica do final do século XIX de Marx, indispensáveis e independentes da vontade
de que referidas ações eram fundamentadas em uma escolha racional de qualquer pessoa. Por indispensabilidade entendo
(consideradas as preferências em termos constantes). que as pessoas situadas em um determinado estágio
Influenciado não só pela tradição holística como pelo uti- de desenvolvimento de suas capacidades produtivas
litarismo do século XIX, Marx direcionou suas atenções humanís- apenas podem sobreviver como espécie se estabele-
ticas e intelectuais para as análises de cunho macro, tão em voga cerem uma forma específica de cooperação. Por in-
à época, conseguindo elaborar o que representa até hoje - apesar dependência em relação à vontade individual enten-
dos seus shortcomings, inevitáveis em qualquer teoria - a melhor e do que as relações sociais constituem relações invariá-
veis entre lugares a serem ocupados por indivíduos,
mais completa matriz explicativa sobre o funcionamento do siste-
e não entre indivíduos específicos - a substituição
ma capitalista. Por seu caráter holista, a concepção marxiana não
de um indivíduo por outro não altera essas relações
contemplou o exame acurado de problemas sociais de tipo micro
(p. 114).
como aqueles relacionados com o processo e mecanismos de for-
As divergências de Przeworski a respeito do materialismo
mação da ação social individual. Conforme afirma Przeworski: 142
histórico se inserem no contexto das inquietações dos marxistas
[... ] Marx, sobretudo antes de 1857, assim como
analíticos em termos de suas tentativas de revigorar a teoria geral da
Engels em seus escritos não expositivos (ver espe-
história de Marx143 • O contraponto desse cuidado está expresso na
cialmente a carta a Bloch, de setembro de 1890)

142. PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e social-democracia. São Paulo: Companhia 143. Cf COHEN, Gerald Allen. Karl Marx's Theory ofHistory: A Defense. Prince-
das Letras, 1989. ton University Press, 1978; e ELSTER, John. Making Sense of Marx. Nova York:
Cambridge University Press, 1985.
184
185
ero da organização social sujeitos à análise pelos mesmos conceitos
afinnação de Przeworski (1989: 113): ''A vinculação entre as rela-
ções sociais e o comportamento individual é o calcanhar de Aquiles e à descrição pelas mesmas leis sociológicas?" Merton (1977: 47)
do marxismo". cita a advertência de um físico, Feynman: "[ ... ] chegamos à conclu-
O autor considera ainda que jamais poderemos compreen- são de que o comportamento da matéria em pequena escala obe-
der a capacidade de recuperação do capitalismo se não passarmos dece a leis muito diferentes das coisas em escala ampla"146, com-
pelos interesses e pelos atos dos trabalhadores, ao mesmo tempo pletando na sua décima quarta estipulação para a análise estrutural
em que descrê que a prática dos movimentos políticos se oriente que "a análise estrutural não pode alegar capacidade para explicar
ou seja determinada por condições objetivas, mas que sua liberdade exaustivamente os fenômenos sociais e culturais".
de ação se situa dentro dos limites das próprias condições que eles O consenso em torno da definição da estrutura social está
procuram transformar: longe de ser atingido. É possível, entretanto, distinguir pelo menos
Tais condições constituem, em cada momento, a es- três tipos de abordagens que reputamos mais relevantes. Uma, que
trutura de escolha: aquela na qual os agentes deli- privilegia o comportamento social padronizado como o compo-
beram acerca dos objetivos, percebem alternativas, nente fundamental da estrutura societal. Dentro desse grupo está
avaliam-nas, escolhem linhas de ação e as seguem, a teoria da ação estrutural-funcionalista de Talcott Parsons - que
a fim de criar novas condições (PRZEWORSKl, representa uma das raras teorias sociológicas que pretende tratar
1989: 15). da explicação dos fenômenos sociais, tanto na esfera micro (The
Structure qfSocíalAction, 1937) como na macro, e usa o termo "es-
6. O individualismo metodológico trutura" de forma intercambiável com o de "sistema" que, aliás,
O grande problema que a sociologia tem enfrentado desde passa a predominar na fase macro dos estudos do autor (Toward a
sua origem se expressa na antinomia entre estrutura e ação ou, em General Theory qfAction, 1951).
outras palavras, entre teorias holistas, que postulam a explicação do O segundo é o que emprega o conceito de estrutura social
funcionamento da sociedade a partir de suas características globais, em sentido lato e com vários significados, podendo referir-se à "di-
ou de totalidade, e aquelas que pretendem ser as relações entre os ferenciação social, às relações de produção, às formas de associação,
indivíduos as responsáveis pela configuração das estruturas 144 . As
à integração do valor, à interdependência funcional, aos status e aos
papéis, às instituições, ou à combinação destes e de outros fatores"
controvérsias, no entanto, não lançam luzes suficientemente fortes
(BLAU, 1977: 24)147.
e capazes de elucidar como se verifica a passagem de uma (ação
O terceiro tipo de análise estrutural é aquele representado pelo
individual) a outra (estrutura) e vice-versa.
método de Marx, referido por Kaláb (apud MERTON, 1977: 43)
A essa agrega-se outra questão levantada por Turner 14S : ''Até
que ponto estão as estruturas e os processos em níveis micro e ma-
146. Cf, a este propósito, HAGUETTE, Teresa M.E "Dialética, dualismo epis-
temológico e pesquisa empírica". ln: HAGUETTE, T.M.E (org.). Dia/ética hoje.
144. A ideia de relação também está presente na concepção de estrutura, embora
Petrópolis: Vozes, 1990, para uma discussão semelhante em termos de utilização
dentro de uma conotação diferente, que indica interdependência entre as partes
da dialética na análise do desenvolvimento social e de objetos da natureza.
do todo.
147. Descartamos propositadamente as concepções vinculadas ao estruturalismo
145. TURNER, Jonathan apud MERTON, Robert K. "Análise estrutural em
na antropologia; para Levi-Strauss, "o termo estrutura social nada tem a ver com a
sociologia". ln BLAU, Peter (org.). Introdução ao estudo da estrutura social. Rio de
realidade empírica, mas com modelos construídos a partir dela".
Janeiro: Zahar, 1977 (p. 45, nota 12).

187
186
como uma "análise estrutural dialeticamente concebida", que en- estudos histórico-estruturais (holistas) de Marx. Na verdade, o in-
fatiza a interdependência entre a análise histórica e a estrutural. dividualismo metodológico entrou na cena teórico-metodológica
Gurvitch 148 também concebe a estrutura social como um processo dos marxistas analíticos exatamente por causa da constatação destes
permanente, um "movimento perpétuo de desestruturação e de sobre a precariedade do conhecimento marxista no nível dos micro-
reestruturação". Ou seja, a preocupação com a estrutura em movi- fundamentos, ou seja, muitas das suposições marxianas carecem de
mento l49 • explicação em termos dos indivíduos, de suas ações, propriedades
Blau (1977: 19) é ainda mais enfático: e relações.
A análise das condições estruturais deve ser comple- Elster (1989: 38) faz referência a duas instâncias principais
mentada por uma análise dos processos históricos, de holismo metodológico em Marx: "Na análise do capitalismo, O
através dos quais as estruturas sociais sofrem mu- capital aparece como entidade coletiva que não pode ser reduzido
dança contínua; de outra forma, não podemos com- a diversas firmas individuais e no materialismo histórico onde a
preender e mesmo perder de vista a dinâmica dos 'humanidade' aparece como sujeito coletivo cujo florescimento no
fatos estruturais. comunismo constitui o fim da história".
Fica claro, pois, a estreita vinculação do individualismo A referência constante aos pressupostos marxistas na pre-
metodológico que se enquadraria dentro do primeiro approach aci- sente discussão se justifica exatamente porque o marxismo analíti-
ma referido - e cujas análises são de natureza micro - com a análise co - e suas abordagens empíricas do individualismo metodológico
estrutural. Entretanto, as diversas teorias da ação também não são e da escolha racional - se desenvolveu, conforme já mencionado,
homogêneas, além de exibirem um baixo nível preditivo. A teoria como uma tentativa de suprir as lacunas e de rever equívocos das
parsoniana, ao supor a existência de normas e valores societais in- suposições e métodos marxistas e, especialmente, marxianos. Assim
ternalizados pelos indivíduos através do processo de socialização e sendo, o individualismo metodológico através dos seus adeptos
que os constrangem a expressarem em atos esses padrões, é referi- modernos (os marxistas analíticos) acredita que a concepção holista
da (ELSTER, 1989; PRZEWORSKI, 1989) como abordagem socioló- de Marx, aliada à crença teleológica na abolição das classes sociais,
gica por oposição à abordagem econômica onde as relações sociais são introduziram dificuldades que os pensadores mais afoitos ousaram
tratadas como estruturas de escolha disponíveis aos agentes. expressar em uma época onde o paradigma marxista ortodoxo era
Se, por um lado, o individualismo metodológico está as- incontestável, provocando no mundo acadêmico uma crise de cria-
sociado às abordagens de natureza micro (individual), por outro, tividade que fez hibernar todas as ideias renovadoras.
ele está estreitamente vinculado ao terceiro tipo que caracteriza os São comuns nos escritos dos marxistas analíticos críticas
não só a certas concepções marxianas como a seu método. Vejamos
148. GURVITCH, G. apud. BOTOMORE, T. "Estrutura e história". ln: BLAU,
1977, op. cit., p. 177. algumas das afirmações dessa natureza:
149. Vale lembrar que o termo análise "histórico-estrutural" foi abundantemente
Embora Marx tenha tido intuições metodológicas
usado pelos adeptos da Teoria da dependência, nos anos setenta, e que refletia as cujas implicações não foram esgotadas, não existe
preocupações de compreender-se os processos de desenvolvimento e de subde- uma "razão dialética" que separe os marxistas do
senvolvimento dentro de uma perspectiva holista do sistema capitalista mundial.
comum dos mortais; é por causa desse contexto
Mas foi também um sinônimo euremico para a análise marxista, a fim de evitar a
censura dos governos repressivos de então no Brasil, no Chile, na Argentina ...
de extrema autoindulgência que adoto o que pode

188 189
parecer à primeira vista uma posição excessivamente
Poucos marxistas - se é que os há - chegaram a ima-
purista em questões metodológicas. O marxismo [... ]
ginar a possibilidade de estabelecer relações funcio-
já esgotou seu crédito há muito tempo (ELSTER,
nais na ausência de mecanismos de nível microsso-
1989: 35).
cial, ou a pensar que agentes coletivos possam ser
"Quanto ao método, acredito que a economia mar-
algo mais do que agregações de atores individuais.
xista tem muito a aprender com a economia neoclás-
Mas os marxistas (e inclusive Marx) têm, de fato,
sica"; "Na ciência social marxista a dialética é muitas
frequentemente fracassado na definição precisa das
vezes usada para justificar uma forma negligente de
implicações dessas crenças, aliás muito sensatas
raciocínio teleológico. Não creio que haja uma for-
(LEVINE, SOBER & WRIGHT, p. 63)151.
ma específica de lógica ou de explicação marxista.
Do exposto, está clara a recusa do holismo marxista à com-
Com muita frequência, o obscurantismo se protege
preensão dos mecanismos de ação dos homens e a insistência no
atrás de uma yoga de termos especiais e de uma ló- individualismo metodológico como uma solução para atingir esta
gica privilegiante. A yoga do marxismo é a dialética". compreensão.
"[ ... ] a análise marxista requer microfundamentos";
Elster (1989: 37) é quem melhor esclarece sobre a "dou-
"O que os marxistas devem proporcionar são expli-
trina" do individualismo metodológico considerado por ele como
cações de mecanismos, a nível micro, para os fenô- um tipo de reducionismo:
menos que ocorrem, segundo eles, por razões teleo-
1. A doutrina não tem implicações relativas ao tipo de ex-
lógicas" (ROEMER, 23_24)150.
plicação de nível individual necessário para operar a redução. Em
"O desafio específico apresentado ao marxismo rela-
particular, o suposto de que os indivíduos são racionais e egoístas
tivamente à teoria da ação é fornecer uma explicação
não faz parte da doutrina, embora seja compatível com ela;
dos atos individuais sob condições particulares, ou
2. Ela não aceita o suposto atomista de que os indivíduos
seja, fornecer microfundamentos para a teoria da his- são independentes da sociedade;
tória"; "O dilema peculiar é que os marxistas nunca
3. A redução aceita por ele se limita ao comportamento,
estiveram dispostos a abraçar qualquer das alternati-
não envolvendo as ideias das pessoas;
vas ao individualismo metodológico - nem a expli-
4. A doutrina deve estar atenta aos perigos do reducionis-
cação psicossocial adotada pela sociologia funciona-
mo prematuro.
lista nem as explicações apoiadas nas teorias freudia-
Podemos acrescentar uma quinta característica ressaltada
nas da personalidade". "O marxismo era uma teoria
por Przeworski que esclarece a possibilidade de utilização do in-
da história sem qualquer teoria sobre as ações das
dividualismo metodológico na análise do comportamento coletivo -
pessoas que faziam essa história" (PRZEWORSKI,
não individual- como empresas, sindicatos, forças políticas.
1988: 7-8).
Em suma, o postulado central do individualismo metodológico -
que estabelece serem os indivíduos os constituintes fundamentais
150. ROEMER, John. "O marxismo da 'escolha racional', algumas questões de
método e de conteúdo". Revista de Cultura Política, Lua Nova. São Paulo, novo de
151. LEVINE, A., SOBER, E. & WRIGHT, E.O. "Marxismo e individualismo
1989, n. 19, p. 23-36.
metodológico". RBCS I Anpocs, n. 11, vol. 4. out. 1989, p. 54-70.
190
191 PERG.A~A.TJ .M
do mundo social, que agem mais ou menos apropriadamente No caso específico da discussão estabelecida no seio das
de acordo com suas disposições e compreensão de suas situações e correntes marxistas aqui tratadas, no caso, o marxismo analítico,
que cada situação social complexa, instituição ou evento, é o resul- afigura-se-me que a referência propositada à questão metodoló-
tado de uma configuração particular de indivíduos, suas disposi- gica 152 , conforme desenvolvida pelos marxistas analíticos na carac-
ções, situações, crenças, condições físicas e circunstâncias - é aceito terização da proposta do individualismo metodológico, é proce-
tanto pelas versões marxistas como não marxistas. dente. Przeworski (1990) é enfático ao afirmar que sua abordagem
Já o pressuposto de que os indivíduos agem racionalmente, (das escolhas estratégicas) usa o método liberal da teoria neoclássica
está ausente dessa concepção, embora seja tratado por uma cor- sobre a escolha racional, mas não a ontologia. Embora admitindo a
rente particular de individualismo que se ocupa do processo de possibilidade lícita de desvinculação do método de abordagem da
decisão individual e que teve origem na economia neoclássica. Ela própria teoria, penso que o projeto do individualismo metodoló-
é conhecida como teoria da escolha racional da qual nos ocuparemos gico extrapola o aspecto especificamente metodológico para atingir
posteriormente. questões substantivas da teoria marxista, o que tem - talvez por essa
razão - dificultado um certo consenso a respeito de sua utilização
7. O problema do reducionismo na sociologia entre os marxistas analíticos.
Aqueles que mais de perto se ocupam dos problemas rela- A discussão a ser empreendida, no momento, restringir-
tivos à teoria sociológica já tomaram consciência de que a questão se-á à questão mais polêmica dentro do individualismo metodo-
crucial dentro desta área -já apontada pelos clássicos anteriormente lógico: o reducionismo. Se, por um lado, os adeptos desta corrente
à Segunda Grande Guerra e que tomou considerável impulso des- acreditam que "todas as instituições, padrões de comportamento
de a década de cinquenta - tem sido o debate sobre a prevalência ou
não da estrutura social sobre a ação, da estrutura sobre a mudança 152. As compreensões a respeito do que seja "metodologia" são muito variadas,
envolvendo desde concepções que a caracterizam como um mero conjunto de-
social, das abordagens macroscópicas sobre as microscópicas.
liberado e apropriado de técnicas de pesquisa, àquelas que entendem que a me-
Mais recentemente, a controvérsia tem se traduzido na dis- todologia abrange "concepções a respeito da construção de teorias e dos proce-
puta entre o chamado "coletivismo metodológico" e o "individua- dimentos de pesquisa, incluindo questões como a construção das explicações,
lismo metodológico". abstrações e transformação de conceitos e a coleta de dados" (LEVINE; SOBER
& WRIGHT, 1989, nota 1). A amplitude desta visão termina por introduzir am-
A anexação do qualificativo "metodológico" ao termo prin-
biguidades que podem dificultar o discurso. Devo aqui confessar que me coloco a
cipal não me parece muito apropriada, uma vez que sugere uma meio-termo entre as duas visões. Primeiramente, embora aceite que é a pesquisa
ambiguidade sobre a natureza de uma questão metodológica quan- (com suas diferentes formas de abordagens do real) que gera conhecimento novo
do, na verdade, ela é de cunho primariamente teórico, ou seja, ela e, logo, leva à construção, reformulação ou refutação de teorias, creio ser mais
heurística a distinção entre teoria (conjunto de proposições explicativas sobre par-
se inscreve dentro das principais preocupações sobre o poder expli-
te do real) e metodologia (proposta de conhecimento do real consubstanciado em
cativo de uma matriz teórica sobre o funcionamento da sociedade. um projeto que inclui desde a visão de mundo do pesquisador até os detalhes de
Partindo-se do pressuposto de que os problemas metodo- sua execução em termos de métodos e técnicas). Em segundo lugar, penso que
lógicos são subservientes às visões interpretativas sobre o real, pen- a escolha destes deve se adequar ao tipo de problema de pesquisa. Neste sentido,
concordo inteiramente com o individualismo metodológico quando desvincula o
so que, de modo geral, deve ser atribuído um valor secundário ao
método da ontologia. CE Teresa M.F. Haguette (1990) para uma discussão sobre
atributo "metodológico". as possibilidades de utilização de técnicas não marxistas em pesquisas marxistas.

192 193
e processos sociais só podem ser, em princípio, explicados em ter-
A "questão" da redução já ocorreu historicamente em qua-
mos de indivíduos: suas ações, propriedades e relações" (ELSTER,
tro casos e entre ciências diferentes: das partículas físicas à mecâni-
1989: 36), por outro lado, os holistas radicais entendem que na
ca quântica, da química para a física·, da psicologia para a fisiologia
vida social existem totalidades ou coletividades que não podem ser
e da sociologia para a psicologia. Neste último caso, a sociologia
explicadas a partir dos indivíduos. Para estes, "as relações individu-
é concebida como tendo por objeto de estudo variáveis agregadas
ais são essencialmente epifenômenos das explicações sociológicas".
enquanto a psicologia se ocuparia das variáveis individuais 153 • O
Tais relações são geradas pela operação do todo: por si mesmas nada
tratamento intercambiável entre o objeto da psicologia e as micro-
explicam. Não se trata, apenas, de que o "todo é maIS do que a
análises (sobre indivíduos) é certamente equivocado, h~a vista as
soma de suas partes", mas de que o todo é a causa exclusiva e as par-
argumentações de G.H. Mead (Mind, Self, and Society) sobre o eU
tes são meros artefatos, ainda que constituídas a partir de relações
(self) e a mente nas quais dintingue definitivamente a natureza so-
sociais. "As categorias macrossociais, como capitalismo, Estado, re-
cial do comportamento humano do aparato fisiológico do organis-
lações de classe, não são apenas irredutíveis a processos microsso-
mo para o desenvolvimento da mente que serve de suporte à for-
ciais: elas não são afetadas por esses processos" (LEVINE, SOBER
mação do self154. Assim sendo, julgo correto pensar que o problema
& WRIGHT, 1989: 60).
do reducionismo, conforme transparece nas disputas a respeito do
Entre estas duas vertentes se colocam alguns marxistas ana-
individualismo metodológico, não se reporta a uma alegativa de re-
líticos, comD Erik Olin Wright, que advogam uma posição inter-
dução entre ciências diferentes - sociologia para psicologia _, mas
mediária entre o individualismo metodológico e o holismo radical
entre níveis de análise - macro a micro - dentro de uma mesma
denominado de antirreducionismo e que, embora reconhecendo
ciência, a sociologia.
a importância da abordagem macro no âmbito das explicações dos
Parece também legítimo esperar que o comportamento
fenômenos sociais, não aceita o reducionismo das interpretações
dos indivíduos seja diferenciado, dependendo do tamanho e do
de nível macro. Apelando para a distinção entre as categorias de
tipo do grupo e que as regularidades encontradas em tal compor-
casos (singular) e tipos (geral), pretendem apontar os equívocos do
tamento devem variar, em consequência. Pode-se fazer afirmações
individualismo metodológico que: a) admite a redução dos concei-
seja a respeito das características dos indivíduos, seja sobre as rela-
tos "tipo" para o nível dos indivíduos, discordando, pois, do status
ções entre eles. Já o grupo (variáveis agregadas) seria considerado
explanatório dos conceitos "tipos" com relação às entidades sociais
irredutível quando as propriedades são atribuídas a ele enquanto
agregadas; b) em decorrência de (a), é aceil.a a microrredutibilida-
sujeito lógico da proposição sem que possam ser aplicadas a cada
de tanto de "casos" quanto de "tipos"; c) falha com os propósitos
um e a todos os indivíduos membros do grupo enquanto sujeito
da ciência que se propõe a explicar fenômenos que ultrapassam os
lógico da proposição. A questão crucial se refere à existência OU
"casos" singulares. "Além de indagar por que este organismo ou
aquela firma sobreviveram, também se quer explicar o que têm em
comum diversos objetos e processos. Quando as propriedades que 153. Para uma melhor explicação sobre estes casos cE ADDIS, Laird. "The Indivi-
duaI and the Marxist Philosophy ofHistory". ln: MAY BRODBECK (org.). Re-
respondem a essas perguntas sobrevêm a propriedades no plano
adings in the Philosophy cfthe Social Sciences. Nova York: The MacmilIan Company,
micro, ou explicações macroteóricas, não são, em princípio, redu- 1968, p. 317-335.
tíveis" (LEVINE, SOBER&WRIGHT, 1989: 66). 154. CE capítulo 1 do presente livro que trata da concepção de George Herbert
Mead (p. 23-42).
194
195
não de tais atributos que não podem ser definidos nem em termos
ciência, Ele é responsável pela criação de disciplinas como a bio-
do comportamento dos indivíduos que compõem o grupo, nem
logia molecular e a físico-química". Neste sentido, o processo não
em termos das relações entre eles ou em ambos os casos. Em ou-
envolve dedução, conforme indicamos acima.
tras palavras, o individualismo metodológico questiona a existência de
Embora o processo de redução seja t.una prática comum
propriedades grupais descritivamente não definíveis, ou de "supe-
e Hutllera
L.'e '~, d e mo d o gera,
na ClenCla I e1e se reveste de uma rou-
rentidades" que, embora emeIjam das propriedades de SUas partes,
pagem d llerente
'e '~,
em se tratan d o d as ClenClas so cíais . Se , ,por um
possuem propriedades que são diferentes da soma de suas par- ' ~',
Iad o, o b serva-se a eXIstenCIa ' d e "conheCImentos
maIS extenSIva
tes, posição defendida pelo "holismo metafísico"155.
,Imperleltos
e'" , , 1
na area, espeCIa mente no que d'IZ rc speito aos macro-
Um processo de redução ocorre logicamente da teoria ma- , , por outro, a estatlstICa
processos sOCIetals, , , tem experimentado um
cro para a teoria micro e, geralmente, implica em dedução da pri- d ' , , sucesso em termos d e pre d'Içao
extraor mano - do comportamento
meira para a segunda. Entretanto, "se as propriedades emergentes de algumas variáveis estruturais. Como diz Brodbeck (1968: 283),
(dos grupos) são vinculadas através de leis (com as propriedades '" a Impro bab"l'd
I I ad e d e um con h eClmento
' perleltO
e' somente' _ através,
dos indivíduos dos quais elas emergem [ ... ] então mediante estas de leis macroscópicas é certamente uma fonte da convICçao eqUI-
leis interligadas (cross-sectional), e aquelas microscópicas, as leis ma- vacad a, por parte d o m IVI uaI'Ismo emplnclsta,
' d'"d "" de que a redução
croscópicas poderiam ser derivadas" (BRODBECK, 1968: 301). A d e IeIs , , ", ~
' ,e necessana laIvez, por ISto,
' o m, d'Ivl"d U alismo metodo-
proposta do individualismo metodológico indica um movimento IogIco
, , conce b'd I o peIos marxIstas' anaI'ItICOS
, ten h a rJ1 sido criticado
similar a este descrito pela autora citada e, obviamente, oposto ,
com lroma , por certos autores que lh"b e atn uem a c omricção ' " de que
àquele observado no método de redução, isto é, através do domí- "categonas ' SOCIaIS,
" , supram . d'IVI'd ualS,
'- sao apenas adrrllsslvels
,. foute
nio dos microfundamentos atingimos o conhecimento dos ma- de mteux,
. ~ " d e nossas I'Imltaçoes
em consequenCla , - cognItIvas ' ou do
croprocessos societais (instituições, padrões de comportamento estado inadequado de nosso conhecimento" (LEVINE; SOB~R
etc.), o que, na opinião de May Brodbeck, não implicaria em re- & WRIGHT, 1989: 63), o que me parece Impro ' cedente; especlal-
,
ducionismo, mas na busca de composition laws (leis de composi- mente partm ' d o d e E n'k 01'ln Wí'ngh t que esta' nvitO 1 .proXImo dos _

ção) que se originariam dos sistemas mais elementares para os marxIstas' ana l'ItICos,
, ten d o mesmo ad en' d o 'a teor I' '"
... da exploraçao
d e R oemer, em seu I'Ivro " C l " , em um meq
asses 'l/V()CO
u reconheci-
mais complexos. Assim, a adesão empirista a um individualismo
metodológico "definicional" (descritivo) não implica logicamente mento d a Importancla
' ~'d' os mlcroprocessos (mlC "rofundamentos).
"
A a Iegatlva
' d os mesmos autores d " o ln
e que ' d'IVI"dvabsmo, meto-
em uma adesão a um individualismo metodológico "explicativo",
ou seja, à redução. d o I ogICo
, ' mSlste
, , em que o o b " l ' d "~
~eto u tImo a clenCla . €: redUZIr , as ex-
Elster (1989: 36) admite que o individualismo metodoló- PI Icaçoes
· - a mvelS " cad a vez maIS' d esagregados" e q ue "exphcar , um
fenômeno é apenas fornecer uma descrição dos rnícrornecamsmos
gico "é uma forma de reducionismo, o que quer dizer que nos leva
a explicar fenômenos complexos em termos de seus componentes que o prod uzem "fi
,a 19ura-se uma acusaçao - sImp
' I"IS ta de extremado
, ,
' " " - d
empmCIsmo que certamente nao correspon e aos p r , essupostos teon-
,
mais simples. O reducionismo é uma estratégia fundamental da
cos e a, pratIca " dos componentes d o rn~DOsmo anah-
'" mvestlgatlva ,

155. Para uma discussão sobre a relação entre individualismo metodológico e re-
" que ad otaram o ln
tICO IVI ua I'IS mo meto d oI'OgIC
" d'"d " o como metodo ,
dução, cE o excelente artigo de BRODBECK, May "Methodological Individua- ' d d ' " 1 d
maIS a equa o as suas pesqUIsas vmcu a as a que s tões marxIstas e
lisms: Definition and Reduction", ln: BRODBECK, May. Op, cit" p, 280-303, à social-democracia.

196
197
o tema do reducionismo já foi tratado anteriormente por no conjunto viável". Esta teoria nasceu com a doutrina econômica
outros autores (J .S. Mill) como psicologismo, cuja principal tese é neoclássica de final do século XIX, que, por sua vez, tem suas raí-
que, "sendo a sociedade o produto de mentes interatuantes, as leis zes no liberalismo do século XVIII que acreditava na existência da
sociais devem finalmente ser redutíveis a leis psicológicas, pois sociedade de um estado de natureza no qual todos os indivíduos
os acontecimentos da vida social, inclusive suas convenções, de- eram iguais, calculando suas ações de forma racional a fim de satis-
vem ser o resultado de motivos que nascem das mentes de ho- fazerem suas necessidades.
mens individuais"ls6, ou seja, as leis que explicam o funcionamento Apesar dessas origens "espúrias", os marxistas analíticos,
da sociedade nada mais são do que as próprias leis da natureza. diante das limitações encontradas na própria teoria marxista que,
Costuma-se opor ao psicologismo o holismo que, em Marx, se ex- por seu caráter holista, não permite a explicação das ações dos in-
pressa na proposição: não é a consciência do homem que determi- divíduos, decidiram aplicar o método da escolha racional, tendo
na o ser, mas é o seu ser que determina sua consciência ls7 . o cuidado de exorcizar a visão de mundo e as explicações sobre o
Ao defender a autonomia da sociologia (contra a redução funcionamento da sociedade que compõem o arcabouço da teoria
psicológica), Popper enfatiza a necessidade de que sejam analisadas neoclássica. Com efeito, para os economistas neoclássicos, tudo
as repercussões involuntárias das ações humanas intencionais, isto que acontece em sociedade enquadra-se em duas categorias: "os
fenômenos económicos e os fenómenos aparentemente não eco-
é, a ação involuntária que, a seu ver, é aquela que cria problemas
nómicos" (PRZEWORSKI, 1988). E, dentro desta perspectiva,
para a ciência social dada a dificuldade de sua previsão. A ação hu-
entende-se que o comportamento individual é racional no sentido
mana é social (e não só psicológica) porque, além de basear-se nos
instrumental do termo, ou seja, os homens tentam maximizar a
motivos individuais, assenta-se na lógica situacional que, por sua
consecução de seus próprios interesses através de ações baseadas
vez, determinará a racionalidade ou irracionalidade da ação ls8 .
em informações contextuais que findam por ajustar-se ao equilí-
brio. Esta visão está assentada no pressuposto de que os indivíduos
8. A teoria da escolha racional
são indiferenciados, imutáveis e dissociados uns dos outros, o que
Segundo Elster (1989: 40), "a teoria da escolha racional su-
colide frontalmente com os fundamentos marxistas aceitos pelos
põe que as pessoas escolherão o curso de ação que preferem ou
marxistas analíticos, especialmente aquele que aponta para as desi-
acreditam melhor. Agir racionalmente é escolher a melhor ação
gualdades concretas da estrutura de classes da sociedade capitalista.
Assim, o método liberal de atingir os microfundamentos da ação
156. Segundo K Popper (A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: ltatiano, 1974, de atores sociais, que não são necessariamente indivíduos, mas po-
2" VoI., nota 19, p. 337), o termo "psicologismo" foi cunhado por E. Husserl.
dem ser coletividades que são geradas historicamente mediante a
Popper é um ferrenho opositor do "coletivismo metodológico", também reco-
nhecido como holismo.
ação dos seus agentes, é aceito, mas a ontologia é recusada. A abor-
157. Apesar de Marx ser mais reconhecido como partidário do holismo metodo-
dagem económica da ação social supõe que as relações sociais são
lógico, há quem descubra nele um "individualismo ético rigoroso" (ELSTER, tratadas como "estruturas de escolhas disponíveis aos agentes", o
1989: 215). que Przeworski (1990) prefere chamar de "abordagem estratégica
158. O interacionismo simbólico, tratado na primeira parte deste livro, representa em vez de falar de uma abordagem baseada na escolha racional".
uma das teorias da ação que atribui extrema importância à situação social na qual o A versão que se opõe à abordagem económica é a socio-
indivíduo se locomove. A expressão de WI. Thomas revela esta preocupação: "Se
lógica, que prevê a ação dos indivíduos a partir da forma como as
alguém define uma situação como real, ela é real nas suas consequências".

198 199
normas e os valores societais foram por eles internalizados durante Em linhas gerais, as visões neoclássicas e marxis-
o processo de socialização. Pode-se reconhecer aqui a teoria par- tas da economia capitalista distinguem-se em que a
soniana da ação social que, embora tratando do fenômeno micro primeira considera que a competência produz uma
da ação individual, acaba por retirar dele a opção decisória dado o distribuição eficaz dos recursos, enquanto para o
constrangimento estrutural que sobre ele recai, não se prestando, marxismo esta mesma mão invisível é uma mão va-
pois, à compreensão científica dos microfundamentos do processo cilante. Crise, ineficácia generalizada, alienação, ex-
de percepção, avaliação e decisão que leva as pessoas a agirem de ploração e outros resultados semelhantes. O que os
uma forma e não de outra 159 . marxistas devem proporcionar são explicações, a ní-
Apesar de as discussões que envolvem tanto o individualis- vel micro, para os fenômenos que ocorrem, segundo
mo metodológico como o método da escolha racional estabelece- eles, por razões teleológicas. Ao se tentar proporcio-
rem constantes diálogos com Marx, sua abrangência é bem maior nar microfundamentos à conduta que os marxistas
atingindo qualquer teoria cuja unidade de análise seja uma entida- consideram característica do capitalismo, parece-me
de coletiva ou macrovariáveis. O desafio que é colocado a qualquer que os instrumentos par excellence são os modelos da
teoria sociológica é que sejam explicitados os mecanismos através escolha racional: a teoria do equilíbrio geral, a teoria
dos quais as organizações e as estruturas se tornam manifest~s no dos jogos e o arsenal de técnicas de construção de
comportamento individual. modelos desenvolvidos pela economia neoclássica.
Outro aspecto que diferencia a utilização do método da Este modelo representa uma grande contribuição
escolha racional por parte de certos marxistas analíticos é que, ape- para a história intelectual do último século.
sar de conceber os indivíduos como racionais, admitem que nem Roemer indica ainda as áreas mais profícuas de aplicação
sempre eles calculam racionalmente, sendo possível que ajam de dos modelos de equilíbrio geral na busca de microfundamentos:
forma irracional. E por essa razão que Przeworslci prefere falar de na formação das classes sociais, na relação entre classe e exploração,
"abordagem estratégica" ao invés de escolha racional. na explicação dos diferenciais racistas dos salários, na persistência
Considerando que Marx privilegiou em seus estudos o do desemprego, nas mudanças técnicas e do processo e controle de
funcionamento do sistema capitalista, não há como surpreender- trabalho. A seu ver, o balanço da aplicação dos instrumentos neo-
se com as preocupações dos marxistas analíticos com a busca de clássicos ao estudo de "questões marxistas" foi produtivo.
respostas mais concretas que elevem o poder explicativo da teoria Existem, entretanto, segundo este autor, diferenças entre
marxista face às transformações que vêm ocorrendo no Ocidente. as duas abordagens que são fundamentais como, por exemplo, a
Assim, diz Roemer (1989: 24-25): postulação neoclássica de que as preferências são dadas, enquanto
o marxismo afirma que as preferências dos sujeitos são, em grande
parte, condicionadas pelo meio social. Em relação às preferências,
159. Causa estranheza a ausência de referência dos marxistas analíticos a outras
aliás, Roemer sugere a utilização dos modelos da escolha racional
teorias sociológicas da ação social, tais como a de G.H. Mead, conforme expressa para o desenvolvimento de uma teoria da formação endógena das
no interacionismo simbólico, e a de Max Weber que, aliás, tratam de dois aspectos preferências a fim de que se possa derivá-las "a partir das dotações
fundamentais da abordagem da escolha racional: a situação (Mead) e a racionali- de recursos e da história".
dade (Weber).

200 201
o pensamento racional na argumentação marxista, segun- vistas como dadas por suas posições de classe; devem
do Elster (1989: 45), foi prejudicado em consequência da crença ser explicadas no âmbito de cada conjunto de con-
marxiana na inexistência da liberdade por parte dos operários na dições [... ]; ver se a ação coletiva é consistente com
operacionalização de suas escolhas. Por esta razão, Marx preferiu as racionalidades individuais. O desafio resultante da
apelar para a explicação funcional "na qual eventos e instituições abordagem de escolha racional é específico: a teoria
são explicados em termos dos benefícios que trazem para algum satisfatória é aquela capaz de explicar a história em
agente ou agentes, mas não necessariamente por terem sido esco- termos das ações de indivíduos racionais e voltados
lhidos pelo benefício que trazem (razão)". Assim, a explicação na para a realização de objetivos.
teoria marxista combinaria o holismo metodológico e a explicação Entretanto, em se tratando de atores coletivos, pode-se de-
funcional, deixando de fora a explicação intencional cuja varieda- tectar uma implicação maléfica do individualismo metodológico
de mais importante é aquela propiciada pelo método da escolha sobre a ação política, digamos de um sindicato ou corporação; isto
racional. é, de indivíduos que partilham interesses e condições de vida co-
Przeworski (1988) alinha algumas das objeções marxistas muns, no momento de uma tomada de decisão que exija a presença
ao individualismo metodológico, conforme expresso no método ativa de seus membros. Trata-se do problema do freeriding ou da
da escolha racional. Primeiro, o método é falho porque não con- pessoa que "pega carona" na participação dos outros e que qua-
sidera as preferências como formadas historicamente; segundo, o se sempre se omite de uma ação altruística em favor da segurança
interesse próprio é uma característica inadequada das preferências de não correr riscos. Nas palavras de Przeworski, "mesmo que os
porque desconsidera a possibilidade de preferências baseadas no resultados da ação coletiva fossem benéficos para todos os trabalha-
altruísmo; terceiro, nem sempre são possíveis as ações racionais, dores, cada trabalhador deixaria de participar se se beneficiasse dos
embora os indivíduos sejam racionais l60 . resultados independentemente de sua participação"161.
Finalmente, é importante destacar a extrema relevância das Embora o âmbito de aplicação do método da escolha ra-
tentativas dos marxistas analíticos em optar por uma teoria da ação cional seja ainda bastante limitado, direcionando-se para a explica-
social que operasse o deslocamento das categorias macro - forças, ção de fenômenos isolados, especialmente no campo das questões
coletividades, estruturas, condicionamentos - para um nível de marxistas ligadas à ação coletiva, podemos considerar que já um
conhecimento que situasse os indivíduos na história. Como diz grande passo foi dado no sentido do reconhecimento de que o in-
Przeworski (1988: 8): divíduo de fato tem um papel na história sem o que estaríamos for-
O marxismo era uma teoria da história sem qual- çados a concordar que "os indivíduos fazem a história, só não sa-
quer teoria sobre as ações das pessoas que faziam bem que tipo de história [ ... ]". Do que foi dito não se deve concluir
essa história [ ... ] - posição não mais defensável; os que todas as questões marxistas só podem ser resolvidas através do
postulados do individualismo metodológico vão ao
centro da teoria marxista de ação coletiva e, portanto, 161. As assembleias de professores nas universidades exemplificam com clareza o
da história. As ações dos indivíduos já não podem ser comportamento do "carona", que não se dá ao trabalho de participar das reuniões
e termina por se beneficiar dos resultados partindo do pressuposto de que "os ou-
160. O próprio Przeworski assinala a importância secundária da exigência da ação tros irão"; se os resultados forem negativos, o "carona" poderá sempre alegar que
racional em todas as circunstâncias. não estava presente à assembleia e se eximir de possíveis criticas.

202 203
individualismo metodológico e, especialmente, mediante a busca quisador, sou forçada a admitir a existência de categorias holistas;
dos microfundamentos propiciados pelo método da escolha ra- e mais: que a muitas delas não se adequa o método do individu-
cional. Muitas questões podem ser resolvidas através da utilização alismo metodológico. Já no que tange àquelas relacionadas com a
da parafernália metodológica da ciência convencional, inclusive a ação coletiva, considero pertinente e apropriada a utilização do mé-
estatística. Em outra ocasião (HAGUETTE, 1990), já argumen- todo da escolha racional que, em princípio, se enquadraria dentro
tei a favor da tese de que as metodologias (stricto sensu) devem ser do paradigma do chamado individualismo metodológico, isto é, a
sempre subservientes aos problemas de investigação, não estando abordagem individual é boa, mas o background teórico que a susten-
necessariamente vinculadas a matrizes teóricas específicas. ta (teoria neoclássica), me parece, não é plausível. A única forma de
Ao encerrar esta discussão sumária, ficou-me uma ques- se saber se o método é justo, é aplicando-o e testando a validade dos
tão que pretendo aprofundar em um próximo trabalho: Por que o pressupostos teóricos que informa o problema de investigação em
método da escolha racional foi escolhido pelos marxistas analíticos questão. Voltamos aqui ao meu argumento inicial. Não há métodos
sem que as teorias da ação social de Mead e de Weber fossem se- e técnicas que representam uma propriedade hegemônica de uma
quer cogitadas? matriz teórica. Existe o método científico convencional, acrescido
de outros métodos e técnicas de alto teor de verossimilhança en-
9. Últimas questões quanto instrumentos de captação do real, como julgo ser o caso do
O esforço efetuado no sentido de uma exposição da pro- método dialético na análise das transformações sociais ou da pes-
blemática teórica, que supostamente opõe a visão holista à visão quisa participante como forma concomitante de conhecer, educar
individualista como alternativas de garantir o melhor domínio so- e agir sobre uma situação específica. Dependendo do problema, se
bre o real social, não coloca pontos finais nem oferece respostas escolhe o método, que lhe é subalterno.
contundentes. As contendas provavelmente vão continuar. No en- As três abordagens rapidamente esboçadas no presente ca-
tanto, o fato de uma ala marxista haver contestado o poder expli- pítulo se nos afiguram como de longa duração na esteira dos de-
cativo da perspectiva marxiana da totalidade trouxe novo alento à bates nas ciências sociais. Arriscando usar a bola de cristal, eu diria
velha polêmica, agora com o argumento de autoridade de dentro que não há dúvida de que o marxismo analítico deverá superar os
do próprio campo marxista. modos de pensar não só da corrente pós-marxista como do novo
Por outro lado, não há como negar a existência de catego- marxismo estrutural, nesta década de noventa, por uma razão mui-
rias sociológicas que se enquadram no princípio de que "o todo to simples: por ter sido o único que, finalmente, teve a coragem de
é maior do que a soma das partes". Como negar a impossibilida- quebrar o tabu holista do paradigma marxista. Assim sendo, ante-
de de compreensão da "consciência coletiva" somente através da vejo resultados auspiciosos das análises de natureza micro que po-
avaliação das consciências individuais? Como não acreditar que a derão explicar comportamentos coletivos - de sindicatos, partidos,
"vontade geral" é algo mais do que a vontade da maioria? Como corporações etc. -, que conduzirão a uma certa segurança quanto
ousar entender o capitalismo a partir de depoimentos dos atores à previsão de decisões que poderão ou não ajudar a implemen-
sociais? Dentro da perspectiva que adoto de que não existe uma tar a democracia política, a diminuição das desigualdades e, talvez,
teoria evidente nas ciências sociais e que a opção por um referencial para os que ainda acreditam, a transição para o socialismo; o que
teórico se faz à base da maior plausibilidade que ele oferece ao pes- não implica dizer que as análises marxistas se tornaram obsoletas.

204 205
Enquanto existir capitalismo, há que se recorrer a Marx, fazendo-se
as devidas correções das suposições que as transformações históri- 13.
cas eXIgIrem. Conclusões
Quanto à política, estarão presentes as questões sobre o
socialismo, a social-democracia, o parlamentarismo (no Brasil) e,
principalmente, uma disputa oriunda do desvio de rota do poder
mundial: ao invés de capitalismo versus socialismo, teremos a hege- A pp e a PA não podem ser aV~liadas apenas através de sua
monia americana comandando a dominação, ainda mais brutal, dos obediência ou não aos parâmetros da P~squisa convencional. Se as-
países ricos sobre os pobres, a não ser que um evento importante sim fizéssemos, estaríamos desvirtuanc:to_as por concebê-las como
coloque o Novo Mundo contra o Velho Mundo. uma coisa que não são. Se a pp ou a P1\ representassem apenas um
processo de pesquisa, ou um processo de geração de conhecimen-
to, obviamente que a elas seriam impuhdos desvios sérios, como a
contaminação deliberada do fenômenQ a ser estudado por parte do
sujeito do conhecimento - o pesquisac\or -, acrescidos dos desvios
típicos da pesquisa tradicional. A pp \:: a PA devem ser avaliadas
em função do que elas pretendem ser: a) um processo concomi-
tante de geração de conhecimento por parte do polo pesquisador e
do polo pesquisado; b) um processo euucativo, que busca a inter-
transmissão e "compartilhação" dos conhecimentos já existentes
em cada polo; c) um processo de mudança, seja aquela que ocorre
durante a pesquisa, que preferimos chamar de mudança imediata,
seja aquela projetiva, que extrapola o ~mbito e a temporalidade da
pesquisa, na busca de transformações estruturais - práticas - que
favoreçam as populações ou os grupo); oprimidos. Neste sentido,
o aspecto mais chocante aos olhos do flesquisador tradicional, a in-
terferência deliberada do sujeito juntl) ao objeto da pesquisa - a
quebra de objetividade - se justifica, porque não é a captação do
real em determinado momento que interessa e que representa o
objetivo da pp e da PA, mas um conltecimento em processo que se
estabelece. Isto não significa que toda g~ração de conhecimento deva
necessariamente tomar esta forma. H~ fenômenos sociais que são
melhor desvendados e compreendido~ através do método conven-
cional como, por exemplo, o fenômellO do poder, não em termos
de suas consequências, mas de sua constituição, a reconstituição de
fenômenos únicos, o imaginário das diversas classes sociais e muitos

206 207
outros. Entendemos que a pp e a PA não representam alternativas
ao método tradicional, mas sim um método que deve ser adotado, 14.
tendo-se em vista determinado problema, quase sempre vincula- Considerações finais
do à dominação nas suas mais variadas formas. Do mesmo modo
a observação participante é mais adequada para captar "definições
de situação", representações, sentidos da ação social do que uma
pesquisa de tipo survey. É importante lembrar aqui as afinidades A primeira conclusão que se impõe neste momento a
existentes entre a pp e a PA e a observação participante pelo fato respeito da exposição e discussão encetadas ao longo do presen-
de todas elas se interessarem pelos aspectos subjetivos da ação, per- te trabalho é aquela que aponta para a sua incompletude, ou seja,
cepções, definições, explicações. Neste sentido, uma aproximação para o caráter inacabado e não definitivo das reflexões elaboradas.
maior dos dois métodos seria aconselhável, uma vez que as pri- Conforme enfatizado na introdução, nosso objetivo é exatamente
meiras se utilizam primariamente da verbalização, da linguagem este, não sendo de nosso intuito a defesa ou a oposição radicais a
que são muito limitadas em termos da captação de certas realidades teorias, métodos ou técnica. Obviamente que houve tomadas de
dos grupos em estudo e que são muitas vezes mascaradas pelo não
posição, e foram necessárias, sem o que não faria sentido uma su-
dito, pelos silêncios, pelas racionalizações, ideologias e falsa cons-
posta descrição neutra da prática científica e da postura dos outros.
ciência.
Cremos que cada cientista tem a obrigação de expor-se para, no
Os trabalhos analisados trazem implícita a ideia de que o
final, enriquecer-se com as críticas ou reconhecimentos de seus
conhecimento popular é "verdadeiro" e que é este conhecimento
pares. É nesta espiral que o saber progride.
que deve controlar os desvios possíveis ou prováveis oriundos da
A segunda conclusão retoma as indagações abordadas na
transação entre pesquisador e pesquisados. A problematização des-
introdução, que se referem aos três aspectos teóricos que conduzi-
te conhecimento, a nosso ver, é fundamental, pois nada assegura
ram nossa reflexão. Interessava-nos saber: a) como uma sociedade
que ele não esteja contaminado por ideologias dominantes, pela
subjetividade exacerbada ou mesmo por erros do senso comum. se mantém e se transforma e quais os mecanismos que ligam as
Por outro lado, as práticas da PP e da PA não evidenciaram qual- micro e as macroestruturas; b) qual o papel da ação humana na
quer preocupação com o controle dos desvios, nem em termos do história; c) como fazer para conhecer a sociedade e obter indícios
pesquisador, nem em termos dos pesquisados. Tem-se a impressão de respostas para (a), (b) e (c). Não podemos dizer que nossas con-
de que a opção pelos oprimidos exime inexoravelmente os compo- vicções - provisórias - sobre o homem, a sociedade e a forma de
nentes do processo da "vigilância epistemológica", insubstituível fazer ciência sofreram modificações substanciais no decorrer do
em qualquer processo de geração de conhecimento. Nada garan- trabalho. Ocorreu, sim, um aprofundamento e fortalecimento da
te, repetimos, que as explicações, interpretações, ações e práticas, crença de que o homem é a principal peça do que se convencio-
produtos da pp e da PA, sejam aquelas mais próximas "do verdadei- nou chamar de sociedade e de que é ele quem detém a capacidade
ro" - consonância entre o que é dito e o que é -, nem que elas de transformação e/ou de conivência como o status quo. Sendo a
conduzam ao melhor tipo de ação liberadora. Outra forma seria sociedade um jogo dialético entre estruturas e conjunturas, entre
conceber qualquer tipo de conhecimento como válido e qualquer permanência e movimento, cabe ao homem - à ação social - se-
ação como desejável. dimentar ainda mais as estruturas, ou modificá-las em benefício

208 209
próprio. Não há uma terceira via. Obviamente que isto não é claro nenhum fenômeno social existe que não parta de uma unido d d
nem é fácil, daí por que se torna premente a participação das ciên- - ln
açao: . d"dIVI uaI ou grupa1. a e e
cias sociais neste processo: conhecer para facilitar a ação própria ou A sociedade funciona e é preciso que, enquanto ci .
de outrem ou conhecer agindo. Pode-se dizer que são estes os dois . . h 'fi 'd d el1tIstas
SOCIaIS, con eçamos as suas especI lCI a es, seus mecanis
' n lOS d e
caminhos palmilhados pela ciência social comprometida, no Brasil sustentação e de mudança. E este o nosso papel, através da c.
s lerra-
e alhures. O primeiro é seguido pelos cientistas sociais que mais mentas metodológicas que compõem o espectro do rnétn...J .
~o CIen-
frequentemente se utilizam do método de investigação convencio- tífico, procurando adequá-Ias às nossas preocupações e probl
. _ , . ema-
nal, e o segundo por aqueles que consideram imperativa a intro- tlzaçoes teoncas.
dução da ação na geração de conhecimento a fim de apressar um Não poderíamos encerrar esta conclusão sem abord
, . ar um
processo de mudança societal mais digna e justa para o homem. Os tema que permaneceu "por tras dos bastIdores" ao longo d
. . . d' este
dois caminhos, entretanto, não seguem paralelos, mas, ao contrá- trab alho: como se sItua a teona marxIsta Iante da perspectI'
. "a que
rio, se intercruzam constantemente, e é necessário que assim seja. acabamos de endossar, ou seja, aquela que valoriza a ação s . 1
. OCIa e
A pesquisa convencional, a pesquisa-ação e pesquisa participante os sentIdos a ela alocados pelos atores no processo dialétic
. E . o entre
não são incompatíveis. Cada uma se beneficia da outra. estrutura e mOVImento. m termos maIs precisos, Como s .
O jogo entre a permanência (estrutura) e o movimento . . c.' di' l' e sItua
a teona marxIsta lace as meto o ogtas qua Itativas, especial
.... b mente
(ação social) representa, de fato, o componente básico da sociedade. aque 1as que, como o lnteraclomsmo SIm ólico, privilegi
E aqui parece-nos claro que ela se mantém exatamente por causa significado da ação individual ou coletiva na reconstrução doam l~
deste jogo. Nem são as estruturas as responsáveis pela manutenção Antes d e proced er a' d'Iscussão, cab ' a d'Istinção entre a rea . .
e aqUI
. . teona
da sociedade, nem são as ações sociais que a movem. São as duas - de Marx - ou teona marxIana - e ou as teorias marxistas _ d
estruturas e ações - que tornam a sociedade possível e que fazem seguI'dores d e Marx. Parece-nos eVI'd ente que a primeira consid os
a modelagem do seu caráter ora na direção da permanência, ora . d'IVI'd uo e o pequeno grupo como Irre
ln . 1evantes. O mundo de M era o
na direção da mudança. É um jogo de forças cujo instrumento não é um mundo de indivíduos e de significados individual' arx
. s, mas
de combate é a ação individual ou grupal. Ações conservadoras, um mundo de classes. Vejamos alguns de seus posicionamentos:
progressistas ou revolucionárias, mas são elas que ligam as micro Até hoje a história de todas as sociedades qu .
e eXIS-
e as macroestruturas. Por outro lado, a ação social é impulsionada tiram até nossos dias tem sido a história d I
as utas
pelos mais diversos tipos de conflitos presentes na trama societal: de classes (MARX & ENGELS. Maniftsto do" 'd
l-art! o
quanto mais violento o conflito, maiores são as possibilidades de Comunista).
mudança. Não devemos supor, no entanto, que toda mudança Não é a consciência do homem que deter"""
'"lna sua
seja benéfica para os membros que por ela lutaram ou foram existência, mas sua existência social que det .
etmma
caudatários de lutas de outros. Se um indivíduo ou um grupo sua consciência (MARX. Prefácio à Contrib . _ ,
Ulçao a
define certa situação como desejável, ele agirá em consonância Crítica da Economia Política).
com ela, apoiando a estrutura ou lutando por sua transformação. É Das obras que trataram do mesmo aSSunto "() de-
óbvio que a ação individual não organizada tem poucas chances de zoito brumário" mais ou menos na llJ.esma '
epoca,
influir nesta transformação, exceto no caso das "elites do poder", apenas duas são dignas de nota: Napoléon le" . d
' rellt e
cujas decisões estão muitas vezes fora dos mecanismos de controle Victor Hugo, e Coup d'Etat, de Proudho n [... ), V.' ICtor
da sociedade civil. Em qualquer dos casos, parafraseando Mead, Hugo [ ... ] vê nele apenas o ato de força de u,." dO ,
o

"1 ln IVI-

210 211
duo [... ] Proudhon, por sua vez, procura representar Embora reconhecendo o perigo de pinçar afirmações es-
o golpe de Estado como o resultado de um desenvol- parsas de autores, com o fim de fundamentar certos pontos, cre-
vimento histórico anterior [... ] Eu, pelo contrário, mos estar sendo fiéis ao pensamento de Marx e à sua obra como
demonstro como a luta de classes na França criou um todo. Ao contrário dos autores aqui analisados, que enfatizam a
circunstâncias e condições que possibilitaram a um relevância do significado na ação social individual ou coletiva, que
personagem medíocre e grotesco desempenhar um adotam a metodologia qualitativa como um instrumento privile-
papel de herói (MARX. Prefácio à segunda edição de giado no apanhar ou na construção do sentido alocado pelos atores
O dezoito Brumário de Luiz Bonaparte). individuais ou coletivos à sua ação, Marx preocupa-se com o cará-
Podemos concluir de todo o desenvolvimento his- ter estrutural da sociedade. Não é o indivíduo que realmente pesa.
tórico até os nossos dias que as relações coletivas em Ele não é portador de sentido significante. Ele tende a desaparecer,
que entram os indivíduos de uma classe, e que sem- tamanho é o peso da sociedade e, sobretudo, dos grupos e das clas-
pre foram condicionadas pelos seus interesses co- ses e, em "última instância", da estrutura econômica. O indivíduo
muns relativamente a terceiros, constituíam sempre é moldado pelo lugar que ocupa na produção. O mundo de Marx
uma comunidade que englobava esses indivíduos não é um mundo de indivíduos e de significados individuais, mas
unicamente enquanto indivíduos médios, na medi- de classes; é a situação de classe que marca inevitavelmente o indi-
da em que viviam nas condições de vida da mesma víduo e, consequentemente, seus interesses, suas aspirações e sua
classe; trata-se, portanto, de relações em que eles não ideologia.
participam enquanto indivíduos, mas sim enquanto O subjetivo entra na teoria marxiana, através do conceito
membros de uma classe. Por outro lado, na comuni- de consciência, e nele estão presentes as representações, os imagi-
dade dos proletários revolucionários que põem sob nários - em certos momentos capazes de contrariar os interesses
o seu controle todas as condições de existência e as de classe e de fazer os indivíduos agirem contra seus próprios in-
dos outros membros da sociedade, produz-se o in- teresses. Mas estas representações, este imaginário, são coletivos.
verso: os indivíduos participam enquanto indivíduos São criações da coletividade imposta aos indivíduos. São ilusões
(MARX & ENGELS. A ideologia alemã, p. 83). explicáveis pela história dos modos de produção. A consciência de
Minhas inquirições levaram-me à conclusão que classe não é uma consciência conjuntural, empírica dos indivíduos,
nem as relações legais nem as formas políticas podem mas aquela que deve ser. Não é uma consciência subjetiva, ela é
ser compreendidas seja por si mesmas ou na base do objetiva, dada, atribuída. Não é o proletário o sujeito por excelên-
assim chamado desenvolvimento geral da mente cia da história, mas o proletariado que possui uma missão objetiva
humana, mas que ao contrário elas se originam nas e inevitável.
condições materiais da vida [... ] (MARX. Prefácio à Pode-se argumentar que esta é uma leitura ou uma inter-
Contribuição à Crítica da Economia Política, p. 20). pretação de Marx. É possível. Em todo o caso, é a interpretação
Não se trata de saber que objetivo este ou aquele comum de Marx e que nasce dos textos do autor.
proletário, ou até o proletariado inteiro, tem mo- Por outro lado, em se tratando da teoria marxista, é certo
mentaneamente. Trata-se de saber o que é o prole-
que alguns autores tantam recuperar certos aspectos da teoria mar-
tariado e o que ele será historicamente obrigado a
xiana, imprimindo-lhes um significado que permite a intromissão
fazer de acordo com este ser (MARX & ENGELS. A
da individualidade e do subjetivo. É o caso de Castoriadis, de L.
sagradaJamaia, p. 55).

212 213
Goldmann, de H. Lefebvre, de Sartre, embora se possa arguir que Salvaguardadas algumas suposições marxistas basilares (o método
eles não são marxistas ortodoxos, o que é verdade, ou, talvez, que dialético, as teorias da alienação e da luta de classes e poucas outras)
eles não são nem mesmo marxistas. O trabalho de René Barbier - so- e seus fundamentos ontológicos, não são pruridos de natureza me-
bre pesquisa-ação institucional- é um exemplo de análise marxista todológica que irão impedir o recurso ao arsenal positivista ou fun-
(declarada) que se utiliza dos conceitos de "imaginário social", de cionalista na busca do conhecimento do homem e da sociedade.
Castoriadis; de "consciência possível", de L. Goldmann; de "quoti- De nossa parte, também acreditamos na possibilidade de
dianidade", de H. Lefebvre; de "existência", de Sartre, entre outros, uma análise marxista dentro da ótica de resgate dos microproces-
que estão fora das categorias marxistas tradicionais (Marx, Engels, sos desencadeados pelas ações sociais individuais e dos pequenos
Lenin), mas que abrem uma brecha à subjetividade e ao significado grupos, nos quais o significado, a subjetividade, as "definições de
ausentes nas propostas de natureza estrutural dos clássicos. situação" são valorizados como fatores relevantes e passíveis de in-
Nas duas últimas décadas, entretanto, a proposta dos mar- fluir de certa forma na modificação das estruturas.
xistas analíticos (Adam Przeworski, John Roemer, John Elster, Devemos ainda acrescentar que as controvérsias em torno
Clauss Offe e outros) vem se impondo. Na interdisciplinaridade de problemas epistemológicos e metodológicos dentro das ciên-
de seus estudos, este grupo tem conseguido revitalizar o marxismo, cias sociais, assim como em outras ciências, vão muito além do
embora minando os alicerces das convicções holistas dos marxistas que foi discutido neste trabalho. Faltou-nos tempo para falar da
ortodoxos. Apoiados no postulado neoclássico da "escolha racio- corrente que propugna a abolição de métodos, ou melhor, que
nal", vêm tentando fazer a ponte entre a estrutura e a ação individual não acredita que o método científico rigoroso seja o maior res-
sob o argumento de que, sem o domínio dos microfundamentos, a ponsável pelas descobertas e por um conhecimento mais acurado
referência à estrutura se torna inócua. da realidade. Refiro-me à proposta de Paul Feyerabend em Contra
Muitos progressos teóricos foram conseguidos no que tan- o método (Against Method) que tem levado a reflexões intensas por
ge aos "testes de validade" de proposições marxianas, especialmen- parte daqueles que buscam uma maneira mais eficaz de domínio
te aquelas relativas às classes sociais e ao papel do indivíduo dentro da natureza em benefício do homem. O perigo da proposição de
delas. Aqui, o recurso aos procedimentos metodológicos que am- Feyerabend reside na possibilidade de se partir para o "anarquismo
param os pressGpostos da escolha racional pode levar a relevantes metodológico" e no abandono de séculos de prática científica.
avanços políticos concernentes à previsão das ações de entidades co- Outra proposta não referida aqui é aquela de Glazer e
letivas, tais como sindicatos e partidos. Strauss (1975), mais próxima das ciências sociais, que mereceria
A pecha de "positivistas" não parece afetar o ânimo des- um tratamento mais demorado. Os autores questionam a exigência
se punhado de cientistas que teima em inovar, em buscar novas de uma teoria, ou problema teórico, prévia à abordagem do real
formas de conhecer a sociedade e os indivíduos e grupos que in- dentro da pesquisa tradicional, sob a argumentação de que ela tolhe
teragem no dia a dia de suas lutas pela sobrevivência, e que, em a criatividade e a descoberta de novas teorias, uma vez que aquela
assim fazendo, têm o poder de imprimir novos rumos a um es- direciona a observação e a interpretação através de um processo
tado de coisas que beira o irracional, como temia Max Weber. O seletivo imposto. Dentro desta perspectiva, a teorização viria após
fracasso do socialismo real também não abalou sua convicção de a observação.
que Marx continua sendo o melhor intérprete do genial e diabólico Como vimos, muito deve ser feito e com muita reflexão.
sistema capitalista que tem sobrevivido às várias tentativas de su-
peração da desigualdade, da miséria e da opressão a nível mundial.

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